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2277 Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 27(11):2277-2279, nov, 2011 ANTROPOLOGIA DO CORPO E MODERNIDADE. Le Breton D. Petrópolis: Editora Vozes; 2011. 407p. ISBN: 978-85-326-2449-9 David Le Breton já é um autor conhecido nos meios acadêmicos brasileiros (Adeus ao Corpo: Antropologia e Sociedade 1 , A Sociologia do Corpo 2 e As Paixões Or- dinárias: Antropologia das Emoções 3 ). Apesar de a pri- meira edição de Antropologia do Corpo e Modernidade ter sido lançada na França em 1990 e a terceira e última ser de 2003, só agora os leitores podem tomar contato com ideias seminais que parecem ser o pilar das outras obras do autor. Nela, a premissa maior é que o corpo é uma construção simbólica e não uma realidade em si. Nesse sentido, o corpo que parece ser evidente é mais inapreensível do que se pensa, uma vez que é efeito de uma construção social e cultural. Le Breton traz uma análise de longo alcance, que se estende do início da modernidade até as experiências genéticas atuais. Segundo o autor, ao longo do tempo, veio sendo construída uma paradoxal concepção acer- ca do corpo. De um lado, ele é visto como o demarcador das fronteiras entre o indivíduo e o mundo; de outro, é concebido como dissociado do homem. Em outras pa- lavras, instala-se uma bipolaridade: uma visão do cor- po mais como um ter do que um ser, em que o homem não só se distancia do corpo, mas também o deprecia, e outra que faz do corpo a identidade do homem, pro- duzindo no indivíduo um sentimento novo de ser ele mesmo, antes de ser membro de uma comunidade. Esse paradoxo se traduz por uma tripla cisão, ges- tada no intervalo entre os séculos XVI e XVII. Assim – ao contrário do que se verifica na Idade Média e no Renascimento – na Modernidade ocidental observa-se a concepção do homem cindido de si mesmo (divisão entre homem e corpo), dos outros e do cosmo. Isso, de certa forma, rompe com o pensamento das sociedades tradicionais, em que não se concebia a separação entre a pessoa e o seu corpo; o homem e os outros; e as maté- rias constituintes do homem e as que dão consistência ao cosmo. Da Modernidade aos dias atuais, no cenário oci- dental, várias concepções sobre o corpo foram se constituindo, resultando numa verdadeira polissemia corporal. Segundo o autor, essas concepções são tribu- tadas a três esferas sociais e culturais: o acentuado in- dividualismo (em que os vínculos entre as pessoas são relaxados, e a oposição entre vida privada e vida pú- blica é valorizada), a emergência de um saber racional positivo e laico sobre a natureza (resultando no estu- do do corpo como realidade em si mesma, dissociada do homem) e o recuo das tradições populares e locais, dando, aos poucos, lugar à medicina (instituída como o saber oficial sobre o corpo). Na linha do tempo, o autor destaca os anos 60 do século XX como cenário do desenvolvimento de um novo imaginário ocidental acerca do corpo, traduzido em discursos e práticas revestidos pela mídia. Nessa instância, o corpo se torna uma espécie de alter ego. Ele passa a ser o lugar do bem-estar, do bem-parecer, da paixão pelo esforço ou pelo risco. Investimentos midiá- ticos voltados para esses focos são produzidos, temati- zados no body-bulding, nos cosméticos, nas dietéticas, nas maratonas e nos esportes de risco. Na sociedade ocidental atual, para o autor, predo- mina o divórcio entre dois conjuntos de representa- ções do corpo: um relacionado aos saberes populares e outro tributado à cultura erudita, principalmente de natureza biomédica. Transitam nessas representações as visões de gênero e de categorias sociais, que ora se diferenciam, ora se intercambiam. Nesse sentido, em termos gerais, os signos corporais tradicionalmente atribuídos ao masculino e ao feminino não só coexis- tem separadamente, como também se deslocam de um gênero para outro. Assim, observa-se que o corpo de homem pode se tornar sexual e o de mulher, mus- culoso. Quanto às categorias sociais, destaca-se que a aposta simbólica do corpo pode se dar apenas para alguns segmentos sociais, enquanto outros podem va- lorizar mais a força e a resistência do que a forma e o bem-parecer. O saber biomédico – visto como representação ofi- cial do corpo humano atual – é destaque na obra em questão. Nessa discussão, o autor focaliza vários temas: a separação do sujeito de seu corpo em busca de uma eficácia médica; a imagética médica, que busca atra- vessar o interior do corpo invisível; a procriação sem a sexualidade; o efeito do placebo; as relações e tensões entre a medicina e as medicinas vistas como paralelas, dentre outros temas. Ao longo da obra, são reforçados os posiciona- mentos de vários antropólogos que defendem que os corpos, além de serem biologicamente constituídos, passam por processos de modelação cultural, assumin- do distintos significados em distintos espaços sociais e diferentes épocas. Marcel Mauss 4 é uma referência clássica no conjunto desses posicionamentos. Segundo ele, o corpo tanto é a ferramenta original com que os humanos moldam o seu mundo, como é a substância original a partir da qual o mundo humano é moldado. A construção cultural diz respeito às técnicas tradicio- nais de saber servir desenvolvidas pelo corpo, referin- RESENHAS BOOK REVIEWS

