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2.2.2 Falsificacionismo Conforme tiveste oportunidade de constatar, Karl Popper criticou severa- mente a conceção indutivista da ciência. Verás, em seguida, em que consiste a alternativa proposta por este filósofo no que diz respeito ao método científico e ao problema da demarcação. Em que consiste a abordagem do método científico proposta por Karl Popper? Como viste, Popper considera que Hume estava certo quando afirmava que o princípio da indução não podia ser ra- cionalmente justificado. Por esse motivo, Popper defende que, se a ciência preten- de ser racional e objetiva, tem de pres- cindir inteiramente do recurso à indução. Propôs então uma nova abordagem do método científico, que ficou conhecida por Método das Conjeturas e Refutações e que pode ser sintetizado em três etapas distintas: Como pudeste constatar, a observa- ção da urina dos coelhos só constituiu um problema porque entrava em choque com os conhecimentos prévios do investiga- dor, de acordo com os quais a urina dos animais herbívoros, como os coelhos, de- veria ser turva e alcalina e não clara e áci- da. Surge, então, o problema: como pode a urina de um herbívoro, como o coelho, ser clara e ácida? 2. Conjetura Depois de formular o problema, com- pete ao cientista formular uma hipótese, ou teoria, que permita explicar adequa- damente os factos. No entanto, essa teoria não é o resultado de uma genera- lização indutiva, nem obedece a nenhum critério estrito e rigoroso de raciocínio; ao invés pode ser um simples palpite alicer- çado nas nossas experiências passadas, 1. Problema Contrariamente ao que era sugerido pela conceção indutivista, Popper consi- derava que o ponto de partida para a in- vestigação científica não podia ser a ob- servação pura e imparcial dos factos, mas sim um problema levantado por uma ob- servação que entra em confronto com as teorias e expectativas de que já dispomos. Popper rejeitava a imagem da mente como uma tábua rasa, ou folha em bran- co, proposta pelo empirismo. Para este autor, a mente assemelha-se mais a um balde meio cheio, visto que, quando partimos para a observação, já dispomos de um conjunto de teorias e expectativas prévias que influenciam a forma como interpretamos aquilo que observamos e nos permitem selecionar os aspetos da realidade que melhor se adequam aos propósitos da nossa investigação. Surge um problema porque uma determinada expectativa não é confirmada, ou porque uma determinada observação particular entra em choque com as nossas teorias prévias. No excerto que se segue, Claude Ber- nard, um importante teórico da ciência, recorre a um exemplo para ilustrar uma conceção do método científico que tam- bém faz dos problemas o seu ponto de partida: ou seja, uma suposição arrojada, ima- ginativa, mas devidamente funda- mentada 7 , que o cientista concebe para explicar os factos observados. Popper usa o termo conjetura para designar este tipo de hipóteses. No texto que se segue, David Deutsch, um simpatizante da pers- petiva de Popper acerca da investigação científica, esclarece o processo de conce- ção de uma hipótese ou teoria: 1. Problema 2. Conjetura 3. Refutação Trouxeram um dia, ao meu laboratório, coe- lhos do mercado. Co- locaram-nos numa mesa onde urinaram e observei, por acaso, que a sua urina era clara e ácida. Este facto impressionou- -me, porque os coelhos têm geralmente a urina turva e alcalina por serem herbí- voros, enquanto os carnívoros, como se sabe, têm, pelo contrário, urinas claras e ácidas. Claude Bernard (1865), Introdução ao Estudo da Medicina Experimental. Lisboa: Europa-América, 2011 Um dos mais notáveis aspetos da ciência é o contraste entre o enorme alcance e poder das nossas melhores teorias e os meios precários e locais com que as criamos. Nenhum ser humano esteve na superfície de uma estrela, muito menos visitou o núcleo onde ocorre a transmutação e a energia é produzida. Contudo, vemos aqueles pontos frios no céu e sabemos que estamos a olhar para as super- fícies incandescentes de longínquos fornos nucleares. Fisicamente, essa experiência consiste apenas na resposta dos nossos cérebros aos impulsos elétricos dos nossos olhos. E os olhos só podem detetar a luz que está nesse momento dentro deles. O facto de a luz ser emitida de uma longa distância e há muito tempo, e de aí se passar muito mais que a emissão da luz – não são coisas que vejamos. Conhecemo-las apenas em teoria. As teorias científicas são explicações: afirmações sobre o que existe no universo e de como se comporta. De onde vêm essas teorias? (…) Na realidade, as teorias científicas não “deri- vam” de nada. Não as lemos na natureza, nem a natureza as grava em nós. São suposições – conjeturas criativas. As mentes humanas criam-nas reorganizando, combinando, alterando e acrescentando-as às ideias existentes, com a intenção de as aperfeiçoar. Não começamos com uma ‘folha em branco’, quando nascemos, mas sim com expetactivas e intenções inatas, e com uma capacidade natural de as melhorar usando o pensamento e a experiência. Efeti- vamente, a experiência é essencial para a ciência (...). David Deutsch (2011), O Início do Infinito: Explicações que Transformam o Mundo. Trad. Florbela Marques. Lisboa: Gradiva, 2013, pp. 15-16 7. Uma suposição arrojada e imaginativa será aquela que é falsificável num alto grau. No próximo ponto irás perceber mais exatamente em que é que isto consiste. 204 205 IV. 2 . O ESTATUTO DO CONHECIMENTO CIENTÍFICO IV. 2 . O ESTATUTO DO CONHECIMENTO CIENTÍFICO

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2.2.2Falsificacionismo

Conforme tiveste oportunidade de constatar, Karl Popper criticou severa-mente a conceção indutivista da ciência. Verás, em seguida, em que consiste a alternativa proposta por este filósofo no que diz respeito ao método científico e ao problema da demarcação.

