22 - O Sertão Imagético de Rosa e Bisilliat

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    O SERTO IMAGTICO DE ROSA E BISILLIAT: UMA

    LEITURA DA TRADUO DA LITERATURA PARA AFOTOGRAFIA

    Maria Catarina Rabelo BOZIO (G UNICAMP)1

    Resumo: A partir da dcada de 60, Maureen Bisilliat, fotgrafa, se prope a produzir umamaior interao entre as artes fotogrfica e literria. As produes, aparentemente dspares,foram aproximadas em diversos livros publicados pela artista, como em A Joo Guimares Rosa(1969), inspirado emGrande Serto: Veredas(1956) de Joo Guimares Rosa. A partir deum processo sistemtico de contato com o autor, Bisilliat, que obtinha indicaes sobre oslocais a serem visitados, estabelece nas imagens uma traduo intersemitica da literatura deRosa. A Joo Guimares Rosaadmite uma ressignificao da obra inspiradora por intermdioda sobreposio de citaes e imagens. O objetivo principal da comunicao apresentar aleitura de duas imagens deste ensaio, partindo dos conceitos de mobilidade e imobilidade; dasnoes de realidade e ficcionalidade atravs da representao na fotografia dos elementosmgicos e poticos criados por Rosa para a literatura; bem como as snteses necessrias natraduo intersemitica da literatura Roseana para a linguagem fotogrfica.

    Palavras-chave:Maureen Bisilliat. Joo Guimares Rosa. Fotografia. Literatura comparada.

    IntroduoA inglesa Maureen Bisilliat se estabeleceu no Brasil por volta de 1950, e trabalhou

    inicialmente como fotojornalista, profisso que motivou viagens e visitas para lugares diferentese distantes, e consequentemente, proporcionou uma grande vivncia das duras realidadesnacionais. A convivncia direta com a populao brasileira resultou numa experincia que

    motivou o seu aprofundamento nas pesquisas referentes literatura proveniente do Brasil.A artista se encantou instantaneamente pelo mais perene dos romances brasileiros,

    Grande Serto: Veredas(1956). A aposta de Joo Guimares Rosa sobre esta afinidadeimediata da fotgrafa, opinio da qual a prpria artista compartilha, de que suas origensirlandesas cuja populao, assim como a do serto, se liga muito linguagem e palavra tenham colaborado para um sentimento comum de razes familiares.

    1 Estudante de graduao indicada pela Prof. Dra. Suzi Frankl Sperber. Bolsa IC/FAPESP. Bacharelado emEstudos Literrios. Instituto de Estudos da Linguagem. Universidade Estadual de Campinas. Campinas. SoPaulo. [email protected].

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    Na viso de Rosa, a estaria o motivo da estrangeira2 ter se intrigado tanto sobre qualera a proporo entre realidade e fico do romance que se tornaria representante de uma novaera na literatura brasileira, segundo a leitura de Antonio Candido j na poca do lanamento.

    Para compreender qual a exata poro entre o real e fico no romance, Rosa props queBisilliat testemunhasse este mundo e a fotgrafa aceitou o convite.

    Sendo assim, a partir da dcada de 60, a artista se empenhou em desenvolver uma maior interao entre as artes fotogrfica e literria. De forma que, posteriormente, outras obrasliterrias receberiam o mesmo tratamento imagtico de dilogo intenso com os textos, como por exemplo,Serto: Luz e Trevas(1982) com textos de Euclides da Cunha,O co sem plumas(1984) inspirado no poema homnimo de Joo Cabral de Melo Neto eChorinho doce(1995)

    elaborado com poemas de Adlia Prado. Com estes esforos, as duas modalidades de produo aparentemente dspares, fotografia e literatura, foram aproximadas de acordo com aptica da artista.

    Os resultados imagticos da visita ao serto, foram publicados por Bisilliat em A JooGuimares Rosa(1969), inspirado emGrande Serto: Veredas. Podemos considerar que oensaio fruto de um processo sistemtico de contato com Rosa. Esta proximidade com o autor foi o que possibilitou a fotgrafa de obter indicaes sobre os locais a serem visitados.

