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    A mediao crtica do tradutor e

    do intrprete em contextosinterculturais

    Leila Cristina de Melo Darin

    Doutora em Semitica e Professora de Traduo na PUCSP

    KATAN, DavidTranslating Cultures. An Introduction for Translators, Interpreters and Mediators.2.ed. UK: St Jerome Publishing,2004. 380 pg.

    Breve panorama

    Em 1935, o antroplogo polons BronislawMalinowski cunhou a expresso contexto da situao(ou contexto da cultura), alertando para o fato de queuma lngua (ou qualquer produo de linguagem) s podeser compreendida, isto , fazer sentido, no contexto dacultura na qual est enraizada. Ao analisar o idioma nativodos habitantes das Ilhas Trobriand, Malinowski concluiuque s possvel traduzir a palavra kayamatana, termotcnico para competies entre canoas, levando-se emconta o significado emocional do termo no contexto dascerimnias, do comrcio e das atividades da tribo.

    com base em Malinowski (p.99-100) e emvrios outros estudiosos da linguagem que David Katanoferece ao leitor - nessa segunda edio revisada eampliada de Translating Cultures (1.ed., 1999) - umadiscusso oportuna e bem fundamentada sobre o papelcrucial da cultura na construo, percepo e traduodas realidades. Oportuna porque, hoje, eventos da reade Estudos da Traduo em todo o mundo enfatizam aimportncia do fator cultural para a comunicao, atraduo e a interpretao; bem fundamentada, pois

    rene as contribuies de diversos campos de saber,dentre outros, a Antropologia Cultural, a Teoria daTraduo, a Programao Neurolingstica, a Gramtica

    Funcional. A obra de Katan, professor de Traduo naScuola Superiore de Lingue Moderne per Interpreti eTraduttori da Universidade de Trieste (Itlia), especialmente interessante e eloqente graas riquezade exemplos extrados de textos e depoimentos,envolvendo diferentes pares de lnguas e inmeroscontextos de comunicao.

    Logo na pgina 2 da Introduo, Katan apresentaaos leitores tradutores, intrpretes, estudantes dessasreas e outros mediadores culturais - a classificao dealgumas profisses segundo o Documento 3037/90 daUE. Dentre elas, a nmero 74.83 define as Atividadessecretariais e de traduo, relacionando as seguintes

    tarefas: digitao, taquigrafia, envio de informaes(endereamento de cartas e correspondncias;compilao de listas de endereos), transcrio de fitasou discos, cpia, reviso tipogrfica, traduo einterpretao. Esses dados, a meu ver, funcionam comouma astuta provocao para a leitura e tecem o panode fundo a partir do qual a argumentao do livro sedesenvolve: preciso mudar a viso de que tradutores eintrpretes so dicionrios humanos ou copistas, paraque possam ser reconhecidos como agentes visveis no

    processo de (re)estabelecimento das condiesnecessrias para a comunicao entre povos e pessoas.Com base nessa premissa, Translating Cultures

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    desenvolve-se em quatro sees. A primeira, que abrangeos captulos de I a VI, apresenta uma srie de tpicosvoltados para a conceituao de cultura, de sua estruturae de seus nveis; o conceito de traduo inserido como

    parte inerente da interao dinmica entre comunicaoe cultura. Nessa parte do livro, so traados osfundamentos para a discusso posterior e apresentadasidias inspiradas em enfoques interdisciplinares quearticulam, entre outros, a Antropologia Cultural (Sapir,Hall, Bateson), a Teoria dos Atos da Fala (Austin, Searle),a Sociolingstica (Bernstein, Gumperz, Dell), aProgramao Neurolingstica (Bandler e Grinder), aTeoria da Relevncia (Sperber e Wilson) e a GramticaFuncional de Halliday.