Em que consiste a abordagem do método científico proposta por Karl Popper?

Como viste, Popper considera que Hume estava certo quando afirmava que o princípio da indução não podia ser ra-cionalmente justificado. Por esse motivo, Popper defende que, se a ciência preten-de ser racional e objetiva, tem de pres-cindir inteiramente do recurso à indução. Propôs então uma nova abordagem do método científico, que ficou conhecida por Método das Conjeturas e Refutações e que pode ser sintetizado em três etapas distintas:

Como pudeste constatar, a observa-ção da urina dos coelhos só constituiu um problema porque entrava em choque com os conhecimentos prévios do investiga-dor, de acordo com os quais a urina dos animais herbívoros, como os coelhos, de-veria ser turva e alcalina e não clara e áci-da. Surge, então, o problema: como pode a urina de um herbívoro, como o coelho,

ser clara e ácida?

2. Conjetura Depois de formular o problema, com-

pete ao cientista formular uma hipótese, ou teoria, que permita explicar adequa-damente os factos. No entanto, essa teoria não é o resultado de uma genera-lização indutiva, nem obedece a nenhum critério estrito e rigoroso de raciocínio; ao invés pode ser um simples palpite alicer-çado nas nossas experiências passadas,

1. Problema Contrariamente ao que era sugerido

pela conceção indutivista, Popper consi-derava que o ponto de partida para a in-vestigação científica não podia ser a ob-servação pura e imparcial dos factos, mas sim um problema levantado por uma ob-servação que entra em confronto com as teorias e expectativas de que já dispomos.

Popper rejeitava a imagem da mente como uma tábua rasa, ou folha em bran-co, proposta pelo empirismo. Para este autor, a mente assemelha-se mais a um balde meio cheio, visto que, quando partimos para a observação, já dispomos de um conjunto de teorias e expectativas prévias que influenciam a forma como interpretamos aquilo que observamos e nos permitem selecionar os aspetos da realidade que melhor se adequam aos propósitos da nossa investigação. Surge um problema porque uma determinada expectativa não é confirmada, ou porque uma determinada observação particular entra em choque com as nossas teorias prévias.

No excerto que se segue, Claude Ber-nard, um importante teórico da ciência, recorre a um exemplo para ilustrar uma conceção do método científico que tam-bém faz dos problemas o seu ponto de partida:

ou seja, uma suposição arrojada, ima-ginativa, mas devidamente funda-mentada7, que o cientista concebe para explicar os factos observados. Popper usa o termo conjetura para designar este tipo de hipóteses. No texto que se segue, David Deutsch, um simpatizante da pers-petiva de Popper acerca da investigação científica, esclarece o processo de conce-ção de uma hipótese ou teoria:

1. Problema

2. Conjetura

3. Refutação Trouxeram um dia, ao meu laboratório, coe-lhos do mercado. Co-

locaram-nos numa mesa onde urinaram e observei, por acaso, que a sua urina era clara e ácida. Este facto impressionou--me, porque os coelhos têm geralmente a urina turva e alcalina por serem herbí-voros, enquanto os carnívoros, como se sabe, têm, pelo contrário, urinas claras e ácidas.

Claude Bernard (1865), Introdução ao Estudo da Medicina Experimental. Lisboa: Europa-América, 2011

Um dos mais notáveis aspetos da ciência é o contraste entre o enorme alcance e poder das nossas melhores teorias e os meios precários e locais com que as criamos. Nenhum ser humano esteve na superfície de uma

estrela, muito menos visitou o núcleo onde ocorre a transmutação e a energia é produzida. Contudo, vemos aqueles pontos frios no céu e sabemos que estamos a olhar para as super-fícies incandescentes de longínquos fornos nucleares. Fisicamente, essa experiência consiste apenas na resposta dos nossos cérebros aos impulsos elétricos dos nossos olhos. E os olhos só podem detetar a luz que está nesse momento dentro deles. O facto de a luz ser emitida de uma longa distância e há muito tempo, e de aí se passar muito mais que a emissão da luz – não são coisas que vejamos. Conhecemo-las apenas em teoria.As teorias científicas são explicações: afirmações sobre o que existe no universo e de como se comporta. De onde vêm essas teorias? (…) Na realidade, as teorias científicas não “deri-vam” de nada. Não as lemos na natureza, nem a natureza as grava em nós. São suposições – conjeturas criativas. As mentes humanas criam-nas reorganizando, combinando, alterando e acrescentando-as às ideias existentes, com a intenção de as aperfeiçoar. Não começamos com uma ‘folha em branco’, quando nascemos, mas sim com expetactivas e intenções inatas, e com uma capacidade natural de as melhorar usando o pensamento e a experiência. Efeti-vamente, a experiência é essencial para a ciência (...).

David Deutsch (2011), O Início do Infinito: Explicações que Transformam o Mundo. Trad. Florbela Marques. Lisboa: Gradiva, 2013, pp. 15-16

7. Uma suposição arrojada e imaginativa será aquela que é falsificável num alto grau. No próximo ponto irás perceber mais exatamente em que é que isto consiste.

204 205IV. 2 . O estatutO dO cOnhecimentO científicOIV. 2 . O estatutO dO cOnhecimentO científicO