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CIÊNCIA E RACISMO NOS RETRATOS LITERÁRIOS DE JULES VERNE EDMAR GUIRRA DOS SANTOS* PEDRO PAULO GARCIA FERREIRA CATHARINA** RESUMO Este texto discute a relação interdiscursiva entre o literário e o científico, isto é, entre os discursos de Jules Verne e aqueles de Lavater e Gall, tomando como corpus os retratos dos personagens dos romances Cinco semanas num balão (1863), Os filhos do capitão Grant (1867) e O Chancellor (1875). Operando no âmbito de um paralelismo intersemiótico, usaremos o conceito de interdiscurso sintetizado por Dominique Maingueneau e Patrick Charaudeau (2002). A relação interdiscursiva que ora apresentamos está ligada à utilização e à naturalização de discursos científicos que visam a inscrever, cultural e historicamente, as imagens dos personagens de Verne, maneira pela qual o autor das Viagens extraordinárias legitima seu discurso, perpetuando um habitus dominante etnocêntrico. PALAVRAS-CHAVE: Jules Verne, retratos literários, fisiognomonia, interdiscurso, racismo, habitus. No ensaio antropológico Des visages, David Le Breton, professor da Universidade de Estrasburgo, observa que, no homem, o rosto é o traço que lhe dá singularidade e seu corpo é o sinal material de sua individuação (cf. LE BRETON, 2003, p. 51). Nas discussões sobre a arte do retrato, nenhuma parte do corpo é mais apropriada do que o rosto para marcar a singularidade de um indivíduo e situá-lo no espaço social. Por extensão, podemos afirmar que, numa determinada sociedade, * Mestre em Letras Neolatinas pela Universidade Federal do Rio de Janeiro; doutorando do Programa de Pós-graduação em Letras Neolatinas da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil. Bolsista Capes-PDSE. E-mail: [email protected] ** Doutor em Letras Neolatinas pela Universidade Federal do Rio de Janeiro; Professor As- sociado do Departamento de Letras Neolatinas e do Programa de Pós-graduação em Letras Neolatinas da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil. E-mail: [email protected] 10.5216/sig.v26i1.25213

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CINCIA E RACISMO NOS RETRATOS LITERRIOS DE JULES VERNEEDMAR GUIRRA DOS SANTOS*PEDRO PAULO GARCIA FERREIRA CATHARINA**RESUMOEste texto discute a relao interdiscursiva entre o literrio e o cientfco, isto , entre os discursos de Jules Verne e aqueles de Lavater e Gall, tomando como corpus os retratos dos personagens dos romances Cinco semanas num balo (1863), Os flhos do capito Grant (1867) e O Chancellor (1875). Operando nombitodeumparalelismointersemitico,usaremosoconceitode interdiscursosintetizadoporDominiqueMaingueneauePatrickCharaudeau (2002). A relao interdiscursiva que ora apresentamos est ligada utilizao enaturalizaodediscursoscientfcosquevisamainscrever,cultural ehistoricamente,asimagensdospersonagensdeVerne,maneirapelaqual oautordasViagensextraordinriaslegitimaseudiscurso,perpetuandoum habitus dominante etnocntrico. PALAVRAS-CHAVE: Jules Verne, retratos literrios, fsiognomonia, interdiscurso, racismo, habitus.No ensaio antropolgico Des visages, David Le Breton, professor daUniversidadedeEstrasburgo,observaque,nohomem,orostoo traoquelhedsingularidadeeseucorpoosinalmaterialdesua individuao (cf. LE BRETON, 2003, p. 51). Nas discusses sobre a arte doretrato,nenhumapartedocorpomaisapropriadadoqueorosto para marcar a singularidade de um indivduo e situ-lo no espao social. Porextenso,podemosafrmarque,numadeterminadasociedade, * MestreemLetrasNeolatinaspelaUniversidadeFederaldoRiodeJaneiro;doutorandodo Programa de Ps-graduao em Letras Neolatinas da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil. Bolsista Capes-PDSE.E-mail: [email protected]** DoutoremLetrasNeolatinaspelaUniversidadeFederaldoRiodeJaneiro;ProfessorAs-sociado do Departamento de Letras Neolatinas e do Programa de Ps-graduao em Letras Neolatinas da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil.E-mail: [email protected]/sig.v26i1.25213SANTOS, E. G. dos.; CATHARINA, P. P. G. F. CINCIA E RACISMO NOS RETRATOS LITERRIOS...218quanto maior a importncia dada individualidade, maior ser o valor atribudoaorosto.Porm,sendoumaanamorfosedoindivduo,o rostoescondetantoquantorevela. Amaleabilidadedosseustraose agamadediferenasexistentesocolocamdiantedeumparadoxo:o rostoidentifcaedistingueoindivduo,provandosuasingularidade, masaomesmotempoassemelha-oaoutros.Porisso,orostosuscita, ao longo da Histria, vrias tentativas de classifcao de seus traos. Tentou-se estabelecer uma analogia entre a maneira de ser dos homens eaestruturadoseurosto,levandoaconclusescomo:talformado nariz implica tal caracterstica moral; certa inclinao da cabea, outra caracterstica.Provenientesdafsiognomonia,essasconclusesse baseavamnacrenadeque,seohomemguardaumaalmadentrode si, o rosto o veculo de sua revelao. Essa doutrina, que ser alada ao status de cincia, tem sua histria desenvolvida ao longo de sculos eretomadanofnaldosculoXVIIIporJohannKasparLavatere reinterpretada por Franz Joseph Gall no sculo XIX. Cabe-nos explorar, neste ensaio, a prolfca relao interdiscursiva (cf.CHARAUDEAU;MAINGUENEAU,2002,p.324-329)entrecinciae literatura.Essedilogoevidente,porexemplo,nasdescriesde personagensdosromancesdeJulesVerne.Osretratosliterrios, ouacomposioqueresultadareuniodasfgurasdepensamento prosopografaeetopeia,ouainda,comopretendesemiologicamente