238 328-1-pb

9
1 Os conceitos de memória impedida, memória manipulada e esquecimento de reserva em “A memória, a história, o esquecimento” de Paul Ricoeur: entre o trauma e a conciliação Caroline Cristina Souza Silva * Juliana Ventura de Souza Fernandes * * Mateus Henrique de Faria Pereira *** I. Introdução Sustentando-nos sobre a categoria da justa memória de Paul Ricoeur, propomo-nos a discutir os conceitos de memória impedida, memória manipulada e esquecimento de reserva, compreendidos por este autor na perspectiva dos usos e abusos da memória. A questão revela-se importante diante de suas implicações à prática historiográfica e à análise dos usos que o tempo presente possa fazer de seu passado histórico. Para tanto, retomaremos as discussões conceituais e referências a outros autores, destacando seus apontamentos acerca do lugar da historiografia na cultura. Os efeitos da memória impedida serão tratados contiguamente à possibilidade de repetição de experiências traumáticas e à necessidade de trabalho de luto na história. O campo da memória manipulada será retomado por sua dimensão mais ampla de abuso da memória e o esquecimento de reserva por sua relação com a transmissão e o indizível na história. Este último parece ligado àquilo que no esquecimento estaria mais próximo à reversibilidade, podendo se constituir em alternativa para elaboração histórica, no limiar entre o que há de destruidor e fundador no esquecimento. As relações entre memória impedida, manipulada e esquecimento situar-se-ão, deste modo, no campo da impossibilidade de narrativização completa e nos conduzirá à questão de como o presente pode falar de seu passado e de que forma se pode transmitir determinada experiência. Por fim, discutiremos em que medida o horizonte ideal, sugerido pelo autor, de * Aluna do Curso de História da Universidade Federal de Ouro Preto. Integrante do Grupo de Estudos Ler Ricoeur. Participante do Projeto de Pesquisa Perdão e História? Odisséias do conceito de perdão na obra de Paul Ricoeur. Financiamento: FAPEMIG. * * Aluna do Curso de História da Universidade Federal de Ouro Preto. Bacharel em Psicologia e Psicóloga pela Universidade Federal de São Carlos. Integrante do Grupo de Estudos Ler Ricoeur. Participante do Projeto de Pesquisa Perdão e História? Odisséias do conceito de perdão na obra de Paul Ricoeur. Financiamento: FAPEMIG. *** Professor Adjunto do Departamento de História da Universidade Federal de Ouro Preto. Orientador. Coordenador do Projeto de Pesquisa Perdão e História? Odisséias do conceito de perdão na obra de Paul Ricoeur. Financiamento: FAPEMIG.

Transcript of 238 328-1-pb

Page 1: 238 328-1-pb

1

Os conceitos de memória impedida, memória manipulada e esquecimento de reserva em

“A memória, a história, o esquecimento” de Paul Ricoeur: entre o trauma e a

conciliação

Caroline Cristina Souza Silva∗

Juliana Ventura de Souza Fernandes∗∗

Mateus Henrique de Faria Pereira***

I. Introdução

Sustentando-nos sobre a categoria da justa memória de Paul Ricoeur, propomo-nos a

discutir os conceitos de memória impedida, memória manipulada e esquecimento de

reserva, compreendidos por este autor na perspectiva dos usos e abusos da memória. A

questão revela-se importante diante de suas implicações à prática historiográfica e à análise

dos usos que o tempo presente possa fazer de seu passado histórico. Para tanto, retomaremos

as discussões conceituais e referências a outros autores, destacando seus apontamentos acerca

do lugar da historiografia na cultura. Os efeitos da memória impedida serão tratados

contiguamente à possibilidade de repetição de experiências traumáticas e à necessidade de

trabalho de luto na história. O campo da memória manipulada será retomado por sua

dimensão mais ampla de abuso da memória e o esquecimento de reserva por sua relação

com a transmissão e o indizível na história. Este último parece ligado àquilo que no

esquecimento estaria mais próximo à reversibilidade, podendo se constituir em alternativa

para elaboração histórica, no limiar entre o que há de destruidor e fundador no esquecimento.

