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Sínteses – Revista dos Cursos de Pós-Graduação Vol. 12 p.87-96 2007 O CONCEITO DE VANGUARDA A PARTIR DA REFLEXÃO SOBRE A OBRA ABERTA, DE UMBERTO ECO 1 Antonio Barros de BRITO JUNIOR RESUMO: A fim de estabelecer um conceito de vanguarda, este artigo trata da relação entre duas dicotomias apresentadas por Umberto Eco em sua obra teórico-crítica: a dicotomia entre obra aberta e obra fechada e a dicotomia entre vanguarda e kitsch. Sustentamos que essas dicotomias de certa forma se correspondem, de modo que podemos opor, de um lado, a obra aberta e a vanguarda – na medida em que convidam o intérprete a participar da descoberta ativa de significados na fruição da obra – e, de outro lado, a obra fechada e o kitsch – na medida em que reforçam hábitos interpretativos em detrimento da abertura da obra de arte. Por fim, esboçamos um conceito de vanguarda que leva em conta a abertura da obra na sua relação com o código e, portanto, com as visões de mundo e as ideologias por ele possibilitadas. ABSTRACT: In order to establish a concept of avant-garde, this article deals with the relationship between two dichotomies presented in the theoretical work of Umberto Eco: the dichotomy between open work and closed work and the dichotomy between avant-garde and kitsch. We defend the idea that this two dichotomies somehow coincide, so that we can oppose, in one side, the open work and the avant-garde – while both invite the interpreter to participate in the active discovery of meanings during the fruition of the work of art – and, in the other side, the closed work and kitsch – while both reinforce interpretative habits by putting aside the openness. Finally, we define a concept of avant-garde that takes in account the openness of the work in its relationship with the code and, therefore, with the ideologies made possible by it. 1. INTRODUÇÃO Em 1962, Umberto Eco publicou o livro Obra aberta, recebido como uma espécie de “manifesto” – se não simplesmente uma espécie de programa geral – de um grupo de artistas, reunidos em torno do que se convencionou chamar Grupo 63, cujo principal interesse consistia em revitalizar o cenário artístico italiano, retirando-o da estagnação herdada do fascismo. Entretanto, o livro de Eco não se configura tão-somente como uma proposta para uma poética, normativamente dispondo as fórmulas de atuação para os artistas interessados na neovanguarda; em vez disso, o livro é um estudo das poéticas contemporâneas à luz da teoria da informação (e também de uma teoria pré-semiótica), evidenciando a forma pela qual os processos de indeterminação das obras levam os seus intérpretes a inúmeras e imponderáveis possibilidades interpretativas. Nesse sentido, ainda que pudesse ser encarado como um fundamento sobre o qual se ergueram as experiências artísticas daquele período, Obra aberta é, no fundo, uma reflexão sobre: 1 Este texto apresenta alguns aspectos abordados na dissertação de mestrado intitulada Obra aberta: teoria da vanguarda literária nas obras teórico-críticas de Umberto Eco, defendida em fevereiro de 2006, sob orientação do Prof. Dr. Márcio Seligmann-Silva e com o apoio da Fapesp. Aqui, estamos lidando, particularmente, com os capítulos 1, 2 e 3 da referida dissertação; os demais (capítulos 4 e 5) serão matéria de outros eventuais textos. Dada a brevidade deste artigo, fazemos questão de remeter o leitor à dissertação, a fim de um detalhamento dos argumentos defendidos.

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Sobre a "OBRA ABERTA" de Umberto Eco.

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  • Snteses Revista dos Cursos de Ps-Graduao Vol. 12 p.87-96 2007

    O CONCEITO DE VANGUARDA A PARTIR DA REFLEXO SOBRE A OBRA ABERTA, DE UMBERTO ECO 1

    Antonio Barros de BRITO JUNIOR

    RESUMO: A fim de estabelecer um conceito de vanguarda, este artigo trata da relao entre duas dicotomias apresentadas por Umberto Eco em sua obra terico-crtica: a dicotomia entre obra aberta e obra fechada e a dicotomia entre vanguarda e kitsch. Sustentamos que essas dicotomias de certa forma se correspondem, de modo que podemos opor, de um lado, a obra aberta e a vanguarda na medida em que convidam o intrprete a participar da descoberta ativa de significados na fruio da obra e, de outro lado, a obra fechada e o kitsch na medida em que reforam hbitos interpretativos em detrimento da abertura da obra de arte. Por fim, esboamos um conceito de vanguarda que leva em conta a abertura da obra na sua relao com o cdigo e, portanto, com as vises de mundo e as ideologias por ele possibilitadas.