    A partir desta relao, facilitado o estabelecimento nas imagens de uma releitura, possvel traduo intersemitica, da literatura de Rosa. Por meio da observao atenta de duasimagens3 deste ensaio resultar numa leitura com a qual pretendo exemplificar as snteses eadaptaes necessrias na traduo intersemitica da literatura Roseana para a linguagemfotogrfica.

    Dada a amplitude de possibilidades interpretativas, s ser possvel atingir esta propostade anlise mediante ao estabelecimento de parmetros mais restritos como os conceitos de

    mobilidade e imobilidade e das noes de realidade e ficcionalidade atravs da representao nafotografia dos elementos mgicos e poticos criados por Rosa para a literatura.

    Apesar de inmeras evidncias visuais, impossvel no compreender as imagens comoeternos enigmas. Principalmente quando as mesmas se encontram relacionadas citao dotrecho de uma obra to complexa quantoGrande Serto: Veredas.Segundo Barthes, em Obvio e o Obtuso h uma relao intrnseca entre estas mdias:

    2 Maureen Bisilliat no se considera mais como estrangeira quando se trata do Brasil, inclusive j foinaturalizada.3 Os complementos ao longo do texto referem-se unicamente ao livro de Maureen Bisilliat, A Joo Guimares Rosa.

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    (...) na maioria das vezes o texto limita-se a ampliar um conjunto deconotaes j includas na fotografia; mas, por vezes, tambm o texto produz(inventa) um significado inteiramente novo, que , de certo modo, projetoretroativamente na imagem, a ponto de nela se parecer denotado (...).(BARTHES, 1984b, p. 21)

    A Joo Guimares Rosaadmite uma ressignificao da obra inspiradora por intermdioda sobreposio de citaes e imagens. Partindo deste pressuposto proponho a identificao deelementos imediatos e comuns a duas fotografias do ensaio.Dilogos imagem-texto

    A maneira mais recomendvel de iniciar uma discusso em torno da fotografia atentar

    para as definies dessa arte. Uma delas a noo de Evgen Bavcar, icongrafo e filsofoesloveno, que, em seu ensaio A luz e o cego, entende a fotografia como a escrita com a luzusada para criar imagens.

    esta tentativa de criar imagens que motiva a fotgrafa Maureen Bisilliat a manter uma produo referenciada na literatura. Esta tentativa de comunicao entre as artes parte da anlisedos processos de adaptao dentre duas linguagens: verbal para no-verbal, literatura efotografia.

    Isso se justifica tambm por outra tese de Bavcar: o condicionamento recproco que sed entre imagem e texto, pois quando no h imagens, o verbo quem se responsabiliza por promover novas possibilidades. Pode haver ambiguidades de acordo com a leitura doobservador, pois as diversas possibilidades de interpretao condizem com os mltiplossentidos de compreenso do discurso roseano.

    H uma interdependncia do verbo e da imagem em Bisilliat, assim como aquela quedefende Bavcar (2002) em: O verbo torna visvel, cria imagens. Graas ao verbo, temos as

    imagens..Muito prxima desta noo de palavra, est a linguagem usada para descrever e

    argumentar sobre as fotografias. Porm, h um trecho de Susan Sontag em Ensaios sobre a fotografiaque incomoda e desafia quem se prope a faz-lo:

    A linguagem atravs da qual se avalia geralmente a fotografia extremamente parca. s vezes parasitria do vocabulrio da pintura: composio, luz e assim por diante. Mais freqentemente,essa imagem consiste nos mais vagos tipos de julgamentos, comoocorre quando elogiamos uma fotografia por sua sutileza, interesse,vigor, complexidade, cumplicidade ou tipo predileto decepcionante simplicidade. (SONTAG, 1981, p. 133)

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    A Joo Guimares Rosa

    Aceitando o desafio, partimos da temtica da infncia dentro do romanceGrande

    Serto: Veredas,a qual funciona como um mecanismo temporal que define o momento em queo futuro de Riobaldo traado. O encontro enquanto criana com o Menino nomeado posteriormente como Diadorim na travessia do Rio de-janeiro intriga Riobaldo at amaturidade: (ROSA, 1979, p. 86) Agora, que o senhor ouviu, perguntas fao. Por que foi queeu precisei de encontrar aquele Menino? Toleima, eu sei. Dou, de. O senhor no me responda..

