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    A exper inc ia ob l qua: o pensamentomst ico de Evelyn Underh i l l

    Oblique experience:the mystical thought of Evelyn Underhill

    La de experiencia oblicua:el pensamiento mstico de Evelyn Underhill

    Jaci Maraschin

    Em preparao.P a l a v r a s - c h a v e : Em preparao.

    ABSTRACT

    In preparation.K ey w o r d s :In preparation.

    RESUMENEn preparacin.P a l a b r a s c l a v e : En preparacin.

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    Revista Caminhando, v.6, n. 1 [8], p.32-42, 2010 [2 ed. on-line 2010; 1 ed. 2001] 33

    [Edio original pgina 47]

    IntroduoComecei a ler as cartas de Evelyn

    Underhill quando freqentei o Se-minrio Geral da Igreja Episcopaldos Estados Unidos, na cidade deNova York, em setembro de 1954,portanto, h mais de quarenta a-nos. Essa cartas pareciam ser diri-gidas a mim, muito embora os des-tinatrios fossem ingleses e vives-sem em ambientes culturais muitodiferentes do meu. Estudando Teo-logia num dos principais centros do

    Primeiro Mundo, logo percebi queminha religio no era dogmticanem autoritria. No foi sem razoque minha dissertao de mestradoconcentrou-se no movimento mo-dernista da primeira dcada do s-culo vinte procurando compreendera f crist a partir dos escritos deJames Franklin Bethune-Baker. Osdebates norte-americanos e euro-peus da poca no produziram ne-nhum impacto no acanhado mundoteolgico brasileiro. Os grandestemas giravam em torno da relaoentre f e razo em face dos desa-fios propostos por novas formas deconhecimento e de compreenso darealidade como, por exemplo, apsicanlise e a psicologia profunda,de um lado, e o desenvolvimentodos estudos de crtica das escritu-

    ras, de outro. Pensadores comoGeorge Tyrrell, Loisy, von Hgel eos anglicanos que contriburam pa-ra a edio de Lux Mundiachavamque era possvel viver o cristianis-mo de maneira mais inteligente eaberta do que a mera aceitaoservil dos dogmas. Percy Gardner,por exemplo, achava que a crticabblica era inconsistente em face dequalquer esquema intelectual de

    religio absoluta, ou de formas dereligio

    [Edio original pgina 47/48]

    reduzidas a frmulas inquestion-veis1. O modernismo parecia amuitos catlicos romanos e angli-

    canos o caminho mais vivel para ainterpretao e a vivncia da fcrist. As autoridades romanas, noentanto, estavam atentas ao fen-meno e temiam que o menosprezopelos dogmas e pelas doutrinas daIgreja ameaasse a estabilidade daordem eclesistica e ferisse a uni-dade da Igreja. Muitos anglicanossentiam-se atrados pelos esplen-dores da Igreja Catlica e pensa-

    vam que seria possvel usufruir daliberdade que tinham em sua igrejana universalidade da Igreja de Ro-ma. Outros, ainda indefinidos ecle-siasticamente, como era o caso deEvelyn Underhill, sentiam-se atra-dos pela riqueza simblica do rituallitrgico da missa catlica.Essas esperanas foram destrudasde um s golpe. Em 8 de setembrode 1907 o Papa Pio X publicou a

    encclica Pascendi Dominici Gregis.Tratava-se de muito bem elaboradodocumento na forma de estrito sis-tema onde o movimento modernis-ta era condenado definitivamente.A encclica fechou as portas de Ro-ma para Evelyn Underhill. Nem porisso decidiu filiar-se ao anglicanis-mo. Seu amor ferido por Roma le-vava-a a considerar qualquer filia-o institucional como se fosse trai-

    o.2E assim viveu, convidada paradirigir retiros espirituais, proferirpalestras e aconselhar os que bus-cavam sua orientao. Tambmmuito escreveu. Sentia falta, entre-tanto, de pertencer comunidadecrist e, por isso, depois de muitameditao, acabou sendo recebidasem estardalhaos na Igreja Angli-