    ABSTRACT: In order to establish a concept of avant-garde, this article deals with the relationship between two dichotomies presented in the theoretical work of Umberto Eco: the dichotomy between open work and closed work and the dichotomy between avant-garde and kitsch. We defend the idea that this two dichotomies somehow coincide, so that we can oppose, in one side, the open work and the avant-garde while both invite the interpreter to participate in the active discovery of meanings during the fruition of the work of art and, in the other side, the closed work and kitsch while both reinforce interpretative habits by putting aside the openness. Finally, we define a concept of avant-garde that takes in account the openness of the work in its relationship with the code and, therefore, with the ideologies made possible by it.

    1. INTRODUO

    Em 1962, Umberto Eco publicou o livro Obra aberta, recebido como uma espcie de manifesto se no simplesmente uma espcie de programa geral de um grupo de artistas, reunidos em torno do que se convencionou chamar Grupo 63, cujo principal interesse consistia em revitalizar o cenrio artstico italiano, retirando-o da estagnao herdada do fascismo. Entretanto, o livro de Eco no se configura to-somente como uma proposta para uma potica, normativamente dispondo as frmulas de atuao para os artistas interessados na neovanguarda; em vez disso, o livro um estudo das poticas contemporneas luz da teoria da informao (e tambm de uma teoria pr-semitica), evidenciando a forma pela qual os processos de indeterminao das obras levam os seus intrpretes a inmeras e imponderveis possibilidades interpretativas. Nesse sentido, ainda que pudesse ser encarado como um fundamento sobre o qual se ergueram as experincias artsticas daquele perodo, Obra aberta , no fundo, uma reflexo sobre:

    1 Este texto apresenta alguns aspectos abordados na dissertao de mestrado intitulada Obra aberta:

    teoria da vanguarda literria nas obras terico-crticas de Umberto Eco, defendida em fevereiro de 2006, sob orientao do Prof. Dr. Mrcio Seligmann-Silva e com o apoio da Fapesp. Aqui, estamos lidando, particularmente, com os captulos 1, 2 e 3 da referida dissertao; os demais (captulos 4 e 5) sero matria de outros eventuais textos. Dada a brevidade deste artigo, fazemos questo de remeter o leitor dissertao, a fim de um detalhamento dos argumentos defendidos.

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    (a) a definio geral de arte; (b) a definio de um novo tipo de potica contempornea, em que o intrprete se torna co-partcipe da obra, interferindo na sua forma final; e (c) a definio de uma potica que, mesmo conservando a forma final da obra como acabada e imutvel, admite, ainda assim, uma pluralidade de significados, a depender da abordagem do intrprete.

    Identificada, portanto, com as realizaes dos artistas dos anos do ps-guerra, que valorizaram uma potica calcada na aventura da forma, esse livro de Eco, no entanto, no configura, em si, o que identificamos como uma teoria da vanguarda. Apenas confrontando essa obra com os demais livros de Eco sejam os livros onde consta uma teoria semitica tout court (Eco 1968b, 1971 e 1975), sejam os livros dedicados s questes levantadas pela teoria da formatividade (Eco 1968a) e anlise e crtica literria das obras de massa (Eco 1964 e 1978) que possvel apontar para um conceito de vanguarda propriamente econiano. Ainda que no seja a preocupao central de Eco esboar, nesse conjunto de obras terico-crticas, uma definio de vanguarda, no resta dvida de que o rol de problemas abordados e as concluses a que Eco chega permitem-nos avanar algumas hipteses no sentido de uma definio de vanguarda. Em particular, a confrontao de duas dicotomias apresentadas a saber, a dicotomia entre obra aberta e obra fechada e a dicotomia entre vanguarda e kitsch (Eco 1962 e 1964, respectivamente), estudadas sob o escopo da semitica de Eco (1968c, 1971, 1975), abre caminho para as seguintes questes: (a) essas duas dicotomias se correspondem, ou seja, h uma homologia entre os elementos de uma e de outra?; e (b) em se correspondendo, pode-se dizer que, a partir da, h a possibilidade de se esboar algo como uma teoria da vanguarda, conforme propusemos como objetivo da pesquisa que este texto retoma? Essas questes, na nossa avaliao, orientam todo um trabalho investigativo em torno de uma definio geral de vanguarda, definio que passa pela semitica, pela anlise da cultura de massa e dos mas media e, principalmente, pela relao da linguagem artstica com a veiculao de ideologias conservadoras ou contestadoras.