    Nas duas imagens que sero descritas h claramente o elemento da infncia, sempreacompanhado por um adulto que no chega a amparar a criana, no se trata de um recurso

    familial , e esta figura pode ter somente o papel de um (ROSENFIELD, 1992, p. 29) substitutosimblico deste ordenador dos sentimentos, dos valores e dos lugares que cada um podelegitimamente ocupar na famlia, na comunidade ou na sociedade..

    Na imagem abaixo vemos a silhueta de uma criana que engatinha em direo a porta deum recinto simples, aparentemente com poucos mveis e sem muita iluminao interna. Secontrastado com o ambiente externo, de muita luminosidade, possvel inclusive identificar indcios da Alegoria da Caverna de Plato.

    Segundo a metfora de Plato, a conscincia s obtida a partir do domnio das coisassensveis e do domnio das idias. No bastando a experincia prtica no mundo das imagens para gerar conhecimento perfeito, sendo necessrio o domnio do mundo das idias.

    No caso da criana, o contrrio tambm passa a ser verdadeiro, ela engatinha em direos experincias tcnicas e ao mundo real. Tambm tem-se notcias deste duro mundo prtico a partir da existncia de um objeto que diretamente relacionado dureza e violnciado serto, a arma.

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    Figura 1

    (BISILLIAT, 1969, p. 16)

    A situao na imagem acima (Fig 1.) tambm possibilita a associao com uma passagem da tragdia dipo Reide Sfocles, em que dipo sujeitado ao enigma da esfingeassim que chega Tebas. Qual o animal que pela manh tem quatro ps, ao meio dia dois e tarde trs?. dipo responde sem dificuldade que este animal o homem.

    Ou seja, j na mitologia grega o homem engatinha na infncia; depois, quando adulto, passa a caminhar com os dois ps; e, na velhice, necessita de um apoio distinto. Uma terceira perna para auxiliar no deslocamento fsico.

    No caso do serto roseano tanto o envelhecimento se d precocemente via os desgastesda jagunagem, quanto a violncia trabalha como ndice de experincia de vida. Portanto, a

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    Figura 2

    (BISILLIAT, 1969, P. 22)

    Nesta ocasio (Fig. 2), a imobilidade da personagem nos leva a suspeitar que ela seutiliza do universo dos sonhos para mover-se e, assim, elabora as experincias vividas ouimaginadas. O trecho do romance que acompanha a figura reafirma esta idia: Quando a gentedorme, vira de tudo: vira pedras, vira flor.(ROSA, apud BISILLIAT, 1969, p. 22).

    O elemento adulto que sempre acompanha intrigante. Aparentemente a ordenao doambiente e sua ordem so em primeira instncia definidos pela vontade do infante em questo.Enquanto na fotografia em que a criana dorme (Fig. 2) o adulto est compartilhando douniverso imvel da criana, pelo contrrio, na imagem inicial (Fig. 1), a personagem se mostraaprumada a partir do apoio numa arma de fogo.

    O ar dessas fotos, desses corpos nos leva alma, no individual, mas douniversal-serto. E mais do que mostrar, esse ar expresso desse corpo-serto traz foto um valor de vida circundado pela morte, sempre to ali, to presente.(CASA NOVA, 2000, p. 100)

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    As sombras luminosas das fotografias de Maureen se estruturam principalmente pelaescolha do uso do negativo em preto-e-branco. Portanto, segundo Casa Nova (2000, p. 100)

    Da a perpetuao de Rosa em Maureen e de Maureen em cada leitor/espectador, enquanto otempo, em seu suporte papel, durar.

    A ausncia de cor nas fotos ainda um recurso importante para relembrar a condio devida destes sertanejos, marcada pela dureza de um serto de jagunagens. a partir destemomento em que se torna clara uma das tenses do trabalho proposto por Bisilliat.

    A potica de Rosa presente no romance jamais poder ser traduzida em imagens com ocontedo exatamente similar.

    , no entando, impossvel (e est ser a ltima observao sobre otexto) palavra duplicar a imagem; pois, na passagem de uma estrutura outra, elaboram-se, fatalmente, significados segundos. Qual a relao dessessignificados de conotao com a imagem? Trata-se aparentemente de umaexplicitao, isto , dentro de certos limites, de uma nfase.. (BARTHES,1984b, p. 20-21.)