    Os captulos VII e VIII, que constituem a segundaparte do livro, detm-se nas estratgias empregadas pelotradutor como mediador intercultural nos inmeroscontextos da comunicao humana. Alguns dos tericosda traduo cujas idias norteiam as consideraes sobreo papel do tradutor so Nida, Baker, Bassnett, Bell,Hatim e Mason, Holmes, Vermeer, Newmark, Snell-Hornby e Wills.

    A terceira seo de Translating Cultures(captulos IX a XII) aborda a influncia que a culturaexerce sobre a comunicao, abrangendo todo e

    qualquer tipo de manifestao cultural e lingstica. Emoutras palavras, o contexto cultural imprime suasorientaes a todo e qualquer produto que gera; emboraamplo e partilhado, tal contexto , em grande medida,implcito e inconsciente. Katan conta aqui com osinsightsde Barthes, Tymosczko, Grice, Bateson, Hallidaye, em particular, de Edward Hall e seu Modelo de Anlisedo Processo Comunicativo, o qual enfatiza a importnciada comunicao implcita e explcita na troca demensagens entre culturas.

    O captulo XIII, e ltima parte do livro, introduzum acrscimo em relao 1 edio. Seu foco contribuir para a formao de tradutores e intrpretesno que concerne ao ensino da competncia intercultural,visando transformao da identidade desses

    profissionais. O Interculturalismo de Milton Bennett um dos pilares sobre os quais o autor erige seu raciocnio.

    De modo geral, o livro de Katan procura darcoerncia a uma srie de vises sobre a cultura, a fim dedestacar a importncia do fator cultural na formao detradutores e intrpretes. Todas as sees so ilustradascom exemplos concretos e de grande valia paracorroborar os argumentos, o que torna a leitura agradvel

    e estimulante.

    Minha lngua, meu mundo

    Dentre as vrias abordagens ao estudo da culturae as muitas tentativas de defini-la, o autor destaca oconceito de cultura como processo dinmico, comosistema histrico, criativo, de smbolos e significados...(ROBINSON, 1988); como habitus, i. e., sistema deestruturas internalizadas, esquemas comuns de

    percepo, concepo e ao, resultantes de inculcaoe costume (BOURDIEU, 1990). A cultura, assim, entendida como sistema partilhado que visa interpretara realidade e organizar as experincias; cada aspecto dacultura est intimamente interligado ao sistema maior(Cultura), que forma um contexto unificado, a despeitoda heterogeneidade a ele inerente. Toda cultura implicaum conjunto implcito, no aprendido, de crenas,valores, comportamentos, estratgias e processoscognitivos (p. 26-7). Dada sua natureza dinmica,implica, tambm, a negociao entre os sistemas jinternalizados e a realidade externa. Nesse ponto, valeressaltar que a realidade externa devidamenteconceituada como representao.

    Para deixar clara essa idia fundamental, Katan

    faz uma analogia entre a noo de realidade e um mapa:ambos envolvem necessariamente trs elementos:generalizao, distoro eomisso (p. 120). Issosignifica que os dois so representaes parciais eseletivas de territrios, e que, portanto, no coincidemcom o territrio. Assim, o que chamamos de realidade uma construo, em permanente estado de edificao,mediada pela cultura e estruturada pela lngua. Cadacultura faz um recorte prprio, que constitui omacrocontexto a partir do qual as interaes verbais

    podem ser interpretadas e fazer sentido. Portanto, alngua, como expresso cultural, produto da cultura aomesmo tempo que a produz e continuamente a recria. EKatan generoso na quantidade de casos que apresenta

    para ilustrar esse pressuposto sobre o qual se alicerasua argumentao.

    Para que o tradutor, o intrprete ou outrosmediadores culturais possam conscientizar-se dosinmeros aspectos que compem uma cultura, Katanapresenta diversos modelos (captulos II, III e IV), dentreos quais destaca o estudo de Programao

    Neurolingstica de Dilts. Esse modelo procura detalharcomo indivduos e sociedades organizam e estruturam

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    suas experincias em tipos lgicos, ligados entre si.Os seis tipos respondem s seguintes perguntas: Onde equando? O qu? Como? Por qu? Quem? (p. 54-6).