    2. A DICOTOMIA ENTRE OBRA ABERTA E OBRA FECHADA

    A dicotomia entre obra aberta e obra fechada fundamenta-se em princpios semiticos definidos nas obras de teoria semitica de Eco (1968b, 1971 e 1975). De acordo com Eco, existem dois tipos de mensagens: de um lado, mensagens com alto grau de redundncia, que buscam nos cdigos semntico e pragmtico os meios mais adequados de garantir, se no uma nica possibilidade interpretativa (raramente atingvel, dado o carter eminentemente ambguo e arbitrrio do signo), ao menos uma gama limitadssima de possibilidades; a mensagens desse tipo, Eco nomeou mensagens referenciais. De outro lado encontram-se aquelas mensagens que, valendo-se dos cdigos semntico e pragmtico justamente com o intuito de subvert-los, procuram produzir no intrprete um alto grau de ambigidade, fazendo com que caiba ao intrprete decidir quais so as respostas interpretativas mais convenientes; essas mensagens ambguas ganham o nome de mensagens estticas. Eco nota que as mensagens do primeiro tipo so mais comuns linguagem cotidiana, ao passo que as

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    segundas so mais prprias da comunicao esttica/artstica. Em funo disso, Eco assevera que a caracterstica fundamental da arte seu pressuposto bsico, portanto seria a abertura: dado que as obras de arte se valem de mensagens estticas, e dado que essas mensagens veiculam uma quantidade indefinida de possibilidades interpretativas, a arte, de um modo geral, em confronto com o uso cotidiano da linguagem, manifesta-se aberta ao jogo semitico de descoberta ativa de significados. Temos a, portanto, uma primeira definio de obra aberta que no pode nos escapar, e que pode ser formulada pela seguinte proposio: obra aberta toda a obra de arte.2

    Contudo, o conceito de obra aberta no diz respeito exclusivamente a uma definio geral de arte, mas sim a uma potica determinada. Do ponto de vista das realizaes artsticas, h obras que, ainda que abertas, so, todavia, facilmente frudas pelo intrprete, resultando, da, numa espcie de rebaixamento de sua ambigidade primordial. Em funo disso, essas obras, por serem compostas de mensagens que no procuram subverter os cdigos sobre os quais se apiam, ao se confrontarem com o pblico, tendem a ser facilmente assimiladas e, com efeito, de acordo com Eco (1964 e 1978), h obras que so evidentemente pr-concebidas com esse intuito (veremos isso adiante). Opondo-se a esse tipo de obra embotada, existe um grupo de obras que procura levar ao intrprete um alto grau de ambigidade, de polissemia, ampliando consideravelmente o horizonte de expectativas que a arte, por sua natureza aberta, j transmite. Essas obras, no entender de Eco (1962), so as obras abertas:

    A potica da obra aberta tende [...] a promover no intrprete atos de liberdade consciente, p-lo como centro ativo de uma rede de relaes inesgotveis, entre as quais ele instaura sua prpria forma, sem ser determinado por uma necessidade que lhe prescreva os modos definitivos de organizao da obra fruda; mas [...] poder-se-ia objetar que qualquer obra de arte, embora no se entregue materialmente inacabada, exige uma resposta livre e inventiva, mesmo porque no poder ser realmente compreendida se o intrprete no a reinventar num ato de congenialidade com o autor. Acontece, porm, que essa observao constitui um reconhecimento a que a esttica contempornea s chegou depois de ter alcanado madura conscincia crtica do que seja a relao interpretativa, e o artista dos sculos passados decerto estava bem longe de ser criticamente consciente dessa realidade; hoje tal conscincia existe, principalmente no artista