    1 Modernism in the English Church, p. 23. Lon-don, Methuen & Co. Ltyd., 1926.

    2 Letters, London, Longmans, 1951, 343 p.

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    34 Jaci MARASCHIN. A experincia oblqua: o pensamento mstico de Evelyn Underhill

    cana onde, na infncia, havia sidobatizada e, na adolescncia, con-firmada.Os que conviveram com Evelyn Un-derhill do testemunho de algum

    que teria vivido a f crist de ma-neira criativa e amorosa. Seus mui-tos livros e ensaios tornaram-naconhecida na Europa da poca. Foia primeira mulher a fazer confern-cias na Universidade de Oxford,tendo recebido da Universidade deAberdeen um grau de doutoradohonoris causa. Estudou botnica, fi-losofia, linguagem e histria noKings College de Londres. Amiga

    do grande poeta T. S. Eliot levou-oa escrever o seguinte comentriosobre sua obra:

    [Edio original pgina 48/49]

    Seus estudos tm a inspirao noprimeiramente do especialista oudos campees dos gnios esqueci-dos, mas da conscincia da gravenecessidade do elemento contem-plativo no mundo moderno.3

    Henri Bergson considerou not-vel o seu trabalho.4 Escreveu epublicou 39 livros e 350 artigos.Trabalhou como editora de revistasteolgicas especializadas e dedicouboa parte de sua vida direo deretiros espirituais na Inglaterra.Casou-se com Hubert Stuart Mooree no teve filhos. Nasceu em 6 dedezembro de 1875 e morreu nodomingo 15 de junho de 1941. Est

    sepultada no cemitrio da parquiade So Joo em Hampstead.Meu interesse em Evelyn Underhilldesenvolveu-se ao longo de muitosanos e se fortaleceu depois de mi-nhas leituras das obras de Heideg-ger, principalmente de sua ltimafase. Nelas ele constata o fim da fi-

    3 Citao de H. GARDINER in The Compositionof the Four Quartets, London, Faber & Faber,

    1978, p. 67.4 Cf. Two Sources of Morality and Religion,

    Garden City, N. York, 1935, p. 216.

    losofia ensinando-nos que restamdois luminosos caminhos para opensamento contemporneo: misti-cismo e arte. Evelyn Underhill parecenos ter precedido nessa jornada

    quando afirma: O mais profundodesejo humano contemplar o a-mor, isto , Deus e, depois, expe-rimentar a vida como resposta aesse amor.5No seu romance, TheGrey World, afirma o seguinte:

    Parece to mais fcil hoje em diaviver mais moralmente do que viverde maneira bela. So inmeros osque conseguem viver anos a fio sempecar contra a sociedade, mas pe-

    cam contra a beleza em todas ashoras do dia. O crime o mesmo.6

    Achava que a beleza era a nicacoisa digna de ser cultivada7 por-que , na verdade, era o lado visualda bondade8.

    [Edio original pgina 49/50]

    Minha apresentao do pensamentode Evelyn Underhill pretende exa-minar os seguintes temas que me

    parecem centrais para a recepohoje de sua contribuio ao que a-inda chamamos de vida crist: 1)

    vida espiritual ou vida no esprito,2) misticismo e conscincia espiri-tual, 3) caminhos do misticismo,4) misticismo e adorao, paraterminar 5) com consideraes so-bre as relaes de seu pensamentocom a nossa tarefa num curso deCincias da Religio nesta passa-gem de milnio.

    5 Cf. Evelyn Underhill Artist of the Infinite Li-fe, Dana Greene, p. 6, New york, Crossroad,1990.

    6 P. 332, Londres, William HEINEMANN, 1902.7 Idem, p. 93.8 Idem, p. 332.

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    Revista Caminhando, v.6, n. 1 [8], p.32-42, 2010 [2 ed. on-line 2010; 1 ed. 2001] 35

    1. Vida espiritual ou vidano esprito

    Pessoalmente, se eu no considerasse

    que a totalidade da vida fosse obra do

    Esprito Santo,

    eu abandonaria tudo. Ele o centro do

    meu credo: to vvido

    que as coisas que nos parecem desagra-

    dveis, cruis e injustas coisas que

    no nego no conseguem nos separar

    dele.9

    Tanto nos dias de Evelyn Underhillcomo nos nossos o termo vida es-piritual tem diversas conotaes.

