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    Civitas Augustiniana, 1 (2012) pp. 99-122ISSN: 164/2012

    NILO CSAR BATISTA DA SILVA1PAULA OLIVEIRA E SILVA2

    AS PAIXES EM AGOSTINHO DE HIPONA: RELAESENTRE O AUGUSTINISMO E O ESTOICISMO TARDIO

    Resumo: O presente artigo estabelece uma relao entre traos dopensamento de Agostinho de Hipona e o estoicismo. A doutrina de Agostinhosobre as paixes da alma integra elementos da tica e da lgica estoica e,sobretudo, do pensamento tardo-antigo representado por Sneca e Ccero,

    utilizando-os como elementos de aproximao abordagem antropolgica dosafetos e das paixes na natureza humana. Um aspeto fundamental doestoicismo a crena de que impossvel para o homem encontrar regras deconduta ou alcanar a felicidade sem se apoiar em uma conceo do universodeterminada pela razo ou logos. Inversamente, Agostinho enfatiza a funodo livre arbtrio e da graa de Deus como elementos preponderantes nacapacidade humana de sobrepor-se s paixes e orden-las para a razo.Sneca e Agostinho defendem a funo da vontade na orientao das paixespara a razo, verificando-se a influncia do filsofo romano no pensamento dohiponense.

    Palavras-chave:Agostinho de Hipona, estoicismo, paixes da alma, vida feliz ,livre arbtrio.

    Abstract: This article discusses some aspects regarding the doctrines on the

    emotions in the Augustinian thought and the stoicism. The Augustinian doctrineon emotions integrates elements of stoic Ethics and Logic, especially thosestating by Seneca and Cicero. Stoicism states that human beings cannot findrules of conduct or achieve happiness without rooting their actions on rationalprinciples, according with the universal logos. On the other hand, Augustineemphasizes the role of free will and of the grace of God in ordering emotionsaccording to the final end of man. As Seneca and Augustine both state the roleof the will in ordering emotions to rational principles, in this paper we ascertainthe influence of the former in the doctrines of the latter regarding the doctrineon emotions.

    1Doutorando e membro do Instituto de Filosofia Faculdade de Letras da

    Universidade do Porto, Via Panormica, s/n, 4150-564 Porto, Portugal;[email protected].

    2Investigadora Auxiliar, Instituto de Filosofia da Universidade do Porto Gabinete de Filosofia Medieval (IF GFM), Via Panormica, s/n, 4150-456,Porto, Portugal;[email protected].

    mailto:[email protected]:[email protected]
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    Keywords:Augustine of Hippo; stoicism; emotions, happiness, free will.

    1. CARACTERSTICAS DA COSMOLOGIA E ANTROPOLOGIAESTOICAS

    O helenismo trouxe como legado para o mundo tardo-antigo aprevalncia do problema moral e a busca da unidade entre cincia evirtude, colocando na vida teortica a mais alta manifestao da vidahumana. Em alguns aspetos, este perodo tambm pode ser consideradoum dos mais importantes para a histria da filosofia ocidental, natransio do pensamento grego para o pensamento latino, sendo oestoicismo uma das escolas ps-aristotlicas que vai conduzir a filosofiano crepsculo da cultura grega.

    A doutrina estoica tornou-se vital no apenas para o pensamentotardo-antigo, mas tambm para os grandes sistemas filosficosmodernos, entre os quais esto as doutrinas do ciclo csmico ou doeterno retorno e de Deus como alma do mundo, que se constituem comoum ponto de referncia das concees cosmolgicas e teolgicas. Deigual modo, a anlise das emoes e a sua avaliao moral, o conceitoda autossuficincia e da liberdade do sbio, encontram-se entre as maistpicas formulaes da tica tradicional estoica.

    No mbito da filosofia moral, o estoicismo quisera distinguir -se departe das escolas gregas, essas representadas por uma conceo objetivade felicidade, estruturada em torno da ideia de um bem que se apresentacomo um fim visado em todos os atos humanos. J no estoicismo, abusca da felicidade no mais alcanar o horizonte metafsico baseadonas matrizes platnicas, tracejado no mundo das ideias, atravs domodelo da subsistncia de realidades incorpreas. Inversamente, afelicidade para os estoicos sustenta-se tanto no sujeito do conhecimentoe da sua ao, quanto na prpria realidade objetiva. O bem na ticaestoica ter aceo estritamente existencial: o bem como sinnimo do

