22496581 Nicolau Maquiavel Comentarios Sobre a Primeira Decada de Tito Livio

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    N0F UN DAC;A O UNIV ER SID AD E D E B RA SIL IAReitor: Joao Claudio TodorovVice-Rei tor: Sergio Barroso de Assis Fonseca

    E DIT ORA UNIV ER SID AD E D E B RA SIL IA

    Conselho Editorial

    Alexandre LimaCristovam BuarqueEmanuel Araujo (Presidente)Euridice Carvalho de Sardinha FerroOrlando Ayrton de ToledoRoque de Barros LaraiaSylvia FicherVenicio Arthur de LimaVolnei Garrafa

    A Editora Univers idade de Brasi lia, institufda pe la Le i nQ3.998 , de15 de dezemhro de 1961, tern como ohjetivo "editar ohrascientfficas, tecnicas e culturais, de nfvel universitario".

    Comentarios so bre aPrimeira Decada d e T ito Lfvio

    "7' ."L/1SCOrS1

    Traducao de Sergio Bath

    3! !ed icao , revi s ta

    E D I T O R AffiUnB

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    Este l ivro ou qualquer par te delenao pode ser reproduzido por qualqucr mcio

    sem autorizacao escrita do Editor.Impresso no Brasil

    Editora Universidade de BrasiliaCampus Universi ta rio - Asa Norte

    70.919-970 - Brasfli a - Dist rito Federa lTraducao: Sergio Fernando Guarischi Bath

    Capa: Elisa de SousaDireitos exclusivos para esta edicao:

    Editora Universidade de BrasiliaEQUIPE TECNICA

    Editores:Lucio Reiner, Manuel Montenegro da Cruz,

    Maria Rizza Baptista Dutra e Maria Rosa Magalhfies.Supervisao Grafica:

    Antonio Batista Filho e Elmano Rodrigues PinheiroSupervisor de Revisao:

    Jose ReisControladores de Texto:

    Antonio Carlos Ayres Maranhao, Carla Patrfcia Frade Nogueira Lopes, ClariceSantos, LaIS Serra Bator, Maria del Puy Diez de Ur e Helinger, Maria Helena

    Miranda, Monica Fernandes Guimaraes, Patrfcia Maria Silva de Assis,ThelmaRosane Pereira de Souza,Wilma G. Rosas Saltarelli

    32M149c= 690

    Machiavelli, Niccolo, 1469-1527.Comentarios sobre a primeira dccada de Tito Lfvio . Trad. de

    Sergio Bath, Brasilia, Editora Universidade de Brasilia, 1994,3! cd.440p.Titulo original: Discors i sopra la prima deca di Tito Lfvio.

    Nos seus "Discorsi ", Maquiavel anali sa a hist6ri a romana em funCio dos pro-blemas da Italia do seu tempo. Ao contrario do historiador contemporsneo, Ma-quiavel nio se preocupa em fundamenta r afirmat ivas ou em documenta r suas rnui-tas referencias , Procura, em vez disso, acontecimentos , ou seqiiencias de eventos ,na hi st6ria da Roma republicana segundo Tito Lfvio , que confi rmem suas convic -COes acerca de qual a politic a que a Itilia - entio dividida em virias cidades-estado e enfrentando graves problemas por causa de confli tos intest ines - deveriaseguir para alcancar a cura dos seus males e para chegar a unificar-se e assim au-mentar 0 seu poder io , Nio sepode, pois, considerar os "Discorsi" como sendo ape-nas uma obra acerca de um tema hist6rico. Os "Discorsi" sio uma obra poUt ica noseu enfoque e , na medida em que indicam um curso de aclio a ser seguido, sio tam-bern uma obra normativa, a semelhanca de "0 Principe".

    Esta edicio dos "Discorsi", pois, amplia as possibi lidades de 0 leitor brasileirose aprofundar na obra de Maquiavel e de aprecia r, a traves do seu estudo, a contr i-buicao deste autor para a evoluc lio do pensamento pol it ico. A esta , e a s obras ji pu-bli cadas, seguir-se-ao outras de relevante importancia para cienc ia polft ica , nomarco da Colec io Pensamento Pol iti co. da Edito ra Univer sidade de Brasi lia .

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    Sumario

    Apresentacao 11Carta de Nicolau Maquiavel a Len6bio Buondelmonti e Cosmo Ruccellai 13LIVRO PRIMEIRO(Capftulos Primeiro a Sexagesimo) 15LIVRO SEGUNDO(Capftulos Primeiro a Trigesimo Terceiro) 187LIVRO TERCEIRO(Capitulos Primeiro a Quadragesimo Nono) 29 9

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    APRESENTA

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    convic~oes acerca do presente, e em especial da polftica a ser seguida pelascidades italianas, imersas em divergencias e contlitos.Na verdade a hist6ria romana e a materia-prima, 0 modelo e afonte de inspiracao para urn tratado sobre os problemas polit icos da sua epoca.

    A pretexto de comentar fatos preterites , os Discorsi sao uma obrapolitica, que contem mensagem para os contemporaneos. Nela 0 autor fazfilosofia polftica e psicologia da conduta polf tica, revelando-se por outro ladorepublicano, preferencia que nao se depreende da leitura de 0 Principe -simples manual pratico de operacao politica, para uso do monarca.

    Num perfodo de crise polftica como a que M tanto tempo estamosvivendo, e uma boa noticia saber que 0publico brasileiro continua a demandaros Discorsi. Eles permitirao uma reflexao profunda sobre a nossa atualidade,analoga a que fez 0 secretario Florentino sobre 0 seu tempo, a part ir da hist6riade Tito Lfvio.

    Brasflia, 1994Sergio Bath

    Carta de Nicolau Maquiavel aZenobio Buondelmonti e Cosmo Ruccellai

    Envio a Vossas Senhorias urn presente que, se nao corresponde a magnitudedas minhas obrigacoes, eo que tenho de mais precioso . Tra ta- se do registro de tudoo que sei , tudo 0 que me ensinaram uma longa experiencia e 0estudo continuo dascoisas do mundo.

    Nem Vossas Senhorias nem qua lquer outra pessoa poderiam espe.rar de mimmais do que tenho a oferecer aqui; como nao poderiam queixar-se de que nao lhesdei objeto de maior valor. A pobreza do meu espfrito podera aborrece-los com aaridez de certos relatos; podera feri -Ios a falsidade do meujulgamento, quando en-cont rarern a lgum er ro, no meio da exposicao de tantos assuntos. Mas, mesmo nestecaso, nao sei quem poderia queixar-se: Vossas Senhorias, por nao lhes dar este livrocompleta sa ti sfacao: ou eu, por ter sido obrigado a desenvolver u rn tema que jamaisteria escolhido voluntariamente.

    Rogo, portanto, que aceit em este presente como tudo 0 que vern de urn amigo- conside rando menos 0valor do que e dado do que a intencao de quem 0oferece,

    Estejam certos de que sinto neste momento urna sa tisfacao genuina ao pensarque, tendo cometido tantos erros, acert ei ao escolhe r aspessoas a quem ofereco es-tes "Comentarios". Com tal escolha penso te r demonst rado reconhec imento pelosBenef icios recebidos, e tarnbem ter desprezado 0caminho seguido em geral pe losescritores que dedicam seus livros a algum princ ipe, a quem atribuem, com profu-sao de elogios banais, todas as virtudes - cegos a sua ambicao e avareza -, quan-do dever iam faze- lo corar pelos seus vicios.

    Para nao cair neste erro comum, escolhi nao urn principe, mas pessoas quemereceriam se-lo, pelas suas belas qual idades; nao quem me pudesse cumular de n -tulos, honrari as e riquezas, mas quem, nao podendo faze-lo, tern pelo menos 0 de-sejo de me prodigalizar tais vantagens. Para urn julgamento sadio, os homens de-vern saber disce rnir entre os que sao verdade iramente generosos e os que tern ape-nas 0poder materi al de agi r com libe ralidade ; entre os que deveriam di rigir 0uta-do e os que, sem esta capaci tacao, se acham a s vezes a t esta de urn imperio. Os his-

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    toriadores sentem mais atracao por Hieron, cidadao de Siracusa, do que por Per-seu, rei da Macedonia, porque 0primeiro, para ser principe, s6precisaria do podersupremo; mas Perseu tinha s6 urn dos atributos do rei - a realeza.

    Aproveitem, portanto, 0bern e 0mal que VossasSenhorias mesmas procura-ram. Ese chegarem a aceitar com benevolencia osmeus comentarios, esforcar-rne-ei por continuar esta hist6ria, cumprindo assim a promessa que fiz ao comecar aescreve-Ia.

    Saudacoes.

    LIVRO PRIMEIRO

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    IntroducaoEmbora os homens, por natureza invejosos, tenham tornado 0descobrimento

    de novos rnetodos e sistemas tao perigoso quanto a descoberta de terras e mares des-conhecidos - pois se inclinam por essencia mais a critica do que ao elogio -, to-mei a decisao de seguir uma senda ainda nao trilhada, movido pelo natural desejoque sempre me levou sem receios aos empreendimentos que considero uteis.

    Se vier a encontrar dificuldades e aborrecimentos, espero colher tambem re-compensa na aprovacao dos que lancarem urn olhar benevolente aos objetivos desteesforco, Ese a tentativa for falha e de escassa utilidade, devido a pobreza do domeu espirito, a insuficiente experiencia das coisas de hoje ou ao pouco conhecimen-to do passado, ten! ao menos 0merito de abrir caminho a quem, dotado de maiorvigor, eloquencia e discemimento, possa alcancar a meta. Enfim, seeste trabalhonao me der a gl6ria, tarnbem nao me servira de condenacao.

    Nao posso deixar de me espantar - e de queixar-me - quando considero, deurn lado, a veneracao que inspiram as coisas antigas (bastaria lembrar como secompra, a peso do ouro, urn fragmento de estatua que sedeseja ter junto a si, comoadorno da casa: modelo para os que se deliciam com a sua arte, esforcando-se porreproduzi-la): de outro, os atos admiraveis de virtude que a hist6ria registra, nosantigos reinos e republicas, envolvendo monarcas.vcapitaes, cidadaos, legisladores,todos osque trabalharam pela grandeza da patria. Atos mais friamente admiradosdo que imitados (longe disto, todos parecem evitar 0 que sugerem, de modo que epouco 0 que resta da sua antiga virtude).

    Com maior espanto ainda vejo que, nas causas que agitam os cidadaos enosmales que afetam os homens, sempre se recorre aos conselhos e remedies dos anti-gos. As leis, por exemplo, nao sao mais do que sentencas dos jurisconsultos preteri-tos, as quais, codificadas, orientam osmodemos juristas. A propria medicina naopassa da experiencia dos medicos de outros tempos, que ajudam os clinicos de hojea fazer seus diagn6sticos. Contudo, quando se trata de ordenar uma republica,manter urn Estado, governar urn reino, comandar exercitos e administrar a guerra,ou de distribuir justica aos cidadaos, nao seviu ainda urn s6principe, uma s6repu-blica, urn s6 capitao, ou cidadao, apoiar-se no exemplo da Antiguidade.