    Em geral se pensa que as pessoasque vivem espiritualmente afas-tam-se dos afazeres da vida diriae se retiram para regies misterio-sas da alma. Alguns imaginam queessa vida deva ser concentrada noservio da igreja e que se revelamais em negatividade do que emafirmao. Sero assim espirituaisos que no fazem isto ou aquilo(no fumam, no bebem, no dan-

    am, por exemplo) abstendo-se doque se chama em geral de praze-res deste mundo. H os que pen-sam que espiritualidade signifiquevida sacrificial expressa em autoflagelao e privaes materiais.Poderia talvez ser ainda a vida queest dentro de ns e que chama-mos, s vezes, de vida interior. Ou,quem sabe, algo indefinido, muitodifcil de ser alcanado mas, semdvida, santo e especial10. Seriaenorme a lista de tipos de vida es-piritual segundo o entendimento ea vivncia de pensadores, msticose religiosos.

    [Edio original pgina 50/51]

    Para Evelyn Underhill, no entanto,vida espiritual qualidade de vi-

    9 Letters, p. 143.10 The Spiritual Life, p. 11, London, Harper &

    Br., 1937, 142 p.

    da que nada tem a ver com quan-tidade. A essncia da vida espiri-tual no desejar nem ter e fazer,mas ser11. Experimentamos nossavida diria entre aborrecimentos,

    tdio e algumas alegrias. Os filso-fos diriam que se trata do vazio oudo nada a nos perseguir. QuandoUnderhill fala de ser est dando n-fase possibilidade de transcen-dncia em relao ao tdio. En-quanto mstica crist essa plenitudedo ser encontra-se em Deus e emnada mais. por isso que ela noacredita que vida espiritual sejaalgo especializado ou intenso capaz

    de nos elevar do vazio do cotidianos alturas do esprito por meio demuitas atividades.12No se trata docultivo da alma individual nem dabusca de virtudes.13A vida espiritual a mesma vidaprtica de cada dia sob a ilumina-o de Deus.

    Se Deus tudo e sua Palavra parans tudo, significa que ele a rea-lidade e o fator controlador de todasas situaes, sejam religiosas ouseculares, e que tudo existe apenaspara a sua glria e para o seu pro-psito criador. Portanto, nossas fa-voritas distines entre vida espiri-tual e vida prtica falsa. No po-demos dividir a vida. Uma afeta aoutra todo o tempo: somos criatu-ras de sentidos e de esprito e de-vemos viver uma vida anfbia.14

    Essa vida no se confina a formasde devoo ou piedade. , antes,

    a vida plena e real para qual fomosfeitos, orgnica e social, essencial-mente livre...15. Segundo a autora,essa vida plena envolve, natural-mente, nosso corpo. por isso quenuma de suas cartas adverte seuinterlocutor para que no tenhamedo de interesses que esto na

    11Idem, p. 15.12Idem, p. 17.13Idem, p. 25.14Idem, p. 32.15Idem, p. 41.

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    superfcie16. que no reino do es-prito as coisas acontecem, diga-mos, sem planejamento. A luzvem quando vem, de repente e demodo estranho, diz ela. Nosso es-

    foro para v-la no nos ajuda a[Edio original pgina 51/52]

    ver. como se apaixonar: coisaque no acontece quando busca-mos que acontea17. Seu pensa-mento mstico tende mais para abiologia do que para a histria. Foipara demonstrar essa idia que elaescreveu o livro The Life of the Spi-rit and the Life of Today.18Percebe-se a o repdio que sempre de-monstrou em sua vida pelo emo-cionalismo fcil to em voga emboa parte da piedade popular demuitas igrejas. Muitos cristos pre-ocupam-se em sentir em seus co-raes a presena de Deus como sea vida espiritual dependesse dasemoes. Adverte outro interlocu-tor, numa das cartas, voc tem

    muitos sentimentos mas quase ne-nhum amor19. E noutra, No sepreocupe se no sentir as coisasemocionalmente. O foco da religio a vontade e no o sentimento,no ?20Chamava a ateno parao fato de que Deus age sempre,tenhamos sensaes espirituais ouno21 ao acentuar a importnciada biologia referia-se vida fsica.Numa de suas cartas afirmou sem

    rodeios que devemos ser suficien-temente fortes para usar nossossentidos sem lhes permitir que pre-

    judiquem nossas almas uma vezque devemos usufruir deles sem

    jamais nos esquecer da profunda e

    16Idem, p. 98.17Letters, p. 51.18The Life of the Spirit and the Life of Today, p.