Philippe Hamon, o bloco descritivo ou o lugar do texto no qual se fxa e se modula a unidade do personagem na memria do leitor (cf. HAMON, 1993,p.104)constituiropartepreponderanteerecorrentenaobra deJulesVerne.Osretratosexemplifcamarelaoentreocientfco eoliterrio,jque,paracri-los,oautorrecorriaadocumentos cientfcos que circulavam poca. Depois de traarmos a trajetria da fsiognomonianaHistria,mostraremoscomoecomquaisobjetivos a cincia usada para a elaborao de retratos literrios de brancos e selvagensnosromancesdeJulesVerne,perpetuando,dessemodo, ideais etnocntricos.A FISIOGNOMONIA: DA DOUTRINA CINCIAA doutrina da fsiognomonia antiga. Encontram-se vestgios na Bblia de frmulas que sugerem o seu programa, mas que, ao mesmo SIGNTICA, v. 26, n. 1, p. 217-239, jan./jun. 2014219tempo, apontam para o seu perigo: No rosto, reconhecemos o homem e,aoseuencontro,suaalma;asvestesdeumhomem,orisodeseus dentes e o modo como caminha anunciam o que ele (Ecl 19, 29-30). Ou ainda: O corao do homem modela seu rosto seja para o bem ou paraomal.Paraumcoraoemfesta,rostoalegre(Ecl13,25-26). Porm, no mesmo livro, encontramos: No louve um homem por sua beleza e no tome averso por ningum pelo seu rosto (Ecl 11, 2).Noseuensaioantropolgico,DavidLeBretonpluralizaa questoeafrmaqueasfsiognomonias(physis:naturezaegnomon: interpretao,conhecimento)maissistemticasnasceramnaGrcia com refexes de Pitgoras e encontraram em Aristteles uma via que se abriu e foi explorada at Lavater, antes de ganhar espao nas caricaturas (cf. LE BRETON, 2003, p. 55). Jurgis Baltrusaitis (1873-1944), historiador russo e crtico de arte, afrma que Aristteles, no segundo sculo depois de Cristo, em seu livro Physiognomonica, observava:Os bois so lentos e preguiosos. Eles tm a ponta do nariz grossa e os olhos grandes: so lentos e preguiosos aqueles que tm a ponta do nariz grossa e olhos grandes. Os lees so magnnimos e tm a ponta do nariz redonda e achatada, os olhos relativamente profun-dos: so magnnimos aqueles que tm as mesmas particularidades no rosto. (BALTRUSAITIS, 1983, p. 10)1Oautorexplicaque,nessapassagemdolivro, Aristtelestrata dapossibilidadedejulgarapersonalidadedaspessoasatravsda observao do seu rosto, a fm de se precaver de possveis decepes. Na Idade Mdia e no Renascimento, a fsiognomonia alimentada porumavisodomundocomounidade.Adoutrinafsiognomnica focava-senatentativadeuniformizaroqueeracomplexo:orosto humanoesuasdiferenas.Daasrelaesdecausaeefeito:paratal traofacial,talcomportamentoeraprevisto.DominiqueBaqu,em seulivroVisages,observaque,noRenascimento,afsiognomonia temestatutodeartedivinatria.SegundoBaqu,naquelapoca,a fsiognomonianotratavasomentederelacionarostraosdorostoe a identifcao do carter de um indivduo, mas tambm de estabelecer correspondnciasentreocorpoeorostocomosdadosdosmeios visveiseinvisveis,igualando-se,assim,artedaquiromancia,que SANTOS, E. G. dos.; CATHARINA, P. P. G. F. CINCIA E RACISMO NOS RETRATOS LITERRIOS...220acreditava ser a superfcie das coisas uma simples traduo material do seu interior (cf. BAQU, 2007, p. 28).Diversos tratados surgem ao longo dos sculos, acompanhando o desenvolvimento do individualismo, coincidindo com o progresso do retrato em pintura, como estudado por Daniel Bergez (2004, p. 87). No entanto,noperodorenascentistaqueosfsiognomonistastmuma atitude inversa daquela dos pintores. Le Breton, tratando da diferena de objetivos de um e outro, afrma:Confrontados com o mistrio que a singularidade do indivduo traz, ospintoresseprestamareconstituiradiferenainfnitesimalque distingue um homem de outro. Eles aceitam o inapreensvel de uma experincia da qual tm conscincia de s fxar um frmito. Ao con-trrio,osfsiognomonistasfogemdiantedacomplexidadeinfnita do mundo e da diversidade dos rostos. Eles classifcam as singulari-dades sob regras gerais. (LE BRETON, 2003, p. 58-59)Em1586,publicadoDehumanaphysiognomonia,de Giambattista Della Porta (1535-1615):Giambattista Della Porta. De humana physiognomica, 1586 (Frontispcio).SIGNTICA, v. 26, n. 1, p. 217-239, jan./jun. 2014221Nessaobra,comoanunciadonoparatextofrontispcio,Della Portatratadoparalelismoentreohomemeoanimal,combasena comparao rosto/fgura do animal, e faz do carter humano uma natureza presente nos traos do rosto e do corpo, assim como no comportamento. O autor recusa as infuncias das artes divinatrias e funda seu estudo na analogia entre os traos do animal e aqueles do homem, a fm de inferir aexistnciadesingularidadesnascaractersticashumanas.Assim,o rosto de Plato, por exemplo, comparado ao focinho de um cachorro e aquele de Scrates, ao de um cervo. Giambattista Della Porta. De humana physiognomonia, 1586, p. 30 e 41.SegundoDellaPorta,asaproximaesfeitasconferemaoho-mem os traos comportamentais imputados ao animal. Logo, o homem comcabeaderaposaterastcia,aquelecomcabeadecorujater sabedoria,oqueseassemelhacomacabeademacacosergiletc. (cf. DELLA PORTA, 1586, p. 30). Com Della Porta, a fsiognomonia torna--se uma semitica das aparncias e abandona a ideia de que, atravs do rosto do homem, pode ser feita uma projeo divinatria do seu carter, como defendido no Renascimento. Della Porta mostra um valor semi-tico das caractersticas corporais cuja distribuio se relaciona com os traos da personalidade. SANTOS, E. G. dos.; CATHARINA, P. P. G. F. CINCIA E RACISMO NOS RETRATOS LITERRIOS...222