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    A causa disto, na minha opiniao, esta menos na fraqueza em que a m~dernaI.. _ t: rnergulhar 0mundo, enos vicios que levaram tantos Estados e cidadesre IgIao lez . .' d da Cristandade a uma forma orgulhosa de preguica, do que na 19norancla. 0espi-

    . da histori a Ignorancia que nos impede de aprender 0 seu sentido real.nto genumo . d di me de nutrir nosso espirito com a sua substancia. 0 resultado e que os ~ue se e caI hi tori ficam limitados a satisfacao de ver desfilar os acontecimentos sob osa er a IS na . difi '1 . i 1olhos sem procurar imita-los, julgando tal imitacao mars do que I ICI . imposs ve :

    I os hom'ens e oselementos nao fossem os mesmos de outrora,Como se 0 so. 0 ceu,rdem seu rumo e seu poder tivessem sido alterados.como se a sua 0 ,

    . ,,' dizi 6sitoResolvido a salvar os homens deste erro, achei necessano re gIr. a propd da urn dos livros de Tito Livio que resistiram a injuria do tempo. uma compa-r:c;~: entre fatos antigos e contemporaneos, de modo ~ facilitar-lhes. ~ compreen-sao. Deste modo. meus leitores poderao tirar daqueles livros toda a utilidade que sedeve buscar no estudo hist6rico. E uma empresa dificil q~e espero, contu~o. con~u-zir longe 0 bastante para que fique faltando pouco cammho a qu~m q~elra leva-laa termo. Eo que procurarei fazer, com a assistencia dos que me mdUZlTama assu-mir este encargo.

    Capitulo PrimeiroComo come~aram as cidades, de modo geral; e como Roma, emparticular, teoe 0 seu inicio.

    Os que estudarern 0 que foi 0 inicio de Rorna, seus legisladores e a ordem pu-blica que instituiram, nao se espantarao de saber que tantas virtudes tenham sidoali cultivadas durante seculos, e que aquela cidade se tenha tornado centro deimenso imperio. Para comec;ar discorrendo sobre a origem da s cidades, lembrareique todas foram fundadas ou por naturais do pais onde se situam ou por estrangei-ros.

    oprimeiro caso ocorre quando oshabitantes, disseminados por muitas vilas delimitada populacao, tern dificuldade de viver em seguranc;a, ja que nenhuma dessasvilas. pela sua localizacao e reduzido tamanho, pode resistir com as pr6prias forc;asa agressao de eventuais atacantes. A aproximacao do inimigo nao ha tempo para adefesa comum, sendo necessario ceder-lhe a maior parte das instalacoes, que sao lo-go capturadas. Para prevenir este perigo, oshabitantes, espontaneamente ou movi-dos pela tribo de maior autoridade, decidem habitar em conjunto um local de suaescolha que oferec;a rnaior comodidade e cuja defesa seja mais facil.

    Atenas e Veneza sao dois exemplos. A primeira foi construida, sob a direcao deTeseu, para acolher a populacao dispersa pela Atica. A segunda reuniu osnumero-sos habitantes que se haviam refugiado na constelacao de ilhotas situadas na extre-midade domar Adriatico para escapar a s guerras que se sucediam na Italia, depoisda decadencia do Imperio Romano. Comecavam as invasoes barbaras, e nenhumprincipe assegurava aquele pais urn governo com leis que parecessem apropriadas.o empreendimento foi coroado de exito. favorecido por uma paz prolongada e pelasua posicao num mar sem satda, que as limitac;Oesdos navios da epoca preservavamda infestacao pelos barbaros que arruinavam a Italia. Foi assimque Veneza cons-truiu, sobre fundamentos bern frageis, a grandeza que hoje admiramos.

    o segundo caso eo da cidade fundada por estrangeiros, homens livres ou de-pendentes de outro Estado. Deve-se incluir nesta categoria ascolonias fundadas pe-las republicas, ou pelos prtncipes, para receber a populacao excedente ou paramanter suas novas conquistas de modo mais seguro e menos dispendioso. 0 povo ro-mano, por exemplo, fundou muitas destas cidades em toda a extenslio do Imperio.

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    Ha ainda urn outro tipo de cidade: a construida por urn principe, nao com 0proposito de ali fixar residencia, mas exclusivamente para a sua gloria, como daexemplo a cidade de Alexandria, estabelecida por Alexandre. Como estas cidadesnao tern origem natural, e raro que sedesenvolvam plenamente, chegando a consti-tuir capitais de Estados. Florenca nasceu assim; fundada pelos soldados de Sila oupelos habitantes de Fiesole (os quais, seduzidos pela longa paz otaviana, teriam de-cidido habitar a planicie do rio Arno), a verdade e que a sua fundacao foi obra doImperio Romano. Por isto Florenca, no principio da sua vida urbana, nao podeexpandir-se a nao ser mediante a munificencia do principe.

    Uma cidade deve sua existencia a homens livresquando urn povo, movidopeladoenca, a fome ou a guerra, deixa a patria dos seus pais para estabelecer-se em ou-tro local - espontaneamente ou sob a direcao de urnprincipe. 0 povo imigrante seinstala em cidades conquistadas pela forca das armas, como fez Moises: ou entaoedifica uma nova cidade, como Eneas. Neste ultimo caso, manifestam-se a sabedo-ria do fundador e a sorte do seu empreendimento - melhor ou pior, conforme sejamaior ou menor a sabedoria do prtncipe, Esta sabedoria serevela em duas coisas: aescolha do local e a natureza das leis promulgadas.

    Como os homens agem por necessidade ou por escolha, e a coragem semprebrilha mais intensamente quando a escolha e mais livre, deve-se considerar senao emais vantajoso selecionar, para sede de uma cidade, local infertil, onde oshabitan-tes, constrangidos ao trabalho, e menos inclinados ao 6cio, possam viver unidos, su-jeitos a concordia pela sua situacao de pobreza. Tal e 0 exemplo de Ragusa, e demuitas outras cidades construidas em regioes desse tipo. Esta escolha seria sem dii-vida mais sabia e mais util seos homens secontentassem em viver com 0 que tern, enao buscassem ampliar seu territorio, Mas como estao condenados a garantir 0 seudestino exclusivamente pelo poder, e preciso que fujam das regioes muito estereis, esefixem em terras fecundas, onde a riqueza do solopermit a 0desenvolvimento; on-de os habitantes possam defender-se de ataques, dominando quem se oponha aoseu progresso.

    Quanto a falta devigor que urn local assim fertil pode provocar noscidadaos, epreciso que seja evitada pelas leis, que devem impor uma operosidade a qual 0solo'nao obriga de modo natural. E necessario imitar osgovemantes sabios que, habi-tando paises ferteis e risonhos (os quais produzem cidadaos efeminados, incapazesde qualquer esforco generoso), souberam compensar os inconvenientes devidos aoclima sensual impondo aos que se destinavam as armas a necessidade de continuoexercicio. Gracas a tal regra, foi possivel formar soldados melhores que osde paisesnaturalmente rusticos e estereis, Foi 0que aconteceu no Egito, onde a influencia dasuavidade da terra foi tao alterada pelo vigor das instituicoes que aquele pais pro-duziu os homens mais eminentes em todos os campos. E se 0 curso do tempo naohouvesse ja extinto a lembranca dos seus nomes, perceberiamos que esses homenss~o mais dignos de elogio do que 0Grande Alexandre, e tantos outros cuja memoriaaillda floresce.

    Cornentarios Sobre a Primeira Decada de Tito Livio 21

    Quem tiver estudado 0 Imperio do Sudao, a organizacao dos mamelucos e adisciplina da sua milicia, antes da destruicao do Sultao Selim, sabera que esses sol-dados estavam obrigados a continuos exercicios; elestemiam, de fato, 0ocio a quea amenidade do clima poderia leva-los, se nao 0 tivessem neutralizado com as leismais estritas. Minha opiniao, portanto, e a de que e rnaisprudente escolher uma re-giao fertil, ja que asleis podem conter esta influencia nefasta dentro de limites con-venientes.

    Alexandre, 0 Grande, queria construir uma cidade que fosse monumento asua gloria. 0 arquiteto Dinocrato mostrou-Ihe que era possivel construi-Ia facil-~ente sobre 0monte Atos. Alern da forca natural do lugar, dizia, poder-se-ia escul-pITa montanha com forma humana - urn projeto maravilhoso, digno do seu po-der. Alexandre perguntou entao de que viveriam oshabitantes; 0 arquiteto respon-deu que nao havia pensado nisso. 0principe riu e, deixando de lado 0monte Atos,mandou lancar os alicerces de Alexandria, num local onde oshomens se fixariamprazerosamente, seduzidos pela fecundidade do soloe pela dupla vantagem do Niloe do Mediterraneo.

    Se nos remontarmos a origem de Roma, e considerarmos Eneas seu primeirofundador, poderemos dizer que aquela cidade foi instituida por estrangeiros: masseseu fundador foi R6mulo, tera sido fundada pelos naturais do pais. Em qualquerhipotese, sua origem foi livre e independente.

    Veremos mais tarde quantas restricoes as leis estabelecidas por Romulo foramimpost as ao povo por Numa e outros legisladores. Desta forma, nem a fertilidadedo.solo, nem a comodid.ade do mar, nem as vitorias frequentes, nem mesmo a pro-pna grandeza do Imperio puderam, no curso de tantos seculos, corromper seuscos-tumes: Roma viu florescer no seu seio mais virtudes do que qualquer outra republi-ca.

    E como as grandes coisas que os romanos produziram, e Tito Livio celebrou,decorreram de deliberacoes publicas e particulares, no seioda cid~de ou fora dela,comecarei falando sobre 0que la aconteceu por decisao publica, detendo-me noque merecer, a meu juizo, maior atencao, e explicando as circunstancias de cadacaso. Este sera 0 tema dos comentarios deste Livro Primeiro.

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    Capitulo Segundo

    Quantas especies lui de republicas, e a qual pertenceu a republicaromana.Vou abster-rne de falar das cidades cuja fundacao sedeve a urn outro Estado;

    tratarei somente daquelas que surgiram livres de qualquer dependencia estrangei-ra, tendo sido autogovemadas, desde 0inicio, como republicas ou como monar-quias - embora, devido a esta dupla origem, tenham tido leise constituicao dife-rentes. Algumas receberam legislacao de um s6 homem, no momentoda fundacaoou pouco tempo depois - como aconteceu com Licurgo, na Lacedemonia. Em ou-tras, as leis foram sendo instituldas gradualmente, de acordo com osacontecimen-tos - como em Roma.

    Feliz e a republica a qual 0 destino outorga um legislador prudente, cujas leissecombinam de modo a assegurar a tranqiiilidade de todos, sem que seja necessarioreforrna-las. Eo que seviu em Esparta, onde asleis foram respeitadas durante oitoseculos. sem alteracao e sern desordens perigosas.

    Infeliz, porern, e a cidade que, nio tendo tido um legislador sabio, ~ obrigadaa restabelecer a ordem no seu seio. Dentre elas, a mais infeliz e a que esta mais afas-tada da ordem; isto e, aquela cujas instituicoes se apartamdo born caminho quepode leva-las ao seu objetivo perfeito e verdadeiro - porque e quase impossivelque, nessa situacao, ocorra algum acontecimento felizque lhe restabeleca a boa or-demo Contudo, as cidades cuja constituicao e imperfeita, mas que tern principesbons, susceptlveis de aprimoramento, podem, de acordo com os acontecimentos,chegar a perfeicao.

    Mas nio ha dtivida de que as reformas serio sempre perigosas, pois a maioriados homens nao se curva de boa vontade a uma lei inovadora, que estabeleca umaordenacao nova das coias a que nao considerem necessario submeter-se. E como talnecessidade nunca e imposta sem perigo, pode acontecer fadlmente que wna repu-blica perel;a sem que haja atingido a ordem perfeita. Em Florenca temos disto umademonstracao marcante: reorganizada depois da revolta de Arezzo, em 1502, a ci-dade foi revolucionada outra vez apes a tomada de Prato, em 1512.

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    Para descrever asformas que assumiu 0governo de Rorna, e o-conjunto de cir-cunstancias que 0 levaram a perfeicao, lembrarei (como osque escreveram a respei-to da organizacao das republicas) que ha tres especies de governo: 0monarquico, 0aristocratico e 0 popular; os que pretendem estabelecer a ordem numa cidade de-vern escolher, dentre estas tres especies, a que melhor convem a seus objetivos.