As relações entre memória impedida, manipulada e esquecimento situar-se-ão, deste

modo, no campo da impossibilidade de narrativização completa e nos conduzirá à questão de

como o presente pode falar de seu passado e de que forma se pode transmitir determinada

experiência. Por fim, discutiremos em que medida o horizonte ideal, sugerido pelo autor, de

∗ Aluna do Curso de História da Universidade Federal de Ouro Preto. Integrante do Grupo de Estudos Ler Ricoeur. Participante do Projeto de Pesquisa Perdão e História? Odisséias do conceito de perdão na obra de Paul Ricoeur. Financiamento: FAPEMIG. ∗∗ Aluna do Curso de História da Universidade Federal de Ouro Preto. Bacharel em Psicologia e Psicóloga pela Universidade Federal de São Carlos. Integrante do Grupo de Estudos Ler Ricoeur. Participante do Projeto de Pesquisa Perdão e História? Odisséias do conceito de perdão na obra de Paul Ricoeur. Financiamento: FAPEMIG. *** Professor Adjunto do Departamento de História da Universidade Federal de Ouro Preto. Orientador. Coordenador do Projeto de Pesquisa Perdão e História? Odisséias do conceito de perdão na obra de Paul Ricoeur. Financiamento: FAPEMIG.

Page 2: 238 328-1-pb

2

uma memória apaziguada bem como do esquecimento feliz é possível e desejável na

elaboração da narrativa histórica.

II. A Memória Impedida

Antes de adentrarmos nas discussões acerca de usos de abusos da memória, é relevante

ter em consideração o lugar destacado, que Paul RICOEUR (2008) confere à memória em seu

livro “A memória, A história, O esquecimento”. Não são poucas as passagens,

particularmente na primeira parte de seu livro intitulada “Da memória e da reminiscência” em

que a memória é tratada como o ponto de enraizamento da historiografia. Entretanto, pode-se

supor que Ricoeur compreende algumas conseqüências e perigos implícitos nesta opção

teórica e metodológica. Diante disto, dedica parte de sua narrativa1 ao esclarecimento das

dimensões abusivas da apropriação da memória para o tratamento dos vestígios e testemunhos

visando uma escrita historiográfica.

Os abusos da memória são tratados pelo autor a partir de três chaves interpretativas.

Referente à memória impedida, Paul Ricoeur recorre a categorias clínicas e terapêuticas

provenientes principalmente da psicanálise freudiana, procurando vincular essa “patologia”,

para utilizarmos seu termo, a experiências humanas e históricas fundamentais. Quanto à

manipulação da memória, retomará o conceito de instrumentalização, dependente da crítica às

ideologias, destacando que é neste ponto que as noções de abuso da memória e abuso do

esquecimento são mais pertinentes. A terceira chave, que não será alvo de nossa discussão

pormenorizada, é o dever de memória, categoria fundamental para a discussão da memória

obrigada.

Dito isto, tratemos da patologia da memória impedida.

Paul Ricoeur, ao fazer uso de categorias forjadas pelo debate analítico, questiona em

que medida é autorizável a aplicação destas à análise de memórias coletivas (RICOEUR,

2008: 83). Embora não nos pareça conclusivo quanto à resposta, seu debate posterior acerca

das relações entre memória coletiva e memória individual2 parece autenticar a existência

dessas duas dimensões da memória como entidades próprias; que seriam aproximáveis pelo

conceito de “próximos” que ligaria o eu e os coletivos. Desta maneira, Ricoeur, ainda que

1 Para esta discussão, ver principalmente “A memória exercitada: uso e abuso” (p. 71-104) e “O esquecimento” (p. 423-462), do mesmo título. 2 “A Memória Coletiva” (p.105-142), do mesmo título.

Page 3: 238 328-1-pb

3

reconheça seus problemas, utiliza-se dessas categorias analíticas para fundamentar sua

discussão sobre a memória, particularmente a memória impedida.