Giambattista Della Porta. De humana physiognomonia, 1586, p. 29, 34 e 37. Giambattista Della Porta. De humana physiognomonia, 1586, p. 51, 53 e 55.SIGNTICA, v. 26, n. 1, p. 217-239, jan./jun. 2014223NosculoXVII,humredescobrimentodastradies fsiognomnicas.Lartde connatre les hommes,de Marin Cureaude laChambre(1594-1669),publicadoem1653,marcaumaprimeira tentativadedistanciarafsiognomoniadastradiesanteriores.No prefciodasuaobra,vemosque,almdedescreverseusobjetivos, CureaudelaChambrereformulaafsiognomonia,adequando-aao gostodamoderao,datemperana,domeiotermoedaprudncia. Nota-seque,paraCureaudelaChambre(1653),ocorpotemuma linguagem natural a ser decifrada:Ela [a Natureza] no deu ao homem somente a voz e a lngua para serem os intrpretes dos seus pensamentos; mas, por desconfana dequeelepodiaabusar,elafezfalarsuatestaeseusolhospara desmenti-lo quando aquelas no fossem fis. Ela espalhou toda sua almanaparteexterior,enonecessrio[ilegvel]paraverseus movimentos, suas inclinaes e seus hbitos, j que elas aparecem escritas no rosto em traos visveis e manifestos. Socomessestraosquetemosoobjetivodecomporamaiore maistilobraquetalveznuncatenhasidoempreendida;emque esto contidos os mais belos e mais necessrios conhecimentos que o homem possa adquirir; na qual, enfm, podem-se encontrar o se-gredo e a perfeio da Sabedoria e da Prudncia humanas. (CUREAU DE LA CHAMBRE, 1653, p. 1-2)Somenteentre1775e1778,afsiognomoniaascenderao patamar de cincia. Naquela poca, Lavater publica Physiognomische fragmente, traduzido para o francs em La Haye, em 1803, depois em Paris, entre 1806 e 1809. Diversas obras de vulgarizao dos seus estudos foram publicadas e contriburam para a sua difuso: Le Lavater portatif ou prcis de lart de connatre les hommes par les traits de leur visage (1808); Le Lavater des dames ou lart de connatre les femmes sur leur physionomie (1815); ou ainda De la physionomie et des mouvements de lexpression (1865), Trait de physiognomonie ou lart de connatre et dejugerlesmoeursetlescaractresdaprslaphysionomie(1878); ePhysiognomonieetphrnologierenduesintelligiblespourtoutle monde (1909). Com seus estudos, Lavater (1979) tinha o objetivo de determinar precisamenteosvnculosqueunemaconformaodorosto personalidade do homem: SANTOS, E. G. dos.; CATHARINA, P. P. G. F. CINCIA E RACISMO NOS RETRATOS LITERRIOS...224A fsiognomonia a cincia, o conhecimento da relao que liga o exterior ao interior, a superfcie visvel ao que ela encobre de invi-svel.Numaconceporestrita,compreende-seporfsionomia,a aparncia, os traos do rosto, e por fsiognomonia o conhecimento dos traos do rosto e sua signifcao. Aquele que julga o carter do homemnumaprimeiraimpressoquesefazdoseuexteriorna-turalmente fsiognomonista; ele o faz cientifcamente quando sabe expor de maneira precisa e organizar numa ordem os traos e sinais observados; enfm, o fsiognomonista flsofo aquele que, na ins-peo de tal ou tal trao, de tal ou tal expresso, capaz de deduzir as causas e de dar as razes internas dessas manifestaes exterio-res. (LAVATER, 1979, p. 6)Por trs dessa nova roupagem conceitual a gradao que leva dofsionomistanaturalaocientista,vemosumaatualizaodas tradies antigas tomando o nome de cincia e a renovao da crena na analogia entre a exterioridade e a interioridade.Nas obras de vulgarizao dos estudos de Lavater que o fzeram cruzarosculoXIX,afsiognomoniatambmvistacomocincia. Pierre Gratiolet (1815-1865), anatomista e zologo francs, menciona, noprefciodesuaobra,estemovimentodepassagemeevoluoda arte fsiognomnica cincia: O estudo da fsionomia, ou seja, das modifcaes que os sentimen-tos, as sensaes e as ideias imprimem na forma de um ser vivo, cha-mou, desde tempos antigos, a ateno dos artistas e poetas. [...] Mas, paraacinciafsiognomnicacomoparaamedicina,odesejo,ou melhor, a imperiosa necessidade de aplicao imediata desviou du-rante muito tempo o estudo dos movimentos de expresso. Assim, a Antiguidade e a Idade Mdia nos legaram uma quantidade quase inu-mervel de escritos sobre a fsiognomonia; mas o que eles so na sua maiorparte?Ousriededescriesisoladassobreosmovimentos que exprimem tal ou tal paixo; ou, mais frequentemente, falaciosos procedimentos de adivinhao, a arte enganadora de distinguir o ver-dadeiro do falso no rosto humano. (GRATIOLET, 1865, s.p.)Defnindo-a,odoutorF.Rouget(1878)tambmdcontornos cientfcos fsiognomonia e explica o conceito de Lavater no prefcio de seu resumo-vulgarizao:SIGNTICA, v. 26, n. 1, p. 217-239, jan./jun. 2014225A fsiognomonia a arte de julgar os homens pelos traos do rosto e de conhecer o interior do homem pelo seu exterior. Essa cincia s parece ridcula quando se deseja lev-la longe demais. Todos os rostos, todas as formas, todos os seres so diferentes, no somente na sua classe, no seu gnero e na sua espcie, mas tambm na sua individualidade. Por que essa diversidade de formas no seria uma consequncia da diversidade dos caracteres? Ou por que a diversi-dade dos caracteres no estaria ligada a essa diversidade de formas? (ROUGET, 1878, p. 7-8)TambmresumindoosestudosdeLavatereGall,Alexandre Ysabeau (1909), na introduo da sua obra, esboa e justifca a inteno deorganizarasideiasexploradaspeloscientistas,defendendoolado cientfco das fsiologias psicolgicas que eles desenvolveram:Poucosentreaquelesqueouvempronunciaracadainstanteosno-mes de Lavatter e Gall e que se preocupam vagamente com os seus sistemasderam-seotrabalhodelersuasobras.necessrio,para