25 5 0 - Ministério Público do Estado de São Paulo

162

Transcript of 25 5 0 - Ministério Público do Estado de São Paulo

Page 1: 25 5 0 - Ministério Público do Estado de São Paulo
Page 2: 25 5 0 - Ministério Público do Estado de São Paulo
Page 3: 25 5 0 - Ministério Público do Estado de São Paulo

ANO XII – 2014 – Nº 55

DiretoresElton José Donato

Fabio Roberto D’AvilaGiovani Agostini Saavedra

Conselho EditorialAlexandre Wunderlich (Pontifícia Universidade Católica/RS)

Álvaro Sanchez Bravo (Universidade de Sevilha)Aury Lopes Jr. (Pontifícia Universidade Católica/RS)Arndt Sinn (Universidade de Osnabrück, Alemanha)

David Sanchez Rúbio (Pontifícia Universidade Católica/RS)Elizabeth Cancelli (Universidade de Brasília)

Fabio Roberto D’Avila (Pontifícia Universidade Católica/RS)Fauzi Hassan Choukr (Universidade de São Paulo)

Gabriel José Chittó Gauer (Pontifícia Universidade Católica/RS)Geraldo Prado (Universidade Federal do Rio de Janeiro)

Giovani Agostini Saavedra (Pontifícia Universidade Católica/RS)Luiz Eduardo Soares (Universidade Federal do Rio de Janeiro)

Rodrigo Moraes de Oliveira (Pontifícia Universidade Católica/RS)Rui Cunha Martins (Universidade de Coimbra)

Ruth Maria Chittó Gauer (Pontifícia Universidade Católica/RS)Tomás Grings Machado (Universidade do Vale do Rio dos Sinos /RS)

Vittorio Manes (Universidade de Salento, Itália)

Conselho do Instituto Transdisciplinar de Estudos Criminais (www.itecrs.org)

Andrei Zenkner SchmidtAlexandre Wunderlich

Daniel GerberFelipe Cardoso Moreira de Oliveira

Fabio Roberto D’AvilaGiovani Agostini SaavedraJader da Silveira Marques

Marcelo Machado BertoluciPaulo Vinícius Sporleder de Souza

Rodrigo Moraes de OliveiraSalo de Carvalho

Page 4: 25 5 0 - Ministério Público do Estado de São Paulo

Uma publicação do ITEC (Instituto Transdisciplinar de Estudos Criminais) e da SÍNTESE, uma linha de produtos jurídicos do grupo SAGE.

Revista de estudos CRiminais – ano Xii – nº 55Periodicidade trimestral – Tiragem 2.000 exemplares

ASSINATURAS: São Paulo: (11) 2188-7507 – Demais Estados: 0800.7247900

SAC e Suporte Técnico:São Paulo e Grande São Paulo (11) 2188-7900

Demais Estados: 0800.7247900

www.sintese.com

Os conceitos emitidos em trabalhos assinados são de responsabilidade de seus autores. Os originais não serão devolvidos, embora não publicados. Os artigos são divulgados no idioma original ou traduzidos.

Os acórdãos selecionados para esta Revista correspondem, na íntegra, às cópias dos originais obtidas na Secretaria do Supremo Tribunal Federal e dos demais tribunais.

Proibida a reprodução parcial ou total, sem autorização dos editores.

E-mail para remessa de artigos: [email protected]

© Revista de estudos CRiminais® ISSN 1676-8698

IOB Informações Objetivas Publicações Jurídicas Ltda.R. Antonio Nagib Ibrahim, 350 – Água Branca 05036‑060 – São Paulo – SPwww.iobfolhamatic.com.br

Telefones para ContatosCobrança: São Paulo e Grande São Paulo (11) 2188.7900Demais localidades 0800.7247900

SAC e Suporte Técnico: São Paulo e Grande São Paulo (11) 2188.7900Demais localidades 0800.7247900E-mail: [email protected]

Renovação: Grande São Paulo (11) 2188.7900Demais localidades 0800.7283888

Page 5: 25 5 0 - Ministério Público do Estado de São Paulo

Sumário

Doutrina EstrangEira

9 Medo no Estado de Direito (Klaus Günther)

17 De Volta ao Assunto: Medo no Estado de Direito (Günter Frankenberg)

29 Defesa Contra o Perigo pelo Direito Penal – Uma Resposta para as Atuais Necessidades de Segurança?

(Winfried Hassemer)

Doutrina nacional

45 A Lei Penal em Francisco de Vitória e a Matriz da Dogmática do Direito Penal Contemporâneo

(Cláudio Brandão)

65 A Prisão Preventiva Como Instrumento para Tutela da Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher

(Gilberto Schäfer e Julio Fernandes Neto)

89 Processual Penal Pós-Acusatório? Ressignificações do Autoritarismo Processual Penal

(Ricardo Jacobsen Gloeckner)

119 O Discurso do Supremo no Mensalão – Análise Quantitativa dos Votos Orais no Julgamento da AP 470

(Ivar A. Hartmann e Renato Rocha Souza)

135 A Doutrina da Cegueira Deliberada na Lavagem de Dinheiro: Aprofundamento Dogmático e Implicações Práticas

(Luiza Farias Martins)

Page 6: 25 5 0 - Ministério Público do Estado de São Paulo
Page 7: 25 5 0 - Ministério Público do Estado de São Paulo

Doutrina EStrangEira

Doutrina EstrangEira

9 Medo no Estado de Direito (Klaus Günther)

17 De Volta ao Assunto: Medo no Estado de Direito (Günter Frankenberg)

29 Defesa Contra o Perigo pelo Direito Penal – Uma Resposta para as Atuais Necessidades de Segurança?

(Winfried Hassemer)

Page 8: 25 5 0 - Ministério Público do Estado de São Paulo
Page 9: 25 5 0 - Ministério Público do Estado de São Paulo

9

Medo no estado de direito*

Klaus Günther**

RESUMO: No presente artigo, o autor introduz o leitor no debate sobre os limites materiais das medidas de persecução penal em um Estado Democrático de Direito realizado no contexto da publicação de um dossiê sobre medo no Estado de Direito publicado na Revista Westend em 2006 e por ele organizado. Nesse dossiê, desvela-se a tensão entre política criminal e direito penal na busca de resgatar e proteger a função do Estado de proteção dos direitos fundamentais e dos direitos humanos.PALAVRAS-CHAVE: Medo; Estado Democrático de Direito; direi-tos fundamentais; direitos humanos.ABSTRACT: In this article, the author introduces the reader in the debate over the material limits of criminal procedures in a democra-tic Rule of Law, which took place in the context of the publication organized by him of a dossiê over fear in the rule of law published in German WestEnd Journal in 2006. The tension between criminal politics and criminal law is at the center of the discussion, especially regarding the protection function of the human and fundamental rights. KEYWORDS: Fear; Rule of Law; human rights, fundamental rights.

Neste instante, parecemos ter nos acalmado. Ataques terroristas e con-flitos armados voltaram a causar vítimas, no presente momento, apenas na periferia do mundo ocidental. Durante a Copa Mundial de Futebol de 2006, em cuja fase de preparação houve discussão sobre intervenções do exérci-

* Texto originalmente publicado na Revista WestEnd, a. 3, v. 2, 2006. A tradução foi feita por Giovani Agostini Saavedra, Uriel Möller e Melissa Lippert, e os tradutores gostariam de agradecer à Revista WestEnd e à Editora Stroemfeld pela permissão não onerosa de publicação dos artigos. Observação: tanto Abstract quanto Resumo, Palavras-chave e Keywords não existem no original em alemão e foram criados pelos tradutores para adequar o artigo às regras de formatação da revista.

** Professor titular de Teoria do Direito, Direito Penal e Processual Penal na Johann Wolfgang Goethe – Universität Frankfurt am Main.

Page 10: 25 5 0 - Ministério Público do Estado de São Paulo

10

Revista de estudos CRiminais 55doutRina estRangeiRa

outubRo/dezembRo 2014

10

to no País, não ocorreu, felizmente, nenhum atentado. Inesperadamente, a Copa tornou-se inclusive um símbolo de uma convenção tanto pacífica quan-to alegre de pessoas de diferentes nacionalidades (e não, como era dito anti-gamente, nações e povos).

Sobre esta atmosfera simpática de um bonito verão europeu em 2006, pessoas suspeitas voam de lá pra cá – sem saber de onde, para onde e por quê. Quase despercebidos pela população, governos nacionais, serviços se-cretos, autoridades de proteção à Constituição, promotorias e autoridades policias trocam informações sobre cidadãos e cidadãs, checam poupanças privadas ou listas de passageiros das companhias aéreas, analisam dados de origens e fins diferentes, observam secretamente, interceptam e grampeiam telefones e apartamentos privados.

Órgãos legislativos preparam novas iniciativas (terceiro pacote de se-gurança*) para intensificar medidas de segurança já iniciadas e expandir ain-da mais permissões do Estado para intervirem em direitos humanos e fun-damentais**. Discute-se sobre a fronteira entre tortura e métodos de interro-gação intensificados, e há locais em nossa parte do mundo em que ninguém se interessa por estas questões. Quando, por sua vez, a tortura não acontece aqui, deixa-se torturar em outro lugar, para aqui se avaliar e utilizar as in-formações assim obtidas. Como em um mundo paralelo, festejamos copas mundiais e tiramos férias, sem nos deixar impressionar muito com os aconte-cimentos daquele outro mundo, que na maioria das vezes nem percebemos. Aumentos de tributos e a reforma do sistema de saúde nos agitam muito mais que a perda progressiva da liberdade civil***. Somente quando, por uma troca ou semelhança de nomes, um inocente tornou-se suspeito, o que fez dele um objeto interessante para aquele outro mundo, e nós, depois de seu retorno, ficamos sabendo o que lhe aconteceu ou o que poderia ter aconteci-do, nos atentamos brevemente. É possível imaginar que uma viagem forçada em razão de uma suspeita infundada por si só já deva ser uma verdadeira horror trip. Homo sacer, o termo retomado da antiguidade romana por Giorgio

* N.T.: Optou-se por fazer uma tradução literal da expressão “drittes Sicherheitspaket”, do original. Trata-se de um pacote legislativo alemão que visa a dar uma resposta a ameaças e a possíveis ataques terroristas. Chamado também de terceiro pacote “Anti terror”.

** N.T.: O termo utilizado originalmente pelo autor é “Menschen- und Grundrechte”.*** N.T.: Tradução do termo original “bürgerlicher Freiheitsrechte”. Cremos que, no português,

uma tradução literal não seria aproximada do sentido que o termo empregado transmite na língua alemã.

Page 11: 25 5 0 - Ministério Público do Estado de São Paulo

Doutrina EstrangEirarEvista DE EstuDos Criminais 55

outubro/DEzEmbro 2014

1111

Agamben para os indivíduos sem direitos, que não dispõem de mais nada além da vida nua, parece encontrar aí a sua referência atual.

Nesse sentido, mistura-se também o temor que o silêncio presente enga-na. Por que atentados como em Nova York, Washington, Madrid ou Londres não seriam praticados aqui amanhã? Não faz parte do plano do terrorismo manter uma população, por um tempo longo e imprevisível, iludida da ideia de segurança, para que, ao lado da brutalidade do atentado, venham ainda o choque do inesperado e o choque do surpreendente? Não será este mundo dos “adormecidos” (Schläfer)* um outro mundo paralelo, habitado por pes-soas que já “vivem” no futuro passado de sua própria (e nossas) morte(s)? Não se uniu aos perigos incalculáveis e incontroláveis da existência um novo perigo – o de ser uma vítima aleatória de um atentado, porque por acaso estava-se naquele avião, ônibus ou metrô, que o homem-bomba** aquele dia, na sua decisão solitária, escolheu? A sensação incerta de que a qualquer mo-mento alguma coisa pode acontecer que ponha um fim a própria vida foi alimentada – e é mais concreta e provável que a pedra daquele ditado, que poderia cair na cabeça de alguém ao sair de casa. E não seria inteligente nos armarmos o melhor possível contra isto, como também nos protegemos de outros perigos contra os quais lutamos?

Por outro lado, este perigo parece mais difícil de se combater do que outros, justamente devido à sua incerteza e à sua imprevisibilidade. Certo é somente que aquelas pessoas diretamente atingidas, se não morrem, ao me-nos sofrem severos danos físicos e psicológicos. Ninguém pode prever se um dia pertencerá ao grupo das pessoas diretamente atingidas. Mesmo que a maioria consiga proteger-se da sensação direta de perigo, há uma sensação latente de medo. Ela não se revela na histeria e no pânico, pelos quais só é atingido quem é testemunha de um atentado. Ela é perceptível antes na prontidão geral em aceitar restrições de liberdade e de, inclusive, exigi-las do Estado, quando derem aos indivíduos a sensação de que aumentam a segu-rança. Por esta prontidão ser tão grande, quase ninguém se irrita com o fato de, por consequência destas medidas, o Estado Democrático e Constitucional de Direito ser reformado visivelmente para todos. O medo das consequências desta reforma restringente da liberdade é menor que o medo latente do peri-go de um novo atentado terrorista.

* N.T.: Grifo do autor. Tradução literal do termo original.** N.T.: Tradução livre de “Selbstmordattentäter”. O termo literalmente traduzido refere-se a um

“agente que comete atentado suicida”. Pela inexistência de tal termo na língua portuguesa, optou-se pelo termo usualmente empregado, “homem-bomba”.

Page 12: 25 5 0 - Ministério Público do Estado de São Paulo

12

Revista de estudos CRiminais 55doutRina estRangeiRa

outubRo/dezembRo 2014

12

Comum a várias medidas é o caráter secreto* (Heimlichkeit) não das leis que as permitem, mas dos meios pelos quais são executadas. A acumulação e a troca de informações objetivam justamente o que vale como caracterís-tica essencial de atores terroristas. Esses próprios agem clandestinamente, adaptam-se externamente a uma forma de vida para depois colocá-la em um estado de choque com um golpe súbito. Observações secretas (das câmeras de vídeo visíveis em lugares públicos até as escutas despercebidas na própria casa) saíram da esfera dos serviços secretos e já estão integradas por lei nas normas policias e no ordenamento do processo penal. Estas medidas têm a vantagem de serem inofensivas e não impedirem diretamente a liberdade de movimentação. Não incomoda àqueles que acreditam que não precisam te-mer as consequências dessa revelação, não incomoda o fato de não poderem, por causa do segredo, agir ou não fazer nada juridicamente contra estas me-didas e que o Estado não os enfrenta abertamente e não os respeita como pes-soas que podem decidir por si mesmas a quem, quando e quais informações revelar sobre si. Sociedades modernas, pluralistas, prósperas e consumistas** permitem múltiplos estilos de vida. Câmeras de vídeo em locais públicos ou shoppings privados não são usadas para controlar a eticidade da população ou restringir a liberdade de consumo. Atualmente, parece que supervisão se-creta não leva ninguém a intimidar-se na prática de sua liberdade individual – enquanto esta liberdade é compatível com esta multidão de estilos de vida de uma sociedade plural. Neste sentido, constatou calmamente a tageszeitung nos dias 5 e 6 de agosto de 2006: “Em Londres, existem hoje milhares de câ-meras de vídeo. Gays beijam-se publicamente mesmo assim; talvez sintam-se inclusive mais seguros assim. Isto mostra: em uma sociedade democrática com monitoramento de vídeo, as pessoas vivem mais tranquilas do que em uma ditadura sem monitoramento de vídeo. Portanto, faz pouco sentido con-vencer as pessoas a terem medo de câmeras de vídeo, se estas não o têm”. Uso da liberdade individual monitorado pelo Estado já não é para a maioria um oxymoron. A visão de George Orwell parece não assustar, já que o Big Brother é, e continua sendo, um liberal mente pluralista. Menos ainda, por-que o uso de liberdade individual sob monitoramento privado já é aceito há muito tempo, seja pelo cartão de compras no supermercado e no shopping ou pelo meio da revelação de dados pessoais na compra via Internet. E a quem poderia incomodar, se o Estado também pegasse os perfis de consumidores

* N.T.: Tradução livre de “Heimlichkeit”.** N.T.: Em razão da inexistência de um termo correspondente na língua portuguesa, optou-se

pelo termo “consumista”, que acreditamos ser o mais próximo.

Page 13: 25 5 0 - Ministério Público do Estado de São Paulo

Doutrina EstrangEirarEvista DE EstuDos Criminais 55

outubro/DEzEmbro 2014

1313

adquiridos pelas empresas privadas para usá-los com as informações junta-das pelos serviços secretos em suas análises?

Diferente é só para as partes da população cuja prática da liberdade se encontra no limite dos estilos de vida tolerados pelo pluralismo. Muçulma-nos vivenciam atualmente, de maneira diferente, a prática de sua liberdade religiosa monitorada pelo Estado, uma vez que ela é acompanhada por uma suspeita. Estrangeiros encontram-se diante de uma observação e um controle ainda mais intensificados de seus modos de vida. O Estado liberal focado na prevenção toma-lhes a tranquilidade na prática dos direitos de liberdade, que ele fornecera por sentirem-se pertencentes a uma minoria não suspeita em razão justamente do monitoramento exercido pelo Estado. Ainda dife-rente é a situação das medidas que restringem a liberdade diretamente ou que intervêm em seu fundamento, na vida e na saúde. As torturas em Abu Ghuraib ainda criam indignação ao redor do mundo. A prisão de Guantana-mo permanece um mau presságio global para os direitos humanos. Por outro lado, ao mesmo tempo é criado um debate público em relação à chamada “tortura de salvamento”, no qual as opiniões opõem-se explicitamente. Aqui pode-se perceber novamente aquele medo que advém de perigos incertos e inconcretizáveis. Se por meio de tortura do sequestrador a vida de um recém inocente pode ser salva, terá o Estado o dever de proteger a vítima do se-questro? Em outros países, o prazo de detenção policial* é prolongado ou sua prolongação é considerada. Somam-se a isso práticas que também intervêm profundamente nos direitos humanos e fundamentais, sem que haja uma permissão legal que as reconheça. A proibição da tortura fortalecida pelo parlamento dos Estados Unidos da América é enfraquecida por um mero signing statement do presidente. A prática de levar pessoas suspeitas para pa-íses estrangeiros por meios que violam direitos humanos está coberta por um manto de permissões de medidas preemptivas de defesa contra o perigo.

Mesmo que estas medidas atualmente sejam discutidas publicamente de forma mais controversa ainda que a observação e o monitoramento secre-tos, elas são praticadas pelos governos de alguns Estados Democráticos de Direito com a convicção de que são necessárias para fornecer segurança. Isto não se trata mais apenas da segurança do Estado e manutenção de poder. Também aqui o conceito da segurança liberalizou-se e democratizou-se ao mesmo tempo. Medo é uma disposição psíquica que pode paralisar, inibir e forçar uma pessoa a se retirar. Ele cria desconfiança e permite que relações de

* N.T.: Tradução livre de “präventiven Polizeigewahrsams”.

Page 14: 25 5 0 - Ministério Público do Estado de São Paulo

14

Revista de estudos CRiminais 55doutRina estRangeiRa

outubRo/dezembRo 2014

14

confiança emocional com pessoas próximas pareçam mais importantes que os contatos ad hoc em uma sociedade altamente diferenciada funcionalmente. Medo constrói uma barreira psíquica diante do espaço individual de liberda-de. A vida em uma situação assim é limitada às atividades que aumentam a sensação de segurança – reações excessivas e irracionais inclusive.

O Estado moderno legitimava a monopolização da violência prome-tendo às pessoas que acabaria com o medo resultante do uso correlativo de violência com as suas consequências destruidoras de liberdade. Entretanto, isso só poderia suceder se o Estado, que dispõe unicamente dos meios de violência, uno actu não os utilizasse de uma forma que o tornasse, ele mesmo, uma fonte de medo. Por essa razão, era necessário disciplinar o Estado mo-nopolizador da violência em um Estado de Direito, em que a violência estatal é subordinada a regras que tornam o seu emprego previsível e calculável para os que são por ela atingidos. “Medo no Estado de Direito”, portanto, referiu-se sempre aos perigos que são criados por um Estado que solta suas algemas de Estado de Direito para aumentar ou proteger o seu próprio poder por meio de intervenções imprevisíveis e incalculáveis nos direitos de liber-dade das cidadãs e dos cidadãos. Isso preferencialmente na medida em que exigia destes últimos declarações ativas de lealdade ou construía um regime da suspeita, sob o qual dava-se o mesmo efeito como na condição pré-estatal, um chilling effect*, uma autocensura psíquica do uso individual da liberdade. Com o desenvolvimento das modernas mídias de massa e das técnicas de propaganda psicologicamente informadas, tornou-se cada vez mais possível, para o Estado, criar medos e intensificá-los para, então, com novas promessas de libertação do medo, abolir a sua própria disciplina, caçar bodes expiató-rios e intimidar partes inteiras da população.

Quando atualmente a fala é de “medo no Estado de Direito”, o seu sentido mudou. Pensa-se não em medo de Estado demais, mas em medo de Estado de menos. Medidas no limite ou além da autodisciplina do Estado de Direito parecem democraticamente legítimas, porque reagem a medos au-tênticos e amplamente difundidos na população. Sociedades modernas, nas quais a prática, de fato, dos direitos de liberdade individual é tanto perten-cente ao seu entendimento ético próprio quanto uma condição funcional do sistema político e econômico, perderiam sua identidade e sua funcionalidade se sua população tivesse massivamente diminuído o usufruto de sua liberda-de. O Estado torna-se o parceiro de segurança de uma população insegura. Dela deve tomar o medo, para direcionar o seu rosto apavorante a aqueles, de

* N.T.: Grifo do autor.

Page 15: 25 5 0 - Ministério Público do Estado de São Paulo

Doutrina EstrangEirarEvista DE EstuDos Criminais 55

outubro/DEzEmbro 2014

1515

quais se sentem ameaçadas. As restrições de liberdade causadas pelo comba-te estatal ao perigo atingiriam de fato, conforme crença difundida, somente aqueles que movimentam-se para além da ampla margem de uma forma de vida (lebensform) livre e pluralista. A maioria seria atingida, ao contrário, ape-nas formalmente. Restrições à liberdade, que de qualquer forma são válidas somente perante os outros, os inimigos, sempre pesariam mais que aquelas perdas de liberdade, as quais, por meio das consequências paralisantes de uma renúncia geral à liberdade, foram causadas graças a uma sensação agu-da de ameaça por meio de atentados terroristas. De fato, é ignorado que a mera inflição formal por medidas de segurança estatais pode subitamente converter-se em material, em razão apenas de uma semelhança de nomes entre um cidadão respeitável e um terrorista procurado.

É esta dinâmica psíquica que fundamenta a profunda estrutura do de-bate atual acerca da adequada relação entre liberdade e segurança. A estru-tura social-psicológica do Estado Democrático de Direito é até agora pouco pesquisada. Sabe-se que uma forma de vida (Lebensform) de liberdade assegu-rada expande o espaço de ação, mas também produz novos medos, o “temor da liberdade”. Quando é que a liberdade do temor converte-se em temor da liberdade? A forma de vida (Lebensform) livre de um Estado Democrático de Direito exige de suas cidadãs e de seus cidadãos uma maior proporção em medos que um sistema autoritário que regula e controla cada expressão da vida? Ou será que a dinâmica política das democracias modernas com novas ansiedades gera também um clamor por segurança crescente, que não se deixa jamais satisfazer, mas produz sempre novas inovações e medidas que continuam a restringir as liberdades civis? É ainda legítima uma lei de segurança à qual se chegou democraticamente, quando a maioria que a apoia está convencida da ideia de que essa normatividade não atingirá ela própria, senão somente outros?

Os artigos seguintes abordam diferentes perspectivas da dimensão psíquica do debate atual acerca da segurança. Günter Frankenberg, que, em 1977, inaugurou a palavra-chave (das Stichwort) para o foco desse tema com um artigo publicado, traçou a mudança de sentido desta palavra-chave (das Stichwort): do medo no Estado de Direito, que centrava-se em xeretas de ati-tude (Gesinnungsschnüffelei) estatais e que demandava demonstrações de le-aldade, a um medo da ameaça terrorista, contra a qual o Estado supostamen-te toma muito poucas medidas. Para Frankenberg, contudo, persiste nessa mudança somente a ameaça original, que já adveio sempre de um Estado de Direito que solta suas amarras e que, em uma medida errônea entre liberdade

Page 16: 25 5 0 - Ministério Público do Estado de São Paulo

16

Revista de estudos CRiminais 55doutRina estRangeiRa

outubRo/dezembRo 2014

16

e segurança, encontra expressão distorcida de política de direito, distorcendo a comunicação pública.

Jochen Bung, que, assim como Frankenberg, faz uma relação com a tese Medo e política (Angst und Politik) de Franz Neumann, analisa a dimensão psico-lógica do Estado de Direito e os perigos que, por meio de uma instrumentali-zação dos medos da população, visam ao combate aos “inimigos”. A expressão “direito penal do inimigo”, marcada pelo Professor de direito penal de Bonn Günther Jakobs, parece reagir a esses medos. Ainda que o “medo” não seja uma categoria jurídica, mesmo assim a formação de termos jurídicos – e, em sequência, a práxis estatal que nela se legitima – é dominada pelo medo.

Winfried Hassemer sustenta, ao contrário, que a transformação das regras estatais para reações estatais ao perigo em um direito de defesa con-tra o perigo institucionalizado é irreversível. Prevenção contra perigos seria uma atividade legítima do Estado. Seria errado ignorar os medos da popula-ção ou de Torre de Marfim acadêmica (von einem akademischen Elfenbeiturm aus wegzuerklären). Uma democracia não poderia deixar-se fechar para esses medos. Entretanto, não segue daí que a prevenção poderia ultrapassar todos os limites.

Herfried Münkler vai atrás das causas daqueles medos. A estratégia ter-rorista de levar uma guerra de assimetricamente é determinada por um cálculo da criação sistemática de medo nas populações das comunidades atingidas. Não se trata da aniquilação de pessoas específicas, nem do acordar (Erweckung) de terceiros interessados em potencial, que deveriam se solidarizar para com os terroristas, mas sim de criação de medo em massa por meio das inúme-ras aniquilações de vítimas quaisquer. Nas sociedades modernas ocidentais, que cultivam virtudes pós-heroicas, o impacto psicodinâmico desses atenta-dos multiplicou-se. Um Estado Democrático de Direito, que não reaja a isso na medida certa, atesta justamente o perigo de uma reação exagerada e histérica.

Ainda que diferentes as análises, Bung e Münkler evocam ao final, res-pectivamente, a virtude civil estatal da serenidade/calma. Sobre suas supo-sições psicológicas sabemos pouco. Para Münkler, sua tarefa de segurança preenchida pelo Estado é, no entanto, uma condição necessária para que essa virtude possa prosperar (florescer, N.T.). Após ter-se pensado longamente sobre isso, que o Estado livre vive de suposições, as quais ele mesmo não é ca-paz de realizar ou viabilizar, poder-se-ia agora com a serenidade tornar uma outra suposição consciente, que por meio do Estado preventivo poderia estar de fato promovido, mas de maneira alguma constitucionalmente adequada. Suas condições de formação e de efetividade estão ainda a serem investiga-das e cultivadas.

Page 17: 25 5 0 - Ministério Público do Estado de São Paulo

17

de volta ao assunto: Medo no estado de direito*

Günter FranKenberG**

RESUMO: No presente artigo, o autor analisa os desafios e os limites materiais das medidas de persecução penal em um Estado Democrá-tico de Direito. Desvela-se, portanto, a tensão entre política criminal e direito penal na busca de resgatar e proteger a função do Estado de proteção dos direitos fundamentais e dos direitos humanos.

PALAVRAS-CHAVE: Medo; Estado Democrático de Direito; direi-tos fundamentais; direitos humanos.

ABSTRACT: In this article, the author analyses the challenges and the material limits of criminal procedures in a democratic Rule of Law. The tension between criminal politics and criminal law is at the center of the discussion, especially regarding the protection function of the human and fundamental rights.

KEYWORDS: Fear; Rule of Law; human rights; fundamental rights.

Medidas de combate ao terrorismo por parte do Estado parecem, de modo especial, despertar temores relacionados ao Estado de Direito. “Medo no Estado de Direito” não é um topos corriqueiro, tendo se tornado, talvez

* Texto originalmente publicado na Revista WestEnd, a. 3, v. 2, 2006. A tradução foi feita por Giovani Agostini Saavedra, Uriel Möller e Melissa Lippert, e os tradutores gostariam de agradecer à Revista WestEnd e à Editora Stroemfeld pela permissão não onerosa de publicação dos artigos. Observação: tanto Abstract quanto Resumo, Palavras-chave e Keywords não existem no original em alemão e foram criados pelos tradutores para adequar o artigo às regras de formatação da revista.

** Professor Titular de Direito Público, Filosofia do Direito e Direito Comparado na Johann Wolfgang Goethe – Universität Frankfurt am Main.

Page 18: 25 5 0 - Ministério Público do Estado de São Paulo

18

Revista de estudos CRiminais 55doutRina estRangeiRa

outubRo/dezembRo 2014

18

por acaso, pela primeira vez objeto de interesse científico no deutscher Herbst1 do final da década de 1970 (Frankenberg 1977) e agora, após a reação alemã ao “9/11”. Por que tematizar o “medo no Estado de Direito” se o Estado de Direito, isto é, os seus representantes oficiais, conforme seu entender, em-preendem todos os esforços possíveis no sentido de estabelecer a segurança interna? Para responder a esta pergunta, devemos fazer, inicialmente, uma breve síntese da problemática do medo, para, posteriormente, passarmos à discussão da equação simplista repressão = geração de medo e, por fim, da banalidade da alegação do Estado perverso. Na sequência, a problemática do medo é relacionada ao predomínio do Estado de Direito e, finalmente, ilus-trada pelo arsenal das medidas de combate ao terrorismo e seus efeitos sobre o Estado de Direito.

As reflexões a seguir partem da distinção – que não deixa de ter sua complexidade – entre medos reais e medos neuróticos. Desta forma, os temo-res que estejam de algum modo relacionados ao Estado de Direito devem ser bem definidos em seus contornos, e ao mesmo tempo deve ser evitado que todos os medos eventuais possam se notabilizar como reações a mudanças de formas, procedimentos e instrumentos do Estado de Direito, em resumo, que possam elevar-se como medos políticos.

O critério para distinguir se um temor é real ou neurótico é a perti-nência desse temor em relação ao acontecimento ou situação que o originou. Medos reais alertam per definitionem de modo pertinente quanto a perigos e ameaças de fato, uma vez que eles possibilitam uma confrontação consciente ou quase consciente com esses. Temores neuróticos, pelo contrário, são evo-cados por acontecimentos e situações que não são quer perigosas ou amea-çadoras, mas que reavivam experiências ou fantasmas do passado. Esses me-dos, portanto, não têm uma motivação atual e situacional correspondente. A sua função de alerta cai no vazio. Ao invés disso, estabelece-se um estado de temor. O que essa tipificação de medos tem a ver com o Estado de Direi-to? Comecemos pela história: o Estado burguês se constituiu como Estado de Direito na confrontação prática e teórica com a soberania dos príncipes absolutistas. Com o Iluminismo, surgiu o conceito de “Estado de Direito” como Kampfbegriff (palavra de combate), que converteu o domínio absolutista em domínio da lei e, ao mesmo tempo, decretou o fim da arbitrariedade dos príncipes e monarcas. Uma das conquistas da burguesia ascendente consti-

1 Deutscher Herbst, literalmente “outono alemão”, refere-se a uma série inédita de atos terroristas realizados pela RAF (Rote Armee Fraktion), organização de extrema esquerda alemã, no meses de setembro e outubro de 1977.

Page 19: 25 5 0 - Ministério Público do Estado de São Paulo

Doutrina EstrangEirarEvista DE EstuDos Criminais 55

outubro/DEzEmbro 2014

1919

tuiu-se no fato da demarcação e da racionalização do monopólio de poder por parte do Estado (Government of laws and not of men – é como a tradição constitucional angloamericana coloca em palavras essa racionalidade formal do Estado de direito como forma de domínio que pressupõe a distância). Essa se manifesta na transformação das relações sociais em relações de Direito, na divisão dos poderes do Estado e na sujeição às competências, bem como na introdução de formas jurídicas de convivência. Em um projeto de auto-governo e coexistência pacífica com respaldo nos princípios do Estado de Direito, a autonomia privada garante a aspiração por interesses na sociedade econômica principalmente por meio de contratos. As garantias de autonomia política avalizam a participação em negócios coletivos da sociedade e a lei geral age como programa obrigatório e elo entre os poderes do Estado. Com-prometidos com o princípio da legalidade, aos representantes do Estado e às instituições do Executivo não deve mais ser concedido – como outrora ao príncipe – interferir a seu bel-prazer na vida social e nas esferas de liberdade por meio de ordem pessoal, de contratos unilaterais ou de ações isoladas ar-bitrárias conforme o estado das coisas.

Nesse modelo de governo, todo o poder público recebe as demarcações jurídicas baseadas no princípio da regularidade, buscando dar previsibili-dade às ações do Estado. Idealmente, o Estado de Direito garante seguran-ça jurídica e segurança quanto a expectativas. Sanções por parte do Estado precisam temer, portanto, apenas aquele que se opõe às prescrições legais. Enquanto existirem leis gerais que excluam determinadas opções de compor-tamento ou as permitam, que não sejam retroativas e que sejam respeitadas pelos destinatários – em especial pelo poder estatal –, fica institucionalizada a não necessidade de medo da arbitrariedade da autoridade e do medo real, conforme a distinção anteriormente introduzida. Deve haver o primado da liberdade. Ser livre de medo da arbitrariedade possibilita o desdobramento da dimensão psicológica do Estado de Direito, delineada em seus contornos pelos princípios da determinação e da clareza normativa, da proibição de retroatividade e da proporcionalidade das intervenções nos direitos funda-mentais.

Em um Estado de Direito relativamente consolidado, medos reais são, portanto, originados tipicamente por proibições e preceitos legais sujeitos às penas da lei ou por normas que, sob determinadas condições, ameaçam ou permitem intervenções da autoridade na esfera demarcada de direitos de li-berdade. Quem ferir uma tal norma deverá de fato temer sanções, ou seja, sentir medo real, enquanto o Estado (de direito) for experimentado como representante da consciência das regras e como instância de poder para a

Page 20: 25 5 0 - Ministério Público do Estado de São Paulo

20

Revista de estudos CRiminais 55doutRina estRangeiRa

outubRo/dezembRo 2014

20

imposição dessas regras. Quanto mais clara a imposição legal e a sanção co-minada no caso de seu descumprimento, tanto mais palpável é já de início o perigo ameaçador para os destinatários da norma.

Diferente é a situação quando as normas, em relação às característi-cas do delito que suscita sua aplicação, permanecem indefinidas e ambíguas e contêm apenas ameaças vagas ou ocultas. Nesse caso, o destinatário da norma não tem como saber que comportamento é esperado dele, se e como esse será controlado e de que forma será sancionado o comportamento er-rôneo. Tal estrutura de normas e disposições causa insegurança, uma vez que a avaliação do perigo representado pela ameaça de uma intervenção da autoridade e a adaptação do comportamento são dificultadas, quando não impossibilitadas.

O medo real, que alerta a respeito de sanções, dá lugar a temores di-fusos que podem ser silenciados, pelo menos provisoriamente, por meio de recalcamento. O medo real torna-se crônico e se estabelece como “medo es-trutural”. Ele pode ser percebido – naturalmente de forma imprecisa – na abdicação da reivindicação de autonomia política e privada.

Não apenas a dissolução da estrutura normativa do Estado de direito e com ela dos princípios de clareza normativa e determinação, mas também e especialmente a dilatação do instrumentário de intervenção do Estado e a di-minuição da zona de transição até a intervenção sem base jurídica claramente reconhecível propiciam a geração de medos neuróticos. Possíveis grampos, escutas secretas sem os procedimentos legais, o monitoramento de locais pú-blicos, etc. alimentam a fantasia de um poder governamental onipresente e de um sistema de controle interno que gera medo político (Neumann, 1986 [1954]).

A ameaça difusa, difícil de ser estimada a partir da perspectiva do cida-dão, que emana de uma estrutura normativa aberta e de um sistema de con-trole, não se manifesta apenas em temores difusos, mas também fica evidente em mudanças de comportamento da população. Levados pelos esforços no sentido de não se sobressair de modo algum, ela tende à hiperadaptação ao supostamente colocado como norma. Aquele que não pode avaliar o perigo é impelido, por uma capacidade de decisão reduzida, em caso de dúvida, a orientar-se com base na autoridade estatal. Essa tem o dever de esclarecer--lhe a ameaça da forma mais simples possível e de conscientizá-lo de que está sendo feito todo o necessário para a defesa do perigo. Aqui não cabe desen-volver a relação entre a diminuição da tolerância ao medo e deficiências do ego, de um lado, e experiências na família, na escola e no mundo do trabalho,

Page 21: 25 5 0 - Ministério Público do Estado de São Paulo

Doutrina EstrangEirarEvista DE EstuDos Criminais 55

outubro/DEzEmbro 2014

2121

de outro lado, ou seja, a problemática do “caráter autoritário” (Adorno et al., 1973). Não obstante, pode-se observar que a maioria tende à adaptação ao supostamente colocado como norma e, desta forma, abdica de boa vontade de seus direitos fundamentais. A imposições normativas difusas e à restrição das esferas de liberdade, bem como ao controle estatal, ela reage de com con-formismo. Sua máxima: vamos fazer o que tem de ser feito. Ninguém quer se evidenciar como crítico do poder do Estado. Pelo contrário: intervenções públicas, controles e ações que não podem ser estimadas e, portanto, minam a segurança de expectativas levam os cidadãos à deserção da esfera pública.

Durante o deutscher Herbst e no seu seguimento, os poderes do Estado foram desafiados pela primeira vez de uma forma até então desconhecida. Eles deviam enfrentar grupos e indivíduos que haviam aderido à luta arma-da e não se intimidavam em matar. Sob o slogan do combate ao terrorismo, o Executivo, o Legislativo e também a Justiça, até às instâncias superiores do Tribunal Federal Constitucional, dilataram e extrapolaram o seu manda-to nos limites do Estado de direito. Com a negação da divisão de poderes, quebra dos princípios da legalidade e com a restrição dos direitos de liber-dade em nome de um Estado de exceção acima da lei, abriram-se amplos espaços de intervenção. Modificações no regulamento para os funcionários públicos inauguraram o conceito de “Verfassungsfeind” (Feind = inimigo, Verfassung = Constituição, pessoa de crenças não respaldadas na Constituição, anticonstitucional) e possibilitaram o controle da orientação política. Como consequência, a simples adesão a partidos não proibidos podia fundamentar a estigmatização como “Verfassungsfeind”. Proibições de exercício profissio-nal marcaram, na perspectiva do Estado de direito, a face da República Fede-ral da Alemanha. A legislação policial de alguns Estados, no sentido de um combate profilático avançado ao perigo, introduziu o “tiro com propósito de matar” e armou a polícia com metralhadoras, granadas de mão e explosivos. A lei de isolamento total, vedando a presos acusados de crimes de terrorismo inclusive o contato por carta com o mundo exterior, foi, no processo penal, um prenúncio de uma defesa contra o terrorismo que se desvia dos trilhos do Estado de direito. Por fim, a Freiheitliche demokratische Grundordnung (FdGO) (ordem fundamental democrático-liberal) transmutou-se em um verdadeiro “existentielle Wertentscheidung” (decisionismo existencial), que, como meta-legalidade, cristalizou e minou a Constituição democrática de Estado de Di-reito. Assim, as liberdades garantidas no catálogo de direitos fundamentais foram, conforme o caso, revogadas no plano superior, em que se entrecruzam a FdGO, dever de fidelidade ao Estado e imperativos da segurança interna – por exemplo, por meio da lei que possibilita o monitoramento de conversas telefônicas e mensagens postais em casos de ameaça à ordem democrático-

Page 22: 25 5 0 - Ministério Público do Estado de São Paulo

22

Revista de estudos CRiminais 55doutRina estRangeiRa

outubRo/dezembRo 2014

22

-liberal. Quem criticasse essa “Legalität auf Widerruf” (legalidade revogável), por exemplo, como imposição baseada em competências de exceção expu-nha-se à suspeita de ser um “inimigo do Estado de Direito”.

A crítica corajosa encontrava-se em retirada, conforme verificou, entre muitos outros, o então Presidente Heinemann. Naquele clima de suspeitas e calúnias, em que vigorava a prática de bisbilhotar o credo alheio por meio de escutas secretas, disseminaram-se a covardia, a apatia política, o andar pisando em ovos e a cautela acomodada. A Amnesty international registrou a diminuição do número de pessoas dispostas a participar de abaixo-assinados em protesto contra torturas, por exemplo. Estudantes e aprendizes relataram que seu comportamento contestador de outrora deu lugar à resignação polí-tica. Os meios de comunicação referiam-se a uma sucessiva “retirada para a vida privada”. A dissolução de estruturas do Estado de Direito e o corte de garantias próprias do Estado de Direito – não generalizada, mas claramente apreensíveis por meio de pesquisas de opinião – fez atiçar medos políticos do lado dos seus destinatários.

Uma imagem semelhante pode ser desenhada com relação às medidas de parte do Estado como reação aos ataques terroristas de 11 de setembro de 2001. Diferentemente da ilegalidade ostensiva da Rote Armee Fraktion (RAF) e da série de crimes capitais a ela imputados, os ataques ao World Trade Center caíram como que do nada sobre o cotidiano, como uma catástrofe concen-trada. Seu ímpeto planejado e inescrupulosidade calculada despertaram no mundo inteiro sensações de estar ameaçado, que tinham de ser trabalhadas de forma individual, como a réplica (de um terremoto) no plano emocional de um evento sentido como de força maior. Em pouco tempo, as reações de verdadeiro pânico de parte do Estado transformaram-se em uma fonte adi-cional de temor. A precipitação e a falta de objetividade das reações do Esta-do provavelmente, se não despertaram, pelo menos intensificaram e torna-ram constantes os temores provocados pelo evento. Sem dúvida, o conjunto de medidas, com a aparentemente inofensiva denominação de “pacote de segurança”, e uma diversidade de monitoramentos, testes e controles de se-gurança, levantamento e processamento de dados, bem como de novas com-petências do serviço secreto, anulou parcialmente as garantias e os princípios do Estado de Direito.

Ambas, a erosão do Estado de Direito e a reação exagerada à catástrofe, abalam a segurança cognitiva (sentida). Segurança cognitiva designa o fato de ser livre de medos neuróticos ou políticos. Ela vai além de uma vaga sen-sação de segurança. Significa que atores individuais percebem suas opções e espaços de ação como relativamente protegidos ou garantidos e, assim, – com

Page 23: 25 5 0 - Ministério Público do Estado de São Paulo

Doutrina EstrangEirarEvista DE EstuDos Criminais 55

outubro/DEzEmbro 2014

2323

ou sem razão – podem partir do princípio de que a reivindicação de liber-dades (constitucionais) em regra não acarreta riscos incalculáveis na forma de sanções arbitrárias de parte do Estado. Para a segurança cognitiva, con-tribuem sobretudo os princípios do Estado de Direito, que traçam as linhas demarcadoras do horizonte de expectativas dos cidadãos: a previsibilidade possibilitada com os princípios da determinação e clareza normativa da auto-ridade, assim como da proteção aos direitos (fundamentais). Nessa medida, a segurança cognitiva age como condição necessária à liberdade, isto é, a um estado normal de liberdade. A insegurança cognitiva dos cidadãos e cidadãs, inversamente, produz um chilling effect. Ela leva à cronificação (neurotização secundária) que se pode perceber, entre outros sintomas, pela falta de dispo-sição de reivindicar liberdades.

Não apenas nos conjuntos de medidas, mas também na retórica políti-ca que os acompanha, reflete-se a passagem do medo real ao medo neurótico e evidencia-se de forma especialmente nítida, após os ataques de 11 de setem-bro de 2001, na metamorfose dos princípios-guia da liberdade/segurança e na oposição de estado de legalidade normal e estado de exceção supralegal. Frente à perigosa e ameaçadora irrupção na realidade, os responsáveis ofi-ciais pela segurança interna deixaram-se impelir de forma imediata e mecâ-nica, após uma análise objetiva da situação ameaçadora e uma consideração cautelosa das medidas de defesa, para um ativismo simbólico desatinado de motivação inclusive eleitoral e político-partidária. Isso é textualizado por uma legislação simbólica. A legislação decreta/implanta um ativismo desati-nado. Esse tem a intenção de produzir, para a percepção pública, a impressão tranquilizadora de um legislador atento e decidido. Acompanham o ativismo simbólico um discurso político-partidário sobre segurança com vistas a bater a concorrência, em uma retórica legislatória da militância. Isso quer dizer: os produtos do legislador – em primeiro lugar aqueles que visam à segurança e, posteriormente, todas as possíveis leis – não têm apenas o objetivo de regu-lar por meio de proibições ou obrigações, mas também o sentido militar, de empunhar bandeira e combater. Leis devem dar combate a tudo o que possa parecer ameaçador: criminalidade organizada, lavagem de dinheiro e tráfico de drogas, sonegação de impostos, abuso da lei de asilo, trabalho clandestino, assim como – não esqueçamos – terrorismo internacional.

O direito de combater – já testado no deutscher Herbst e ampliado e aperfeiçoado desde o 9/11 – segue a lógica de um estado de exceção continua-do (Frankenberg, 2005). Com o exagero de segurança prometida, a transição semântica da regulação para o combate e seu instrumentário ocorre primei-ramente uma adaptação perene da legislação para um combate ao perigo e

Page 24: 25 5 0 - Ministério Público do Estado de São Paulo

24

Revista de estudos CRiminais 55doutRina estRangeiRa

outubRo/dezembRo 2014

24

perseguição penal de caráter militante, hiperpreventivo e amplo. Assim, são atribuídas ao poder estatal competências adicionais para intervenção. Na le-gislação policial, tipos penais abertos dão-lhe tanto o direito de suspeita e da presunção de perigo como a possibilidade de legitimar sua intervenção. Por exemplo: “Quando indícios de fato justificam a suposição de que isso seja necessário para a prevenção [... de] delitos”. Aliado a isso, surgem novas nor-mas penais e determinações penais mais rígidas ou ampliadas, que também dilatam a esfera da punibilidade. Em nome da “neue Prävention” (nova pre-venção), os direitos fundamentais são submetidos quase que incondicional-mente à aprovação do Executivo. Sob o signo do “direito fundamental à se-gurança”, reativado como compensação, (Isensee, 1983), a função de demar-cação de direitos de liberdade é comprometida e a exceção, transformada em regra. Assim, a política de combate ao terror cria o caso-limite ou excepcional da legítima defesa, isto é, do estado continuado de emergência. A caminho de uma nova prevenção, especialmente informada sobre “criminalidade orga-nizada” e terrorismo, diluem-se as fronteiras entre polícia e forças armadas, entre segurança interna (prevenção do perigo) e segurança externa (defesa), entre direito penal e lei marcial.

IV.

A mudança de paradigma retórica, de liberdade para a segurança, al-tera o status normativo de segurança e, com isso, a assimetria na relação de liberdade e segurança. Essa mudança é dissimulada por meio de um primei-ro passo metódico para a normalização da situação excepcional. Liberdade e segurança são colocadas lado a lado como princípios-guia e sopesadas. A ponderação sugere que, como princípios de mesmo grau da normalidade do Estado de Direito, liberdade e segurança sejam absolutamente compatíveis e que sigam uma lógica funcional comparável. Assim, não se poderia falar de uma valorização maior da segurança, conforme seus partidários.

Contra essa minimização dogmática deve-se lembrar da dramática me-tamorfose de segurança. Inabalável, ela ascende de segurança cognitiva a se-gurança existencial, que, de um lado, compreende as circunstâncias emocio-nais como “segurança sentida” e, de outro, se estende à proteção existencial em sentido mais amplo. Essa metamorfose esconde-se detrás de um disfarce duplo de segurança. Ela continua a apresentar-se como cognitiva e como fun-damento do mesmo grau.

Analisadas à luz do dia, mostram-se naturalmente algumas diferenças fundamentais quanto ao ponto de partida de liberdade e segurança e quanto a sua relação específica. A liberdade apresenta-se por natureza cheia de pre-

Page 25: 25 5 0 - Ministério Público do Estado de São Paulo

Doutrina EstrangEirarEvista DE EstuDos Criminais 55

outubro/DEzEmbro 2014

2525

tensões. Ela está relacionada à disposição para a ação pública ou para a par-ticipação nos negócios coletivos de uma sociedade, isto é: à política. Na as-sociação normativa com igualdade, a liberdade, que, nos direitos dos outros, nem sempre encontra um limite claro e completamente inquestionável ou particularmente concretizável, carrega em si a sua temperança. Que as expe-riências com o princípio da proporcionalidade e do método da concordância prática no caso de colisões de direitos fundamentais nos levem a não falar de espaços de liberdade claramente demarcados, e sim abertos à interpretação, não muda nada no fato de que a liberdade é tanto aplicada à atividade social como também apresentada como internamente limitada.