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    Cad. Sade Pblica, Rio de Janeiro, 27(11):2277-2279, nov, 2011

    ANTROPOLOGIA DO CORPO E MODERNIDADE. Le Breton D. Petrpolis: Editora Vozes; 2011. 407p.ISBN: 978-85-326-2449-9

    David Le Breton j um autor conhecido nos meios acadmicos brasileiros (Adeus ao Corpo: Antropologia e Sociedade 1, A Sociologia do Corpo 2 e As Paixes Or-dinrias: Antropologia das Emoes 3). Apesar de a pri-meira edio de Antropologia do Corpo e Modernidade ter sido lanada na Frana em 1990 e a terceira e ltima ser de 2003, s agora os leitores podem tomar contato com ideias seminais que parecem ser o pilar das outras obras do autor. Nela, a premissa maior que o corpo uma construo simblica e no uma realidade em si. Nesse sentido, o corpo que parece ser evidente mais inapreensvel do que se pensa, uma vez que efeito de uma construo social e cultural.

    Le Breton traz uma anlise de longo alcance, que se estende do incio da modernidade at as experincias genticas atuais. Segundo o autor, ao longo do tempo, veio sendo construda uma paradoxal concepo acer-ca do corpo. De um lado, ele visto como o demarcador das fronteiras entre o indivduo e o mundo; de outro, concebido como dissociado do homem. Em outras pa-lavras, instala-se uma bipolaridade: uma viso do cor-po mais como um ter do que um ser, em que o homem no s se distancia do corpo, mas tambm o deprecia, e outra que faz do corpo a identidade do homem, pro-duzindo no indivduo um sentimento novo de ser ele mesmo, antes de ser membro de uma comunidade.

    Esse paradoxo se traduz por uma tripla ciso, ges-tada no intervalo entre os sculos XVI e XVII. Assim ao contrrio do que se verifica na Idade Mdia e no Renascimento na Modernidade ocidental observa-se a concepo do homem cindido de si mesmo (diviso entre homem e corpo), dos outros e do cosmo. Isso, de certa forma, rompe com o pensamento das sociedades tradicionais, em que no se concebia a separao entre a pessoa e o seu corpo; o homem e os outros; e as mat-rias constituintes do homem e as que do consistncia ao cosmo.

    Da Modernidade aos dias atuais, no cenrio oci-dental, vrias concepes sobre o corpo foram se constituindo, resultando numa verdadeira polissemia corporal. Segundo o autor, essas concepes so tribu-tadas a trs esferas sociais e culturais: o acentuado in-dividualismo (em que os vnculos entre as pessoas so relaxados, e a oposio entre vida privada e vida p-blica valorizada), a emergncia de um saber racional positivo e laico sobre a natureza (resultando no estu-

    do do corpo como realidade em si mesma, dissociada do homem) e o recuo das tradies populares e locais, dando, aos poucos, lugar medicina (instituda como o saber oficial sobre o corpo).