    Outros, segundo a opiniao geral, mais esclarecidos, acham que ha 50 S formasde governo, das quais tres sao essencialmente mas; astres outras sao em siboas, masdegeneram tao facilmente que podern tambern tornar-se perniciosas. Os bons go-vernos sao os que relacionei anterionnente; osmaus, suas derivacoes. Ese parecemtanto aos primeiros, aos quais correspondem, que podem com facilidade ser con-fundidos com eles.

    Deste modo, a monarquia setransfonna em despotismo; a aristocracia, em oli-garquia; e a democracia em permissividade. Em consequencia, todo legislador queadota para 0 Estado que vai fundar uma destas tres formas de governo nao a man-tern por muito tempo; nao ha 0que a possa irnpedir de precipitar-se no tipo contra-rio, tal a semelhanca entre a forma boa e a rna.

    Foi por acaso que surgiu esta variedade de governos. No comeco do mundo, oshabitantes da terra erarn pouco numerosos, e viveram por muito tempo dispersos,como animais. Com 0 crescimento da populacao, os homens sereuniram e, paramelhor sedefender, comecaram a distinguir osmais robustos e mais corajosos, quepassaram a respeitar como chefes. Chegou-se assim ao conhecimento do que eraiiril e honesto, por oposicao ao que era pemicioso e ruim. Viu-se que quem prejudi-cava 0seu benfeitor provocava nos homens sentimentos de ira - e de piedade pe1asua vitima. Passou-se a detestar osingratos, a honrar os que demonstravam grati-dao: e, pelo temor de sofrer as rnesrnas injurias que outros tinham sofrido,procurou-se erigir a barreira das leiscontra osmaus, impondo penalidades aos quetentassem desrespeita-la. Estas foram as primeiras nocoes de justica.

    A partir de entao, quando houve necessidade de escolher urn chefe, deixou-sede procurar 0 mais corajoso para buscar 0 mais sabio, e sobretudo 0 mais justo;contudo, como os principes vieram a reinar pelo direito de sucessao, e nao pela es-colha do povo, em breve os herdeiros degeneraram; desprezando a virtude,persuadiam-se de que nada mais tinham a fazer alern de exceder seus semelhantesem luxo, 6cio e todos ostipos de volupia, Desde entao, a figura do principe come-I;OUa provocar ira, que a rodeou de terror; mas nao tardou a nascer a tirania, quetransfonnou 0 medo em agressao.

    Estas foram as causas da queda dos principes: contra e1esforam urdidas conju-ras, nao por homens fracos ou pusilamines, mas sobretudo pelos que demonstravamgenerosidade e grandez d'alma: os que tinham riqueza, fidalguia, e nao podiam su-portar a vida criminosa de tais principes.

    Comentarios Sobre a Primeira Decada deTito Livio 25

    Levada pelo exernplo dos grandes, a multidao searmava contra 0soberano; edepois que este era castigado, obedecia aqueles como seus libertadores - estes, quedetestavam ate mesmo 0titulo principesco, organizavam entre si urn governo. Aprincipio, dado 0 exernplo da tirania precedente, conformavam sua conduta as leisque haviam promulgado. Preferindo 0bern publico a vantagem propria, governa-v.amcom justica e zelavam com igual empenho pelos interesses comuns e pelos par-ticulares.

    Mas0poder passou a s maos dos seusfilhos, que ignoravam oscaprichos da sor-te; como os infortunios nao ostinham submetido a prova, nao queiram respeitar aigualdade civil; entregando-se a avareza, a ambil;ao e ao desmando, transforma-ram 0governo, que ate entao fora aristocratico, numa oligarquia que deixou derespeitar os direitos dos cidadaos. Em breve, porem, tiveram a mesma sorte do tira-no: a multidao , cansada, se fez instrumento de quem quisesse vinga-la dos seusopressores. Logo surgiu urn homem que, com 0apoio do povo, osderrubou do po-der.

    ~ lembranea do principe e dos seus ultrajes continuava viva. A oligarquia ti-nha sido destrufda e nao se queria restabelecer 0 poder de uma so pessoa.Organizou-se assim 0 Estado popular, no qual a autoridade nao recaia nem noprfncipe nem num pequeno ruimero de senhores. Como todo govemo, que ao co-mecar sempre inspira algum respeito, 0 Estado popular a principio semanteve _mas por bern pouco tempo, soate extinguir-se a geracao que 0havia posta no po-der. Nao tardou a desenvolver-se uma situacao de licenca em que nao serespeitavamais os cidadaos nem as autoridades. Cada urn vivia conforme 0seu capricho, e acada dia ocorriam mil ultrajes. Constrangidos pela necessidade, advertidos pelosconselhos de urn sabio, OUmovidos pela fadiga de tal licenca, os homens voltaramao imperio de urn so, para recair de novo, gradualmente, da mesma maneira e pe-las mesmas causas, nos horrores da anarquia.

    Este e 0 circulo seguido por todos osEstados que ja existiram, e pelos que exis-tern. Mas raramente seretorna ao ponto exato de partida, pois nenhuma republicatern resistencia suficiente para sofrer varias vezes as mesmas vicissitudes. Acontecemuitas vezes que, no meio destes disturbios, uma republica, privada de conselhos ede forca, e tomada por algum Estado vizinho, governado com mais sabedoria. Seis-to nao ocorrer, urn imperio percorrera por muito tempo 0circulo das mesmas revo-lucoes. Para mim, todas estas formas de governo sao igualmente desvantajosas: astres primeiras, porque njio podem durar; as tres outras, pelo princlpio de corrup-I;ao que contem. Por isto, todos oslegisladores conhecidos pela sua sabedoria evita-ram empregar exc1usivamente qualquer uma de1as, reconhecendo 0vicio de cadauma. Escolheram sempre urn sistema de governo de que participavam todas, porjulga-Io mais solido e estavel: se 0principe, os aristocratas e 0povo governarn emconjunto 0 Estado, podem com facilidade controlar-se mutuamente.

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    Entre os legisladores que elaboraram constituicoes semelhantes, 0mais dignode encornios e Licurgo. Nas leisque deu it Esparta, soube de tal modo contrabalan-car 0 poder do rei, da aristocracia e do povo que 0Estado se manteve em paz duorante mais de oitocentos anos, por sua grande gloria.

    o contrario sucedeu a Solon, legislador de Atenas; por sose servir do govemopopular, deu-lhe existencia tao efernera que ainda vivia quando eclodiu a ziraniade Pisistrato. Embora os herdeiros do tirano tenham sido expulsos quarenta anosdepois, recobrando Atenas a liberdade, como serestabeleceu entao 0sistema de So-lon, este s6 durou urn seculo, nao obstante as emendas feitas para consolida-lo, epara reprimir a insolencia dos aristocrat ase a licenca da multidao - doisviciosquenao tinham merecido a atencao de Solon. Por outro lado, como nao participavamda constituicao ateniense nem a autoridade do principe nem a aristocratic a, a cida-de teve uma existencia muito limitada, em comparacao com a Lacedemonia.

    Mas, retomemos a Roma. No principio da sua vida, essacidade nao teve urnLicurgo que lhe desse leis, que estabelecesse ali urn governo capaz de conservar a li-berdade por muito tempo. Contudo, devido aos acontecimentos que fizeram nascerno seu seio0ciume que sempre separou 0povo dos poderosos, Roma conseguiu 0que seu legislador nao lhe tinha concedido. Com efeito, se a cidade nao se benefi-ciou da primeira vantagem que indiquei, teve a segunda; e se suas primeiras leiseram defeituosas, jamais se afastaram do caminho que podia leva-las it perfeicao.

    Romulo e os demais reis promulgaram numerosas outras leis, excelentes paraurn govemo livre. Entretanto, como 0 seu objetivo principal tinha sido fundar umamonarquia, e nao urna republica, quando a cidade recobrou a independencia viu-seque a liberdade reclamava muitas disposicoes que osreis nao haviam pensado es-tabelecer. E embora estes tivessem perdido a coroa pelas causas e nas circunstanciasque acima indicamos, osque osexpulsaram instituiram dois consules para exercer afuncao real, de modo que so se baniu de Roma 0 titulo, e nao a autoridade do rei.

    Arepublica, retendo osconsules eo Senado, representou a principio a misturade duas das tres formas mencionadas: a monarquia e a aristocracia. S6faltava in-troduzir 0 governo popular. A nobreza romana, pelos motivos que vamos explicar,tornou-se insolente, despertando 0 ressentimento do povo; para nao perder tudo,teve que ceder-lhe urna parte da autoridade. De seu lado, tanto 0Senado como osconsules guardaram bastante desta autoridade para manter a posicao que ocupa-vam no Estado.

    Estas foram as causas que originaram os tribunos do povo, instituicao que en-fraqueceu a republica porque cada urn dos tres elementos do govemo recebeu umaporcao da sua autoridade, Asorte favoreceu Roma de tal modo que, embora tenhapassado da monarquia it aristocracia e ao govemo popular, seguindo a degradacaoprovocada pelas causas que estudamos, 0poder real nao cedeu toda a sua autorida-

    Cornentarios Sobre a Primeira Decada de Tito Livio 27

    de ~~ra. os aristocratas, nem 0 poder destes foi todo transferido para 0 povo. 0equillbrio dos tres poderes fez assim com que nascesse uma republica perfeita. Afonte desta perfeicao, todavia, foi a desuniao do povo e do Senado, como demons-traremos amplamente nos dois capitulos que seguem.

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    Capitulo TerceiroOs acontecimentos que levaram d criaciio dos tribunos romanos,instituidio que aperfeicoou 0 govemo da republica.

    Como dernonstrarn todos osque escreveram sobre politica , bern como numero-sosexemplos hist6ricos, e necessario que quem estabelece a forma de urn Estado, epromulga suas leis, parta do principio de que todos os homens sao maus, estandodispostos a agir com perversidade sempre que haja ocasiao. Se esta malvadez seoculta durante urn certo tempo, isso se deve a alguma causa desconhecida, que aexperiencia ainda nao desvelou; mas 0 tempo - conhecido justamente como 0 paida verdade - vai manifesta-la.

    Depois da expulsao dos Tarquinios, parecia reinar a maior conc6rdia entre 0povo eo Senado; osnobres, despojados do seu orgulho, pareciam revestir-se de dis-posicao popular, 0que os tornava aceitaveis mesmo as classes mais modestas. Estaaparente uniao durou, sem que sesoubesse porque, enquanto osTarquinios vive-ram. A nobreza, que os temia, tinha medo tambem de que 0 povo, ofendido, delase afastasse; por isto0tratava com moderacao.

    Todavia, logo que osTarquinios morreram, e osnobres perderam 0medo, co-mecaram a derramar sobre 0 povo 0 veneno que guardavam no coracao,agredindo-o com todas asvexacoes que podiam conceber. 0 que prova seguramen-te 0 que disse antes: os homens s6 fazem 0 bern quando e necessario: quando cadaurn tern a liberdade de agir com abandono e licenca, a confusao e a desordem naotardam a semanifestar por toda parte. Por istosedizque a fome e a miseria desper-tam a operosidade, e que asleis tornam oshomens bons. Quando uma causa qual-quer produz boas consequencias sem a interveniencia da lei, esta e imitil: masquando tal disposicao propicia nao existe, a lei e indispensavel.

    Assim, quando os Tarquinios (os quais refreavam os aristocratas pelo terrorque lhes inspiravam) deixaram de existir, foi preciso buscar novas instituicoes queos substituissem, com 0mesmo efeito. Em conseqtiencia, s6 depois dos disturbios,das continuas reclamacoes e dos perigos provocados pelos longos debates entre no-

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    'b eguranc;a do povo A autori-b e plebeus e que se instituiram os tn unos, para as. . , .res . t dos foi cercada de rantas prerrogauvas e presngio quedade desses novos ma~ls'lbr;ioentre povo e Senado, oferecendo um obstaculo aspre-puderam manter 0eqUltensoes insolentes da nobreza.