l-lasporinteiro,umadosemaisdoquesimplesdeperseverana. Lavater, sobretudo, que apesar de sua modstia um pouco exagerada, sabiamuitascoisas,nosabiafazerumlivro,ouseja,eleignorava completamente a arte de classifcar suas ideias e apresent-las numa ordem clara, metdica, precisa, dando a seduo da forma. [...] Pare-ceu oportuno, numa poca em que as ideias so expostas com audcia por Lavater e Gall, resumir o que contm de positivo e compreensivo duas divises importantes da fsiologia psicolgica: a fsiognomonia e a frenologia. Este livro compreende, por essa razo, duas partes dis-tintas:aprimeiradestinadafsiognomonia,cujosprincpioscien-tfcosforamextradosdasobrasdeLavater;asegundadedicada frenologia, cujas noes so retiradas, sobretudo, das obras do doutor Gall e dos fsiologistas da sua escola. (YSABEAU, 1909, p. 1-3)De um modo geral, podemos dizer que a noo de fsiognomonia tratavadoestudodapersonalidadedohomematravsdaobservao dostraosdoseurosto.Nota-seque,emboraafsiognomoniatenha evoludoepistemologicamente,ascendendoaostatusdecinciacom os estudos de Lavater, ela manteve seu conceito primeiro: o rosto como veculo de expresso das faculdades do homem ou de suas inclinaes anmicas. Para a fsiognomonia, cada trao do rosto dotado de um va-SANTOS, E. G. dos.; CATHARINA, P. P. G. F. CINCIA E RACISMO NOS RETRATOS LITERRIOS...226lor fsiognomnico. Segundo o autor, h partes especfcas do rosto que denotamouindicamcertascaractersticasnohomem.Lavatertentou dar conta de cada uma dessas partes separadamente, examinando e atri-buindo-lhes valores. Entre as partes examinadas por ele, compreende--se a testa, os olhos, as sobrancelhas, o nariz, a boca, os dentes, o quei-xo, as bochechas, as orelhas, o pescoo e os cabelos. Como exemplo, visando compreenso do funcionamento do sistema fsiognomnico, resumimosnosquadrosabaixo,combaseem Ysabeau(cf.YSABEAU, 1909, p. 32-46), essas relaes de causa e efeito para a testa, os olhos e os lbios: TESTAhorizontal polivalncia e, ao mesmo tempo, falta de energiacurta, compacta grande frmeza no carterde traos arredondados personalidade docereta e arredondada no corpo superioridade intelectualproeminente e arredondada imbecilidade, fraqueza intelectualinclinada para trs imaginao, delicadezaperpendicular e proeminente no topo suscetibilidade, frieza, violnciaarqueada (mais frequente nas mulheres) clarividnciaOLHOSbem abertos, terminados em ponta para o lado do nariz rara inteligncia, delicadezacom a plpebra superior arqueada timidez, fraquezabem desenhados, com plpebras pouco carnudas coragemgrandes e salientes estupidez- Olhar constante, fxo solidez de personalidade, constncia de ideias- Olhar varivel, mvel frivolidade, inconstnciaLBIOSmoles e mveis indeciso, instabilidade de humorconsistentes frmeza de cartergrandes e desenhados ausncia de baixeza, sinceridadefnos em linha horizontal sangue frio, esprito de ordem, avarezacom proeminncia do lbio superior bondade, simplicidadeTendo visto a noo da cincia fsiognomonia em seu percurso at o sculo XIX, podemos falar da relao entre os discursos literrio ecientfco;nocaso,entreaconstruodosretratosdospersonagens emJulesVerneeateoriasistematizadaporLavater.Cabedizerque, SIGNTICA, v. 26, n. 1, p. 217-239, jan./jun. 2014227com o uso da fsiognomonia, uma cincia relativamente moderna para Verne, o escritor tem o respaldo cientfco para cumprir seus objetivos contratuais para com seu editor Jules Hetzel, aqueles de reunir o que a cincia da sua poca realizava e transformar em literatura.RETRATOS LITERRIOS E A FISIOGNOMONIA Jules Verne, frequentemente julgado por ter criado personagens cujapsicologiafoinegligenciada,utilizouacinciaparacriarseus herisepersonagens.Emgeral,descritosnoinciodosromances,s vezesempoucasfrases,ospersonagensvernianospersonifcamum nmerolimitadodecaractersticasfsicasededisposiesmorais.2 NasViagensextraordinrias,cadapersonagemevocaumarealidade geral,cuidadosamentedeterminada,tendoumvaloressencialmente representativo e compondo, portanto, uma galeria de tipos. Como no h mudana na moral dos personagens ao longo das tramas, o honnte homme e seu oposto tm suas caractersticas fsicas e morais preservadas pelosnarradores.3Oescritorfxaimutavelmenteasqualidadesdos personagensnorosto;aconfguraoeaexpressofaciaissetornam mais eloquentes do que suas palavras. Assim, os personagens, sendo de simplesoupoucaspalavras,tmtodaasuaenergiatransmitidapelos olhos, por um detalhe da boca ou pela conformao da testa, conferindo aorostonosumgraudemaiorsignifcnciaemrelaoaocorpo, como tambm para a funo na trama. A constituio do todo tambm simblica em Verne; vigor ou debilidade refetem caractersticas como generosidadeoufaltadeenvergadura,respectivamente.Notamosque a preocupao de Verne era a de criar personagens evidentes, e no desurpreenderoleitorcommudanasimprevisveisdecarter;suas caractersticas fsicas deveriam anunciar suas aes. Assim, com base na imutabilidade e na relao de causa e efeito da cincia fsiognomnica, Verne cria diversos retratos de seus personagens.Emmaisdeumromance,onarradorfazalusodireta fsiognomonia, ao nome de Lavater ou a um dos vulgarizadores de sua obra, contemporneos de Jules Verne. Em Da Terra Lua, romance de 1865,paradarmaisrigorepesoaoretratodeMichel Ardan,umdos trs astronautas que viajaria at a Lua, o narrador menciona os nomes de Lavater e Gratiolet e evoca analogias caras fsiognomonia:SANTOS, E. G. dos.; CATHARINA, P. P. G. F. CINCIA