    2 necessrio um esclarecimento: evidentemente, no se pode definir o que ou o que no uma obra

    de arte somente com este vago conceito de abertura. Fenomenologicamente, qualquer indivduo est apto a considerar abertas as mensagens mais dspares, de modo que, eventualmente, algum poderia considerar obra de arte uma mensagem altamente redundante (ou o contrrio, isto , rejeitar como artsticas obras que ele no percebe, a despeito de outrem, como aberta). Isso nos levaria a um silncio a respeito do conceito de arte que, segundo Eco (1968a), no benfico para a pesquisa em esttica. Assim, como alternativa a esse modelo puramente baseado na arbitrariedade do intrprete, Eco lida com um estruturalismo metodolgico (Eco 1968b) que coloca os julgamentos relativos abertura de uma mensagem no plano do cdigo compartilhado (e, portanto, intersubjetivo). Segundo Eco (1971 e 1975), pode-se pensar o cdigo como uma estrutura n-dimensional formada por unidades culturais (sememas) ligadas umas s outras por liames; essa estrutura malevel e se reorganiza conforme os usurios do cdigo estabelecem relaes inusitadas entre os elementos dessa cadeia, mas relativamente estvel no momento em que o intrprete se confronta com a obra fruda. Assim, os julgamentos acerca da abertura de determinada mensagem passa necessariamente por um universo do j-dito, devidamente estabelecido pelo uso constante do cdigo, que constrange ou possibilita as interpretaes. A bem da verdade, de acordo com Eco, mesmo as mensagens estticas so abertas a uma gama de possibilidades interpretativas que, no fundo, dependem dessa organizao primria do cdigo; mesmo quando subvertem o cdigo, sempre atravs dos caminhos possibilitados pela sua estrutura (que malevel em alguns pontos, mas no em outros) que possvel produzir mensagens propositalmente ambguas.

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    que, em lugar de sujeitar-se abertura como fator inevitvel, erige-a em programa produtivo e at prope a obra de modo a promover a maior abertura possvel. [Eco 1962, pp. 41-42.]

    Temos, portanto, o seguinte raciocnio: para ser artstica, uma obra deve se compor de mensagens estticas, e, por conta disso, apresenta naturalmente a abertura como caracterstica bsica; entretanto, mesmo entre as obras de arte existem graus de abertura que elevam ou rebaixam as possibilidades interpretativas: s primeiras, corresponde o termo obra aberta, ao passo que s segundas, por oposio lgica, obras fechadas. Eis, portanto, a primeira das dicotomias trabalhadas por Eco. A seguir, passaremos em revista a dicotomia entre vanguarda e kitsch.

    3. A DICOTOMIA ENTRE VANGUARDA E KITSCH

    Vimos acima que h dois tipos de obras de arte, segundo Eco: de um lado, obras que amplificam os sentidos possveis, configurando-se como extremamente abertas para os intrpretes, desafiando-os a entrar no jogo semntico de descobertas de significados; de outro lado, obras que conservam um grau muito reduzido de abertura, lanando mo de procedimentos retricos embotados, caindo na fruio quase que instantnea. Essas duas possibilidades artsticas discriminadas por suas caractersticas elementares, compreendidas como poticas distintas, programas especficos teorizados e separados dicotomicamente tm sua contrapartida concreta no universo artstico do ps-guerra. E quem nos fornece uma idia bastante clara dessa diferena de procedimentos artsticos o prprio Eco. verdade que Eco (1964) no est pensando exclusivamente na dicotomia entre obra aberta e obra fechada; mas a sua anlise da relao entre a vanguarda e o kitsch como opostos no que tange ideologia veiculada por esses dois tipos de procedimentos artsticos apresenta muitas semelhanas com o que foi esboado anteriormente (Eco 1962). Para compreender melhor essa questo, temos que recobrar a definio de kitsch, dada por Eco.