    Capitulo QuartoA desunuio entre 0 povo e 0 Senado foi a causa da grandeza e daliberdade da republica romana.

    Nao quero silenciar sobre asdesordens ocorridas em Roma, entre a morte dosTarquinios e 0 estabelecimento dos tribunos. Mas nao aceitarei as afirmativas dosque acham que aquela foi uma republica tumultuada e desordenada, inferior a to-dos osoutros governos da mesma especie a nao ser pela boa sorte que teve, e pelasvirtudes militares que the compensaram os defeitos. Nao yOU negar que a sorte e adisciplina tenham contribuido para 0poder de Roma; mas nao se pode esquecerque uma excelente disciplina e a consequencia necessaria de leisapropriadas, e queem toda parte onde estas reinam, a-sorte, por sua vez, nao tarda a brilhar.

    Exarninemos, porem, asoutras particularidades de Roma. as que criticam ascontinuas dissensoes entre os aristocratas e 0 povo parecem desaprovar justamenteas causas que asseguraram fosse conservada a liberdade de Roma, prestando maisatencao aos gritos e rumores provocados por tais dissensoesdo que aos seus efeitossalutares. Nao querem perceber que ha em todos osgovernos duas fontes de oposi-C;3.0 : osinteresses do povo e osda classe aristocratica , Todas asleispara proteger aliberdade nascem da sua desuniao , como prova 0 que aconteceu em Roma, onde,durante ostrezentos anos e mais que transcorreram entre osTarquinios e osGracos,as desordens havidas produziram poucos exilados, e mais raramente ainda fizeramcorrer 0 sangue.

    Nao sepode, portanto, considerar estas dissensoescomo funestas, nem 0Esta-do como inteiramente dividido, pois durante tantos anos tais diferenc;as s6 causa-ram 0exilio de oito ou dez pessoas, e a morte de bem poucos cidadaos, sendo algunsoutros multados. Nao sepode de forma alguma acusar de desordem uma republicaque deu tantos exemplos de virtude, pois os bons exemplos nascem da boa educa-c;ao, a boa educacao das boas leis, e estas das desordens que quase todos condenamirrefletidamente. De fato, seseexaminar com atencao 0modo como tais desordensterminaram, ver-se-a que nunca provocaram 0exilio, ou violencias prejudiciais aobem publico, mas que, ao contrario, fizeram nascer leise regulamentos favoraveis aliberdade de todos.

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    . - . irn di-- uma conduta extraordinaria, e por assiEse alguern perguntar: mas nao e Senado em altos brados, e 0 Senado 0t d 0povo a acusar 0 .zer selvagem, 0 correr 0 ~ _ 1 f chando aslojas e abandonando a CI-Povo, precipitando-se os cidadaos pe as ~as, te do que cada Estado deve ter costu-. - r Responderei con u , . _dade? A descricao apavo a.. ' 1 ossarn satisfazer sua ambu;ao, so-mes pr6prios, por meio dos quaIs os ~pu arest

    p a-odecididos com a intervenien-. d d assuntos nnportan es sbretudo nas cida es on e os . Roma tinha por habito ver os popu-cia do povo. Dentre osEstados desta categona, do como 0 que descrevi, ouomportamento extremalares entregues a um c ndo queriam que se fizesse alguma- bili cao para a guerra, qua drecusando-se a mo I iza -1 era necessario satisfazer a sua vonta e.lei. De tal sorte que, para acalma os,

    . ovos de ser livres raramente prejudica a Iiberdade,o desejo que sentem os p . id Ese 0 povo se engana, os- do temor de ser opnmi o.porque nasce da opr~ss~o ou . iustamente para retificar suas ideias: basta quediscursos em prac;a pubhca existern J d nstrar com um discurso 0 engano doum homem de bem levante ~ voz ~ara erno ando vive mer.gulhado na igno-. disse CIcero, mesmo qu dmesmo. POlS0 povo, como d d dmite com facilidade quando alguem arancia, pode compreender a ver a e, e a asua confianca sabe indica-lao

    d c iticas ao governo romano; atenternos para 0 fa-Sejamos, portanto , avaros e r. -bli a provern de uma boa causa.d lhor nroduziu esta repu c ..to de que tudo 0 que e me - d t desordem merece encomios, pOlS. em a desor em, es aSe os tribunos devem sua ong .. _ verno E os tribunos foram osrou partICIpac;ao no go .o povo, desta f~rma, assegu veremos no capitulo seguinte.guardiaes das hberdades romanas, como

    Capitulo Quinto

    A quem se pode con/iar com mais seguranca a defesa daHberdade: aos an'stocratas ou ao povo. '! Quazs sao os que tern. maismotivos para instigar desordens: os que querem adquirir ou os quequerem conservar.'!Aqueles que agiram com maior tino ao fundar urn Estado incluiram entre suas

    instituic;aes essenciais a salvaguarda da liberdade; e os cidadaos puderam viver emliberdade urn tempo mais ou rnenos longo, segundo tal salvaguarda tenha sido mais.ou menos bern formulada. Como em todos os Estados existern aristocrat as e ple-beus, pode-se bem perguntar em que rnaos a liberdade estaria melhor savalguarda-da.

    Em outros tempos, oslacedemonios a confiaram aos nobres, como 0 fazem emnossos dias os venezianos: ja em Roma, ela estava nas maos do povo. E necessario,portanto, examinar qual dessas republicas fez melhor escolha. Se considerassemosos seus motivos, teriamos muito a dizer em favor de cada lado; examinando os re-sultados, contudo,dar-se-a a preferencia a nobreza, porque em Esparta e em Vene-za a liberdade teve vida mais longa do que em Roma.

    No entanto, para chegar aos motivos, e tomando osromanos como exemplo,direi que se deve sernpre confiar um deposito a quem tern por ele menos avidez. Defato, se considerarmos 0 objetivo da aristocracia e do povo, perceberemos na pri-meira a sede do dominio; no segundo, 0 desejo de nao ser degradado _ portanto,uma vontade mais firme de viver em liberdade, porque 0povo pode bem menos doque ospoderosos ter esperanca de usurpar a autoridade. Assim, seos plebeus tern 0encargo de zelar pela salvaguarda da liberdade, e razoave] esperar que 0cumpramcom menos avareza, e que, nao podendo apropriar-se do poder, nao permitam queoutros 0 facarn.

    Por outro lado, os defensores da ordem estabelecida em Esparta e em Venezapretendem que confiar este dep6sito aos mais poderosos da ao Estado duas vanta-gens; a primeira e contemplar, em parte, a ambic;ao dos que exercem import anteinfluencia na republica e que, tendo em maos as arrnas que protegem 0poder, por

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    isto mesmo tern mais mot ivos de sati sfacao com a sua parti lha; a segunda e impedirque 0 povo, de indole inquie ta, use 0 poder que lhe facultaria 0provocar dissensoese disturbios capazes de levar a nobreza a algum gesto de desespero, cujos efei tos fu-nestos se fa riam sent ir urn dia.

    Cita-se a pr6pr ia Roma como exernplo. Quando os tribunos for am ins ti tu idos ,o povo nao se contentou com urn consul plebeu: quis logo dois. Depois, exigiu acensura; em seguida a pretoria; mais tarde todas as demais funcoes de governo.Mais ainda : movido sempre pela mesma ansia de poder, veio com 0 tempo a idola-trar os homens que considerava capazes de rebaixar a nobreza. Esta foi a origem dopoder de Mario, e da ruina de Roma.

    Considerando todos os aspectos des ta questao, ser ia dif icil decidir a quem con-fia r a guarda da lihe rdade, pois nao se pode determinar com cla reza que espec ie dehomem e mais noc iva nurna republica: a dos que desejam adquiri r 0 que nao pos-suem ou a dos que 56querem conservar as vantagens ja alcancadas. E possivel queurn exame aprofundado nos leve a seguinte conclusao: ou setrata de uma republicaque quer adquirir urn imperio - como Roma, por exemplo - ou de urna republi-ca que tern como fim exc1usivo a sua pr6pria conservacao. No primeiro caso, e pre-ciso faze r como se fez em Roma; no segundo, pode-se imi tar Esparta e Veneza, pe-los motives sobre osquais vamos falar no capitulo seguinte, e do modo ali indicado.

    ~anto a saber quais as pessoas mais perigosas numa republica - as que que-rem adquirir ou as que nao querem perder 0 que ja possuem - lembrarei 0 caso deMarco Menenio e de Marco Fulvio, Tendo sido os dois, plebeus que eram, nomea-dos para investiga r uma conspiracao urdida em Capua contra a republ ica romana ,o povo os investiu tambern com autoridade para examinar, na capital, a condutade todos os que, por meios escusos, ambic ionavam apoderar-se do consul ado e ou-tros cargos publicos. Convencida de que este poder delegado ao ditador era dir igidocontra ela, a nobreza difundiu em Roma a noticia de que quem assim agia naoeram os nobres, mas os plebeus; estes, sem confianca na posicao fami lia r ou no pr6-prio merito, procuravam insinuar-se no governo, usando meios i legais . Era sobretu-do ao di tado r que os nobres vi savam em seus discursos.

    Esta acusacao inf luenciou de tal modo 0 espir ito de Menenio que 0 levou a re-nunciar a ditadura, ap6s urn discurso em que sequeixou amargamente das cahiniasdos nobres. Menenio pediu para ser julgado, tendo sido decIarado inocente. Nosdebates que precederam 0julgamento, considerou-se mais de urna vez quem ser ia 0mais ambicioso: 0 que nao quer perder ou 0 que quer adquirir - duas paixoes quepodem ser causa dos maiores desas tres .

    No entanto, as di ficuldades sao criadas mais freqi ientemente pelos que ja pos-suem; 0temor de perder 0que setern provoca paixao igual a causada pelo desejo deadquirir. E natural dos homens nao se considerarem propr ietarios tranqii ilos a nao

    Comenta rios Sobre a Primei ra Decada de Tito Livin 35ser quando podem acrescentar algo aos hens de ue i ._ - .rar, tambem, que quanto mais urn' di Id q. Ja dispoern. E preciso conside-. ,. In VI UO pOSSUl m .mais facil para ele provocar alteraroe- d d ,alS aumenta 0 seu poder; ebi - ... s a or em E 0 que ' b . fam icao desenfreada acend d . d " e em mars unesto sua. e 0 eseJo e posse no c - d -. 'Ja como vinganra para desp . '" 9ra~ao os que nao 0 tinharn se -. ... , oJar os mlmlgos sej . 'nquezas de que querem fazer '1 ' . ,a para compartIlhar as honrarias euso I ICItO.

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    Capitulo Sex toSe seria possivel instalar em Roma um governo que extinguisse amimizade entre 0povo e 0 Senado.

    Expusemos ja os efeitos das divergencias entre 0 povo e 0Senado. Consideran-do que elas duraram ate 0 tempo dos Gracos, quando provocaram a perda da liber-dade, e natural que secreia desejavel que Roma tivessepodido realizar seusgrandesfeitos sem a perturbacao causada por semelhante inimizade.

    Contudo, vale a pena examinar seseria possfvelfundar em Roma urn governoque evitasse essas dissensoes, Naturalmente, para fazer urn julgamento seguro, epreciso passar osolhos sobre as repiiblicas que, sem disc6rdia e inimizade, gozaramlongamente da liberdade; verqual a forma do seu governo, e se 0mesmo poderiater sido introduzido em Roma.

    Tomemos como exemplos Esparta, entre os antigos, e Veneza entre osmoder-nos, como ja tivemos ocasiao de fazer.