E RACISMO NOS RETRATOS LITERRIOS...228OsdiscpulosdeLavateroudeGratioletteriamdecifradosem esforonocrnioenafsionomiadessepersonagemossinaisin-discutveisdacombatividade,dabondadeedaexcelncia.Mas emcompensao,faltavam-lheabsolutamenteasprotuberncias daaquisiodosaber,essanecessidadedepossuiredeadquirir. (VERNE, 1975a, p. 103)EmOChancellor(1875),hdoisretratosqueatestama interdiscursividade com a cincia fsiognomnica. Para o do americano Mr. Kear, um dos tripulantes da embarcao que atravessaria o Oceano Atlntico, no h somente uma relao interdiscursiva com a cincia, mastambmumacitaointertextualdaspalavrasdeGratiolet, destacada entre aspas, que tratam da semelhana de comportamento do personagem com aquele de um pavo: Orgulhoso, vaidoso, contemplador de si mesmo, denegridor dos ou-tros, ele demonstra uma suprema indiferena por tudo o que no ele. Gaba-se como um pavo, ele se cheira, se saboreia, se expe-rimenta, para empregar os termos do sbio fsionomista Gratiolet. (VERNE, 1975b, p. 11)Este o tpico exemplo em que o retrato do personagem anuncia suas aes: no naufrgio do Chancellor, Mr. Kear abandonar sua esposa enfermaaoscuidadosdosoutrostripulantes.Duranteosperodosem que esto deriva, com poucas provises, numa atitude egosta, como anunciado no seu retrato, Mr. Kear s pensa no seu bem-estar e na sua sobrevivncia.J no retrato de outro tripulante, o senhor Letourneur, o discurso dafsiognomoniaapareceimplicitamente,semalusesoucitaes: Este homem carrega consigo uma fonte inesgotvel de tristeza e isso se v no seu corpo um pouco curvado [...]; Seu rosto possui um misto de amargura e amor [...]; A expresso geral da sua fsionomia de uma bondade acariciante (VERNE, 1975b, p. 7). Aindaquesemalusodiretacinciafsiognomnicaouaos nomesdequemadesenvolveu,podemosexplorarretratosdeoutros romancesvernianos.ParaosherisviajantesdeCincosemanasnum balo(1863),afsionomiaapontaparasuasfuturasaesabordodo balo Victoria. Do doutor Fergusson, temos: SIGNTICA, v. 26, n. 1, p. 217-239, jan./jun. 2014229Seu temperamento sanguneo se traa por uma colorao forte de seu rosto. Tinha um semblante frio, de traos regulares, com o nariz forte, nariz em proa de um navio, como o de um homem predestinado s descobertas; seus olhos tranquilos, mais inteligentes do que ousados, davam um grande charme sua fsionomia. (VERNE, 1975c, p. 3)Para o retrato de Dick Kennedy, o alter ego do doutor Fergusson, onarradorsevaledeumaalusopinturadoretratodeHalbert Glendinning, personagem de Walter Scott, em O monastrio, e afrma que Dick Kennedy tinha uma fsionomia fortemente curtida pelo sol, olhos vivos e negros, de uma ousadia natural e bem decidida (VERNE, 1975c, p. 11).Em Os flhos do capito Grant (1867-1868), com frequncia, o pequeno espao descritivo que destinado ao retrato de alguns perso-nagensaproveitadoparasefazeraanalogiaexterior/interior,cara fsiognomonia.Porexemplo,lendooretratodeMaryGrant,irmdo jovem Robert Grant, vemos que ela apresentada com sua fsionomia resignada,caractersticaquelhesernecessriaaolongodatrama. Para o retrato do major Mac Nabbs, tambm no seu rosto que perce-bemos sua calma e passividade: O major era um homem de cinquenta anos, de fsionomia calma e regular (VERNE, 1975d, p. 28).Napesquisaqueefetuamos,mostraram-seindispensveis,ao longodahistriadafsiognomonia,asanalogiasentrehomenseani-mais. Em todos os tratados em que pesquisamos, ao menos um captulo reservado a esse paralelismo, compreendendo que h sempre alguma semelhanafsicaentreohomemeoanimal,umtraoexterior,que indica um comportamento, como no retrato de Mr. Kear, tripulante do Chancellor, que comparado ao pavo. O retrato de Michel Ardan, do qual j exploramos uma parte, tambm exemplar a esse respeito: Eraumhomemdequarentaedoisanos,grande,masjumpou-co curvado, como essas caritides que suportam sacadas sobre seus ombros. Sua cabea forte, verdadeira juba de leo, sacudia por ve-zesumacabeleiraardentequelheproduziaumaverdadeiracrina. De rosto curto, largo na altura das tmporas, ornado por um bigode eriadocomoasbarbasdeumgatoepequenosbuqusdeplos amarelados saindo das bochechas, olhos redondos, um pouco perdi-dos, e um olhar de mope completavam essa fsionomia eminente-mente felina. (VERNE, 1975a, p. 103)SANTOS, E. G. dos.; CATHARINA, P. P. G. F. CINCIA E RACISMO NOS RETRATOS LITERRIOS...230Afsionomiafelinatraduzidapelaspalavrasjubadeleo, barbasdeumgato ecrina,que anuncia o sangue-frioe a energia que so conferidos ao personagem ao longo do romance, harmoniza-se com os conceitos fsiognomnicos descritos por F. Rouget, vulgarizador dos estudos de Lavater: O leo , como todos sabem, um animal feroz, to forte e to cora-joso, que o chamamos de o rei dos animais. A face do homem-leo traz a impresso da energia, da calma e da fora; porm raro que essacaractersticapossaseencontrarporcompletonumrostohu-mano. por aluso que se deu esse nome a todo homem que causa sensao no mundo por um ato clebre ou originalidade qualquer. No pelas qualidades morais que se adquire esse ttulo, que d o ttulo do rei dos animais. (ROUGET, 1878, p. 192)O grau de celebridade e o ttulo de originalidade do personagem Michel Ardan, ou homem-leo, segundo Rouget, lhe so garantidos ao fnal do retrato com as palavras do narrador: Era um desses excntricos que o criador inventa num momento de fantasia cujo molde quebrado logo em seguida (VERNE, 1975a, p. 104). EmCincosemanasnumbalo,naocasiodosalvamentode