    Segundo Eco (1964), no se deve encarar o kitsch apenas como a arte do mau gosto ou de uma classe social subalterna, como fizeram alguns tericos que Eco critica.3 Identificar o kitsch simplesmente com o conceito genrico de cultura de massa pode nos fazer incorrer em srios equvocos. O semioticista italiano sustenta que a cultura de massa foi alvo de imponderadas reaes que, no mais das vezes, tinham como alvo a massa em si, e no propriamente a arte veiculada pelos mass media. A intolerncia cultura de massa, de acordo com Eco, no deve ser justificada pelo seu suposto prestgio junto s camadas populares que fruem essas obras. Eco afirma que qualquer um pode, em momentos diferentes do dia, ouvir uma complexa sinfonia e ler

    3 Para maiores referncias, ver o captulo Cultura de massa e nveis de cultura (Eco 1964, pp. 33-

    67). Citamos, em particular, um trecho que ilustra bem a crtica de Eco: A falha est em formular o problema nestes termos: bom ou mau que exista a cultura de massa? (mesmo porque a pergunta subentende a desconfiana reacionria na ascenso das massas, e pretende pr em dvida a validade do progresso tecnolgico, do sufrgio universal, da educao estendida s classes subalternas etc.). Quando na verdade o problema : do momento em que a presente situao de uma sociedade industrial torna ineliminvel aquele tipo de relao comunicativa conhecido como conjunto dos meios de massa, qual a ao cultural possvel a fim de permitir que esses meios de massa possam veicular valores culturais? (Eco 1964, p. 50).

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    um romance de grande tiragem. Nesse sentido, necessrio, a partir de critrios semiticos, definir quais so as verdadeiras implicaes que uma arte de massa tem relativamente ao pblico que a frui e, comparativamente com obras mais sofisticadas, quais as suas desvantagens. Pensando nisso, Eco encontra no kitsch o grande vilo da cultura de massa: Eco (1964) assevera que o kitsch, antes de ser um produto espontneo da arte de massa, vale-se das conquistas da arte de vanguarda, parasitando entre uma arte mais sofisticada e aberta e uma cultura de massas ch, rebaixando os procedimentos artsticos mais revolucionrios, tornando-os mais comercialmente viveis e aumentando a circulao deles atravs de obras comprometidas apenas com o sucesso comercial. Dessa forma, o kitsch representa, no entender de Eco, uma traio da vanguarda, na medida em que colabora para o embotamento. Com isso, temos obras que perniciosamente veiculam uma mensagem embotada, descontextualizada, depauperada, mas que, contrariamente a isso, vendem-se como obras cujo valor artstico e, por vezes, pedaggico insubstituvel e inquestionvel. justamente esse oportunismo do kitsch que, na opinio de Eco, deve ser combatido.

    Mas combatido por quem? Ora, o embotamento produzido pelo kitsch provoca na arte da vanguarda uma necessidade de renovao dos seus procedimentos, o que faz com que os artistas experimentem incessantemente novas tcnicas e novos procedimentos a fim de conseguir restituir s obras de arte a abertura perdida e comprometida pela vulgarizao promovida pelo kitsch. Assim, temos uma relao dialtica entre vanguarda e kitsch: (a) a vanguarda estabelece, com suas obras abertas, altos padres artsticos que encerram experincias estticas de alto nvel, mas que, por conta dos desafios lanados aos intrpretes, geralmente interessam a um pblico restrito; (b) o kitsch, por sua vez, procura identificar alguns elementos que podem ser importados, e os insere em obras que no conseguem, na sua estrutura, sustentar uma abertura necessria, e, no obstante, os veiculam exaustivamente dito de outro modo, o kitsch, ao isolar os elementos da arte de vanguarda, est, ao tir-los do seu contexto original, determinando as formas de fruio, geralmente identificando esses procedimentos com uma mensagem que apenas diz que tais aspectos so boa arte, ou arte fina, escamoteando tudo aquilo que no diz respeito a essa valorizao da forma em si (e que, naturalmente, aparece nas obras originais); e, finalmente, (c) a vanguarda, diante disso, sente-se impelida em reformular os procedimentos artsticos e revitalizar a abertura, perdida pela veiculao exaustiva e descontextualizada feita pelo kitsch. Temos, a, o que Eco (1964) chamou de uma dialtica entre norma e inveno.