Com a segurança, dá-se nos dois aspectos algo diferente. A liberdade é concretizada na forma de direitos público-subjetivos e associada a titulares individuais que devem ser habilitados a agir. A segurança, diferentemente, apresenta-se como um bem público. A ordem jurídica o atribui à esfera de incumbências de instituições do Estado e de seus representantes oficiais e concede a esses, por meio de normas policiais e penais, a atribuição de in-tervir em esferas de ação social, bem como na esfera social e privada dos cidadãos e cidadãs. Diferentemente do sistema das liberdades, a segurança, além disso, não conhece restrições imanentes. Pelo contrário: orientada para o apaziguamento de situações e para a satisfação de necessidades, a seguran-ça é, em comparação, internamente sem limites. À parte a possibilidade fática de produzi-la ou de garanti-la e os cálculos de necessidade dependentes de avaliação, o princípio da efetividade consegue, quando muito, ter um efeito levemente moderador.

Uma diferença normativa ainda mais significativa mostra-se natural-mente quando se relacionam liberdade e segurança. A liberdade necessita, conforme colocado anteriormente, de um mínimo de segurança cognitiva – normalmente garantido pelo Estado – como condição fática de sua possibi-lidade. Segurança cognitiva, que se exterioriza na restrição a medos reais, recebe da liberdade o seu sentido e é, assim, relacionada a essa como estando a seu serviço. Sem segurança cognitiva, liberdade seria pouco mais do que uma promessa vazia e direitos de liberdade dificilmente nos convidariam ao uso. Com a segurança, dá-se algo diferente. Ela arranja-se sem liberdade, não precisando para sua legitimação de espaços de liberdade como condição de garantia necessária.

Liberdade e segurança apresentam-se, então, em uma mesma altura normativa quando ambas são avaliadas, isto é, traduzidas em valores. Para tal operação, estão abertos diferentes caminhos: a tradução de direitos de li-berdades em deveres coletivos de proteção, a transformação de segurança

Page 26: 25 5 0 - Ministério Público do Estado de São Paulo

26

Revista de estudos CRiminais 55doutRina estRangeiRa

outubRo/dezembRo 2014

26

em deveres de segurança individualmente atribuíveis ou a construção de um dever de proteção do Estado correspondente ao suposto “direito fundamen-tal à segurança”.

Liberdade e segurança não podem ser, enfim, simplesmente contra-postas uma a outra e, então, ponderadas. Sua ponderação pressupõe, antes, uma dupla mudança de perspectiva para cidadão como perturbador e Estado como “titular de direitos fundamentais”, bem como uma operação de meto-dologia e teoria de direitos fundamentais significativa: o sistema das liberda-des é sobreposto por uma incumbência de segurança de parte do Estado, isto é, sobreposto por um “direito fundamental à segurança” a ser forçosamente garantido pelo Estado, que não apenas semanticamente guarda distância da liberdade de medo. Daqui em diante é atribuída aos detentores de direitos fundamentais uma carga de segurança a ser carregada individualmente. Essa se evidencia em um – não devido apenas ao terrorismo internacional – direito de repressão/combate que rompe com as estruturas e barreiras tradicionais do Estado de Direito, especialmente na defesa contra o perigo e na persegui-ção penal, e introduz a diferença entre medo real e medo neurótico.

V.

Os destinatários da defesa contra o perigo presenciam a metamorfose de prevenção antiga em uma nova hiperprevenção, isto é, em uma política de prevenção de riscos como perda de segurança cognitiva, por meio de mo-nitoramento de parte da autoridade estatal, controles e intervenções. Natu-ralmente, o discurso político sobre segurança contém também a mensagem de que a segurança cognitiva será compensada por uma segurança existen-cial, voltada para a existência. Do simbolismo não entendido do direito de luta contra o terrorismo, seus destinatários depreendem inocentemente um direito de proteção contra riscos de vida em geral. À sombra do evento ca-tastrófico, o “estado de exceção normalizado” faz vicejar do lado do público--cidadão uma mentalidade a ele favorável, exatamente ajustada. Sensações difusas de ameaças e um eventual medo com relação à criminalidade tomam corpo em uma necessidade de “Daseinsgewissheit” (“certeza da existência”) e fazem avançar um quietismo resguardado de exigências de liberdade. Esse satisfaz-se com a promessa de segurança existencial.

Com a mudança de paradigma da liberdade para a segurança e suas marcas no direito de repressão, ocorre, conforme anunciado, uma mudança de mentalidade. Situações de ameaças reforçam a incerteza no sentido de Hobbes, que acompanha como uma sombra o regime de liberdade, isto é, incerteza sobre como pode ser efetivamente controlado o turbilhão de inicia-

Page 27: 25 5 0 - Ministério Público do Estado de São Paulo

Doutrina EstrangEirarEvista DE EstuDos Criminais 55

outubro/DEzEmbro 2014

2727

tivas dos cidadãos e sobre como podem ser coordenadas as diversas ações e resultados de ações e demarcados os inevitáveis conflitos sociais. Na sequên-cia, a disposição de conviver com determinados riscos e de tolerar diferenças – aqui mais precisamente estrangeiros e outros que destoam da “normali-dade” e do “comportamento normal” – tem de se defender da acusação de bagatelizar os perigos que ameaçam a sociedade.

No discurso da Ciência, pode ser observada essa mudança de menta-lidade na tendência, à primeira vista não irracional, de arranjar espaço para ponderações a respeito de segurança por meio da restrição de liberdades. Isso acontece, entretanto, por meio de sacrifícios da parte do Estado de Di-reito em favor da utilização da força por parte do Estado, para cuja justi-ficativa (da utilidade) faltam argumentos. Não é admitido pelos especialis-tas em segurança, quando esses se pronunciam ex cathedra, que os produtos das buscas secretas, tirante algumas descobertas casuais, sejam na verdade elementares. Igualmente não é admitido que os resultados de investigações cruzadas apenas em casos raros podem ser usados como provas. Também não há conhecimento de que operações extensivas para fins informacionais sejam posteriormente submetidas a um rigoroso controle de sua eficácia, a um exame de caráter avaliatório. É quase uma característica constitutiva da nova edição do discurso sobre a tortura que a incerteza da salvaguarda e, consequentemente, de sua proporcionalidade efetiva, assim como sobre seu preço, não sejam sujeitos de reflexão séria. Também não pode ser lido nos escritos de seus apoiadores que o “Feindstrafrecht” (direito penal do inimigo) (Jakobs, 2003), novamente trazido à discussão no contexto da repressão ao terrorismo, eventualmente produziria mais inimigos e, assim, aumentaria o perigo supostamente a ser combatido. Em resumo: prática e ciência cultivam o regime de segurança implantado e realizado sem deixarem-se influenciar muito pela realidade.

Nas ciências jurídicas, pode-se ouvir desde algum tempo uma difusa retórica do sacrifício. “O imaginário da política no Estado nacional começa com o sacrifício com que o Direito >nos< familiariza. Da perspectiva do Libe-ralismo, essa é uma sentença impopular, pois aí não se morre pelo Estado, e sim se é protegido pelo Estado. Mas a teoria política deve ter condições de ex-plicar os fenômenos do autossacrifício e do matar” (Haltern, 2003: 555). Isso fica nítido como contribuição heroico-impotente de intelectuais em tempos de guerra contra o terrorismo transnacional. Ela se diferencia nitidamente das reações da turma dos partidários dos direitos fundamentais. Estes rea-gem, em sua maioria, de modo pouco heroico. Conforme o temperamento, o peso da segurança é aceito de forma enfática ou letárgica. Vai-se ao encontro

Page 28: 25 5 0 - Ministério Público do Estado de São Paulo

28

Revista de estudos CRiminais 55doutRina estRangeiRa

outubRo/dezembRo 2014

28

da autoridade do Estado, que se prepara para combater o perigo represen-tado pelo terrorismo, pelo “crime organizado”, pelo islamismo radical e por outros grupos e organizações, abdicando-se antecipadamente de direitos e de demonstrações da efetividade das medidas de combate ao terror por parte do Estado. A máxima: o que o Estado empreende com certeza não há de ser pre-judicial. De resto, ninguém deve ter nada a esconder – ideia que resume sua a atitude em relação a monitoramentos e escutas. Na contramão disso, como que para compensar a abdicação de direitos fundamentais, é articulado um mal controlado de ânsia punitiva em relação a suspeitos e especialmente a criminosos flagrados, expressa nas exigências de processos curtos e de prisão perpétua. Aqui se manifesta uma mentalidade que poderia tornar-se, com o passar do tempo, um problema para os órgãos de segurança desonerados da crítica dos cidadãos e das amarras do Estado de Direito. Quando o sacrifício da liberdade e a disposição de aceitação fortalecem a ânsia por “certeza exis-tencial”, então a autodestituição dos cidadãos acaba correspondendo a uma sobrecarga do Estado hiperpreventivo, a quem é atribuída a tarefa de zelar amplamente pela pessoa. Não por acaso, os guardiães da segurança prome-tem geralmente mais segurança do que de fato podem “manter”.

Deve ser apenas uma questão de tempo até os desiludidos em suas expectativas reconhecerem que trocaram a insegurança assegurada em um regime de direito da liberdade não pela utopia de uma existência absoluta-mente protegida, mas sim pela liberdade incerta em um regime de exceção da segurança secundariamente neurotizante.

Page 29: 25 5 0 - Ministério Público do Estado de São Paulo

29

defesa contra o Perigo Pelo direito Penal – uMa resPosta Para as atuais

necessidades de segurança?*

WinFried hassemer**

RESUMO: No presente artigo, o autor analisa os desafios, os peri-gos e os limites materiais das medidas de persecução penal em um Estado Democrático de Direito. Trata-se de análise crítica, portanto, que desvela a tensão entre política criminal e direito penal na busca de resgatar e proteger a função do Estado de proteção dos direitos fundamentais e dos direitos humanos.PALAVRAS-CHAVE: Medo; Estado Democrático de Direito; direi-tos fundamentais; direitos humanos.ABSTRACT: In this article, the author analyses the challenges, dan-gers and material limits of criminal procedures in a democratic Rule of Law. The tension between criminal politics and criminal law is at the center of the discussion, especially regarding the protection function of human and fundamental rights. KEYWORDS: Fear; Rule of Law; human rights; fundamental rights. SUMÁRIO: I – Avaliação; II – Defesa contra o perigo pelo direito penal; 1 Análise; a) Fatos; b) Paradigmas; aa. Prevenção; bb. Defesa contra o perigo; 2 Oportunidades; a) Circunstâncias; aa. Ausência de limites; bb. Conexão de problemas; b) Objetivos; aa. Firmeza; bb. Franqueza; 3 Conclusão; III – Resumo; Referências.

* Texto originalmente publicado na Revista WestEnd, a. 3, v. 2, 2006. A tradução foi feita por Giovani Agostini Saavedra, Uriel Möller e Melissa Lippert, e os tradutores gostariam de agradecer à Revista WestEnd e à Editora Stroemfeld pela permissão não onerosa de publicação dos artigos. Observação: tanto Abstract quanto Resumo, Palavras-chave e Keywords não existem no original em alemão e foram criados pelos tradutores para adequar o artigo às regras de formatação da revista.

** Prof. Dr. Dr. h.c. Mult. Winfried Hassemer (in memorian). Faleceu no dia 09 de janeiro de 2014. Ele foi até então Professor Titular de Direito Penal, Processual Penal, Criminologia e Filosofia do Direito na Johann Wolfgang Goethe – Universität Frankfurt am Main.

Page 30: 25 5 0 - Ministério Público do Estado de São Paulo

30

Revista de estudos CRiminais 55doutRina estRangeiRa

outubRo/dezembRo 2014

30

i – avaliação

Os tempos em que a tarefa do direito penal poderia ser vista na iguala-ção normativa de crime e culpa acabaram. Hoje, quem domina é o paradigma da prevenção: o melhoramento do mundo por meio do direito penal está inscrito na nossa cotidiana comunicação normativa, no nosso pensamento penal e na nossa ideia de estado como objetivo. O direito penal é um agente da segurança civil, e segurança é um conceito empírico.

O paradigma da prevenção direciona o direito penal a um sistema de geração e conservação de segurança e, dessa forma, faz disso um instrumen-to para o combate de problemas e controle de riscos. Essa funcionalização apaga fronteiras e elimina diferenças entre os conceitos culpa e perigosidade e entre o direito penal formal e material. O sistema do direito penal está acu-mulando acessibilidade e potência na política interior.

O direito penal moderno está se transformando em um direito de defe-sa contra os perigos. Os seus discursos estão sendo dominados pelo interesse de gerar e conservar segurança. Direitos de liberdade e tradições penais de intervenções cautelosas são esmagados em cenários de ameaça. Instrumentos que devem servir à segurança interna têm força de persuasão e se impõem contra as garantias penais sem esforço. A legislação está progressivamen-te caracterizando a ameaça como injustiça penal. Ajustes no processo penal (que tornam uma severa análise de crime e culpa anacronista) e a polêmica sobre um “direito penal do inimigo” comprovam a enorme pressão, sobre a qual um direito penal de orientação na segurança passou a se encontrar.

ii – defesa contra o Perigo Pelo direito Penal

1 análise

a) fatos

A pergunta pelas consequências por meio dessas avaliações requisita primeiro uma série de análises em forma da análise de fatos:

– com quais das circunstâncias e desenvolvimentos denominados te-remos que contar amanhã?

– quais são estáveis e quais passageiras?– quais, portanto, teremos que incluir nos projetos para amanhã?– quais, por outro lado, podemos enfrentar por meio de alterações? – quais podemos até esquecer?

Page 31: 25 5 0 - Ministério Público do Estado de São Paulo

Doutrina EstrangEirarEvista DE EstuDos Criminais 55

outubro/DEzEmbro 2014

3131

Sem análise desse tipo, um projeto teórico de política criminal e direito penal não faz sentido – estaria flutuando no ar, pois afirmações de ciência penal dependem, portanto, que contenham proposições sobre a realidade, também da veracidade dessas proposições. Análises e recomendações de po-lítica atual e futura, por parte delas, ficam em um contexto histórico o qual preenchem, mas também podem errar. Deve nominar estes contextos quem os quer avaliar, e deve acertá-los quem quer ter razão. Tais análises certamen-te são prognósticas e, portanto, incertas. Mesmo assim, não deveremos evitá--los. Pois isso, seria não apenas ingenuidade pseudocientífica, que crê que te-orias já seriam confiáveis quando coerentes; também seria uma traição como cidadão: sentar atrás da escrivaninha e bombardear os arredores com belas verdades e avisos rígidos, como tem feito a teoria liberal da política jurídica por muito tempo (veja Hassemer, 2000: 272 ff., 286 ff.) não tem sido sempre apenas sem custos e efeitos. Além disso, hoje em dia não é correto, conside-rando as profundas e manifestas mudanças das tradições penais, fazer de conta que a política criminal e do interior se refere à ciência criminal teórica bem expressada, e, então, prática e cientificamente encerrar o assunto. Pelo menos hoje faz parte do discurso científico-criminal também a informação dos disputantes sobre as reais pressuposições pelas quais é dirigido. Porque também da racionalidade dessas pressuposições depende o direito, com suas recomendações dogmáticas e políticas, a ser escutado e até cumprido.

Minhas considerações estão fundadas em duas pressuposições: eu parto do princípio, em primeiro lugar, de que o paradigma da prevenção no direito penal sobreviverá além de nós, e eu concordo com isso. Assumo, em segundo lugar, que as impertinências contra o direito penal de fornecer segurança estão fundadas tão profundas e estáveis que o tratamento destas ocupará a ciência e a prática do direito penal nos próximos anos e décadas – se o que sobreviverá a essas impertinências ainda poderá ser chamado de direito penal.

b) Paradigmas

aa. Prevenção

O paradigma da prevenção não é apenas poderoso no nosso direito penal, como também normativamente fundado; é um pilar, que não apenas precisamos envolver em qualquer consideração sobre uma construção do fu-turo direito penal, mas que também devemos saudar como expressão de um regulamento de um direito penal moderno assim como constitucional. Os meus olhos, ao menos, não veem alternativas para esse direito penal.

Page 32: 25 5 0 - Ministério Público do Estado de São Paulo

32

Revista de estudos CRiminais 55doutRina estRangeiRa

outubRo/dezembRo 2014

32

Enquanto o direito penal intervir em direitos – e continuará intervin-do em direitos constitucionais também, quando em um belo tempo distante domará a sua ferocidade e se concentrará somente em constatar a culpa e poupar o autor envergonhado da pena (Günther, 2005) –, terá que justificar essa intervenção diante das próprias tradições e da constituição, e para isso a simples referência à justiça da reação punitiva não bastará. O direito penal terá que responder também pelas consequências reais, para os envolvidos e para todos nós, que trazem essa reação justa. Essa resposta só pode vir do arsenal preventivo, no qual os instrumentos para o melhoramento do mundo real de hoje estão depositados: apoio para o autor, escarmento de todos os outros, fortalecimento da consciência de normas – ou todas as outras coisas que os penalistas inteligentes da prática e teoria vão desenvolver de objetivos da penalização nos próximos anos.

Não consigo imaginar que a compreensão das sociedades ocidentais vai poder admitir intervenções na liberdade, propriedade e honra, assim como intervenções penais cuja justificativa se esgotará em adequância nor-mativa. Não consigo imaginar que um direito penal, que atua absolutamente e, portanto, livre da obrigação de melhorar o mundo, disfuncional e majesto-samente pisando nos direitos constitucionais das pessoas, poderá impor-se.

bb. defesa contra o perigoNão, o paradigma da prevenção em si não requisita nossa atenção; são

os brotos desse paradigma para os quais um trabalho crítico é importante, e é principalmente o tamanho e a decoração do espaço que o paradigma da pre-venção veio a ocupar. Ele se estende do direito penal material ao formal até o direito penal juvenil e o direito penal secundário (Nebenstrafrecht); ele toma conta da legislação penal, da justiça penal e da ciência penal; ele oferece espa-ço a inúmeros, múltiplos e claramente perfilados instrumentos, com a ajuda dos quais ele realiza uma reforma do direito penal antiquado: multiplicação de proibições, intensificação de sanções, aumento de densidade de controle, sub-definições semânticas de níveis de intervenção e, portanto, de direitos de inter-venção, informalização de processos. Esse espaço da defesa contra o perigo se estende desde os anos 1980, ou seja, há algumas décadas, com continuidade, e está prestes a esmagar o espaço vizinho, que um dia foi o direito penal.

Minhas pressuposições encaixam-se, assim eu suponho, nas diagnoses de desenvolvimento da sociedade, a longo prazo, nas últimas décadas – de-senvolvimentos que fortalecem o paradigma da segurança social e psíquica. Essas diagnoses já foram publicadas e discutidas

(Albrecht, 1993; Prittwitz, 1993). Por isso, só quero nomeá-los com sub-títulos: desorientação normativa, principalmente nas certezas cotidianas e

Page 33: 25 5 0 - Ministério Público do Estado de São Paulo

Doutrina EstrangEirarEvista DE EstuDos Criminais 55

outubro/DEzEmbro 2014

3333

normas sociais; medo paralisante de risco e sensação de ameaça de crime em fundamentais partes da vida; intensificação de necessidades de controle como reação a desorientação e expectativa de dano. A continuidade histórica por muito tempo e a impressionante homogeneidade desse desenvolvimen-to, como acabei de reconstruir, têm caráter sistemático: se estendendo por muito tempo, grandes espaços e diferentes culturas de controle, de conse-quência para todas as áreas de atuação penal e tomando conta de inúmeros instrumentos (confira Conze, 2005).

Minha análise então é: que o espaço da defesa contra o perigo no direi-to penal chegou a estar em um fundamento tão fundo e fixo, que ele em tem-po visível não vai poder ser diminuído. Independentemente de como avaliar isto, no direito penal teremos que, praticamente, conviver com o paradigma da segurança e teremos que, teoricamente, contar com ele.

Para ser concreto, não consigo ver que o entendimento normativo da nossa sociedade de hoje e provavelmente de amanhã permitirá a liberação de criminosos, que cumpriram a sua pena, mas que são uma enorme ameaça atu-al para bens jurídicos centrais de outras pessoas. Também não considero coin-cidência a carreira vertical da proteção da segurança (Sicherungsverwahrung), que, há um tempo, já tínhamos quase esquecido como instrumento penal1; ela reflete precisamente as necessidades de segurança e controle, os quais são citados aqui permanentemente. Eu tenho certeza que atentados na Alemanha do nível de Nova York, Madrid ou Londres embruteceriam nossa sensibilida-de civil social e de estado democrata, e que não estamos imunes a estes aten-tados. Observo com preocupação com quais voltas argumentativas os nossos Tribunais2 tentem salvar a proteção de dados diante do “perigo abstrato” de ativação de terroristas do meio da sociedade – um perigo cuja avaliação rea-lista não dispõe de instrumentos adequados e que mesmo assim tenham que medir profissionalmente.

Penso, além de tudo isso, que qualquer política criminal, no Estado Democrático de Direito, deve contar com o entendimento normativo da so-ciedade em seu próprio tempo – não no sentido que ela deveria ser a impres-são deste, mas sim no sentido que ela tenha este permanentemente em foco, inclua este em seus cálculos, o altere, esteja à sua frente e, mesmo assim, man-tém contato com ela pragmaticamente. A política criminal não pode deixar

1 Por exemplo, no banco de dados on-line Juris, não se encontra, antes de 1971, simplesmente, nem mesmo um escrito sobre proteção da segurança.

2 Sobre o tema: VG Wiesbaden. Datenschutz und Dateisicherheit, 2003: 375 e ss.; VG Trier. Neue Juristische Wochenschrift, 2002: 3268 e ss.

Page 34: 25 5 0 - Ministério Público do Estado de São Paulo

34

Revista de estudos CRiminais 55doutRina estRangeiRa

outubRo/dezembRo 2014

34

entendimentos normativos irracionais (por serem irracionais) de lado; deve lidar com este, prática e teoricamente, ao invés de retirar-se para sua própria racionalidade esotérica (mais detalhadamente: Hassemer, 1973). A ameaça real pelo crime, por fim, não decidirá sobre a real política criminal, mas sim a sensação de ameaça, o medo do crime, dos(as) eleitores(as) – e isso com todo direito, em um Estado Democrático.

2 oPortunidades

a) circunstâncias Antes que nos perguntemos pelos detalhes das oportunidades que en-

contramos nesta situação, devemos dar uma olhada em dois outros fatos que são de suma importância para as mesmas e representam múltiplos detalhes que necessitam atenção ao pensar em um futuro melhor.

Um destes fatos é de abalar a esperança e o outro pode alimentá-la.

aa. ausência de limitesDe efeito extremamente desencorajador (entmutigend) é a circunstância

que o direito penal em sua transcendência para um direito de defesa contra o perigo perde um limite de intervenção que estava incluído nele como direito penal vingativo por natureza: a função limitante do princípio da culpa, como é chamado (Jescheck e Weigend, 1996: § 4 I; Albrecht, 2003: § 3; Stächelin, 1998: 242 ff.). Um direito penal, construído sobre a vingança, que se entende como resposta adequada para o crime, teoricamente não precisa se preocupar com a proporção desta que é sua intervenção. Vingança justa é proporcional ou deixa de ser.

Prevenção e defesa contra o perigo, por outro lado, a princípio, são abs-tinentes de limites, como pode ser provado facilmente na teoria e observado na prática com frequência. As intervenções destas são legítimas enquanto o perigo continua; perigo e combate do mesmo são seu único proprium, limites de intervenção não fazem parte de seu vocabulário. Pequenos e perigosos cri-minosos reincidentes (Kleinkriminelle Hangtäter und gefährliche Intensivtäter), sob o paradigma da prevenção, estão ameaçados por intervenções sem limi-tes como o “enclausuramento eterno”3, por intervenções que um paradigma

3 Esse conceito foi cunhado em 2001 pelo então Primeiro Ministro (Bundeskanzler) Gerhard Schröder e é, desde então, objeto do debate político (de direita). Ver, por exemplo, as manifestações do atual Ministro do Interior (Innenminister) Wolfgang Schäuble im Stern vom 02.08.2001 ou do então Presidente (Vorsitzenden) da Associação dos Juízes (Richterbundes) e atual Ministro da Justiça da Saxônia Geert Mackenroth no General-Anzeiger de 02.01.2003.

Page 35: 25 5 0 - Ministério Público do Estado de São Paulo

Doutrina EstrangEirarEvista DE EstuDos Criminais 55

outubro/DEzEmbro 2014

3535

vingativo nunca teria planejado. A proporcionalidade, porém, em um Estado Democrático de Direito, deve ser ensinada a prevenção que é estranha para esta por natureza; deve ser anexada externamente. Isso, às vezes, não funcio-na quando uma sociedade fixada em controle não é convencida de que, em um Estado Democrático de Direito, às vezes, intervenções devem ser inter-rompidas antes que consigam eliminar o perigo.

O elemento central, em um Estado de Direito, de todo direito para in-tervenção, a proporcionalidade, enfrenta dificuldades em um direito penal de defesa contra o perigo – principalmente se, como hoje, o combate do pe-rigo é direcionado por emoções como medo de risco, temor de crime e ne-cessidades de controle invés de uma soberania experiente; isso aumenta as possibilidades de uma política criminal populista e com isso a probabilidade de delimitação de interesses preventivos.

bb. conexão de problemas

Uma segunda circunstância, que pode ser mais favorável para um di-reito penal constitucional orientado na segurança, indica a relatividade sis-temática e histórica de estágios de desenvolvimentos e propõe deixar aberto avaliações e revisar lãs constantemente. Ele expressa que situações proble-máticas estão conectadas e que problemas só ficam prováveis sob certas pre-missas históricas.

Essa naturalidade tem em nosso contexto uma curiosidade: nós não teríamos certos problemas de segurança, se teríamos uma dogmática de apli-cação de pena menos desenvolvida, ou seja: também aquelas tentativas “obe-dientes” (Gillmeister, 2000) de fazer a aplicação da pena melhor de se checar, mais transparente e argumentativa (Bruns, 1974 e 1985; Frisch, von Hirsch e Albrecht, 2003) fazem parte produtiva na carreira da proteção da segurança (Sicherungsverwahrung). Nossa antiga prática de aplicação de pena, para qual era suficiente “fundamentar” uma pena como apropriada, mas também ne-cessária, e regulamentos estrangeiros de direito penal, que permitem aplicar prisão por mais tempo que uma vida humana, não tem problemas práticos com a proteção da segurança (Sicherungsverwahrung): esses satisfazem as ne-cessidades de seguridade concludentemente com penas longas4.

4 Por exemplo, pode ser aqui introduzido o direito penal dos Estados Unidos da América com suas habitual offender laws (comumente designados como three strike laws). Ver, a esse respeito: Welke, 2002, assim como Grasberger, 1998.

Page 36: 25 5 0 - Ministério Público do Estado de São Paulo

36

Revista de estudos CRiminais 55doutRina estRangeiRa

outubRo/dezembRo 2014

36

Não deveria haver dúvida de que esses tenham um problema de le-gitimidade assim como da conclusão disso, que é melhor fazer problemas desse tipo visíveis que escondê-los em pragmática opaca. A transparência da aplicação de pena, realizada já há décadas pela ciência de direito penal e jurisdição suprema5, deve ser irreversível – mesmo que revele outras dificul-dades, que agora nos preocupam.

b) objetivos

Consequências resultam de análises pragmáticas, objetivos de circuns-tâncias e desenvolvimentos avaliados. Desnecessário dizer que na definição dos objetivos se trata das minhas conclusões. Também quem consegue con-cordar com minhas análises por grande parte ainda vai ter boas chances de ter outra opinião referente aos objetivos da política criminal de hoje em dia.

Eu quero, para chegar ao ponto, diferenciar duas possíveis atitudes diante objetivos de política criminal e com isso expressar onde fica a fronteira entre aquilo, que mesmo em um tempo de defesa contra o perigo pelo direito penal não deveria ser negociável, e aquilo, que pode contar como desenvol-vível.

aa. firmeza

Inegociável para mim mesmo, em tempos de defesa contra o perigo pelo direito penal, é o proprium deste. Entendo por isso a totalidade de ga-rantias e limites de intervenção, que se explica pelo fato de que, no direito penal, trata de uma “desvalorização social-ética”6; também pode se falar da “formalização do tratamento de conflitos” (Hassemer, 1990: § 30 II, III) ou simplesmente de “direito penal constitucional”. Sempre significa que incon-veniências do direito penal para suspeitos, condenados, testemunhas, víti-mas, parentes e para todos nós devem manter balanço com as penais e cons-titucionais garantias de segurança e cuidado. Nem uma outra área do Direito é tão manifestadamente desenhada para reservar-se, mesmo que dispõe de

5 Assim, na forma da decisão sobre a prisão perpétua: BverfGE [Entscheidungen des Bundesverfassungsgericht] 45, p. 187 e ss.; Análise e documentação sistematizados em Lackner e Kühl 2004: §46, N.R. 24 e ss.

6 BverfGE [Entscheidungen des Bundesverfassungsgerichts] 25, 269 (286); jurisprudência recorrente.

Page 37: 25 5 0 - Ministério Público do Estado de São Paulo

Doutrina EstrangEirarEvista DE EstuDos Criminais 55

outubro/DEzEmbro 2014

3737

instrumentos, que às vezes podem intervir mas profundamente nos interes-ses humanos que os instrumento do direito penal.

Essas garantias são, por consequência, agredidas em um direito penal orientado no perigo, como já está acontecendo (Hassemer, 2000: 248 ff.). A formalização do tratamento de conflitos pelo direito penal é oposta a uma produção súbita, concentrada e eficácia de segurança pelo direito penal; ela bloqueia informações por direito ao silêncio (Schweigerechte) e proibição de produção de prova contra si mesmo (Beweisverbote), evita acessos a crianças perigosas ou dificulta soluções rápidas antes de uma suspeita de um crime (Tatverdacht) ameaçador. Enquanto defesa contra o perigo é feita pelo direi-to penal, portanto não é desejado alcançar esse objetivo pelo direito público (Verwaltungsrecht) ou, por exemplo, com um direito de intervenção (Hasse-mer, 1996: 22 ff.), não se pode despedir as garantias do direito penal consti-tucional, é preciso defender o caráter pessoal da culpa penal contra o contro-le de coletivos (confira Heine, 2005) ou a barreira da suspeita de um crime (Tatverdacht) para intervenções contra a radiografia de cenas perigosas (confi-ra Vahle, 2001). O uso do direito penal sob descaso de suas garantias abolaria o balanço do direito penal constitucional e inferiria as fronteiras do direito penal de direito.

Essa firmeza é fácil de fundamentar e – pelo menos hoje – difícil de manter. É um incomodo para a mesma tendência que também a dedicação para o direito penal de defesa contra o perigo tem como benfeitor o persisten-te interesse em segurança, domínio de riscos, controle rápido e eficaz.

Ela tem que manter se, apesar do poderoso interesse de solução si-tuacional e súbita de problemas, que – como atualmente no debate sobre a tortura (Braum, 2005; Ziegler, 2004; Jahn, 2004) – quer sacrificar limites de intervenções defendidas com esforço e conquistadas ao longo prazo por um impulso humano, porém impensado, que quer derrubar esta barreira logo em toda a frente e não apenas desculpar ou justificar a infração da dignidade humana por meio da prevenção situacional, mas ao longo prazo fazer dela a regra no Direito7.

Ela tem que manter se, apesar da necessidade desesperada de desol-ver a ameaça misantropica para a vida de muitos por um avião usado como corpus delicti, atirando não apenas nos terroristas, mas também nos inocentes

7 Esse ponto eu desenvolvi mais detalhadamente no Jornal Süddeutsche de 27.02.2003, p. 7. Nesse mesmo sentido, também, Reemtsma, 2005.

Page 38: 25 5 0 - Ministério Público do Estado de São Paulo

38

Revista de estudos CRiminais 55doutRina estRangeiRa

outubRo/dezembRo 2014

38

a bordo com o mesmo cálculo misantrópico, que a vida destes estaria perdida de qualquer forma8.

Ela tem que manter se, apesar de uma política, que quer negar a pro-teção das garantias penais a uma parte da população e declarar esta “inimi-gos” (Jakobs, 2004) com a consequência, que estas pessoas perdem qualquer direito e que não apenas sobre eles, mas sobre nos todos desaba o teto que devia na imagem dos iluministas proteger-nos de uma vida no _________ (Naturzustand (philosophia)): uma vida “solitária, miserável, repugnante, animal e breve”, sem segurança e paz estável (Hobbes, 1966 [1651]: 96). Não há interesse importante de defesa contra o perigo que poderia sustentar nor-mativamente essa invasão na civilidade da modernidade. Mesmo se quisés-semos abandonar as tradições penais de referência a pessoa, de proteção e cuidado, por meio do limite que eu desenhei aqui, a favor de um conceito penal de defesa contra o perigo, isso obviamente não seria o fim de qualquer proteção pela lei, como um “direito penal do inimigo”, o causaria; seria a hora de uma defesa proporcional contra o perigo pelo direito penal.

A firmeza de um direito penal constitucional finalmente tem que se manter também e principalmente apesar das múltiplas banalidades, onde vastos interesses de controle preventivo querem impor-se contra a referên-cia pessoal e precisão de tradições penais, como aparece, presentemente, em torno da questão se a perda da permissão para dirigir, por decisão judicial penal (§ 69 StGB), deve ser utilizada no combate da criminalidade em geral ou apenas na pacificação do trânsito9. Nessas banalidade e não apenas nas constelações excitantes e espetaculares vai se demonstrar qual força resta do pensamento penal diante do interesse em defesa eficiente contra o perigo.

bb. franqueza

As doutrinas do direito penal e política criminal, por outro lado, não podem, principalmente, deixar de lado um desenvolvimento que quer com-prometer também o direito penal na produção de segurança. Isso não apenas porque uma teoria, que negligencia realidades, porque crê que estas são irra-

8 Contra esse pensamento calculista (diesem Kallkül), o Primeiro Senado (Erste Senat) do Tribunal Constitucional Alemão (Bundesverfassungsgericht) opôs a barreira intransponível da garantia da dignidade da pessoa humana (Urteil, v. 15.02.2006, I BvR 357/05 betr. § 14 III Luftsicherheitsgesetz).

9 Ver, sobre esse ponto, BGH (Groβer Senat für Strafsachen) Juristenzeitung 2006: 98 m. Anm. Duttge.

Page 39: 25 5 0 - Ministério Público do Estado de São Paulo

Doutrina EstrangEirarEvista DE EstuDos Criminais 55

outubro/DEzEmbro 2014

3939

cionais e inadequadas, não vale nada, mas principalmente porque a promo-ção de segurança sem dúvida é um objetivo do direito penal até quando esse direito penal se dedica ao paradigma preventivo; melhoramento de crimi-nosos, escarmento e estabilização de normas da generalidade servem para a minimar crimes e entendem como objetivos indescutáveis da pena o direito penal também como produtor de segurança. Em seu geral rumo à segurança, o direito penal moderno e o direito de defesa contra o perigo, portanto, não divergem.

Os meios, porém, de como realizar isto fazem a diferença e afetam o proprium do direito penal: enquanto um direito de defesa contra o perigo faz da criação de segurança o seu objetivo diretamente, o direito penal pode criar a segurança só indiretamente: por trás da resposta constante e adequada ao crime, na esfera de reação que mantém liberdade e proporção10. O direito penal deve, se quer justificar o seu julgamento, ser apropriado para a pessoa que é julgada, e não pode reprimir esse dever de adequância pessoal e justiça de suas intervenções nem mesmo em tempos de melhoramento preventivo do mundo. Esperança por e realização de prevenção e defesa contra o perigo são somente aceitáveis no direito penal na esfera de uma resposta adequada para a injustiça e culpa. Disto resulta muita coisa.

Também sem ações no proprium do direito penal tem regras da lógica e justiça sistemática, que em época de medo de risco e necessidades de controle tendem a apagar-se. Portanto, um “enclausuramento eterno”, uma exigência insensata em um sistema, que está direcionado para a defesa contra o perigo. Só um direito penal com foco na culpa pode atuar em forma “eterna”, pois este trata do passado conhecido e não com futuro incerto e, portanto, pode definir a proporção de sua resposta precisamente. Neste um “enclausura-mento eterno” não falha (já) na lógica, mas (apenas) diante da constituição, que promete também ao condenado para prisão perpétua uma perspectiva de liberdade11. “Proteção da segurança (Sicherungsverwahrung) eterna”, por outro lado, é populismo ou burrice. Porque qualquer defesa contra o perigo deve, se é para fazer sentido, repititivamente certificar-se se o perigo que deve ser combatido ainda existe e de que tipo é; aqui nada é “eterno”. O mesmo vale para consequências de uma justiça de sistema como o dever da política criminal, de não apenas proclamar perigos, mas também checá-

10 Eu desenvolvi esse ponto mais detalhadamente no Livro em homenagem (Festschrift) a Friedrich Christian Schroeder: Hassemer, 2006.

11 BverfGE [Entscheidungen des Bundesverfassungsgerichts] 45, 187 (Leitsatz 3; 242 e ss.).

Page 40: 25 5 0 - Ministério Público do Estado de São Paulo

40

Revista de estudos CRiminais 55doutRina estRangeiRa

outubRo/dezembRo 2014

40

-las conforme as medidas das ciências empíricas – e respeitar os resultados (Hassemer, 2000: 280). Tudo isso é evidente.

Menos óbvio, mas muito mais importante, é a tarefa de desenvolver um direito constitucional de criação de segurança pelo direito penal. Nesta tarefa não foi pensado ainda pelas teorias liberais e críticas do direito penal, suponho, porque estavam fixadas na estratégia de afastar o moderno pensa-mento na segurança do direito penal. Esta estratégia se tornou anacronista. Não é uma ajuda para o direito penal, na minha opinião, ignorar estes desen-volvimentos; só se pode ajudá-lo se estes são notados e processados. Nisto nos encontramos bem no início12.

Enquanto teorias liberais e filantrópicas do direito penal estão deba-tendo os fundamentos e o perfil de um direito penal com foco na culpa há quase dois séculos, o perfil de um direito penal constitucional de segurança é desconhecido. Quero desenhar uma linha rudimentar deste.

Segurança pelo direito penal é o objetivo do direito penal e não de um direito de defesa contra o perigo. O direito penal, portanto, deve prevalecer; este deve continuar firme sobre pressão preventiva e defender o seu proprium. Isso significa, antes de tudo, que todo anseio por segurança, que podem ser buscadas fora do direto penal com a mesma eficiência, não são levadas em conta pelo direito penal; este é e continua sendo ultima ratio. Isso significa também que um direito penal de segurança coloque em foco a individualida-de, a personalidade e a dignidade do sujeito, percebe e protege a singularida-de deste e enfortalece a perspectiva da liberdade – não apenas pelo limite da proporcionalidade13. Significa, ao fim, o dever de persuasão, que também um direito penal orientado na segurança, não pode garantir a mesma absoluta-mente, que segurança também no direito penal encontra limites empíricos e normativos, que, portanto, teremos que viver com o risco.

3 conclusão

A tendência para a defesa contra o perigo pelo direito penal move a teoria e a prática e exige uma nova orientação. Nesta as bem fundadas garan-tias pessoais do direito penal constitucional devem ser mantidas. A observa-

12 A decisão mais atual do BGH sobre os pressupostos e os limites da proteção da segurança são os primeiros passos no caminho certo. Ver: I., 2. e 4. Strafsenat em: Strafverteidiger, 2006: 64 e ss. m. Anm. Brettel.

13 De forma exemplar: BverfGE [Entscheidungen des Bundesverfassungsgerichts] 109, 133 (Ls. I a combinado com 2 a até d; 149 e ss.).

Page 41: 25 5 0 - Ministério Público do Estado de São Paulo

Doutrina EstrangEirarEvista DE EstuDos Criminais 55

outubro/DEzEmbro 2014

4141

ção da proporcionalidade como limite de intervenção não basta. Segurança pelo direito penal não pode ser gerada subitamente; esta só vai ser conquis-tada por obediência constante e confiável às tarefas do direito penal, por trás de justas e constantes respostas à injustiça e culpa.

iii – resuMo

O direito penal moderno, preventivo está se transformando em um direito de defesa contra o perigo. Essa tendência é estável; esta responde à desorientação normativa, medo de crime e necessidades de controle de uma sociedade do risco (Risikogesellschaft). O que conta agora é levar a sério essa tendência e pensar sobre um direito penal constitucional. Esse direito deve manter as fundamentais tradições do direito penal: a referência à pessoa, a adequância da resposta à injustiça e culpa, os objetivos de proteção e cuida-do. Só nessa esfera há segurança pelo direito penal.

referÊnciasALBRECHT, Peter-Alexis. Erosionen des rechtsstaatlichen Strafrechts. In: Kritische

Vierteljahresschrift für Gesetzgebung und Rechtswissenschaft, Jg., 76, 1993, p. 163-182.______. Die vergessene Freiheit. Strafrechtsprinzipien der europäischen Sicherheitsdebatte.

Berlin: Berliner Wissenschaftsverlag, 2003.BRAUM, Stefan. Erosion der Menschenwürde – Auf dem Weg zur Bundesfolterordnung

(BFO)?, In: Kritische Vierteljahresschrift für Gesetzgebung und Rechtswissenschaft, Jg. 88, 2005, p. 282-298.

BRUNS, Hans-Jürgen. Strafzumessungsrecht. Eine Gesamtdarstellung, 2. Auflage. Köln u. a.: Heymann, 1974.

______. Das Recht der Strafzumessung. Eine systematische Darstellung für die Praxis, 2. Auflage. Köln u.a.: Heymann, 1985.

CONZE, Eckart. Unsere Sicherheit. In: Frankfurter Allgemeine Zeitung vom 31. Oktober, p. 11, 2005.

FRISCH, Wolfgang; Andrew von Hirsch und Hans-Jörg Albrecht (Org.). Tatproportionalität. Normative und empirische Aspekte einer tatproportionalen Strafzumessung. Heidelberg: C.F. Müller, 2003.

GILLMEISTER, Ferdinand. Stafzumessung aus verjährten und eingestellten Straftaten. In: Neue Zeitschift für Strafrecht, Jg. 20, 2000, p. 344-348.

GRASBERGER, Ulrike. Three Strikes and You are Out. In: Zeitschrift für die gesamte Strafrechtswissenschaft, Jg. 110, 1998, p. 796-805.

GÜNTHER, Klaus. Schuld und kommunikative Freiheit. Frankfurt a. M.: Klostermann, 2005. HASSEMER, Winfried. Theorie und Soziologie des Verbrechens. Ansätze zu einer

praxisorientierten Rechtsgutlehre. Frankfurt a. M.: Athenäum und Fischer, 1973.______. Einführung in die Grundlagen des Strafrechts. 2. Auflage. München: Beck, 1990.______. Produktverantwortung im modernen Strafrecht. 2. Auflage. Heidelberg: Müller, 1996.

Page 42: 25 5 0 - Ministério Público do Estado de São Paulo

42

Revista de estudos CRiminais 55doutRina estRangeiRa

outubRo/dezembRo 2014

42

______. Strafen im Rechtsstaat. Baden-Baden: Nomos, 2000.______. Strafrecht, Prävention, Vergeltung. Eine Beipflichtung. In: Andreas Hoyer et al.

(Org.). Festschrift für Friedrich Christian Schroeder zum 70. Geburstag. Heidelberg: C.F. Müller, 2006, p. 51-65.

HEINE, Günther. Straftäter Unternhemnen. In: Recht I, 2005.HOBBES, Thomas 1966 [1651]: Leviathan oder Stoff, Form und Gewalt eines bürgerlichen

kirchlichen Staates, Iring Fetscher (Org.). Neuwied u. a.: Luchterhand.JAHN, Matthias. Gute Folter – Schlechte Folter? In: Kritische Vierteljahresschrift für

Gesetzgebung und Rechtswissenschaft, Jg. 87, 2004, p. 24-49.JAKOBS, Günther. Bürgerstrafrecht und Feindstrafrecht. In: HRR-Strafrecht 3/2004, Jg. 5,

p. 88-95.JESCHECK, Hans-Heinrich und Thomas Weigend. Lehrbuch des Strafrechts: Allgemeiner

Teil, 5. Auflage. Berlin: Duncker & Humboldt, 1996.LACKNER, Karl und Kristian Kühl. Strafgesetzbuch: Kommentar. 25. Auflage. München:

Beck, 2004.PRITTWITZ, Cornelius. Strafrecht und Risiko. Frankfurt a. M.: Klostermann, 1993.REEMTSMA, Jan Philipp. Folter im Rechtsstaat? Hamburg: Hamburger Edition, 2005.STÄCHELIN, Gregor. Strafgesetzgebund im Verfassungsstaat. Berlin: Duncker & Humboldt,

1998.VAHLE, Jürgen. V-Mann-Einsatz gegen Unverdächtigen [Rechtssprechungsbeitrag]

(BGH, Urt., v. 18.11.1999 – StR 222/90). In: Deutsche Verwaltungspraxis, 2001, p. 216.WELKE, Wanja. Mandatory Sentencing. In: Zeitschrift für Rechtspolitik, Jg. 35, 2002,

p. 207-214.ZIEGLER, Ole. Das Folterverbot in der polizeilichen Praxis. In: Kritische Veierteljahresschrift

für Gesetzgebung und Rechtswissenschaft, Jg. 87, 2004, p. 50-66.

Page 43: 25 5 0 - Ministério Público do Estado de São Paulo

Doutrina nacional

45 A Lei Penal em Francisco de Vitória e a Matriz da Dogmática do Direito Penal Contemporâneo

(Cláudio Brandão)

65 A Prisão Preventiva Como Instrumento para Tutela da Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher

(Gilberto Schäfer e Julio Fernandes Neto)

89 Processual Penal Pós-Acusatório? Ressignificações do Autoritarismo Processual Penal

(Ricardo Jacobsen Gloeckner)

119 O Discurso do Supremo no Mensalão – Análise Quantitativa dos Votos Orais no Julgamento da AP 470

(Ivar A. Hartmann e Renato Rocha Souza)

135 A Doutrina da Cegueira Deliberada na Lavagem de Dinheiro: Aprofundamento Dogmático e Implicações Práticas

(Luiza Farias Martins)

Page 44: 25 5 0 - Ministério Público do Estado de São Paulo
Page 45: 25 5 0 - Ministério Público do Estado de São Paulo

45

a lei Penal eM francisco de vitória e a Matriz da dogMática do direito

Penal conteMPorâneoCláudio brandão*

* Professor Titular da Faculdade de Direito do Recife, Universidade Federal de Pernambuco. Professor Titular da Faculdade Damas da Instrução Cristã – Recife. Professor visitante, ao abrigo do programa Erasmus, da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa.

RESUMO: O iluminismo penal foi forjado como culminação de um processo de quebra de paradigmas. Assim, muito ele deveu às po-sições de vanguarda que foram construídas antes de sua afirmação, mormente aquelas do direito natural racionalista, que estavam na base do pensamento jurídico da Idade Moderna. Nesse contexto, as ideias penais de Francisco de Vitória ganham notória importância para a compreensão da matriz do direito penal hodierno, pois elas se vinculam ao referido iluminismo. Tais ideias rompem o paradigma do medievo e substituem o teocentrismo pelo antropocentrismo no campo criminal, conforme se depreende tanto do costume em bene-fício do réu quanto da vinculação da pena à culpa. PALAVRAS-CHAVE: Francisco de Vitória; ideias penais; direito na-tural; racionalismo.ABSTRACT: The criminal Illuminism was forged as the culmination of a process of breaking paradigms. So much it owed to the forefront positions that were constructed prior to this statement, especially those of the rationalist natural law, which were the basis of the legal thinking of the modern age. In this context, the criminal ideas of Francisco de Vitoria earn great importance for understanding the array of today’s criminal law, because they are linked to the Ilumi-nism. These ideas did break the paradigm of medieval and replace theocentrism by anthropocentrism in the criminal field, as is appa-rent both from the usual benefit of the defendant as the link to pen and guilt.KEYWORDS: Francisco de Vitoria; criminal thinking; natural law; rationalism.

Page 46: 25 5 0 - Ministério Público do Estado de São Paulo

46

Revista de estudos CRiminais 55doutRina naCional

outubRo/dezembRo 2014

46

SUMÁRIO: 1 Dimensão do estudo e objeto da investigação; 2 O hu-manismo do século XVI e o contexto da obra de Vitória; 3 As ideias penais de Francisco de Vitória; 3.1 Panorama conceitual da lei; 3.2 Aproximação valorativa do conceito de bem jurídico; 3.3 O cos-tume como fonte de derrogação da lei penal; 3.4 Relações entre a pena e a culpabilidade; Considerações finais; Referências.