ummissionriofrancsaprisionadoporselvagensafricanos,os personagens que viajam a bordo do balo Victoria se deparam com uma cena em que acreditam ver rpteis e no os negros habitantes do local. Aqui,adescriodessesafricanos,emboranoconstituaumretrato literrio propriamente dito, permite a criao de uma imagem em que os africanos so comparados a rpteis:H alguns minutos eles escutavam mudos e imveis na folhagem. Aumcertorumordecascaqueseproduziu,Joepegouamodo escocs. Voc no est ouvindo? Sim, est se aproximando. Se fosse uma serpente? Esse assovio que voc notou... No! tinha algo de humano. Prefro os selvagens, disse Joe. Esses rpteis me repugnam. O barulho est aumentando, disse Kennedy, alguns instantes depois. Sim! Esto subindo, escalando!SIGNTICA, v. 26, n. 1, p. 217-239, jan./jun. 2014231 Vigie desse lado, eu me encarrego do outro. Tudo bem.Os dois se encontravam isolados no topo de um galho principal que cresceuretonessaforestachamadabaob;aescuridoampliada pela espessura da folhagem era profunda; no entanto Joe, inclinan-do-se, apontando para a parte inferior da rvore, disse no ouvido de Kennedy: Negros!Algumas palavras trocadas em voz baixa at chegaram aos ouvidos dos dois passageiros. Joe pegou a espingarda. Espere, disse Kennedy.Os selvagens tinham de fato escalado o baob; eles surgiam de toda parte, arrastando-se sobre os galhos como rpteis, subindo lentamen-te, mas com frmeza; eles se traam pelas emanaes de seus corpos untados com uma gordura infecta. (VERNE, 1975c, p. 120-121) NocaptulointituladoAnalogiedesfgureshumainesavec divers animaux, no resumo que faz dos estudos de Lavater, Ysabeau (1909)afrmaqueapiordasanalogiasquesepodefazerentreum homem e um animal so aquelas que evocam os rpteis, particularmente as serpentes. Ele explica que os homens portadores dessa caracterstica ingrata representam a astcia desprovida de um sentido honesto e da foraquedeterminaaao(YSABEAU,1909,p.116).Naeconomia geraldoromance,adescriodessespersonagensafricanosestem consonnciacomasconsideraesdeYsabeau.Essesselvagens aprisionaram o missionrio francs para com-lo. Portanto, salvando-o, os heris do romance evitam uma cena de canibalismo. O paralelismo estabelecido com a fgura de animais recorrente emJulesVernequandosetratadenegros.EmOChancellor,o cozinheiro Jyxntrop, nico negro da embarcao, recebe a qualifcao de besta feroz. No romance Cinco semanas num balo, os indgenas africanos so comparados a macacos: Ns pensamos que voc estava cercado pelos indgenas. Eram apenas macacos, felizmente!, respondeu o doutor. De longe, a diferena no grande, meu caro Samuel. Nem mesmo de perto, replicou Joe. (VERNE, 1975c, p. 72) SANTOS, E. G. dos.; CATHARINA, P. P. G. F. CINCIA E RACISMO NOS RETRATOS LITERRIOS...232Em Os flhos do capito Grant, os tripulantes do navio Duncan, procuradocapitodesaparecido,encontram-seentonaAustrlia. Viajandonumaespciedecarroajuntocomosoutrospersonagens, Robert, flho do capito, para diante de uns eucaliptos e afrma ver um macaco. H, ento, a perseguio do macaco que se move por entre as rvores e acompanhado a partir do olhar dos personagens que esto dentro da carroa em movimento:Comefeito,areservapareciacompletamente abandonada.Nose via vestgio nem de acampamento nem de cabanas. As plancies e as extensas forestas sucediam-se, e pouco a pouco o pas foi tomando um aspecto selvagem. Parecia at que nenhum ser vivo, homem ou animal, frequentava aquelas regies remotas, quando Robert, paran-do diante de uns eucaliptos, exclamou: Um macaco! Um macaco!E apontava para um grande corpo negro que, passando de ramo em ramo com surpreendente agilidade, pulava de uma rvore para ou-tra, como se uma rede o sustentasse no ar.Ocarropararaecadaqualseguiaolhandooanimal,quepoucoa poucosumiunoaltodoeucalipto.Daliapouco,viram-nodescer comarapidezdorelmpago,correr,fazendomilharesdecontor-es e dando saltos, e depois agarrar-se com os compridos braos ao tronco liso de uma enorme gomeira. Todos se perguntavam como que ele subiria por aquela rvore reta e escorregadia, que no podia abraar.Mas o macaco, batendo alternadamente no tronco com uma espcie de machado, fez pequenos talhos, e por estes pontos de apoio, regu-larmente espacejados, chegou altura em que a gomeira se dividia em ramos. Em poucos segundos desapareceu na folhagem. Que macaco aquele? perguntou o major. Aquele macaco respondeu Paganel um australiano de raa pura! (VERNE, 1975d, p. 318)Nessa passagem, a ideia de que os personagens acreditam estar vendo macacos corroborada no fnal da cena com a interveno das palavras do narrador:Nunca seres humanos tinham apresentado to inteiramente tal tipo de animalidade.SIGNTICA, v. 26, n. 1, p. 217-239, jan./jun. 2014233 Robert no se enganava disse o major , so macacos; de raa pura, se quiserem, mas so macacos!Mac-NabsreplicouLadyHelenabrandamente,dariarazo aos que os tratam como animais ferozes? Aqueles pobres entes so homens! Homens! exclamou Mac-Nabs. Quando muito criaturas inter-medirias entre o homem e o orangotango. E at se eu lhe medisse o ngulo facial, o acharia to fechado quanto o do macaco!Sob esse ponto de vista, Mac-Nabs tinha razo: o ngulo facial do indgena australiano muito agudo, igual ao do orangotango, isto , tem de sessenta a sessenta e dois graus. Por isso no foi sem razo queMr.Rienzipropsqueclassifcassemaquelesinfelizesnuma raa parte, a que chamava de