    Ora, essa dicotomia (mas aqui mais valeria a pena dizer dialtica) tem na sua fundamentao a mesma orientao terica que atravessa a dicotomia entre obra aberta e obra fechada: ambas as dicotomias se fundam na questo da abertura. Diante disso, podemos j responder a uma das perguntas deixadas acima, na introduo: definitivamente, as duas dicotomias tm homologias que nos permitem dizer, com relativa segurana, que as obras de vanguarda constituem obras abertas e as obras do kitsch, obras fechadas. Essa constatao, entretanto, tem outros desdobramentos que so imprescindveis para se entender o papel da vanguarda como obra aberta face ao kitsch. Eco (1964) faz questo de dizer que a dicotomia vanguarda e kitsch no constitui uma axiologia de valores, necessariamente. Contudo, nas observaes que faremos a seguir, por mais que as teses de Eco no apontem no sentido de uma execrao da

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    cultura de massa tout court, parece-nos evidente que h uma subentendida valorizao da vanguarda enquanto potica que veicula uma ideologia contestadora (revolucionria, no limite) dos valores admitidos por uma cultura de massa conservadora (e, nesse caso, o kitsch destaca-se mais).4 o que veremos a seguir.

    4. A IDEOLOGIA DA VANGUARDA

    Toda a reflexo feita acima ganha relevncia quando pensamos na relao que a abertura da obra de arte tem com o cdigo que lhe serve de base, conforme apontada por Eco em sua obra de teoria semitica (Eco 1971 e 1975). De acordo com o semioticista italiano, a abertura provocada pelas mensagens estticas produz mudanas sensveis na configurao do cdigo e, em conseqncia, mudanas na viso de mundo dos usurios do cdigo. A idia subjacente a esse argumento a de que a repetio de determinadas mensagens gera nos usurios de um cdigo hbitos interpretativos que cristalizam determinadas formas retricas e determinados contedos. Por conseguinte, um intrprete, diante de uma mensagem exaustivamente repetida, habitualmente se comporta de maneira indolente e , em tese, forado a se comportar assim, uma vez que o uso reiterado do cdigo encarregou-se de fortalecer relaes entre funes sgnicas de uma maneira bastante eloqente , optando por interpretar a mensagem de acordo com padres pr-estabelecidos. Porm, diante de uma mensagem esttica desafiadora dos hbitos comunicativos, o intrprete se v obrigado a formular hipteses e buscar caminhos interpretativos inusitados; ele em tese, tambm convidado a interpretar aquela mensagem original de maneira igualmente original, estabelecendo relaes inditas entre as unidades culturais do cdigo. Essa situao promove uma manipulao do cdigo que revela ilaes inesperadas, deslocamentos metafricos e metonmicos, que atuam sobre o cdigo que serve de base para a conceitualizao das experincias do usurio/intrprete, modificando a sua estrutura primordial.5 Nesse sentido, o intrprete tem condies de, a partir desse momento, conceitualizar o mundo de uma forma relativamente distinta daquela que lhe servia antes da fruio da obra. O trecho abaixo define, em termos semiticos, a operao produzida pelas mensagens estticas da obra aberta sobre o cdigo:

    O uso esttico da linguagem merece ateno por vrias razes: (i) um texto esttico implica um trabalho particular, qual seja, uma manipulao da expresso [...]; (ii) essa manipulao provoca (e provocada por) um reajustamento do contedo [...]; (iii) esta dupla operao, produzindo um gnero de funo sgnica altamente idiossincrtica e original [...], vem refletir-se, de certa forma, nos cdigos que servem de base operao esttica, provocando um processo de mutao de cdigo [...]; (iv) a operao completa, mesmo quando visa natureza dos cdigos, produz com freqncia um novo tipo de viso de mundo [...]; (v) enquanto visa a estimular um complexo

    4 interessante a anlise da ideologia da arte de massa produzida no sculo XIX, feita por Eco (1978).

    Nessa obra, Eco ilustra como os folhetins rocambolescos ajudaram a propagar uma ideologia pequeno-burguesa altamente conservadora, mediante enredos intrincados e finais consoladores. Evidentemente que essa ideologia perpassa uma grande parte das obras da cultura de massa, como demonstrou Eco (1964) em algumas anlises.

    5 Sobre esse aspecto, remetemos o leitor aos captulos Gerao de mensagens estticas numa lngua

    ednica e Semitica das ideologias (Eco 1971, pp. 109-123; pp. 125-133, respectivamente).