1 diMensão do estudo e oBJeto da investigação

O direito penal liberal, de um Estado Democrático de Direito, caracte-riza-se pela limitação ao jus puniendi. Com essa limitação, protege-se a pessoa humana frente ao Estado e, com isso, restringe-se à aplicação da consequên-cia penal – a pena – por meio de uma série de requisitos prévios a sua apli-cação. Com efeito, tais requisitos foram estruturados a partir de século XIX em três teorias que formam e conformam a dogmática penal, quais sejam, a teoria do crime, a teoria da pena e a teoria da lei penal, que geralmente são apontadas como resultantes do iluminismo penal, embora com desenvolvi-mento posterior autônomo. Note-se, ainda, que a cientificidade do direito penal foi construída a partir da primeira dessas teorias, isto é, a teoria do cri-me, visto que ela estrutura uma série de institutos que diferenciam a conduta penalmente relevante, os quais também se apresentam como obstáculos que devem ser vencidos para a aplicação da pena, revelando-se, dessarte, como critérios que limitam em si mesmos o poder de punir do Estado.

A doutrina é uníssona em ressaltar a contribuição do Marquês de Beccaria, Cesare Bonesana, para a construção deste dito direito penal liberal. Aponta-se como marco desta fase, pois, a segunda metade do século XVIII, época na qual foi editada a obra Dos delitos e das penas, datada de 1764, de autoria daquele nobre. Neste panorama, o princípio da legalidade, apontado como a pedra angular de uma sociedade unida pelo contrato social, traria consequências para a aplicação do direito penal, pois seria decorrente desse princípio, por exemplo, a utilidade da pena, a igualdade das pessoas ante este Direito (não mais se diferenciando nobres e servos na aplicação da pena), a proibição da analogia, entre outras.

Note-se que não se classifica a obra de Beccaria como de dogmática penal, pois a sua tese sobre a limitação do poder de punir é defendida no âmbito da filosofia política. Isto não significa, entretanto, que, ao tempo dele, não houvesse uma construção própria sobre o direito penal. Em que pese a hoje utilizada tripartição da teoria do crime (tipicidade, antijuridicidade e culpabilidade) ter se desenvolvido a partir do século XIX, esteados nos postulados de limitação ao poder de punir do Estado que, como já afirma-

Page 47: 25 5 0 - Ministério Público do Estado de São Paulo

Doutrina nacionalrevista De estuDos criminais 55

outubro/Dezembro 2014

4747

do, caracterizam o direito penal do Estado Democrático de Direito, naquele tempo os práticos italianos já tinham consolidado uma série de instituições. Apenas para exemplificar, cite-se o Tractatus Criminalis, de Tiberius Deciano, o qual apresentava, com base nas quatro causas primeiras aristotélicas, ditas instituições. A causa formal do crime era a lex, quer a lei positiva, quer a lei natural; a causa material do crime era o dolo; a causa eficiente do crime era a ação; e, por fim, a causa final do crime eram os motivos. Mas Beccaria não se preocupou com a análise das instituições penais em si, tratando delas de forma apenas reflexa, pois sua obra, como ele mesmo afirmava, voltava-se para a crítica dos déspotas subalternos, que se assentavam sob o peso de suas tiranias, utilizando-se para afirmar a sua potestade do direito penal.

Nessa toada, os investigadores do direito penal não se preocupam, em geral, com a investigação anterior a Beccaria. Toma-se, pois, o iluminismo como o gérmem do direito penal liberal, o que, se não é algo de todo equivo-cado, apresenta-se como uma afirmação, no mínimo, incompleta. Conforme assinala Sílvia Alves, o humanismo contribuiu para o nascimento de uma parte geral ao delinear uma direção sistemática e sintética para o direito pe-nal1, logo se vê que o iluminismo penal já encontrou, ao vir ao lume, uma sólida gama de teorizações sobre o direito penal.

Com efeito, o iluminismo penal não surgiu do nada. Muito ao contrá-rio, ele se apresentou como a resultante de um processo que tem em sua raiz o direito natural racionalista, que, por sua vez, deu para o jurista atual a base das instituições penais hoje utilizadas, vez que esta última corrente preocu-pou-se muito menos com a filosofia política, pois foi voltada para dar respos-tas concretas aos problemas jurídicos que precisava enfrentar em sua época.

Pois bem, entre os pensadores do direito penal do direito natural racio-nalista, tem especial importância o salamantino Francisco de Vitória, vez que ele antecipa posições, instituições e consequências que somente serão conso-lidadas nos séculos XIX e XX. Pela obra de Vitória, constatamos que muito do que se apresentou como vanguarda do pensamento contemporâneo é, em verdade, algo já antes construído e defendido, com base no critério da digni-dade da pessoa humana, que é o suporte comum entre o direito natural ra-cionalista e o direito penal liberal. Investigar o pensamento penal de Vitória e analisá-lo é o objeto deste trabalho.

1 ALVES, Sílvia. Punir e humanizar – O direito penal setecentista. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian e Fundação para a Ciência de Tecnologia, 2014. p. 7.

Page 48: 25 5 0 - Ministério Público do Estado de São Paulo

48

Revista de estudos CRiminais 55doutRina naCional

outubRo/dezembRo 2014

48

2 o HuManisMo do sÉculo Xvi e o conteXto da oBra de vitória

O século XVI foi o palco do nascimento e do desenvolvimento do hu-manismo. A recompreensão do conhecimento antigo desprezado pelo mun-do medieval possibilitou o nascimento dessa nova corrente de pensamento, que se emancipou das tradições medievais e que tinha preocupações práticas, valorizando o homem como centro e destinatário do conhecimento, pois ela se voltava para os problemas do seu centro, nomeadamente a pessoa huma-na. Essa emancipação em muito difere das escolas do medievo, cujo pen-samento especulativo não raro se dissociava por completo da vida prática, deitando suas raízes na metafísica2.

O humanismo, portanto, não foi concebido como um pensamento ori-ginal, mas sim representou um reencontro com elementos da filosofia antiga, mormente da antiguidade tardia, como o ceticismo, o epicurismo e, em al-guma medida, o estoicismo, desprezados pela cultura medieval teocentrista. Nesta toada, o humanismo representou o reencontro e a recompreensão da cultura clássica3.

Villey nos ensina, sobre essa época, que:Precisamente, no século XVI, renasce uma cultura profana. Um novo cam-po de investigação se abre diante de todos nós: todo o humanismo, Rabe-lais, Montaigne, Erasmo, Vivès, Justo Lípsio; e à volta deles uma enorme quantidade de nomes mais ou menos esquecidos; e, por intermédio deles outros autores que eles fizeram reviver, pois o produto do esforço deles é um Renascimento. Mais que engendrar doutrinas originais, a obra do hu-manismo foi sobretudo a dos eruditos que reencontraram, dos filósofos que repensaram e revalorizaram filosofias antigas que a cultura medieval desprezara. Trata-se principalmente das doutrinas helenísticas, produtos tardios da Antiguidade, posteriores ao declínio de Atenas e às grandes con-quistas de Alexandre, transmitidas pelos autores latinos – como o estoicis-mo, o ceticismo e o epicurismo.4

2 Sobre o tema, consulte-se Villey: “Os nobres e burgueses que concorreram para a sua formação têm preocupações bem diferentes das dos clérigos da universidade medieval: mais práticas, menos especulativas. Não demonstram nenhum gosto pelas áridas discussões da metafísica. Mais próximos da vida ativa do vulgo, adotam um estilo de vida mais concreto” (VILLEY, Michel. A formação do pensamento jurídico moderno. São Paulo: Martins Fontes, 2009. p. 437).

3 MEDER, Stephan. Rechtsgeschichte: eine Einführung. Köln: Böhlau, 2008. p. 191.

4 VILLEY, Michel. A formação do pensamento jurídico moderno. São Paulo: Martins Fontes, 2009. p. 435.

Page 49: 25 5 0 - Ministério Público do Estado de São Paulo

Doutrina nacionalrevista De estuDos criminais 55

outubro/Dezembro 2014

4949

Ressalte-se que o pensamento humanista em muito transcendeu o Di-reito, verificando-se em diversos setores da enciclopédia do conhecimento. Entretanto, no plano jurídico, o primeiro impulso sistemático do humanis-mo foi dado na França e tinha como objetivo direto a crítica ao pensamento jurídico medieval, o qual se desenvolveu na Itália, tanto que foi denomina-do de mos italicus, que ganhou eco na escola medieval dos Pós-glosadores (1250-1400). O mos italicus, em sua fase final, caracterizava-se pelo abuso dos argumentos de autoridade, dispensando a justificação do pensamento pelos argumentos racionais e isso estava na raiz da crítica dos humanistas. Por ter surgido na França, o método de estudo do direito desta escola é chamado de mos gallicus5.

Como já escrevemos anteriormente6, os juristas da escola dos humanis-tas voltaram ao estudo das fontes do direito. Assim, não mais se procuraria, como fim metodológico, a busca da opinião comum dos doutores, mas sim a compreensão tanto do contexto cultural quanto do significado textual da compilação justinianeia. Isto levou os referidos humanistas ao reencontro da cultura clássica, que fez o investigador se deparar com um sistema de elabo-rada utilização de argumentos lógicos, expressados, desde os analíticos aris-totélicos, como forma perfeita de raciocínio, que conduziram à busca da com-preensão das instituições jurídicas com base na razão. O produto desta busca

foi uma mudança na mentalidade do jurista, que já não concebia o direito romano como direito atual, mas sim como elevada criação do gênio roma-

5 Registre-se que os precursores dos humanistas são juristas italianos, entre eles Petrarca e Bolognini. O método de estudo dos humanistas tem sua origem na Itália, mas o desenvolvimento da escola se deu, inegavelmente, na França. Por conta da importância dos predecessores do humanismo, há quem defenda que a escola se iniciou na Itália, embora reconheça que a sua fase áurea deu-se na França. Verbis: “Mos gallicus is the name given to a school of legal humanists who adopted a philological and historical approach in their study of Law. This school began in Italy with Petrarca, Ambrose of Camaldoli, Filelfo, Maffeo Vegio, Lorenzo Valla, Angelo Poliziano, Ludovico Bolognini, and others, but was raised to its gratest splendour by French authors like Andreas Alciatus and Jacques Cujas” (Ridder-Symoens, Hilde de (Ed.). A history of the University in Europe: Universities in the Middle Ages. Cambridge: Cambridge University Press. 1992. p. 392)

6 BRANDÃO, Claudio. Introdução às ideias jurídicas da modernidade. In: BRANDÃO, Cláudio; FREITAS, Ricardo; SALDANHA, Nelson (Coord.). História do Direito e do pensamento jurídico em perspectiva. São Paulo: Atlas, 2012. p. 156.

Page 50: 25 5 0 - Ministério Público do Estado de São Paulo

50

Revista de estudos CRiminais 55doutRina naCional

outubRo/dezembRo 2014

50

no e, portanto, como expressão histórica da razão e da equidade, mas não necessariamente a única.7

O direito romano deixou de ser considerado como revelação de Deus e passou a ser tido como um conhecimento datado, que não mais pertencia àquela realidade histórica8, embora ainda fosse tido como um sistema alta-mente racionalizado, em face do próprio fim daquele direito: a busca da deci-são boa e justa. A compilação justinianeia tinha um valor intrínseco enquanto conhecimento que conduzia à equidade, mas que não devia ser aceita como um dogma. É a razão humana que possibilitará o uso do direito romano, o qual deverá ser utilizado como um instrumento na busca da justiça do caso concreto e da boa decisão, atividade racional, dirigida pelas faculdades do homem. Deste modo, defendiam que o conhecimento do direito não se adqui-re apenas por meio da lógica e da dialética, mas também por meio de meios filológicos, históricos, literários, em resumo: por meio das humani dades9.

O humanismo propagou-se nos países protestantes, como a Holanda e a Suíça. Entretanto, devemos registrar sua influência em países católicos como, em particular, a Espanha, e entre pensadores católicos, como o inglês Tomas More.

Foram Francisco de Vitória e Francisco Suárez os grandes representan-tes deste humanismo espanhol, também chamado de Escolástica Tardia espa-nhola, que se voltava para o antropocentrismo jurídico. Com a mudança de Suarez para a Universidade de Coimbra10, o humanismo espanhol vinculou--se ainda mais a Francisco de Vitória, sendo ele o seu representante de maior escol.

Francisco de Vitória estudou em Paris, na primeira metade do século XVI, tendo recebido a borla de doutor em 27 de junho de 1522. De forma in-

7 LEVAGGI, Abelardo. Manual de historia del derecho argentino. Buenos Aires: Depalma, 1991. p. 98.

8 “Los humanista, en consecuencia, dejaran de considerar al Corpus Iuris un texto dogmático y lo miraron como una obra histórica, es decir, como una fuente de conoscimiento del derecho clásico.” (BRITO, Alejandro Guzmán. Mos italicus y mos gallicus. Revista de Derecho de la Universidad Católica de Valparaíso, Valparaíso: Pontifícia Universidad Católica, v. 2, p. 36, 1978.

9 BRITO, Alejandro Guzmán. Mos italicus y mos gallicus. Revista de Derecho de la Universidad Católica de Valparaíso, Valparaíso: Pontifícia Universidad Católica, v. 2, p. 37, 1978.

10 Registre-se que também se atribui a essa corrente o termo de Escolástica Tardia Ibérica, por também abranger o pensamento de Suarez, que se transferiu para Portugal. Por exemplo: MAIHOLD, Harald. Strafe für fremde Schuld? Köln: Böhlau, 2005. p. 42.

Page 51: 25 5 0 - Ministério Público do Estado de São Paulo

Doutrina nacionalrevista De estuDos criminais 55

outubro/Dezembro 2014

5151

vulgar, antes de obter o doutoramento, foi designado pelo Capítulo Geral da Ordem Dominicana, a qual pertencia, para a docência de Teologia. Com efei-to, o Capítulo Geral realizado em Nápoles, no ano de 1515, atribuiu a Vitória o encargo de lecionar em Paris o Liber Sentenciarum, de Pedro Lombardo11. Os sete anos que passou como lente em Paris pôs Vitória em contato com o hu-manismo, que, muito mais que assimilado, foi desenvolvido por ele de forma original, sobretudo em face de problemas concretos com os quais se deparou na sua volta para a Espanha e, em especial, durante o exercício de sua cátedra em Salamanca. Foi a adesão a essa corrente o que

levou-o a tomar em suas mãos a defesa da justa causa dos índios. Abor-dando a matéria cruel do direito de guerra, Vitória afirmou princípios de moderação e mansuetude. Quase todo o movimento pacifista do sécu-lo XVI procedia do humanismo e este agira sobre o pensador espanhol dando sequência a sua atuação na igreja, já desde tempos anteriores. Em 1520, durante a sua estada em Paris, Francisco manteve contato com Josse van Assche, Jodocus Badius Ascensius, uma das maiores expressões do hu-manismo.12

Foi ao tratar dos problemas jurídicos que Francisco de Vitória afirma o homem como centro e destinatário da lex. A conquista de novas terras fez com que uma série de questões jurídicas viessem à tona, entre as quais uma se sobressai: os habitantes daqueles territórios, que estavam em um estágio civilizatório involuído, eram sujeitos de direitos? Sobretudo ganha impor-tância essa pergunta, à luz da cultura da época, se considerados em face de sua condição de “bárbaros”, isto é, sujeitos que não professam o cristianis-mo. Com efeito, os mais importantes problemas a serem resolvidos por essa

11 Registre-se que o Capítulo Geral de Gênova, de 1513, já havia designado Francisco de Vitória para a docência no curso de artes, o que se deu apenas um ano depois da conclusão dos seus primeiros estudos em Paris. O curso de artes era destinado àqueles que se preparavam para professar os votos religiosos na própria ordem, como pregadores.

12 CASELLA, Paulo Borba. Presença de Francisco de Vitória. Revista da Faculdade de Direito, São Paulo: Universidade de São Paulo, v. LXXX, 1985. p. 358. O autor anota ainda que: “O nome de Francisco de Vitória aparece no frontispício de dois sermões de Cavarrubias, indicando que ele reviu a obra. Outros fatores vem demonstrar que Francisco de Vitória não era um estranho à ‘República das Letras’, como é costume chamá-la, formada já em 1516 e da qual Erasmo de Rotterdan era o chefe reconhecido. Francisco não escondia seu entusiasmo pelo humanismo renascentista e, da parte de Erasmo, conservou-se carta dirigida a Francisco em que esta fala como reverência a respeito da teologia escolástica” (Idem, ibidem).

Page 52: 25 5 0 - Ministério Público do Estado de São Paulo

52

Revista de estudos CRiminais 55doutRina naCional

outubRo/dezembRo 2014

52

corrente vieram pela conquista do Novo Mundo, já que o corpus chistianum medieval não trazia respostas das questões advindas dessa conquista13.

Francisco de Vitória enfrentou aquela pergunta com as lentes do hu-manismo. Ao equiparar juridicamente cristãos e pagãos, em razão da per-tença a uma comunidade de nações e em razão da natureza humana do ser, fez com que todas as pessoas – aí incluídos os índios – fossem, dentro de sua doutrina, vistos como sujeitos de direitos. Deste modo, “a sua preocupação foi, acima de tudo, com o homem e seus direitos inalienáveis”14.

Porque a preocupação central de Vitória era o homem, nas suas lições, ele não foi silente aos problemas decorrentes do direito penal. Com efeito, as questões que gravitavam em torno da pena aplicada ao homem foram uma preocupação do salamantino, originando um pensamento que, no âmbito da dogmática, confere ao humanismo o caráter de matriz do direito penal libe-ral. Note-se que, quando se fala no campo da dogmática, está a ser tratar das teorias do crime, da pena e da lei penal, e é nessa seara que Vitória diferencia--se de Beccaria. Com efeito, enquanto o segundo tratou das bases limitadoras do poder de punir na seara da filosofia política o primeiro tratou o direito penal em face de problemas concretos, isto é, em face das instituições penais existentes na sua época.

3 as ideias Penais de francisco de vitória

Francisco de Vitória não desprezou a cultura medieval, mas sim a re-compreendeu à luz do antropocentrismo. Assim, embora a Universidade de Salamanca tivesse em seus estatutos normas que estabeleciam que a Cátedra Prima de Teologia se desse a partir das Sentenças de Pedro Lombardo, Vitória guiou os seus ensinamentos pela Suma Teológica de Tomás de Aquino15. Por

13 MAIHOLD, Harald. Strafe für fremde Schuld? Köln: Böhlau, 2005. p. 48-49.

14 AZEVEDO, Luiz Henrique Cascelli de. Jus Gentium em Fancisco de Vitória. Porto Alegre: Sergio Fabris, 2008. p. 128.

15 STÜBEN, Joachim. Wir soll man Vitoria Übersezen? Die Normativität des Rechts bei Francisco de Vitoria. Kirstin Bunge Hrg. Suttgart: Frommann, 2011. p. 7. Langella assinala, sobre o tema, que “La elección de la Summa como texto-base para sus lecciones, hecha durante su magisterio en Paris, consolidada posteriormente en Valladolid, llega a ser definitiva a partir de 1526 y contituye la característica fundamental de su enseñanza. [...] En pocos años la innovacción introducida por Vitoria fue adoptada por sus mismo colega, a pesar de que los Estatutos ordenaran la lectura de las Sentencias” (LANGELLA, Simona. Estudio introductorio. De legibus. Salamanca: Universidad de Salamanca e Universidade de Gênova, 2010. p. 19-21).

Page 53: 25 5 0 - Ministério Público do Estado de São Paulo

Doutrina nacionalrevista De estuDos criminais 55

outubro/Dezembro 2014

5353

isso se aponta que a teoria penal de Tomás de Aquino foi recepcionada pela obra de Francisco de Vitória16. No que tange ao direito penal, o salamantino não desprezou as concepções teológicas e morais construídas na Idade Mé-dia, pois compreendia as violações penais acima de tudo como um pecado e a sua resposta como uma doutrina ética (eudemonismo), que visa, sobretudo, à felicidade do homem, tanto neste mundo quanto no mundo sobrenatural17. Porém, essas violações eram interpretadas em face de uma especial dignida-de que se conferia ao autor dessas violações, de modo a considerá-lo como destinatário último do próprio Direito.

Assinale-se, ainda, sobre o pensamento penal do salamantino, que:A escolástica tardia espanhola (da qual Vitória é o protagonista) e sua doutrina do direito natural, que posteriormente foi assimilada por Hugo Grotius no período da doutrina alemã do direito natural e pelo idealis-mo alemão, teve um papel determinante na sistematização do conceito de pena.18

Com razão, pois, aponta-se para a grande influência que as ideias pe-nais propostas por Vitória, as quais se propagaram em Hugo Grotius, maior representante da doutrina do direito natural alemão, e no pensamento penal do idealismo alemão. Assim, a conceituação de pena e a vinculação da pena à culpa, que estão no centro do direito penal proposto pelo salamantino, per-passaram os séculos até o aparecimento do sistema dogmático tripartido do século XIX.

16 Cite-se, como exemplo, Schlosser e Willoweit, que iniciam o estudo da teologia da pena sob a rubrica: “Sobre a teoria penal de Tomás de Aquino e a sua recepção na escolástica tardia espanhola: o exemplo de Francisco de Vitória”. No original: “Zur Straftheorie von Thomas von Aquin und ihrer Rezeption in der spanischen Spätscholastik: das Beispiel Francisco de Vitória” (SCHLOSSER, Hans; WILLOWEIT, Dietmar. Neue Wege strafrechtsgeschichtlicher Forschung. Köln: Böhlau, 1999. p. 313).

17 STIENING, Gideon. Nach göttlichen oder menschlichen Gesetzen. In: BIESKORN, Norbert; HRSG, Gideon Stiening. Francisco de Vitoria ‘De indis’ in Intersziplinärer Perspektive. Suttgart: Frommann, 2011. p. 133.

18 Tradução livre de: “Die Spanische Spätscholastik un Naturrechtslehre, die durch Hugo Grotius an die deutsche Naturrechtslehre und an den deutschen Idealismus weitergegeben wurde, hat bei der Systematierung des Strafberiffes eine masβgebliche Rolle gespielt” (MAIHOLD, Harald. Strafe für fremde Schuld? Köln: Böhlau, 2005. p. 2).

Page 54: 25 5 0 - Ministério Público do Estado de São Paulo

54

Revista de estudos CRiminais 55doutRina naCional

outubRo/dezembRo 2014

54

3.1 Panorama conceitual da leiA obra na qual Vitória enfrenta as questões do direito natural e do

direito penal, nomeadamente De legibus, vem ao lume no ano acadêmico de 1533/153419, antes da famosa releitura do salamantino sobre os índios (esta última de 1539), cujo teor crítico inaugurou uma nova fase na política colonial espanhola20. Nela Vitória parte da tripartição utilizada por Tomás de Aquino, a saber: Lei Eterna, Lei Natural e Lei Humana, para dar um interpretação revolucionária para a época, a qual será o fio condutor para a sua reflexão moral sobre os índios e sobre o direito de todas as gentes. Com efeito, a teoria da lei de Vitória permitiu a justificação no plano teórico da concepção subje-tiva (rectius, pertencente a todo o ser humano) do Direito, o que se deve a sua concepção de lei natural.

Nesse panorama, a essência da lei é apresentada como um algo que pertence à razão, pois, enquanto regra e medida dos atos humanos, sua eti-mologia provém de obrigar (legare)21, e o mando é um produto da razão, visto que reside no intelecto. Sobre o tema, assim se expressa Vitória:

Art. 1º Se a lei é algo próprio da razão ou reside na razão e na vontade.

Responde que a lei é algo que pertence à razão, porque a esta corresponde mandar; e a lei é a regra e a medida dos atos, e se diz lei pela sua procedên-cia de ‘ligar’, porque obriga. É evidente, pois, que a lei se localiza na nature-za racional e, em consequência, não pode se fundar senão na sensibilidade ou no intelecto. E não reside na sensibilidade. Logo...22

19 STÜBEN, Joachim. Wir soll man Vitoria Übersezen? Die Normativität des Rechts bei Francisco de Vitoria. Kirstin Bunge Hrg. Suttgart: Frommann, 2011. p. 18.

20 Vitória, Francisco de. Relectio de indis. Madrid: Consejo Superior de Investigaciones Científicas (Corpus Hispanorum de Pace), 1989. p. 6. Sobre o teor crítico desta releitura, traga-se à colação a observação de Teixeira: “Sabe-se que os textos de Vitoria, muito provavelmente, seriam incluídos no Índice de livros proibidos, não fosse o falecimento do Papa Sexto V. O período é conturbado, e o próprio imperador Carlos V, tendo a ameaça dos turcos por um lado e a ameaça protestante por outro, dignou-se somente a escrever ao prior dos dominicanos, Domingo de Soto, indicando que fosse proibida aos clérigos qualquer manifestação de opinião a respeito da política ultramarina do reino” (TEIXEIRA, Hélio Aparecido. Aproximações entre Francisco de Vitória e sua crítica ao pacifismo de Lutero. Cauriensia, Extremadura: Universidad de Extremadura, v. VI, 2011. p. 225).

21 LANGELLA, Simona. Estudio introductorio. De legibus. Salamanca: Universidad de Salamanca e Universidade de Gênova, 2010. p. 35.

22 VITÓRIA, Francisco. De legibus. Salamanca: Universidad de Salamanca e Universidade de Gênova, 2010. p. 88.

Page 55: 25 5 0 - Ministério Público do Estado de São Paulo

Doutrina nacionalrevista De estuDos criminais 55

outubro/Dezembro 2014

5555

Com essa afirmação, Vitória refuta a posição afirmada no Medievo que a lei decorre da vontade divina; logo, era produto, em última análise, da von-tade. Diz-nos o salamantino que a lei é um mandado, e como tal está determi-nada pela razão e ordenada a um fim, o que só pode ter origem na atividade racional. Enquanto regra, a lei é ordenada a um fim, portanto ela sempre deverá ser ordenada a afirmação de um bem comum23. Note-se que essa desti-nação ao bem comum decorre da própria natureza da lei, não da vontade do legislador, pois, quando cessado o bem comum, cessa também a lei24, visto que este último integra a substância da própria lei. Assim, a lei é identificada como um mandado da razão ordenado ao bem comum, que obriga.

Sobre a essência da lei, conclui com precisão Langella:Nesta definição se recolhem os elementos essenciais da lei, definição que não é exclusiva de nenhuma lei entre as distintas classes de lei em particu-lar, ainda que seja válida para todas. A lei é uma ordem da razão, é uma regra, norma ou medida de todos os atos, por meio do qual se estimula o homem a agir ou não agir. É um mandado obrigatório e, como tal, não somente indica o caminho, mas sim dá uma ordem que se deve seguir.25

Por fim, cabe ressaltar as divisões da lei para Vitória. A Lei Eterna é tida como produto direto dos desígnios de Deus, que tudo rege. Deus é o sumo legislador e dele provém a lex aeternae, que governa todas as coisas. Entretanto, Deus não está submetido a ela26. Porque todas as artes inferiores se subordinam às superiores, a Lei Eterna é tida como o fundamento tanto da Lei Natural, quanto da Lei Humana. A Lei Natural, embora não seja um hábito, mantém-se pelo hábito; ela dá condições, pela inclinação da natureza,

23 Diz-nos Vitória: “Responde que toda ley debe ordenarse al bien comúm. Lo prueba porque el fin de todas las leyes es la felicidad y hay otros fines que se ordenan a éste” (VITÓRIA, Francisco. De legibus. Salamanca: Universidad de Salamanca e Universidade de Gênova, 2010. p. 93). Note-se que o bem comum enquanto finalidade reitora do próprio poder civil é encontrado também, como fundamento teleológico do poder civil, na obra De potestate civili (VITÓRIA, Francisco de. Relectio de potestate civili. Madrid: Consejo Superior de Investigaciones Científicas (Corpus Hispanorum de Pace), 2008. p. 23).

24 Sobre o tema: LANGELLA, Simona. Estudio introductorio. De legibus. Salamanca: Universidad de Salamanca e Universidade de Gênova, 2010. p. 36.

25 LANGELLA, Simona. Estudio introductorio. De legibus. Salamanca: Universidad de Salamanca e Universidade de Gênova, 2010. p. 35.

26 VITÓRIA, Francisco. De legibus. Salamanca: Universidad de Salamanca e Universidade de Gênova, 2010. p. 119.

Page 56: 25 5 0 - Ministério Público do Estado de São Paulo

56

Revista de estudos CRiminais 55doutRina naCional

outubRo/dezembRo 2014

56

a julgar a retidão de todas as coisas27, sendo fundamentada também ela na razão28, já que ela se baseia na reflexão humana acerca da Lei Eterna.

Note-se, nesse sentido, que:Os teólogos espanhóis (da Escolástica Tardia) definem a base da lei natural, sobretudo, pela teoria de Tomás de Aquino, segundo a qual os preceitos da lei natural decorrem da reflexão terrena acerca da lei eterna de Deus.29

A Lei Humana, se for justa, procederá da Lei Natural. Ditas leis “se or-denam ao bem comum, devem estabelecer-se para a comunidade e perdurar na comunidade política”30. Por sua vez, a Lei Humana subdivide-se em Lei Eclesiástica e Lei Civil. A primeira é a lei da Igreja, a segunda a lei do Estado. Note-se que a lei civil não se confunde, no pensamento de Vitória, com a lei do direito privado, pois o jus civile é tomado na acepção romana, enquanto direito do cidadão. Neste contexto, a lei de natureza penal integra o jus civile.

3.2 aproximação valorativa do conceito de bem jurídicoVitória já apresenta a ideia de valoração quando afirma que toda a lei

deve ser ordenada para o bem comum. Porém essa ideia geral não pode ser subsumida da ratio do bem jurídico penalmente tutelado. Com efeito, o bem jurídico surgiu quando se refletiu sobre o objeto do direito penal. Inicialmente, no início do século XIX, Ansel von Feuerbach defendeu que a função do direito penal era a tutela de interesses, que eram os direitos subjetivos, como o direito à vida, o direito à propriedade31 etc. Essa noção foi submetida a uma profunda

27 Diz-nos Vitória: “Y, deste modo, alguna vez la misma ley se llama hábito, no porque sea habito, sino porque mediante él se mantiene. [...] La ley natural no se llama así porque exita en nosostros por naturaleza, pues los niños no tienen ley natural ni hábito alguno, sino porque por inclinacción de la naturaleza juzgamos la rectitud de todas las cosas, no porque esa cualidad se halle en nosotros por naturaleza” (VITÓRIA, Francisco. De legibus. Salamanca: Universidad de Salamanca e Universidade de Gênova, 2010. p. 123).

28 SPINDLER, Anselm. Vernunft, Gestz und Recht bei Francisco de Vitoria. Die Normativität des Rechts bei Francisco de Vitoria. Kirstin Bunge Hrg. Suttgart: Frommann, 2011. p. 49.

29 Tradução livre de: “Die spanischen Theologen setzen für die Grundlegung des Naturrechts zumeist auf die Lehre des Thomas von Aquin, wonach die Gebote des Naturrechts der irdisches Abglanz des ewigen göttlichen Gesetzes” (MAIHOLD, Harald. Strafe für fremde Schuld? Köln: Böhlau, 2005. p. 49).

30 VITÓRIA, Francisco. De legibus. Salamanca: Universidad de Salamanca e Universidade de Gênova, 2010. p. 135.

31 FEUERBACH, Anselm von. Tratado de derecho penal. Buenos Aires: Hammurabi, 1989. p. 64.

Page 57: 25 5 0 - Ministério Público do Estado de São Paulo

Doutrina nacionalrevista De estuDos criminais 55

outubro/Dezembro 2014

5757

crítica, que originou o instituto do bem jurídico. A saber: Birnbaum dizia que o direito subjetivo residia na esfera interna do homem, já que ele pertence a uma pessoa; assim, não poderia ser dito direito subjetivo o objeto da tutela penal. Nesse panorama, o que é o objeto da tutela penal é um bem32, isto é, um valor objetivo; por exemplo, não se tutela penalmente o direito à vida, mas sim a própria vida. O valor tutelado pelo direito penal é um bem porque existe de maneira autônoma em relação ao direito subjetivo que eventualmente seja ge-rado por ele, em face da pertença desse bem a um sujeito de direito.

Note-se que Vitória, nessa mesma linha de pensamento, indica que não é a Lei Humana que confere o caráter de bem ou de mal ao objeto tutelado. Diz o autor que o mérito ou o demérito de algo reside no fato de ele ser bom ou mau, mas quem converte algo em bom ou mau é a Lei Divina, cujo autor é exclusivamente Deus. Deste modo, Vitória defende que existe uma valoração nas coisas que se extrai de forma independente da Lei Humana, pois se atri-buiu, de forma logicamente independente dela (pela Lei Divina), um signo positivo (qualificando a coisa como um bem) ou um signo negativo (qualifi-cando a coisa como um mal).

Diz-nos textualmente o salamantino:Pois o fundamento do mérito ou do demérito de algo reside em que ele seja bom ou mau. Por conseguinte, o primeiro que faz a lei divina é conver-ter em bom ou mau o que em si mesmo era indiferente. [...] A circuncisão era indiferente e se transformou em algo bom mediante a promulgação de uma lei.33

Note-se que, quando se reconhece um valor que existe em face da pró-pria natureza da coisa, de modo a qualificá-la de forma autônoma como boa ou má, está a se dizer que o bem qualificado como bom é suceptível de ser violado. Ora, é essa a raiz que está no conceito do bem jurídico penal. Quando Vitória desvincula da lei civil a natureza boa ou má dos objetos, ele diz-nos, a con-trário senso, que tal natureza existe de forma independente da lei civil. Tal afirmação tem um alcance extraordinário porque Vitória justifica no plano te-órico (sobretudo na releitura De Indis) a passagem de uma concepção objetiva para uma concepção subjetiva de direito, aí incluída a Lei Natural. Ao reco-

32 BIRNBAUM, Johann Michael Franz. Ueber das Erfordeniss einer Rechtsverletzung zum Begriffe der Verbrechens. Archiv des Criminalrechts. Halle: Schwetschte und Sohn, 1934. p. 175-176.

33 VITÓRIA, Francisco. De legibus. Salamanca: Universidad de Salamanca e Universidade de Gênova, 2010. p. 139.

Page 58: 25 5 0 - Ministério Público do Estado de São Paulo

58

Revista de estudos CRiminais 55doutRina naCional

outubRo/dezembRo 2014

58

nhecer a natureza independente do objeto tutelado pela Lei Humana, está ele a separar da esfera do direito subjetivo um valor presente na substância das coisas, consideradas em sua essência, que é suceptível de violação.

Pois bem, esse juízo de valor independente e objetivo (o bem jurídico) será desenvolvido no século XIX como um instrumento de limitação da lei, e posteriormente será tido como o fundamento de toda a aplicação supralegal, em benefício da parte, do direito penal. Entretanto, ressalte-se aqui que se extrai de Vitória apenas uma aproximação de fundamentos, não o conceito de bem jurídico explicitamente dado. Todavia, não deixa de ser digno de nota que, três séculos antes, já se intua, ao analisar a lei, que o valor das coisas está em sua substância, independente do ato de poder que regula ela mesma.

3.3 o costume como fonte de derrogação da lei penal

Foi somente após a consolidação do princípio da legalidade como um princípio reitor do direito penal dos Estados Democráticos de Direito que se afirmou ser ele uma proteção do homem em face do jus puniendi estatal. Deste modo, o princípio da legalidade tem uma ratio pro libertatis, servindo ele para aumentar o âmbito de liberdade, ao explicitamente restringir o âmbito de punição.

Nesse contexto, defendeu-se a força do costume para derrogar os tipos penais anacrônicos, que não estavam em compasso com a realidade social. Com efeito, se o princípio da legalidade proíbe a aplicação do costume como fundamento de uma incriminação, isto é, o costume im malam partem, pela mesma ratio admite o costume que gera efeitos em benefício da parte. O cos-tume que aumenta o âmbito de liberdade será, dessarte, teleologicamente conforme o princípio da legalidade. A eficácia do costume à luz do princípio da legalidade se dará, conforme, no século XX, ensina Maurach, para afastar os tipos penais que não representem compasso com a sucessão de atos de uma época, sendo tidos, pois, como anacrônicos.

Conforme nos diz Maurach:A eficácia derrogatória do direito consuetudinário (desuetudo) constitui, na vida jurídica, um meio imprescindível para a exclusão de ameaças de pena que chegaram a ser obsoletas e que o legislador não derrogou formal-mente por imprudência ou por impossibilidade.34

34 MAURACH, Reinhart; ZIPF, Heinz. Derecho penal – Parte general. Buenos Aires: Astrea, 1994. p. 139.

Page 59: 25 5 0 - Ministério Público do Estado de São Paulo

Doutrina nacionalrevista De estuDos criminais 55

outubro/Dezembro 2014

5959

O que hoje se apresenta como uma garantia dada pela utilização do direito penal segundo uma metodologia de um Estado Democrático de Di-reito, por colocar a pessoa humana como centro da dogmática penal aplicada, foi defendido por Vitória em face da mesma postura voltada para a pessoa humana. É digno de nota que, na sua obra sobre a lei, Vitória esclareça que o costume tem força de obrigar, derrogando a lei pelo desuso.

Nesta toada, diz-nos o salamantino:Art. 3º Se o costume pode ter força de lei e obrigar.

Responde que sim e explica como o legislador pode manifestar a sua von-tade não somente com palavras, mas também de fato, como, por exemplo, se deixa de castigar aos transgressores de uma lei, esta fica derrogada pelo costume.35

Note-se que Vitória completa o seu pensamento, consignando que, se o costume estabelece ser boa a realização de uma conduta, não compete ao legislador proibi-la. Também nos diz o salamantino que, quando existe o de-suso, a regra do legislador não tem força de lei36.

Assim, conclui Vitória o seu pensamento dizendo que:No capítulo último acerca do costume se diz expressamente que todo o cos-tume prolongado, contrário a uma lei humana, derroga a lei, porque não é desprezível a autoridade de um costume longo (quia longavae consuetudinis non est contemnenda auctoritas).37

Note-se que as leis que castigam, trazidas pelo salamantino como caso limite de seu raciocínio, justamente pelo castigo infligido, têm natureza pe-nal. Assim, ao trazer em última análise a derrogação do castigo previsto na lei, pelo costume, Vitória também limita, com isso, o poder de punir. É digno de reflexão que aquilo que é apresentado como um dos pilares do método penal atual, a saber, o uso da desuetudo para derrogar a lei penal, como conse-quência do princípio da legalidade aplicado ao costume (nullum crimen nulla poena sine lege scripta), já foi defendido desde o século XVI como produto de

35 VITÓRIA, Francisco. De legibus. Salamanca: Universidad de Salamanca e Universidade de Gênova, 2010. p. 161-162.

36 VITÓRIA, Francisco. De legibus. Salamanca: Universidad de Salamanca e Universidade de Gênova, 2010. p. 163.

37 VITÓRIA, Francisco. De legibus. Salamanca: Universidad de Salamanca e Universidade de Gênova, 2010. p. 163.

Page 60: 25 5 0 - Ministério Público do Estado de São Paulo

60

Revista de estudos CRiminais 55doutRina naCional

outubRo/dezembRo 2014

60

uma noção de lei centrada no homem, o que revela a vanguarda desse pen-samento.

3.4 relações entre a pena e a culpabilidade

Vitória defende explicitamente que a culpa penal decorre do preceito legal. Com efeito, em uma teorização na qual a lei se volta para a pessoa, ten-do no seu núcleo a racionalidade, já que se fundamenta no intelecto e não na vontade, é uma consequência que a censura sobre alguém seja um requisito para a aplicação da pena. Dizer que as leis determinadas obrigam em face de uma culpabilidade é dizer que as leis obrigam em face da pena que se impõe à violação de um imperativo, o qual torna obrigatório um determinado com-portamento.

Assim nos diz explicitamente o salamantino:Por último se suscita a dúvida se obrigam fundamentadas em uma cul-pa as leis penais precisas, isto é, as leis penais que estabelecem uma pena determinada. [...] Enrique Gandavese diz que por vezes as normas penais contêm tanto um preceito como a pena, [...] outras vezes só estabelecem a pena. A primeira fórmula obriga fundamentada em uma culpa, a segunda não. Segue esta opinião a Summa Angelica.38

Ressalte-se que, no texto original, Vitória utiliza-se da sentença latina an obligent ad culpam, o que relaciona o problema penal ao problema do pe-cado. A culpabilidade de que fala Vitória é aquela vinculada às modalidades teológicas de pecado venial ou de pecado mortal, e isto indica que Vitória está a relacionar a pena à censura pessoal.

Não podemos esquecer que o conceito de culpabilidade advém da tra-dução do vocábulo alemão Schuld, que indica a dívida do pecado (palavra, aliás, também usada na língua alemã na oração do Pai Nosso, como sinônimo de ofensa).

Note-se que toda a construção em torno da relação entre culpabilidade e pena está eivada de influências teológicas. Senão vejamos: o local no qual o culpado cumpre a pena é chamado de penitenciária, vocábulo que advém da palavra penitência, isto é, a satisfação que deve ser dada pela expiação da culpa. O local no qual o preso cumpre a pena privativa de liberdade é cha-

38 VITÓRIA, Francisco. De legibus. Salamanca: Universidad de Salamanca e Universidade de Gênova, 2010. p. 149.

Page 61: 25 5 0 - Ministério Público do Estado de São Paulo

Doutrina nacionalrevista De estuDos criminais 55

outubro/Dezembro 2014

6161

mado de cela, e tal nome também é atribuído para o quarto no qual moram os monges e lá realizam a penitência. A penitência é imposta, teologicamente, no sacramento da confissão; não é de se estranhar, pois, que a confissão fosse tida, durante todo o século XIX e parte do século XX, como rainha das provas, sobretudo se notarmos que esse tempo é aquele no qual se tem as primeiras terorizações sobre a culpabilidade enquanto elemento do crime.

Ao vincular a pena à culpa, na seara da lei penal, Vitória indica a ne-cessidade de se fundamentar o mal da pena na censura que deve ser feita ao agente. Isto, no plano teológico aplicado ao pecado, aliás, já era extraído do manual dos penitentes e possibilitava a gradação da penitência aplicada pelo sacerdote ao conferir o sacramento. Ocorre que essa defesa antecipará a subs-tância do que hoje é apresentado como uma conquista do direito penal do Estado Democrático de Direito.

Jescheck, ao tratar da culpabilidade à luz da jurisprudência do Tribu-nal Federal alemão, nos diz:

A pena requer a culpabilidade antes. A culpabilidade é reprovabilidade. Com o desvalor da culpabilidade se censura ao autor por não haver se com-portado conforme o direito, não tendo se decidido por ele, quando podia se comportar conforme a ele, quando podia se decidir por ele.39

De fato, não existe diferença entre a substância do que Vitória ensi-na e a atual relação entre a pena e a culpa, exemplificada aqui pela obra de Jescheck, visto que a reprovação pessoal de que fala Jescheck é a mesma censura da culpa, trazida por Vitória.

Nesse panorama, os dois autores estabelecem que a culpabilidade é, lo-gicamente, a causa da pena, pois ela representa um requisito para a aplicação da sanção penal. É por esse motivo que ambos vinculam a pena à questão da culpa, pois a primeira é tida como um sofrimento, que só se justifica se im-posto em face de uma satisfação devida pelo agente por conta de um crime. Tal conteúdo, em ambos os autores, é nitidamente expiatório, o que traduz a raiz religiosa presente nessas instituições.

consideraçÕes finais

Vitória não nos apresenta um conhecimento sistemático do direito pe-nal. Ao contrário, o poder de punir, a lei penal e o que decorre de suas apli-

39 JESCHECK, Hans-Heirich. Lehrbuch des Strafrecht. Allgemeiner Teil. Berlim: Dunker & Humblot, 1988. p. 19.

Page 62: 25 5 0 - Ministério Público do Estado de São Paulo

62

Revista de estudos CRiminais 55doutRina naCional

outubRo/dezembRo 2014

62

cações estão colocados em partes esparsas de suas teorizações, imbuídas de fundamentação teológica. Porém, ao procurar dar solução aos problemas da época, o salamantino trata de questões concretas, aplicáveis para a solução de lides e, com isso, encontra-se nele a concretização do mesmo objetivo do conhecimento denominado hoje de dogmática penal: a resolução de casos concretos.

Não desprezando o conhecimento medieval, mas sim realizando uma interpretação daquele conhecimento sob um novo prisma: o humanismo gerou um sistema de conhecimento interdisciplinar que consagrou a feição política, teológica, moral e jurídica a uma só tempo e, com isso, não teve por objetivo delinear as questões das instituições jurídicas penais vistas em si mesmas. Porém, ao solucionar os problemas penais da época, de forma refle-xa, revolucionou ditas instituições.

As suas teorias, ao serem reinterpretadas pelas escolas do direito natu-ral alemão e do idealismo alemão, puderam chegar, ainda que em muitos ter-mos reflexamente, ao período de construção da dogmática científica da teoria do crime. Ponha-se em relevo que tal período se deu a partir do século XIX, com a consolidação do princípio da legalidade, por meio da teoria da coação psicológica de Feuerbach, como o princípio reitor do direito penal liberal.

O grande marco que pode ser atribuído a Vitória, na seara penal, é a colocação do homem, visto como o destinatário e centro do direito, como o suporte no qual devem ser resolvidos os casos que ele se propõe a solucionar. Ao colocar as questões da vinculação da pena à culpa, ou da possibilidade de derrogar a lei penal pelo costume, o salamantino antecipa soluções que ho-diernamente são tidas como posições de vanguarda do direito penal do Esta-do Democrático de Direito. Como na sua época não havia sequer esse concei-to político de Estado, a solução final que ele apresenta, por se preocupar em conferir dignidade à pessoa humana, mostra-nos que é esse fundamento – hoje traduzido em princípio jurídico – que está na raiz do Direito daquele Estado.

Conforme também se depreende das posições do salamantino acerca tanto da eficácia derrogatória do costume no direito penal, quanto das re-lações entre a culpa e a pena, os problemas penais concretos são resolvidos em função de critérios que põem em relevo o homem frente ao poder de punir, na medida em que se afastam punições a partir de uma justificação que leva em conta critérios que aumentam a esfera de liberdade (critérios pro libertatis), com a restrição do âmbito de punição.

É digno de nota que o contexto jurídico no qual Vitória escreve as suas ideias penais é o jus omnes gentium, isto é, o Direito de todas as gentes. A

Page 63: 25 5 0 - Ministério Público do Estado de São Paulo

Doutrina nacionalrevista De estuDos criminais 55

outubro/Dezembro 2014

6363

pertença ao gênero humano é, pois, a chave interpretativa para as institui-ções penais serem aplicadas aos casos concretos, segundo se depreende do pensamento do salamantino. Sua teorização penal, à luz desse contexto ju-rídico, surgiu em face de um direito internacional em formação e se funda-mentou no destinatário do castigo, visto que existe nele a relação de pertença ao gênero humano. No panorama jurídico atual, como que, de forma cíclica, o direito penal volta a se desenvolver na seara internacional, sobretudo com a contínua afirmação do Tribunal Penal Internacional, e os problemas que se põem nessa “novel” seara convergem para a mesma substância apontada por Vitória: a reprovação do homem. Urge, por conseguinte, recorrermos hodier-namente à mesma chave interpretativa apontada.

Nesse panorama, o pensamento de Vitória está na matriz da dogmá-tica penal contemporânea, não por ter delineado as instituições penais em si mesmas, mas sim por ter desvelado a sua substância, seu mais essencial fundamento: a proteção no campo penal da dignidade da pessoa humana.

referÊnciasALVES, Sílvia. Punir e humanizar – O direito penal setecentista. Lisboa: Fundação Calouste

Gulbenkian e Fundação para a Ciência de Tecnologia, 2014.

AZEVEDO, Luiz Henrique Cascelli de. Jus Gentium em Fancisco de Vitória. Porto Alegre: Sergio Fabris, 2008.

BIRNBAUM, Johann Michael Franz. Ueber das Erfordeniss einer Rechtsverletzung zum Begriffe der Verbrechens. Archiv des Criminalrechts. Halle: Schwetschte und Sohn, 1934.

BRANDÃO, Claudio. Introdução às ideias jurídicas da modernidade. In: BRANDÃO, Cláudio; FREITAS, Ricardo; SALDANHA, Nelson (Coord.). História do direito e do pensamento jurídico em perspectiva. São Paulo: Atlas, 2012.

BRITO, Alejandro Guzmán. Mos italicus y mos gallicus. Revista de Derecho de la Universidad Católica de Valparaíso, Valparaíso: Pontifícia Universidad Católica, v. 2, 1978.

CASELLA, Paulo Borba. Presença de Francisco de Vitória. Revista da Faculdade de Direito, São Paulo: Universidade de São Paulo, v. LXXX, 1985.