pitecomorfos, isto , homem com forma de macaco. (VERNE, 1975d, p. 320) A concluso do narrador extrai seu substrato da frenologia, cin-cia derivada da fsiognomonia e desenvolvida por Joseph Gall no incio do sculo XIX que, segundo Ysabeau, baseava seus estudos na obser-vao e na apalpao das protuberncias do crnio, a fm de estabelecer umapossvelrelaocomasfaculdadesmoraiseintelectuaisdo homem.AcinciadesenvolvidaporGalldifundiaaideiadeque entreasfaculdadesquesetraduzempelodesenvolvimentodecertas circunvoluesdocrebroeaformaodecertasprotubernciasna superfcieexteriordocrnio,halgumasquesoparticularesaos homensesexistemnele,eoutrasqueelesdividemcomdiversos animais (YSABEAU, 1909, p. 175).OanatomistaholandsPetrusCamper(1722-1789)jhavia tecidoobservaessobreongulofacialdohomemafmdemedir seu grau de inteligncia e beleza. Angle Marietti cita o anatomista no artigo intitulado Lanthropologie physique et morale en France et ses implications idologiques: Parecequeaprprianaturezautilizouessenguloparamarcaros diversos graus no reino animal e estabelecer uma espcie de escala ascendente,desdeasespciesinferioresatasmaisbelasformas que se encontram na nossa espcie. H, por exemplo, entre os maca-cos, uma espcie que tem o ngulo facial de 42; j em outro animal damesmafamlia,queumdosmacacosmaisparecidoscomo SANTOS, E. G. dos.; CATHARINA, P. P. G. F. CINCIA E RACISMO NOS RETRATOS LITERRIOS...234homem, esse ngulo de 50. Logo depois vem a cabea do negro africanoqueapresentaumngulode70.Finalmente,nacabea dos homens da Europa, o ngulo de 80. desta diferena de 10 que depende a maior beleza do europeu, o que podemos chamar de beleza comparativa. Quanto a essa beleza absoluta de algumas obras doestaturioantigoquenossurpreendeemtoaltograu(comoa cabea de Apolo),ela resulta deuma abertura maior desse ngulo que, nesse caso, atinge mais de 100. (MARIETTI, 1984, p. 328-329)Para a fsiognomonia, beleza e feiura tambm recebem explica-es valorativas. Em geral, Lavater afrma que a virtude embeleza e os vcios enfeiam ohomem. Todo indivduo que nasce com belostraos faciais e uma boa conformao craniana favorecido e s tem de seguir suas inclinaes, sem maiores esforos, para ser virtuoso; j o indivduo que nasce feio tem maiores difculdades de perseverar no bem. Lavater acreditaque,pelofatodeafeiuraserhereditria,herda-seotempe-ramentocomoseherdamtraosdorosto(cf. YSABEAU,1909,p.18). Seguindoesseraciocnio,Lavateresboaoqueseriaoidealdorosto humano, aquele que rene as linhas mais bem-desenhadas e as propor-es mais harmoniosas que podem ser cumuladas no rosto humano:Senorosto,dizLavater,vocencontraosseguintestraos,cada um separadamente e bem-defnidos, esteja certo de ter encontrado uma face quase sobre-humana: 1- Igualdade manifesta entre as trs partes simples do rosto a testa, o nariz e o queixo; 2- A testa termi-nada horizontalmente, em consequncia as sobrancelhas quase hori-zontalmente dispostas, espessas; 3- Olhos azuis ou castanho-claros que, h alguns passos de distncia, parecem negros, cujas plpebras superiores cobrem a pupila em um quinto ou um quarto; 4- Um na-riz cuja espinha larga, quase paralela, porm um pouco levantada; 5-Umabocahorizontalnoseuconjunto,cujolbiosuperiorea linhacentralabaixam-seligeiramentenomeio,pormemalguma profundidade e cujo lbio inferior no maior que o lbio superior; 6-Umqueixoredondoesaliente;7-Cabeloscurtos,castanho-es-curos encrespados em grandes pores. (YSABEAU, 1909, p. 20-21)Naticapelaqualprocuramosanalisarosretratosdos personagens,oOutrosempredeumaincontestvelfaltadebeleza e falta de inteligncia. Os relatos de viajantes, modelos de escrita nos SIGNTICA, v. 26, n. 1, p. 217-239, jan./jun. 2014235quaisJules Vernesebaseiaparacriarseusromances,aesserespeito, tambm so abundantes em retratos pouco elogiosos dos selvagens. Tantonosromancescomonosrelatosdeviajantes,quantomenos aespcietemsuaintelignciaoubelezavalorizada,menosafgura humanasedesenhanadescriodosrostosdesseshomens,emais aparecem caractersticas animalescas como vimos nos retratos citados anteriormente.CONSIDERAES FINAISNastipologiasqueapresentamosequeconstituemodilogo interdiscursivoquepudemosestabelecercomosretratosvernianos,a cabea e o rosto so objetos cujos traos servem para fundar comparaes, paralelismoseclassifcaesque,svezes,nospareceminslitas. As ideias veiculadas pela fsiognomonia e pela frenologia, que desejavam fazer do rosto e do crnio a determinao de uma psicologia ou de uma inteligncia,estavamdistantesdeseextinguirnasegundametadedo sculo XIX. As teorias evolucionistas basearam na observao do rosto edocorpoacertezadasuperioridademoraleintelectualdohomem branco que colonizava, assim, em nome do progresso, as sociedades julgadaspoucoevoludasouinferiores.MaisadiantenaHistria,os ArianosjustifcaramseudireitodesupremaciasobreosSemitas pela mesma mstica da raa corporal. Queremos inferir que, assim como o pensamento racista mais atual, a fsiognomonia e a frenologia, com o respaldo de serem teorias cientfcas, fzeram do homem um produto dedutvel pela conformao de seus traos faciais e do seu corpo, que determinariamseucomportamento.Elasnaturalizamasdiferenas sociaiseindividuais,asdesigualdadesentreasclassesouentreos povos.Ora,oracistatambmumfsiognomonista.Noentanto,ele difere do fsiognomonista porque procura as raas no rosto, enquanto a fsiognomonia se foca na personalidade. Porm, um e outro tm a mesma lgica de inferncia do fsico