    Ambiente: territrios fsicos; territrios

    ideolgicos; clima; espao; espao construdo;vestimenta; odor e alimentos; referncias temporais;Comportamento: o certo e o errado (guias de

    conduta; etiqueta; provrbios; ditos);Capacidades/estratgias/habilidades: canais de

    comunicao; rituais; estratgias;Valores;Crenas;Identidade.1

    Katan detalha todos os tipos e seus componentes,ilustrando-os com exemplos de vrios contextos culturais(p.63-85).

    A definio de cultura que melhor traduz a Teoriados Tipos Lgicos , segundo o autor, a de Saville Troike(1986):

    A cultura abrange todas as regras partilhadasde comportamento adequado que so aprendidas

    pelos indivduos por pertencerem ao mesmogrupo ou comunidade, bem como os valores ecrenas subjacentes aos comportamentosmanifestos.2(p. 56)

    O comportamento em relao ao tempo, maisprecisamente em relao ao atraso, por exemplo, variaem diferentes culturas, de acordo com as diferentessituaes. Na cultura A, tolera-se um atraso de at 5minutos para reunies de negcios, ao passo que na B olimite de tolerncia de 20 minutos. Em geral, as culturastm formas particulares de se relacionar com o tempo,

    podendo ser mais ou menos rgidas, dependendo doponto de vista. Na Alemanha, por exemplo, a prtica deiniciar uma palestra na universidade 15 minutos aps o

    horrio estipulado (prtica comum em muitos pases) explicitamente assinalada na prpria convocao:09.00s.t. indica que a palestra comear em ponto, e09.00c.t. sinaliza que ter incio 15 minutos aps 9:00hs(p. 279). Entretanto, bom lembrar que essas regrasno so vlidas para a cultura como um todo, pois hmuitas variaes e posies conflitantes dentro do quechamamos uma cultura ou uma lngua. Como disseOscar Wilde: Temos realmente muita coisa em comumcom os Estados Unidos hoje, exceto claro, a lngua.

    Ou nas palavras de Bernard Shaw: A Inglaterra e osEstados Unidos so dois pases separados pela mesmalngua (p. 255).

    Assim, os significados verbais s podem serproduzidos e compreendidos no quadro mais amplo dospressupostos culturais que informam todas as formas deinterao social, dentre elas as convenes e os acordos,

    as regras, os costumes, os hbitos, os mitos, os rituais.Tais pressupostos so em grande parte implcitos, masso facilmente percebidos ou intudos por aqueles quedeles partilham rotineiramente. Os implcitos das trocasverbais, contudo, podem passar despercebidos poraqueles que no pertencem cultura e no tmconscincia de que toda expresso de linguagem deveser situada no contexto de sua produo. Como observaMargherita Ulrych (1992), ns reagimos s palavras,aos julgamentos de valor cultural ou socialmentedeterminados, que esto implcitos na semntica das

    palavras (p. 46). A anlise dos pressupostos de umabreve conversa em uma delicatessen shopem Trieste, p. 127, mostra com clareza o grande nmero delacunas e informaes subjacentes que motivam osdilogos, mesmos os mais banais e simples do dia-a-diaem sociedade.

    A comunicao entre dois indivduos ou gruposque falam idiomas diferentes, intermediada por tradutoresou intrpretes, requer, portanto, uma percepo aguadadas diferentes formas de interpretar a realidade. com

    base na importncia de desenvolver tal percepo queKatan defende que tradutores e intrpretes devem seassumir como mediadores culturais.