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    trabalho interpretativo no destinatrio, o emitente de um texto esttico focaliza sua ateno nas suas possveis relaes, de modo que tal texto representa um retculo de atos locutivos, ou comunicativos, que objetivam solicitar respostas originais [...]. [Eco 1975, p. 222, destaques do autor.] Poder-se-ia afirmar, portanto, que a obra de arte tem a capacidade de produzir

    reajustamentos de vises de mundo, o que configura, assim, um estatuto ideolgico da esttica. Vista dessa forma, uma obra de arte no objeto de puro deleite; em vez disso, atua de forma definitiva na conscincia crtica dos intrpretes, e o alcance dessa transformao depende, evidentemente, do grau de abertura instaurado pela obra.

    Voltando, ento, dicotomia entre vanguarda e kitsch, e levando em considerao os argumentos arrolados imediatamente acima, temos a seguinte situao: (a) o kitsch, na sua insistncia em veicular mensagens embotadas, favorece (e aposta) num controle das respostas interpretativas do seu pblico, configurando, assim, um uso ideologicamente conservador do cdigo, na medida em que refora hbitos que, por definio, mantm estvel o cdigo e cristaliza vises de mundo, com o intuito de, ao convergir as interpretaes possveis, atingir o maior pblico possvel e lograr xito comercial; e (b) a vanguarda, por sua vez, ao se posicionar contra o controle das respostas interpretativas e ao apostar na abertura no mximo grau, promove as transformaes nas vises de mundo dos intrpretes, assumindo uma posio ideologicamente revolucionria face ao conservadorismo esttico do kitsch. Neste ponto, importante fazer uma ressalva: levando em considerao os postulados defendidos em sua obra de teoria semitica, Eco (1971 e 1975) considera ideolgicas apenas aquelas mensagens que cristalizam as formas retricas a determinadas pores de contedo, reforando os hbitos interpretativos. Assim, poderamos dizer que apenas quando h um fechamento da mensagem que h um uso ideolgico do cdigo. E, de acordo com essa idia, apenas o kitsch corresponderia a uma arte ideolgica ainda que, como vimos sustentando, ideologicamente espria. Entretanto, no se pode negar que, na provocao da obra aberta (e, conseqentemente da vanguarda, uma vez que esses dois conceitos se sobrepem), subjaz tambm uma ideologia: a tentativa de no fechar as mensagens pressupe, num nvel de reflexo superior, a ideologia de que a liberdade criativa do intrprete prefervel ao controle das respostas durante a fruio.6

    6 H ainda mais um ponto importante a ser questionado: estamos falando de ideologias apenas com

    relao a liberdades interpretativas, mas no estamos abordando a qualidade das mensagens veiculadas por uma obra de arte; dito de outro modo, uma obra de arte que acintosamente levasse a uma nica interpretao, cuja forma de contedo poderia ser formulada por uma expresso como igualdade entre os povos, que, em si, representa uma ideologia salutar, deve ser considerada espria? Evidentemente que no e nem essa a idia que defendemos neste trabalho. Apenas queremos salientar o fato de que arte caberia, talvez, a tarefa de garantir liberdades de expresso, deixando crtica, poltica, tica, enfim, outros terrenos da res publica, a deciso a respeito de que tipo de ideologia ou princpio bsico de vida os cidado devem tomar. Em outras palavras, o panfletarismo em arte pode, eventualmente, descambar para censuras e controles ideolgicos dos mtodos e manifestaes artsticas, violando, portanto, os prprios princpios de liberdade e igualdade subjacentes a mensagens como igualdade entre os povos. A liberdade deve ser exercida em todos os aspectos da vida pblica, e definida sempre dentro de relaes intersubjetivas; mas deve caber apenas a cada indivduo em particular reconhecer os princpios mais salutares que deve perseguir, com acurada viso crtica. Se arte couber o papel de normativamente ditar os padres para uma sociedade ainda que bem intencionada , perde-se, assim, toda a dimenso crtica e co-participao interpretativa do pblico, favorecendo uma autonomizao da arte nos moldes definidos por Brger (1993). Nesse sentido, mais

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    Nesse sentido, no seria incorreto assumir que a vanguarda corresponde a uma ideologia revolucionria, em se tratando de programa artstico.