Para isto, apropria-se de dois textos fundamentais de Freud: “Recordar, Repetir e

Elaborar” (1914) e “Luto e Melancolia” (1915).

Quanto ao primeiro, Ricoeur evidencia logo ao início de sua análise que a imposição

destes três verbos seqüenciais sugere que, quando se trata da memória fala-se em um trabalho.

Trabalho do analista e trabalho do analisando. “Freud enuncia duas propostas terapêuticas que

serão para nós da maior importância no momento de transpormos a análise clínica ao plano de

memória coletiva, como nos consideramos autorizados a fazer nesse estágio da discussão”

(RICOEUR, 2008: 84). Ao analista caberia, por meio da transferência, proporcionar o espaço

para que a manifestação patológica pudesse ocorrer. Ao analisando, disposição para se

aproximar de dimensões mórbidas, não considerando desprezíveis suas ocorrências. É essa a

condição para que haja “reconciliação”, termo que retomamos de Ricoeur. Assim, estamos

diante de um trabalho, trabalho este que depende ativamente do analisando.

Em relação ao “Luto e Melancolia”, Ricoeur apontou uma dificuldade maior ainda na

transposição da memória individual para a coletiva. Se no primeiro artigo, o trabalho poderia

ser uma dimensão sugestiva dessa ligação do sujeito ao coletivo, em “Luto e Melancolia” essa

aproximação pode ser menos evidente. Entretanto, aos propósitos argumentativos de Ricoeur,

parece fundamental a categoria de “luto” elaborada por Sigmund Freud. Na apropriação do

autor, a perda de um objeto concreto não se refere a sua perda instantânea no plano psíquico.

Em um primeiro momento após a perda, conduz-se um superinvestimento na representação do

objeto em uma tentativa de mantê-lo vivo em sua representação. Está-se, a partir daí, diante

de duas possibilidades: a primeira refere-se à impossibilidade de abandono desse investimento

no objeto perdido, conduzindo à melancolia; a segunda é a realização de um trabalho de luto,

que embora doloroso, promove, ao final a liberação da energia psíquica para investimento em

outros campos.

Ricoeur, nos parece, encontrou nesta discussão duas categorias fundamentais para o

desenvolvimento de suas teses posteriores sobre o perdão: o trabalho de elaboração e o

trabalho de luto. A discussão em bases teóricas freudianas retoma também a questão

indestrutibilidade do passado vivido, cabendo, diante desta impossibilidade, a criação de

arranjos para lidar com o passado. A menção à teoria freudiana do recalque pôde levar à

sustentação conceitual sobre as teses acerca da dimensão traumática do vivido, caracterizada

por uma repetição que não pode ser interpretada como mera manifestação de lembrança.

Page 4: 238 328-1-pb

4

Portanto, é possível compreender que o recalcado emergente no sujeito marcado pelo

trauma tem como principal função a substituição de lembranças, e provavelmente será através

da repetição da descrição dos fatos traumáticos e na resistência à elaboração que o analisando

se apoiará. Para Freud, a reprodução dos relatos de fatos traumáticos é interpretada como

ação, ou seja, o analisando, ao descrever o acontecimento não reproduz uma lembrança. Em

verdade, há todo um processo de trabalho pelo qual passa a memória na busca de

rememoração. O relato é, ativamente, modificado a partir da ocasião traumática. Ricoeur

apropria-se dessas formulações de Freud com o objetivo de superar o problema do recalque e

da compulsão pela repetição, chaves para elucidar problemas encontrados com relação à

memória coletiva. Em resposta a estes problemas, a categoria de “elaboração” seria evocada

para fazer frente às questões mencionadas. Por meio deste processo, a lembrança recalcada

será liberada e o analisando finalmente poderá construir uma relação de conformidade com

seu passado.