    Comunicao intercultural: o tradutor, o

    intrprete

    Dentre os exemplos citados para ilustrar aimportncia da compreenso das diferenas entre asculturas para a traduo, Katan apresenta um caso real,

    publicado na revistaBusiness Week(25/04/92).Trata-se da traduo do slogan Just do it, dacompanhia de artigos esportivos Nike, para o japons(p. 116-7). O problema era expressar o princpio do

    Just do itna lngua japonesa por meio de uma frmulagil e enxuta. Em busca de uma soluo, a empresa norte-americana localizou no Japo um executivo bem-sucedido, Yukihiro Akimoto, e o levou para os EstadosUnidos para uma imerso de quatro meses na cultura ena rotina da empresa Nike. Diz-se que Yukihiro paroude fumar e comeou a correr. Contudo, a melhortraduo que conseguiu aps os quatro meses foi algocomo Hesitar perder tempo (Hesitation is waste),

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    o que a equipe de publicidade da Nike refutouveementemente.

    A anlise da dificuldade em encontrar umatraduo, informa a revista, reside no fato de que no

    possvel criar um equivalente semntico na lnguajaponesa. Como adverte Katan, porm, a questo no apenas de ordem semntica, mas de natureza conceituale cultural. No Japo, a vantagem em relao aosconcorrentes est ligada ao devido tempo que se d para

    planejar e concretizar cada etapa, e no aojust do it; ovalor do tempo na cultura japonesa est associado espera, constncia, perseverana, e no a soluesimediatas e presso no presente. Uma breve anlisedas metforas ligadas noo de tempo nas duas culturas

    pode esclarecer a diferena de perspectivas (p. 82).Alguns ditos sobre o tempo na cultura anglo-

    americana indicam o senso de urgncia e a prevalnciado presente sobre o futuro:

    Time flies(O tempo voa);There is no time like the present(no h tempo

    melhor que o presente); Take care of today and tomorrow will take

    care of itself (Cuide do presente e o futuro seencarregar de si mesmo);

    Time and tide wait for no man(O tempo e a

    mar no esperam por ningum);Never put off till tomorrow what may be done

    today(Nunca deixe para amanh o que pode ser feitohoje).

    Em contraste, na cultura japonesa, os seguintesprovrbios ou ditos mostram um outro tipo de relaocom o tempo:

    Fall seven times, stand up the eighth(Se caressete vezes, levanta-te na oitava);

    Vision without action is daydream; action

    without vision is a nightmare(A contemplao queno conduz ao um devaneio; a ao que nopressupe contemplao um pesadelo);

    When you have completed 95% of your

    journey, you are only half there(Quando voc completa95% da viagem est apenas na metade do caminho). (p.82)

    Se considerarmos que os provrbios e ditos soregistros de crenas antigas e muito arraigadas das quaisquase sempre no temos conscincia, podemos concluirque os valores subjacentes na cultura norte-americanareiteram a idia de ao imediata e de urgnciacompatveis com o sloganJust do it.A cultura japonesa,

    por sua vez, expressa por meio de seus ditos popularesa crena na necessidade de respeitar o tempo (dar tempoao tempo) e de investir em aes de longo prazo. Asduas formas de conceber o tempo produzem formas

    distintas de interao e atuao que se deixam captarpelos idiomas, os quais no so, como possivelmenteacreditavam os lderes da Nike, apenas rtulos ouadereos que acompanham o produto.

    Ora, se traduzir entre duas lnguasnecessariamente exige conhecimento das culturasenvolvidas, ento preciso rever a identidade do tradutore estipular como sua funo primeira a de facilitar acomunicao entre universos conceituais, morais elingsticos.

    A idia do tradutor como agente mediador foiaventada pela primeira vez por Steiner, em 1975, parareferir-se mediao lingstica (p. 16). A noo deintrprete cultural ou mediador cultural proposta

    por Bochner e Taft (1981), que definem as competncias,os conhecimentos e as habilidades que o mediador devedesenvolver nas duas lnguas e culturas (p. 16-8). DavidKatan, para enfatizar a tarefa tradutria como mediaocultural,recorre seguinte definio de Taft (1981):

    O mediador cultural aquele que facilita acomunicao, o entendimento e a ao entre

    pessoas ou grupos que possuem lnguas eculturas diferentes. O papel do mediador interpretar as expresses, as intenes, as

    percepes e as expectativas de um grupocultural para outro, ou seja, criar condiesque viabilizem a comunicao entre os dois. Paraservir como tal elemento de ligao (link), omediador deve ser capaz de participar de algumamaneira de ambas as culturas. Assim, o mediadordeve ser, em alguma medida, bicultural. (p. 17).