FEUERBACH, Anselm von. Tratado de derecho penal. Buenos Aires: Hammurabi, 1989.JESCHECK, Hans-Heirich. Lehrbuch des Strafrecht. Allgemeiner Teil. Berlim: Dunker &

Humblot, 1988.LANGELLA, Simona. Estudio introductorio. De legibus. Salamanca: Universidad de

Salamanca e Universidade de Gênova, 2010.

LEVAGGI, Abelardo. Manual de historia del derecho argentino. Buenos Aires: Depalma, 1991.

MAIHOLD, Harald. Strafe für fremde Schuld? Köln: Böhlau, 2005.MAURACH, Reinhart; ZIPF, Heinz. Derecho penal – Parte general. Buenos Aires: Astrea,

1994.

Page 64: 25 5 0 - Ministério Público do Estado de São Paulo

64

Revista de estudos CRiminais 55doutRina naCional

outubRo/dezembRo 2014

64

MEDER, Stephan. Rechtsgeschichte: eine Einführung. Köln: Böhlau, 2008.RIDDER-SYMOENS, Hilde de (Ed.). A History of the University in Europe: Universities in

the Middle Ages. Cambridge: Cambridge University Press, 1992.SCHLOSSER, Hans; WILLOWEIT, Dietmar. Neue Wege strafrechtsgeschichtlicher Forschung.

Köln: Böhlau, 1999.SPINDLER, Anselm. Vernunft, Gestz und Recht bei Francisco de Vitoria. Die Normativität

des Rechts bei Francisco de Vitoria. Kirstin Bunge Hrg. Suttgart: Frommann, 2011.STIENING, Gideon. Nach göttlichen oder menschlichen Gesetzen. In: BIESKORN,

Norbert; HRSG, Gideon Stiening. Francisco de Vitoria ‘De indis’ in Intersziplinärer Perspektive. Suttgart: Frommann, 2011.

STÜBEN, Joachim. Wir soll man Vitoria Übersezen? Die Normativität des Rechts bei Francisco de Vitoria. Kirstin Bunge Hrg. Suttgart: Frommann, 2011.

TEIXEIRA, Hélio Aparecido. Aproximações entre Francisco de Vitória e sua crítica ao pacifismo de Lutero. Cauriensia, Extremadura: Universidad de Extremadura, v. VI, 2011.

VILLEY, Michel. A formação do pensamento jurídico moderno. São Paulo: Martins Fontes, 2009.

VITÓRIA, Francisco. De legibus. Salamanca: Universidad de Salamanca e Universidade de Gênova, 2010.

VITÓRIA, Francisco de. Relectio de Potestate Civili. Madrid: Consejo Superior de Investi- gaciones Científicas (Corpus Hispanorum de Pace), 2008.

______. Relectio de indis. Madrid: Consejo Superior de Investigaciones Científicas (Corpus Hispanorum de Pace), 1989.

Page 65: 25 5 0 - Ministério Público do Estado de São Paulo

65

a Prisão Preventiva coMo instruMento Para tutela da violÊncia doMÉstica

e faMiliar contra a MulHerPreventive Detention as a tool to Prevent

Domestic anD Family violence against WomenGilberto sChäFer*

Julio Fernandes neto**

RESUMO: Este artigo trata da prisão preventiva com instrumento para tutela da violência doméstica e familiar contra a mulher. Nele são abordadas as aparentes antinomias existentes entre os dispositi-vos da Lei nº 11.340/2006 (Lei Maria da Penha) e o sistema geral de segregação provisória estruturado no Código de Processo Penal bra-sileiro, notadamente após a reforma realizada pela Lei nº 12.403/2011 Como solução para os obstáculos interpretativos identificados e com vistas a um aumento da efetividade do instituto, é proposta uma re-leitura de seus pressupostos, fundamentos e requisitos. No processo, utiliza-se a ideia de igualdade como não dominação/submissão e a teoria dos direitos fundamentais de Alexy como fundamentos para a construção de um microssistema específico, adaptado ao contexto de desigualdade estrutural e sistemática a que estão submetidas as mu-lheres. Como resultado, sugere-se a criação de um novo fundamento para a prisão preventiva, destinado exclusivamente à tutela da vio-lência de gênero e baseado em um novo paradigma de cautelaridade, preservando, assim, a proporcionalidade da medida excepcional. PALAVRAS-CHAVE: Prisão preventiva; violência contra a mulher; igualdade como não dominação; proporcionalidade; novo funda-mento.ABSTRACT: This article treats preventive detention as an instru-ment for protection of women against domestic and family violence. It covers the apparent antinomies between the existing provisions

* Juiz de Direito, Doutor e Mestre em Direito público pela UFRGS, Professor do Mestrado em Direitos Humanos pela Uniritter.

** Delegado da Polícia do Rio Grande do Sul, Mestrando em Direitos Humanos pela Uniritter.

Page 66: 25 5 0 - Ministério Público do Estado de São Paulo

66

Revista de estudos CRiminais 55doutRina naCional

outubRo/dezembRo 2014

66

of Law nº 11.340/2006 (Maria da Penha Law) and the general sys-tem of temporary segregation structured the Brazilian Code of Cri-minal Procedure, especially after the reform undertaken by Law nº 12.403/11. How interpretative solution to identified obstacles, and with a view to increasing the effectiveness of the institute, we propo-se a rereading of their assumptions, foundations and requirements. In the process, we use the idea of equality as non-domination/sub-mission and Alexy’s theory of fundamental rights as foundations for building a specific microsystem adapted to the context of structural and systematic inequality to which women are subjected to. As a re-sult, we suggest the creation of a new ground for detention, catering exclusively to the protection of gender violence and based on a new paradigm of precautionary measure, thus preserving the proportio-nality of the exceptional detention.KEYWORDS: Preventive detention; violence against women; equa-lity as non-domination; proportionality; new plea.SUMÁRIO: Introdução; 1 O sistema geral de privação da liberdade individual e sua aplicação no contexto da violência contra a mulher; 2 A incompatibilidade existente entre a Lei nº 12.403/2011 e o mi-crossistema da Lei Maria da Penha: a lacuna sistêmica que se fun-damenta e decorre da proporcionalidade; 3 A necessidade de um fundamento específico para prisão preventiva, destinado a tutelar a eficácia das medidas protetivas de urgência na Lei Maria da Penha; Conclusão; Referências.

introdução

A Lei Federal nº 11.340, de 7 de agosto de 2006, é festejada como o maior instrumento de proteção da mulher brasileira em face da violência. Muito embora sua origem junto à Comissão Interamericana de Direitos Hu-manos1 seja desconhecida de boa parte da população, não há como negar que a norma constitui um marco no enfrentamento da violência de gênero em território nacional.

As mudanças pretendidas pelo microssistema de defesa de vulnerá-veis criado pela chamada “Lei Maria da Penha” (LMP)2 são de vulto. Elas

1 A Lei nº 11.340/2006 teve origem em uma recomendação feita à República Federativa do Brasil pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos (caso 12.051). Disponível em: <http://www.cidh.oas.org/women/Brasil12.051.htm>.

2 Maria da Penha Maia Fernandes, vítima de violência praticada por seu ex-cônjuge, o qual provocou sua paraplegia, diante da demora para responsabilização do agressor pelo Judiciário Brasileiro, recorreu à tutela da Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA (Organização dos Estados Americanos). Sua iniciativa resultou na expedição de

Page 67: 25 5 0 - Ministério Público do Estado de São Paulo

Doutrina nacionalrevista De estuDos criminais 55

outubro/Dezembro 2014

6767

transitam pelo campo das políticas públicas, alcançam a seara administrati-va, civil, processual civil e previdenciária. Todavia, como é usual, seu campo de maior repercussão é o do direito penal e processual penal. E não poderia ser diferente, pois a cultura brasileira enxerga na criminalização o “bálsamo milagroso” que pode resolver todos os males.

A ideia que se contrapõe a esse lugar comum, a da subsidiariedade do direito repressor, muito embora sustente críticas à utilização de normas incri-minadoras como principal instrumento de tutela de direitos, tem seu mérito. Por meio dela, é possível polarizar a discussão, colocando o problema da violência contra a mulher sob o enfoque pretendido neste estudo.

Isso porque, se é certo que, em um contexto geral, o direito penal e ins-trumentos processuais correlatos devem ser o último recurso para proteção de bens jurídicos, também não é menos verdade que, em um quadro específi-co de desigualdade e vulnerabilidade, ele pode ser o mais efetivo instrumen-to para salvaguarda de direitos.

Em outras palavras, apesar da relevância dos instrumentos de redistri-buição e reconhecimento3 trazidos pela LMP, texto legal pensado para rom-per o ciclo de dominação econômica e cultural a que são secularmente sub-metidas as mulheres4, o que se propõe é um olhar menos romântico e mais pragmático da violência de gênero.

uma recomendação da Comissão Interamericana ao Estado brasileiro, a partir da qual foi promulgada a Lei nº 11.340/2006. Força disso, a lei foi batizada com seu nome. Para evitar tautologia, doravante, as referências à Lei nº 11.340/2006 serão feitas por meio da sigla LMP.

3 FRASER, Nancy. Da redistribuição ao reconhecimento: dilemas da justiça numa era pós-socialista. Revista da USP, tradução Júlio Assis Simões,, n. 14/15, p. 231 a 235. Extraído de: http://www.revistas.usp.br/cadernosdecampo/article/viewFile/50109/54229. Acesso em 1º jul. 2014.

4 Segundo Fraser, do ponto de vista analítico e contemporaneamente, a injustiça pode ser compreendida de duas formas: a injustiça econômica, radicada na estrutura econômico-política da sociedade (v.g., por meio da exploração, marginalização e privação de um padrão de vida adequado); e a injustiça cultural ou simbólica, radicada em padrões sociais de representação, interpretação e comunicação. Ainda segundo a autora, dadas as bases igualitaristas e diferencialistas por meio das quais se estabelecem remédios para essas duas modalidades de injustiça, os dois tipos de lutas (pela igualação e pela demarcação da diferença) estão em tensão, já que realizam movimentos aparentemente antitéticos. Não obstante, existem alguns paradigmas de coletividade que seriam ambivalentes, vale dizer, há grupos, que são discriminados e oprimidos tanto na seara econômico-política como na

Page 68: 25 5 0 - Ministério Público do Estado de São Paulo

68

Revista de estudos CRiminais 55doutRina naCional

outubRo/dezembRo 2014

68

A mudança de uma cultura sexista milenar, embora almejável, é um processo que demanda tempo. A violência contra a mulher, ao contrário, é um fato social, que exige tutela para o hoje, já que estão em jogo a integrida-de e a vida de toda uma geração de vítimas nascidas em um ambiente social impregnado por uma cultura de dominação e violência baseada no gênero.

Nesse contexto, o mandado de criminalização5-6 da violência doméstica e familiar contra a mulher é o instrumento imediato, aquele que permite aos operadores jurídicos, de forma concreta e eficaz, salvaguardar a dignidade e a integridade das mulheres.

Daí, exsurge o papel central da privação cautelar da liberdade do indi-gitado agressor(a) no sistema de proteção idealizado pela Lei nº 11.340/2006. Compreender o tratamento que a norma especial dá ao tema, bem assim a compatibilidade deste para com o sistema geral estruturado pela Constitui-ção Federal e pela legislação processual penal ordinária no que pertine à li-berdade provisória, se constitui no primeiro passo para a releitura da LMP sob o paradigma dos direitos humanos.

político-cultural. É o caso do gênero, que gera uma discriminação primária e original nos dois âmbitos, de modo que os remédios de distribuição e reconhecimento não funcionam de forma isolada. Nessa linha de ideias, se insere o conceito, de extrema pertinência ao presente ensaio, de injustiça de gênero, assim entendida pela doutrinadora como aquela que tem como característica central o androcentrismo (construção autorizada de normas que privilegiam a masculinidade) e o sexismo cultural (desqualificação generalizada do feminismo). É esse o contexto de injustiça social em que se insere a releitura proposta ao instituto da prisão preventiva e do qual deflui sua necessidade (Idem, p. 232 a 234).

5 Na lição de André Ramos Tavares, a dimensão objetiva dos direitos humanos consolidou uma característica que não seria típica de seu regime jurídico: a busca pela proteção penal. Nesse sentido, criou-se um dever dos Estados de criar um arcabouço institucional de proteção aos direitos humanos, que, no plano internacional, inclui o uso do direito penal para punição dos violadores dos direitos humanos. Essa característica, que se replica nos ordenamentos locais, é composta de dupla faceta: (i) a obrigação dos Estados de criminalizar determinadas condutas violadoras dos direitos humanos; e (ii) a obrigação dos Estados de investigar, processar criminalmente e punir os autores de tais violações (TAVARES, André Ramos. Teoria geral dos direitos humanos na ordem internacional. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2014. p. 237 a 245).

6 A violência doméstica é exemplo expresso de mandado internacional de criminalização para proteção de direitos humanos, conforme art. 7º da Convenção de Belém do Pará e art. 226, § 8º, da Constituição da República Federativa do Brasil. Sua instrumentalização, no plano infraconstitucional, ocorreu por meio da Lei Federal nº 11.340/2006 e alterações por esta produzidas no DL 2.848/1941 (Código Penal Brasileiro).

Page 69: 25 5 0 - Ministério Público do Estado de São Paulo

Doutrina nacionalrevista De estuDos criminais 55

outubro/Dezembro 2014

6969

É este o escopo do presente ensaio, analisar a eficiência da proteção dispensada pelo mais profícuo instrumento de tutela da violência de gênero: a prisão preventiva.

1 o sisteMa geral de Privação da liBerdade individual e sua aPlicação no conteXto da violÊncia contra a MulHer

A prisão provisória é, com certeza, um dos temas objeto de maior ce-leuma e incompreensão, seja na comunidade jurídica ou na sociedade em geral. As razões para tanto são muitas e diversas. De forma breve, é possí-vel apontar como ponto central das discussões a releitura que a Constituição Federal de 1988, notadamente em função de seu núcleo de garantias penais fundamentais, provocou no antigo sistema estabelecido pelo Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941 (Código de Processo Penal brasileiro). De um dia para o outro, literalmente, a prisão durante o curso do processo, até então vista como regra, passou a sofrer o influxo de normas definidoras de direitos fundamentais que caminham em sentido oposto.

Indo direto ao ponto, a privação da liberdade antes da decisão judicial definitiva passou a ser medida excepcional, temporária e condicionada à de-monstração de pressupostos de cautelaridade específicos.

Esse caráter instrumental, perfeitamente alinhado à garantia traduzida pela presunção de não culpa e à própria ideia de devido processo legal, criou inicialmente um panorama de bipolaridade no processo penal. O juiz, prima facie, ao tratar da liberdade provisória, oscilaria entre duas situações extrema-das: concessão de liberdade provisória (condicionada ou não) ou segregação cautelar do investigado/réu7-8.

Sem muito esforço, é possível identificar a ausência de proporcionali-dade do modelo referido, perspectiva que, seguindo a orientação do direito

7 Ver, entre outros: LIMA, Renato Brasileiro de. Nova prisão cautelar – Doutrina, jurisprudência e prática. Rio de Janeiro: Impetus, 2012. p. 04 e 05.

8 Segundo Aury Lopes Jr., a Lei nº 12.403/2011, como alternativa a um sistema cautelar pobre, que se resumia à prisão cautelar ou liberdade provisória, criou um modelo polimorfo, em que o juiz poderá dispor de um leque de medidas substitutivas da prisão cautelar. Ainda segundo o autor, que não reconhece a existência de poder geral de cautela no processo penal, qualquer restrição imposta pelo juiz fora desses limites seria ilegal (Direito processual penal e sua conformação constitucional. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 781 a 783).

Page 70: 25 5 0 - Ministério Público do Estado de São Paulo

70

Revista de estudos CRiminais 55doutRina naCional

outubRo/dezembRo 2014

70

comparado9, culminou na modificação operada pela Lei nº 12.403/2011, vale dizer, na criação do sistema de medidas cautelares alternativas à prisão.

A LMP surge, exatamente, neste hiato entre as mudanças hermenêuti-cas quanto à liberdade provisória proporcionadas pela redemocratização e a promulgação da lei que tratou das chamadas “medidas cautelares alternati-vas à prisão”, promovendo alterações significativas no Código de Processo Penal brasileiro quanto ao tema.

A quebra da dualidade antes referida, embora em um primeiro mo-mento pareça caminhar no sentido inverso das necessidades do microssiste-ma de proteção da Lei nº 11.340/2006, em verdade, demonstra uma lacuna sistêmica, cujo princípio subjacente é o mesmo da mudança promovida pela Lei nº 12.403/2011 – o princípio da proporcionalidade –, como se verá em tópico específico.

O primeiro passo, contudo, consiste em desconstruir a aparente antino-mia existente entre as normas gerais do Código de Processo Penal quanto à prisão preventiva – notadamente após a última reforma promovida pela Lei nº 12.403/2011 – e as regras especiais da LMP.

Nesse processo, a ingerência da ideia de igualdade como não domi-nação10, ainda que de forma breve, é essencial. A partir dela será possível al-cançar uma concepção ampliada do instituto da prisão preventiva: a de que, na tutela de grupos vulneráveis, mais do que uma medida instrumental ao processo, a segregação preventiva pode atuar como móvel para a promoção e proteção dos direitos humanos das vítimas. Em tal viés, o instituto passaria a ser visto, no microssistema da LMP, como verdadeiro desdobramento do mandado de criminalização que a norma especial busca cumprir.

Em primeiro plano, no campo da normatividade, há aparente colisão entre o texto do art. 20 da Lei nº 11.340/2006 e o dos arts. 282, § 3º, e 311 do Código de Processo Penal brasileiro, com a redação que lhes foi dada pela Lei nº 12.403/2011. Nesse sentido, rezam os dispositivos:

9 Idem.

10 CLÉRICO, Laura; ALDAO, Martín. Nuevas miradas de la igualdad en la jurisprudencia de la Corte Interamericana de Derechos Humanos: la igualdad como redistribución y como reconocimiento. Lecciones y Ensayos, n. 89, p. 142 e 143, 2011. Disponível em: <http://www.derecho.uba.ar/publicaciones/lye/revistas/89/clerico-laura-y-aldao-martin-nuevas-miradas-de-la-igualdad.pdf>. Acesso em: 23 out. 2013.

Page 71: 25 5 0 - Ministério Público do Estado de São Paulo

Doutrina nacionalrevista De estuDos criminais 55

outubro/Dezembro 2014

7171

Art. 20. Em qualquer fase do inquérito policial ou da instrução criminal, caberá a prisão preventiva do agressor, decretada pelo juiz, de ofício, a requerimento do Ministério Público ou mediante representação da autoridade policial.

Art. 282. As medidas cautelares previstas neste Título deverão ser aplica-das observando-se a:

[...]

§ 2º As medidas cautelares serão decretadas pelo juiz, de ofício ou a reque-rimento das partes ou, quando no curso da investigação criminal, por represen-tação da autoridade policial ou mediante requerimento do Ministério Público.

Art. 311. Em qualquer fase da investigação policial ou do processo penal, caberá a prisão preventiva decretada pelo juiz, de ofício, se no curso da ação penal, ou a requerimento do Ministério Público, do querelante ou do assistente, ou por representação da autoridade policial.

Como se pode observar da simples leitura, a nova redação dos arts. 282, § 2º, e 311 do CPPB, em clara homenagem ao sistema acusatório, preser-va uma concepção em que se busca, ao máximo, a imparcialidade do Magis-trado. Isso porque, de forma expressa, reserva, na fase investigativa, legiti-midade apenas ao Ministério Público e à autoridade policial para requerer/representar pela prisão preventiva do investigado.

A solução do conflito entre tais disposições, embora pudesse ser consi-derada como simples nos termos da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB)11, pode gerar dissenso. Isso porque, se a Lei nº 12.403/2011 é, de um lado, norma geral e posterior, não se pode ignorar a tese de que a Lei nº 11.340/2006, ao prever instrumentos para tutela dos direitos funda-mentais das mulheres, cumpre expresso mandado constitucional quanto ao resguardo de sua dignidade em face da violência de gênero (art. 226, § 8º, da CF/1988)12. Ótica pela qual a decretação de ofício pelo Magistrado da prisão preventiva é plenamente defensável.

A discussão, contudo, ganha maior profundidade quando se toma como paradigma interpretativo um sistema constitucional, como o brasilei-ro, centrado na dignidade humana13 e que tem como objetivos fundamentais

11 Decreto-Lei nº 4.657/1942, art. 2º, § 2º.

12 LIMA, Fausto Rodrigues de. Lei das cautelares mudou a Lei Maria da Penha. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2012-dez-20/fausto-lima-lei-medidas-cautelares-mudou-aplicacao-maria-penha>. Acesso em: 12 mar. 2014.

13 Constituição da República Federativa do Brasil, art. 1º, inciso III.

Page 72: 25 5 0 - Ministério Público do Estado de São Paulo

72

Revista de estudos CRiminais 55doutRina naCional

outubRo/dezembRo 2014

72

a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, sem preconceitos de raça, cor, sexo, idade e quaisquer outras formas de discriminação14, ao que se pode, ainda, acrescer todo um arcabouço normativo internacional relativo à proteção das mulheres e que está incorporado a nossa ordem jurídica, ao menos, com status supralegal15.

Portanto, o enfrentamento dessa antinomia deve se dar em outras fron-teiras, transcendendo os critérios da LINDB. Sob o paradigma dos direitos humanos, o aparente conflito pode ser compreendido a partir do seguinte questionamento: Na hipótese de violência doméstica e familiar contra a mulher, dada a vulnerabilidade da vítima, não seria razoável que o Magistrado possuísse a le-gitimidade para, mesmo na fase pré-processual, decretar de ofício a prisão preventiva do agressor?

A resposta à indagação, que por si já induz à consideração da vulnera-bilidade da vítima, intuitivamente conduz a uma análise de proporcionalida-de que guarda evidente conexão com o princípio da igualdade.

De forma mais direta, a abordagem que se propõe rompe com o tradi-cional enfoque que considera apenas o embate entre o direito de liberdade do investigado e o interesse público encarnado pela pretensão punitiva estatal. Ela acresce um terceiro elemento na equação do decreto preventivo, o dever de proteção estatal a pessoas ou grupos em situação de vulnerabilidade, no caso, às mulheres vítimas de violência doméstica ou familiar.

Esse terceiro elemento, que encontra base na ideia ampliada de igual-dade como não dominação/submissão16, não apenas permite sustentar, sob a égide dos direitos humanos, a possibilidade da decretação ex officio da se-gregação preventiva pelo Magistrado nos casos de violência contra mulher. Para muito além, ele abre um novo horizonte no sentido da reinterpretação de todo o regramento quanto à privação cautelar da liberdade individual na hipótese de vulnerabilidade da vítima da infração penal.

Ele tem como fundamento a lição de Clerico y Aldao, para quem as no-ções tradicionais de igualdade formal e material, em seus diferentes níveis de escrutínio, são insuficientes para a tutela de desigualdades sistemáticas e estruturais. Em tais casos, ensina a autora, quando os indivíduos não podem sair da situação discriminatória por seus próprios meios (como na hipótese

14 Constituição da República Federativa do Brasil, art. 3º, incisos I e IV.

15 Conforme entendimento majoritário do STF, assentado no julgamento do HC 90.172/SP.

16 Op. cit., p. 142.

Page 73: 25 5 0 - Ministério Público do Estado de São Paulo

Doutrina nacionalrevista De estuDos criminais 55

outubro/Dezembro 2014

7373

de pessoas incapacitadas, povos originários, crianças e mulheres, v.g.), são requeridas medidas de ação positiva, reparadoras ou transformadoras, de modo a promover a igualdade real no exercício de seus direitos17.

Não há dúvida que a violência de gênero se dá de maneira sistemática, estando estruturalmente inserida em uma cultura sexista, cuja superação exi-ge ações estatais positivas, em diversos campos, incluídas a dogmática penal e processual penal, conclusão que vai perfeitamente ao encontro do pensa-mento de Alexy18 (cuja teoria dos direitos fundamentais prevê um sistema de posições jurídicas protegidas que assegura não apenas o direito a presta-ções estatais negativas, como também direito a ações positivas fáticas e nor-mativas) e que também encontra previsão na Convenção Interamericana para Prevenir e Erradicar a Violência contra a Mulher (Convenção de Belém do Pará), promulgada no Brasil por meio do Decreto nº 1.973, de 1º.08.1996. Nesse sen-tido, basta ver a redação da cabeça do art. 7º do Estatuto em questão, que, expressamente, consagra a obrigação dos Estados Partes de adotar políticas destinadas a prevenir, punir e erradicar todas as formas de violência contra a mulher. Políticas estas, amplamente especificadas nas alíneas da mesma norma con-vencional, as quais listam obrigações de tutela pelo ente estatal, tais como: a prevenção investigação e punição da violência contra a mulher; a incorporação na legislação interna de normas penais, civis e de outra natureza, que sejam necessárias para a prevenção punição e erradicação desta mesma violência e, ainda, apenas para destacar os principais deveres de proteção estatal, a adoção de medidas judiciais que exijam do agressor que se abstenha de perseguir, intimidar ou ameaçar a mulher vítima19.

Além, é claro, de estar pareada com o vetor interpretativo, isto é, com o norte teleológico para construção de soluções pelo operador jurídico20 delineado pelo próprio legislador ordinário no art. 4º da Lei nº 11.340/2006: “Art. 4º Na interpretação desta Lei, serão considerados os fins sociais a que ela se destina

17 Idem.

18 ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. 5. ed. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 195 a 203.

19 Disponível em: <http://www.cidh.oas.org/basicos/portugues/m.Belem.do.Para.htm>. Acesso em: 27 nov. 2013.

20 SUXBERGER, Antônio Henrique Graciano. Prisão preventiva para garantir a execução de medida protetiva de urgência nos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher. Revista Magister de Direito Processual Penal, n. 43, p. 42, ago./set. 2011.

Page 74: 25 5 0 - Ministério Público do Estado de São Paulo

74

Revista de estudos CRiminais 55doutRina naCional

outubRo/dezembRo 2014

74

e, especialmente, as condições peculiares das mulheres em situação de vio-lência doméstica e familiar”.

Assim, pela contextualização do tema, vale dizer, pela consideração da diferença que reside na vulnerabilidade das mulheres vítimas de violência, será possível retirar a discussão da dimensão puramente dogmática, produ-zindo conhecimento em conexão com realidade. A visibilidade da violência de gênero, nessa lógica, é o ponto de partida para a desestabilização das es-truturas construídas por conta dessa ordem de coisas21.

Nisso reside a releitura epistêmica pretendida, cuja importância pode ser extraída da ponderação de Suxberger, a seguir transcrita:

A primeira atitude necessária para a efetivação de um compromisso com os direitos humanos é a assunção de uma postura que permita a realiza-ção de uma função epistêmica de todo o conhecimento. É dizer, faz-se ne-cessário, antes de qualquer recorte temático a respeito de um objeto a ser enfrentando juridicamente, tornar visível o contexto ensejador de eventual mudança ou discussão.22

Como já apontado, e mesmo pelas limitações inerentes à natureza do presente ensaio, o foco desse novo olhar será o instrumento que de forma mais imediata tutela a integridade das vítimas de violência de gênero: a pri-são preventiva do agressor.

2 a incoMPatiBilidade eXistente entre a lei nº 12.403/2011 e o MicrossisteMa da lei Maria da PenHa: a lacuna sistÊMica Que se fundaMenta e decorre da ProPorcionalidade

A prisão preventiva é a principal modalidade de prisão provisória no ordenamento brasileiro. Sua admissibilidade, assim como das demais hipó-teses de segregação anteriores à sentença penal condenatória23, é objeto de

21 Idem.

22 Op. cit., p. 39.

23 Prisão em flagrante e prisão temporária. Além dos instrumentos específicos previstos no microssistema da Lei nº 8.609/1994 (Estatuto da Criança e do Adolescente), aplicáveis aos adolescentes infratores: apreensão em flagrante e medida socioeducativa de internação provisória.

Page 75: 25 5 0 - Ministério Público do Estado de São Paulo

Doutrina nacionalrevista De estuDos criminais 55

outubro/Dezembro 2014

7575

extensa regulação constitucional24. Constitui medida cautelar, de caráter pes-soal e excepcional, haja vista a consagração pela Carta Política dos princípios do primado da liberdade e da presunção de não culpa. Destes, deflui que a liberdade provisória do acusado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória constitui a regra no sistema jurídico-constitucional pátrio.

De forma didática, é possível dizer que a segregação preventiva, além do respeito às garantias constitucionais já citadas, demanda uma tríplice ava-liação do órgão jurisdicional competente para sua decretação.

Deverão estar assim presentes para privação preventiva da liberda-de individual os pressupostos de cautelaridade da medida (art. 312, in fine, do CPPB), bem como satisfeitos os seus requisitos legais (arts. 313 e 314 do CPPB) e caracterizadas as circunstâncias que a autorizam (art. 312, 1ª parte, do CPPB).

A essa estruturação clássica, foi acrescido pela LMP o inciso IV do art. 313 do CPPB – posteriormente renumerado pela Lei nº 12.403/2011 –, que admite a prisão preventiva quando o crime envolver violência doméstica e fami-liar contra a mulher, criança, adolescente, idoso, enfermo ou pessoa com deficiência, para garantir a execução das medidas protetivas de urgência.

Ademais, há evidente repercussão da reforma produzida pela Lei nº 12.403/2011, que trata das medidas cautelares alternativas à prisão, no-tadamente pelas disposições dos arts. 282, § 2º (inadmissibilidade da decre-tação de ofício pelo Magistrado no curso da investigação), §§ 4º e 6º (subsi-diariedade da prisão preventiva em relação às cautelares alternativas), 319, incisos I a IX (rol de medidas cautelares substitutivas da prisão).

Em uma leitura apressada, se poderia identificar nas modificações le-gislativas apontadas movimentos opostos. Isso porque, de um lado, a Lei nº 11.340/2006 pretendeu criar hipótese específica de prisão preventiva re-lativa às situações de violência doméstica e familiar contra vulneráveis, ao passo que, de outro, a Lei nº 12.403/2011 deu à segregação preventiva cará-ter nitidamente excepcional, deixando clara a preferência do legislador pelas medidas cautelares alternativas ao encarceramento.

Trata-se de antítese, contudo, apenas aparente. Com a vênia devida às discussões quanto à existência de uma nova hipótese automática – e assim

24 Conforme art. 5º, incisos LIV, LVII, LXI, LXII, LXIII, LIV, LV e LVI, da Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em: 2 dez. 2013.

Page 76: 25 5 0 - Ministério Público do Estado de São Paulo

76

Revista de estudos CRiminais 55doutRina naCional

outubRo/dezembRo 2014

76

inconstitucional por ofensa ao princípio da proporcionalidade – de encarce-ramento preventivo, desvinculada da prova concreta dos pressupostos de cautelaridade específicos da prisão preventiva25, não é este o caminho para a compreensão do problema.

O cerne da questão, sob outro enfoque, está na colisão entre a dignida-de do agressor (privado de sua liberdade antes do decreto condenatório de-finitivo) e a da vítima (aviltada pela continuidade da violência de gênero em razão do descumprimento das medidas protetivas). Conflito cuja ponderação deve partir do reconhecimento da diferença, do contexto de hipossuficiência física, cultural e econômica que assola as mulheres, amplamente reconhecido seja no plano internacional, constitucional ou legal, como merecedor de tute-la diferenciada do Estado, de modo a propiciar, em última análise, a defesa da dignidade de um grupo submetido a violência sistemática e estrutural.

Conclusão que encontra eco na doutrina, segundo a qual, quando ambos os atores do episódio de violência doméstica e familiar são dotados desta intrínseca qualidade, há uma revelada insuficiência dos métodos or-todoxos de aplicação do direito, criando-se campo fértil para ponderação dos valores confrontantes: necessidade contrafática de afastamento do(a) suposto(a) agressor(a)26 da mulher hipossuficiente e resguardo da dignidade deste mesmo indivíduo, por critério de justiça procedimental (presunção de inocência)27. Daí a conclusão, perfeitamente alinhada ao ideário aqui desen-volvido, de que a questão, portanto, que subjaz à possibilidade jurídica da decre-tação da prisão preventiva para os casos de violência doméstica (Lei nº 11.340/2006,

25 Sintetizando as controvérsias relativas ao tratamento da prisão preventiva pela Lei nº 11.340/2006, ver: FIOREZZE, Renato; CORTE, Thaís Dalla. Prisão preventiva: análise das controvérsias legais na aplicação da medida cautelar frente à Lei Maria da Penha. RDP, n. 68, p. 148 a 152, jun./jul. 2011, .

26 Note-se que, como o manejo da prisão preventiva pode ocorrer tanto na fase investigativa como na processual, tecnicamente, os termos “agressor(a)” e “vítima” não seriam as mais adequados. Isso porque, durante toda a persecução penal, em razão da garantia da presunção de não culpa e, mesmo, por força do devido processo legal, os operadores jurídicos envolvidos (juízes, membros do MP e Delegados de Polícia) trabalham em um contexto de verossimilhança e não de certeza quanto às infrações penais, em tese, investigadas/imputadas ao supeito/réu.

27 ARAÚJO, Rodrigo da Silva Perez. Violência doméstica: possibilidade jurídica da nova hipótese de prisão preventiva à luz do princípio constitucional da proporcionalidade. RDPP, n. 44, p. 26, jun./jul. 2007,.

Page 77: 25 5 0 - Ministério Público do Estado de São Paulo

Doutrina nacionalrevista De estuDos criminais 55

outubro/Dezembro 2014

7777

art. 20), se apresenta mais em termos principiológicos que de conformidade infracons-titucional, de coerência legal28.

A necessidade de uma abordagem principiológica, a partir da ponde-ração entre os direitos fundamentais colidentes, portanto, decorre da neces-sidade de otimização da proteção à vítima vulnerável que não se afigura no contexto do processo penal em geral.

Assim, retomando o título do capítulo, se pela dupla face da proporcio-nalidade29 o Estado está obrigado tanto a agir para prestar proteção à mulher

28 Idem.

29 Segundo Ingo Wolfgang Sarlet, a ideia de uma dimensão objetiva da proporcionalidade foi desenvolvida, a partir da década de 1950, pela doutrina e pela jurisprudência da Corte Constitucional alemã. Isso porque a Constituição daquele país, ressalvadas algumas cláusulas gerais, não consagrava expressamente deveres estatais para a proteção de direitos fundamentais. A partir dessa construção, foi pela primeira vez reconhecido o dever de agir do Estado para proteção de bens fundamentais, com caráter vinculativo, transbordando a tradicional noção de que as normas constitucionais impositivas de deveres seriam de eficácia limitada (programáticas). Assim, em contraposição à noção dos direitos fundamentais como direitos subjetivos, limitativos da ação estatal em relação ao indivíduo, surge a dimensão objetiva da proporcionalidade, consubstanciada em deveres de proteção que vinculam tanto o Estado-legislador como o Estado-administrador e o Estado-juiz. Ainda segundo o autor, a dupla face da proporcionalidade como proibição de proteção deficiente (untermassverbot), no contexto histórico referido, surgiu em uma discussão quanto a uma proposta legislativa de descriminalização da prática do aborto, levada ao Tribunal Constitucional alemão. Ao enfrentar o tema, a Corte Constitucional alemã, caminhando em sentido diverso da Suprema Corte americana, decidiu que, muito embora a questão envolvesse o direito fundamental das mulheres à privacidade e disposição de seu corpo, o direito à vida não poderia ser visto como propriedade de nenhuma pessoa, pois a vida humana também mereceria a tutela do Estado. Prevaleceu o entendimento de que, ainda que não reconhecido um direito constitucionalmente consagrado à vida durante a gestação, há, pelo menos, um dever constitucional objetivo do Estado de tutelar aquela vida em formação (vedação à proteção deficiente).

SARLET. Ingo Wolfgang. A Dupla Face da Proporcionalidade e os Deveres de Proteção. Vídeo, em meio eletrônico, da palestra proferida pelo Professor Ingo Wolfgang Sarlet, proferida na Fundação Escola Superior da Defensoria Pública do Rio Grande do Sul, son., col., duração de 14 minutos e 57 segundos. Disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=2OVbxQ6tWvc>. Acesso em: 21 maio 2014.

Ver também: SARLET, Ingo Wolfgang. Direitos fundamentais e proporcionalidade: notas a respeito dos limites e possibilidades da aplicação das categorias da proibição de excesso e de insuficiência em matéria criminal. Revista da Ajuris, Porto Alegre, v. 35, n. 109, pp. 140 a 161, 2008.

Page 78: 25 5 0 - Ministério Público do Estado de São Paulo

78

Revista de estudos CRiminais 55doutRina naCional

outubRo/dezembRo 2014

78

vitimizadas em razão do gênero, como a se abster da privação da liberdade individual além do minimamente necessário para o exercício da jurisdição penal, é possível concluir que as duas alterações legislativas estão lastreadas no princípio da proporcionalidade.

Em ambos os casos, portanto, existiam lacunas sistêmicas que ameaça-vam a integridade de direitos humanos fundamentais: o direito de liberdade ameaçado pelo hiato que, antes da Lei nº 12.403/2011, existia entre o benefí-cio da liberdade provisória e o encarceramento cautelar, duas únicas facetas de um sistema até então desproporcional e bipolar; a dignidade das mulheres vítimas da violência de gênero, já que a prisão do agressor seria apreciada nos moldes de um sistema geral, inadequado para a defesa dos direitos de grupos vulneráveis, resultando em proteção deficiente.

Não há dúvida, nessa linha de ideias, que prisão preventiva daquele que pratica a violência doméstica e familiar contra a mulher é juridicamente possível. Tampouco se pode olvidar que a aferição de sua possibilidade se deve dar a partir de requisitos próprios e específicos, adaptados a um con-texto de valorização da vítima30, de tutela a um grupo vulnerável que possui um microssistema jurídico próprio destinado à proteção e promoção de seus direitos.

Daí porque, com o respeito devido, a alteração produzida pela Lei nº 11.340/2006 na lei processual penal deveria ter sido mais contundente, como se verá no próximo tópico.

3 a necessidade de uM fundaMento esPecÍfico Para Prisão Preventiva, destinado a tutelar a eficácia das Medidas Protetivas de urgÊncia na lei Maria da PenHa

Por tudo que até agora se expôs, tanto as normas do sistema global e interamericano de direitos humanos como o sistema constitucional e legal brasileiros acolhem mandamentos de otimização31 da proteção das mulheres vítimas de violência.

30 Op. cit., p. 25.

31 Segundo Alexy, o ponto decisivo na distinção entre regras e princípios é que princípios são normas que ordenam que algo seja realizado na maior medida possível dentro das possibilidades jurídicas e fáticas existentes. Princípios são, por conseguinte, mandamentos de otimização, que são caracterizados por poderem satisfeitos em graus variados [...] Já as regras são normas que são sempre satisfeitas ou não satisfeitas (op. cit., p. 90 e 91). Essa elasticidade dos princípios, instrumentalizada

Page 79: 25 5 0 - Ministério Público do Estado de São Paulo

Doutrina nacionalrevista De estuDos criminais 55

outubro/Dezembro 2014

7979

Dessa teleologia, deveria decorrer um esforço no sentido da desburo-cratização do instrumental jurídico que dá efetividade à tutela da violência contra a mulher. De forma mais simples, a Lei nº 11.340/2006 deveria ter sido desenhada de modo a suprimir, ao máximo, possíveis obstáculos interpreta-tivos na operação dos institutos protetivos que introduziu na ordem jurídica nacional.

Não obstante, a opção do legislador, especialmente no que se refere ao tratamento da prisão preventiva, não caminhou nesse sentido. Situação que, sob uma perspectiva puramente gramatical da Lei nº 12.403/2011, res-tou agravada.

As discussões relativas ao princípio da adequação, expressamente aco-lhido pelo art. 284, II, da Lei Processual Penal, em sua nova redação, a pos-sibilidade decretação de ofício na fase investigativa – já tratada – e, mesmo, a obrigatoriedade ou não da cumulação dos requisitos específicos da prisão decorrente do descumprimento das medidas protetivas com um dos funda-mentos gerais do art. 312 do CPP enfraquecem a tutela oferecida pela Lei nº 11.340/2006.

Ora, se o objetivo da norma era ampliar a efetividade da proteção a um grupo hipossuficiente, deveria ter sido criado um fundamento próprio para a segregação preventiva do autor de violência doméstica e familiar contra a mulher32. Este, uma vez inserido no art. 312 do CPPB, poderia ser associado ao requisito específico do descumprimento das medidas de proteção trazidas pelos arts. 22 a 24 da Lei nº 11.340/2006. Assim, estaria preservada a pro-porcionalidade, evitando um sistema bipolar, de forma similar à estrutura introduzida pela Lei nº 12.403/2011, no contexto geral, ao criar as medidas cautelares alternativas à prisão. Desta forma, além dos óbices hermenêuticos, restaria superada a objeção relativa à adequação antes apontada.

pela ponderação, é exatamente a característica que, sob um viés pós-positivista, justifica, diante de um contexto de desigualação sistemática e estrutural, a tutela potencializada da integridade das vítimas de violência de gênero, apta a justificar a especificidade do microssistema criado pela Lei nº 11.340/2006, bem como a releitura que neste ensaio se propõe quanto ao instituto da prisão preventiva.

32 Corroborando tal conclusão, destaca-se a lição de Aury Lopes Jr., para quem o legislador não criou um novo caso de prisão preventiva, ou seja, um novo periculum libertatis, já que, para que isso ocorresse, a inserção deveria sido feita no art. 312, definindo claramente o risco que se pretende tutelar (Direito processual penal e sua conformidade constitucional. 9. ed. São Paulo: Saraiva, p. 834).

Page 80: 25 5 0 - Ministério Público do Estado de São Paulo

80

Revista de estudos CRiminais 55doutRina naCional

outubRo/dezembRo 2014

80

Ademais, seria conveniente que a prisão para “garantia da efetividade das medidas protetivas de urgência”33 fosse expressamente desvinculada da quantidade da pena, deixando claro que a cautelaridade da medida se dá na sua relação com a efetividade das medidas de proteção.

Para tanto, bastaria que se acrescentasse dispositivo ao Código Pro-cesso Penal brasileiro, no qual constaria que à prisão preventiva decretada com fundamento na garantia da efetividade das medidas protetivas de urgência não se aplica o disposto pelo art. 313, inciso I, desta lei.

Dessa forma, restaria suplantada a ideia de que a medida excepcional de restrição da liberdade não se justificaria quando a reprimenda imposta ao final do processo importasse em sanção diversa da privação de liberdade, bem como se evitaria o argumento sistêmico de que, após a reforma promo-vida pela Lei nº 12.403/2011, fiança e prisão preventiva são institutos que não podem conviver, a teor do que dispõe o art. 324, inciso IV, do Código de Processo Penal brasileiro.

Tal modificação, alinhada ao imperativo de tutela estatal34 decorrente de uma violência estrutural e sistemática, criaria uma exceção à dogmática clás-sica, segundo a qual a prisão cautelar destina-se a assegurar a eficácia da sentença, a proteger a prova, bem como a execução35.

A partir do acréscimo de um fundamento específico para a tutela da violência contra a mulher, estar-se-ia criando uma hipótese de prisão pro-visória que seria instrumental à proteção da dignidade e da integridade da vítima, funcionando como medida extrema e última, reservada à hipótese de desrespeito às medidas protetivas de urgência.

Guardadas as diferenças que dimanam do próprio contexto em que ocorre a violência doméstica e familiar contra a mulher, a dinâmica seria mui-to similar àquela estruturada pela Lei nº 12.403/2011. Bastar ver a solução dada pelo novo parágrafo único do art. 312 do CPPB:

33 Fundamento que se sugere seja introduzido ao rol previsto no art. 312, in fine, do Código de Processo Penal brasileiro.

34 Como explica Ingo Wolfgang Sarlet, os direitos fundamentais atuando na sua função de deveres de proteção constituem imperativos de tutela estatal, obrigando o Estado a intervir, repressiva ou preventivamente, inclusive quando se tratar de agressão oriunda de outros particulares (op. cit., p. 147 e 148).

35 Idem, p. 145.

Page 81: 25 5 0 - Ministério Público do Estado de São Paulo

Doutrina nacionalrevista De estuDos criminais 55

outubro/Dezembro 2014

8181

Art. 312.

[...]

Parágrafo único. A prisão preventiva também poderá ser decretada em caso de descumprimento de qualquer das obrigações impostas por força de outras medidas cautelares (art. 282, § 4º).

Solução que, sublinhe-se, respeita a proporcionalidade exigida da me-dida cautelar excepcional, já que ela seria apta e necessária aos motivos e aos fins para o qual é decretada36 e somente teria lugar após a comprovada ine-ficácia de outros instrumentos menos gravosos às liberdades fundamentais.

Tal proposta, ainda na ausência de um pronunciamento específico, vai perfeitamente ao encontro do pensamento do Supremo Tribunal Federal no que pertine à exegese da Lei nº 11.340/2006.

Os votos proferidos durante o julgamento da ADIn 4424 e da ADC 1937 claramente expressam a compreensão pela Suprema Corte brasileira da ne-cessidade de uma leitura contextualizada que conduza a uma interpretação axiologicamente alinhada às normas convencionais e constitucionais atinen-tes à proteção da mulher.

Por todos, é possível citar o voto do Relator da ADC 19, Ministro Marco Aurélio Mello. Este, ao afirmar a constitucionalidade dos arts. 1º e 41 da LMP, enfatiza a desigualdade sistemática e estrutural que caracteriza o preconceito e a violência contra as mulheres, destacando que, sob a ótica constitucional, a LMP seria corolário do princípio da proibição da proteção deficiente aos direitos fundamentais38.

O que, de forma singela, significa que a omissão do Estado Brasileiro em cumprir o mandamento constitucional para criação de normas que coí-bam eficientemente a violência contra a mulher, seria suficiente para caracte-rizar a violação da Carta Política.

Na exata dicção do Ministro, a LMP retirou da invisibilidade e do silêncio a vítima de hostilidades ocorridas na privacidade do lar e representou movimento

36 Idem, p. 146.

37 Vídeos, em meio eletrônico, do julgamento conjunto pelo Pleno do Supremo Tribunal Federal da ADIn 4424 e ADC 19, son., col., duração de 41 minutos e 38 segundos, 10 minutos e 57 segundos e 26 minutos e 02 segundos, respectivamente. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=t55l14qFRhU>. Acesso em: 15 abr. 2014.

38 Idem.

Page 82: 25 5 0 - Ministério Público do Estado de São Paulo

82

Revista de estudos CRiminais 55doutRina naCional

outubRo/dezembRo 2014

82

legislativo claro no sentido de assegurar às mulheres agredidas, o acesso efetivo à reparação à proteção e à Justiça39.

Ideia que se coaduna perfeitamente à obrigação de dupla matiz extraí-da do pensamento de Alexy40 – prestações negativas e prestações fáticas/normativas –, justificando a providencia legislativa específica proposta no que pertine à segregação preventiva do autor de violência doméstica contra a mulher, e que ganha ainda maior densidade em razão do seu alinhamento às normas específicas do direito internacional dos direitos humanos ratificadas pela República Federativa do Brasil, como já exposto.

Ora, se todo o ordenamento convencional e constitucional determina uma tutela específica e apropriada ao especial contexto discriminatório da violência contra mulher, qualquer medida fática ou normativa que seja ne-cessária, adequada e razoável para a ampliação da tutela dessa mesma vio-lência, não apenas está alinhada à Carta Política como é decorrente do seu fundamento de dignidade humana.

Tal lógica, ancorada na criação de mecanismos especiais e, portanto, mais eficazes para a proteção de grupos vulneráveis, estrutural e sistemati-camente discriminados e desigualados, permeia, também, a ratio decidendi da ADIn 4424.

Não fosse assim, não teria o STF optado, de forma clara, pela primazia da defesa da dignidade da mulher em detrimento da privacidade das rela-ções familiares. Tal ponderação, nitidamente realizada pela Corte Suprema no julgamento da ADIn mencionada, revela a transposição da questão da violência contra a mulher da esfera privada para a pública. Decisão que, na esteira de todo o pensamento já esposado, equivale ao reconhecimento de que a violência de gênero não poderia ser superada, dado sua inserção cul-tural, sem a intervenção estatal, buscando para além da noção de igualdade material a construção dialógica41 de uma identidade feminina liberta do pre-conceito, ou seja, livre de um dos mais poderosos instrumentos de opressão da sociedade patriarcal, a autodepreciação42.

39 Idem.

40 Ver nota 19, relativa ao sistema de posições jurídicas protegidas estruturado pelo autor da Teoria dos Direitos Fundamentais da Constituição Federal Alemã.

41 TAYLOR, Charles. A política do reconhecimento. In: GUTMANN, Amy (Org.). Multiculturalismo: examinando a política de reconhecimento. Lisboa: Piaget, s/d, p. 52 e 53.