É com relação ao “passado indestrutível” a qual Freud menciona que Ricoeur faz uso

do trabalho “Psicopatologia da Vida Cotidiana” para explicar melhor o fator de desligamento

entre o presente e o passado. Os desenvolvimentos freudianos neste último, apoiados

principalmente no tema do esquecimento, serviriam à análise daquilo que ocorre nas relações

em espaço público, tendo, portanto, alguma função para a análise da memória coletiva. As

manifestações inconscientes cotidianas, por vezes quase imperceptíveis, seriam o elo que

representa essa indestrutibilidade do passado, afirmando suas permanências no tempo

presente. No entanto, o que haveria de patológico residiria no esquecimento consciente de

impressões de um passado distante associado à formação de alterações nas lembranças,

podendo ser consideradas, em alguma medida, como falsas lembranças, medida usada em

defesa do inconsciente.

Para Paul RICOUER (2008:452-455), essas defesas são também possíveis de serem

observadas na vida cotidiana pública e se apresentam como questões à memória coletiva. É

nesse contexto que autor defende a possibilidade de transposição das categorias psicanalíticas

ao âmbito público e procura lançar luz à problemática encontrada com relação aos usos e

abusos da memória coletiva, tendo por base categorias de repetição e demanda de luto na

história. E lança mais um argumento: se as identidades constituem-se em dois pólos, o público

e o privado, a análise da construção das mesmas não poderia deixar de contemplar estas duas

vertentes discursivas quando se trata da discussão do trauma.

Ricoeur, com relação à memória coletiva, ressalta que não se pode desagregar o luto

da melancolia, pois o trabalho de luto é a principal forma de elaboração e evitação da última.

Page 5: 238 328-1-pb

5

Com isso, contextualiza a diferença entre o luto considerado uma experiência natural à perda,

e a melancolia, vista como patológica. A melancolia, além disso, seria mais avassaladora que

o luto, pois conduz a auto-condenações e culpa. O trabalho de luto, deste modo, quando bem

sucedido, tem como resultado aquilo que Ricoeur denomina “memória feliz”, a qual

proporciona, a partir de seu reconhecimento, a reconciliação com as lembranças traumáticas

com a minimização de danos psicológicos (RICOEUR, 2008: 425, 437-438, 453). Desse

modo, Ricoeur constrói um paralelo entre melancolia e compulsão à repetição e da elaboração

e o trabalho de luto.

Traumas desenvolvidos ao longo do processo histórico de uma comunidade podem, de

acordo com o autor, afetar a memória coletiva, tornando a construção dos sentidos do passado

um trabalho árduo e doloroso. É neste particular que a demanda de luto se insere. Como se

pode notar, o impedimento da memória é um obstáculo a elaboração de experiências

históricas traumáticas. Adverte Ricoeur que a ligação entre memória impedida e

esquecimento seria lesiva na medida em que impede que novas versões possam vir à

consciência e que no espaço público possam ser reconstruídas, conferindo sentidos outros ao

passado. O trauma não é apagável, mas pode ser conciliável.

III. A Memória Manipulada

Quando tratamos da memória manipulada, está-se no campo das relações de poder.

Poder na medida em que por meio das relações de força, versões da memória e esquecimento

são construídas e forjadas. Está-se no plano da instrumentalização da memória. De acordo

com o autor, “a especificidade dessa segunda abordagem situa-se no cruzamento entre a

problemática da memória e da identidade tanto coletiva como pessoal” (RICOEUR, 2008:

94). O problema aqui reside na consideração de que a mobilização de memórias está a serviço

da demanda e da reivindicação de identidades. Cognitivamente, a fragilidade que é cara a esta

discussão é a aproximação entre imaginação e memória.