    Esparta foi governada por urn reino e urn Senado pouco numeroso. Venezanao dividiu 0poder sob denominacoes diferentes; todos osque dele participavam ti-nham 0mesmo titulo: "Gentiluomini". E a sorte, mais do que a sabedoria dos seuslegisladores, que Veneza deve esta forma degoverno. Com efeito, foi fundada pelosmuitos habitantes expulsos das regioes vizinhas, devido as raz6es a que anterior-mente me referi, e que serefugiaram nos escolhos onde hoje esta situada. Vendo 0seu mimero aumentar, oscidadaos formularam leis que lhes permitissem viver emcoletividade. E como se reunissem com freqiiencia para deliberar sobre os assuntosde interesse da cidade, refletiram que ja tinham mimero suficiente para completarsua existencia politica, recusando, a todos que imigrassem depois disto, a faculdadede participar do governo. Em consequencia, como estes ultimos tivessem aumenta-do consideravelmente, passou-se a chamar "gentiluomini" aos que governavam acidade, e aos outros, "popolani",

    Esta forma de governo nasceu e semanteve sem disturbios porque, original-mente, todos oshabitantes da cidade foram chamados ao poder, de modo que nin-

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    guern podia queixar-se; os que vieram depois encontraram 0governo ja completa-mente organizado, e njio tiveram a possibilidade, ou0desejo, de instigar tumultos.Faltou-lhes 0 desejo, porque nada lhes tinha sido retirado; a possibilidade, porqueos governantes os controlavam com pulso firme, nao lhes confiando jamais qual-quer cargo que pudesse conferir-lhes a rnenor autoridade. Por outro lado, os quevieram seestabelecer em Veneza nao eram bastante numerosos para romper 0equi-ltbrio entre govemantes e govemados: osnobres eram seus iguais em rnimero, oumesmo superiores. Deste modo, Veneza pOde fundar urn governo, e manter suaunidade.

    Esparta, como ja disse, governada por urn rei e Senado pouco numeroso, sub-sistiu tambem durante varios seculos. Sua pequena populacao, a sua recusa de rece-ber estrangeiros, a submissao asleis de Licurgo, tudo isto havia afastado as desor-dens, e permitido par muito tempo urna existencia unida. Com suas instituicoes,Licurgo tinha estabelecido em Esparta mais igualdade de substancia do que degrau; havia ali uma pobreza generalizada e igualitaria, Quanta 0povo, este nao eraambicioso, porque ashonrarias do Estado beneficiavam poucos cidadaos e a condu-ta destes nao era de molde a despertar a inveja dos populares,

    A seus reis Esparta devia esta vantagem. Do trono, no meio da nobreza, s6 ti-nham urn meio para conservar toda a forc;ada sua dignidade: defender 0 povo dequalquer insulto. Por isto 0povo nem temia nem almejava 0poder - pelo que de-sapareciam osgermes de tumulto, e todos os pretextos de disc6rdia entre ele e a no-breza: puderam assim viver por muito tempo na uniao mais perfeita. Esta conc6r-dia teve duas causas principais: a reduzida populacao de Esparta, que tomava pos-sivel0governo por poucos magistrados; e a rejeicao dos estrangeiros, 0que afastavado povo toda causa de corrupcao, e impedia a populacao de aumentar alem do li-mite imposto pelos governantes. 'Quando examinamos todas estas dificuldades,convencemo-nos de que oslegisladores romanos, para manter sua cidade tao pacifi-ca quanto as republic as que mencionamos, deveriam OUdesobrigar 0povo do servi-co militar, como osvenezianos, OUnegar aos estrangeiros a cidadania, como os la-cedem6nios. Contudo, fizeram as duas coisas, 0 que aurnentou 0 mimero e a forc;ado povo, multiplicando em conseqiiencia as fontes de disturbio, Mas sea republicaromana tivesse sido mais pacifica, 0resultado teria sido inconveniente: sua debili-dade teria aurnentado, e ela talvez ficasse impossibilitada de trilhar oscaminhos dagrandeza que rnais tarde seguiu. De modo que, sep.i romanos tivessem queridopreservar-se de turnultos, deixariam de ter todos osmeios para desenvolver-se.

    Serefletirmos com atencao sobre 0que acontece neste mundo, ficaremos per-suadidos de que nao e possivel remediar urn inconveniente sem provocar algum ou-tro. Assim, se se quiser urn povo guerreiro e nurneroso, que estenda 0 dominio doEstado, sera necessario irnprimir-Ihe urn carater tal que 0tornara dificil de governar; sese quer restringi-lo dentro de limites estreitos, ou mante-lo desarmado a fimde melhor governa-lo, ele nao podera conservar suas conquistas, ou se tornara tao

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    covarde que sera presa facil do primeiro agressor. E preciso examinar port antoem todas as nossas resoluC;Oes,qual apresenta menos inconvenientes abracando-s~omo a melh~r - po~~ue jamais se encontrara nada que seja perfei~amente uroisento de quaisquer VlClOSu perigos. p ,

    I . Seguindo 0 exemplo de Esparta , Roma podia perfeitamente instituir urn reie etrvo, urn Senado pouco numeroso: mas nao podi F.

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    ra ainda maior se a constituil;ao a proibir de alter~r seusguerra. Confianl;a que se ilibri puder sermantido teremos avida co-o de que seesteeqUII no ' - halimites. Estou segur . d ., I ra uma cidade. Todavia, como nao a. rfeit e a paz mais esejave pa .letiva mars pe ei a, . da e estavel e natural que as coisas. t entre os mortals, e na a e ,nada que seJa permanen e .d d sua vez muitas vezes nos obriga a em-melhorem ou piorem. A necessi ~ e, .~r A si~ depois de fundar uma republi-. azjio nos fana rejeitar , s ,preendlmentos que a r . . necessidade de faze-Ia cres-ca ada rada a se manter sem conquistas, se surgtsse: .

    el~ logo desmoronaria, por falta da base necessana.cer ,ou ando-Ihe os desastres da guerra, 0Por outro lado, se 0~eu,a ~avorec~sseP . P t doisflagelos (se urn s6nao bas-6cio criaria no seu seio a dlscordla ou 0 angor. es es

    tasse) seriam a causa da sua perdicao .. , -0se ode manter esta balanl;a emrepouso, ouEntretanto, como ameu J~IZOna Pd u'blica escolher 0 caminhorf . , CISOao fun ar uma rep ,em equilibrio pe eito, e pre , . I e surgir a necessidade de crescer,. . ndo-a de manelTa ta que, s . .mars honroso, orgamza . douiri E para voltar ao meu pnmelTosoesque vier a a qUInT. ,ela possa conservar as posses . . . . - de Rorna e nao a das outras re-. ,. e deve irmtar a constltUIl;ao .raClocmlO, penso que s _. . sivel escolher urn terrno mterme-. .d mos: nao creio que seJa pos . 'dpubhcas que consi era, A h e e preciso tolerar as discor las. doi odos de governo. c 0 qu ,diario entre estes OlSm ide' do-as como urn mal necessa-. vo e 0Senado conSI eran .que possam surgir entre 0po AI: dos motivos J.a alegados, pelos quais. 1 grandeza romana. em libno para a canl;ar a . . di ensavel a conserval;ao da I er-. t .dade dos tnbunos era m ISPdemonstrel que a au on . as republicas 0 poder de acusar

    f' 1 b a vantagem que trazra para .dade, e aCI perce er. explicara no capitulo segumte.parte das atribuil;oes dos tnbunos - como se

    Capitulo SetimoComo 0 direito de acusacdo publica e necessaria para manter aliberdade numa republica.

    Nao sepode dar aos guardiaes da liberdade num Estado direito mais util e ne-cessario do que 0 de poder acusar, perante 0 povo, ou diante de urn magistrado outribunal, oscidadaos que tenham atentado contra esta liberdade. Esta medida tern,numa republica, dois efeitos extremamente importantes: 0 primeiro e que oscida-daos, temendo ser acusados, nao ousam investir contra a seguranca do Estado; setentam faze-lo, recebern imediatamente 0castigo merecido. 0 outro e 0de secons-tituir numa valvula de escape a paixao que, de urn modo ou de outro, sempre fer-menta contra algum cidadao, Quando esta paixao nao encontra urn meio legal devir a superffcie, assume uma importancia extraordinaria, que abala osfundamen-tos da republica. Nada a enfraquecera tanto, todavia, quanto organizar-se 0 Esta-do de modo tal que a fermentacao de paixoes possa escapar por um canal autoriza-do. E 0que se prova com muitos exemplos, e sobretudo pelo que Tito Livio relata aprop6sito de Coriolano.

    Tito Livio conta que a nobreza romana estava indisposta contra 0 povo, quelhe parecia ter adquirido demasiada autoridade desde a instituicao dos tribunos.Roma sofria, nessa epoca - como acontecia com freqiiencla -, grande escassez dealimentos, eo Senado tinha mandado comprar na Sicilia oscereais de que a popu-lacao necessitava. Foi quando Coriolano, inimigo do partido popular, fez sentir queera chegado 0 momento de castigar 0 povo, retirando-Ihe a autoridade que haviausurpado a nobreza. Para isto, queria faze-lo passar fome, recusandoa distribuicaodo trigo. Como esta proposta tivesse chegado a ouvidos populares, levantou-segrande indignacao contra 0seu autor, que teria sido morto se os tribunos nao 0houvessem citado para que comparecesse diante deles, a defender sua causa.

    Este acontecimento fundamenta 0que disse acima: e iitil e necessario que asleis da republica concedam a massa urn meio legitimo de manifestar a colera quelhe possa inspirar urn cidadao: quando estemeio regular e inexistente, ela recorre ameios extraordinarios: e nao ha duvida de que estes ultimos produzem males maio-res do que os que sepoderia imputar aos primeiros. De fato, seurn cidadao e puni-

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    do por meios legais, ainda que injustarnente, isto pouca ou nenhuma desordemcausa na republica, por ter ocorrido a punicao sem recurso a forc;a particular, oude estrangeiros, causas ordinarias da ruina da liberdade. E urna punicao baseadaapenas na forc;ada lei e da ordem publica, cujos limites sao conhecidos, e cuja ac;aonunca e violenta 0 bastante para subverter a republica.

    Para apoiar minha opiniao com exemplos, basta-me 0 de Coriolano, entre osantigos. Q!.Iese considere, com efeito, todos osmales que teriam resultado para arepublica romana setivesseocorrido urn massacre, como result ado da comocao po-pular. Teria havido urn crime; ora, 0crime provoca 0medo; 0medo busca meiosde protecao: estesreclamam partidos; e ospartidos criam as faccoes que dividem ascidades, e originam a ruina dos Estados. Mas sea ac;aofor cometida pela autorida-de legttima, prevenir-se-a 0desenvolvimento de todos osmales que poderiam nas-cer do simples usa da forc;a particular.

    Vimos em nosso tempo as inovac;Oesintroduzidas na republica de Florenc;a pe-la impossibilidade em que se encontrava a multidao de atacar legalmente Frances-co Valori, cidadao cuja autoridade era semelhante a de urn principe. A maioria dopovo suspeitava da sua ambicao, acusando-o, por sua audacia, de querer elevar-seacima das leis. A republica nao tinha outro meio de resistir-lhe senao 0de opor-lheurna opiniao contraria. Mas Valori, que s6 respeitava os meios extraordinarios,procurou cercar-se de ciimplices que 0 defendessem. Os que 0 cambatiam, nao po-dendo domina-to pela forca das leis, empregaram entao meios ilegais, vencendo-opel as armas. 0metodo, que obrigava a lutar com recursos que a lei nao outorgava,fez com que Valori arrastasse em sua queda muitos cidadaos dignos.