42 Op. cit., p. 46.

Page 83: 25 5 0 - Ministério Público do Estado de São Paulo

Doutrina nacionalrevista De estuDos criminais 55

outubro/Dezembro 2014

8383

Necessidade que se justifica, também, sob uma perspectiva sociológica, conforme sustentado pelo Ministro Ayres Brito no voto proferido durante mesmo julgamento.

Como pondera, na esteira do pensamento de Bordier e Paulo Freire, o juiz constitucional, a discriminação traz em si um mecanismo pelo qual os dominados aplicam categorias construídas do ponto de vista não deles – os dominados, mas do ponto de vista dos dominantes às relações de domina-ção, fazendo-as, assim, ser vistas como naturais. Tal postura, que, de certa forma, equivale à introjeção de uma cultura de inferioridade, justificadora da dominação, pode levar a uma espécie de autodepreciação dos dominados, produzindo até mesmo o autodesprezo sistemático. Padrão perfeitamente identificável na representação que as mulheres fazem do seu gênero como algo deficiente, feio ou até repulsivo43 e que se alinha a um contexto de discri-minação sistemática e estrutural, justificadora de institutos e leituras especí-ficas, que busquem diminuir a desigualdade em suas mais varias facetas – aí incluída a mais perversa, a violência.

Movimento que, por imperativo lógico, não será possível sem uma primeira e inafastável medida: a preservação da vida e da integridade das mulheres vítimas de violência. Disto deflui a enorme importância da nova leitura proposta quanto à segregação preventiva do agressor, bem assim das decorrentes modificações legislativas sugeridas.

Alterações que, baseadas em uma leitura integral do texto da Lei nº 11.340/200644, em nada se incompatibilizam com o garantismo penal e sua concepção minimamente interventiva, mas, ao revés, o complementam. Isso porque, a LMP veicula aspectos garantistas e inovadores na medida em que apresenta alternativas viáveis ao combate da violência de gênero em outras esferas interventivas45.

43 Vídeo, em meio eletrônico, do julgamento conjunto pelo Pleno do Supremo Tribunal Federal da ADIn 4424 e ADC 19, son., col., duração de 10 minutos e 57 segundos. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=Jpib6avphmg>. Acesso em: 18 abr. 2014. Voto ainda não disponível.

44 MENEZES, Rafael de Sá. Considerações sobre a Lei Maria da Penha e o garantismo penal. Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 12, p. 97-107, fev. 2012. Disponível em: <http://www.reid.org.br/arquivos/00000292-08-rafael_reid-12.pdf>. Acesso em: 10 mar. 2014.

45 Op. cit., p. 99.

Page 84: 25 5 0 - Ministério Público do Estado de São Paulo

84

Revista de estudos CRiminais 55doutRina naCional

outubRo/dezembRo 2014

84

Como bem aponta Menezes, o recurso ao direito penal pela lei é pon-tual, visando a dar efetividade à repressão contra crimes que historicamente eram acobertados por justificativas que afrontam a igualdade de gênero46.

Portanto, retomando a perspectiva que permeia toda a construção ló-gica até aqui engendrada, parece óbvio que a preservação da vida e a inte-gridade das mulheres vítimas de violência de gênero são os primeiros e mais importantes passos para cumprimento do dever estatal de proteção eficiente a seus direitos fundamentais.

A partir dele, poder-se-á romper o mecanismo de imunização da violência masculina pelas instâncias formais de controle social47, potencializando a efeti-vidade já almejada pela Suprema Corte brasileira ao modificar a natureza da ação penal nos delitos decorrentes da violência de gênero contra a mulher48.

Nesse sentido, a reconstrução sistemática do instituto da prisão pre-ventiva no contexto de violência contra a mulher não é apenas necessária, mas é decorrência lógica de um processo de transposição já iniciado pelo Supremo Tribunal Federal.

conclusão

A análise realizada quanto ao regramento da prisão preventiva no âm-bito da violência de gênero aponta no sentido da criação de um sistema espe-cial, com regras próprias para a tutela da violência doméstica e familiar con-tra a mulher. Ela segue tendência de especialização que tem caracterizado, no período posterior à promulgação da Carta de 1988, a legislação relativa à tutela de grupos vulneráveis.

Disto são exemplos o Estatuto da Criança e do Adolescente, o Estatuto do Idoso, o Estatuto da Igualdade Racial, o Código de Defesa do Consumi-dor, entre outros, todos diplomas legais em que o ponto de partida para a desconstrução do modelo jurídico até então vigente é o descortinamento da vulnerabilidade, da situação de desvantagem em que se encontram determi-

46 Op. cit., p. 100.

47 Op. cit., p. 105.

48 No julgamento conjunto da ADC 19 e da ADIn 4424, o Pleno do STF, por maioria de votos, julgou procedente a ação direita para, dando interpretação conforme aos arts. 12, inciso I e 16, ambos da Lei nº 11.340/2006, assentar a natureza incondicionada da ação penal em caso de lesão, pouco importando a extensão desta, praticado contra a mulher no ambiente doméstico e familiar.

Page 85: 25 5 0 - Ministério Público do Estado de São Paulo

Doutrina nacionalrevista De estuDos criminais 55

outubro/Dezembro 2014

8585

nados grupos de indivíduos por diferentes injunções, da qual não consegui-riam sair sem a interferência estatal.

Aqueles que de alguma forma operam a Lei nº 11.340/2006 têm a di-mensão da adequação desta afirmação. A violência, que, por si, já é um fe-nômeno complexo, tem seu enfrentamento sobremaneira dificultado quando está imersa em relações de afeto, ocorrendo sob o véu da convivência familiar e como expressão de uma cultura milenar de supremacia do gênero mascu-lino.

Razão pela qual, alterações como as propostas não são apenas necessá-rias, mas inevitáveis, sob pena de se relegar à Lei Maria da Penha a condição de um simples documento retórico, de intenções.

É este o móvel do presente ensaio, contribuir para a reconstrução do instituto da prisão preventiva no contexto da violência doméstica e familiar contra a mulher, ampliando sua efetividade a partir de uma perspectiva cen-trada na dignidade de todos os indivíduos: a perspectiva dos direitos hu-manos.

referÊnciasALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. 5. ed. São Paulo: Malheiros, 2008.ARAÚJO, Rodrigo da Silva Perez. Violência doméstica: possibilidade jurídica de nova

hipótese de prisão preventiva à luz do princípio constitucional da proporcionalidade. RDDP, n. 44, p. 22 a 30, jun./jul. 2007.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em: 12 nov. 2013.

______. Decreto nº 1.973, de 1º de agosto de 1996. Ratifica a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, concluída em Belém do Pará, em 9 de junho de 1994. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1996/D1973.htm>. Acesso em: 5 nov. 2013.

______. STF, Voto do Ministro Ayres Brito pelo Pleno do Supremo Tribunal Federal da ADIn 4424 e ADC 19, son., col. Vídeo, em meio eletrônico, do julgamento conjunto. Duração de 41 minutos e 38 segundos, 10 minutos e 57 segundos e 26 minutos e 02 segundos, respectivamente . Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=t55l14qFRhU>.

CLÉRICO, Laura; ALDAO, Martín. Nuevas miradas de la igualdad en la jurisprudencia de la Corte Interamericana de Derechos Humanos: la igualdad como redistribución y como reconocimiento. Lecciones y Ensayos, n. 89, 2011. Disponível em: <http://www.derecho.uba.ar/publicaciones/lye/revistas/89/clerico-laura-y-aldao-martin-nuevas-miradas-de-la-igualdad.pdf>. Acesso em: 23 out. 2013.

CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. Tratado de direito internacional dos direitos humanos. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1997.

Page 86: 25 5 0 - Ministério Público do Estado de São Paulo

86

Revista de estudos CRiminais 55doutRina naCional

outubRo/dezembRo 2014

86

CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição. 7. ed. Coimbra: Almedina, 2003.

DORLIN, Elsa. Sexo, gênero e sexualidade: introducción a la teoria feminista”. Buenos Aires, Nova Vision, 2009.

FELDENS, Luciano. Direitos fundamentais e direito penal. 7. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008.

FRASER, Nancy. Da redistribuição ao reconhecimento: dilemas da justiça numa era pós-socialista. Disponível em: <http://www.revistas.usp.br/cadernosdecampo/article/viewFile/50109/54229>. Acesso em: 12 out. 2013.

FIOREZE, Renato; CORTE, Thaís Dalla. Prisão preventiva: análise das controvérsias legais da aplicação da medida cautelar frente à Lei Maria da Penha. RDP, n. 68, p. 141 a 156, jun./jul. 2011.

LIMA, Fausto Rodrigues de. Lei das cautelares mudou a Lei Maria da Penha. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2012-dez-20/fausto-lima-lei-medidas-cautelares-mudou-aplicacao-maria-penha>. Acesso em: 12 mar. 2014.

LIMA, Renato Brasileiro de. Nova prisão cautelar – Doutrina, jurisprudência e prática. Rio de Janeiro: Impetus, 2012.

LOPES JR., Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2012.

MENEZES, Rafael de Sá. Considerações sobre a Lei Maria da Penha e o garantismo penal. Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 12, p. 97-107, fevereiro de 2012. Disponível em: <http://www.reid.org.br/arquivos/00000292-08-rafael_reid-12.pdf>. Acesso em: 10 mar. 2014.

MOREIRA, Rômulo de Andrade. Violência doméstica contra a mulher. RDPP, n. 54, fev./mar. 2009.

MOSSIN, Heráclito Antônio. Lei Maria da Penha: representação e prisão preventiva. Revista Forense, n. 407, Rio de Janeiro, p. 559 a 570, 2010.

PORTELA, Paulo Henrique Gonçalves. Direito internacional público e privado. 5. ed. Salvador: JusPodivm, 2013.

RAMOS, André de Carvalho. Teoria geral dos direitos humanos na ordem internacional. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2014.

SARLET, Ingo Wolfgang. Direitos fundamentais e proporcionalidade: notas a respeito dos limites e possibilidades da aplicação das categorias da proibição de excesso e de insuficiência em matéria criminal. Revista da Ajuris, Porto Alegre, v. 35, n. 109, p. 140 a 161, 2008.

______. A Dupla Face da Proporcionalidade e os Deveres de Proteção Estatal. Vídeo, em meio eletrônico, da palestra proferida na Fundação Escola Superior da Defensoria Pública do Rio Grande do Sul, son., col. Duração de 14 minutos e 57 segundos. Disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=2OVbxQ6tWvc>. Acesso em: 21 maio 2014.

SIEGAL, B. Riga. Regulando la violência marital. Derecho y grupos desavantajados, compilado por Roberto Gargarella, Biblioteca Yale de Estudos Jurídicos, p. 67 a 98, Gedisa, Barcelona, 1999.

Page 87: 25 5 0 - Ministério Público do Estado de São Paulo

Doutrina nacionalrevista De estuDos criminais 55

outubro/Dezembro 2014

8787

SUXBERGER, Antônio Henrique Graciano. Prisão preventiva para garantir a execução de medida protetiva de urgência nos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher. Revista Magister de Direito Processual Penal, p. 39 a 54, n. 43, ago./set. 2011.

TAVARES, André Ramos. Teoria geral dos direitos humanos na ordem internacional. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2014.

TAYLOR, Charles. A política do reconhecimento. In: GUTMAN, Amy (Org.). Multiculturalismo: examinando a política de reconhecimento. Lisboa: Piaget, s/d.

Page 88: 25 5 0 - Ministério Público do Estado de São Paulo
Page 89: 25 5 0 - Ministério Público do Estado de São Paulo

89

Processual Penal Pós-acusatório? ressignificaçÕes do autoritarisMo

Processual PenalriCardo JaCobsen GloeCKner*

RESUMO: O presente artigo procura apresentar a recente discussão sobre os sistemas processuais penais a partir das críticas à validade dessas categorias. Igualmente, como objetivo fundamental, apresen-ta-se uma crítica às “novas” concepções que autorizariam falar-se em um processo penal pós-acusatório. Por fim, o artigo demonstra como esta discussão sobre a validade daquelas categorias proces-suais é apenas fragmentária, tendo em vista o que se pode definir como autoritarismo processual penal no Brasil. PALAVRAS-CHAVE: Processo penal; sistemas processuais; autori-tarismo.ABSTRACT: The article intends to present the recent debate about the procedural systems from the critics of the validity of such cate-gories. Equally, as fundamental objective, it presents a critic to the “new” conceptions that would authorize to speak in a post-accusa-torial criminal procedure. In the end, the article demonstrates how this discussion about the validity of those procedural categories is only fragmentary, in view of what can be defined as Brazilian crimi-nal procedural authoritarianism. KEYWORDS: Criminal procedure; procedural systems; authorita-rianism.SUMÁRIO: 1 Os sistemas processuais penais: categorias que devem ser abandonadas?; 2 Processo penal pós-acusatório?; 3 Um mapea-mento da ideologia autoritária no processo penal brasileiro; Refe-rências.

* Professor do Programa de Pós-Graduação em Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS, Doutor em Direito pela Universidade Federal do Paraná – UFPR, Mestre em Ciências Criminais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS, Especialista em Ciências Penais pela Pontifícia Universidade do Rio Grande do Sul – PUCRS, Coordenador da Especialização em Ciências Penais da Pontifícia Universidade do Rio Grande do Sul – PUCRS.

Page 90: 25 5 0 - Ministério Público do Estado de São Paulo

90

Revista de estudos CRiminais 55doutRina naCional

outubRo/dezembRo 2014

90

1 os sisteMas Processuais Penais: categorias Que deveM ser aBandonadas?

Um dos grandes problemas quando se trata de estabelecer contornos mínimos relativamente aos ditos sistemas processuais penais consiste na po-lifonia, ou ainda, na capacidade polimórfica de seus elementos constituintes, a ponto de, em alguns casos, acusatório e inquisitório remeterem a discussões profundamente diversas entre si. Notadamente, os sistemas processuais po-dem ser concebidos a partir de plúrimas matrizes, a exemplo do apontado por Langer1, que vislumbra nas expressões inquisitório e adversarial conota-ções que implicam distinções políticas, jurídicas, epistemológicas, sociológi-cas e assim por diante.

Essa coexistência entre diversas acepções povoa o imaginário jurídico, que se vê esgotado na tentativa de identificar um sistema abstrato que pudes-se absorver, de um lado, as características idealísticas comumente apontadas como elementos constitutivos, e, de outro, lutando para apagar os caracteres inversos ou, ainda, pertencentes à tipologia sistêmica adversa. Todavia, como se pode perceber, essa tarefa, além de inesgotável, padece de uma pretensão à estabilidade temporal que não lhe permite enxergar determinadas muta-ções genéticas que fazem dos sistemas processuais um conjunto de traços sistêmicos mutáveis. Essa mutabilidade endogenética não parece um vício das diversas tentativas conceituais de se efetivar descrições, não raras vezes apriorísticas, do fenômeno processual penal. Os sistemas processuais penais constituem o que se poderia denominar como princípio modular, a espinha dorsal de qualquer teorização sobre o espaço de deslocamento de significan-tes que configura o processo penal contemporâneo.

Um olhar cético sobre a última premissa permitiria identificar alguns pontos ou nós de discordância em um nível pragmático. Desta forma, poder--se-ia arguir, contra a alegação de que os sistemas processuais penais ocupam um espaço privilegiado na configuração do processo penal, as seguintes con-traposições: a) de que se trata de categorias anacrônicas, não mais capazes de dar conta da complexidade do próprio processo penal, em uma sociedade fluidificada e igualmente complexa; b) de que a anteriormente cognomina-da polifonia ou plurissignificatividade dos sistemas processuais implica o esvaziamento de sua função constitutiva do processo penal, deduzindo-se

1 LANGER, Maximo. The long shadow of the adversarial and inquisitorial categories. In: DUBBER, Markus D.; HOERNLE, Tatjana. Handbook of Criminal Law. Oxford: Oxford University Press, 2014.

Page 91: 25 5 0 - Ministério Público do Estado de São Paulo

Doutrina nacionalrevista De estuDos criminais 55

outubro/Dezembro 2014

9191

daí que se trataria de mero elemento doutrinário (tradicional) sem grandes implicações políticas e/ou jurídicas; c) de que as constantes transformações sofridas pelo processo penal não mais permitem uma separação rígida entre famílias processuais (a despeito da interferência do sistema adversarial sobre os ditos sistemas continentais) e, via de consequência, uma plena valorização de sua capacidade heurística; d) a reinserção do procedimento como o ele-mento central no campo da teoria processual penal, deslocando o processo e suas infinitas discrepâncias teóricas e metodológicas para uma função de mera contextualização temporal, perdendo a sua capacidade de regulação de expectativas2; e) admitida a falibilidade da caracterização dos sistemas processuais, naturalmente se produzem alterações no campo epistemológico, passando o processo, tão somente, a regular ou a servir como um elemento adjetivo ou acessório de uma “sociologia da administração da justiça”, cujo campo de atuação será a análise do processo dentro de um campo de “reso-lução de conflitos”, cuja consequência será a pretensão reformatória do siste-ma, introduzindo-se cada vez mais “alternativas ao processo”.

Todas essas hipóteses que acenariam com a inidoneidade das catego-rias pertencentes aos sistemas processuais penais projetam um vírus destru-tivo não apenas para a teoria jurídica do processo penal, mas também para o potencial político que os sistemas processuais introduzem como válvula de escape e como pano de fundo para a constituição das garantias processuais.

Evidentemente que as caracterizações comumente atribuídas aos sis-temas acusatório e inquisitório, atemporalizadas pela cristalização de tipos ideais, é insuficiente para atender a determinadas funções a serem exercidas pelo processo penal contemporâneo. Com efeito, acerta a crítica quando afir-ma não ser mais possível apresentar os sistemas processuais penais como um conjunto portador de características positivadas, em regime de oposição. Assim é que se apresentam elementos que atribuem ao sistema acusatório características apresentadas de maneira maniqueísta relativamente ao siste-ma inquisitório: afirma-se que o acusatório constitui-se como um sistema que privilegia a oralidade em detrimento da escritura, que vislumbra a publici-dade em relação ao segredo; que pressupõe a existência de coisa julgada e de recursos, que exige a separação das funções acusadoras e julgadoras (ne procedat ex officio). O sistema inquisitório seria o anverso deste esquema (e

2 Cf. LUHMANN, Niklas. Legitimação pelo procedimento. Brasília: UnB, 1980. Cf. CUNHA MARTINS, Rui. A hora dos cadáveres adiados: corrupção, expectativa e processo penal. São Paulo: Atlas, 2013.

Page 92: 25 5 0 - Ministério Público do Estado de São Paulo

92

Revista de estudos CRiminais 55doutRina naCional

outubRo/dezembRo 2014

92

cujos elementos distintivos encontrariam muitas outras características além destas citadas).

Um primeiro exemplo dessa modalização dos sistemas processuais pe-nais por meio do recurso a modelos heurísticos é a apresentação da teoria do garantismo penal3. Ferrajoli, ao descrever o sistema garantista ideal, recorta diversas características do modelo acusatório, opondo, como espécies anti-téticas, os regimes de sistema penal máximo e mínimo. Apesar de se tratar de um modelo teórico muito mais sofisticado do que aqueles que resumem o sistema acusatório a uma mera separação entre as atividades de acusação e julgamento, o garantismo padece de alguns dos problemas acima apresen-tados. Registre-se que o garantismo não deposita sua conformação apenas como um sistema de controle corretivo de ilegalidades mediante o confronto entre o tipo-ideal e as normas componentes de determinado ordenamento jurídico-processual. Tem como vetores que devem ser elogiados a construção de uma epistemologia (garantista), bem como certa inserção no campo po-lítico, quando se volta para a discussão entre democracia formal e material. Sem prejuízo desses avanços relativamente às concepções mais conservado-ras e meramente descritivas dos sistemas processuais, como referido, há pro- blemas.

O principal deles reside na submissão dos sistemas processuais penais à tutela de aspectos irracionais do sistema punitivo. Dizendo em outras pa-lavras, o garantismo, no que concerne aos sistemas processuais penais, será uma ferramenta metodológica, não chegando a sequer se prestar (unicamen-te no que toca aos sistemas processuais penais) como uma técnica efetiva de controle da arbitrariedade do sistema penal (função esta atribuída ao plano da validade e que não toca, necessariamente, no âmbito dos referidos siste-mas). Dessa sua vocação para uma metaobservação das disfunções do siste-ma de justiça criminal, acaba convergindo para, guardadas as devidas pro-porções, uma sociologia das práticas punitivas anômalas, o que nos parece ser sabidamente insuficiente para o papel a ser desempenhado pelos sistemas processuais penais.

O que se passa, com a apresentação dos sistemas processuais como tipos ideais, é a transformação do potencial político e epistemológico destas categorias em mero instrumento de contrafaticidade. Em outras palavras, os sistemas processuais penais acabam atingindo uma função exclusivamente sociológica de demonstração do funcionamento “anormal” da justiça crimi-

3 FERRAJOLI, Luigi. Derecho y razón: teoria del garantismo penal. Madrid: Trotta, 2004.

Page 93: 25 5 0 - Ministério Público do Estado de São Paulo

Doutrina nacionalrevista De estuDos criminais 55

outubro/Dezembro 2014

9393

nal. Todavia, comportando e sendo permissivo para com as práticas avessas às normas processuais penais, uma vez que o seu campo de observação, a partir de uma atribuição solipsista de neutralidade, impede uma discussão mais ampla e vertical, consistente nas anteriormente referidas dimensões po-lítica e epistemológica.

Uma importante crítica às concepções tradicionais dos sistemas proces-suais penais é ilustrada por Jacinto Coutinho4. A partir da concepção de que todo sistema possui um princípio unificador, constata que a gestão da prova perfaz esta ferramenta de análise dos sistemas processuais. Enquanto no sis-tema inquisitorial o princípio unificador corresponde ao princípio inquisitivo (atribuição de poderes ex officio ao magistrado), no acusatório prevalece o princípio dispositivo (prova nas mãos das partes). Eis aqui uma crítica im-portante, que coloca em xeque a predominante e simplista distinção entre os sistemas processuais baseadas exclusivamente na identificação de uma parte que propõe a demanda e outra que julga.

Notadamente, se tomarmos em consideração as críticas que fazem terra arrasada sobre os sistemas processuais penais, a exemplo de Montero Aroca, se perceberá ali o nascedouro não apenas de uma mera crise imputa-da às categorias, mas, sobretudo, a uma prática ainda mais centrada sobre o aspecto político que concerne ao processo penal. Para Montero Aroca5, falar--se em processo penal corresponde a um pleonasmo. Para o autor, processo inquisitório não é processo. Seu posicionamento assemelha-se ao de Man-zini6, para quem o processo penal é um processo de parte única. Explica--se. Se não é possível falar-se de processo a não ser o acusatório, Montero Aroca esquece-se das práticas punitivas que constituem os mecanismos ope-racionais do sistema de punição. Ao que parece, deixar para denominar de processo apenas aquele regido sob as vestes do sistema acusatório mantém íntimas relações com o pensamento de Manzini, apesar da aparente contra-dição entre eles: a) em ambos os casos se está a fazer tábula rasa de todas as práticas constitutivas do sistema punitivo, isentando-as de participarem da

4 COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. O novo papel do juiz no processo penal. In: COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Crítica à teoria geral do direito processual penal. Rio de Janeiro: Renovar, 2001.

5 MONTERO AROCA, Juan. Princípios del proceso penal: una explicación basada en la razón. Valencia: Tirant lo Blanch, 1997.

6 MANZINI, Vincenzo. Tratado de derecho procesal penal. Trad. Santiago Sentís Melendo y Marino Ayerra Redín. Buenos Aires: El Foro, t. I, 1996.

Page 94: 25 5 0 - Ministério Público do Estado de São Paulo

94

Revista de estudos CRiminais 55doutRina naCional

outubRo/dezembRo 2014

94

categoria processo. Se por um lado a princípio se está a requerer maior rigor para que a categoria processo esteja perfectibilizada, tal postura possui o con-dão de justificar a sempiterna prática disforme protagonizada pelo sistema punitivo, fazendo do processo (obrigatoriamente acusatório) mero ideário a ser cultivado, sem grandes implicâncias sobre a realidade operativa da es-trutura processual penal de um determinado país; b) torna a temática dos sistemas processuais necessariamente contrafática, transformando os ajustes constantes entre a irracionalidade do poder punitivo7 meros acoplamentos estruturais entre política criminal e teoria da pena. Resultado: o processo pe-nal torna-se uma ferramenta de política criminal8 responsável por uma pre-venção-integração. Algo que deve ser no mínimo contestável; c) a posição de Aroca assemelha-se novamente à de Manzini quando invoca o anacronismo dos sistemas processuais. Perceba-se, nitidamente, que a tentativa de regu-lar o passado, parafraseando Orwell, é uma das constantes de todo pensa-mento autoritário; d) a posição de Montero Aroca se avizinha, novamente, à de Manzini, pois trata de naturalizar as práticas autoritárias, a partir de um ponto-zero de remissão sígnica a um significante a lhe emprestar significado. Veja-se, de acordo com Legendre9, que, sob a perspectiva de uma antropolo-gia dogmática, é justamente sob o encadeamento de textos que se encontra o mecanismo instrumental para o ordenamento jurídico auferir sua pretensa racionalidade. O resultado é o de que as práticas autoritárias contemporâ-neas, à margem da orfandade sígnica ou do vazio textual constitutivo da mo-dernidade processual penal, são tomadas como uma mera disfunção, quando se sabe serem elas justamente o produto de um imaginário policialesco que governa as pulsões políticas no campo do processo. Para se fazer uma justa homenagem a Lola Aniyar de Castro10: o direito penal subterrâneo é menos direito penal do que aquele decorrente do monopólio da violência estatal? Um “processo” penal inquisitório (impossível, nas palavras de Montero Aro-ca), tomado como o objeto inacessível, interditado, reingressa sempre através

7 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas: a perda da legitimidade do sistema penal. Trad. Vânia Romano Pedrosa e Amir Lopes da Conceição. 5. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2001.

8 Cf. FERNANDES, Fernando. O processo penal como instrumento de política criminal. Lisboa: Almedina, 2001.

9 Cf. LEGENDRE, Pierre. Della società comme testo: lineamenti di un’antropologia dogmatica. Trad. Elisa Scatollini i Paolo Heritier. Torino: Giappichelli, 2005. Cf. LEGENDRE, Pierre. Leçons IV. El inestimable objeto de la transmissión. Madrid: Siglo XXI, 1996.

10 ANYIAR DE CASTRO, Lola. Criminologia da libertação. Rio de Janeiro: Revan, 2005.

Page 95: 25 5 0 - Ministério Público do Estado de São Paulo

Doutrina nacionalrevista De estuDos criminais 55

outubro/Dezembro 2014

9595

de pequenos objetos “a”, para ficar com Lacan11. Com isso se quer dizer que o abandono dos sistemas processuais penais, em que pese não se possa im-putar uma relação de causa-efeito, tende a fortalecer as práticas autoritárias que são ressignificadas12 a partir da modernidade e no processo penal con-temporâneo, a partir do movimento neoconstitucionalista pós-guerra. Sem um marco claro de tensionamento das categorias processuais, o resultado é tendência ao conformismo com as práticas punitivas, que sofrem verdadeiro processo de reconstituição (não desaparecimento ou abandono).

Algumas tentativas vêm sendo empreendidas para se tentar ultrapas-sar os sistemas processuais penais. A mais importante delas, a nosso juízo, deriva de uma conciliação entre uma teoria política da democracia e outra que encontra nas análises sobre o modelo adversarial um importante campo de estudo sobre como enfrentar as questões da complexidade penal sem o recurso à tradição dos sistemas processuais.

Por exemplo, Damaska13 recusa as distinções entre sistema inquisitório e adversarial, operando com novas categorias, que emprestariam sentido à complexa tarefa do processo penal contemporâneo. Todavia, como a seguir se tentará demonstrar, esta empreitada pode ser desmantelada a partir de alguns subsídios teóricos que tornam a tarefa de desmontagem dos sistemas processuais nada mais do que o desdobramento das pré-compreensões da-quelas categorias, não significando, como sugere uma leitura apressada, o seu abandono. Para além disso, necessário e oportuno destacar que tais dis-tinções trazem conjuntamente novos problemas, quiçá mais graves do que aqueles detectados na herança dos sistemas processuais, contribuindo para uma ainda mais pujante obscuridade no campo da politologia processual penal.

Damaska desenvolve uma tipologia para tratar dos contornos de novas bases epistemológicas para o processo, construídas a partir de duas dimen-

11 LACAN, Jacques. O Seminário v. 10: A angústia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.

12 Note-se que Nietzsche, na Genealogia da Moral, alerta para a ressignificação, quando afirma que existe um verdadeiro abismo entre os usos originários de um signo e aqueles que se podem dar sobre o mesmo signo, possibilidade esta sempre disponível. Sobre a noção de ressignificação: Cf. BUTLER, Judith. Mecanismos psíquicos del poder: teorias sobre la sujeción. Valencia: Ediciones Cátedra, 1997.

13 DAMASKA, Mirjan. The faces of justice and state authority: a comparative approach to the legal process. London: Yale University Press, 1986.

Page 96: 25 5 0 - Ministério Público do Estado de São Paulo

96

Revista de estudos CRiminais 55doutRina naCional

outubRo/dezembRo 2014

96

sões14. A primeira dimensão apresenta uma antítese entre modelos hierárqui-cos e coordenados de organização administrativa e processual. Neste ponto, o modelo hierárquico, que seria próprio do sistema continental, é estrutura-do a partir de uma rede burocratizada operada por profissionais. O modelo piramidal de normas e de administração pode ser encontrado aqui. Por seu turno, o modelo coordenado cuida de evitar os riscos de um modelo centra-lizado. O resultado é a forma jurídica fragmentada, horizontal. Uma segun-da dimensão da tipologia de Damaska reside na dualidade entre o Estado ativista e o Estado reativo. No primeiro caso, tem-se um modelo de gestão agressiva, cuja tendência é a mobilização para transformação da economia e sociedade. Já o modelo reativo cuida apenas de garantir as condições para a economia privada e a interação social. O processo seria aqui nada mais do que uma ferramenta para gerenciar os conflitos privados. Damaska acentua o potencial de agregação entre o Estado ativista e o modelo hierárquico, ao passo que, por outro lado, o Estado reativo seria próximo do modelo coorde-nado de autoridade.

Tentando tornar mais complexa a observação, Damaska tenta encon-trar quatro formas de conformação do processo, à luz tanto dos modelos hie-rárquico e coordenado quanto no que diz respeito à autoridade do Estado (ativista ou reativo). Como resultado, seria possível encontrar, a seguir, as seguintes possibilidades: a) um modelo hierárquico de justiça concebido em um Estado reativo; b) um modelo hierárquico de justiça concebido em um Estado ativista; c) um modelo coordenado de justiça concebido em um Es-tado reativo; d) um modelo hierárquico de justiça concebido em um Estado ativista.

Preliminarmente, verifica-se que Damaska tenta traçar uma ferramenta de maior aproximação entre os diversos tipos de processo penal e suas bases teóricas, do ponto de vista do processo penal comparado. A empreitada de Damaska, portanto, busca legitimar o que se afigura à primeira vista incon-tornável, tornando sua descrição dos sistemas, em alguns momentos, despi-cienda: a) que os modelos processuais e as diversas espécies de autoridade estatal são ajustáveis em maior ou menor medida aos concretos processos legais adotados pelos países a serem examinados; b) que há necessariamente uma imbricação inextricável entre os sistemas processuais e a política. Nota-damente, apesar do esforço do autor para superar as tensões existentes entre

14 DAMASKA, Mirjan. The faces of justice and state authority: a comparative approach to the legal process. London: Yale University Press, 1986.

Page 97: 25 5 0 - Ministério Público do Estado de São Paulo

Doutrina nacionalrevista De estuDos criminais 55

outubro/Dezembro 2014

9797

os sistemas processuais, não é difícil chegar-se à conclusão de que o que se pode (e deve) encontrar são “sistemas mistos” ou “não-puros” de sistemas. De um lado, pelo fato de que o processo que segue um modelo hierárquico em um Estado ativista corresponderia à imagem do sistema continental de traço inquisitorial; de outro, porque o processo regido pelo modelo coorde-nado, em um Estado reativo, conformaria o ideário do sistema adversarial clássico. Desta maneira, em se verificando que os dois polos (sistema inquisi-torial e adversarial) são meros objetos imaginários (posto que inalcançáveis), a sua análise se tornará profícua à medida que se conceber a possibilidade de um modelo coordenado em um Estado ativista e de um modelo hierárquico em um Estado reativo.

Todavia, esse esquadrinhamento analítico dos sistemas é organizado pelo autor como parte de um construto simétrico de envolvimento entre pro-cesso e autoridade. Ocorre que as linhas que unificam as categorias autorida-de do Estado e processo são justamente desmentidas pela historicidade dos “modelos” ou “sistemas processuais”. A questão que subjaz às complexas relações entre poder e processo penal não pode ser regida por meio do qua-dro simétrico. Processo penal e poder cuidam de relações evidententemen-te assimétricas. Dito isso, constata-se que as dissimetrias encontradas entre processo e poder (ou autoridade) tratam da própria natureza dos institutos envolvidos. Naturalmente, há uma supremacia do poder sobre as condicio-nantes jurídicas ou normativas, o que permite se verificar como a aparente simetria esconde um vício indelével. Deve-se recordar com Schunemann que um sistema autoritário de processo pode ser concebido através de uma distri-buição desigual de poderes processuais, denominada pelo pensador alemão como “aglomeração quântica de poder”15. Isto é, desnecessário que o órgão julgador adquira ou possua poderes ex officio de instauração do processo. In-clusive a própria ausência de processo pode equivaler a um modelo autoritá-rio de prática punitiva (como no caso do plea bargaining).

A crítica de Damaska à ambivalência trazida pela aplicação de catego-rias tão díspares como sistema adversarial e inquisitório, se por um lado per-mite questionar a sua valência (tanto jurídica como política), por outro acaba por obnubilar alguns pontos necessários à constituição das fronteiras entre poder e pena. A parametricidade entre as mencionadas formas de concepção do processo esquece-se de que, não havendo como interpolar as categorias acusatório (ou adversarial) e inquisitório em determinados aspectos da au-

15 SCHUNEMANN, Bernd. La reforma del proceso penal. Madrid: Dykinson, 2005. p. 30.

Page 98: 25 5 0 - Ministério Público do Estado de São Paulo

98

Revista de estudos CRiminais 55doutRina naCional

outubRo/dezembRo 2014

98

toridade estatal, zonas de sombreamento crescem vertiginosamente. Vamos listar alguns sintomas desta zona cinzenta, a fim de melhor apresentar o ar-gumento.

Em primeiro lugar, não há dúvida alguma de que um Estado ativis-ta, nos termos de Damaska, pode ser constituído por categorias a princípio idealizadas em um modelo coordenado. O plea bargaining constitui-se exa-tamente como um instituto jurídico que se apresenta como atributo de um sujeito soberano, capaz de renunciar ao processo e assumir prontamente uma pena. Mais do que isso, apesar de se dar aparentemente como uma categoria afeita ao legalismo adversarial16 norte-americano, sua finalidade (acabar logo com a contenda) é justamente um meio de se evitar a perpetuação do litígio, o que faz do processo adversarial, concebido como um modelo de disputa entre as partes, uma verdadeira disputa meramente privatística (embora não menos adaptável às pretensões autoritárias do Estado): sendo uma disputa entre pretensões privadas, resolve-se mediante meios que as próprias par-tes encontram como disponíveis, como a autodeclaração de culpabilidade. A questão que adquire importância reside na circunstância de que não se trata apenas de encontrar uma espécie de aderência desta ou daquela categoria a um modelo idealizado. Trata-se, isto sim, de encontrar as nuances que tais categorias desenvolvem num determinado contexto político. É desta forma pelo menos que Kagan poderá afirmar que o legalismo adversarial norte--americano trará como principais consequências uma grande punitividade, volatilidade política, maleabilidade e inconsistência17. E, igualmente, a adap-tação do plea bargaining como meio por excelência de resolução de conflitos – registre-se a sua franca expansão junto ao “sistema continental” – encontra campo fértil em sistemas aparentemente dotados de maior rigidez quanto à

16 O termo legalismo adversarial é utilizado por Kagan no sentido de políticas públicas, implementação política e resolução de conflitos por meio de litígios conduzidos por advogados. O legalismo adversarial é também considerado pelo autor um método de governança (p. 03). Mais adiante, o autor explica que o legalismo adversarial é um método de implementação de políticas públicas e resolução de conflitos com duas características: a) a contestação formal legal, por meio da qual os interesses opostos comumente invocam direitos, deveres, requerimentos processuais garantidos pela aplicação da lei; b) o ativismo litigante, no qual a questão da prova, dos argumentos jurídicos e da proposição das demandas é exclusivo das partes. Desta forma, no legalismo adversarial a autoridade é fragmentada e o controle hierárquico é relativamente fraco (KAGAN, Robert. Adversarial legalism: the American way of law. Cambridge: Harvard University Press, 2001. p. 09).

17 KAGAN, Robert. Adversarial legalism: the American way of law. Cambridge: Harvard University Press, 2001. p. 61.

Page 99: 25 5 0 - Ministério Público do Estado de São Paulo

Doutrina nacionalrevista De estuDos criminais 55

outubro/Dezembro 2014

9999

forma, supostamente imantados por uma aura que lhe permitiria angariar, junto a pesquisadores de direito comparado, se tratar de um processo que busca atingir a “verdade real” (truth seeking procedure). O que se pode afir-mar é que existe, como demonstra qualquer pesquisa séria sobre a ampliação de zonas consensuais acerca do processo penal, uma justaposição entre as distintas culturas jurídicas, que se movimentam e entrecruzam performati-camente: desde a política de encarceramento norte-americano a suas teorias sobre as exclusões probatórias. O resultado é o de que os modelos idealiza-dos por Damaska são, a partir da estrutura processual penal brasileira, for-mas processuais legitimamente aceitáveis, tendo em vista a indistinção entre política e jurídico.

Não se quer aqui advogar a tese de que Damaska seria um legitimador de estratégias autoritárias. A uma, por que nem de longe foi sua ideia. A duas, porque, como pesquisador de direito comparado, está mais preocu-pado com a constituição de ferramentas metodológicas a fim de permitir o estudo dos diversos segmentos processuais. Entretanto, ao que parece, a sua impensada adaptação ao campo do processo penal, no Brasil, deve ser lida cum granus salis.

Colocar-se-á mais uma categoria sobre os holofotes da distinção de Damaska. Se, por um lado, o plea bargaining – aparentemente um instituto voltado para um modelo coordenado de processo em um Estado reativo – transformou-se em importante instrumento de ampliação de zonas de expan-são do poder punitivo (abandono de garantias em prol de imediata aplicação da pena), por outro, crê-se que outro instituto pode oferecer alguma ajuda na compreensão do alavancamento das categorias processuais acusatório e inquisitório. Tomando-se novamente a questão do processo penal norte--americano, verifica-se que a sua política de prova ilícita tem-se globalizado18. De um lado, as provas ilícitas estão vinculadas a um sistema coordenado de justiça cuja adjudicação se constituirá como o momento processual e político por excelência. Como destaca Kagan, o processo servirá como instrumento de implementação de políticas públicas. A vedação a determinados meios de prova (exclusionary rules) aparece como um mecanismo de proteção contra os abusos praticados pela polícia (encarregada da investigação preliminar). Como política de proteção de direitos, as vedações são, em primeiro lugar, como não poderia ser diferente, casuísticas e institucionalmente concreções daquela política determinada de proteção de direitos. A essa compreensão

18 Cf. GLOECKNER, Ricardo Jacobsen. Nulidades no processo penal: introdução principiológica à teoria do ato processual penal irregular. Salvador: JusPodivm, 2013.

Page 100: 25 5 0 - Ministério Público do Estado de São Paulo

100

Revista de estudos CRiminais 55doutRina naCional

outubRo/dezembRo 2014

100

individualizada de exclusões probatórias soma-se outra: a das exceções. A amplitude assumida pelas exceções à teoria dos frutos da árvore envenenada (fruits of the poisonous tree), verbi gratia, não pode ser explicada a não ser pelo regime protetivo dos direitos e que, em determinados casos, se justifica por se tratar de uma questão de implementação de políticas públicas.

Novamente, a assunção de que determinadas regras de proibição pro-batória – como o caso da teoria dos frutos da árvore envenenada – são ineren-tes ou pertencentes exclusivamente a um modelo coordenado de processo, re-gido sob a autoridade de um Estado reativo provoca o esquecimento de que o seu transporte para um sistema autoritário de processo penal acaba fazendo definhar a sua maior virtude, justamente a de servir como um instrumento de concretização de políticas públicas, sabidamente diversas naquele regime político. De fato, o contorcionismo em matéria de provas ilícitas ministrado pela jurisprudência dos tribunais superiores no Brasil indica, efetivamente, que a prova ilícita se imiscui num universo de gestão política das formas. Desta maneira, recorrentes decisões que ora enfrentam a ilicitude probatória pelo prisma da ausência de violação a direito fundamental, ora a tomam pelo espectro da economia processual induzem, forçosamente, à conclusão de que mesmas teorias produzem resultados completamente distintos. Como se ex-plica esse fenômeno? Pela assimetrização das relações de poder (autoridade estatal) frente àquelas normativas.

Com este último exemplo, percebe-se, claramente, que o estabeleci-mento do panorama anunciado por Damaska pode ser lido com utilidade se, desde já, restar claro que as práticas punitivas autoritárias são assimétricas, verticais e ressignificadas.

O que se deve ter em atenção, para que seja possível avançar na dis-cussão, é o fato de que não há razão para abandonar os significantes “acusa-tório” e “inquisitório”. Entretanto, igualmente, deve-se ter em consideração que a estruturação de um sistema processual penal autoritário dispensa tais atributos, justamente porque os seus elementos naturais não residem exclu-sivamente numa certa homeostase político-institucional entre o processo pe-nal e a ideologia. Igualmente, tampouco o autoritarismo processual penal repousa sobre uma base cultural, capaz de, como um subsistema, estabilizar as orientações sociais, nos moldes funcionalistas de Parsons19. Não consti-tui o autoritarismo uma ideologia ou um novo sistema, desta vez em macro escala. O autoritarismo, no processo penal, constitui-se como um complexo

19 PARSONS, Talcott. O sistema das sociedades modernas. São Paulo: Pioneira, 1974. p. 15-42.

Page 101: 25 5 0 - Ministério Público do Estado de São Paulo

Doutrina nacionalrevista De estuDos criminais 55

outubro/Dezembro 2014

101101

de significantes capaz de produzir a ativação e a exequibilidade do instru-mento político pena, por meio de suas funções manifestas ou latentes, que se legitimam mediante o recurso performático de discursos ressignificados e consubstanciadores de determinadas práticas.

Levando em consideração o referido acima, categorias como demo-cracia, Constituição, direitos fundamentais e outras tantas, reiteradamente reivindicadas por um discurso via de regra afeito ou aparentemente tecido sobre as bases do sistema acusatório, não significa, sob hipótese alguma, blin-dagem, imunização ou antítese ao autoritarismo. Como já anteriormente re-ferido mediante a análise do pensamento de Damaska, as vindicações de ca-riz normativo não são simétricas nem tampouco horizontais referentemente às relações de poder. E, neste caso, nenhuma dessas categorias, isoladamen-te, produz qualquer espécie de transformação sobre o imaginário autoritário – justamente pelo fato de a constituição do autoritarismo processual penal repousar sobre “magmas de significação”, parafraseando aqui Castoriadis20.

Como tarefa epistemológica, um mapeamento ou reconstituição do modo-de-ser autoritário do processo penal brasileiro deve ser apresentada, mesmo que inexistente espaço para aprofundamento das questões a serem levantadas.

2 Processo Penal Pós-acusatório?21

Sloterdijk descreve o cinismo como uma nova face da ideologia. Desta maneira, o pensador alemão cuida de produzir uma inversão, de maneira oximorônica, da performance antitética de uma falsa consciência ilustrada22. Se para Marx a ideologia poderia se apresentar como uma estética de vela-mento, que encontra seu ponto ótimo na máxima do valor da mercadoria, verifica-se que a ideologia apresenta-se como que inarredavelmente engol-fada pelos conceitos de alienação e de falsa consciência. Neste sentido, como aponta Zizek, a máxima marxiana seria apreendida por um “eles não sabem o que fazem”. Evidentemente, a crítica marxiana é, a despeito desta categoria,

20 CASTORIADIS, Cornelius. A instituição imaginária da sociedade. 5. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982.

21 Este tema foi parcialmente desenvolvido em GLOECKNER, Ricardo Jacobsen. Transpolíticas do imaginário (punitivo) ou a codificação da sedução. Revista Sistema Penal & Violência, Porto Alegre, v. 5. n. 2, p. 252-264, 2013.

22 Cf. SLOTERDIJK, Peter. Crítica da la razón cínica. Madrid: Siruela, 2004.

Page 102: 25 5 0 - Ministério Público do Estado de São Paulo

102

Revista de estudos CRiminais 55doutRina naCional

outubRo/dezembRo 2014

102

ingênua, tendo em vista que acaba por se autoinstituir como um pretenso instrumento de desvelamento das relações sociais materiais.

A crítica da razão cínica, de Sloterdjk, ao se apresentar como uma “fal-sa consciência ilustrada”, permitiria, mais uma vez de acordo com Zizek, a sua concretização como um “eles sabem o que fazem, mas mesmo assim o fazem”. Essa razão cínica deixa de lado aquele atributo de suma ingenui-dade, para se assumir como uma espécie de espelho convexo de si mesma, garantindo, com isso, duas coisas: a) a perpetuação da ideologia e não justa-mente o que lhe imputou o pensamento neoliberal, de sua autodestruição; b) a transformação da ideologia numa ideologia de segundo grau (ideologia da ideologia23), que funciona através da catarse, da metonímia (tomar a parte pelo todo). Se, a partir de então, a ideologia apresenta-se mais ideológica do que a ideologia, parafraseando aqui o pensamento de Baudrillard, a ideolo-gia se cristalizaria numa tropologia transpolítica. A ideologia, portanto, se apresentaria metafórica por excelência.

Retornemos ao pensamento de Sloterdijk, por um minuto, a fim de lhe dar, novamente, voz. O cinismo não tolera a transgressão direta da regra, muito menos a sua assunção. Exige, o cínico, um prefigurar, um estádio pré-vio, que duplica a imagem do objeto, na cisão entre o sujeito de enunciação e enunciado. O cinismo, portanto, faz derivar um objeto de sua antítese, faz surgir uma fenda, uma ferida irrecuperável entre o sujeito da enunciação e o próprio enunciado, cristalizando, consolidando uma estética na qual o pró-prio sujeito passa a ser capturado pelo objeto. Melhor: seduzido pelo obje-to! Eis como a moral é investida de um potencial catéxico da imoralidade, como o humano é impelido a uma compulsão pelo inumano, como a ideolo-gia é fomentada já não por uma anti-ideologia (lembrando que o pensamen-to dito pós-ideológico caracteriza esta sedimentação do “saber”, da ilusão, esquecendo-se do “fazer”), mas por uma ideologia de segundo grau, que lhe transmite uma aparência de realidade ao que não é mais real. O locus da crí-tica à ideologia permitiria, por convenção, como forma inessencial ao sujeito--suposto-saber uma espécie de transcendentalismo, de acesso privilegiado à desilusão das formas. De toda a sorte, a crítica da ideologia, neste sentido de falsa consciência, não seria a mais sublime captura do sujeito na própria ideologia? Nas palavras de Zizek, “a lição teórica a ser extraída disso é que o conceito de ideologia deve ser desvinculado da problemática ‘representati-

23 ZIZEK, Slavoj. O espectro da ideologia. In: ______. Um mapa da ideologia. São Paulo: Contraponto, 1996. p. 25.

Page 103: 25 5 0 - Ministério Público do Estado de São Paulo

Doutrina nacionalrevista De estuDos criminais 55

outubro/Dezembro 2014

103103

vista’: a ideologia nada tem a ver com a ‘ilusão’”24. Em outras palavras, trata--se de como ocorre a substituição da ideologia pela fantasia ideológica. De acordo com Zizek, a ideologia não é uma construção do imaginário coletivo ou algo que sirva como um adorno desta realidade sociopolítica. O funcio-namento sintomal da ideologia permanece do lado do saber, ao passo que a fantasia ideológica apresenta-se como uma ilusão, um erro, que estruturaria a própria realidade25. Tratar-se-ia de uma espécie de servidão voluntária, de como a fantasia ideológica opera a partir de um “sabemos que é uma ilusão, mas mesmo assim a queremos”. A ideologia trabalha a partir da constatação de que desejamos que as coisas sejam assim, em virtude da inexistência de outra alternativa.