As identidades se estabelecem em uma relação conflitiva com o tempo, tendo-se em

vista que, se identidade é aquilo que define, pode-se perguntar como ela pode ser garantida ao

longo do tempo. Outra questão reside na fragilidade que a identidade assume em confronto

com o outro, sendo que esta não pode ser presumida exclusivamente por seu possuidor; em

vez disso, ela é forjada nas relações sociais. Mencionamos a terceira causa de fragilidade da

identidade apontada por Ricoeur:

Page 6: 238 328-1-pb

6

“A terceira fragilidade é a herança da violência fundadora. É fato não existir

comunidade histórica alguma que não tenha nascido de uma relação, a qual se pode

chamar de original, com a guerra. O que celebramos com o nome de acontecimentos

fundadores, são essencialmente atos violentos legitimados posteriormente por um

Estado de direito precário, legitimados, no limite, por sua própria antiguidade, por sua

vetustez. Assim, os mesmos acontecimentos podem significar glória para uns e

humilhação para outros” (RICOEUR, 2008: 95)

As manipulações da memória são inseridas, desta maneira, nas tentativas de

expressões públicas de identidades e memórias. Estão expressas, de acordo com o autor, em

processos ideológicos, opacos por dois motivos. Primeiro, porque permanecem dissimulados.

Depois, porque se tratam de processos profundamente complexos em sua apreensão. As

ideologias são fundamentais à construção de narrativas e o papel da narrativa é indispensável

para a constituição e modificação da identidade. Entre narrativa e memória encontramos

assim uma problemática comum: a impossibilidade de memória e narração completas, o que

conduz sempre à seletividade, que se sustenta em determinados sistemas simbólicos vigentes.

A ideologia, segundo Ricoeur, exerce sua função de legitimação de sistemas de poder

veiculando ações à cultura social. O autor conclui que a narrativa pode ser uma armadilha

para a formação das lembranças, pois é a partir desse domínio que a memória tem a

possibilidade de ser reconstruída.

A memória como organização do esquecimento é ponto chave para entender a questão

da manipulação, pois é em relação a este último que a memória manipulada pode ser mais

bem compreendida. Entramos no campo dos abusos de memória e do esquecimento. Podem-

se nomear dois tipos de esquecimento: passivo e ativo. O primeiro é considerado como a

forma patológica de esquecimento (mais aproximado à memória impedida). O segundo

constitui-se por meio das relações sociais marcadas pela ideologia, políticas e relações de

poder, estando em aproximação à dimensão manipulativa. A indissociabilidade das dimensões

da memória e do esquecimento coloca-nos na extensão dos abusos a este último.

Em relação à escrita da história, Ricoeur atenta aos perigos da narrativa. As

manipulações da memória servem-se da história formal, conduzindo a que memórias

construídas por determinados grupos sejam tornadas “oficiais”. Sua implicação à construção

de memórias coletivas e das identidades é evidente. É importante que a história seja, de fato,

problematizadora preocupando-se com a veiculação de narrativas mais amplas, atentando

Page 7: 238 328-1-pb

7

criticamente às dimensões manipulativas. Redimensionar os sentidos do passado, por meio da

análise dos abusos de memória, é fundamental ao ofício.

IV. Esquecimento de Reserva

Para tratar do esquecimento, Ricoeur faz alusão à dimensão de profundidade.

“O esquecimento propõe uma nova significação dada à idéia de profundidade

que a fenomenologia da memória tende a identificar como distância, como o

afastamento, segundo uma fórmula horizontal da profundidade; o esquecimento

propõe, no plano existencial, uma espécie de perspectivação a que metáfora da

profundidade vertical tenta exprimir” (RICOEUR, 2008: 424).

É diante da questão da profundidade que o esquecimento de reserva é tratado. Em

oposição ao esquecimento por apagamento de rastros, o esquecimento de reserva contém em

si algo da ordem da reversibilidade. Neste sentido, ele se aproximaria de maneira mais

positiva à dimensão de elaboração histórica. O esquecimento de reserva é sustentado pela

hipótese de preservação da memória, por meio de mecanismos de latência, colocando-se

como a dimensão feliz do esquecimento proposta por Ricoeur.

O esquecimento de reserva está relacionado àquilo que o autor considerou o pequeno

milagre da memória feliz: o reconhecimento. Reconhecimento que pode assumir formas

distintas: daquilo que se teve e “retornou” e daquilo que parece da ordem do inédito.