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    que bom para o indivduo, para a vida de cada homem3. Nesta medida,tanto o bem como as emoes e os vcios tm realidade corprea econcretizao material. O bem opera porque til e aquilo que opera corpo. O bem estimula a alma numa certa maneira: modela-a e tem-nasob o freio, aes estas que so prprias de um corpo. Mas para deixar-se modelar pelo bem necessrio estabelecer na vida uma ordem nahierarquia de valores. Assim afirma Sneca:

    Se pretendermos estabelecer uma hierarquia entre os bens, comecemos porconsiderar o supremo bem e indagar em que consiste ele. Uma alma quecontempla a verdade, que atribui valor s coisas de acordo com a natureza e nocom a opinio comum, que se insere na totalidade do universo e observacontemplativamente todos os seus movimentos, que d igual ateno ao

    pensamento e ao, uma alma grande e enrgica, invicta por igual nadesventura e na felicidade e em caso algum se submetendo fortuna, uma almasituada acima de todas as contingncias e eventualidades, uma alma bela eequilibrada em doura e energia, uma alma s, ntegra, imperturbvel, intrpida,uma alma que fora alguma pode vergar que circunstncia alguma podeenvaidecer ou deprimiruma tal alma a prpria personificao da virtude4.

    Alm deste domnio de construo de uma perfeio pessoal, adoutrina estoica evidencia a ntida correlao entre o mundo, a

    3 Segundo os estoicos, todo bem conveniente, compulsrio, til, belo,vantajoso, desejvel e justo. O bem conveniente porque proporciona coisas detal natureza que a sua ocorrncia nos recompensa; compulsrio porque causaunidade, onde a unidade necessria; vantajoso porque a sua prpria naturezatraz benefcios; desejvel porque, graas ao seu contedo, razovel escolh-lo; til porque proporciona o uso dos benefcios; justo porque est emharmonia com a lei e tende a constituir comunidade. Os estoicos classificam o

    bem de belo, porque somente o belo bom e est repleto de todos os fatoresrequeridos pela natureza, ou porque tem propores perfeitas. So quatro asformas do beloo que justo, o corajoso, ordenado e sbioe nessas formasque se realizam as boas aes. Outra definio que os estoicos do do bem considerar a perfeio natural de um ser racional enquanto racional. Existem

    bens transitrios e bens absolutos (cfr: Sneca, Cartas a Luclio, XIX,117, 2-3.Traduo, Prefcio e Notas de J. A. Segurado e Campos, FCG, Lisboa 2009, p.647).

    4Sneca,Cartas a Luclio, VII, 66, 6.

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    linguagem e a racionalidade. De acordo com Goldschmidt, oestoicismo passa, sem soluo de continuidade, dos homens a Deus, daspartes que compem o mundo ao prprio mundo, ou seja, ao sistemaque unifica os deuses e os homens5. Deste modo, para o estoicismo atica insere-se dentro da ordem csmica, isto , integra-se na ordemnatural e racional das coisas. Dado que tudo est em tudo, a natureza

    informa, nutre e faz crescer tudo, no somente as realidades exteriores,pois no h nada que ela no toque, que ela no elabore e ordene.

    Na mundividncia estoica, onde razo e natureza no se

    contrapem, o papel da tica na vida ideal do sbio erradicar aspaixes e alcanar a impassibilidade. O sbio deve bastar-se, mantendo-se mestre de si mesmo. A natureza o modelo da vida em conformidadecom o bem. No obstante, no interior da Stoa encontram-sedivergncias e concees diversificadas sobre a prpria ideia de bem.Assim, enquanto Crsipo6, na sua exposio sobre o bem viver emconformidade com a natureza, tenta aproximar a natureza universal danatureza humana na sua prpria individualidade, Cleantes declara quedevemos seguir somente a natureza universal e no a individual. Anatureza universal pode ser denominada razo universal. Nela, tudoobedece e se curva, tendo como finalidade a busca da excelncia na

    natureza humana que decorrer de uma disposio espiritual,harmoniosamente equilibrada, digna de ser escolhida, em si e por si, eno por qualquer impulso exterior7. Sneca, por sua vez, assume aposio metafsica que atribui natureza dois princpios a causa e a

    5 V. GOLDSCHMIDT, Le systme stocien et lide de temps, Vrin, Paris1993, p. 35.

    6Um dos aspetos mais interessantes da tica de Crsipo o postulado deque as emoes se fundamentam totalmente numa psicologia monista. Segundo asua conceo da psicologia humana, os processos mais elevados da vida

    psquica, sucedem no rgo principal da alma, o hegemonikn. A racionalidade eos instintos, no devem ser atribudos, como em Plato, a distintas partes daalma. Cfr. Stoicorum veterum fragmenta (= SFV), H. V. ARMIN (ed.), vol. III,Teubner, Stuttgard 1964, p. 414.