    Estas reflexoes adquirem forca nova quando sepensa no que sucedeu em Flo-renc;a com Pedro Soderini - exclusivamente porque nao existia na republica urnmodo adequado de conter a ambicao dos cidadaos que adquiriam excessivo poder.Pode-se, de fato, considerar adequada a faculdade de acusar urn homem poderosoper ante tribunal composto apenas por oito julzes? Os juizes devem ser muitos, por-que 0pequeno numero securva facilmente a vontade dos poderosos. Com efeito, seo Estado tivesse tido meios de defesa, e seSoderini fosse culpado, oscidadaos teriampodido satisfazer sua animosidade sem ter que implorar a assistencia do exercito es-panhol. Se, ao contrario, sua conduta fosse legitima, nao teriam ousado processa-10, pelo temor de terminarem como reus. E assim seextinguiria 0 furor deste ressen-timento que foi causa de tantas desordens.

    De onde se conclui que todas asvezes que urn dos partidos que dominam umacidade pede socorro a forcas estrangeiras, deve-se atribuir isto aos defeitos da suaconstituicao, e ao fato de nao existir no seiodaquela republica urna instituicao quefavorec;a a explosao regular dos ressentimentos que agitam com tanta freqiiencia osindividuos.

    Comentarios Sobre a Primeira Decada de Tito Livio 43Seria possivel p . ..tante numeroso par:e::::::rt:;~hnco.nveniendtes se se estabelecesse urn tribunal bas-. ecimenm e todas as ac s - EmInstituic;ao era tao bern ordenada q . d u acoes, Roma, estaue, no meio e longas disse -Senado, nunca urn ou outro _ nem . les cida nsoes entre 0povo eourn simp esCI dao pe hseu socorro forc;asestrangeiras Co ' - nsou em c arnar em. mo possuiam em casa 0 m'dtinham necessidade de ir busca I . re e 10para 0 mal, nao-0em outra parte.

    Embora os exemplos precedentes sejam suficiente drnei, quero relatar urn outro, fornecido tambem pela "~~~~a~,~o~~ra~~ ~ue afir-ta aquele autor que em Chiusi uma d id d. e Ito IVIO.Con-, as CI a es rnais renomadas d Tcerto Lucurno tinha violado a irms d A a oscana, urn. . . a e runte este nao podendo . .mimrgo era poderoso, procurou os auleses " ._ vm~ar-se, pois 0como Lombardia propondo-Ihe g . d que ocupavam a regtao hoje conhecida, s0envio e uma expedic;a iddo ver que seria vanrajoso tomar a si I. 0contra a CI ade , fazen-si aque a vmganc;a Esta clar Arvesse podido vingar-se de acordo com as leis da .,. _ 0q~e se unte ti-forc;as dos barbaros. sua patna, nao terra recorrido as

    Todavia, embora as acusacoes sejarn uteis n 'bninhas, e iniiteis como ' urna repu hca, as cahinias sao da-, veremos no capitulo que sesegue.

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    Capitulo OitavoAs calicnias sao tao perniciosas as republicas quanto sao uteis asdenuncias.

    Embora Camilo Furius, cuja coragem libertara Roma do juga dos gauleses, ti-vessepelo seu merito obrigado todos oscidadaos a reconhece-lo como superior, semque se considerassem por isto rebaixados, Manlio Capitolino sofria corn impacien-cia a atribuicao aquele grande homem de tantas honrarias. Salvador do Capit6lio,pensava ter contribuido tanto quanta Camilo para a defesa da cidade, e nao secon-siderava ern coisa alguma inferior ao rival, no concernente aos outros talentos mili-tares. Devorado pela inveja, irritado corn a gl6ria de Camilo, e venda que nao con-seguiria semear a disc6rdia entre ossenadores, lancou-se aos braces do povo, espa-lhando entre os cidadaos suspeitas as mais ign6beis. Dizia, entre outras coisas, queostesouros reunidos para saciar a avidez dos gauleses (tesouros que, afinal, nao lhestinham sido entregues) haviam sido divididos entre alguns cidadaos: que sefossemrecuperados, dando-se-lhes uma destinacao publica, seria possivel aliviar 0povo deuma parte dos tributos, ou pagar algumas das suas dfvidas, Estes discursos tiverambastante influencia sobre 0 povo, levando-o a sereunir, e a cometer desordens pelacidade. Irritados, os senadores, julgando 0 Estado ern perigo, nomearam urn dita-dor para tomar conhecimento do que se passava, e reprimir a audacia de Manlio ,Citado pelo ditador, osdois seencontraram ern prac;a publica: 0ditador cercado detodos os nobres, Manlio no meio do povo. Ordenou-se a Manlio declarar onde seencontravao tesouro a que sereferia, pois0Senado tinha tanto desejo de localiza-loquanto 0povo. Sem ter nada a dizer de positivo, Manlio respondeu, de modo evasi-vo, que era imitil dizer 0 que todos sabiam tao bern quanto ele; por esta resposta, 0ditador 0 fez prender ern seguida.

    Este epis6dio mostra claramente que a caltmia deve ser detestada, nas cidadesque vivem sob 0 imperio.da liberdade - e como e import ante criar instituicoes ca-pazes de reprimi-la. Para isto,0melhor meio e abrir caminho a s demincias. Quan-to mais estas deruincias sao proplcias a republica. mais as cahinias se tornam inju-riosas. E preciso atentar para 0fato de que a cahinia dispensa testemunhos e pro-vas: qualquer urn pode ser caluniado por qualquer urn. Mas as acusacoes exigemprovas exatas, com a indicacao de circunstancias precisas, que demonstram fatos.

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    Acusa-se os cidadaos perante magistrados, perante 0 povo, ou os tribunais;calunia-se nas prac;as publicas, em reunioes particulares. A cahmia e mais empre-gada sobretudo nos Estados onde a acusacao e menos habitual, e cujas instituic;Oesnao se harmonizam com este sistema.

    Por isto, 0 fundador de uma republica deve estabelecer 0principio de que todocidadao podera ser acusado, sem qualquer temor ou perigo; uma vez estabelecido ebern observado este direito, oscaluniadores devem ser punidos rigorosamente; naopoderao queixar-se de tal punicao, uma vez que existam tribunais abertos para ou-vir acusacoes contra os que preferirem caluniar em reunioes particulares. Em todaparte onde esta disposicao nao esta perfeitamente estabelecida, sempre nascemgrandes desordens. A cahmia, de Iato, irrita os homens e nao os corrige; os que seirritam 56pensam emseguir seu caminho, porque detestam a cahmia rnais do que atemem.

    Esta era uma das medidas bern ordenadas em Roma, mas foi sempre mal orga-nizada em Florenc;a. Como a ordem estabelecida em Roma teve grandes meritos,assim tambem em Florenc;a a desordern contraria provocou males dos mais funes-tos,

    Quem ler a hist6ria desta cidade vera como a cahmia sempre perseguiu osci-dadaos que se envolveram em qualquer assunto de imporrancia. Dizia-se de urn,que havia desviado fundos do Estado: de outro, que por corrupto nao alcanc;ara avit6ria; de outro ainda, que a sua ambicao causara esta ou aquela desgrac;a. Comoresultado, surge a animosidade e 0 rompimento aberto de facc;Oes,levando 0 faccio-sismo a ruina do Estado,

    Se houvesse em Florenc;a uma lei que permitisse acusar oscidadaos, e punir oscaluniadores, nao teria havido todas as desordens ocorridas nesta cidade. Condena-dos ou absolvidos, oscidadaos acusados nao seteriam tornado perigosos para o'Es-tado. De todo modo, 0mimero dos acusados teria sido sempre muito inferior aosdos caluniados. Como disse, pode-se acusar tao facilmente quanto caluniar. Acahi-nia foi sempre urn dos meios utiIizados pelos ambiciosos para chegar a grandeza, enao dos menos eficazes. Foi empregada contra ospoderosos que seopunham a avi-dez dos caluniadores, servindo maravilhosamente aos deslgnos destes. De fato, to-mando 0partido do povo, e acirrando 0seu natural cidme contra tudo 0que e ele-vado, 0 caluniador conseguia facilmente 0 seu apoio.

    Poderia citar muitos exemplos para ilustrar a tese que avancei, mas me con-tentarei com urn s6.

    o exercito de Florenc;a assediava Luca, sob 0 comando de Joao Guicciardini,comissario da republica. Seja pela imperlcia do comando militar, seja por simplesrna sorte, nao foi possivel tomar a cidade. Qualquer que tenha sido a causa do in-

    Comentarios Sobre a Primeira ~cada de Tito Livio 47fortunio, lanC;ou-sea culpa sohre J -I h . oao, acusando-o de t dei dos ahltantes de Luca Se " . se er eixa 0corromper pe-. us IDlmlgosecoaram esta I -' Isespero. Para se justificar oferece _ ca uma, evando-o quase ao de-- ,u-se em vao com ". .e nao conseguiu J ' amais se justifi . 0pnSlOnelToao capitao do povoI car mtegralmente p - h . 'ca urn modo pr6prio de faze-lo. ' orque nao avia nesta republi-

    ~sto resultou profunda irritac;ao entre os ami .dos arlStocratas de Florenc;a gas do calunlado - a maioria. - e entre os que almeJ'avam difverno, Tais inimizades atic;ad di . uma mo I icacao no go-nfi ,as anamente por estes e t .e irn urn incendio que devorou too -hi' ou rosmotlvoS, a cenderam, a a repu rca,Mcinlio Capitolino foi urn caluniador e n - .envolveu, os romanos deram urnex m I I' daodenu~clante; no epis6dio que 0"da . e poe aro a manelra c 1- .repnmi : ohngando G caluniador . omo a ca urua deve ser

    ou, pelo menos, deixa-lo sem punl'c;_aagrr como acusador, para recompensa-Io _d ao - se a acusa - f f de falsidade, para puni-lo, como foi id . cao ~r un ada. Mas, no caso

    01pum 0 ManllO CapItolino.

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    Capitulo Nono

    E preciso estar s6 para fundar uma nova republica, ou parareformd-la de modo totalmente novo.Talvez se-possa pensar que avancei muito na hist6ria romana sem ter mencio-

    nado os que estabeleceram a republica e as instituicoes relativas a religiao e a disci-plina militar. Nao quero manter em suspenso por mais tempo a atencao dos q

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    que ao bern, seu sucessor podera empregar ambiciosamente 0poder do qual 0 pri-meiro principe s6se serviu de maneira virtuosa. Por outro lado, se urn sO homem ecapaz de estabelecer normas para urn Estado, este durara bern pouco tempo, seurns6 homem tam bern continuar a suportar todo 0 seu peso. Nao acontece 0 mesmoquando sua guarda e confiada a urn grande numero de pessoas. E, da mesma formaque urn grupo de homens sera incapaz de fundar uma instituicao, senao the reco-nhecer as vantagens, porque a diversidade de opiniao obscurece 0 seu julgamento,depois que the admitam a utilidade, jamais poderao por-se de acordo paraabandona-la.

    o que demonstra que Romulo merece ser absolvido da rnorte do seu irmao edo seu colega, e que agiu nao para satisfazer uma ambicao pessoal, mas em prol dobern comum, e 0 estabelecimento imediato do Senado, cujo conselho procurou,tomando-o como guia. Examinando-se com atencao a autoridade que Romuloguardou para si, ver-se-a que ele se limitou ao comando do exercito, em tempo deguerra, e ao direito de convocar 0Senado. Foi 0que se viu claramente quando Ro-rna, depois da expulsao dos Tarqulnios, recobrou a liberdade. Foi desnecessario,entao, alterar 0antigo govemo; tudo 0que sefez foi criar dois c6nsules anuais emlugar do rei vitalicio: prova evidente de que asprimeiras instituicoes daquela cida-de estavam mais ajustadas a urn govemo livre e popular do que a urn govemo abso-luto e tiranico.