    1.19Leters, p. 97.20Idem, p. 183.21Idem, p. 184.

    deslumbrante escurido22. Referia-se, naturalmente, aos escritos eexperincias de So Joo da Cruz.Insta seus leitores a jamais se reti-rarem da vida fsica. A vida espiri-

    tual apenas complemento dessavida. No outra vida. Evelyn Un-derhill cita a mstica inglesa, Julia-na de Norwich que ouvia Deus lhedizendo : Veja! Eu estou em todasas coisas! Veja! Eu jamais retirareiminha mo de minhas obras, ja-mais23.O pensamento de Underhill aproxi-ma-se da poesia medida que sedistancia das formulaes dogmti-

    cas da teologia oficial da Igreja. Pa-recia-lhe que o telogo profissionalfalsifica freqentemente a histria.Achava que a teologia nos foramuitas vezes a escolher entre ahistria e a poesia. Mas ambas sonecessrias se

    [Edio original pgina 52/53]

    quisermos alcanar os smbolos a-

    dequados da verdade. Mas impe-rativo apreci-las separadamente.Quando o telogo opta pela histriaem detrimento da poesia comete

    um pecado imperdovel contra aluz24.Frei Beto, em inteligente artigo, pa-rece situar-se no mesmo caminhode Underhill quando escreve:

    Deus est na morada. Coraes ementes so atrados pela experin-

    cia do mistrio da f, esse dom quenos permite ver o invisvel, acredi-tar naquilo que se espera e desfru-tar o transcendente como amor... Asadia experincia da f nada tem defuga do mundo ou do misticismoespiritualista que faz da religio me-ro antdoto para angstias individu-ais. Nela se articulam contemplao

    22Idem, p. 79.23Revelations of Divine Love, captulo 2, Lon-

    don, 1902.24Letters, p. 145.

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    e servio ao prximo, orao e vida,alegria e justia.25

    2. Misticismo e conscin-

    cia espiritual

    Os msticos sempre dizem que Deus ha-

    bita o fundamento da

    Alma debaixo do nvel da conscincia

    cotidiana,

    de forma completamente distinta, con-

    tudo mais presente a ns

    do que ns mesmos. Alguns acham fcil

    sair do mundo e

    encontr-lo em suas almas enquanto ou-

    tros voltam-se

    para ele como se fosse o sol: as duasposies so

    verdadeiras embora inadequadas.26

    Seria possvel percorrer o caminhoda teoria do conhecimento para seentender o significado e os meca-nismos do que chamamos de misti-cismo. Hume, por exemplo, enten-deu que nosso conhecimento vemdas impresses que a realidade ob-

    jetiva imprime em nossa mente.Em geral, os filsofos estabelecemdois elementos fundamentais paraa apreenso da realidade: a sensi-bilidade e a razo. Evelyn Underhillentende, no entanto, que o misti-cismo percorre

    [Edio original pgina 53/54]

    outras avenidas. Parte do postuladoda existncia do absoluto e tem a

    pretenso de provar sua existnciapor meio do testemunho de pesso-as consideradas iniciadas. Atestam

    no apenas a existncia do Abso-luto, mas tambm esta ligao: apossibilidade de conhec-lo e , fi-nalmente, a de entrar em contatocom ele27. Com isso, os msticos

    25O Estado de So Paulo, Caderno A, p. 2, 26de janeiro de 2000.

    26Letters, p. 245.27 Mysticism, p. 23. New York, Image Books,

    1990, 519 p.

    negam que o conhecimento se limi-te s impresses sensoriais, aosprocessos intelectuais ou ao desdo-bramento dos contedos da consci-ncia. A base do mtodo do conhe-

    cimento mstico no se encontra nalgica, mas na vida. Eles acreditamdescobrir na existncia a centelhareal do verdadeiro capaz de lhesconduzir unio com o divino.