    O conceito de tradutor como mediador ouespecialista bicultural defendido por tericos datraduo, como Snell-Hornby, Hatim e Mason, Vermeer,Hewson e Martin. Para ser um comunicador interculturalso necessrios conhecimentos sobre a lngua no bojode determinada sociedade: sua histria, seu folclore, suastradies, seus valores e crenas, suas proibies e tabus,seu meio natural e ideolgico, seus mitos e regrascomunicativas (escrita, oral, no-verbal), sua tecnologiaetc. necessrio, acima de tudo, ter sensibilidadeintercultural para avaliar os contextos, a fim de poderlidar com existncia de esteretipos e preconceitosmtuos.

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    Evidentemente -e Katan claro a esse respeito-,o mediador no pode ser imparcial, visto que est imersoem sua prpria cultura e comprometido com tal pontode vista; contudo, deve ter conscincia de seus limites e

    assumir a postura tica de informar-se e inteirar-se damelhor maneira possvel sobre as semelhanas ediscrepncias entre as culturas. Nas palavras de Hatime Mason (1990), p. 21 do livro: ... toda traduoreflete, em alguma medida, a perspectiva cultural e mentaldo tradutor, a despeito de seu grande esforo em

    procurar ser imparcial.Esse esforo para compreender o outro e a ns

    mesmos requer uma percepo mais ampla das formasde representar a realidade e a conscincia de que notraduzimos duas lnguas, mas duas culturas (p. 170).

    Um novo olhar para o perfil do tradutor e do

    intrprete

    A coerncia e o slido embasamento daargumentao de Katan conduzem ressignificao do

    papel do tradutor e de suas atribuies. O tradutortradicional, afirma ele p. 90, tem sua identidade ligadaa valores e crenas, como conhecimento da lngua de

    partida e de chegada, conhecimento geral, preciso,

    perfeio, pacincia, equivalncia, exatido, fidelidadeao original, invisibilidade e trabalho individual. Seuobjetivo transmitir a mensagem de uma lngua para outraa fim de tornar o texto (oral ou escrito) da lngua Aacessvel aos leitores ou ouvintes da lngua B, com omnimo de interferncia possvel.

    O tradutor ou intrprete que faz a mediao entreculturas (p. 91-2), por outro lado, define-se a partir dosseguintes termos: valores culturais, contexto social, funodo texto, interpretao, diferena, tolerncia, mediao,

    flexibilidade, biculturalismo, valores e sentimentospessoais, visibilidade, iniciativa e envolvimento com outrosparticipantes do processo de traduo. Seu papel social criar condies para o entendimento mtuo entreculturas diversas, visando promover maior integraoentre conhecimentos e experincias.

    O tradutor tradicional busca reproduzir (ouacredita que busca reproduzir) exatamente as palavrasdo texto de partida procura da equivalncia entretermos e sentidos (contedos extralingsticos), ao

    passo que o mediador cultural procura situar (ou acreditaque procura situar) o texto no contexto mais amplo dosvalores e crenas das culturas envolvidas, considerando

    os potenciais leitores. Ele(a) recria um texto que se quercomparvelao texto de partida, sem ambicionar serequivalente a ele, embora Katan advirta para aindeterminao dos termos em questo. Para o mediador,

    a diferena a norma (p. 170); ele(a) no espera quehaja uma nica traduo correta, desvinculada do paraquem, em que contexto, segundo que normas oucritrios?.