“Reconhecer uma lembrança é reencontrá-la. Reencontrá-la é presumi-la

principalmente disponível, se não acessível. Disponível, como à espera de recordação,

mas não ao alcance da mão, como as aves do pombal de Platão que é possível possuir,

mas não agarrar. Cabe assim à experiência do reconhecimento remeter a um estado de

latência da lembrança da impressão primeira cuja imagem teve de se constituir ao

mesmo tempo em que a afecção originária” (RICOEUR, 2008: 441-442).

O que apontamos até aí sugere uma aproximação das dimensões do esquecimento e da

rememoração, proporcionando reconhecimento. Mas em que sentido se pode dizer que a

sobrevivência da lembrança tem valor de esquecimento? De acordo com Ricoeur, neste caso

não se trata mais de dizer do esquecimento que a ausência de materialidade nos coloca, o

esquecimento por apagamento dos rastros, mas o esquecimento por assim dizer de reserva ou

de recurso; esquecimento que designa o caráter despercebido da perseverança da lembrança,

sua subtração à vigilância da consciência. Em síntese, apropriando-nos dos desenvolvimentos

Page 8: 238 328-1-pb

8

do autor, “o esquecimento reveste-se de uma significação positiva na medida em que o tendo-

sido prevalece sobre o não mais ser na significação vinculada à idéia de passado. O tendo-sido

faz do esquecimento o recurso imemorial oferecido ao trabalho da lembrança” (RICOEUR,

2008: 448-451).

Chegamos então a uma questão crucial: o esquecimento é destruidor ou fundador

quando se trata de pensar a história? Ao tratar do esquecimento de reserva Paul Ricoeur

redimensiona o estatuto do esquecimento destacamento seu papel cooperador. Poderíamos

dizer que o esquecimento é feliz na medida em que não se refere à eliminação dos rastros,

mas no sentido de situar-se na fronteira da reversibilidade. Isto quer dizer que o trabalho de

luto de experiências históricas traumáticas pode conduzir não a uma negação da lembrança,

mas a uma elaboração que permita que essa memória perca a qualidade intrusiva da repetição.

Neste horizonte, a lembrança não insiste em se fazer colocar a todo instante. Já elaborada ela

pode cessar de irromper, sem estar, no entanto, completamente perdida. É sob este prisma que

a instauração do novo pode acontecer no presente. A recordação é a prova de que o

esquecimento de reserva não extingue os rastros, apenas os aloca nas profundezas da

memória. É nesta perspectiva que Ricoeur projeta um horizonte ideal da memória apaziguada.

A problemática do esquecimento tem papel de importância na questão dos abusos da

memória. Quando falamos em memória manipulada podemos aludir, igualmente, a certo tipo

de esquecimento que denominaríamos “artificial”. Em relação à memória impedida podemos

nos referir ao esquecimento na forma de um arquivamento da memória. Na manipulação da

memória através do esquecimento camuflam-se fatos, experiências, acontecimentos que

podem ser também excluídos da escrita autorizada da história. Isto nos coloca em um debate

ético e político de primeira grandeza: até que ponto o esquecimento, em suas formas

patológicas, não vem sendo utilizado para a construção de uma política da memória coletiva?

E finalmente: é possível à história restituir o lugar de certas memórias não de uma maneira

que conduza a uma repetição, mas a uma verdadeira elaboração do traumático? Os abusos da

memória e esquecimento são o ponto mais curto para o apagamento de memórias incômodas

socialmente. No entanto, podem-se elencar uma série de experiências históricas mal sucedidas

a partir desses mecanismos. A escrita da história pode, quem sabe, ter papel importante para a

elaboração do luto. Seu papel pode ser o de restaurar perdas totais de rastros e narrativas,

evitando que continuem, por vias desfavoráveis, a ser executadas no tempo presente.

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

Page 9: 238 328-1-pb

9

RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Tradução de Alain François. São

Paulo: Editora da UNICAMP,2008.