Este caminho percorrido por Zizek, a fim de identificar uma forma es-pectral da ideologia, remete ao problema identificado por Lacan acerca do Real. No Real não falta nada. Toda falta, todo excesso já é operador do simbó-lico. Doravante, porquanto não há um “fora” do Real que não prometa e que não se ofereça como um espectro, iniludível, a compor a zona transfronteiriça entre a realidade (sempre simbolizada) e o Real. O rastro é inapagável assim como a simbolização restitui, por assim dizer, aquela pujança e plenitude do Real. Se tomarmos em consideração o ensaio de Derrida26 a respeito de Marx, veremos que justamente se apresentam, na mais pura espectralidade, aquelas contradições ontologizadas, diagnósticas de um maniqueísmo entre aparên-cia e realidade. E é justamente através de Marx e de seu materialismo que se poderia chegar à conclusão desta espectralidade ancestral. Não existe realida-de sem espectro. A realidade apenas pode ser compreendida a partir de uma espécie de suplemento espectral, deste diferimento sem medida, sem rastro, deixado pelas bordas do simbólico. Por certo que essa compreensão não era desconhecida da hermenêutica filosófica e de todo o movimento da linguistic turn. Para Lacan, a realidade já é sempre reduto do simbólico, subjetivizada, “socialmente construída”, se se quiser, a partir da sociologia construtivista de Berger e Luckmann27. Todavia, a simbolização sempre tende ao fracasso, pois não consegue simbolizar completamente o Real. Sempre há excedência (sem

24 ZIZEK, Slavoj. O espectro da ideologia. In: ______. Um mapa da ideologia. São Paulo: Contraponto, 1996. p. 12.

25 ZIZEK, Slavoj. Eles não sabem o que fazem: o sublime objeto da ideologia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1990. p. 63.

26 DERRIDA, Jacques. Espectros de Marx. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994.

27 BERGER, Peter L.; LUCKMANN, Thomas. A construção social da realidade: tratado de sociologia do conhecimento. Petrópolis: Vozes, 2003.

Page 104: 25 5 0 - Ministério Público do Estado de São Paulo

104

Revista de estudos CRiminais 55doutRina naCional

outubRo/dezembRo 2014

104

excesso) do Real em relação ao simbólico. “Este real (a parte da realidade que permanece não simbolizada) retorna sob a forma de aparições espectrais”28. Trata-se desta aparição espectral que colmata a lacuna do Real. Para que a realidade apareça enquanto tal, algo deve sofrer um processo de foraclusão.

Essa fantasia ideológica, essa espectralidade apresenta-se, mais clara-mente na completa injustificação da lei, daquela ausência de fundamento que a erige, que a promove a partir de um pensamento tautológico. Disso já se ocupou Benjamin29 em sua Para uma crítica da violência, e, de maneira ainda mais profunda e radical, Derrida30, em Sua força de lei. A tautologia fundante de “a lei é a lei” comprova que o ato fundador não passa de violência.

Se, portanto, a ideologia não pode aparecer meramente como um des-cortinamento daquela realidade serviçal à dominação, se tampouco pode ser subsumida ao cinismo tal qual compreendido por Sloterdijk – enquanto falsa consciência ilustrada –, deve-se ter em mente que, portanto, não resta alter-nativa senão a de colocar a ideologia em um ponto externo, simbiótico, em relação a si mesma. Esta a razão pela qual uma crítica da ideologia se traveste da mais pura ideologia. Esta a razão por que a crítica da ideologia sempre carrega consigo um vício insanável de se autoproclamar um “mais-que-um”, um fantasma quiçá “autopoiético”. Pensar numa crítica à ideologia seria se colocar do lado do Real, do lado daquilo que sobra, do que transborda. Esta a razão fundamental, pela qual eventual contemplação da realidade já re-cai diretamente sobre a simbolização. E, desta arte, como não poderia deixar de ser, compromete-se, ajusta-se, autocoloca-se como própria ideologia, pela adesão parasitária a certo discurso. Uma denúncia não-ideológica da ideo-logia presumiria a capacidade de o sujeito da enunciação se colocar em uma crisálida que lhe garantiria imunidade à própria simbolização.

Assim sendo, forçoso reconhecer que uma crítica da ideologia se cons-titui como um enunciado performático (da pura ideologia). Essencial aqui compreender que a operação ideológica torna despiciendas as razões invo-cadas pelo “fazer” – se verdadeiras ou falsas. Tomem-se, como exemplo, as chamadas guerras “preventivas”, as ocupações de territórios baseadas na

28 ZIZEK, Slavoj. O espectro da ideologia. In: ______. Um mapa da ideologia. São Paulo: Contraponto, 1996. p. 26.

29 BENJAMIN, Walter. Para uma crítica da violência. In: Escritos sobre mito e linguagem. São Paulo: Duas Cidades, 2011.

30 DERRIDA, Jacques. Força de lei: o fundamento místico da autoridade. São Paulo: Martins Fontes, 2011.

Page 105: 25 5 0 - Ministério Público do Estado de São Paulo

Doutrina nacionalrevista De estuDos criminais 55

outubro/Dezembro 2014

105105

“proteção de direitos humanos”. Pouco importa que realmente existam ou não tais violações. Desde a partir do modelo descrito por Sloterdijk, é pos-sível se mentir dizendo a verdade. Portanto, não existe um “lado de lá” da ilusão, que corresponderia a um local privilegiado de acesso à verdade.

Estabelecidos os pontos de compreensão do termo ideologia, a grande crítica tecida às categorias “acusatório” e “inquisitório” não pode ela mes-ma se colocar num estado letárgico de imunização à ideologia. Naturalmente que correspondem a certos embaraços metodológicos causados pela tentati-va de reduzir a multissignificatividade dos conceitos acusatório e inquisitó-rio a um chão bem medido e calculado de redução sígnica. Entretanto, em se levando em consideração que a crítica se estabelece virtualmente como identificação de um insuportável excesso de significação derivado daquelas categorias, e para além disso, contando que a crítica se faz ela própria igual-mente ideológica, muito pouco se acresce com a substituição das categorias acusatório e inquisitório por outra qualquer. O denuncismo de anacronismo ou superação das categorias acusatório ou inquisitório torna pouco palpáveis as bordas de sombreamento registradas no maquinismo autoritário que cor-responde a um processo penal “consensualmente” orquestrado a partir de significantes “ideologicamente neutros”. É justamente na confluência entre político e jurídico – ocupado pelo binômio pena-processo – que as opções devem se fazer claras31. Se, em atenção às categorias invocadas por Damaska, há a possibilidade intercambiável entre as formas de autoridade e aquelas processuais, por que valeria a pena lutar por determinado modelo de pro-cesso penal? Igualmente, se há uma penetrabilidade recíproca entre os re-gimes políticos e as expressões que assumem os processos em determinada contexto, evidentemente pareceria correta a constatação de Taruffo de que o princípio dispositivo, que se apresenta como elemento importante do sistema acusatório, segundo a doutrina especializada, não teria relação alguma com a conformação democrática do Estado.

Taruffo refuta a interpenetração entre princípio dispositivo e demo-cracia a partir de dois argumentos. O primeiro, denominado de histórico--comparatista, que sustenta que, apesar da previsão de poderes instrutórios do Magistrado em inúmeros países, eles não se transformaram em Estados autoritários e antidemocráticos (cita aqui França, Alemanha, Inglaterra e Estados Unidos). O segundo, chamado de sistemático, de que a existência de

31 Cf. COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Por que sustentar a democracia do sistema processual penal brasileiro? Revista do Instituto de Hermenêutica Jurídica, Belo Horizonte, n. 14, 2013.

Page 106: 25 5 0 - Ministério Público do Estado de São Paulo

106

Revista de estudos CRiminais 55doutRina naCional

outubRo/dezembRo 2014

106

poderes instrutórios do Magistrado não incide sobre o princípio dispositivo, sobre o direito à prova e sobre o princípio do contraditório32. O desbastamen-to das relações entre processo e política, ou, ainda, uma teoria fraca destas relações (como no caso de Damaska), permite que considerações como as de Taruffo possam encontrar fértil campo para florescimento. É lógico que as premissas das quais parte Taruffo são epistemológica e politicamente po-bres, que somente podem se apresentar a partir de uma abstração temporal dos próprios Estados tomados como paradigma, sem contar – o que a nosso juízo é cristalino – com um consenso sobre uma democracia exclusivamente consensual, o que é inclusive uma postura autoritária33.

Entretanto, para não alargar essa questão que é exclusivamente lateral e acessória, o exemplo é tomado tão somente para que a construção de mode-los exclusivamente heurísticos não seja uma válvula de escape para a defesa de práticas punitivas autoritárias politicamente neutralizadas.

A tentativa de romper com as categorias clássicas mostra-se, novamen-te, no esteio do pensamento de Zizek, como uma tentativa de saltar para fora da ideologia. Neste aspecto, portanto, que a tentativa de se pensar, por exem-plo, em um sistema pós-adversarial34 ou pós-acusatório constitui-se como uma tentativa desesperada de escapar do excesso sistêmico, da contingência que leva junto de si as categorias acusatório e inquisitório (o que faz com que o termo justiça restaurativa seja um abrigo para representações pós-proces-suais). Todavia, um processo penal pós-acusatório pressupõe alguns proble-mas de ordem epistêmica que produzem um regime de saber extremamente frágil, incapaz de servir como baluarte para novas formas de compreensão do cenário processual. E, por outro lado, acabam por ser colonizadas por uma racionalidade diversa, normativa, podendo, ao invés de criar um meca-nismo de alternativa ao sistema de justiça criminal, um sistema alternativo de processo penal, mais flexível, maleável, agravando os problemas que se propusera a resolver.

Do ponto de vista estritamente jurídico, a produção de um processo penal pós-acusatório engendra os seguintes problemas: a) transforma o fluxo

32 TARUFFO, Michele. Uma simples verdade: o juiz e a construção dos fatos. São Paulo: Marcial Pons, 2012. p. 207.

33 Cf. CUNHA MARTINS, Rui. A hora dos cadáveres adiados: corrupção, expectativa e processo penal. São Paulo: Atlas, 2013.

34 Cf. FREIBERG, Arie. Post-adversarial and post-inquisitorial justice: transcending traditional penological paradigms. In: European Journal of Criminology, v. 8. n. 88, p. 82-101, 2011.

Page 107: 25 5 0 - Ministério Público do Estado de São Paulo

Doutrina nacionalrevista De estuDos criminais 55

outubro/Dezembro 2014

107107

de significações compreensivas do universo acusatório em tentativas vãs de reunir, sob um corpo aparentemente cerrado de categorias, o que em realida-de são operações sistêmicas, carregadas da pregnância modal. Em outras pa-lavras, as novas facetas de um sistema pós-acusatório equivalem à tentativa de superação de um sistema kantiano ou neokantiano de concepção do pro-cesso para outra e diversa concepção, na qual o processo penal acaba sendo gerido mediante o recurso à descrição do modo de funcionamento daquelas próprias categorias.

Exemplo disso pode ser encontrado no princípio do contraditório. Na sua clássica definição, o princípio do contraditório constitui uma caracterís-tica do sistema acusatório, responsável pelo equilíbrio das chances proces-suais35. Numa vertente pós-acusatória, certamente não estará ligado a uma concepção abstrata de processo, mas se reinscreve como categoria que torna possível a avaliação dos níveis de arbitrariedade ou irracionalidade do poder punitivo. O contraditório então, nesta segunda posição, já não mais pode ser concebido como uma estrutura (quiçá linguística e estruturante da valida-de dos atos jurídico-processuais), mas sim como um diagnóstico do nível de democraticidade das práticas punitivas. Ou, no pior dos casos, como uma ultima ratio para justificar níveis indeléveis de ilegalidade.

Este caminho parece ser o trilhado por Taruffo, quando, ao refutar as críticas sobre os poderes instrutórios judiciais que atacam este poder pelo prisma da imparcialidade, denomina tais críticas de ingênuas. Taruffo reco-nhece o risco da tendência confirmatória (confirmation bias), afirmando que existem limites para o exercício de tais poderes, e que o contraditório, por-tanto, se configuraria como uma “técnica essencial de controle sobre o uso que o juiz faz de seus poderes”36. Aqui o processualista italiano inaugura uma curiosa e peculiar anomalia jurídica: o contraditório entre as partes e o próprio Magistrado encarregado de garantir o contraditório! É claro nova-mente que a perspectiva racionalista de Taruffo lhe permite compreender o juiz como alguém para-além da ideologia, o que, como já mencionado, é igualmente ideológico por excelência.

Notadamente, o grande problema que exsurge desta variação epistê-mica do contraditório é a sua funcionalização, a sua modalização, que in-

35 GOLDSCHMIDT, James. Princípios generales del proceso: problemas jurídicos y políticos del proceso penal. Buenos Aires: Europa-América, 1935.

36 TARUFFO, Michele. Uma simples verdade: o juiz e a construção dos fatos. São Paulo: Marcial Pons, 2012. p. 205.

Page 108: 25 5 0 - Ministério Público do Estado de São Paulo

108

Revista de estudos CRiminais 55doutRina naCional

outubRo/dezembRo 2014

108

crusta o princípio nas funções latentes ou mesmo expressas do sistema. Com efeito, perde relativamente a sua estrutura contrassistemática (o princípio pensado como condicionante epistemológica fora dos mecanismos institucio-nais) e adquire uma função endoprocessual (se os sistemas forem pensados como o conjunto de suas próprias operações, que compreendem igualmen-te aquelas aprioristicamente tomadas como normativamente inválidas37”); b) ainda do ponto de vista normativo, um pós-acusatorialismo processual penal é refém da própria transformação no campo processual, que abando-na paulatinamente o universo teórico-abstrato de suas categorias e se volta para a procedimentalização de suas tarefas e finalidades. Em primeiro lugar, essa orientação teleológico-funcional, parcialmente descrita no item anterior, modifica a base das situações jurídicas componentes da base do processo. Se, por um lado, nos estudos de processualística comparada torna-se necessário recusar determinadas categorias, sob pena de a heterogeneidade dos discur-sos impossibilitar a construção de ferramentas heurísticas, por outro, a sua tradução em plataformas político-criminais edifica uma espécie de desestru-turação sistematicamente organizada de conceitos-chave, fazendo da ciência processual um mero apanhado de comentários sobre o funcionamento do sistema. No Brasil, identifica-se claramente o fenômeno. Além da despreocu-pação para com os já referidos sistemas acusatório e inquisitório, as teorias da ação, da jurisdição, são praticamente desprezadas pela doutrina especializa-da. Simples problemas de redução de custos das edições? Evidentemente que não. Nestes mesmos manuais, o critério identificador para o estudo de certas questões é medido pelo posicionamento dos tribunais superiores. Novamen-te, essa procedimentalização do discurso processual penal deve ser lida como o refluxo contemporâneo de um retorno ao neobartolismo.

Evidentemente que as duas questões antepostas como questões proble-máticas a produzirem efeitos no campo normativo não esgotam a discussão a respeito de um processo “pós-acusatório”. Coexistem, ao lado dos proble-mas essencialmente normativos, graves déficits epistemológicos. O primeiro

37 Deve-se ter atenção que se o sistema processual penal, nesta versão funcionalizada, constitui-se como o conjunto integral de todas as operações sistêmicas, evidentemente que abarca o complexo de todas as decisões ilegais, remetendo o princípio do contraditório ao cerne de uma vasta rede de atributos reflexivos do sistema. A partir de então, não se torna de todo impensável que o contraditório se transforme, no âmbito da performance do sistema, em uma iníqua ferramenta que aponta para uma melhoria da funcionalidade sistêmica. A sua absorção pelo conjunto das operações o transmuta numa engrenagem perversa do sistema penal.

Page 109: 25 5 0 - Ministério Público do Estado de São Paulo

Doutrina nacionalrevista De estuDos criminais 55

outubro/Dezembro 2014

109109

deles é a subordinação do processo penal e suas categorias a um universo regido pela linearidade temporal, por uma forma neodarwiniana de identi-ficar uma melhoria sistêmica com o abandono das categorias clássicas. Essa redução das categorias processuais àquilo que elas representam para a fun-cionalidade de um determinado modelo jurídico ou político (notadamente a democracia) faz tábula rasa do passado e das variações sociopolíticas que elas assumiram em certo período, para se satisfazer, com a sua aderência, a um determinado regime (seja político, histórico ou jurídico). É claro que o im-pacto político trazido pelas mutações das categorias acusatório e inquisitório é escamoteado como um “ornamento histórico-cultural”, incapaz de fazer sentido na contemporaneidade. Resultado: a produção de categorias preten-samente atemporais, a inaugurar um marco zero de significação, sabidamen-te impossível porque inscritas em determinada tradição. Se evidentemente a tradição implica que as categorias pertençam a um determinado universo sígnico, a tentativa de reduzi-las à expressão de um presente sempre diferido introduz o risco do paralelismo histórico: categorias sem passado arregimen-tam, em linha de contínua ambiência, o futuro do que já passou. Mais do que anacrônico, estabelecer que um sistema pós-acusatório sobreviva à custa das categorias de um sistema absolutamente imprestável é distópico: a uma, por pretender que o passado-futuro seja imune a si mesmo; a duas, pelo fato de que as interferências políticas sobre o processo penal dependem, em franco regime de assimetria, de produção de temporalidade, não bastando um mero compósito mononuclear presentificado.

Num segundo aspecto, epistemologicamente não é possível com suces-so sustentar-se um processo penal pós-acusatório dada uma bilateral incom-preensão a respeito de dois eixos nos quais se move o processo penal: a) o sistema acusatório ou inquisitório não pode pretender à totalidade semântica das estruturas categoriais de um determinado processo (uma vez que como anteriormente mencionado – o autoritarismo é sempre um para além dos sistemas); b) a substituição de um sistema acusatório por outro “pós-acusa-tório” opera a partir da pressuposição de que, enfim, ao sistema acusatório caberá reunir o complexo das estruturas simbólicas do processo penal. Esse duplo erro é cometido pelas tentativas de se pensar um para-além do siste-ma, que compartilha de alguns erros metodológicos das definições clássicas e institui outros, igualmente inaceitáveis.

Um processo penal pós-acusatório é incapaz de dar conta (assim como a própria deificação do sistema acusatório como a representação da totalida-de perdida, o pequeno objeto “a” da ciência processual penal).

Page 110: 25 5 0 - Ministério Público do Estado de São Paulo

110

Revista de estudos CRiminais 55doutRina naCional

outubRo/dezembRo 2014

110

Dito isso, como se apresenta o autoritarismo processual penal, enquan-to complexo de representações? Esta espécie de mapeamento será apresenta-do no próximo item.

3 uM MaPeaMento da ideologia autoritária no Processo Penal Brasileiro

Entendido que a discussão política do processo penal não pode ser re-sumida à compreensão dos sistemas processuais ou às tentativas de apre-sentar novas conformações, não mais jungidas a partir de critérios epistemo-lógicos, mas estritamente funcionais, qual o mapa do autoritarismo proces-sual penal brasileiro? Pretende-se oferecer aqui um breve e sucinto esquema problematizante dos aspectos antidemocráticos do processo penal brasileiro. Nesta versão ainda germinal, ao menos dezesseis pontos (hot spots) do auto-ritarismo processual penal podem ser identificados. É justamente a sua pro-blematização conjunta e não fragmentada que proporciona a possibilidade de escapar do reducionismo sistêmico que o recurso aos sistemas processuais penais ou à sua substituição por outros novos significantes-mestre. Entre-tanto, o autoritarismo ainda se revestirá desta capacidade de ressignificar, o que, mesmo em um esquema que pretenda dar conta de todos os pontos aqui envolvidos, corre-se o risco de manter o pensamento autoritário, desta vez sediado por novas categorias.

1. Em primeiro lugar, as prisões ditas cautelares. Necessária, aqui, uma plena rediscussão não apenas sobre as formas, pressupostos e requisitos das prisões cautelares. Mas, com mais veemência, sobre a própria “cautelarida-de” processual penal, a nosso juízo sabidamente inexistente quando tratada sob a ótica das prisões. Independentemente da prisão, não perfazerá, jamais, cautelaridade. Daí por que deve ser repensada toda a estrutura das prisões processuais, a partir de novos critérios e não da remissão a uma disciplina do processo civil. A cautelaridade, em tema de prisões processuais, é o pano de fundo para que, arbitrariamente, o sistema determine prisões equivalen-tes a sedantes simbólicos: prende-se cautelarmente alguém, no Brasil, pela “vontade do sistema”. Neste ponto se revela manifestamente o pensamento autoritário no processo penal. As análises de decisões de prisões cautelares constituem-se como um exercício que permite claramente se reconhecer tal aspecto sem maiores necessidades de digressões.

2. Em segundo lugar, a ação penal, novo conceito indevidamente im-portado do processo civil e que engendra, no processo penal, manifestação das pulsões autoritárias. Em primeiro lugar, por reunir a teoria da ação penal princípios que deveriam ao menos ser colocados em xeque, e não assumi-

Page 111: 25 5 0 - Ministério Público do Estado de São Paulo

Doutrina nacionalrevista De estuDos criminais 55

outubro/Dezembro 2014

111111

dos como máximas intocáveis. A obrigatoriedade da ação penal é um de-les. Igualmente, as condições da ação penal, cuja tentativa de aplicação no processo penal gera inúmeros contorcionismos semânticos, cientificamente inexplicáveis (interesse processual como punibilidade, possibilidade jurídica do pedido como prática de fato típico, ilícito e culpável etc.) necessita ser revista. Todavia, o que parece mais importante neste aspecto é a ausência de maiores estudos acerca dos limites ao exercício da “ação penal” e o excesso de acusação, este sim verdadeiro problema científico para o processo penal. Comumente, as limitações ao exercício da “ação penal” limitam-se à análise da justa causa. Por isso, há aqui a necessidade de se trabalhar com uma “te-oria da acusação”.

3. Um terceiro elemento que concentra inarredáveis elementos au-toritários no processo penal é a concepção instrumental que é atribuída ao processo. Em realidade, neste ponto, quer-se dizer que o processo penal não pode ser concebido unicamente como um caminho necessário para a pena, na esteira da teoria geral do processo. A seguir-se tal concepção, o proces-so passa a ser visto unicamente como um obstáculo à efetivação da pena, sendo os princípios e as garantias fundamentais meros estorvos à eficiência do instrumento penalizador. Deve-se partir para uma teoria que associe o processo penal única e exclusivamente à defesa do hipossuficiente (acusado), evitando-se as ciladas da teoria geral do processo e dos argumentos conser-vadores38 que lhe emprestam contornos.

4. Um quarto ponto que constitui um “nó” do autoritarismo em ma-téria processual penal diz respeito à prova e suas implicações políticas. O primeiro elemento dessa intersecção política no processo penal – uma polí-tica da prova – diz com a gestão da prova, já referida anteriormente como o princípio fundante do sistema acusatório. Se, por um lado, passividade ou atividade do Magistrado na colheita da prova implica opções políticas – mais ou menos próximas do ideário democrático –, essa política da prova requer uma revisão fundamental em vários aspectos, desta feita dizentes não ape-nas à teoria geral da prova (revisão da teoria da prova ilícita, da prova em-prestada etc.), mas também de pontos contemporâneos e cirúrgicos (como a questão do desvio causal e do princípio da especialidade), assim como a rediscussão das provas clássicas (por exemplo, com relação à prova testemu-nhal e o depoimento dos policiais ou ainda, relativamente à obrigatoriedade

38 HIRSCHMAN, Albert. The rethoric of reaction: perversity, futility, jeopardy. London: Harvard University Press, 1991.

Page 112: 25 5 0 - Ministério Público do Estado de São Paulo

112

Revista de estudos CRiminais 55doutRina naCional

outubRo/dezembRo 2014

112

do interrogatório, que deveria ser uma faculdade do acusado). Uma política da prova em matéria criminal deverá ingressar, por fim, em pontos sensíveis que tratam dos novos meios de prova (como, por exemplo, a infiltração de agentes, bem como quebras de sigilo das mais variadas espécies).

5. Um quinto elemento que concentra novamente expressão do auto-ritarismo processual penal brasileiro concerne à teoria da jurisdição. Basi-camente a doutrina se acomodou com uma concepção fraca de jurisdição, limitada ao “poder-dizer o direito”. A jurisdição passa a integrar o mais im-portante, senão o elemento quintessencial do processo penal. Deve-se vis-lumbrar a jurisdição não do ponto de vista exclusivo do julgador, mas do jurisdicionalizado, isto é, enquanto direito fundamental. Para além de uma concepção solipsista e monádica da figura do juiz, tem-se aqui a necessidade de repensar os elementos inalienáveis da jurisdição. Desta arte, além do re-dimensionamento do princípio do juiz natural (que não se cinge à proibição de tribunais de exceção), as esferas da competência deverão ser analisadas verticalmente (em específico, a imprestabilidade do conceito de competên-cia relativa assim como a contraproducência da manutenção da prevenção como categoria fixadora da competência). Por fim, deve-se prestar atenção devidamente às denominadas causas de suspeição, impedimento e incompa-tibilidades, que não se constituem como meros adereços da jurisdição, mas sem dúvida compõem, fundamental e intrinsecamente, o cerne da própria jurisdição.

6. Um dos pontos centrais para não dizer o mais importante reside na teoria da decisão no Estado Democrático de Direito. À evidência que a exi-gência de uma decisão no processo penal é dizer muito pouco, quase nada. Devem ser vislumbrados aqui todos os elementos que bloqueiam uma de-cisão jurídica, desde teorias psicológicas, como as da dissonância cognitiva ou a da tendência confirmatória, às jurídicas que operam a partir da tradição hermenêutica. Para além da teoria da decisão jurídica estar centralizada uni-camente na necessidade de fundamentação (e veja-se que se trata de pon-to igualmente relevante, à medida que a prática forense se contenta com a mera repetição de decisões ou pareceres de instâncias ou órgãos distintos), o processo penal deve se preocupar com a produção de decisões contramajo-ritárias, isto é, menos sujeitas aos impulsos policialescos, que, infelizmente, ainda são constantes na prática forense.

7. Uma compreensão fraca dos recursos e ações impugnativas autôno-mas em matéria penal constitui outro ponto de sustentação do autoritaris-mo processual penal brasileiro. Em primeiro lugar, pela manifesta e absoluta incompatibilidade entre os recursos na esfera cível e penal (tome-se como

Page 113: 25 5 0 - Ministério Público do Estado de São Paulo

Doutrina nacionalrevista De estuDos criminais 55

outubro/Dezembro 2014

113113

exemplo a Lei n 8.038/1990), que não podem, em hipótese alguma, estar su-jeitos aos mesmos requisitos e pressupostos, assim como não podem ter os mesmos efeitos (por exemplo, o efeito meramente devolutivo em matéria de recurso especial e extraordinário). Em segundo lugar, pela existência de um direito fundamental ao duplo grau de jurisdição, não apenas porque presente na Convenção Interamericana de Direitos Humanos, o que é um argumen-to evidentemente fraco – mas pela própria natureza da recorribilidade, que tem sua razão de existência justamente na falibilidade do julgado. Assim sen-do, institutos como as decisões colegiadas em ações penais originárias, bem como as do próprio tribunal do júri, merecem uma séria revisão, sob pena de privilegiar-se o procedimentalismo formalista (concepção de que há limita-ções ao duplo grau de jurisdição tendo como base a fonte normativa da qual emana) em detrimento de alicerces que oportunizem uma jurisdição plena.

8. Não se poderia falar, igualmente, de autoritarismo processual penal, no Brasil, sem falar-se da execução penal. Apesar da mudança de orientação pós-1988, a alegação de que a execução penal passou a ser jurisdicional não convence. A uma, pelo fato de que, efetivamente, tão somente há a produção de decisões judiciais que alteram o status do jurisdicionalizado, muito em-bora, quanto à sua forma, ela não se revista muito mais do que um caráter homologatório daquelas decisões administrativas. Ausência de um efetivo direito ao contraditório (a não ser sob o prisma meramente formal), ausência de um direito à defesa nos procedimentos administrativos para atribuição de faltas (desnecessidade de defensor durante estes procedimentos, na esteira do decidido pelo STF), transformação da situação subjetiva do jurisdicionali-zado (gozar de direitos previstos) em uma grande e indefinida cláusula rebus sic stantibus (reversão de direitos já apropriados), limitação ao uso de habeas corpus, na melhor esteira do pensamento fascista (que cria categorias para a inadmissibilidade da ação constitucional) são exemplos de necessária revisão dentro da execução penal.

9. Novamente, a condensação do pensamento autoritário penal não pode desprezar uma forma maleável, flexível e amorfa de processo39. Fór-mulas como economia processual, prejuízo, instrumentalidade das formas são manifestamente incompatíveis com um processo penal minimamente de-mocrático. Sob o mesmo fundamento, a categoria nulidade relativa deve ser extirpada do discurso processual penal, uma vez que inaplicável às situações jurídico-processuais reinantes nesta seara.

39 GLOECKNER, Ricardo Jacobsen. Nulidades no processo penal: introdução principiológica à teoria do ato processual penal irregular. Salvador: JusPodivm, 2013.

Page 114: 25 5 0 - Ministério Público do Estado de São Paulo

114

Revista de estudos CRiminais 55doutRina naCional

outubRo/dezembRo 2014

114

10. Como pode ser vislumbrado diante da existência de inúmeros pro-cedimentos processuais penais previstos na legislação brasileira, em primeiro lugar, a simples pluralidade de procedimentos é um problema normativo in-justificado, cabendo aqui regular-se a redução dos procedimentos a uma fór-mula unívoca, com a previsão de dois ou três ritos distintos. Perceba-se que determinados critérios legislativos (como a redução do número de testemu-nhas consoante a gravidade do crime é um critério sem sentido). A produção de prova testemunhal, ou melhor, a complexidade do delito, não possui rela-ção alguma com a sua gravidade abstrata. Isto quer dizer que a menor gravi-dade abstrata do crime não pode ser compreendida como um mecanismo de redução de chances processuais. Igualmente, previsões injustificáveis como a continuidade do processo na citação por edital de réu acusado de lavagem de capitais constituem-se como outro exemplo de diversidade procedimental que somente tem sua razão de existência num espaço de produção de fragmenta-riedade, seletivamente ordenada a fim de legitimar decisões arbitrárias “legal-mente amparadas” (apesar de inconstitucionais). Outrossim, nada justifica a existência de um procedimento, como o do tribunal do júri, que consegue ferir duplamente o princípio da razoável duração do processo: em primeiro lugar, pelo fato de o procedimento resultar em julgamentos demorados, quando da análise da totalidade dos atos processuais praticados. Em outras palavras, tra-ta-se de um procedimento naturalmente moroso, que requer uma fase de co-lheita probatória e outra de julgamento perante os jurados. Por esse prisma, em nosso juízo, há clara violação ao direito de ser julgado em tempo razoável (que nada tem a ver com o “excesso de recursos”, como provêm da cantilena puni-tivista), não raras vezes com o acusado preso aguardando julgamento; viola, igualmente, o princípio da razoável duração do processo, desta feita porque o procedimento em Plenário, seguindo o princípio de concentração e imedia-tidade, exige um julgamento “instantâneo” dos jurados. Às vezes, processos que demoram anos até que a prova seja colhida, examinada e julgada reque-rem dos jurados um julgamento imediato, sem reflexão. Trata-se, do ponto de vista da razoável duração do processo, da conjunção do pior dos dois mundos: a) processo lento até a confirmação da decisão de pronúncia; b) julgamento imediatista dos jurados na fase de plenário. E isto sem falar de limitações ao direito ao duplo grau de jurisdição, anteriormente exposto. Eis aqui um exem-plo de como um procedimento não encontra razões constitucionais suficientes para manter a sua forma atual.

11. Outro ponto do processo penal em que impera irrebatível concen-tração de pulsões autoritárias é a concepção de que há uma relação jurídica de base material a emprestar substância ao processo, devindo, no curso deste, uma lide. É claro que não há direito material de o Estado punir (direito sub-

Page 115: 25 5 0 - Ministério Público do Estado de São Paulo

Doutrina nacionalrevista De estuDos criminais 55

outubro/Dezembro 2014

115115

jetivo de punir), sob pena de se manter um pensamento fascista (a elaboração do conceito é de ninguém menos que Rocco) e, portanto, faltaria a base de direito material da relação jurídica. Mas falta igualmente ao Estado-acusador legitimidade, pois este órgão não pode reclamar a adjudicação daquilo que não é seu. Neste sentido, em primeiro lugar, não se pode falar em relação jurídica. Por seu turno, igualmente não se pode falar em lide, pois não há interesses conflitantes no cerne do processo penal, como já demonstrara ine-quivocamente Jacinto Coutinho40.

12. Deve-se prestar atenção, igualmente, às inversões ao princípio da presunção de inocência encontradas tanto na esfera doutrinária como espe-cialmente jurisprudencial. Em um primeiro plano, tais inversões encontram sustentáculo na fascista dicção do art. 156, caput, do CPP, que impulsiona posturas de que o acusado deverá “provar” aquilo que alega, ou ainda, de que o acusado não conseguiu se “desvencilhar dos fatos por ele suscitados” etc. Sem prejuízo dessa importante conexão entre as presunções em matéria penal (que se deveriam resumir à de inocência) e a operatividade do sistema punitivo, ingressa aqui novamente a teoria da decisão penal, já comentada alhures. In dubio pro societate, presunção de regularidade dos atos administra-tivos (inquérito policial), inexistência de demonstração inequívoca da atipici-dade em habeas corpus para trancamento do processo por falta de justa causa são alguns exemplos de substanciais inversões do princípio da presunção de inocência.

13. Como já explicado em outro trabalho41, a investigação preliminar, no Brasil, deveria se limitar à sua tarefa primordial, de filtragem de acusações infundadas. Todavia, a investigação preliminar transformou-se em instru-mento de arrecadação de prova, tanto que o art. 155 do CPP autoriza a sua utilização como elemento de formação de convicção. A problemática aqui implica bem mais do que a inadmissibilidade do inquérito policial no pro-cesso e sua utilização na decisão. Trata-se também de subtrair o inquérito policial de uma soberania administrativa, permitindo-se que o suspeito pos-sa efetivamente ser sujeito de direitos e não meramente um objeto de prova. Igualmente, a atribuição inicial do status que recai sobre o suspeito é uma mo-dificação que não pode ser negligenciada, a fim de tornar o inquérito policial mais fiel às normas constitucionais.

40 COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. A lide e o conteúdo do processo penal. Curitiba: Juruá, 1989.

41 LOPES JÚNIOR, Aury; GLOECKNER, Ricardo Jacobsen. Investigação preliminar no processo penal. 6 ed. São Paulo: Saraiva, 2014.

Page 116: 25 5 0 - Ministério Público do Estado de São Paulo

116

Revista de estudos CRiminais 55doutRina naCional

outubRo/dezembRo 2014

116

14. Encontra-se, no Brasil, um processo de ressignificação das práticas autoritárias brasileiras, cuja legitimação não mais remonta, com exclusivida-de, ao Código de Processo Penal vigente. A Constituição da República passa a desempenhar, na lógica autoritária, uma espécie de fonte simbólica da qual emanam determinadas consequências, que, além de ampliar o leque punitivo estatal (mandados de criminalização, configuração de regras excipientes de direitos fundamentais), introduz uma Constituição que preservaria o Estado Social por meio de normas penais e processuais penais policialescas. Fala-se em garantismo positivo, garantismo de dupla face, prova ilícita pro societate e outras tantas construções que providenciam suporte ideológico punitivo ao status quo. Aqui é que também ingressa o discurso da esquerda punitiva. O neoconstitucionalismo em matéria processual penal tem servido a propósi-tos aparentemente contraditórios, como o de “garantir” as liberdades indivi-duais, com a manutenção de normas que tratam de esvaziar o conteúdo da-quelas mesmas garantias.

15. Outro aspecto do autoritarismo processual penal brasileiro reside na metafísica separação das questões de direito daquelas questões de fato, insistentemente sustentadas por doutrina e tribunais. Sobre essa distinção repousam posturas autoritárias, como a alegação de que o réu se defende dos fatos e não da capitulação jurídica (naha mihi factum dabo tibi jus) que autorizam a modificação dos tipos penais (lembrando que existem crimes to-talmente normativos, como, v.g., a lavagem de capitais ou a sonegação fiscal), que sequer permitem a separação da propalada distinção. Notadamente, essa postura é representativa de uma concepção débil do princípio do contraditó-rio, que seria realizável apenas e tão somente sobre as questões de fato, não recaindo sobre as questões de direito. Aqui também entram em questão as li-mitações ao exercício recursal, como os pressupostos de admissibilidade dos recursos especial e extraordinário, bem como os recursos decorrentes das de-cisões do tribunal do júri. Além disso, uma concepção plena de contraditório exigiria que eventuais desclassificações fossem produto de um aditamento à acusação e que não poderiam ensejar, simplesmente, uma sentença condena-tória desprovida de contraditória.

16. Por fim, basta lembrar, já que o tema foi suscitado amiúde durante essa breve exposição, que as alternativas ao processo se transformaram na regra (plea bargaining), introduzindo um cenário nada promissor42, no qual o órgão acusador passa a ter poderes cada vez mais extensos. Igualmente, penas sem processo são avessas a um modelo de processo que tenha por fun-

42 Cf. PRADO, Geraldo. Transação penal. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006.

Page 117: 25 5 0 - Ministério Público do Estado de São Paulo

Doutrina nacionalrevista De estuDos criminais 55

outubro/Dezembro 2014

117117

damento a preservação de direitos fundamentais e que preserve os jurisdicio-nalizados de perigos contidos em acusações infundadas (risco este inerente ao funcionamento do plea bargaining).

Em linhas gerais, este o mapeamento das estruturas autoritárias no processo penal brasileiro. Com efeito, não se pretende esgotá-las, mas identi-ficar como elas perpassam o processo penal brasileiro, desde o seu nascedou-ro (com a discussão sobre a sua legitimidade) até a fase de cumprimento da sentença, com a execução penal.

De fato, como apresentado ao início do ensaio, a discussão sobre uma superação dos sistemas acusatório e inquisitório, caso viável, demandaria apenas alterações laterais, uma vez que este processo penal, no Brasil, é pro-duto de um conjunto complexo de significações e ressignificações que, sob o plano do imaginário, edificam uma rede de valências autoritárias.

referÊnciasANYIAR DE CASTRO, Lola. Criminologia da libertação. Rio de Janeiro: Revan, 2005.BENJAMIN, Walter. Para uma crítica da violência. In: Escritos sobre mito e linguagem.

São Paulo: Duas Cidades, 2011.BERGER, Peter L.; LUCKMANN, Thomas. A construção social da realidade: tratado de

sociologia do conhecimento. Petrópolis: Vozes, 2003.BUTLER, Judith. Mecanismos psíquicos del poder: teorias sobre la sujeción. Valencia:

Ediciones Cátedra, 1997.CASTORIADIS, Cornelius. A instituição imaginária da sociedade. 5. ed. Rio de Janeiro: Paz

e Terra, 1982. COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. A lide e o conteúdo do processo penal. Curitiba:

Juruá, 1989. ______. O novo papel do juiz no processo penal. In: COUTINHO, Jacinto Nelson de

Miranda. Crítica à teoria geral do direito processual penal. Rio de Janeiro: Renovar, 2001.______. Por que sustentar a democracia do sistema processual penal brasileiro? Revista do

Instituto de Hermenêutica Jurídica, Belo Horizonte, n. 14, 2013. CUNHA MARTINS, Rui. A hora dos cadáveres adiados: corrupção, expectativa e processo

penal. São Paulo: Atlas, 2013. DAMASKA, Mirjan. The faces of justice and state authority: a comparative approach to the

legal process. London: Yale University Press, 1986. DERRIDA, Jacques. Espectros de Marx. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994. ______. Força de lei: o fundamento místico da autoridade. São Paulo: Martins Fontes, 2011.FERNANDES, Fernando. O processo penal como instrumento de política criminal. Lisboa:

Almedina, 2001.FERRAJOLI, Luigi. Derecho y razón: teoria del garantismo penal. Derecho y razón: teoría

del garantismo penal. Madrid: Trotta, 2004.

Page 118: 25 5 0 - Ministério Público do Estado de São Paulo

118

Revista de estudos CRiminais 55doutRina naCional

outubRo/dezembRo 2014

118

FREIBERG, Arie. Post-adversarial and post-inquisitorial justice: transcending traditional penological paradigms. European Journal of Criminology, v. 8. n. 88, p. 82-101, 2011.

GLOECKNER, Ricardo Jacobsen. Nulidades no processo penal: introdução principiológica à teoria do ato processual penal irregular. Salvador: JusPodivm, 2013.

______. Transpolíticas do imaginário (punitivo) ou a codificação da sedução. Revista Sistema Penal & Violência, Porto Alegre, v. 5. n. 2, p. 252-264, 2013.

GOLDSCHMIDT, James. Princípios generales del proceso: problemas jurídicos y políticos del proceso penal. Buenos Aires: Europa-América, 1935.

HIRSCHMAN, Albert. The rethoric of reaction: perversity, futility, jeopardy. London: Harvard University Press, 1991.

KAGAN, Robert. Adversarial legalism: the American way of law. Cambridge: Harvard University Press, 2001.

LACAN, Jacques. O Seminário v. 10: A angústia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.LANGER, Maximo. The long shadow of the adversarial and inquisitorial categories. In:

DUBBER, Markus D.; HOERNLE, Tatjana. Handbook of Criminal Law. Oxford: Oxford University Press, 2014.

LEGENDRE, Pierre. Della società comme testo: lineamenti di un’antropologia dogmatica. Trad. Elisa Scatollini i Paolo Heritier. Torino: Giappichelli, 2005.

______. Leçons IV. El inestimable objeto de la transmissión. Madrid: Siglo XXI, 1996. LOPES JÚNIOR, Aury; GLOECKNER, Ricardo Jacobsen. Investigação preliminar no processo

penal. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2014.LUHMANN, Niklas. Legitimação pelo procedimento. Brasília: UnB, 1980.MANZINI, Vincenzo. Tratado de derecho procesal penal. Trad. Santiago Sentís Melendo y

Marino Ayerra Redín. Buenos Aires: El Foro, t. I, 1996. MONTERO AROCA, Juan. Princípios del proceso penal: una explicación basada en la razón.

Valencia: Tirant lo Blanch, 1997.PARSONS, Talcott. O sistema das sociedades modernas. São Paulo: Pioneira, 1974.PRADO, Geraldo. Transação penal. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006.SCHUNEMANN, Bernd. La reforma del proceso penal. Madrid: Dykinson, 2005.SLOTERDIJK, Peter. Crítica da la razón cínica. Madrid: Siruela, 2004.TARUFFO, Michele. Uma simples verdade: o juiz e a construção dos fatos. São Paulo:

Marcial Pons, 2012.ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas: a perda da legitimidade do

sistema penal. Trad. Vânia Romano Pedrosa e Amir Lopes da Conceição. 5. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2001.

ZIZEK, Slavoj. Eles não sabem o que fazem: o sublime objeto da ideologia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1990.

______. O espectro da ideologia. In: ______. Um mapa da ideologia. São Paulo: Contraponto, 1996.

Page 119: 25 5 0 - Ministério Público do Estado de São Paulo

119

o discurso do suPreMo no Mensalão – análise Quantitativa dos votos

orais no JulgaMento da aP 470ivar a. hartmann*

renato roCha souza**

* Mestre em Direito pela PUCRS e pela Harvard Law School, Doutorando em Direito pela UERJ, Professor da FGV Direito Rio, Coordenador do Projeto Supremo em Números.

** Mestre em Engenharia da Produção pela UFSC, Doutor em Ciências da Informação pela UFMG, Pós-Doutor pela University of South Wales, Professor da EMAp – Escola de Matemática Aplicada da Fundação Getúlio Vargas no Rio de Janeiro.

RESUMO: O artigo apresenta uma contribuição para a identificação de discursos no processo criminal brasileiro, a partir de pesquisa empírica quantitativa tendo por objeto as falas de condenação e ab-solvição dos ministros do Supremo Tribunal Federal nas sessões de julgamento da Ação Penal nº 470 (mais conhecida como Processo do Mensalão). O corpo de análise é constituído de volumosa trans-crição das sessões. Foi realizado levantamento quantitativo, por meio de software de processamento de linguagem natural, de todas as expressões, substantivos, verbos e adjetivos, sendo apresentados dados detalhados das instâncias mais frequentes de cada tipo. Os re-sultados indicam que os votos de condenação focaram mais os fatos, elementos e provas específicos à AP 470 que os votos de absolvição. Além disso, concluiu-se que há grande similaridade entre os discur-sos empregados nos votos de absolvição e condenação.PALAVRAS-CHAVE: Processo penal; Supremo Tribunal Federal; discurso; processamento de linguagem natural; métodos quantita-tivos em Direito.ABSTRACT: The article contributes to the identification of discour-ses in Brazilian criminal trials based on quantitative empirical rese-arch of the Supreme Court Justices’ verbal opinions for conviction and acquittal in the trial hearings of Criminal Action nº 470 (com-monly known as the Mensalão case). The corpus is an immense file with the transcription of the hearings. We used natural language processing software to map all expressions, nouns, verbs and adjec-

Page 120: 25 5 0 - Ministério Público do Estado de São Paulo

120

Revista de estudos CRiminais 55doutRina naCional

outubRo/dezembRo 2014

120

tives and plotted detailed data on those that were employed more frequently on the opinions. The results indicate that the conviction opinions focused more on facts, elements and evidence specific to CA 470 than the acquittal ones. In addition, we concluded that there is great similarity between the conviction and acquittal discourses.KEYWORDS: Criminal procedure; Federal Supreme Court; discour-se; natural language processing; quantitative methods in Law.SUMÁRIO: Introdução; 1 Metodologia; 2 Resultados; 3 Discussão dos resultados; Conclusão; Referências.

introduçãoEm agosto de 2012, vários anos após o recebimento da denúncia, o

Supremo Tribunal Federal iniciou o julgamento da Ação Penal nº 470. No processo – popularmente conhecido como “julgamento do mensalão” –, de-fenderam-se vários ex-ministros de Estado, ex-parlamentares e outros ainda na Câmara dos Deputados e uma série de réus da iniciativa privada, ligados principalmente aos setores financeiro e publicitário.

A prerrogativa do foro privilegiado levou o caso a ser julgado origi-nariamente pelo Supremo, a despeito de pedidos de desmembramento por alguns dos réus quando da decisão sobre recebimento da denúncia e nova-mente no início do julgamento. A esses dois fatores – grande quantidade de acusados do mais alto escalão dos poderes Executivo e Legislativo; processo julgado em primeira e única instância pela mais alta corte do País – junta-se ainda o fato de o julgamento iniciado em agosto de 2012 representar o ponto culminante do um ciclo iniciado sete anos antes, em 2005. Na ocasião, o então Deputado Federal Roberto Jefferson anunciou publicamente a existência de um sistema de cooptação de parlamentares por parte do Governo Luís Inácio Lula da Silva, tendo por objetivo assegurar resultados nas votações do Con-gresso. A denúncia foi seguida de acontecimentos de impacto nacional, como a cassação do próprio Jefferson e ainda de José Dirceu, que havia saído da chefia da Casa Civil e voltado à Câmara.

Em função dessas características, desde os primeiros desdobramentos, o caso recebeu enorme atenção da imprensa brasileira. Denominado de “es-cândalo do Mensalão”, o episódio teve projeção alta nos primeiros meses e depois novamente na época do recebimento da denúncia e abertura da AP 470 pelo STF em 2007. A partir do momento em que foi colocado em pauta para julgamento pelo então Presidente do Supremo, Ministro Carlos Ayres Britto, o processo voltou a atrair grande atenção da população brasileira.

Um processo com altíssimo interesse da população e também com es-paço privilegiado na imprensa nacional, envolvendo políticos acusados de

Page 121: 25 5 0 - Ministério Público do Estado de São Paulo

Doutrina nacionalrevista De estuDos criminais 55

outubro/Dezembro 2014

121121

crimes relacionados à sua função: a AP 470 e, mais ainda, seu julgamento, constituem um ótimo objeto de estudo das teorias sobre o discurso no direito penal. Não apenas porque significados do direito penal são construídos e dilapidados também pela imprensa (Krohling e Boldt, 2008:4) em um fenô-meno diário e de larga escala, mas também porque esses significados são constantemente legitimados pela mídia (Mota, 2006:14). De qualquer manei-ra, midiático ou não, o processo judicial é sempre campo crucial para a defini-ção de discursos sobre o crime e sua relação com a sociedade (Martins, 2014).

O processo do Mensalão não foi seguido de perto, entretanto, apenas pela mídia. Em um fenômeno inédito no Brasil, um processo judicial ecoou e foi largamente comentado pelos próprios brasileiros em redes sociais. Esse elemento adicional de influência dos discursos adotados no julgamento agre-ga e enriquece, traz diversidade em relação ao acompanhamento feito pela imprensa. Não raro postagens criticando os principais meios de comunicação ganhavam grande popularidade. As explicações mais simplistas para esse diálogo do qual eram participantes a mídia e os brasileiros, bem como os mi-nistros do Supremo, seriam no sentido de enaltecer essas supostas condições férteis ao discurso. Mas seriam aí já teorias que aplainam as diferenças entre esses atores, ao invés de valorizá-las (Saavedra e Sobottka, 2009:389).