    7 Cfr. Digenes de Larcio, Vidas e doutrinas dos filsofos ilustres.Traduo do grego de Mrio da Gama, UNB, Braslia DF 2008, 2ed., p. 202.

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    matria , dos quais tudo o mais se deriva. A causa que procuramosdeve ser a razo criadora correspondente divindade8. Diz Sneca:

    A matria jaz inerte, apta a tomar todas as formas, mas imvel para sempre seningum a trabalhar; a causa, porm, que como quem diz a razo, d forma matria, transforma-a naquilo que quer, realiza a partir dela vrios tipos de

    produtos, portanto necessrio que haja um princpio do qual tudo deriva, eoutro que a cada coisa d forma: este a causa, aquele a matria9.

    A causa a considerar deve ser apenas uma, a saber, o agente, esse

    o artista que por mos hbeis d forma necessria natureza10

    . Toda aarte imita a natureza11, isso significa que o valor da obra decorre dahabilidade do artista e da sua destreza para encontrar a melhor forma eassim obter o efeito imitativo. Todavia, imitar no significa reproduzir,mas representar a realidade atravs da obedincia a regras (harmonia,proporo, por exemplo) para que na obra figure algum ser. Diz Sneca:de uma choupana pode sair um grande homem, num pobre corpodisforme e franzino pode morar uma alma grande e bela12.

    De facto, a divindade que regula tudo, e tudo a rodeia e seguecomo a um guia. O lugar idntico ao que a divindade ocupa nouniverso, ocupa no homem o esprito; o que no universo a matria

    em ns o corpo. Sirva, portanto, o inferior ao superior; sejamos fortesdiante do acaso13. Na verdade, os estoicos retomam o itinerrio do

    8Sneca, Carta a LuclioVII, 65, 12.9Sneca, Carta a LuclioVII, 65, 2.10A noo de natureza dos estoicos compreende tanto a fora que contm o

    mundo como a que faz crescer os seres viventes sobre a terra. A natureza umafora estvel que se move por si mesma, que produz as razes seminais: o mundoestoico um contnuo energtico de corpos, em total coeso e compenetraoorgnica das suas partes, cuja mistura total garante a possibilidade de ao doscorpos uns sobre os outros, dentro de um universo homogneo, contnuo e ativo.(. BREHIER, Chrysippe et l'ancien stocisme, Presses Universitaires de France,Paris 1951, p. 35).

    11Idem, p. 229.12Sneca, Cartas a LuclioVII 65, 24.13

    Idem.

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    pensamento platnico das cinco causas que regem o universo (matria,agente, forma, modelo, finalidade), das quais resulta o produtoacabado14. O modelo aquela forma que o artista procurou reproduzirquando levou a cabo o seu projeto, portanto, os modelos de todas ascoisas tem-nos a divindade dentro de si mesma15. A vida humanacaracterizada por um constante viver em conformidade com a natureza,pode contrariar o movimento natural, isto , a reta razo que circulaatravs de todas as coisas16. As paixes so aes que se contrapem aomovimento natural das coisas, porque desordenam o percurso que a

    natureza humana tem a fazer em torno de si mesma.

    2. AS PAIXES COMO NATURALIS MOTUS OU PERTURBATIOANIMAENO ESTOICISMO TARDO-ANTIGO

    Os antigos estoicos formularam questes filosficas sobre aspaixes bem mais radicais no mundo helenstico do que as escolasanteriores. Esse carter hermtico e incisivo da Stoa na forma de pensaros afetos humanos deu aos seus membros a classificao de terapeutasdas paixes, pelo facto de considerarem as paixes como infees oudoenas da alma. Apesar de fazer parte da escola estoica, Sneca amplia

    o seu pensamento para l das questes doutrinrias, por isso foiconsiderado muitas vezes incoerente na sua forma prpria de pensarcom relao radicalidade dos fundadores da Stoa. O filsofo romanoafirmava que as paixes devem ser consideradas um movimento naturalda alma primum naturalis motus animae17, tratando-se daqueles

    14Cfr. Sneca, Cartas a LucilioVII, 65. Segundo Plato (cfr. Timeu, 29 d-e), h um agente a divindade; uma matria-prima a matria propriamentedita; uma forma que a disposio ordenada do mundo tal como ocontemplamos; um modelo que a grandiosidade e beleza do universo tal comoa divindade o concebeu e realizou; uma finalidadeo propsito da criao.