    Trata-se aqui de destacar, na tarefa do tradutor, opapel essencial da interpretao na negociao entre oque se deve e o que se pode dizer nas diferentes lnguas.Se toda lngua reflete um processo necessrio de

    priorizaes, omisses e generalizaes, ento o tradutore o intrprete s podem trabalhar com aproximaes eleituras a partir de sua percepo de sua prpria culturae da do Outro.

    Preocupado com a preparao de tradutores eintrpretes que atuam como agentes biculturais, o autordedica o captulo XIII elucidao de alguns aspectosimportantes para a configurao da identidade desses

    profissionais. Para tal, recorre ao Interculturalismo deMilton Bennett (1993), antroplogo que props oModelo de Desenvolvimento da SensibilidadeIntercultural para explicar as etapas pelas quais os falantes

    bilnges e os tradutores e intrpretes passam at chegar

    mediao entre culturas.Segundo Bennett, nas relaes interculturais,

    assumimos posies que repercutem na prticatradutria. A primeira delas a posio etnocntrica,que situa a cultura do tradutor como modelo para asoutras culturas. O contato inicial com uma lngua/culturaestrangeira , com freqncia, caracterizado poradmirao ou rejeio; com freqncia, especificidadese diferenas so ignoradas e esteretipos egeneralizaes, reafirmados. Um exemplo disso a

    tendncia a agrupar povos sob uma mesma denominao,desconsiderando seus diversificados tecidossocioculturais. O tradutor que assume tal posio emrelao cultura estrangeira acaba produzindo traduesde folhetos ou instrues que, quando afixados em hotisou locais pblicos, fazem o leitor-alvo surpreender-seou mesmo dar algumas boas gargalhadas. A traduo,no caso, no leva em conta as normas comportamentaise lingsticas adotadas na lngua/cultura de chegada.

    Dentro dessa viso etnocntrica, h tambmaqueles que, embora percebam as diferenas, as vemcomo ameaadoras, porque, de certa forma, elasdesestabilizam os valores e verdades da cultura de

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    origem. Duas reaes so comuns nesse tipo deetnocentrismo. A primeira rejeitar o Outro e adotaruma postura de superioridade, que pode ser expressa

    pelo seguinte raciocnio: eles so diferentes (leia-se

    inferiores), mas com o tempo vo evoluir e um diachegaro at nosso modelo. Corroborando essapostura, encontra-se a outra reao, a dos que se senteminferiorizados diante dos padres culturais do Outro ealimentam o etnocentrismo pela porta de trs: a culturaX sim que boa; h respeito aos pedestres, ningumfura fila, a polcia eficaz e confivel.... Ao assumir umaou outra atitude, o tradutor pode, sem perceber, servircomo disseminador de preconceitos e deixartransparecer, em sua traduo, julgamentos de valorapressados e pouco fundamentados.

    Uma viso bastante comum, ainda dentro daperspectiva etnocntrica, a que admite a existncia dediferenas, mas entende que elas no so significativas,uma vez que representam apenas uma fina camada queoculta o fato de que, no fundo, somos todos iguais, todosfilhos do mesmo Deus. Ou seja, as culturas seriamacessrios, produtos superficiais que encobremsemelhanas universais. Essa concepo perigosa e a base para a crena, na traduo, de que o significado

    pode ser transferido de uma para outra lngua, pois

    estvel e imanente; o que muda o significante, a forma,no o contedo. Essa viso compatvel com a crenaem uma realidade extralingstica, separada, alienada eextirpada da lngua em seu contexto histrico-cultural.Supor que palavras so rtulos ou descries de umarealidade igual para todos acreditar que traduo umfenmeno entre formas lingsticas e no entre culturas,

    j que as ltimas no diferem de fato entre si, seno emaspectos superficiais. Trata-se aqui, justamente, derefutar esse argumento.