no moral.Emsuma,arelaointerdiscursivacomacincia,naobra deVerne,tratadedarumfundamentocientfcoaoracismoede justifcarocolonialismocrescentedasegundametadedosculoXIX pela demonstrao da falta de beleza e de inteligncia das populaes no civilizadas ou submissas. A relao interdiscursiva com a cincia SANTOS, E. G. dos.; CATHARINA, P. P. G. F. CINCIA E RACISMO NOS RETRATOS LITERRIOS...236que destacamos, ao estudarmos os retratos literrios, no serve somente parailustraradiferenaentrebrancoseselvagens;elaresponsvel porconstruiressadiferena.Osretratosliterriosqueanalisamosso produtos e produtores, estruturam e so estruturados no e pelos discursos quelhesservemdereferncia.Esseprocessoatestaamanuteno quesefazdodiscursocientfcoatravsdaliteraturadeJulesVerne, auxiliando-o na legitimao da sua carreira de escritor.Essas consideraes parecem ainda mais graves se as associarmos aosobjetivosldicosepedaggicosprevistosnoprojetoeditorialdo qual Jules Verne fazia parte. Autor e editor asseguravam a importncia da leitura na idade juvenil como constitutiva dos pilares da vida adulta. Nosporrevelar-secomoumadasviasnoprocessodeconstruo do conhecimento, mas tambm como fonte de informao e formao cultural. A leitura seria, portanto, de importncia basilar para a formao do habitus, esse elemento unifcador de uma classe do qual fala Pierre Bourdieu (2003, p. 21-22), j que o objetivo maior, ao proceder leitura de uma determinada obra, consiste em aprender e apreender o que se est lendo. Sub-repticiamente, o jovem leitor introjeta os valores veiculados pela obra. Assim, em virtude do cunho pedaggico que se pronunciava na obra de Jules Verne, os retratos dos personagens analisados concorrem paraofortalecimentoeaperpetuaodeumhabitusdominante, visandoaincutir,demaneirainconsciente,valorespreconceituosos vigentesecomunsacertascamadasdasociedadefrancesadosculo XIX, confgurando uma forma de violncia simblica.SCIENCE AND RACISM IN LITERARY PORTRAITS OF JULES VERNE ABSTRACTIt consists in discussing the interdiscursive relationship between literature and science, that is, between the discourses of Lavater and Gall and Jules Verne, taking as a corpus the character portraits of Five weeks in a balloon (1863), Children of Captain Grant (1867) and The Chancellor (1875). Operating in a contextofaninter-semioticparallelism,weusetheconceptofinterdiscourse synthesized by Dominique Maingueneau and Patrick Charaudeau (2002). The interdiscursive relationship presented here is linked to the use and naturalization of scientifc speeches intended to apply cultural and historical images of Vernes characters, which is how the author of Voyages extraordinaire legitimized his speech, perpetuating a dominant ethnocentric habitus.SIGNTICA, v. 26, n. 1, p. 217-239, jan./jun. 2014237KEYWORDS:JulesVerne,literaryportraits,physiognomony,interdiscourse, racism, habitus.CIENCIA Y RACISMO EN LOS RETRATOS LITERARIOS DE JULES VERNERESUMENSe trata de discutir la relacin interdiscursiva entre lo literario y lo cientfco, esto es, entre los discursos de Jules Verne y los de Lavater y de Gall, tomando comocorpuslosretratosdelospersonajesdelasnovelasCincosemanas num balo (1863), Os flhos do capito Grant (1867) y O Chancellor (1875). Operandoenelmbitodeunparalelismointersemitico,recurriremosal conceptodeinterdiscursosintetizadoporDominiqueMaingueneauypor Patrick Charaudeau (2002). La relacin interdiscursiva que a hora presentamos est vinculada a la utilizacin y a la naturalizacin de discursos cientfcos que buscaninscribirculturalehistricamentelasimgenesdelospersonajesde Verne, la manera por la cual el autor de los Viagens extraordinrias legitima su discurso, perpetuando un habitus dominante etnocntrico. PALABRAS CLAVE: Jules Verne, retratos literarios, fsiognomonia; interdiscurso, racismo, habitus.NOTAS1As tradues do presente ensaio so de nossa autoria.2Huetafrmaquefrequentemente,reprovou-seJulesVernedeter negligenciado a psicologia de seus personagens, de ter criado tipos simplistas, personalidades sem profundidade que se assemelham abusivamente de um romance a outro. verdade que essas personalidades so descritas no incio do romance por duas ou trs frases que resumem o indivduo em torno de uma ideia condutora (HUET, 1973,p. 33). 3Na leitura dos romances que nos propusemos efetuar, uma exceo deve ser salientada. Ayrton, personagem de Os flhos do capito Grant e de A ilha misteriosa, muda radicalmente de vida e de opinio. H, entre a poca do seu banditismo, no primeiro romance, e a do seu arrependimento, no segundo, um intervalo de sete anos que separa a publicao das obras, e doze anos no tempo da diegese. Entre as duas pocas, supe-se um retorno completo SANTOS, E. G. dos.; CATHARINA, P. P. G. F. CINCIA E RACISMO NOS RETRATOS LITERRIOS...238animalidade.Fisicamente, Ayrtonperdetodaaaparnciahumana;esse detalhe tem sua importncia, pois retomando o personagem Ayrton, fsica e moralmente, Jules Verne se vale, mais uma vez, das correspondncias entre as caractersticas morais do homem e sua aparncia fsica para recriar seu retrato.REFERNCIASBALTRUSAITIS,Jurgis.Aberrations.Essaisurlalgendedesformes.Paris: Flammarion, 1983. BAQU, Dominique. Visages. Paris: ditions du Regard, 2007.BERGEZ, Daniel. Littrature et peinture. Paris: Armand Colin, 2004.BOURDIEU, Pierre. Razes prticas: sobre a teoria da ao. 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