    15Cfr. Sneca, Cartas a LuclioVII, 65, 7.16Cfr. Sneca, Cartas a LuclioVII, 65, 7.17 Cfr. Sneca, Cartas a LuclioVI, 57, 4.

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    movimentos que podem afetar at mesmo o sbio, por mais experienteque seja, simplesmente por causa da nossa comum natureza humana.

    De acordo com Sneca, tais movimentos primrios no podem sersuperados pela razo. Embora possam eventualmente ser enfraquecidosmediante a ateno e o conhecimento constante, eles nunca podero sereliminados de modo absoluto. Todas as pessoas esto dispostas aexperimentar tais movimentos, denominados perturbaes da alma oupaixes. Por isso, tratando-se de uma tendncia natural, estesmovimentos nem so curveis, nem so propriamente considerados uma

    doena. Contudo, as emoes que deles resultam podem serconstantemente erradicadas. Tomando, por exemplo, o primeiromovimento que precede a raiva, ele deve ser considerado umaperturbao da mente muitas vezes causada pela sensao de que, dealgum modo, fomos feridos no nosso orgulho e necessitamos devingana.

    Como aqui nos interessa, acima de tudo, confrontar a doutrinaestoica das paixes como movimentos desordenados, com aquela deAgostinho acerca da concupiscncia e da sua interveno, ou no, noato livre, deter-nos-emos principalmente na anlise do lugar que aconcupiscncia ocupa no estoicismo. A concupiscncia para os estoicos

    um apetite irracional, assim subordinado s seguintes espcies:necessidade, dio, ambio, ira, amor, clera e ressentimento. Deacordo com Digenes Laercio:

    A necessidade uma concupiscncia determinada pela posse frustrada de algumacoisa, em que a pessoa separada do objeto desejado, sendo, porm impelido

    para ele num mpeto desesperado; o dio uma concupiscncia crescente eduradoura em que se anseia pelo mal de algum; a ambio umaconcupiscncia relativa escolha de fins pessoais; a ira a concupiscncia davingana contra quem se pensa ser o autor de um mal imerecido; o amor umaconcupiscncia que no afeta os homens srios, pois a tentativa de conquistarafeio por causa de uma beleza exterior18.

    18Digenes Larcio, Op. cit., p. 360.

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    Da mesma forma que se fala de algumas enfermidades do corpo,como a gota e o artritismo, tambm existem enfermidades da alma,como o amor glria, a busca do prazer e similares. A enfermidade daalma uma afeo ligada debilidade, e consiste em imaginar que umacoisa fortemente desejvel, quando na realidade no . Inversamente,existem trs disposies passionais boas da alma: a alegria, a cautela e avontade. Os estoicos dizem que a alegria contrria ao prazer,porquanto uma exaltao racional; a cautela contrria ao medo,porquanto evita racionalmente o perigo, logo, o sbio nunca ser

    medroso, e sim cauteloso. Os estoicos dizem ainda que a vontade seope concupiscncia, por ser um apetite racional. Nesta linha depensamento, encontraremos em Ccero a abertura de um domniomodelar reservado perfeio, mesmo quando estamos advertidos dasdificuldades e da inexistncia de homens sbios. O sbio o homemperfeito, contudo, os estoicos tm conscincia que alguns homens estoa caminho da perfeio, mas no se tornaram ainda perfeitos. H naescalada da perfeio diferentes classes de homens. H classes dehomens que se encontram entre o sbio perfeito e o estulto, h aquelesque quase tocam a sabedoria, h aqueles que conseguiram libertar-sedas principais enfermidades da alma e das paixes, sem contudo

    gozarem definitivamente de um estado de perfeita tranquilidade19

    .Sneca somente lamenta o facto de to poucos homens estarempredispostos a procurar a perfeio. A nica exigncia feita queles quebuscam o caminho da perfeio penetrar no domnio dos princpiosmorais mais elevados numa converso total e sbita. Nas suasEpistolas,Sneca mostra que o fator decisivo para este aperfeioamento, para estaeducao de si mesmo, se encontra na vontade.

    A noo de vontade erigida por Sneca torna-se um vetorimportante para compreendermos a sua construo moral. O ponto departida se encontra na Epistola 80, na qual afirma enfaticamente quepara seres um homem de bem s precisas de uma coisa: vontade,

    alm dos vrios momentos no seu Epistolrio, registmos ocorrncias

    19Cfr. Sneca, Carta a Luclio IX75, 8-15.