Esse fator torna ainda mais propício o ambiente para a reverberação do discurso criminalizador, seja em choque com o garantismo, seja apropriando--se desse para legitimar-se (Carvalho, 2007:13). De fato, a conjuntura formada entre agosto e dezembro de 2012, quando aconteceu o julgamento do mérito da AP 470, favorecia largamente o discurso da emergência na sociedade bra-sileira, abrindo as portas para que o direito penal fosse modificado de modo a atender aos anseios desse discurso (Zaffaroni, 1998:620). Discurso, inclusive no direito penal, é poder (Zaffaroni, 1998:618).

Esse é o discurso que se contrapôs ao resultado do julgamento em de-zembro de 2012: os ministros do Supremo teriam cedido à pressão da popu-lação e da imprensa e condenado a maioria dos réus sem as devidas provas. Isso em um desvio ou exceção à aplicação dos precedentes penais garantistas da Corte.

Mas afinal, qual o diagnóstico da decisão tomada pelos ministros do STF? Ao fundamentar seus votos, eles adotaram qual desses discursos? O garantista? O emergencial? O criminalizador? Esse artigo pretende contri-buir para a resposta a essa pergunta. Nesse sentido, adotamos perspectiva comumente adotado por Michel Foucault, de analisar as características dos discursos que atuam na seara do direito penal (Foucault, 1981: 71).

Page 122: 25 5 0 - Ministério Público do Estado de São Paulo

122

Revista de estudos CRiminais 55doutRina naCional

outubRo/dezembRo 2014

122

Nossa contribuição é empírica. Fizemos levantamentos das expressões usadas pelos ministros em seus votos de absolvição e condenação de modo a produzir dados que auxiliem o trabalho de identificação e comparação dos discursos adotados. A escolha pela análise dos votos proferidos pelos minis-tros durante as sessões públicas de julgamento tem duas razões. Primeiro, o julgamento da AP 470 constitui momento ímpar no histórico do direito (pe-nal) brasileiro após a Constituição de 1988, e cabe ao Supremo dar a última palavra sobre acontecimentos que impactaram toda a sociedade brasileira, bem como o Executivo e Legislativo. Segundo, porque entendemos que o dis-curso no direito penal deve legitimar os inputs do Judiciário em matéria cri-minal – e do legislador, dos estudiosos de direito penal, etc. e não de agências não jurídicas (Amaral, 2011:195). Mas devemos conhecer as contribuições das agências jurídicas antes de aceitá-las e buscar legitimá-las. Nesse sentido o presente estudo: é preciso compreender o discurso do Supremo naquele que é o processo criminal mais importante do Brasil desde 1988.

1 Metodologia Os votos proferidos pelos ministros durante as mais de 50 sessões de

julgamento da AP 470 não foram fielmente transcritos no acórdão publicado no início de 2013. Diversas supressões foram feitas. Tendo em vista nosso objetivo de identificar o discurso adotado pelos ministros, a versão bruta dos votos e debates trazidos ao Plenário entre agosto e dezembro de 2012 é muito mais apropriada como objeto de análise do que o acórdão meticulosamente revisado, editado e finalizado. Por esse motivo, nosso corpus de análise é uma transcrição feita em tempo real por jornalistas durante as sessões1. Esse ma-terial foi-nos entregue em um arquivo formato Excel com as falas de todos os participantes nas sessões – ministros e advogados – isoladas em células diferentes, de acordo com o réu sobre o qual era feita a manifestação.

No conjunto original de transcrições, havia ainda descrições de ações como “Joaquim Barbosa se levanta...”. Mas o processamento ficou restrito às falas dos ministros, que totalizaram 245.582 palavras. No pré-processamento,

1 A transcrição usada como base para nossas análise foi produzida pelos jornalistas do Jornal O Globo durante cobertura do julgamento da AP 470 realizada em parceria com os professores da FGV Direito Rio. O resultado do trabalho conjunto durante as sessões entre agosto e dezembro de 2012, do qual fez parte também o Jornal Folha de S. Paulo, encontra-se publicado em FALCÃO, Joaquim (Org.). Mensalão: diário de um julgamento. São Paulo: Elsevier, 2013. O jornal cedeu gentilmente a transcrição das sessões aos autores desse artigo para fins de produção acadêmica.

Page 123: 25 5 0 - Ministério Público do Estado de São Paulo

Doutrina nacionalrevista De estuDos criminais 55

outubro/Dezembro 2014

123123

as falas dos ministros foram também separadas para serem analisadas indi-vidualmente. Foi feita, então, a exclusão das células referentes aos votos e de-bates dos ministros sobre preliminares de mérito como o desmembramento. O número total final de palavras a analisar foi de 175.377.

Realizamos também trabalho manual de transferir trechos de votos alusivos a réus diferentes para novas células, de modo que nenhuma delas contivesse trecho de voto de condenação e de absolvição ao mesmo tempo. As células com votos de condenação foram marcadas para orientar o proces-samento programático do arquivo, produzindo os corpora de votos de conde-nação e votos de absolvição, bem como da totalidade de votos de cada minis-tro. Nessa etapa, foram utilizadas técnicas de processamento de linguagem natural, mais notadamente as chamadas de Mineração de Textos.

Mineração de Textos é o nome de um conjunto de técnicas para extra-ção de conhecimento útil e relevante de uma grande coleção de documentos. Com o desenvolvimento da Internet, 85% das informações estão armazena-das em forma de texto de forma que a análise automática de grandes coleções de documentos tem grandes aplicações em diversas áreas. A mineração de textos é feita normalmente em quatro grandes etapas: extração, pré-processa-mento, processamento e análise.

A extração consiste na obtenção do conteúdo junto às fontes monitora-das. O resultado desta etapa é a coleção de documentos para processamento pelo nexo. O pré-processamento dos textos é realizado para a identificação de personalidades, marcas e similares, além também da correção ortográfica no conteúdo. O resultado desta etapa é a coleção de documentos pré-processada e as estatísticas dos principais termos. O processamento é a etapa principal do processo em que os algoritmos vão processar a coleção de textos e produ-zir os resultados mencionados da análise. Nesta, por último, os resultados do processamento pelos algoritmos de mineração de textos são interpretados para a obtenção de conclusões úteis à alguma aplicação.

Os votos dos Ministros Joaquim Barbosa (Relator da AP 470) e Ricardo Lewandowski (Revisor) eram consideravelmente maiores do que os dos de-mais, motivo pelo qual em uma etapa preliminar produzimos informação so-bre a representatividade de cada um desses votos no todo. Isso porque, se os votos desses ministros representassem mais de 90% do total, seria questionável fazer análises do todo e não apenas desses votos. A partir do resultado (figura 3, a seguir), decidimos proceder à análise dos votos de todos os ministros.

O processo de mineração de texto identificou nos votos de condenação e absolvição as instâncias de palavras de cada categoria gramatical. Nesse

Page 124: 25 5 0 - Ministério Público do Estado de São Paulo

124

Revista de estudos CRiminais 55doutRina naCional

outubRo/dezembRo 2014

124

estudo, optamos por utilizar dados referentes apenas às seguintes classes sin-táticas: substantivos, verbos e adjetivos, além de analisarmos os sintagmas nominais. Entretanto, foram identificados também advérbios, preposições, numerais, etc.

Foram encontrados grandes números de ocorrências de tais elementos frasais. Em todos os votos de condenação, por exemplo, foram encontrados 36.985 substantivos (incluindo repetições). Já os votos de absolvição, somados, eram de extensão muito menor (menor quantidade de palavras) que os de con-denação. Dessa forma, nesses votos, foram encontrados 11.810 substantivos.

A partir daí, isolamos apenas os 50 elementos com maior número de ocorrências em cada categoria – os 50 verbos mais usados nos votos de con-denação, os 50 adjetivos mais usados nos votos de absolvição e assim por diante. Optamos por usar apenas os primeiros 50 elementos para viabilizar melhores comparações. A escolha não compromete as análises porque a fre-quência das expressões não se dá em uma distribuição normal (gaussiana). Muito pelo contrário: um número pequeno de expressões mais frequentes representa uma grande quantidade do total de expressões. Tomando por exemplo os substantivos nos votos de condenação: há 3.809 diferentes/úni-cos, mas, devido a repetições, o total geral é de 36.985. Os 50 substantivos com maior número de ocorrências somam 10.794 das 36.985 ocorrências.

Dado que o somatório de votos de absolvição era muito menor, utili-zamos, para efeitos de comparação, a porcentagem das ocorrências de cada expressão, substantivo, verbo ou adjetivo diferente no todo da respectiva ca-tegoria. Daí o porquê de os valores nos gráficos apresentados nos resultados ficarem na faixa de 0 a 5 – essa é a faixa de porcentagem de ocorrência das palavras mais comuns em cada categoria.

Nos grupos de 50 elementos mais frequentes em cada universo (votos de absolvição e de condenação), aproximamos aqueles que eram comuns e para estes calculamos o coeficiente de correlação (Pearson).

2 resultados

A Figura 1 mostra o resultado das estatísticas de palavras em geral e mostra o número de ocorrências da palavra. A palavra “crime” foi a mais citada pelos ministros durante o julgamento, com mais de 1.000 citações, seguida de “dinheiro”. As palavras mais citadas podem ser observadas na visualização chamada de “nuvem de palavras”, mostrada na Figura 2. É im-portante observar que no processamento dos textos nessa fase realizamos um agrupamento de palavras com o mesmo radical (lematização), de forma que “crime” e “crimes”, por exemplo, são tratadas como a mesma palavra.

Page 125: 25 5 0 - Ministério Público do Estado de São Paulo

Doutrina nacionalrevista De estuDos criminais 55

outubro/Dezembro 2014

125125

0

200

400

600

800

1000

1200

crim

e

dinheiro

réu

lavagem

banco

voto

fato

MarcosV

alério

valores

recursos

corrupção

BancoRural

prova

empréstim

os

partido

depoim

ento

empresa

pagamento

ministro

financeiro

relator

DelúbioSoares

prática

caso

form

a

denúncia

agência

operações

contrato

delito

Figura 1

Figura 1

Figura 2

Figura 2

Page 126: 25 5 0 - Ministério Público do Estado de São Paulo

126

Revista de estudos CRiminais 55doutRina naCional

outubRo/dezembRo 2014

126

A separação das palavras nos votos de cada ministro levou à distribui-ção das falas mostrada na Figura 3. Ela mostra a contribuição dos votos de absolvição de cada ministro para o total de palavras de votos de absolvição, bem como a contribuição dos votos de condenação de cada ministro para o total de palavras de votos de condenação:

Figura 3

Figura 3

Os votos de condenação do Ministro Joaquim Barbosa correspondem a 40% do total. Já os votos de absolvição do Ministro Ricardo Lewandowski alcan-çam 60% do todo. Todos os demais ministros ficaram abaixo de 10% em ambas categorias. Consideramos essa representatividade alta, mas não tão alta a frus-trar a validade dos dados sobre os agregados de condenação ou absolvição.

Page 127: 25 5 0 - Ministério Público do Estado de São Paulo

Doutrina nacionalrevista De estuDos criminais 55

outubro/Dezembro 2014

127127

A Figura 4 mostra a comparação de ocorrências de verbos em votos de condenação e absolvição. Para aqueles que são comuns em ambos tipos de votos, o coeficiente de correlação é 0.94.

Figura 4

Figura 4

Page 128: 25 5 0 - Ministério Público do Estado de São Paulo

128

Revista de estudos CRiminais 55doutRina naCional

outubRo/dezembRo 2014

128

A Figura 5 mostra os adjetivos. O coeficiente de correlação aqui é 0.85.

Figura 5

Figura 5

Page 129: 25 5 0 - Ministério Público do Estado de São Paulo

Doutrina nacionalrevista De estuDos criminais 55

outubro/Dezembro 2014

129129

A Figura 6 apresenta os dados sobre os substantivos simples. Aqui o coeficiente de correlação é 0.77.

Figura 6

Figura 6

Page 130: 25 5 0 - Ministério Público do Estado de São Paulo

130

Revista de estudos CRiminais 55doutRina naCional

outubRo/dezembRo 2014

130

Por fim, a Figura 7 traz os dados referentes às expressões. Naquelas expressões que aparecem em ambos universos, o coeficiente de correlação é de 0.34.

Figura 7

Figura 7

Page 131: 25 5 0 - Ministério Público do Estado de São Paulo

Doutrina nacionalrevista De estuDos criminais 55

outubro/Dezembro 2014

131131

3 discussão dos resultados

Há significativo overlap nos discursos dos votos de condenação e absol-vição. Nas quatro categorias de palavras analisadas, boa parte aparecia com frequência muito parecida em ambos os tipos de voto. Mesmo aquelas pala-vras que apareciam somente nos votos de absolvição não necessariamente estão ausentes de todo nos votos de condenação. Em função de nossa escolha pelas 50 palavras mais frequentes em cada universo, é possível, por exemplo, que um termo como “recursos” (que no gráfico aparece apenas nos votos de condenação) seja a 51ª ou a 100ª palavra mais frequente nos votos de absol-vição.

Outro indício forte da similaridade entre os discursos empregados é o coeficiente de correlação. Em todos os casos, ele é positivo. Isso significa que, quanto mais uma palavra é usada em votos de absolvição, mais ela é usada também em condenações – e vice-versa.

Ele é altíssimo no caso dos verbos (0.94), mas isso é esperado quando se computam apenas os 50 verbos mais frequentes. Todas aquelas conjugações que são comuns aos votos de condenação e absolvição poderiam ser empre-gadas em qualquer tipo de texto, inclusive não jurídico. Trata-se de conju-gações dos verbos “ser” e “ir”, por exemplo. A única exceção é “acusado”, empregado em condenações e absolvições em frases como “foi acusado de receber quantias indevidas” ou “é acusado pelo Ministério Público de ofere-cer valores”.

No caso dos adjetivos, a correlação é igualmente alta (0.85). Nessa ca-tegoria, no entanto, não se trata de adjetivos comuns a qualquer tipo de dis-curso, mas sim ao direito penal. Os tipos mais comuns aparecem tanto na condenação quanto na absolvição (exemplos: “penal”, “passiva”, “crimino-sa” e “financeiro”). Mesmo no caso de adjetivos cuja frequência nas absolvi-ções e condenações é claramente diferente, tal diferença não é significativa. Tomando-se o exemplo de “financeira”, a frequência em condenações é o dobro daquela das absolvições. Mas trata-se de 0.6% dos adjetivos usados em absolvições e 1.2% daqueles empregados em condenações. “Político” e “importante” acompanham “financeira” com as maiores diferenças propor-cionais – virtualmente o dobro da frequência em condenações. Mas mesmo assim, trata-se de intervalos de menos de 0.5%.

Nos substantivos, a similaridade é menor que em verbos e adjetivos. Nessa categoria, o coeficiente é de 0.77. “Lavagem”, “crime” e “dinheiro” são os termos com frequência mais alta tanto nas condenações quanto nas absolvições. “Réu” é duas vezes mais frequente em absolvições que em con-

Page 132: 25 5 0 - Ministério Público do Estado de São Paulo

132

Revista de estudos CRiminais 55doutRina naCional

outubRo/dezembRo 2014

132

denações. Com “recursos” ocorre a situação inversa. “Lavagem” e “crime” ocorrem com muito maior frequência em absolvições, ao passo que “emprés-timos” e “valores” são mais significativos em condenações.

O exame dos substantivos empregados parece mostrar indício de que o discurso de condenação deu mais valor a aspectos específicos das condutas imputadas e discutidas na AP 470, com “operações”, “partido”, “agência”, “parlamentares”, “pagamento”, “núcleo”, “empresas”, “governo”, “emprés-timo”, aparecendo entre os mais frequentes apenas nas condenações.

Nas absolvições, por outro lado, a ênfase parece ter sido em aspectos abstratos das garantias processuais e constitucionais. Trata-se de substan-tivos que apareceriam em uma decisão judicial sobre qualquer tipo penal: “dolo”, “participação”, “sentido”, “juízo”, “lei”, “imputação” e “conduta”. Esses substantivos estão entre os 50 mais frequentes apenas nos voto de ab-solvição.

Por fim, as expressões – contagem que agrupa termos compostos, in-clusive nomes próprios – mostram uma discrepância ainda maior que na ca-tegoria de substantivos. Aqui o coeficiente de correlação é o menor de todos: 0.34. Também há menor número de expressões comuns à absolvição e conde-nação que no caso dos verbos. “Réu” aparece em quase 0.8% das instâncias em absolvições (e em apenas 0.3% delas nas condenações). “Marcos Valério” tem a maior frequência das expressões em votos de condenação: 0.6%. Em absolvições, apenas metade dessa frequência.

“Réu”, “denúncia”, “senhor presidente”, “voto”, “réus” e “juízo” são ocorrências comuns, porém com predominância nas absolvições. Já “smp” (menções à Empresa SMP&B, ligada às acusações no processo), “dinheiro”, “Marcos Valério”, “Delúbio” e “Banco Rural” aparecem mais nas condena-ções. Novamente os votos de condenação parecem focar-se ligeiramente mais que os de absolvição em características específicas da AP 470.

Essa diferença, entretanto, não fica clara quando se analisam as ex-pressões mais frequentes que não são comuns aos dois tipos de votos. As condenações empregam bastantes termos como “recursos”, “pagamentos”, “operações”, “parlamentares” e “empréstimo”, mas também nas absolvições aparecem com frequência “serviços”, “saques” e “peculato”.

O uso de nomes próprios produz claras separações. Delúbio Soares e José Dirceu são citados em absolvições e condenações com virtualmente a mesma frequência. Marcos Valério também aparece muito em ambos os ti-pos de voto, porém claramente mais (mais do que o dobro da frequência) em

Page 133: 25 5 0 - Ministério Público do Estado de São Paulo

Doutrina nacionalrevista De estuDos criminais 55

outubro/Dezembro 2014

133133

condenações. Somente esses três são muito mencionados dos dois lados. As condenações mencionam Valdemar Costa Neto, Roberto Jefferson e Simo-ne Vasconcelos. Já as absolvições focam João Paulo Cunha, Ayanna Tenório, Romeu Queiroz e Anderson Adauto. Todas essas pessoas figuraram como réus no processo. Entendemos que a grande frequência do emprego de seus nomes nos votos é explicada pela longa extensão dos votos sobre tais réus e não em razão de os discursos de absolvição e condenação optarem por ele-var tais indivíduos à condição de protagonistas. A possível exceção é Marcos Valério, sempre apontado como pivô de diversas das condutas imputadas aos réus.

conclusão

O objetivo principal deste trabalho foi chamar a atenção e dar visibi-lidade a metodologias empíricas quantitativas com base em corpos de texto de grande tamanho, como é o caso de tantos documentos importantes para o direito penal e para a criminologia. Independentemente dos resultados e conclusões do artigo, resta claro que esse foi um mero primeiro passo, cujos óbvios limites apenas sublinham a urgência de mais estudos empíricos no direito penal brasileiro – sobretudo aqueles com base em análise textual. Pes-quisas mais elaboradas (inclusive com essa mesma base de dados das trans-crições) poderiam incluir modelos de regressão simples ou multivariada de modo a avançar na possibilidade de inferências a partir desses dados.

A análise de cunho estatístico-descritiva simples feita sobre a trans-crição dos votos e debates dos ministros do Supremo Tribunal Federal nas sessões de julgamento da AP 470 não produziu resultados definitivos ou con-clusivos sobre diferenças de discursos empregados. Os indícios, entretanto, permitem duas possíveis conclusões.

A primeira é da inexistência de um claro viés populista, emergencial ou criminalizador nos votos de condenação como um todo. As expressões, substantivos e verbos mais frequentes nesses votos denotam aquilo que pode ser lido como uma preocupação com os fatos, elementos e provas específicos da AP 470. Não há os mesmos indícios em relação aos votos de absolvição.

A segunda e mais importante conclusão dessa pesquisa é que a pe-quena variação na escolha e frequência de uso de expressões, substantivos, verbos e adjetivos aponta para uma grande similaridade entre os discursos empregado nos votos de absolvição e condenação.

Essas conclusões são tomadas, reitera-se, com base em indícios produ-zidos pela análise quantitativa. Tal método de pesquisa na investigação de

Page 134: 25 5 0 - Ministério Público do Estado de São Paulo

134

Revista de estudos CRiminais 55doutRina naCional

outubRo/dezembRo 2014

134

discursos usados no direito penal tem papel essencial, pois permite análises de enorme quantidade de textos, mas não viabiliza uma resposta conclusiva para o problema proposto. O mesmo pode-se afirmar de métodos qualitati-vos: são essenciais para levantar características detalhadas de objetos isola-dos – porém tampouco são suficientes por si sós na análise dos discursos. A complementaridade de ambos resta clara, até porque os métodos quantita-tivos e qualitativos têm mais elementos em comum que diferenças (Becker, 2014:186). Nesse sentido, o presente estudo tem por objetivo contribuir para – e não executar sozinho – a identificação e descrição dos discursos empregados pelos atores do direito penal brasileiro.

referÊnciasAMARAL, Augusto Jobim do. Discurso penal e política da prova: nos limites da

governabilidade inquisitiva do processo penal brasileiro contemporâneo. Tese de Doutorado. Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 2011. Disponível em: <https://estudogeral.sib.uc.pt/handle/10316/20164>. Acesso em: 30 mar. 2013.

BECKER, Howard. A epistemologia da pesquisa qualitativa. Revista de Estudos Empíricos em Direito, v. 1, n. 2, jul, 2014.

CARVALHO, Salo de. Considerações sobre o discurso das reformas processuais penais. A criminalista. 2007. Disponível em: <http://www.ihj.org.br/poa/professores/Professores_01.pdf>. Acesso em: 7 jul. 2013.

FALCÃO, Joaquim (Org.). Mensalão: diário de um julgamento. São Paulo: Elsevier, 2013.FOUCAULT, Michel. The order of discourse. In: YOUNG, Robert (Org.). Untying the text:

a post-structuralist reader. Boston: Routledge & Kegan Paul, 1981.KROHLING, Aloísio; BOLDT, Raphael. Entre cidadãos e inimigos: o discurso

criminalizante da mídia e a expansão do direito penal como instrumento de consolidação da subcidadania. Revista Direitos Fundamentais e Democracia, v. 4, 2008.

MARTINS, Rui Cunha. A hora dos cadáveres adiados: corrupção, expectativa e processo penal. São Paulo: Atlas, 2014.

MOTA, Guilherme Gustavo Vasques. A influência do discurso criminal da mídia no sistema penal e decorrentes violações ao estado democrático de direito. Anais do XV Congresso Nacional do Conpedi, Manaus. 2006.

SAAVEDRA, Giovani A.; SOBOTTKA, Emil A. Discursos filosóficos do reconhecimento. Civitas, v. 9, n. 3. set./dez. 2009.

ZAFFARONI, Eugenio Raúl. La creciente legislación penal y los discursos de emergencia. In: Teorías actuales en el derecho penal. Buenos Aires: Editorial Ad-Hoc, 1998.

Page 135: 25 5 0 - Ministério Público do Estado de São Paulo

135

a doutrina da cegueira deliBerada na lavageM de dinHeiro: aProfundaMento

dogMático e iMPlicaçÕes Práticasluiza Farias martins*

* Especializanda em Direito Penal Empresarial pela PUC/RS. Graduada em Direito pela PUC/RS.

RESUMO: O presente artigo analisa a incidência da doutrina da ce-gueira deliberada, ou willful blindness doctrine, no direito penal brasi-leiro, especificamente no delito de lavagem de capitais, previsto no art. 1º da Lei nº 12.683/2012. Para além das questões teóricas, é feita uma abordagem no caso concreto, tendo por base o furto ao Banco Central em Fortaleza/CE.PALAVRAS-CHAVE: Lavagem de dinheiro; dolo eventual; ceguei-ra deliberada.SUMÁRIO: Introdução; 1 Doutrina da cegueira deliberada: introdu-ção e aspectos relevantes; 1.1 A doutrina da cegueira deliberada no direito comparado: Estados Unidos e Espanha; 1.2 A aplicação da doutrina da cegueira deliberada no Direito brasileiro: lavagem de capitais; 2 Análise do caso do furto ao Banco Central do Brasil em Fortaleza; 2.1 Análise crítica; Considerações finais; Referências.

introdução

A construção doutrinária conhecida por cegueira deliberada originou--se no século XIX, com destaque inicialmente na Inglaterra e nos Estados Unidos. Desde então, o tema vem ganhando espaço na doutrina jurídica, uma vez que, com o fenômeno da globalização, a complexidade da prática de crimes aumentou, impondo-se a necessidade de evoluir suas formas de pre-venção. É neste contexto que se entrelaçam o crime de lavagem de dinheiro e a teoria da cegueira deliberada.

No Brasil, a teoria vem ganhando mais espaço desde julho de 2012, com a edição da Lei nº 9.683/2012, que, alterando algumas das disposições

Page 136: 25 5 0 - Ministério Público do Estado de São Paulo

136

Revista de estudos CRiminais 55doutRina naCional

outubRo/dezembRo 2014

136

da antiga Lei nº 9.613/1998, buscou aumentar a prevenção eficaz dos crimes financeiros. Diante do evidente aumento da prática de lavagem de ativos, este se tornou um dos principais campos de aplicação da referida doutrina, a partir da possibilidade de responsabilização dos agentes por meio do dolo eventual.

Nesse contexto surgem muitos questionamentos, tendo em vista a falta de uniformidade na aplicação dessa construção doutrinária. Assim, o trabalho analisa a compatibilidade da doutrina da cegueira deliberada com a legislação penal brasileira, especificamente quanto ao delito de lavagem de dinheiro previsto na Lei nº 9.683/2012. Partindo do pressuposto de que os fundamentos da willful blindness são compatíveis com a legislação sugeri-da, o artigo aborda de que maneira se opera a sua aplicação na lavagem de capitais. Para além do estudo de caso, por meio de revisão bibliográfica e jurisprudencial, busca-se contextualizar a doutrina, bem como analisar a sua incidência no direito comparado e ressaltar os requisitos para sua utilização, com a finalidade de compreender os efeitos da importação da cegueira deli-berada no cenário brasileiro do delito da lavagem de dinheiro.

1 doutrina da cegueira deliBerada: introdução e asPectos relevantes

A doutrina da cegueira deliberada é uma construção doutrinária que se originou nos países de common law. O primeiro precedente que se teve notícia é o caso Regina vs. Sleep1, julgado em 1861, na Inglaterra. A partir de então, surgiram diversos julgados no mesmo sentido, de forma que, antes do final do século XIX, já estava assentada no direito inglês a possibilidade de equiparação entre a cegueira deliberada e o conhecimento de fato, para fins de responsabilização penal2. Mais tarde, a doutrina chegou aos Estados Unidos, onde rapidamente se desenvolveu.

Em seguida, passou a ser incorporada a outros ordenamentos jurídi-cos, tornando-se importante ponto de discussão quando o tema relaciona-se ao dolo eventual. Mais tarde, ainda nos Estados Unidos, recebeu destaque por ser reiteradamente aplicada nos casos de tráfico de drogas e de lava-

1 O caso envolve a malversação de bens e a prova de que o agente sabia que eram de origem pública. Embora com pouca clareza, é possível afirmar que se equiparou a abstenção intencional do conhecimento ao efetivo conhecimento (VALLES, Ramon Ragues. La ignorancia deliberada en derecho penal. Barcelona: Atelier, 2007. p. 65).

2 VALLES, Ramon Ragues. La ignorancia deliberada en derecho penal. Barcelona: Atelier, 2007.

Page 137: 25 5 0 - Ministério Público do Estado de São Paulo

Doutrina nacionalrevista De estuDos criminais 55

outubro/Dezembro 2014

137137

gem de dinheiro3. A título exemplificativo: United States vs. Lally, 257 F.ed 751 (8th Cir.2001); United States vs. Rivera-Rodriguez, 318 F.3d 268 (1st Cir.2003) e United States vs. Wert-Ruiz, 228 F.3d 250, 258 (3d Cir2000). Da mesma forma se deu na Espanha, ainda que com menos intensidade e enfrentando severas críticas, a ignorancia deliberada tornou-se solução para diversos casos, princi-palmente aqueles julgados pela Sala Segunda.

Também conhecida como evitação da consciência, willful blindness, conscious avoidance, ostrich instructions (EUA) ou ainda ignorancia deliberada (Espanha), a doutrina funda-se na responsabilização do agente, que, poden-do aprofundar seu conhecimento sobre determinados fatos, prefere manter--se “cego” – daí a nomenclatura – diante daquilo que poderá prejudicá-lo. É o que afirma Marcelo Cavali4, quando refere que a cegueira deliberada tem como pressuposto o fato de o réu “fechar” deliberadamente os olhos para uma prática visivelmente criminosa.

Para a condenação por meio de seus fundamentos, adota-se a premis-sa de que o grau de culpabilidade de quem conhece o fato não é inferior ao do agente que, podendo e devendo conhecer, prefere não fazê-lo5. Assim, pune-se de igual forma aquele que tem pleno conhecimento dos fatos e o sujeito que se coloca em situação de desconhecimento. Salienta Francis Beck que há uma duvidosa inversão na ordem de importância daquilo que deve-rá ser valorado, uma vez que é priorizado o que o sujeito não sabe, ou seja, conhecimentos potencialmente alcançáveis, ao invés daquilo que o autor tem conhecimento6.

3 “Na jurisprudência norte-americana, a doutrina da cegueira deliberada tem sido reconhecida como substituta do conhecimento há aproximadamente um século. Inicialmente, entretanto, os julgadores hesitavam em aplicar a doutrina e a maioria das decisões que se basearam nela pouco usaram seus fundamentos. Durante os anos 70, a moderna doutrina da cegueira deliberada cresceu como resultado de inúmeros processos federais de narcóticos.” (VON KAENEL, Frans J. Willful blindness: a permissible substitute for actual knowledge under the money laundering control act? Disponível em: <http://digitalcommons.law.wustl.edu/lawreview/vol71/iss4/17/>. Acesso em: 24 mar. 2013 – tradução nossa)

4 CAVALI, Marcelo. De olhos bem fechados. Revista Via Legal, a. I, n. III, p. 10, set./dez. 2008.

5 BECK, Francis R. A doutrina da cegueira deliberada e sua (in)aplicabilidade ao crime de lavagem de dinheiro. Revista de Estudos Criminais, Porto Alegre: Notadez, n. 41, p. 63, 2011.

6 BECK, Francis R. a doutrina da cegueira deliberada e sua (in)aplicabilidade ao crime de lavagem de dinheiro. Revista de Estudos Criminais, Porto Alegre: Notadez, n. 41, p. 48, 2011.

Page 138: 25 5 0 - Ministério Público do Estado de São Paulo

138

Revista de estudos CRiminais 55doutRina naCional

outubRo/dezembRo 2014

138

É necessário questionar a desproporcionalidade que decorre da apli-cação da doutrina, uma vez que a responsabilização por condutas distintas – ação e omissão – será a mesma. Sobre o princípio da proporcionalidade, Heloisa Estellita bem evidencia que ele “demanda a existência de uma rela-ção de proporcionalidade entre a gravidade da sanção (pena), a importância (constitucional) do bem jurídico-penal tutelado e a gravidade do ataque des-ferido contra tal bem”7. A teoria da cegueira deliberada quebra essa tripla relação, na medida em que não há de fato um “ataque” ao bem. Assim, a questão de punir, na mesma intensidade, duas condutas claramente distintas quanto ao dolo de agir deve ser muito bem analisada para que se preserve o princípio da proporcionalidade.

Sobre a intenção do agente, Renato de Mello Jorge Silveira entende que, em sendo aplicada a willful blindness, há um dever de análise do aspecto subjetivo, a fim de apreciar o que seria ou não razoável saber diante de cir-cunstâncias específicas:

Em outras palavras, o intuito indiscutível da teoria da cegueira deliberada seria o de punir aquele que deliberadamente se coloca em situação de ig-norância, sabendo, no entanto, da possibilidade decorrencial desse estado. Se a construção exige que o autor com consciência atual da existência de um fato concreto, exige-se, também, uma análise do aspecto subjetivo de acordo com o que venha a ser razoável no caso concreto.8

Para Gustavo Henrique Badaró e Pierpaolo Cruz Bottini, a cegueira de-liberada situa-se “onde o agente sabe possível a prática de ilícitos no âmbito em que atua e cria mecanismos que o impedem de aperfeiçoar sua represen-tação dos fatos”. Os autores mencionam o exemplo dos doleiros, que rece-bem em pagamento dinheiro eventualmente oriundo de práticas criminosas, mas optam por não tomar conhecimento da origem desses valores9.

7 ESTELLITA, H. Direito penal, constituição e princípio da proporcionalidade. In: Boletim IBCCrim, São Paulo, v. especial, p. 11-13, 2003.

8 SILVEIRA, R. M. J. Cegueira deliberada e lavagem de dinheiro. In: Boletim IBCCrim, São Paulo: IBCCrim, a. 21, n. 246, p. 3, maio 2013.

9 BADARO, Gustavo Henrique; BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Lavagem de dinheiro: aspectos penais e processuais penais: comentários à Lei nº 9.613/1998, com alterações da Lei nº 12.683/2012. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012. p. 90.

Page 139: 25 5 0 - Ministério Público do Estado de São Paulo

Doutrina nacionalrevista De estuDos criminais 55

outubro/Dezembro 2014

139139

Dessa forma, o agente será responsabilizado por aquilo que evitou co-nhecer, seja por meio de ações ou de omissões10. É o caso do agente que se mantém inerte frente às circunstâncias do fato, e nesta inércia configura-se o dolo eventual. Já o dolo direto não é flexível, faz-se necessária plena consciên-cia dos atos praticados para que se caracterize a “vontade realizadora do tipo objetivo”.

Com natureza de construção doutrinária, a willfull blindness somente pode ser aplicada quando cabível a responsabilização penal baseada na in-diferença do autor ao perpetrar determinada conduta, ou seja, a título de dolo eventual. Frise-se que isso não significa que a doutrina equivale ao dolo eventual, apesar da linha tênue que as separa, mas sim que é por meio da pre-visão normativa deste instituto que surge uma possibilidade para condena-ções fundamentadas na doutrina da evitação da consciência. Neste sentido, a aplicação da doutrina deve se adequar a cada ordenamento jurídico, pois o tipo legal deve admitir a punição por meio de dolo eventual para que se possa pensar na aplicação da teoria11.

No ponto, há uma grande discussão a respeito da classificação da dou-trina, havendo autores que a enquadram como uma forma de imputação sub-jetiva que, embora possua aspectos similares aos do dolo eventual, caracte-riza-se como uma figura alternativa, e outros que defendam a equivalência entre dolo eventual e cegueira deliberada.

Especificamente sobre a lavagem de dinheiro, Pierpaolo Cruz Bottini e Gustavo Henrique Badaró, embora entendam que não cabe o dolo eventual no delito em questão, mencionam que, para equiparar a construção doutri-nária e o dolo eventual, é necessário que se criem barreiras conscientes e vo-luntárias que evitem o conhecimento sobre a proveniência ilícita dos bens ou valores, e que o agente represente a possibilidade de a evitação recair sobre a

10 “Em outras palavras, a doutrina justifica a responsabilização criminal nos casos em que o indivíduo se coloca deliberadamente em uma situação de desconhecimento acerca de determinado fato, já antecipadamente visando a furtar-se de eventuais consequências futuras da sua conduta na esfera penal.” (BECK, Francis R. A doutrina da cegueira deliberada e sua (in)aplicabilidade ao crime de lavagem de dinheiro. Revista de Estudos Criminais, Porto Alegre: Notadez, n. 41, p. 46, 2011)

11 BECK, Francis R. A doutrina da cegueira deliberada e sua (in)aplicabilidade ao crime de lavagem de dinheiro. Revista de Estudos Criminais, Porto Alegre: Notadez, n. 56, p. 63, 2011.

Page 140: 25 5 0 - Ministério Público do Estado de São Paulo

140

Revista de estudos CRiminais 55doutRina naCional

outubRo/dezembRo 2014

140

lavagem de dinheiro12. Nessa linha de entendimento, Sergio Moro refere que “tais construções em torno da cegueira deliberada assemelham-se, de certa forma, ao dolo eventual da legislação e doutrina brasileira13”.

A discussão sobre a cegueira deliberada é recorrente no direito compa-rado, mormente nos Estados Unidos e na Espanha. No Direito espanhol, há bastante divergência sobre o tema, ainda que o entendimento predominante seja no sentido de a doutrina revelar uma nova forma de imputação subje-tiva, vinculando-se ao dolo eventual unicamente para efeitos punitivos, em alguns casos se entendeu pela equiparação entre a cegueira deliberada e o dolo eventual: “En algunas de estas resoluciones, como la STS de 19 de enero de 2005, la ignorancia deliberada ha pasado a convertirse en un auténtico sustitutivo del dolo eventual”14.

Ainda, ressalta-se a importância da distinção entre o dolo eventual e a culpa consciente, pois, conforme se tem visto, a lacuna que torna possível a utilização da cegueira deliberada refere-se exclusivamente ao dolo eventual, tendo em vista a necessidade de assunção do risco para sua caracterização. Ocorre que, em ambas as figuras, o sujeito representa a possibilidade de pro-dução do resultado, porém, na culpa consciente, o faz acreditando que não ocorrerá, e, no dolo eventual, o sujeito aceita a possibilidade de que o resulta-do ocorra15. Sobre o limite entre os institutos, Paulo José da Costa Júnior res-salta que o dolo eventual exige o consentimento por parte do agente, ou, pelo menos, sua indiferença, enquanto que, na culpa consciente, não há qualquer tipo de adesão, mas, sim, um erro de cálculo16.

Em que pesem as semelhanças apontadas entre as figuras, os funda-mentos da culpa consciente não são compatíveis com a cegueira deliberada, e é exatamente no ponto em que a culpa se diferencia do dolo eventual que sur-ge a brecha para a construção doutrinária entrar em cena. Gustavo Henrique

12 BADARO, Gustavo Henrique; BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Lavagem de dinheiro: aspectos penais e processuais penais: comentários à Lei nº 9.613/1998, com alterações da Lei nº 12.683/2012. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012. p. 98.

13 MORO, Sergio Fernando. Crime de lavagem de dinheiro. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 69.

14 “Em algumas destas resoluções, como a STS de 19 de janeiro de 2005, a ignorância deliberada passou a ser um autêntico substitutivo do dolo eventual.” (VALLES, Ramon Ragues. La ignorancia deliberada en derecho penal. Barcelona: Atelier, 2007 – tradução nossa)

15 ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro: parte geral. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. p. 438.

16 COSTA JÚNIOR, Paulo José da. Direito penal: curso completo. São Paulo: Saraiva, p. 83.

Page 141: 25 5 0 - Ministério Público do Estado de São Paulo

Doutrina nacionalrevista De estuDos criminais 55

outubro/Dezembro 2014

141141

Badaró e Pierpaolo Cruz Bottini fazem essa diferenciação, especificamente com relação às condutas perpetradas na lavagem de dinheiro:

Cumpre distinguir dolo eventual da culpa consciente. Em ambos, o agente é consciente dos elementos que apontam a possível ilicitude da proveniência dos bens. No dolo eventual, ele atua assumindo o risco do resultado. Essa possibilidade, embora não desejada, é parte de seu plano. Na culpa cons-ciente, o agente percebe a estranheza que circunda a origem do bem, mas tem certeza ou segurança de que, apesar disso, eles são lícitos e que qualquer suspeita é improcedente, seja porque confia naquele que lhe entrega os va-lores, seja porque acredita na sua capacidade de percepção da realidade além do comum.17

Diante do exposto, é possível concluir que é pressuposto para a inci-dência da cegueira deliberada a possibilidade de punição do delito a título de dolo eventual. Certo é que, diante da falta de regulamentação específica sobre a adequação da doutrina, tem-se estipulado requisitos e limites, bus-cando a aproximação de um conceito universal que permita delinear as hi-póteses concretas de introdução da doutrina da evitação da consciência no direito penal, conforme será explorado em ponto pertinente.

1.1 a doutrina da cegueira deliberada no direito comparado: estados unidos e espanha

Conforme referido, a construção doutrinária conhecida por cegueira deliberada surgiu de forma inovadora, como uma alternativa para as lacunas deixadas pelas leis no que tange ao dolo eventual em determinados crimes, não se restringindo apenas à lavagem de capitais. Note-se que, em meados do século XIX, as Cortes inglesas já haviam assentado a equiparação entre o conhecimento propriamente dito e a willful blindness, de modo que, a partir do primeiro precedente18, a doutrina se difundiu pela Inglaterra, e mais tar-de chegou a países como Estados Unidos, Canadá, Irlanda, Austrália, entre outros19.

17 BADARO, Gustavo Henrique; BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Lavagem de dinheiro: aspectos penais e processuais penais: comentários à Lei nº 9.613/1998, com alterações da Lei nº 12.683/2012. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012. p. 95.

18 Regina vs. Sleep.

19 DE CARLI, Carla Veríssimo (Org.). Lavagem de dinheiro: prevenção e controle penal. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2011. p. 237.

Page 142: 25 5 0 - Ministério Público do Estado de São Paulo

142

Revista de estudos CRiminais 55doutRina naCional

outubRo/dezembRo 2014

142

Para além do direito inglês, a doutrina ganhou espaço nos direitos es-panhol e norte-americano a partir do século XX, conforme esclarece Frans J. Von Kaenel20: “During the 1970s, the modern doctrine of willful blindness emerged as a result of federal narcotics prosecutions”. No mesmo sentido, Sergio Moro refere que a doutrina passou a ser utilizada a partir da década de 70, princi-palmente em casos de tráfico de drogas, em que o acusado negava ter conhe-cimento da natureza da droga que transportava21.

Nesse sentido, os primeiros precedentes americanos nos quais a dou-trina foi utilizada como fundamento para a condenação são relativos ao trá-fico de drogas22. A construção, porém, foi ganhando força e estendeu sua aplicação a outros delitos, como a lavagem de dinheiro. O leading case, no que tange à lavagem de capitais, é o caso United States vs. Campbell23, no qual uma agente imobiliária foi condenada ao fazer negócio com um traficante de drogas. Sobre o caso, sintetiza Francis Beck:

Campbell, uma corretora de imóveis, foi acusada de lavagem de dinheiro por intermediar a aquisição de um imóvel por Lawing, traficante de drogas que se apresentara como um empresário. [...] Assim, houve a aquisição de um bem de US$ 182.000,00, tendo o traficante feito – com o conhecimento da corretora – o pagamento de US$ 60.000,00 “por fora”, em pequenos pa-cotes, e escriturado o bem pela diferença.24

A referida decisão condenatória salienta que a doutrina da cegueira de-liberada flexibiliza algumas regras, de forma que a necessidade do agente ter conhecimento acerca dos fatos pode, eventualmente, ser substituída pela tese de que a opção de fechar os olhos para determinada situação é o que indica algum conhecimento sobre os fatos.

20 “Durante os anos 70, a moderna doutrina da cegueira deliberada apareceu como resultado dos processos federais envolvendo narcóticos.” (VON KAENEL, Frans J. Willful blindness: a permissible substitute for actual knowledge under the money laundering control act? Disponível em: <http://digitalcommons.law.wustl.edu/lawreview/vol71/iss4/17/>. Acesso em: 09 mar. 2013 – tradução nossa)

21 MORO, Sergio Fernando. Crime de lavagem de dinheiro. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 63.

22 United States vs. Jewell, 532 f.2D 697 (1976)]. Disponível em: <http://www1.law.umkc.edu/suni/CrimLaw/calendar/Class_19_2001_Jewell.htm>. Acesso em: 12 mar. 2013.

23 Disponível em: <https://bulk.resource.org/courts.gov/c/F2/977/977.F2d.854.91-5695.html>. Acesso em: 10 mar. 2013.

24 BECK, Francis R. A doutrina da cegueira deliberada e sua (in)aplicabilidade ao crime de lavagem de dinheiro. Revista de Estudos Criminais, Porto Alegre: Notadez, n. 41, p. 51, 2011.

Page 143: 25 5 0 - Ministério Público do Estado de São Paulo

Doutrina nacionalrevista De estuDos criminais 55

outubro/Dezembro 2014

143143

No referido caso, as instruções fornecidas ao júri foram no sentido de que a existência de um deliberado fechar de olhos por parte da agente não deveria ser demonstrada apenas pela negligência, mas sim por meio de pro-va razoável de que a acusada evitou descobrir todos os fatos25. Campbell foi condenada pelo júri e a decisão foi mantida em apelação ao 4º Circuito, sob a alegação de que não fora necessária prova de que a acusada tinha o propósito de lavar o dinheiro, sendo suficiente a demonstração do conhecimento por parte de Campbell do propósito do comprador – traficante – de repassar os valores26.

Nesse mesmo sentido, existem inúmeros precedentes27, e, tendo em vista que a legislação americana não é explícita quanto ao dolo eventual28, a doutrina e a jurisprudência encarregaram-se de implementar a utilização da willful blindness. Porém, em que pese a lacuna na legislação, tem-se entendido que o chamado Model Penal Code, texto proposto como padrão para as leis penais pelo American Law Institute, reconhece os fundamentos da cegueira deliberada, quando, no ponto dos requisitos da culpabilidade, refere: “Requi-rement of Knowledge Satisfied by Knowledge of High Probability”29.

Por conseguinte, ainda que o Model Penal Code não seja diretamente aplicável, a sua proposta da seção 2.02.7 influenciou significativamente as le-gislações de quase 30 Estados da União30. No que tange à aplicação da doutri-na, as Cortes norte-americanas têm equiparado o conhecimento à ignorância deliberada, atribuindo a ambos a mesma forma de culpabilidade, desde que

25 MORO, Sergio Fernando. Crime de lavagem de dinheiro. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 64.

26 MORO, Sergio Fernando. Crime de lavagem de dinheiro. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 64.

27 United States v. Rivera Rodriguez, 318 F.3d 268 (1st Cir.2003); United States v. Nektalov, 461 F.3d 309 (2nd Cir. 2006); United States v. Flores, 454 F.3d 149 (3rd Cir. 2006); United States v. Giraldi, 86 F.3d 1368 (5th Cir. 1996); United States v. Bornfield, 145 F.3d 1123 (10th Cir. 2001).

28 United States v. Rivera Rodriguez, 318 F.3d 268 (1st Cir.2003); United States v. Nektalov, 461 F.3d 309 (2nd Cir. 2006); United States v. Flores, 454 F.3d 149 (3rd Cir. 2006); United States v. Giraldi, 86 F.3d 1368 (5th Cir. 1996); United States v. Bornfield, 145 F.3d 1123 (10th Cir. 2001).

29 “A necessidade de conhecimento se satisfaz pelo conhecimento da grande probabilidade.” (Model Penal Code § 2.02(7). Disponível em: <http://www1.law.umkc.edu/suni/CrimLaw/MPC_Provisions/model_penal_code_default_rules.htm>. Acesso em: 09 mar. 2013 – tradução nossa)

30 VALLES, Ramon Ragues. La ignorancia deliberada en derecho penal. Barcelona: Atelier, 2007.

Page 144: 25 5 0 - Ministério Público do Estado de São Paulo

144

Revista de estudos CRiminais 55doutRina naCional

outubRo/dezembRo 2014

144

concorram alguns requisitos. Sergio Moro explica que a doutrina tem sido aceita nos Estados Unidos quando há prova de que o agente conhecia a alta probabilidade da origem criminosa dos bens ou valores e que optou por agir indiferente a esse conhecimento31.

Em outras palavras, conforme o entendimento majoritário, para sua efetiva admissão deve haver uma fundada suspeita sobre a origem ilícita dos bens, e a deliberada evitação de ciência por parte do sujeito. Entretanto, ape-sar do acolhimento da doutrina, ao analisar a questão, Frans J. Von Kaenel destaca que a alta probabilidade pode envolver tanto o conhecimento quanto a imprudência; assim, a principal crítica que se faz é que, em se tratando de diferentes institutos, a willful blindness não deve ser aplicada indistintamente sem que se saiba exatamente qual tipo de conduta deve ser punida a seu título32.

Já na Espanha, a ignorancia deliberada inicialmente foi aceita da mesma forma que nos países de common law, nos casos de tráfico de drogas, crimes econômicos e contra a saúde pública. Foi a partir do ano 2000 que o Tribu-nal Supremo Español posicionou-se no sentido de acolher a referida doutrina, expandindo-a para os demais delitos e consolidando sua aplicação na Sala Segunda, de onde se originaram grande parte dos precedentes. Nesse sentido, Ramon Ragués i Vallès refere que a ignorancia deliberada alcançou autonomia a ponto de ser um novo tipo de imputação subjetiva, relacionando-se ao dolo eventual unicamente para efeitos punitivos33.