    Em linguagem teolgica, argumen-ta Underhill, sua teoria do conheci-mento afirma que o esprito huma-no, essencialmente divino por natu-reza, capaz de comunho imediatacom Deus, a realidade una.28

    Evelyn tem conscincia de que oconceito da unio com Deus mui-to antigo. Ela o situa, pelo menosna Europa, nas experincias deconscincia religiosa nos Mistriosrficos da Grcia e do sul da Itlia.Aqui tambm, como em Kant, exis-te um aparato mental disposiodo eu com a possibilidade de noslevar ao conhecimento conscienteda realidade supra-sensvel. Nombito do conhecimento, mesmotranscendental, h duas vlvulas deescape, por assim dizer: o desejode conhecer mais e o de amar ain-da mais.29O resultado do primeirodesejo se v no progresso da cin-cia e da tecnologia onde a filosofiaserve de orientao; o desejo deamar e de manifestar o amor geraa poesia, as artes em geral e, mui-

    tas vezes, a religio.Evelyn Underhill acredita que aspessoas vivem aprisionadas nas ce-las do conhecimento cientfico em-bora percebam pontos vulnerveisnas paredes desse edifcio. Seguin-do os achados da psicologia de seutempo, Underhill relembra a aceita-o da libido (ou desejo cheio de

    28Idem, p. 24.29Mysticism, p. 28.

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    38 Jaci MARASCHIN. A experincia oblqua: o pensamento mstico de Evelyn Underhill

    energia) como fator preponderanteda vida. A psique

    [Edio original pgina 54/55]

    sedenta quer mais amor. O intelec-

    to faminto quer mais conhecimen-to. Relembremos agora o diagramade Dionsio Areopagita que divideos anjos entre os serafins e os que-rubins. Para ele os querubins esta-vam cheios de olhos (voltados parao conhecimento), enquanto os se-rafins eram cheios de asas para re-presentar o impulso do amor na di-reo do absoluto.30 Pode-se dizerque os querubins tambm desejamo que vem, unindo-se aos serafinsna odissia do amor. No entanto, acaracterstica do amor ao. Suasasas so ativas. por isso que osmsticos dizem que a busca do co-nhecimento s tem valor medidaque nos leva ao amor. Se ficsse-mos apenas no conhecimento ja-mais nos perderamos na adorao.O puro conhecimento se satisfaz

    sem o relacionamento amoroso en-tre o sujeito e o objeto. Tende a serinteresseiro. A reciprocidade desentimentos s se d nos inter-cmbios do amor. Assim, o sim-ples conhecimento questo de re-cepo, no de ao; de olhos, node asas31.Quando o conhecimento se une aoamor a conscincia humana estpronta para a experincia da co-

    munho com o transcendente. Co-nhecimento e amor se confundemna contemplao.

    3. Caminhos do misticismo

    Voc precisa aprender que

    o primeiro movimento da

    30De Caelesti Ierarchia, VI. 2 e VII.1.31Mysticism, p. 46.

    religio vem de Deus para

    ns e no vai de ns

    para Deus.32

    Segundo Evelyn Underhill h doismodos para se tratar do desconhe-cido: o caminho da magia e o domisticismo. Eles so basicamentediferentes. O caminho da magiabusca possuir o objeto de sua bus-ca; o do misticismo quer dar. Ape-sar disso, ambos pretendem ofere-cer aos iniciados poderes extraor-dinrios e desconhecidos. Mas suasrazes e fins no so as mesmas.

    [Edio original pgina 55/56]

    No misticismo a vontade une-se semoes no desejo apaixonado detranscender o mundo dos sentidospara que o eu se junte por amor aoobjeto supremo e eterno do amor,cuja existncia intuitivamentepercebida pelo que costumamoschamar de alma, e que mais fcilde se chamar de sentido csmicoou transcendental.