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    da palavra voluntas, sobre o verbo volo e suas flexes20. Portanto, ombil da ao, para Sneca, encontra-se no campo do julgamento que ohomem faz a partir da representao de uma coisa qualquer que a ele seapresente21. Por conseguinte, fugimos do domnio de uma simplesdeliberao de tipo aristotlico, pois para Sneca existe de facto umaespcie de fora interna cujo poder no pode ser desconsiderado, e queele considera ser o verdadeiro fundamento do agir. Tal fora o querer.Com essa noo, o filsofo reforma as concees do Prtico,procurando trazer a discusso para o plano da moral prtica. Como

    mostra Luizir Oliveira, um ponto fundamental para compreendermosas implicaes da teoria do conhecimento estoica na filosofia de Sneca a discusso acerca do assentimento de uma representao, aliada aopapel da tendncia ou a noo de impulso sem a qual no existe ao22.Por sua vez, Ccero, nas DisputaesTusculanas,Livro IV, explica osignificado da palavra vontadepara os estoicos:

    20Cfr. L. OLIVEIRA, Sneca uma vida dedicada filosofia, Paulus, So

    Paulo 2010, p.105.21A representao, sendo a presena de uma afeo (pathos) recebida naalma, seria o ato lgico pelo o qual a alma compreende que foi afetada e afirma a

    presena que a afetou. Da a denominao estoica de representaocompreensiva em que a evidncia dessa presena j compreendida como algoexistente que afetou a alma. Os estoicos definem o critrio de verdade como arepresentao que apreende imediatamente a realidade, ou seja, que procede doexistente, assim afirma Digenes Larcio (Digenes Larcio, Op. cit., p. 54). Asrepresentaes so afees que se produzem na alma, exprimindo de uma s veza elas mesmas e aquilo que as provocou. Para os estoicos, algumas noes so

    produzidas naturalmente, de acordo com o modo assinalado (sensao, memriae experincia), e sem arte; outras, a partir de nosso aprendizado, na forma dediligncias e apreenses. Com efeito, podemos atribuir s representaes oestatuto do sensvel. No mbito da moderao das paixes, saber distinguir entrerepresentaes verdadeiras e falsas significa manter completo domnio sobre assuas aes, atividade que se aproxima eventualmente do sbio estoico,considerado aquele que vive inteiramente de acordo com o logos e nunca falhano uso de suas capacidades racionais. A teoria das impresses dos estoicos

    poderexaminada deforma mais original v. g. em SVFI, 58-59; II, 53-56.22Cfr. L. OLIVEIRA, Snecauma vida dedicada filosofia, o. c., p. 106.

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    A partir do momento em que se apresenta a imagem de uma coisa, qualquer queseja, que parea boa, a natureza nos impulsiona a tentar alcan-la. Quando essatendncia procede com constncia e sabedoria, os estoicos a denominam boulsis- ns a denominamos voluntas. Eles dizem que ela s se encontra no sbio, edo-lhe a definio seguinte: a voluntas um desejo acompanhado de razo23.

    A representao imprime um desejo e tal desejo nos impulsionapara a ao. Em seguida, o assentimento produz o julgamento. Snecaapresenta o processo de produo destas paixes no incio do Livro IIdoDe Ira, quando afirma que a clera, como qualquer outra paixo, s

    toma o homem a partir do momento em que ele se afasta do logos eassente, por um julgamento equivocado, a uma representao noverdadeira. Diz Sneca:

    A questo se ela (a paixo) segue imediatamente aps a impresso e salta semo concurso da mente, ou se surge somente com o assentimento dela. Nossaopinio de que ela no se aventura a nada sozinha, mas age somente com aaprovao da mente (...) no um mero impulso da mente agindo sem nossavolio [sine voluntate nostra concitatur]. um processo mental complexo ecomposto de vrios elementos; a mente aprendeu algo, indignou-se, condenou oato e agora tenta vingar-se. Estes processos so impossveis a menos que a mentetenha dado assentimento s impresses que a moveram24.

    Ccero, defendendo uma concluso mais tradicional dos estoicos,empenha-se em convencer os seus interlocutores de que a sabedoria acura para toda a sorte de aflio mental, inclusive para tristeza.Considera, por isso, que a pessoa sbia, no clssico sentido da palavra, aptica no insensvel ou morta por dentro, mas livre do tipo depaixo que arruna o autocontrole equilibrado e d ocasio a maujulgamento.