    E, com isso, o conceito de vanguarda ganha outros contornos: pensando-se apenas em relao aos procedimentos aplicados pela arte de vanguarda na tentativa de criar o efeito de abertura, poderamos pensar que a arte de vanguarda corresponderia to-somente a um formalismo incuo, um mero exibicionismo de tcnicas a fim de inovaes formais, sem um comprometimento com a relao que a arte tem com questes de ordem tica, poltica etc. Todavia, com a concluso apontada acima, ultrapassamos essa conscincia rumo a um conceito de vanguarda mais abrangente, segundo o qual s inovaes da forma correspondem mudanas sensveis no plano do contedo, e na forma como os intrpretes, a partir disso, reconfiguram o seu sistema de expectativas e conceitualizao do mundo; decorrente disso, podemos afirmar que a vanguarda , enfim, uma potica que transcende as questes estticas, desembocando no terreno da ideologia.

    Dessa forma, temos tambm que o conceito de vanguarda extrapola as realizaes concretas do comeo e dos meados do sculo XX (respectivamente, as vanguardas histricas e as neovanguardas), servindo-nos para pensarmos as obras de arte sempre que elas estiverem inseridas numa conjuntura que envolve a cultura de massa e, sobretudo, o kitsch. Isto , o conceito de vanguarda serve-nos tambm para identificar, atualmente, procedimentos que visam a uma mudana significativa nas representaes de mundo dos intrpretes das obras. Nesse sentido, podemos, inclusive, questionar alguns tericos que sustentam o fim das vanguardas (por exemplo, Bauman 1997; Eagleton 1990, 1996; e Subirats 1986), contrariando a tese de que a arte do Ps-modernismo, momento histrico em que estamos imersos, apenas uma repetio tediosa de formalismos incuos. Foi o que fizemos na dissertao a que este artigo faz referncia, quando trabalhamos com o conceito de Ps-modernismo, suas caractersticas mais relevantes e sua capacidade de engendrar a abertura requerida pela vanguarda como pr-requisito da arte ideologicamente revolucionria.

    5. CONCLUSO

    Neste texto, tentamos esboar uma definio do conceito de vanguarda a partir das dicotomias esboadas por Eco em suas principais obras terico-crticas. Como resultado disso, temos que: (a) a dicotomia entre obra aberta e obra fechada separa as obras de acordo com o grau de abertura, de convite ao intrprete em participar ativamente da produo de significados durante a fruio: a primeira aberta porque sugere ao leitor uma gama indefinida de possibilidades interpretativas, ao passo que a segunda fechada porque impe ao intrprete padres e hbitos interpretativos; (b) a dicotomia entre vanguarda e kitsch separa duas poticas que, diante da abertura ou seja, diante da possibilidade de envolver o intrprete na descoberta ativa de significados , se posicionam de modos distintos: a primeira procura usar a abertura como ferramenta

    interessante, em nossa opinio, continuar a garantir as liberdade de criao e interpretao, do que encerrar conceitos, vises de mundo e regras em mensagens estticas.

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    para possibilitar liberdades interpretativas criativas e originais, ao passo que a segunda promove um rebaixamento da abertura a fim de favorecer a rpida e fcil consumao da obra; (c) observamos que essas duas dicotomias se correspondem no que toca o conceito de abertura, de modo que podemos estabelecer uma axiologia que pe, de um lado, a vanguarda e a obra aberta e, de outro, o kitsch e a obra fechada; (d) identificamos o fechamento das mensagens com um uso ideologicamente conservador do cdigo, na medida em que refora hbitos e impossibilita liberdades criativas que podem eventualmente culminar em reformulaes do cdigo e da viso de mundo do intrprete/usurio, ao passo que identificamos a abertura com o contrrio disso e, portanto, uma ideologia revolucionria; e, enfim, (e) pela relao que tm a obra aberta e a vanguarda, terminamos por afirmar que o conceito de vanguarda pressupem uma potica ideologicamente revolucionria, contestadora e contrria ao kitsch, consolador e conservador.

    Mais uma vez, afirmamos que este texto retoma muito sinteticamente as idias desenvolvidas na dissertao, que tem em torno de 250 pginas. Por isso, para maiores esclarecimentos sobre quaisquer um dos aspectos abordados; para um aprofundamento do tema e da bibliografia; e, finalmente, para o conhecimento dos outros captulos no considerados aqui, remetemos o leitor dissertao. _________________________________

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