    Katan contrape ao tradutor etnocntrico otradutor ou intrprete intercultural. O mediadorintercultural aquele que percebe que seu modelo demundo no o nico e que suas verdades so relativas asua histria e a sua maneira de estruturar e interpretar oreal. Atento(a) diversidade de seu prprio meio cultural,ele(a) no entende a realidade como um dado a prioriou extralingstico, mas como construo social eideolgica. Para o intrprete cultural, formas diversasde interao geram determinadas crenas, princpios evalores que se manifestam em comportamentos verbaise no-verbais. A gramtica e o lxico esto ancoradosno quadro maior das convenes culturais que os

    revestem de sentido. Cada cultura um complexo mapade relaes e interaes.

    Ser bicultural, contudo, no implicanecessariamente ser um mediador cultural; para ser

    tradutor ou intrprete preciso transitar pelas fronteirasdesses mapas com a conscincia de que nada absoluto,de que nenhum pressuposto inquestionvel e de quequalquer verdade passvel de reviso. O mapa de nossa

    prpria cultura se enriquece com outros mapas queampliam no a realidade, mas a leitura da realidade.

    O mediador cultural valoriza a contextualizaodo texto de partida na cultura de chegada (p. 336). Ele(a)se entende legitimado para alterar, acrescentar,domesticar e importar conceitos estrangeiros e no seintimida com noes de fidelidade ou de literalidade nemas v em oposio liberdade. Sua misso mediar acomunicao de forma a promover a cooperaointercultural entre sociedades para concretizar as metasmais diversas.

    Entre o anseio e a utopia

    As culturas se assemelham e diferem ao responderao ambiente e criar laos interpessoais. Elas orientam

    princpios, motivaes, formas de expresso. Do sentido

    a tudo que produzimos: tm coerncia interna. Sua foraagregadora alinhava nosso mundo por meio de tradies,histria e linguagem e nos d uma sensao de identidade,mantida e modificada pela dinmica do tempo presente:a cada instante, resgatamos sculos de prticas eexperincias individuais e coletivas, ao mesmo tempoque desafiamos todo esse conhecimento acumulado,atendendo lei inexorvel do movimento etransformao.

    A cultura nos fornece chaves para a interpretao

    do mundo. Porm, no podemos ser ingnuos e acreditarque nossa chave ou nosso mapa so vlidos para qualquerterritrio, nem pensar que nossa perspectiva cultural omodelo do qual todas as outras divergem. O mediadortraduz culturas, facilita o contato com o outro, comunicasistemas peculiares e divergentes vises de mundo noanseio de ampliar a compreenso de si mesmo e chegara sua prpria luz, a seu prprio breu.

    possvel que o perfil do tradutor/intrpretetraado pelo Interculturalismo e defendido por Katanaponte na direo de uma utopia. Podemos entend-lacomo uma utopia necessria e bem-vinda, que deve seracolhida como uma tentativa (ambiciosa, sem dvida)

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    de mudar o lugar que o tradutor ocupa no imaginriosocial. Mais um motivo para acreditar que temos emmos um livro que merece ser lido e debatido por todosos que praticam a mediao cultural: tradutores,

    intrpretes, professores, estudantes, antroplogos,viajantes, lingistas.Talvez o mediador intercultural seja uma nova

    metfora do salvador que nos libertar da confuso deBabel e restabelecer a compreenso e a integrao entreos povos, pelo caminho do reconhecimento e convviode diferenas. Translating Cultures instigante,coerente, atual. E nos ajuda a entender algumas daslimitaes humanas.

    Notas

    1Esses nveis e seus subcomponentes formam uma redeque se interconecta por pressupostos inteligveis para osque partilham da mesma cultura, mas nem sempre claros

    para os forasteiros. A vestimenta, por exemplo, incluiuma srie de normas que associam conceitos como formal,informal e casual a determinadas situaes. Um(a)intrprete deve estar ciente dessas prticas paraapresentar-se adequadamente nos contextos em que atuacomo mediador(a).2Todas as citaes foram por mim traduzidas.

    A mediao crtica do tradutor e do intrprete em contextos interculturais