    Underhill prossegue dizendo quese trata do temperamento poticoe religioso agindo sobre o plano darealidade.33O misticismo

    na sua forma pura a cincia dasltimas coisas, a cincia da uniocom o Absoluto, e nada mais, e omstico a pessoa que alcana essaunio e no a que fala a esse res-peito. A verdadeira marca do inicia-do no consiste em saber a respei-to, mas em ser.34

    O caminho do misticismo longo econstrudo por sries de graus. Oalvo dessa jornada o que muitoschamam de escurido. O absoluto tambm denominado de abismoda divindade ou de luz no criada,muito embora a unio com ele sejaconsciente, pessoal e completa.Segundo So Joo da Cruz, o msti-

    32Letters, 242.33Idem, p. 7.34Idem, p. 72.

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    co frui de certo contato com a di-vindade e, na verdade, Deus que provado e sentido35. H certacorrespondncia entre o mstico e oartista. A intuio do real na pr-

    pria constituio do mundo visvel,... est presente de forma modifica-da nas artes: talvez fosse melhordizer, corrige-se Underhill, que deveestar presente se as artes quiseremse justificar enquanto formas eleva-das da experincia. isso que lhesd vitalidade peculiar, estranho po-der de comunicar tremendas emo-es, feitas de meio tormento e demeia alegria sempre desconcertan-do os intrpretes racionais.36

    Entretanto, a arte no segue osmesmos caminhos do misticismo.

    O artista tem o dever de expressaralgo do que percebe. Est amarradoao seu amor. No seu culto da belezaperfeita a f precisa ser equilibradacom as obras. Por meio de

    [Edio original pgina 56/57]

    vus e smbolos ele interpreta suaviso livre, seu vislumbre da saraardente, aos outros seres humanos. o mediador entre seus irmos e odivino, pois a arte a ligao entrea aparncia e a realidade.37

    Por sua vez, o mstico no dispensao smbolo nem a imagem por maisinadequadas que sejam sua vi-so. Ele quer expressar a experin-cia que tem. mais ou menos co-mo o poeta que vai alm do sentidounvoco das palavras para transmi-

    tir por meio delas o que elas noconseguem transmitir sem sua aju-da. Para Underhill;

    O artista terreno, porque a percep-o envolve a busca imperativa daexpresso, tenta nos dar na cor, nosom ou nas palavras indicaes deseu xtase, do seu vislumbre daverdade.38

    35Llama de amor viva, II.26.36Mysticism, p. 74.37Idem, p. 75.38Idem, p. 76.

    Mas o que o artista conseguetransmitir muito pouco em faceda extenso do que viveu e vive. Amesma coisa se passa com o msti-co. Ele quer contar o seu segredo

    ao mundo. Suas dificuldades soenormes.

    Em primeiro lugar temos a imensadisparidade entre a experincia i-nexprimvel que tem e a linguagemque se mostra incapaz para isso. Emseguida, h enorme distncia entresua mente e a mente do mundo.39

    O caminho mstico pressupe trsdisposies do eu que expressam ainquietao profunda do ser huma-

    no. Em primeiro lugar ele se trans-forma num peregrino.

    Tem o desejo de sair de seu mundonormal na busca do lar perdido ouda terra melhor: talvez o Eldorado,Sarras, ou Sio celestial. Busca de-pois o outro corao, a alma gmeaque o transforma num amante. Porfim, deseja a pureza interior e aperfeio, que o transforma em as-ceta e, no fim de tudo, em santo.40

    [Edio original pgina 57/58]

    O caminho mstico no ser descri-to como se fosse uma viagem, masa alterao da personalidade capazde transformar a nossa vida e onosso ser terrenos em ser celestial.A idia de peregrinao repete-seao longo da histria. Busca-se oSanto Graal, percorre-se o caminhode Santiago de Compostela, passa-se por vales para buscar amor,contemplao, xtase, deslumbra-mento e, por fim, o aniquilamentodo eu.O caminho mstico como a procis-so para o altar onde a alma seune a Deus como num casamento.H cinco estgios no caminho paraa unio com o transcendente. Oprimeiro o despertar do eu para aconscincia da realidade divina.

    39Idem.40Idem, p. 127.