A Sala Segunda implantou a doutrina equiparando-a ao dolo eventual e, por vezes, admitindo-a também a título de imprudência, conforme decisão de setembro de 2005: “En lós tipos previstos en nuestro Código incurro en respon-sabilidad, incluso quien actúa con ignorancia deliberada (willful blindness), respon-diendo en unos casos a titulo de dolo eventual, y en otros de culpa34”. Basicamente, a Sala tem entendido que quem podendo e devendo conhecer a natureza de

31 MORO, Sergio Fernando. Crime de lavagem de dinheiro. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 66.

32 VON KAENEL, Frans J. Willful blindness: a permissible substitute for actual knowledge under the money laundering control act? Disponível em: <http://digitalcommons.law.wustl.edu/lawreview/vol71/iss4/17/>. Acesso em: 12 mar. 2013.

33 VALLES, Ramon Ragues. La ignorancia deliberada en derecho penal. Barcelona: Atelier, 2007.

34 “Nos tipos previstos em nosso Código, incorre em responsabilidade inclusive quem atua com ignorância deliberada, respondendo em alguns casos a título de dolo eventual, e em outros a título de culpa.” (VON KAENEL, Frans J. Willful blindness: a permissible substitute for actual knowledge under the money laundering control act? Disponível em: <http://

Page 145: 25 5 0 - Ministério Público do Estado de São Paulo

Doutrina nacionalrevista De estuDos criminais 55

outubro/Dezembro 2014

145145

determinados atos, mantém-se em posição de não querer saber para evitar eventuais consequências, está deliberadamente fechando os olhos para aque-la situação e, portanto, aceitando os seus efeitos:

Quien se pone en situación de ignorancia deliberada, sin querer saber aquello que puede y debe saber, está asumiendo y aceptando todas las consecuencias Del ilícito negocio en que el voluntariamente participa.35

Assim, as decisões têm seguido esse entendimento, aplicando penas equivalentes a condutas dolosas àqueles que agiram com desconhecimento provocado.

Especificamente sobre a lavagem de capitais, destaca-se a STS de 19 de enero de 200536, que, com base nas jurisprudências de ingorancia delibera-da, refere que não se exige um dolo direto, bastando o dolo eventual para a condenação. Ou seja, colocar-se em situação de desconhecimento voluntário é suficiente para a responsabilização por lavagem de dinheiro conforme os julgados espanhóis.

Em que pese a sua consagração na Sala Segunda, muitas são as críticas a respeito da importação da doutrina oriunda do common law. Inicialmente, Ramon Ragués i Vallès explica que este tema não está tradicionalmente entre as principais discussões acadêmicas, uma vez que a figura do dolo eventual permite resolver satisfatoriamente a grande maioria dos casos nos quais se renunciou voluntariamente a conhecer os aspectos penalmente relevantes de determinada conduta37.

Ainda, fazendo uma análise negativa, o autor destaca dois pontos que considera passíveis de objeções, primeiramente em relação à falta de unifor-midade no desenvolvimento da doutrina e em seguida sobre a real necessi-dade de sua utilização no ordenamento espanhol, em razão da eficácia do dolo eventual em resolver as referidas situações38.

digitalcommons.law.wustl.edu/lawreview/vol71/iss4/17/>. Acesso em: 12 mar. 2013 – tradução nossa)

35 “Quem se coloca em situação de cegueira deliberada, sem querer saber aquilo que pode e deve saber, está assumindo e aceitando as consequências do negócio ilícito do qual voluntariamente participa.” (VALLES, Ramon Ragues. La ignorancia deliberada en derecho penal. Barcelona: Atelier, 2007 – tradução nossa)

36 VALLES, Ramon Ragues. La ignorancia deliberada en derecho penal. Barcelona: Atelier, 2007.

37 VALLES, Ramon Ragues. La ignorancia deliberada en derecho penal. Barcelona: Atelier, 2007.

38 VALLES, Ramon Ragues. La ignorancia deliberada en derecho penal. Barcelona: Atelier, 2007.

Page 146: 25 5 0 - Ministério Público do Estado de São Paulo

146

Revista de estudos CRiminais 55doutRina naCional

outubRo/dezembRo 2014

146

Para além dessa apreciação sobre o tema, ainda são feitas críticas a res-peito das contradições e da frequente ausência de prova da real intenção do agente de se “manter cego” diante das circunstâncias, de forma que a doutri-na torna-se um mecanismo de inibir necessidade de motivação do juiz com relação à prova39.

No ponto, existe uma tendência de que a suposição, através da alta probabilidade a que se referiu anteriormente como requisito da ignorancia de-liberada, se faça suficiente, tomando o lugar da efetiva prova de que o sujeito agiu deliberadamente, como se ela estivesse implícita na sua conduta. Nesse contexto, o autor menciona que a fundamentação que se espera é no sentido de demonstrar de que maneira restou clara a opção do sujeito por desco-nhecer deliberadamente os fatos40. Assim, para que a doutrina da cegueira deliberada seja aplicada de forma coerente, é importante que as críticas sejam analisadas de acordo com o ordenamento jurídico de cada país.

1.2 a aplicação da doutrina da cegueira deliberada no direito brasileiro: lavagem de capitais

A doutrina da cegueira deliberada é considerada discussão recente no Direito brasileiro. Embora pouco se estude sobre e a jurisprudência a seu respeito ainda seja restrita, essa construção doutrinária vem se tornando ten-dência no direito penal41. No Brasil, recebeu destaque ao fundamentar a con-denação por lavagem de dinheiro em um caso de repercussão nacional no ano de 200542, o qual será analisado a seguir.

Especificamente quanto à lavagem de capitais, implica a imputação do delito, não só ao seu autor, mas também a quem voluntariamente se coloca em situação de desconhecimento diante de circunstâncias suspeitas, ou seja, evita aprofundar sua percepção sobre os fatos, neste caso, sobre a origem dos bens e valores frutos do crime antecedente. Explicam Gustavo Henrique Badaró e Pierpaolo Cruz Bottini que, em sendo aceita a aplicação da doutrina, se o agente não quer conhecer a procedência dos bens, mas representa como provável sua origem delitiva ao realizar a conduta, estaria caracterizada a

39 VALLES, Ramon Ragues. La ignorancia deliberada en derecho penal. Barcelona: Atelier, 2007.

40 VALLES, Ramon Ragues. La ignorancia deliberada en derecho penal. Barcelona: Atelier, 2007.

41 BECK, Francis R. A doutrina da cegueira deliberada e sua (in)aplicabilidade ao crime de lavagem de dinheiro. Revista de Estudos Criminais, Porto Alegre: Notadez, n. 41, p. 55, 2011.

42 Ação Penal nº 2005.81.00.014586-0.

Page 147: 25 5 0 - Ministério Público do Estado de São Paulo

Doutrina nacionalrevista De estuDos criminais 55

outubro/Dezembro 2014

147147

cegueira deliberada. Entretanto, ressaltam os autores que é imprescindível a existência de dúvida razoável sobre a ilicitude dos bens ou valores43.

Nessa linha, o crime de lavagem de dinheiro vem sendo um dos prin-cipais meios de aplicação da teoria, já com precedentes no nosso direito pe-nal44. A Exposição de Motivos nº 692, de 18 de dezembro de 1996, da Lei nº 9.613/1998, que criminalizou a lavagem de capitais, aponta essa conduta delituosa como uma das mais frequentes modalidades de criminalidade or-ganizada, razão pela qual soluções de prevenção como a cegueira deliberada vêm sendo construídas.

O tipo principal da lavagem de capitais consiste em “ocultar ou dis-simular a natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou pro-priedade de bens, direitos ou valores provenientes, direta ou indiretamente, de infração penal”45, de forma que diversas condutas podem se adequar ao tipo penal, principalmente após as alterações trazidas pela Lei n 12.683/2012. A prática desse crime é comumente dividida em três etapas: a colocação (placement), a circulação (layering) e a integração (integration). Inicialmente o produto do crime se separa da origem material, depois é movimentado através de transações, visando a dificultar seu rastreamento, e, por último, é reintegrado em negócios com a finalidade de simular um caráter lícito46.

A nova lei de lavagem alterou alguns dispositivos da Lei nº 9.613/1998, entre eles o art. 1º, § 2º, I, que é o ponto de partida para as análises sugeridas. No novo texto da lei, para além da extinção do rol de crimes antecedentes e da possibilidade da alienação antecipada de bens, no que tange ao tipo subjetivo, alterou-se a redação do art. 1º e seus parágrafos, substituindo-se a expressão “sabe serem provenientes” por apenas “provenientes”, excluindo, assim, a referência expressa ao dolo direto, mas sem fazê-lo ao dolo eventual de maneira explícita:

43 BADARO, Gustavo Henrique; BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Lavagem de dinheiro: aspectos penais e processuais penais: comentários à Lei nº 9.613/1998, com alterações da Lei nº 12.683/2012. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012. p. 98.

44 RIO GRANDE DO SUL. Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Apelação Criminal nº 2006.71.00.032684-2. Apelante: Rodenilson Leite Alves e outros. Apelado: Ministério Público Federal. Relator: Desembargador Federal Paulo Afonso Brum Vaz. Porto Alegre, 22 de julho de 2009.

45 BRASIL. Lei nº 12.683, de 9 de julho de 2012. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2012/Lei/L12683.htm#art2>. Acesso em: 13 abr. 2013.

46 MORO, Sergio Fernando. Crime de lavagem de dinheiro. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 32.

Page 148: 25 5 0 - Ministério Público do Estado de São Paulo

148

Revista de estudos CRiminais 55doutRina naCional

outubRo/dezembRo 2014

148

Art. 1º Ocultar ou dissimular a natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores provenientes, direta ou indiretamente, de infração penal.

Pena: reclusão, de 3 (três) a 10 (dez) anos, e multa.

§ 1º Incorre na mesma pena quem, para ocultar ou dissimular a utilização de bens, direitos ou valores provenientes de infração penal:

I – os converte em ativos lícitos;47 (grifos nossos)

Diante dessa lacuna, ganhou ainda mais espaço a discussão sobre a possibilidade de responsabilização por lavagem de capitais a título de dolo eventual, e, consequentemente, sobre a aplicação da cegueira deli-berada. No ponto, Sergio Moro destaca a reflexão decorrente do assunto: “Há a necessidade de que o agente do crime de lavagem tenha conheci-mento específico do crime antecedente, com todos os seus elementos e circunstâncias?”48.

Conforme o próprio autor esclarece, a lei é omissa no ponto, deixan-do a interpretação por conta de quem for aplicá-la. A referida exposição de motivos, entretanto, admite o dolo eventual para as hipóteses do caput do artigo49.

Assim, a partir desse questionamento, formou-se um conflito de opi-niões na doutrina brasileira acerca da aceitação do dolo eventual na lavagem de capitais, sendo favorável a posição de José Paulo Baltazar Júnior, para quem é possível a existência do dolo eventual, pois este deve atingir a exis-tência do crime antecedente, não exigindo que o lavador tenha conhecimento

47 BRASIL. Lei nº 12.683, de 9 de julho de 2012. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2012/Lei/L12683.htm#art2>. Acesso em: 13 abr. 2013.

48 MORO, Sergio Fernando. Crime de lavagem de dinheiro. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 58.

49 “Equipara o projeto, ainda, ao crime de lavagem de dinheiro a importação ou exportação de bens com valores inexatos (art. 1º, § 1º, III). Nesta hipótese, como nas anteriores, exige o projeto que a conduta descrita tenha como objetivo a ocultação ou a dissimulação da utilização de bens, direitos ou valores oriundos dos referidos crimes antecedentes. Exige o projeto, nesses casos, o dolo direto, admitindo o dolo eventual somente para a hipótese do caput do artigo”. É a Exposição de Motivos nº 692, de 18 de dezembro de 1996, da Lei nº 9.613/1998.

Page 149: 25 5 0 - Ministério Público do Estado de São Paulo

Doutrina nacionalrevista De estuDos criminais 55

outubro/Dezembro 2014

149149

de como se deu a conduta anterior50 – entendimento do qual compartilham Sergio Moro51 e Rodolfo Tigre Maia52.

Explica o primeiro autor que ocorre o crime quando o lavador do dinheiro não tem a certeza de que o objeto da lavagem é produto de ati-vidade criminosa, mas assume o risco desta hipótese53. Nessa linha Kai Ambos54 ensina que, quanto ao art. 1º, § 2º, I, o dispositivo não exige o conhecimento direto da origem ilícita, admitindo, dessa maneira, o dolo eventual.

Em que pese reconhecerem a existência de uma lacuna, em sentido contrário se manifestam Gustavo Henrique Badaró e Pierpaolo Cruz Bottini, sob a alegação de que o agente deve ter completa consciência da origem ilíci-ta dos bens para que se configure o tipo da lavagem de dinheiro55. Para Marco Antonio de Barros56, só há de se falar em dolo direto na lavagem de capitais tendo em vista a intencionalidade inerente às condutas desse tipo penal. Da mesma forma posicionam-se Cesar Antonio da Silva57, Luiz Regis Prado58 e Carla Veríssimo de Carli, quando aduz que “não há dúvida de que as condu-

50 BALTAZAR JUNIOR, José Paulo. Crimes federais. 5. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010. p. 789.

51 MORO, Sergio Fernando. Crime de lavagem de dinheiro. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 60.

52 MAIA, Rodolfo Tigre. Lavagem de dinheiro (lavagem dos ativos provenientes de crime): anotações às disposições criminais da Lei nº 9.613/1998. São Paulo: Malheiros, 1999. p. 86-90.

53 BALTAZAR JUNIOR, José Paulo. Crimes federais. 5. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010. p. 789.

54 AMBOS, Kai. Lavagem de dinheiro e direito penal. Porto Alegre: Safe, 2007. p. 55.

55 BADARO, Gustavo Henrique; BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Lavagem de dinheiro: aspectos penais e processuais penais: comentários à Lei nº 9.613/1998, com alterações da Lei nº 12.683/2012. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012. p. 95-96.

56 BARROS, Marco Antonio de. Lavagem de dinheiro: implicações penais, processuais e administrativas: análise sistemática da Lei nº 9.613, de 3 de março de 1998. São Paulo: Editoria Oliveira Mendes, 1998.

57 SILVA, Cesar Antonio da. Lavagem de dinheiro: uma nova perspectiva penal. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001. p. 51.

58 PRADO, Luiz Regis. Direito penal econômico: ordem econômica, relações de consumo, sistema financeiro, ordem tributária, sistema previdenciário, lavagem de capitais, crime organizado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009. p. 361.

Page 150: 25 5 0 - Ministério Público do Estado de São Paulo

150

Revista de estudos CRiminais 55doutRina naCional

outubRo/dezembRo 2014

150

tas versadas nos §§ 1º e 2º do art. 1º da Lei nº 9.613/1998, em razão da própria redação dos respectivos tipos, são incompatíveis com o dolo eventual”59.

Através de suas próprias interpretações, a doutrina e a jurisprudência não chegaram a um consenso no que tange à indagação sobre o dolo even-tual, e, da mesma forma, se verá em relação à análise da cegueira deliberada. Certo é que, diante do conflito de interpretações, o tema merece ser explora-do com mais profundidade no direito penal brasileiro.

Em sendo aceito o dolo eventual na lavagem de capitais, Sergio Moro afirma que o delito restaria configurado ainda que o agente não tivesse co-nhecimento pleno da natureza criminosa dos bens, sendo suficiente o conhe-cimento da probabilidade desse fato aliado à indiferença60.

Por isso, quando se fala no conhecimento da probabilidade de que os bens ou valores tenham origem criminosa, a doutrina em comento é uma das soluções que se propõe. Para tanto, nos casos em que se pretende a respon-sabilização por lavagem de dinheiro daqueles sujeitos que suspeitavam da origem ilícita dos bens, mas optaram por desconhecê-la, a cegueira delibe-rada serviria como fundamento para condenação, por meio da aceitação do dolo eventual. Para a sua aplicação, primeiramente deve haver uma situação suspeita, na qual o agente detecta a elevada probabilidade de que os bens ou valores sejam oriundos de prática ilícita, porém sem conhecimento específico dos fatos. O que não se confunde, entretanto, com a negligência, como analisa Marcelo Cavali, ao ressaltar que o desconhecimento não deve resultar de erro ou negligência61.

Nesse contexto, o desconhecimento deve ser voluntário, provocado pelo próprio agente no intuito de não conhecer a real circunstância em que foram adquiridos os bens, visando a esquivar-se de prováveis consequên-cias. Explicam Gustavo Henrique Badaró e Pierpaolo Cruz que, “em primeiro lugar, é essencial que o agente crie consciente e voluntariamente barreiras ao conhecimento, com a intenção de deixar de tomar contato com a atividade ilícita, caso ela ocorra”62.

59 DE CARLI, Carla Veríssimo (Org.). Lavagem de dinheiro: prevenção e controle penal. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2011. p. 228.

60 MORO, Sergio Fernando. Crime de lavagem de dinheiro. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 62.

61 CAVALI, Marcelo. De olhos bem fechados. Revista Via Legal, a. I, n. III, p. 10, set./dez. 2008.

62 BADARO, Gustavo Henrique; BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Lavagem de dinheiro: aspectos penais e processuais penais: comentários à Lei nº 9.613/1998, com alterações da Lei nº 12.683/2012. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012. p. 98.

Page 151: 25 5 0 - Ministério Público do Estado de São Paulo

Doutrina nacionalrevista De estuDos criminais 55

outubro/Dezembro 2014

151151

Assim, com base no Direito norte-americano e buscando alcançar a homogeneidade da sua aplicação, a doutrina brasileira estipulou requisitos para introduzir a doutrina da evitação da consciência no nosso direito penal, tendo em vista a previsão genérica da lei e a zona cinzenta em que se situam os casos jurisprudenciais. São eles:

a) o conhecimento da elevada probabilidade da natureza ilícita dos bens ou valores;

b) a escolha do agente de permanecer alheio ao conhecimento pleno desses fatos.63

No direito penal brasileiro, para além da referida decisão no caso do furto ao Banco Central em Fortaleza64, que será mencionada em momento oportuno, existem outros poucos casos de aplicação da cegueira deliberada. O Tribunal Regional Federal da 4ª Região, num caso de furto qualificado pra-ticado por organização criminosa, oriundo daquele em Fortaleza/CE, nos autos da Apelação Criminal nº 2006.71.00.032684-2, de relatoria do Desem-bargador Paulo Afonso Brum Vaz, deu parcial provimento ao recurso do Mi-nistério Público Federal para condenar um dos réus à lavagem de dinheiro, sob a égide da willful blindness doctrine, utilizando-se, na fundamentação, das lições de Sergio Moro65.

Ressalta-se que a cegueira deliberada, aliada à extinção do rol de cri-mes antecedentes instituída pela nova lei, torna a lavagem de capitais muito abrangente, podendo caracterizar como autores do delito pessoas que, embo-ra desconfiadas, se envolveram com o dinheiro, bens ou produtos provenien-tes de lavagem sem ter certeza do que se passava. Sergio Moro exemplifica com o caso dos doleiros, operadores do mercado de câmbio paralelo, que, muitas vezes, reconhecem sua atividade ilícita, entretanto não admitem a

63 MORO, Sergio Fernando. Crime de lavagem de dinheiro. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 69.

64 CEARÁ. Justiça Federal. Ação Penal nº 2005.81.00.014586-0/Fortaleza. Autor: Ministério Público Federal. Réu: Antonio Jussivan Alves dos Santos e Outros. Juiz Titular da 11ª Vara Federal. Fortaleza, 28 de junho de 2007.

65 Disponível em: <http://www.jfrs.jus.br/processos/acompanhamento/resultado_pesquisa. php?txtPalavraGerada=&hdnRefId=43c5701d4ec22559993b845e8ca55115&selForma=NU&txtValor=200671000326842&chkMostrarBaixados=&todasfases=&todosvalores=&todaspartes=&txtDataFase=01%2F01%2F1970&selOrigem=TRF&sistema=&codigoparte=&paginaSubmeteuPesquisa=letras>. Acesso em: 20 abr. 2013.

Page 152: 25 5 0 - Ministério Público do Estado de São Paulo

152

Revista de estudos CRiminais 55doutRina naCional

outubRo/dezembRo 2014

152

prática da lavagem de dinheiro, sob a alegação de que desconheciam a natu-reza dos valores envolvidos nas transações66.

Na mesma linha se faz uma objeção no que tange ao alargamento do rol de sujeitos ativos, pois pode afetar aqueles setores frágeis a esse tipo de conduta. Segundo analisam Gustavo Henrique Badaró e Pierpaolo Cruz Bottini, a partir de então os profissionais atuantes em setores mais sensíveis deveriam adotar mecanismos de compliance, deixando sempre claro que a es-trutura não tem como finalidade evitar o conhecimento de indícios de lava-gem de dinheiro, como maneira de proteção67.

Por fim, retoma-se a crítica no sentido de que, se por um lado, a dou-trina evita a impunidade em relação àquele sujeito que quis se abster da res-ponsabilidade dos seus atos, por outro lado, quando essa lógica não se aplica, desperta um problema de desproporcionalidade. Dessa forma, trata-se um indivíduo com pleno conhecimento da ilicitude da conduta da mesma forma do que se trata quem desconhece, ainda que deliberadamente68.

2 análise do caso do furto ao Banco central do Brasil eM fortaleza

A Ação Penal nº 2005.81.00.014586-069 é o caso de furto ao Banco Cen-tral em Fortaleza/CE, que repercutiu em todo País em razão da engenho-sa estrutura construída pelos criminosos. As investigações iniciaram-se em seguida da descoberta do crime, em 8 de agosto de 2005. Após três adita-mentos, foram denunciados 22 réus como responsáveis, na medida de suas participações, pelo furto ocorrido em 05.06.2005, o qual resultou na subtração de R$ 164.755.150,00 (cento e sessenta e quatro milhões, setecentos e cinquen-ta e cinco mil, cento e cinquenta reais). Entre eles figuram José Elizomarte Fernandes Vieira e Francisco Dermival Fernandes Vieira, representante e di-retor, respectivamente, da revenda de carros Brilhe Car.

66 MORO, Sergio Fernando. Crime de lavagem de dinheiro. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 69.

67 BADARO, Gustavo Henrique; BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Lavagem de dinheiro: aspectos penais e processuais penais: comentários à Lei nº 9.613/1998, com alterações da Lei nº 12.683/2012. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012. p. 99.

68 BECK, Francis R. A doutrina da cegueira deliberada e sua (in)aplicabilidade ao crime de lavagem de dinheiro. Revista de Estudos Criminais, Porto Alegre: Notadez, n. 41, p. 63, 2011.

69 CEARÁ. Justiça Federal. Ação Penal nº 2005.81.00.014586-0/Fortaleza. Autor: Ministério Público Federal. Réu: Antonio Jussivan Alves dos Santos e outros. Juiz Titular da 11ª Vara Federal. Fortaleza, 28 de junho de 2007.

Page 153: 25 5 0 - Ministério Público do Estado de São Paulo

Doutrina nacionalrevista De estuDos criminais 55

outubro/Dezembro 2014

153153

A quadrilha, um dia após cometer o delito, adquiriu onze veículos com o produto do crime na referida revenda, efetuando o pagamento em notas de cinquenta reais da quantia de R$ 980.000,00, bem como deixando o saldo de crédito para futuras aquisições.

De maneira ousada, a quadrilha planejou o furto, conforme aduziu o juiz sentenciante, por meio da escavação de um túnel na região central de Fortaleza, que os levou até o interior do caixa forte do Banco Central, de onde foi subtraída toda a quantia em cédulas de R$ 50,00. Conforme a acusação, foi alugada uma casa que era utilizada com a fachada de sede de uma empresa de grama sintética, mas que, no entanto, era o local onde os criminosos de-senvolviam as atividades relacionadas ao furto, principalmente a escavação do túnel.

Relata a sentença, ainda, de que forma cada um dos acusados se envol-veu no crime, demonstrado quais atividades eram realizadas nas diferentes fases, desde a ocupação do referido imóvel até a utilização e divisão do mon-tante subtraído.

Para além da análise sobre o crime organizado e as demais conde-nações, no que concerne ao delito da lavagem de capitais, foram condena-dos como incursos nas sanções do art. 1º, V e VII, § 1º, I, § 2º, I e II, da Lei nº 9.613/1998, bem como arts. 9º e 10 e seguintes da mesma lei, os acusados José Elizomarte Fernandes Vieira e Francisco Dermival Fernandes Vieira, proprietários da Brilhe Car.

O Magistrado, ao analisar o art. 1º, caput e § 2º, I e II, reconhece a exis-tência de uma lacuna, que pode ocasionalmente ensejar a admissão do dolo eventual:

Admitindo o dolo eventual, o crime de lavagem do art. 1º restaria confi-gurado ainda que o agente não tivesse conhecimento pleno da origem ou natureza criminosa dos bens, direitos ou valores envolvidos, bastando que tivesse conhecimento da probabilidade desse fato, agindo de forma indife-rente quanto à ocorrência do resultado delitivo.

No ponto, colaciona e refere na sentença trecho da Exposição de Moti-vos nº 692/1996, corroborando sua tese sobre o cabimento do dolo eventual na lavagem de capitais, salientando que,

nesta hipótese, como nas anteriores, exige o projeto que a conduta descrita tenha como objetivo a ocultação ou a dissimulação da utilização de bens, direitos, ou valores oriundos dos referidos crimes antecedentes. Exige o projeto, nesses casos, o dolo direto, admitindo o dolo eventual somente para a hipótese do caput do artigo.

Page 154: 25 5 0 - Ministério Público do Estado de São Paulo

154

Revista de estudos CRiminais 55doutRina naCional

outubRo/dezembRo 2014

154

O juiz sentenciante utilizou-se dos ensinamentos de Sergio Moro para reflexão acerca do dolo eventual no delito em questão, de cujo entendimen-to compartilhou ao condenar os réus acima referidos. Entretanto, não dei-xou de citar as divergências sobre o tema ao mencionar o posicionamento de Rodolfo Tigre Maia e Antônio Pitombo. Nesse sentido, aduziu o juiz senten-ciante que,

no que diz respeito ao dolo eventual, ou seja, quando o agente, apesar de não desejar o resultado do crime, assume o risco de sua produção, carac-terizável quando o agente é indiferente quanto à procedência criminosa do objeto na lavagem, assumindo o risco de ocultar ou dissimular a sua origem ou natureza.

Vencida a questão do dolo eventual, a fundamentação com base na cegueira deliberada, que foi apresentada como construção doutrinária e solu-ção já utilizada em casos análogos no direito comparado, levou o Magistrado a colacionar parte do caso United States v. Jewell, julgado no Estados Unidos, para ilustrar a aplicação da doutrina.

A justificação substantiva para a regra é que ignorância deliberada e co-nhecimento positivo são igualmente culpáveis. A justificativa textual é que, segundo o entendimento comum, alguém “conhece” fatos mesmo quando ele está menos do que absolutamente certo sobre eles. Agir com “conheci-mento”, portanto, não é necessariamente agir apenas com conhecimento positivo, mas também agir com indiferença quanto à elevada probabilida-de da existência do fato em questão. Quando essa indiferença está presen-te, o conhecimento “positivo” não é exigido.70

Conforme descreve a sentença, os proprietários da revenda, acusados por lavagem de capitais, venderam onze veículos aos corréus integrantes da quadrilha, e o pagamento foi efetuado com valores obtidos mediante o furto ao Banco Central. Em que pese ter ocorrido a devolução de grande parte do dinheiro à autoridade policial e a alegação por parte de um dos acusados de que “umas três ou quatro vendas de cerca de um milhão já foram feitas pela Brilhe Car, pelo que a venda realizada não chamou tanta atenção assim”, acrescentando ainda que o transcorrer da negociação também colaborou para que não se levantassem suspeitas, o entendimento do juízo foi no sentido de que aqui se configura a cegueira deliberada:

[...] pelo exposto convenço-me que José Charles Machado de Morais sa-bia que a origem do numerário utilizado era do furto ao Banco Central

70 United States v. Jewell, 532 F.2d 697, 70 (9th Cir. 1976).

Page 155: 25 5 0 - Ministério Público do Estado de São Paulo

Doutrina nacionalrevista De estuDos criminais 55

outubro/Dezembro 2014

155155

(art. 1º, V e VII, § 1º, I, § 2º, I e II, da Lei nº 9.613/1998), não sendo o caso dos irmãos José Elizomarte e Francisco Dermival que, ao que tudo indica, não possuíam tal percepção [...].

Por conseguinte, para o juiz de primeiro grau restou evidente a atua-ção indiferente dos acusados – requisito da cegueira deliberada – diante da negociação e da venda dos referidos veículos nas circunstâncias em que ocor-reram:

Tendo os réus José Elizomarte Fernandes Vieira e Francisco Dermival Fernandes Vieira recebido tal importância sem questionamento, nem mes-mo quando R$ 250.000,00 foram deixados por José Charles para compras futuras (art. 1º, V e VII, § 1º, I, § 2º, II e II, da Lei nº 9.613/1998, bem como arts. 9º, 10 e seguintes da mesma lei).

Diante da fundamentação apresentada, o Magistrado entendeu estar configurada a doutrina da willful blindness, haja vista a posição dos acusados, que venderam os carros diante de uma situação suspeita, mas sem saber – e sem buscar saber – ao certo o que se passava. Concluindo, então, pelo cabi-mento da doutrina por meio da admissão do dolo eventual, a partir da análi-se sobre o tipo subjetivo no caso concreto e sobre as peculiaridades do caso, fixou a pena em 3 anos e multa de 100 dias-multa para cada um dos réus, substituindo as penas por prestações de serviços à comunidade, tendo em vista as circunstâncias favoráveis aos réus, nos termos do art. 44 do Código Penal.

Não obstante a sentença condenatória proferida pelo juiz titular da 11ª Vara Federal de Fortaleza no caso em estudo, o entendimento da 2ª Turma do Tribunal Regional Federal da 5ª região foi diverso, reformando parcialmente a sentença para absolver os réus da acusação de lavagem de capitais. Os réus tiveram suas penas substituídas por prestações de serviços à comunidade e multa de 100 dias-multa, pelos crimes previstos nos arts. 1º, V e VII, § 1º, I, § 2º, I e II, da Lei nº 9.613/1998, bem como art. 9º, 10 e seguintes da mesma lei, sob a aplicação da doutrina da cegueira deliberada. Em recurso de apelação, os acusados alegaram a necessidade de reforma da sentença para reconhecer a ausência de dolo e de provas que ensejassem um juízo condenatório, bem como o reconhecimento da venda dos carros ter ocorrido de boa-fé, postulan-do ao fim pela absolvição em face do princípio do in dubio pro reo.

Em contraponto com o posicionamento do juiz sentenciante, que utili-zou a cegueira deliberada aliada ao dolo eventual para condenação, o Desem-bargador Federal Rogério Fialho Moreira, da 2ª Turma do TRF5, entendeu

Page 156: 25 5 0 - Ministério Público do Estado de São Paulo

156156

Revista de estudos CRiminais 55doutRina naCional

outubRo/dezembRo 2014

que não seria caso de aplicação da referida doutrina, pois seus requisitos não se comunicam com o tipo subjetivo da lavagem de capitais no caso concreto:

Entendo que a aplicação da teoria da cegueira deliberada depende da sua adequação ao ordenamento jurídico nacional. Entendo que, no caso concre-to, pode ser perfeitamente adotada, desde que o tipo legal admita a puni-ção a título de dolo eventual.

Ocorre que, para o relator, a partir da análise do art. 1º, § 2º, I e II, não seria caso de dolo eventual, mesmo porque não há demonstração concreta nos autos de sua ocorrência. Sobre o primeiro inciso, referiu que

a própria redação do dispositivo exige que o agente saiba que o dinheiro é originado de algum dos crimes antecedentes. O núcleo do tipo não se utiliza sequer de expressão deveria saber (geralmente denotativa do dolo eventual).

Ainda afastando a figura do dolo eventual, acrescenta que, quanto ao inciso II, não se aplica ao caso em tela, uma vez que não houve demonstração de que a empresa Brilhe Car estivesse relacionada à prática de lavagem de ativos, ou que os seus proprietários tinham conhecimento sobre a origem dos valores recebidos. Nesse sentido, explicou que “não há elementos suficientes, em face do tipo de negociação usualmente realizada com veículos usados, a indicar que houvesse dolo eventual quando à conduta do art. 1º, § 1º, II, da mesma lei”.

A partir da análise do cabimento da figura do dolo eventual, referente à importação da willful blindness doctrine, concluiu o Desembargador Rogério Fialho Moreira que,

ante as circunstâncias do caso concreto, não há como se aplicar a doutrina da willful blindness. As evidências não levam à conclusão de que os sócios da Brilhe Car sabiam efetivamente da origem criminosa dos ativos. Não há demonstração concreta sequer do dolo eventual.

Afastada a cegueira deliberada e a imputação quanto ao art. 1º, § 2º, I e II, no que concerne às imputações dos arts. 9º e 10 da referida lei, em primeiro grau se entendeu que os acusados não se abstiveram da negociação suspeita, tal como não comunicaram às autoridades da situação. Porém, em segundo grau, o entendimento foi outro, sob a alegação de que:

a) os empresários não teriam como supor que a quantia recebida em notas de R$ 50,00 era parte do produto de um crime;

b) a empresa não está sujeita às determinações dos arts. 9º e 10 da Lei nº 9.613/1998, pois não se caracteriza lá a venda de bens de luxo;

Page 157: 25 5 0 - Ministério Público do Estado de São Paulo

Doutrina nacionalrevista De estuDos criminais 55

outubro/Dezembro 2014

157157

c) não há ato normativo que determine que a revenda de carros comunique ao COAF, à Receita ou à autoridade policial ou qualquer órgão público as vendas em espécie.

Em síntese, o Desembargador Rogério Fialho Moreira esclarece sua po-sição aduzindo que não entende razoável enquadrar a revendedora de caros como atividade de luxo, bem como que a negociação com altos valores não é ínsita à atividade dos apelantes. Assim, entendeu que não era obrigação da revenda comunicar à qualquer autoridade a existência de vendas em espécie.

Vez mais em conflito com o posicionamento do Magistrado, o desem-bargador acredita que, ainda que houvesse a obrigação por parte da Brilhe Car de agir para evitar a lavagem de capitais, a omissão nesse sentido ense-jaria apenas sanções administrativas, e não responsabilização criminal por participação em atividade ilícita, exceto se restasse comprovado que os pro-prietários da revenda estivessem envolvidos dolosamente no processo de la-vagem, o que não ocorreu no caso.

Dessa forma, o desembargador relator reformou a sentença recorrida para absolver os acusados de lavagem de capitais dos crimes previstos nos arts. 1º, V e VII, § 1º, I, § 2º, I e II, da Lei nº 9.613/1998, bem como arts. 9º, 10 e seguintes da mesma lei, com base no princípio do in dubio pro reo, afirmando ao final que, “no caso concreto, os meros indícios são insuficientes para a con-clusão de que os apelantes tivessem ciência da origem criminosa dos valo-res”. Nesse contexto, o entendimento em segundo grau foi no sentido de que não havia nos autos prova segura de que os apelantes sabiam ou desconfia-vam da proveniência dos valores, razão pela qual era necessária a absolvição.

2.1 análise crítica

Em que pese o razoável número de precedentes no direito penal bra-sileiro que aplicam a cegueira deliberada aliada ao dolo eventual, é notório que a questão exige uma reflexão mais aprofundada. Trata-se de construção complexa, e ao mesmo tempo flexível, podendo se ajustar conforme a orien-tação de cada ordenamento. Entretanto, a flexibilidade não necessariamente é característica positiva de construções como esta.

No caso, há uma evidente falta de regulamentação, e ausência em nos-so ordenamento jurídico de vínculo estável para a cegueira deliberada, o que, consequentemente, reflete em padrões diversos de aplicação. Mesmo porque, conforme é possível concluir no deslinde da pesquisa, tem ficado a cargo dos

Page 158: 25 5 0 - Ministério Público do Estado de São Paulo

158

Revista de estudos CRiminais 55doutRina naCional

outubRo/dezembRo 2014

158

juízes e desembargadores decidir acerca de seus critérios de aplicação (ou não) conforme a sua interpretação no caso concreto.

Entendemos que, conforme os ensinamentos de Gustavo Henrique Badaró e Pierpaolo Cruz Bottini, na lavagem de capitais “apenas o compor-tamento doloso é objeto de repreensão, caracterizado como aquele no qual o agente tem ciência da existência de elementos típicos e vontade de agir naquele sentido”71. Contudo, é coerente a lição de Kai Ambos quando aduz que,

quanto ao art. 1º, § 2º, I, entende-se, e este parece ser o posicionamento apropriado, que o dispositivo não exige o conhecimento direto da origem ilícita, de forma que, por isso, admite o dolo eventual, tendo em vista que o autor assume o risco de que sejam provenientes dos crimes antecedentes.72

Diante disso, parece adequado o entendimento no qual, à exceção do art. 1º, § 2º, I, que, frente à lacuna deixada pela redação da Lei nº 12.683/2012, pode, ocasional e muito cuidadosamente, admitir o dolo eventual, as condu-tas referentes à lavagem exigem exclusivamente o dolo direto. Em que pese a referida possibilidade do cabimento do dolo eventual, o ideal seria uma análise minuciosa de cada caso, haja vista que, na maioria das vezes, dizer que o autor assume o risco de que os bens ou valores sejam provenientes de condutas criminosas não parece razoável, e nem suficiente por si só para condenação sem que haja uma prova robusta.

Assim, em sendo ocasionalmente aceita a utilização da doutrina da cegueira deliberada, entendemos que o primeiro requisito para sua aplica-ção deveria ser o cabimento do dolo eventual na conduta delituosa, pois, em não cabendo, já se afastaria a doutrina, evitando futuros questionamen-tos. Somente depois de vencida a questão do tipo subjetivo, adotamos o que foi estipulado no direito penal brasileiro: a necessidade de se atentar para a efetiva existência de uma situação suspeita e com alta probabilida-de de que venha a ser criminosa, para depois reconhecer a voluntariedade do sujeito em se manter indiferente. Deste modo, apropriada a decisão do desembargador relator no precedente estudado no ponto anterior, uma vez que, de início, afastou a possibilidade de aplicação da doutrina a partir do

71 BADARO, Gustavo Henrique; BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Lavagem de dinheiro: aspectos penais e processuais penais: comentários à Lei nº 9.613/1998, com alterações da Lei nº 12.683/2012. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012. p. 93.

72 AMBOS, Kai. Lavagem de dinheiro e direito penal. Porto Alegre: Safe, 2007. p. 55.

Page 159: 25 5 0 - Ministério Público do Estado de São Paulo

Doutrina nacionalrevista De estuDos criminais 55

outubro/Dezembro 2014

159159

entendimento de que, diante das circunstâncias peculiares, não seria caso de dolo eventual.

consideraçÕes finais

Diante de todo o exposto, e observando-se a ordem definida para a presente pesquisa, é possível formular as seguintes conclusões:

Primeira: a doutrina da cegueira deliberada teve sua origem há mais de um século, e resta até hoje entre os mais destacados temas para discussão, tendo em vista a sua relação com crimes atuais e cada vez mais em foco, como a lavagem de dinheiro e o tráfico de drogas.

Segunda: a aplicação da doutrina da evitação da consciência funda-se basicamente na responsabilização criminal de um sujeito a partir de seu de-liberado fechar de olhos perante uma prática suspeita, e possivelmente cri-minosa. Diante dessa situação, pune-se de igual forma o agente que detinha plena consciência dos fatos – dolo direto – e aquele que optou por se manter indiferente, seja através de ações ou omissões, frente às circunstâncias sus-peitas.

Terceira: ainda hoje existe discussão acerca da natureza da cegueira de-liberada, formando-se dois grupos principais: os que percebem a doutrina como uma nova forma de imputação subjetiva, alternativa ao dolo direto e eventual, e os que defendem a equivalência entre a evitação da consciência e o dolo eventual. Independente do posicionamento adotado, conclui-se que a aplicação da doutrina só é possível naqueles delitos em que é cabível o dolo eventual, haja vista a incompatibilidade entre os fundamentos da cegueira deliberada com os demais tipos subjetivos referidos.

Quarta: apesar de utilizada com frequência em outros países, a dou-trina também é ponto crítico e divergente nos direitos norte-americano e espanhol. Nos Estados Unidos, o entendimento majoritário é que para sua aplicação deve haver uma fundada suspeita aliada a uma deliberada evitação de ciência. Entretanto, critica-se a abrangência da doutrina, pois a “alta pro-babilidade” ou a “fundada suspeita” podem englobar outras figuras, como a imprudência. Para o direito espanhol, a ignorancia deliberada equipara-se ao dolo eventual, e, neste caso, aplicam-se penas equivalentes a de condutas dolosas aos sujeitos que agiram com desconhecimento provocado, conforme o entendimento da Sala Segunda. Porém, ocasionalmente, pode a doutrina ser aplicada em casos de culpa, conforme se constatou nas decisões do Tribunal Supremo Español.

Page 160: 25 5 0 - Ministério Público do Estado de São Paulo

160

Revista de estudos CRiminais 55doutRina naCional

outubRo/dezembRo 2014

160

Quinta: com a edição da Lei nº 12.683/2012, a doutrina ganhou mais espaço, tendo em vista que, com as alterações, surgiu uma lacuna que enseja a discussão sobre o dolo eventual na lavagem de dinheiro. No entanto, as di-vergências doutrinárias se mantêm: para uns, é cabível a lavagem de capitais a título de dolo eventual; para outros, somente o dolo direto é adequado.

Sexta: em sendo aceito o dolo eventual na lavagem de dinheiro, estaria configurado o delito desde que presente o conhecimento da probabilidade da origem ilícita dos bens ou valores. E, quando se fala em probabilidade de origem criminosa dos valores, a cegueira deliberada é uma das soluções propostas. Para sua aplicação, com base no direito norte-americano, estipu-laram-se requisitos: o conhecimento da alta probabilidade da natureza ilícita dos bens ou valores e o ato voluntário do agente em permanecer indiferente àquela situação.

Sétima: diante da recém iniciada reflexão sobre o tema no direito penal brasileiro, inúmeras críticas recaem sobre a importação da construção dou-trinária oriunda do common law. Os doutrinadores referem que a abrangência trazida pela extinção do rol de crimes antecedentes pode acabar por atingir setores mais frágeis, e, ainda, pode despertar um problema de desproporcio-nalidade, de punição excessiva.

Oitava: ao final, a partir da análise do caso concreto, confirma-se a hi-pótese de que a cegueira deliberada não é tema pacificado no direito penal brasileiro. O caso do furto ao Banco Central em Fortaleza/CE, examinado anteriormente, demonstra aquilo que foi explorado no decorrer da pesquisa: diante da sua falta de uniformidade, a aplicação da doutrina depende da interpretação do aplicador da lei. No caso em tela, o juiz de primeiro grau entendeu pela condenação dos proprietários de uma revenda de carros por lavagem de dinheiro, haja vista que lá foram adquiridos veículos com o pro-duto do furto. Sob a alegação de que estaria configurado o dolo eventual diante da indiferença dos acusados, e amparado na Exposição de Motivos nº 692/1996, o julgador se utilizou dos fundamentos da cegueira deliberada para motivar sua decisão. Todavia, o entendimento em segundo grau foi ou-tro: para o Desembargador Federal Relator, não caberia naquele caso o dolo eventual, bem como não restou demonstrado de maneira concreta a atuação (mediante dolo eventual) por parte dos acusados. Dessa forma, refere que, diante das circunstâncias do caso, não há como aplicar a doutrina da ceguei-ra deliberada, tendo em vista a incompatibilidade dela com o dolo direto. Portanto, com base no princípio do in dubio pro reo, a 2ª Turma do Tribunal Regional Federal reformou a decisão de primeiro grau para absolver os dois acusados por lavagem de dinheiro.

Page 161: 25 5 0 - Ministério Público do Estado de São Paulo

Doutrina nacionalrevista De estuDos criminais 55

outubro/Dezembro 2014

161161

referÊnciasABRAMOWITZ, Elkan; BOHRER, Barry A. Conscious avoidance: a substitute for

actual knowledge? Disponível em: <http://www.maglaw.com/publications/articles/00130/_res/id=Attachments/index=0/07005070001Morvillo.pdf>. Acesso em: 23 out. 2012.

AMBOS, Kai. Lavagem de dinheiro e direito penal. Porto Alegre: Safe, 2007.BADARO, Gustavo Henrique; BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Lavagem de dinheiro: aspectos

penais e processuais penais: comentários à Lei nº 9.613/1998, com alterações da Lei nº 12.683/2012. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012.

BALTAZAR JUNIOR, José Paulo. Crimes federais. 5. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011.

BARROS, Marco Antonio de. Lavagem de dinheiro: implicações penais, processuais e administrativas: análise sistemática da Lei nº 9.613, de 3 de março de 1998. São Paulo: Editoria Oliveira Mendes, 1998.

BECK, Francis R. A doutrina da cegueira deliberada e sua (in)aplicabilidade ao crime de lavagem de dinheiro. Revista de Estudos Criminais, Porto Alegre: Notadez, n. 41, p. 45-68, 2011.

BRASIL. Lei nº 12.683, de 9 de julho de 2012. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2012/Lei/L12683.htm#art2>. Acesso em: 13 abr. 2013.

CAVALI, Marcelo. De olhos bem fechados. Revista Via Legal, a. I, n. III, p. 10-11, set./dez. 2008.

CEARÁ, Justiça Federal. Ação Penal nº 2005.81.00.014586-0/Fortaleza. Autor: Ministério Público Federal. Réu: Antonio Jussivan Alves dos Santos e Outros. Juiz Titular da 11ª Vara Federal. Fortaleza, 28 de junho de 2007.

COSTA, José de Faria. Direito penal econômico. Coimbra: Quarteto, 2003.COSTA JÚNIOR, Paulo José da. Direito penal: curso completo. São Paulo: Saraiva, 2000.D’ÁVILA, Fábio Roberto; SOUZA, Paulo Vinicius Sporleder de (Coord.). Direito penal

secundário: estudos sobre crimes econômicos, ambientais, informáticos e outras questões. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006.

DE CARLI, Carla Veríssimo (Org.). Lavagem de dinheiro: prevenção e controle penal. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2011.

ESTELLITA, H. Direito penal, constituição e princípio da proporcionalidade. In: Boletim IBCCrim, São Paulo, v. especial, p. 11-13, 2003.

ESTELLITA, Heloisa; BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Alterações na legislação de combate à lavagem de dinheiro: primeiras impressões. In: Boletim IBCCrim, São Paulo: IBCCrim, a. 20, n. 237, p. 02, ago. 2012.

HIROSE, Tadaaqui; BALTAZAR JUNIOR, José Paulo (Org.). Curso modular de direito penal. Florianópolis: Emagis, 2010.

MAIA, Rodolfo Tigre. Lavagem de dinheiro (lavagem dos ativos provenientes de crime): anotações às disposições criminais da Lei nº 9.613/1998. São Paulo: Malheiros, 1999.

MENDRONI, Marcelo Batlouni. Crime de lavagem de dinheiro. São Paulo: Atlas, 2006.MORO, Sergio Fernando. Crime de lavagem de dinheiro. São Paulo: Saraiva, 2010.

Page 162: 25 5 0 - Ministério Público do Estado de São Paulo

162

Revista de estudos CRiminais 55doutRina naCional

outubRo/dezembRo 2014

162

______. Sobre o elemento subjetivo no crime de lavagem. In: BALTAZAR JUNIOR, José Paulo; MORO, Sergio Fernando (Org.). Lavagem de dinheiro: comentários à lei pelos juízes das varas especializadas em homenagem ao Ministro Gilson Dipp. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007.

ORSI, Omar G. Lavado de dinero de origen delictivo. Buenos Aires: Hammurabi, 2007.PRADO, Luiz Regis. Direito penal econômico: ordem econômica, relações de consumo,

sistema financeiro, ordem tributária, sistema previdenciário, lavagem de capitais, crime organizado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009.

PUPPE, Ingeborg. A distinção entre dolo e culpa. Trad. Luís Grecco. Barueri: Manole, 2004.REALE JÚNIOR, Miguel. Teoria do delito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000.RIO GRANDE DO SUL. Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Apelação Criminal

nº 2006.71.00.032684-2. Apelante: Rodenilson Leite Alves e outros. Apelado: Ministério Público Federal. Relator: Desembargador Federal Paulo Afonso Brum Vaz. Porto Alegre, 22 de julho de 2009.

SILVA, Cesar Antonio da. Lavagem de dinheiro: uma nova perspectiva penal. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001.

SILVEIRA, R. M. J. Cegueira deliberada e lavagem de dinheiro. In: Boletim IBCCrim, São Paulo: IBCCrim, a. 21, n. 246, p. 3, maio 2013.

VON KAENEL, Frans J. Willful blindness: a permissible substitute for actual knowledge under the money laundering control act? Disponível em: <http://digitalcommons.law.wustl.edu/lawreview/vol71/iss4/17/>. Acesso em: 6 nov. 2012.

ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro: parte geral. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008.