    Para sustentar esta opiniao, poderia citar imimeros exemplos, tais como os deMoises, Licurgo, SOlon, e de alguns outros fundadores de reinos e de repiiblicas: to-dos puderam formular leis favoraveis ao bern publico porque obtiveram do povo aautoridade mais completa. Abandono porern esses exemplos, porque sao de todosbern conhecidos. Vou contentar-rne com urn s6 celebre, mas que deve provocar reoflexao em todos os que quiserem tornar-se legisladores.

    Eis0exemplo: Agis, rei de Esparta, pretendeu revigorar entre oslacedemoniosas leis que Licurgo lhes havia outorgado. Pensava que, ao seafastar daquela legisla-~ao, Esparta s6 havia perdido suas antigas virtudes e, em consequencia, sua forca epoder.

    Numa das primeiras tentativas foi massacrado pelos eforos, que 0acusavam deprocurar estabelecer uma tirania. Cleomenes, seu sucessor, tinha 0mesmo proposi-to. Advertido, porem, pelas instrucoes de Agis e pelos escritos nos quais 0 principetinha desenvolvido suas ideias, percebeu que nao poderia dar a patria tal beneficiose njio reunisse nas maos toda a autoridade do Estado - convencido de que a ambi-~ao dos homens nao permite a realizacao do bern geral quando 0 interesse de umaminoria a isto se opoe.

    Aproveitando urna oportunidade favoravel, fez matar todos os eforos, junta-mente com osque sepoderiam opor ao seu projeto. Em seguida, pOsem vigor asleisde Licurgo.

    Comentarios Sobre a Primeira Decada de Tito Livio 51_ .~te epis6dio poderia ter soerguido 0 oder deglona igual a de Licurgo se0 od d P . Esparta, dando a Cle6menesbli , P er osmacedomos e a f drcas gregas nao 0 tivessem feit f raqueza asdemais repu-lei 0 racassar.

    L~go a.pOssua reforma, Cle6menes foi atacad .ca era mtenor. Nao sabendo a q . . 0pelos lacedem6mos, a cuja for-. ue aporo recorrer foi ve ido: . .ra Justo e louvavel nao pode ser I d ' nCI 0,seu objetivo, embo-, l'" r rea tza o.Depois de ter pesado be. estas consideracOe. .modo: para instituir uma rem'ibll. _ . s, creio poder conclwr do seguinte

    r- ca e preCiSOa ac- d - hem vezdeser condenado peu..morte de Rem d a~ .e urn so omem, e R6mulo,vicao. 0e e Tacio, devemerecer nossa absol-

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    Capitulo DecimoOsfundadores de uma republica ou de um reino sao dignos deelogio, tanto quanta merecem recrimmaciio os que fundam umatirania.

    Dentre todos os mortais que ja mereceram elogios, os mais dignos sao os chefesou fundadores de rel igiOes. Depois vern os fund adores -de republ ica ou de re inos.Em seguida os que, a frente de exercitos, e stenderam os dorn inios da sua pat ria. Aestes devemos acrescentar os let rados; e como destes ha varia s especies, cada urn a l-canca a gloria reservada a categoria a que pertence. Enfim, no mimero infinito doshomens, nenhum deles deixa de receber a fracao de elogio a que faz jus pela sua ar-te ou profissao.

    Por outro lado, merecem 0 odio e a infamia os destruidores de re ligOes, os quepermi tiram que os reinos ou repiibli cas confiados a seus cuidados se perdessem; osinimigos da virtude , das letra s e das a rtes honradas e uteis a especie humana; e as-sim os tmpios, os furio sos, os ignorantes, os ociosos, os covardes e os imi tei s,

    Nao havera ninguem tao insensato ou sabio, tao corrompido ou virtuoso, que,se the pedirmos para escolher entre as duas especies de homem, nao aprove a quemerece ser elogiada, cri ti cando a que merece ser de testada. Contudo, quase todosse deixam seduzir, voluntariamente ou por ignonincia, pelo brilho enganoso dosque merecem 0desprezo mais do que encomios, envolvidos pe la atracao do falsobern, ou da vi i gloria.

    E alguns que alcancaram a honra imortal de fundar uma republica ou urn rei-no, mergulham na t irania sem perceber que, ao abraca -lo, pe rdem renome, gloria ,honra, seguran~a, paz e sat is facao espir itual, expondo-se a infamia, a s criticas, aculpa, a per igos e iuquietacoes.

    Se os cidadiios de uma republica - ou aqueles que a boa sorte ou a coragemtransformaram em principes - aprendessem as l icoes da h istoria , seria impossivelque nao pre ferissem viver, os primei ros, ma is como Cipao do que como Cesar; os se-

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    gundos, como Agesilau, Timoleonte, e Di, e nao como Nabis, Falaris e Dionisio. Is-to, porque veriam que uns secobriram de vergonha; outros, de g16ria. Veriam queTimoleonte e osseus emulos podem ter alcanc;ado autoridade igual a de Dionisio eFalaris, mas tiveram seguranc;a bern menor.

    Que ninguem sedeixe maravilhar pela gloria de Cesar, e sobretudo pelos elo-gios com que osescritores 0 cumularam. Osque celebraram cesar haviam sido cor-rompidos, ou se assustavam com a duracao de urn imperio que, governado sempresob a sua influencia, nao permitia aos escritores escreverem livremente. Osque qui-serem saber 0 que pensavam os escritores terao apenas que ler 0 que disseram deCatilina. cesar teria sofrido execracao ainda maior, pois quem pratica 0 crime emais culpa do do que quem 0planeja. Quem examinar todos osencomios prodigali-zados a Brutus vera que, na impossibilidade de atingir 0 tirano, por causa do seupoder, exaltou-se a gloria do seu inimigo.

    Aquele que for elevado ao poder supremo de uma republica que considere oselogios com que Roma, transform ada em imperio, cumulou osimperadores que se-guiram asleis, de preferencia aos que se conduziram de modo contrario. Vera en-tao que Tito, Nerva, Trajano, Adriano, Antonino e Marco Aurelio nao tinham ne-cessidade, para a sua defesa, de soldados pretorianos ou de grande mimero de le-giaes, porque a maneira como viviam, a afeicso do povo e0amor do Senado consti-tuiam sua melhor protecao.

    Vera tambem que todas as forcas do Oriente e do Ocidente nao conseguiramsalvar osCaligulas, os Neros, os Vitelios, e tantos outros criminosos coroados, davinganc;a dos inimigos criados pelos seus costumes execraveis e pela sua ferocidade.Se a hist6ria dessesmonstros fosse bern estudada, serviria de ensinamento aos prtn-cipes, mostrando-lhes os caminhos da gloria e da vergonha, da seguranc;a e do ter-ror. Sabe-se, como efeito, que dos vinte e seisimperadores que reinaram, de Cesar aMaximino, dezesseis foram assassinados, e dez morreram demorte natural. Se0nti-mero dos assassinados seinclui alguns justos, como Galba e Pertinax, e porque fo-ram vitimas da corrupcao introduzida no exercito pelos seus predecessores. Por ou-tro lado, se dentre os que morreram naturalmente seencontra urn malvado comoSevero, isto se deve a sua grande coragem, e a uma felicidade inaudita - duas cir-cunstancias que poucas vezes se reunern para beneficiar os homens.

    o estudo da hist6ria ensinara tambem como sepode fundar urn born governo,pois todos os imperadores que subiram ao trono pordireito de nascenc;a forammaus, com a excecao de Tito: os adotados comoreisforam todos excelentes, comosepode ver peloscinco que se sucederam, deNerva a Marco Aurelio. ~e 0leitor oscompare com seus antecessores ~ sucessores, escolhendo depois aqueles sob quaispreferiria viver como sfidito,

    Comentarios Sobre a Primeira Decada de Tito Livio 55

    E que descobriria sob 0 reino dos imperadores bons? Urn principe governandoem seguranc;a, no meio de suditos padficos 0mundo em paz dirizid 1. .S d I ' , gt 0pe a jusnca;o en~ 0com p ena autondade, os magistrados em toda dignidade, os cidadaoscom r~~~eza opulenta, A nobreza e a virtude, honradas; em toda parte a dittranqulhdade. I a e a

    .Afast~dos 0ressentimento, a licenc;a, a corrupc;ao, todas as ambicoe .nascida a idade de ouro od od s, vena re-. ._. em que t os p em sem temor exprimir e sustentar umaopmiao. Ve~"laenfirn 0 mundo triunfante, 0 principe cercado de respeito e gl6riaos povos fehzes envolvendo-o com 0 seu amor. '

    deri E ~ examina~~ depois, em pormenor, 0 reinado dos outros imperadores, po-ave-los ensanguentados por guerras atrozes, revolucionados por sedic;oese de-

    sastres, na paz e na .~erra. Amaior parte dos principes mortos pela espada; em to-da parte a guerra CIvIl,ou guerras externas. A italia em pranto e a cada dide n .nf ,. . ,Ia presaovos I orturuos: suas cidades devastadas, caindo em ruinas.

    . Veria Roma em cinzas, 0 Capit61io desfeito pelos pr6prios cidadaos tern Iantigos profanados, cerimonias religiosas corrompidas as cidades ' d PdoSdiilt 0 .. 'povoa as ea u eros. s mares cheios de exilados os rochedos manch d d .R. ' a os e sangue. Vena.oma ~temonzada POI'crueldades inumeraveis, A nobreza, as riquezas, as honra-nas anngas e sobretudo a virtude tidas como pecados capitais Os I . d. d. . ca uma ores pre-mia os, ~s servos.cor~o~p.ldos contra ossenhores, osclientes contra seus atronos:os que nao possuiarn Inlmlgos, oprimidos pelos pr6prios amigos Poderi p b'C R ' . . na perce eren ao~ que oma, ~ I~aha, e todo 0mundo devern a Cesar. Ese espantaria de verque ha quem possa rmrtar esses reinados execraveis.

    Seguramente, urn principe inflamado pelo amor a gloria desei ,Estado .d _ Jara governar urncorrompi 0,- nao, como Cesar, para completar sua ruina, mas, como Ro-m~lo, para reforma~I~. De fa.to, njio pode haver melhor ocasiao de ganhar a imor-tahdade. Se urn prncipe, animado p~la vontade de regenerar urn Estado, se viram,eac;adode perder 0 trono, e renunciar poI' isto a seus projetos de reforrna od _se-a talvez desculpa-Io. Mas se tiver condic;oes de conservar 0trono I' I: ' P derEstado _ fi ' . , erorman 0 0, e nao 0 izer, sera rmpossive] absolve-lo.

    ._ Que reflita , portanto,. todo aquele a quem 0ceu vier a oferecer tao bela oca-siao, sobre as duas alterriativas que seabrem a sua escolh . f ' .a. uma que 0 ara vrver emseguranc;a, assegurando-Ihe a gl6ria ap6s a morte a outra f I ' ., . , a- o-a viver em constan-te angusna, e marcara sua mem6ria com eterna infa' .mla.

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    Capitulo Decimo PrimeiroA religuio dos romanos.

    Roma teve Romulo por fundador, devendo-Ihe, como a urn pai, seu nascimen-to e formacao. Osceus nao julgaram, porem, que asinstituicoes daquele principefossemsuficientes para osgrandes destinos do imperio, inspirando ao Senado a es-colha de Numa como seu sucessor, para que promulgasse todas as leis que Romulonao chegou a formular~

    o novo monarca encontrou urnpovo bravio; quis impor-Ihe 0ugo da obedien-cia civil, fazendo com que experimentasse as artes da paz. Voltou 0 seu olhar para areligiao como 0 agente mais poderoso da manutencao da sociedade, fundando-a so-bre tais bases que nenhuma outra republica demonstrou jamais maior respeito pe-los deuses, 0 que facilitou todos os empreendimentos do Senado e dos grandes ho-mens que aquele Estado viu nascer.