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    Trata-se de experincia abrupta emarcante. Esse momento vem a-companhado de sentimentos de a-legria e exaltao. O segundo est-gio consiste na percepo da finitu-

    de e da imperfeio do eu. Trata-sede momento de purgao e dor. Opostulante vida mstica descobreque precisa se esforar. O terceiromomento representa o desinteressepelas coisas dos sentidos. precisoolhar para fora e para cima ondebrilha o sol e onde as coisas se ilu-minam. importante neste estgioo senso da presena divina muitoembora ainda no signifique a uni-

    o final. O ltimo estgio dessecaminho a unio da alma comDeus. Santa Teresa advertia s ir-ms de seu convento da seguintemaneira:

    Vocs podem pensar, minhas filhas,que a alma no estado de unio de-veria estar de tal maneira absorvidaque chegasse a no se ocupar comcoisa alguma. Mas vocs se enga-nam. A alma volta-se com facilidade

    e mais ardor do que antes s coisaspertencentes ao servio de Deus.41

    Evelyn Underhill reconhece quetodos os relatos sobre misticismono Ocidente so de suprema ativi-dade humana42.

    [Edio original pgina 58/59]

    4. Misticismo e adorao

    Enquanto fonte de toda luz,

    o sol mais difcil de ser

    visto do que qualquer outra

    coisa, mas se trata de mis-

    trio benfico para deixar

    que as coisas sejam vistas

    em sua verdadeira natureza,

    41El castillo interior: moradas stimas, cap. 1.42Mysticism, p. 173.

    enquanto ele (o sol) perma-

    nece apenas visvel obli-

    quamente.43

    A adorao que se presta a Deus a resposta das criaturas ao criador.A vida do universo ato de adora-o. Trata-se de ato desinteressadoe puro. Conta-se que So Joo daCruz perguntou certa vez a um deseus penitentes: Como sua ora-o? E teve como resposta: Mi-nha orao consiste em considerara beleza de Deus e de me alegrarporque ele tem essa beleza44. Na

    verdade, orao e adorao noso a mesma coisa. Segundo E-velyn Underhill:

    A adorao essencialmente desin-teressada significa apenas Deus enquanto a orao s desinteres-sada num certo sentido. A adoraooferece, a orao suplica.

    Na adorao no buscamos Deusporque precisamos dele. Chegamo-nos a ele para adorar seu esplendorem pura contemplao perante suaglria. Esto a as sementes da vi-da mstica.45 Na adorao o serhumano reconhece sua dependn-cia da livre ao de Deus imanentee transcendente.Vamos examinar o lugar da con-templao na adorao. resultadode recolhimento e silncio. Quandoentramos no estado de contempla-

    o desinteressamo-nos de tudo oque nos pode afastar de Deus e nossentimos livres e em paz. O sujeitoabandona a multiplicidade e divisode sua conscincia no ato do reco-lhimento. O adorador torna-seconsciente de estar em relao i-mediata com Deus. O mstico temmais e mais a impresso de ser o

    43After Writing, C. Pickstock, p. 11.44Worship, p. 5, New York, Harper & Br., 1957,

    350p.45Idem, p. 9.

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    Revista Caminhando, v.6, n. 1 [8], p.32-42, 2010 [2 ed. on-line 2010; 1 ed. 2001] 41

    que conhece, e de conhecer o queele 46. Os msticos acreditam quea experincia da

    [Edio original pgina 59/60]

    contemplao dada e s alcan-ada mediante participao. No sechega a esse estado por meio deobservao.J nos referimos expresso noiteda alma neste ensaio. Meditemosum pouco em seu significado. Un-derhill afirma que o termo significaque Deus no conhecido em suaabsoluta realidade essa realidade escura pelo nosso intelecto47.Em outras palavras, ela quer dizerque nossas categorias no se apli-cam a esse tipo de conhecimento. por isso que a razo, perante Deus,acha-se no escuro. No se v Deuspor meio da razo. Assim, Deusnunca ser conhecido pelo coraoenquanto no desistirmos de tentarconhec-lo pela mente.Ora, o culto da igreja o lugar on-

    de o caminho da vida mstica co-mea. A pura contemplao s alcanada depois de muita experi-ncia e treinamento. O culto em-pregar smbolos, formas artsticase sons numa espcie de auxlio aoperegrino em sua jornada para aunio com Deus. por isso queUnderhill afirma que:

    A resposta humilde e gradual do serhumano finito auto-revelao ge-

    nerosa e gradual do Deus infinito,requer alm de tudo o carter ine-rente em nossa condio de serescriados. Isto , o culto precisa deexpresso concreta e de forma.48

    46Mysticism, p. 330.47Idem, p. 348.48Worship, p. 13.