    23Ccero, Disputaes Tusculanas IV, 6,12 (Cicron, Oeuvresphilosophiques Tusculanes tomo III-V. Traduo de Georges Fohlen e JulesHumbert. Les Belles Letttres, Paris 1968, p. 60). Os textos com referncia a estaedio so nossa traduo.

    24Cfr. Sneca, De Ira II. L.D. REYNOLDS (ed.), Oxford University Press,Oxford 1977, p. 5). Nossa traduo.

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    Ainda nas Disputaes Tusculanas afirma que a paixo umaespcie de fungo interior causado pela opinio, que conduz a alma a

    curvar-se diante do medo e da tristeza, ou a ser excessivamente vivazna alegria e a desejar sem ter limite na cupidez. Na lngua romana, otermo paixo (pathos) agrupava indistintamente dois sentidosseparados: perturbao da alma (perturbatio animae) e doena (morbo).Inicialmente, Ccero apropria-se do termo grego paixo (pathos),optando claramente pela investigao moral dos estoicos. nesseesprito que ele procede a um exame das paixes ou gneros de paixes,

    considerando suas variantes e subgneros, como acontece habitualmentenos tratados sobre as paixes. O tom descritivo, e as diferentespaixes, sentimentos, desejos e emoes so enumerados antes deserem todas reduzidas intemperana:

    Todas as paixes tm, acrescentam os estoicos, sua fonte na intemperana, que uma revolta geral contra a razo, e tal o desprezo de seus conselhos que ohomem intemperante no conhece nem regra nem limite no que ele quer.Enquanto a temperana acalma nossos movimentos interiores, submete-os aoimprio da razo, e nos faz senhores do refletir de modo maduro, a intemperana,sua inimiga, revira, agita, inflama nossa alma, e deixa entrar nela as frustraes,o terror e todas as outras paixes25.

    De acordo com Ccero, a mente humana bem temperada orienta-sepelo propsito, ou seja, encontra no propsito uma vontade (voluntas)firme e forte, capaz de experimentar grandes alegrias (gaudium) e no oabandono; a reserva (cautio), jamais o medo. Escreve Ccero: parece-me que toda a teorizao sobre as emoes se reduz a isso: que asemoes esto todas em nosso poder, elas expressam juzos, e ainda sovoluntrias26.

    Pode dizer-se que a mundividncia romana e estoica das paixesrepresentada no pensamento de Ccero est condicionada pela teseacerca da natureza do nimo. Esta doutrina afirma que o nimo se

    25Ccero,DisputaesTusculanas IV, 6, 12. V. tb., IV, 9, 21.26Idem IV, 31, 65.

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    divide em duas partes, uma participante da razo, onde a tranquilidadedeve ser colocada; outra que no participa da razo, onde devem sercolocados os movimentos perturbatrios (motos turbidos), como asconcupiscncias. Desta diviso segue-se que da parte irracionalpredicam-se todas as paixes (perturbationes) do nimo que se agrupamcomo espcies e subespcies de quatro gneros principais: o sofrimento(aegritudo), o medo (metus), a alegria (laetitia) e a concupiscncia(libido).

    A expresso latina utilizada por Ccero para designar as paixes

    perturbatrias do esprito humano pertubatio animi27

    , e com elaconota a desordem daqueles que negligenciam sua educao esucumbem a maus hbitos de juzo. Isso possibilita uma aproximaoao termo grego que designa as paixes (pathos)28, como alterao daordem natural e racional da alma. Mas, Ccero necessita de uma palavraefetiva para nomear propsito, alegria e reserva. Ele designa estesmovimentos como constncias (constantiae)29: mais do que emoessbias, ou seja, racionais, eles so incorporaes da razo.

    Na origem da escola do Prtico, alguns membros da antiga Stoafazem a analogia das paixes s enfermidades do corpo, ou doenas daalma. A sabedoria associada analogamente sade da alma e a falta

    de sabedoria uma espcie de sade m ( insanitas) associada loucura

    27Os gregos designavam as perturbaes da alma (perturbationes animae),que tornam miservel e amarga a vida dos insensatos, com o termo path. Osestoicos empregam o termopathospara designar as doenas que afetavam a almahumana. O termo que ocorre em Latim perturbatio, sendo apassiointroduzidatardiamente.

    28Opathosem grego, significa tudo aquilo que afeta o corpo ou a alma etanto quer dizer dor, sofrimento, doena, como o estado da alma diante decircunstncias exteriores capazes de produzir emoes agradveis oudesagradveis, paixes. Assim, apatheia tanto pode significar ausncia dedoena, de leso orgnica, como ausncia de paixo, de emoes. O termoapatheiafoi usado por Aristteles (384 -322 a.C.) no sentido de impassibilidade,insensibilidade, e, a seguir, incorporado pela escola filosfica fundada por Zeno(335-263 a.C.), denominada estoicismo, para expressar um estado de espritoideal a ser alcanado pelo homem durante a sua existncia.