    Quem examinar osatos importantes devidos a todo 0povo romano reunido, oua grupos de cidadaos, vera que osromanos respeitavam seusjuramentos rnaisaindado que as leis, convencidos que estavam de que a potencia dos deus~ e maior doque ados homens. Cipiao e Manilo Torquato oferecern dois exemplos frisantes,

    o primeiro, apos a vitoria de Cannes, que Anibal impos aos romanos, vern asaber que urn grupo de cidadaos, aterrorizados com a derrota, pretendiam abando-nar a Italia, buscando refugio na Sicilia. Corre ao seu encontro e, de espada namao, forca-os a jurar que nao abandonariam a patria ,

    Tito Manlio, conhecido depois pelo sobrenome Torquato, tinha sido acusadopor Marco Pomponio, tribuno do povo. Antes do dia dojulgamento, Tito vai pro-curar Marco e0arneaca de morte, obrigando-o a abandonar a acusacao dirigidacontra seu pai. Eo que Pomponio jura e, tendo comprometido a palavra, abando-na de fato a acusacao.

    Ve-se, nestes exemplos, que cidadaos a quem 0amor da patria e a forca dasleis nao puderam reter na Italia, nela permaneceram, presos por juramento que

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    lhes tinha sido arrancado a forca: e como Pomponio esqueceu a animosidade quesentia por Lucio Manlio, e a injuria recebida doseu filho, olvidando a propria hon-ra para guardar a palavra empenhada. Fidelidade sublime que teve sua origem nareligiao introduzida por Numa no Governo de Roma.

    Quando se exarnina 0 espfrito da hist6ria romana, e forcoso reconhecer que areligiao servia para comandar osexercitos, levar a concordia ao povo,zelar pela se-guran~a dos justos e fazer com que os maus corassern pelas suas infamias. De modoque, sesetivessede dizer a quem Roma devia maiores obrigacoes, sea Romulo ou aNuma, creio que esteultimo teria a preferencia. Nos Estados onde a religiao e todo-poderosa pode-se introduzir facilmente 0 espirito rnilitar; ja num povo guerreiro,mas irreligioso, e dificil fazer penetrar a religiao, Ve-se com efeito que, para orga-nizar 0 Senado e estabelecer a ordem civil e militar, Romulo nao sentiu necessidadede se apoiar na autoridade dos deuses, mas Numa precisou recorrer a sua interven-~ao, alegando encontrar-se com uma ninfa, de quem recebia conselhos para seremtransmitidos ao povo (0 que nao teria ocorrido seNuma nao pretendesse estabelecerinstituicaes novas e inusitadas, e se nao duvidasse de que para istobastaria sua pr6-pria autoridade).

    De fato, nunc a nenhum legislador outorgou a seu povo leis de carater extraor-dinaric sem apelar para a divindade, pois sem isto nao seriam aceitas. Ha muitasinstituicoes cujos efeitos benefices podem ser previstos por urn homem sabio e pru-dente, mas cuja evidencia nao e tal que convenca imediatamente todos osespiritos.Por isto 0 governante sabio recorre aos deuses. Foi 0 que fizeram Licurgo, S610ne amaior parte dos que tiveram identico objetivo.

    Adrnirador das virtudes e da sabedoria de Numa, 0 povo romano seempenhouem obedecer as instituicoes que ele formulou. tverdade que 0 domtnio exercidonaquela epoca pela religiao, e a simploriedade dos homens que Numa devia gover-nar.Tacilitaram-Ihe 0 cumprimento dos seus designos, de tal modo osesplritos esta-yam preparados para receber novas irnpressoes. Esta tam bern fora de duvida que 0legislador que hoje quisesse fundar urn Estado encontraria menos obstaculos entreos rudes habitantes das montanhas, onde a' civilizacao ainda e desconhecida, doque entre os habitantes das cidades, cujos costumes ja estao corrompidos. Da mes-rna forma, urn escultor fara mais facilmente uma bela estatua com urn bloco infor-me do que com urn marmore ja trabalhado por mao imperita.

    Tudo bern considerado, concIuo que a religiao estabelecida por Nurna em Ro-rna foi urna das causas principais da felicidade daquela nobre cidade, porque intro-duziu no seu seio uma uti! ordenacao, a qual por sua vez a conduziu a urn destinofeliz; deste decorreu 0 exito que coroou todos os seus empreendimentos.

    Se a observancia do culto divino e a fonte da grandeza dos Estados, a sua negli-gencia Ecausa da tufna dos povos. Onde nao exista 0temor a Deus 0imperio su-

    Comentarios Sobre a Primeira Decada de Tito Livio 59

    ~~~?!ra,~ menos que s~jasustentado pela fe de urn principe capaz de se apoiar na;:!:ao. as,. co~o a Vida de urn principe nao e duradoura, 0 Estado inevitavel-

    e se ar~mara logo que the falte 0apoio das suas virtudes. De onde se egovernos cUJasorte depende da sabedoria de urn 56homem rs v_que os. d ---- omem tern curta duracao porque sua Virtu e se extingue com a vida do pri . . .' -I nClpe, raramente seu vigor se restabe-ece com 0 sucessor, como Dante sabiamente exprirniu nos versos:"t raro que, entre os homenso valor passe de pai a filho ~ assim dispoeAquele que 0 prove".

    Nao basta, portanto, para a felicidade de uma republica ou de .urn - . urn relno terpnnclpe que governe com sabedoria durante sua vida' s: necesss . obra . ,

  • 8/3/2019 22496581 Nicolau Maquiavel Comentarios Sobre a Primeira Decada de Tito Livio

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    Capitulo Decimo Segundo

    Como e importante conservar a religuio, e como a Itdlia searruinou por a ter perdido, detndo a Igreja Romana.Osprincipes e as repiiblicas que querem impedir a corrupcao do Estado devem

    sobretudo manter sem alteracoes os ritos religiososeo respeito que inspiram. 0 In-dice mais seguro da ruina de urn pais e 0 desprezo pelo culto dos deuses: 0 que serafacil de compreender sese souber 0fundamento da religiao do pais; pois toda reli-giao tern como base alguma instituicao principal.

    A religiao dos pagaos se fundava nos vatidnios dos oraculos, nos augunos eauspicios; esta a origem de todas assuas cerimonias, seusritos e sacrificios. Acredi-tavam que a divindade que podia prever osbens e osmales futuros era capaz tam-bern de provoca-los. Dai ostemplos, sacriffcios, oracoes e todas as demais cerimo-nias destinadas a honrar osdeuses. Pelosmesmos motivos0oraculo de Delos, 0 tern-plo de Jupiter-Amon, e outros nao menos celebres mereciam admiracao e devocaouniversais. Mas quando osoraculos comecaram a tomar 0 partido dos poderosos, ea fraude foi percebida, oshomens sefizeram menos credulos, mostrando-se dispos-tos a contestar a ordem estabelecida.

    Osdirigentes de uma republica ou de uma monarquia devem respeitar osfun-damentos da religiao nacional. Seguindo este preceito, ser-lhes-a facil manter ossentimentos religiosos do Estado, a uniao e osbons costumes. Devem, ademais, fa-vorecer tudo 0 que possa propagar esses sentimentos, mesmo que setrate de algoque considerem ser urn erro. Quanto rnaisesclarecidos, e maior 0 seuconhecimentoda ciencia da natureza, rnais firmemente devem agir assim.

    t de tal comportamento, de homens sabiose esclarecidos, que nasceu a crencanos milagres, aceita por todas as religioes mesmo asfalsas. Os proprios sabios a di-fundiam, qualquer que fosse a sua origem, fazendo da sua autoridade uma provasuficiente para osoutros cidadaos, Em Roma houve muitos destes milagres, dentreos quais citaria 0 seguinte. Os soldados romanos saqueavam a cidade de Veios; al-guns entraram no templo de Juno e, aproximando-se da estatua da deusa,perguntaram-Ihe se queria ir com eles para Roma: "visvenire Romam?" Houve

    62 Maquiavel

  • 8/3/2019 22496581 Nicolau Maquiavel Comentarios Sobre a Primeira Decada de Tito Livio

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    quem pensasse te-la visto responder que "sim", com urn gesto ou uma palavra.Cheios de religiosidade, esses soldados (como comenta Tito Livio, observando quetinham entrado no templo sem desordem, dominados pelo respeito e pela devocao)acreditaram facilmente que a deusa dava a pergunta a resposta que tinham prova-velmente presumido. E Camilo, como osoutros responsaveis pelo governo, aceitou edifundiu esta crenca,

    Se a religiao setivessepodido manter na republica crista tal como 0seu divinofundador a estabelecera, os Estados que a professavam teriam sido bern mais feli-zes. Contudo, a religiao decaiu muito. Temos a prova mais marc ante desta deca-dencia no fato de que os povos mais pr6ximos da Igreja Romana, a capital da nossareligiao, sao justamente osmenos religiosos. Seexaminassernos 0 espirito primitivoda religiao, observando como a pratica atual dela seafasta, concluiriamos, sem du-vida, que chegamos ao momento da sua ruina e do seu castigo.

    Como Mquem pretenda que a felicidade da Italia depende da Igreja de Ro-rna, apresentarei contra essa Igreja varias razfies que se oferecern ao meu espfrito,dentre asquais duas extremamente graves, contra as quais, segundo penso, nao haobjecao possivel. Em primeiro lugar, osmaus exemplos da corte romana extingui-ram, neste pais, a devocao e a religiao, que trouxe como consequencia muitos in-convenientes e distiirbios. E como em toda parte onde reina a religiao seacredita naprevalencia do bern, pela mesma razao sedeve supor a presenca do mal nos lugaresonde ela desapareceu. E, portanto, a Igreja e aos sacerdotes que ositalianos devemestar vivendo sem religiao e sem moral; e lhes devemos uma obrigacao ainda maior,que e a fonte da nossa ruina: a Igreja tern promovido incessantemente a divisao nes-te malfadado pais - e ainda a promove. Com efeito, s6 ha uniao e felicidade nos'Estados sujeitos a um governo unico e a urn s6 principe, como a Franca e a Espa-nha. A razao por que a Italia nao seencontra na mesma situacao daqueles dois pat-ses, nao possuindo urn governo unico, rnonarquico ou republicano, e exclusivamen-te a Igreja, a qual, tendo possuido e saboreado 0poder temporal, nao tern contudoa forca suficiente, nem a coragem bastante, para se apossar do resto do pais,tornando-se dele soberana.

    Por outro lado, se a Igreja nunca foi tao forte como para poder ocupar toda aItalia, nao permitiu que qualquer outro pais dela se apossasse; fez assim com queesta nacao nao sepudesse reunir sob urn s6chefe, mantendo-se dividida entre variesprincipes ou senhores. Dai a desuniao e a fraqueza, que a reduziram a presa nao s6de barbaros ferozes, mas do primeiro que quisesse ataca-la,

    E a Igreja que a Italia deve isto. E para provar esta verdade com uma expe-riencia irrecusavel. bastaria que sefizessea corte romana mudar-se, com toda a au-toridade que possui em Roma, para a Suica - 0 unico pais conremporaneo que seassemelha aOSantigos, na religiao e nas instituicoes militares. Ver-se-ia em poucotempo oscostumes corruptos daquela corte provocarem desordens das mais profun-das, que poderiam produzir, sem tardanca, os acontecimentos mais desastrosos.

    Capitulo Decimo TerceiroComo os romanos se sertnram d l_da repuhli pare tgtao para organizar 0 governod dca, ara promover seus empreendimentos e reprimiresor ens.

    Penso que nao esta~a fora de prop6sito relatar aqui alguns exernplos do modocomo os romanos seserviram da religiao para executar reform as no Estado eprornover seus ernpreendirnentos. Tito Livio nos da muito 1 ,paratentarei com os seguintes. s exemp os, mas me con-

    Depois que os tribunos militares sucederam os c6nsules no poder consular~c?nteceu num certo ano que 0 p