    5. Consideraes finais

    Eu acho que, aquela senhora idosa que

    percebe no sacramento a presena de

    Jesus quando exclama meu Jesus, estmuito mais adiantada espiritualmente do

    que os telogos que discutem a seu res-

    peito.49

    Acho muito significativo o fato deestarmos realizando, em 2001, umcolquio para alunos do programade doutorado sobre misticismo. Emprimeiro lugar porque nos abreperspectivas alternativas aos estu-

    dos tradicionais de teologia tantosistemtica como dogmti-

    [Edio original pgina 60/61]

    ca. A ps-modernidade est de-monstrando que h novas maneirasde comunicao em nosso mundoque vo alm da racionalidade dos

    juzos e das categorias. Em segun-do lugar, porque o rigorismo tcni-co das teorias do conhecimento a-

    inda em voga na Universidade co-mea a dar lugar para experinciasque vo desde as percepes daarte at aceitao de novas for-mas de religiosidade. Em terceirolugar porque o ideal iluminista domundo globalizado, apoiado porfortes instituies financeiras, a-vassala as culturas locais e queracabar com as diferenas ainda e-xistentes.

    O misticismo um dos caminhosdeixados para o pensamento capazde fazer desabroch-lo de maneiraque o racionalismo jamais permitiu.O misticismo no se enquadra nasteorias filosficas existentes nemnos sistemas teolgicos conhecidos. fonte de criatividade e de amor.O movimento vem das religies o-rientais e do judasmo e penetra na

    49Letters, p. 182.

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    42 Jaci MARASCHIN. A experincia oblqua: o pensamento mstico de Evelyn Underhill

    Igreja. As cartas paulinas estocheias de testemunho mstico prin-cipalmente porque Paulo no co-nheceu Jesus na carne. verdadeque o neoplatonismo exerceu forte

    influncia nos sculos segundo eterceiro e se manifestou por meiode escritores como Clemente de A-lexandria e Orgenes. No sculoquarto com o desenvolvimento domonasticismo e com a experinciados eremitas, principalmente no E-gito, o misticismo cristo acentuoua renncia do mundo e a contem-plao. Agostinho, entre os sculosquarto e quinto, foi grande mstico

    natural. Dionsio Areopagita, nosfins do sculo quinto, deixou impor-tante legado que se tornaria conhe-cido no Ocidente no sculo nonoquando Joo Escoto traduziu seusescritos do grego para o latim. Elechamava Deus de ser alm do ser,existncia incriada. Na Idade M-dia, inmeros msticos enriquece-ram a literatura devocional comoSanta Hildegarda, Elizabeth de S-chonau, Santa Gertrude Magna, Ri-cardo de So Vtor, So Bernardo,Francisco de Assis, Jacopone daTodi, Meister Eckhart, Ruysbroeck,Tauler, Catarina de Siena, Catarinade Gnova, Santo Incio de Loyola,So Pedro de Alcntara, Santa Te-resa dvila e So Joo da Cruz.Houve msticos importantes no pro-testantismo como Jac Boehme, e

    George Fox, logo depois da Refor-ma. Entre os msticos modernosEvelyn

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    Underhill ocupa importante lugartanto pela erudio de seus escritoscomo pelo exemplo de vida quedeixou.Segundo Heidegger, como j vi-mos, os caminhos deixados para o

    pensamento depois do fim da filo-sofia so precisamente o misticis-

    mo e a arte. Muito embora saiba-mos que pensar o misticismo epassar pela experincia mstica se-

    jam coisas diferentes, compete academia pensar as experincias

    vitais do esprito, como a religio ea arte. Talvez, a partir da reflexovenhamos a sentir o desejo de iralm do pensamento para o mer-gulho na experincia.