    29Cfr. Ccero,DisputaoesTusculanasIV, 6,11.

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    (insnia), ou seja, demncia30. A moral dos primeiros estoicos erguida na aceitao de que toda paixo doena. Desta tese s se podeconcluir que toda atividade da reta razo exclui todo e qualquermovimento passional do nimo. A este propsito, pretendendo fazer adistino entre doenas da alma e as paixes, Sneca diz o seguinte:

    J muitas vezes te tenho dito qual a diferena entre as doenas da alma e aspaixes. Vou recordar-te uma vez mais: doenas da alma so os vcios bemenraizados e violentos tais como a avareza ou a ambio, tais vcios ocupam aalma com tanta intensidade que se transformam em enfermidades crnicas.

    Numa palavra, a doena da alma um juzo de valor que persiste no erro: porexemplo, considerar muito desejveis coisas que so apenas relativamentedesejveis. Se quiseres ainda tens aqui outra definio: desejar ardentementecoisas que apenas relativamente so de desejar, ou so absolutamente nodesejveis; ou atribuir um grande valor a coisas que pouco ou nenhum valor tm.As paixes, essas, so impulsos da alma condenveis, sbitos e intensos, osquais, se se tornarem frequentes e no forem refreados podem degenerar emdoenas da alma. Em concluso, os filsofos mais sbios j esto libertos dasdoenas da alma, mas, conquanto prximos da perfeio, encontram-se aindasujeito s paixes31.

    3. A INFLUNCIA DA DOUTRINA ESTOICA DAS PAIXES EMAGOSTINHO HIPONENSE

    Agostinho credita o seu despertar filosfico a Ccero. NasConfisses, relata que tinha somente 18 anos quando leu o Hortnsio de

    30A identificao da paixo como doena (morbo), ou a sua introduo nacategoria da perturbao (perturbatio) feita pelos estoicos, est relacionada coma identidade que os antigos estabeleciam entre gnosiologia e medicina. Que

    poder ser traduzida da seguinte forma: razo sanidade ou sade mental(sanitas); paixo insanidade ou doena mental ( insania). Ccero justifica que ovnculo entre paixo e doena foi constitudo antes do estoicismo, estando nosregistos de ancestrais usurios da lngua latina. A correlao entre gnosiologia emedicina do nimo, portanto, no foi uma inveno grega, mas, como afirmaCcero, ela existia nos ancestrais romanos muitos sculos antes de Scrates.

    31Sneca, Carta a Luclio, IX, 75, 11-12.

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    Ccero e que o livro mudou os seus afetos (affectum)32. A partir dasleituras de Ccero, comeou a buscar sabedoria para a vida e no maispara as vaidades que tendem a agradar maioria dos jovensapaixonados. Agostinho descreve com familiaridade as imagens de umhomem disperso na multiplicidade das sensaes, de uma vida inquieta,arrastada pela turbulncia dos prazeres corporais, que se derrama nasleviandades da carne, sobrecarregada pelo peso da sua conscincia, semconseguir, muitas vezes, lidar com as suas prprias mazelas. Por no sesuportar, experimenta que a sua alma se afunda cada vez mais no

    abismo criado pela nsia de satisfazer os desejos mais obscuros daexistncia humana. Na descrio de sua partida da nativa Tagaste paraCartago, a Roma Pnica, ainda adolescente, o hiponense elucidaimagens de uma vida regrada pelas paixes: Vim para Cartago, eestralejava minha volta, de todos os lados, a sartago (frigideira) dosamores criminosos. Ainda no amava e amava amar, e em to profundaindigncia, detestava-me por ser menos indigente. A minha alma noestava de boa sade, e atirava-se, ulcerosa, para fora de si, vida de seroar miseravelmente no contato das coisas sensveis33.