    Portanto, neste mbito, que a fotgrafa se utiliza de um conceito amplo para a criaodo ensaio: os pontos de partida e os encaminhamentos dados questo da traduo podemdiferir em cada um dos tericos, mas eles convergem num mesmo ponto de chegada: a traduocomo transcodificao criativa. (PLAZA, 2003, p. 26).

    Ou seja, a artista admite sua impossibilidade de fixao imagtica da realidade tal comoa fico solicita e parte deste princpio para elaborar a sua maneira interaes semiolgicascom o romance.

    Por exemplo, h uma opo do olhar observador de Maureen Bisilliat que vislumbra seuvis literrio. Esta escolha se d principalmente no momento do clique, na impresso da

    imagem no negativo. Como no caso da imagem inicial (Fig. 1), em que possvel perceber queas personagens-vivas do serto so fotografadas pela artista a partir de um ngulo inferior aodo sujeito adulto em questo.

    Nesse caso, o movimento da fotgrafa, que se abaixou e com isso obteve uma proximidade com o olhar da criana, tambm parece ser um dos seus mecanismos para valorizar esse homem humano (ROSA, 1979, p. 460) e os muitos outros do serto roseano.

    Tal tomada da imagem pode ser vista como uma forma de aproximao tcnica com as

    estratgias tambm usadas por Rosa na narrativa para a apresentao do sertanejo emGrande serto: veredas.

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    ConclusoA potica de Maureen Bisilliat se utiliza de seus signos estticos a fim de superar a

    intersemitica. No se trata apenas de uma traduo imediata, como pode ser imaginada pelo

    leitor. E ento, a artista vai alm e cria novos campos de significao tanto no universo do textode Joo Guimares Rosa quanto nas suas prprias fotografias.

    Com estas influncias, a obra de Bisilliat prope uma organizao da iconografia doserto brasileiro, mais especificamente, do serto roseano. A fotgrafa que produziu umensaio de qualidade mpar e manteve este atributo tambm na montagem do livro A JooGuimares Rosa,assim como nos demais que j publicou com este dilogo entre literatura efotografia deve ser relembrada dentre as Artes Visuais brasileiras como uma potencia nas

    relaes intertextuais da Literatura Brasileira.Segundo Casa Nova (2000, p. 100), o texto roseano re-citado, re-escrito pela imagem

    fotogrfica desse ensaio de Maureen se dobra e incessantemente se faz infinito no sentido deuma multiplicidade crescente..

    Referncias:

    BARTHES, Roland. A cmara clara. Rio de Janeiro : Editora Nova Fronteira, 1984a.

    ________. A imagem fotogrfica. In: ________ O bvio e o obtuso. Lisboa: Edies 70,1984b. p. 13-25.

    BAVCAR, Evgen. Corpo: espelho partido da histria. In: NOVAES, Adauto. Homem-mquina: a cincia manipula o corpo. So Paulo: Companhia das Letras, 2003.

    ________. A luz e o cego. In: NOVAES, Adauto (org.). Artepensamento. So Paulo:Companhia das Letras, 1994.

    BISILLIAT, Maureen. A Joo Guimares Rosa. So Paulo: Grficos Brunner, 1969.

    CASA NOVA, Vera L.C. Letra, trao e olho: Guimares Rosa, Arlindo Daibert e MaureenBisilliat. In: Alea: Estudos Neolatinos, Rio de Janeiro, v. 2, n. 1., p. 97-106, 2000.

    PIETROFORTE, Antonio Vicente. Semiotica visual : os percursos do olhar. So Paulo, SP:

    Contexto, 2004.PLAZA, Julio.Traduo intersemitica. So Paulo: Perspectiva, 2003.

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    SONTAG, Susan. Ensaios sobre a fotografia. Rio de Janeiro: Arbor, 1981.

    ROSA, Guimares. Grande serto: veredas. 13. ed. Rio de Janeiro: Jos Olympio, 1979ROSENFIELD, Kathrin H.. Grande serto: veredas: roteiro de leitura. So Paulo: tica, 1992.(Srie Princpios).

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