    Na linha do tempo, o autor destaca os anos 60 do sculo XX como cenrio do desenvolvimento de um novo imaginrio ocidental acerca do corpo, traduzido em discursos e prticas revestidos pela mdia. Nessa instncia, o corpo se torna uma espcie de alter ego. Ele passa a ser o lugar do bem-estar, do bem-parecer, da paixo pelo esforo ou pelo risco. Investimentos midi-ticos voltados para esses focos so produzidos, temati-zados no body-bulding, nos cosmticos, nas dietticas, nas maratonas e nos esportes de risco.

    Na sociedade ocidental atual, para o autor, predo-mina o divrcio entre dois conjuntos de representa-es do corpo: um relacionado aos saberes populares e outro tributado cultura erudita, principalmente de natureza biomdica. Transitam nessas representaes as vises de gnero e de categorias sociais, que ora se diferenciam, ora se intercambiam. Nesse sentido, em termos gerais, os signos corporais tradicionalmente atribudos ao masculino e ao feminino no s coexis-tem separadamente, como tambm se deslocam de um gnero para outro. Assim, observa-se que o corpo de homem pode se tornar sexual e o de mulher, mus-culoso. Quanto s categorias sociais, destaca-se que a aposta simblica do corpo pode se dar apenas para alguns segmentos sociais, enquanto outros podem va-lorizar mais a fora e a resistncia do que a forma e o bem-parecer.

    O saber biomdico visto como representao ofi-cial do corpo humano atual destaque na obra em questo. Nessa discusso, o autor focaliza vrios temas: a separao do sujeito de seu corpo em busca de uma eficcia mdica; a imagtica mdica, que busca atra-vessar o interior do corpo invisvel; a procriao sem a sexualidade; o efeito do placebo; as relaes e tenses entre a medicina e as medicinas vistas como paralelas, dentre outros temas.

    Ao longo da obra, so reforados os posiciona-mentos de vrios antroplogos que defendem que os corpos, alm de serem biologicamente constitudos, passam por processos de modelao cultural, assumin-do distintos significados em distintos espaos sociais e diferentes pocas. Marcel Mauss 4 uma referncia clssica no conjunto desses posicionamentos. Segundo ele, o corpo tanto a ferramenta original com que os humanos moldam o seu mundo, como a substncia original a partir da qual o mundo humano moldado. A construo cultural diz respeito s tcnicas tradicio-nais de saber servir desenvolvidas pelo corpo, referin-

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    do-se ainda imitao de atos que so bem-sucedidos e observados em pessoas consideradas autoridades por quem imita.

    Le Breton no s atualiza esse debate da constru-o cultural do corpo, como tambm pode estabelecer dilogo com posicionamentos que procuram lidar com as tenses entre natureza e cultura que atravessam a discusso acerca do corpo. Nesses posicionamentos, destaca-se o de Butler, que, em uma entrevista 5, obser-va que tanto a materialidade precisa do discurso para se tornar acessvel, quanto o discurso no conseguem captar totalmente a materialidade que lhes anterior, revelando, assim, um limite construtividade.

    Romeu GomesInstituto Nacional de Sade da Criana, da Mulher e do Adolescente Fernandes Figueira, Fundao Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, [email protected]

    1. Le Breton D. Adeus ao corpo: antropologia e so-ciedade. Campinas: Papirus Editora; 2003.

    2. Le Breton D. A sociologia do corpo. Petrpolis: Editora Vozes; 2006.

    3. Le Breton D. As paixes ordinrias: antropologia das emoes. Petrpolis: Editora Vozes; 2009.

    4. Mauss M. Sociologia e antropologia. So Paulo: Cosac & Naify; 2003.

    5. Prins B, Meijer IC. Como os corpos se tornam ma-tria: entrevista com Judith Butler. Revista Estu-dos Feministas 2002; 10:155-67.

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