    Nesse quadro, Agostinho pinta com lealdade um tempo deinsanidade vivido pela agitao das paixes em que chegou a acreditar

    no grotesco, quando adere ao maniquesmo. Por outro lado, o filsofodescreve as paixes com caractersticas bastante prximas doestoicismo, utilizando termos como impulsos desmedidos ou

    perturbaes ou doenas da alma. As perturbaes da alma

    provocadas pelas paixes fazem com que a mera presena dos olhos eda faculdade da viso no seja suficiente para que a perceo, oriundada viso sensvel, se produza. o prprio corpo que se v privadodaquilo que lhe proporcionam os sentidos. Quando a alma no se

    32Agostinho, Confessionum libri tredecim, III, IV, 7 (CCL 27, ed. L.VERHEIJEN, Brepols, Turnhout 1981, p. 30). Edio usada neste artigo:Agostinho, Confisses. Traduo de Arnaldo do Esprito Santo, Joo Beato eMaria Cristina de Castro-Maia de Sousa Pimentel, Introduo de ManuelBarbosa da Costa Freitas. INCM, Lisboa 2004, 2 ed., p. 91.

    33Agostinho, Conf. III.I.1.

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    encontra de boa sade, o corpo perde a sua leveza e fica sobrecarregadodas mazelas que a vida apresenta. A sade do corpo dependeinteiramente do estado de lucidez da parte racional da alma. Uma vezque, para Agostinho, o corpo se encontra ligado alma, se esta seencontra cega pela insensatez ou pela loucura se tem olhos e no sev, torna-se presa fcil das paixes.

    Na busca de fundamentao terica de suas paixes e na tentativade integr-las na vida do esprito como domnio mais elevado deexistncia, Agostinho serve-se de elementos de psicologia estoica34.

    Contudo, noDilogo sobre o livrearbtrio, utiliza termos diferentes dosestoicos e romanos para designar o termo paixo. O termo libidoque aocorre aparece como sinnimo de cupiditase de amor s coisas que noest em nosso poder possuir, envolvendo claramente a dimensovolitiva da alma humana35. De facto, o domnio da libido correlacionado com uma infinidade de desejos, no s do domniocorporal/sexual, mas tambm da ambio e da avareza. Na medida emque a libido impede o ser humano de direcionar os seus esforos para aobteno da sabedoria, ela considerada inimiga da sabedoria econtrria a ela36. A libido definida por Agostinho como movimentonatural da alma que o ser humano compartilha com os animais

    irracionais. Mas existem desordens propriamente humanas, como o

    34Na sua obra sobre o estoicismo e sobre o legado desta doutrina no incioda Idade Mdia, Marcia Colish evidencia os elementos positivamenteaproveitados pelo hiponense para a construo da sua teoria do conhecimento emostra como a conceo de uma sensibilidade passiva e eticamente neutra

    pertena da Stoa. Tal posio adotada por Agostinho influenciar a suasuperao do ceticismo acadmico, quer na afirmao da bondade/neutralidadedos corpos e da matria na gerao do mal, contra os Maniqueus . (M. L. COLISH,The Stoic Tradition from Antiquity to the Early Middle Ages , E.J. Brill, Leiden-

    New York 1990, pp. 169-179). Colish explica nestas pginas as principaisnoes estoicas assimiladas no domnio da epistemologia por Agostinho.

    35Cfr. Agostinho, De libero arbitrio I, IV, 9 (CCL 29, ed. W.M. GREEN,Brepols, Turnhout 1970, p. 231). Edio usada neste artigo: Agostinho,Dilogo

    sobre o livre arbtrio. Traduo, Introduo e Notas de Paula Oliveira e Silva.Edio bilingue. Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Lisboa 2001, p. 91.

    36Cfr. Agostinho,LAI, XII, 25.

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    amor glria e riqueza e o desejo de dominar, que no encontramosnos animais irracionais e que derivam da atividade do esprito ou razo.Tais desordens identificadas por Agostinho como concupiscncia dacarne, num recurso linguagem do Evangelho de Joo indicam oprimum motus, referido por Sneca em Cartas a Luclio.

    Num outro texto paradigmtico sobre as paixes, no escrito dematuridade que a sua obra A Cidade de Deus, Agostinho enfrenta aposio dos platnicos. Estes afirmavam que todos os males, bem comas perturbaes to conhecidas da almao desejo, o temor, a alegria e a

    tristeza , provm do corpo, mostrando que as paixes do corpo tmefeito sobre alma. Agostinho contrape-se a esta doutrina, ao defender anatureza humana como uma unidade integrante de corpo e alma. Eremete para um domnio de corrupo moral o peso que, na expressoque recolhe de S. Paulo, o corpo exerce sobre a alma. O corpo quesobrecarrega a alma no a natureza e nem a substncia dele, mas a suacorrupo, a qual depende essencialmente de um ato livre.

    Realmente quem considera a natureza humana como um bem supremo e acusa anatureza da carne como um mal no h dvida de que aprecia isto com avacuidade humana e no com a verdade divina. certo que os platnicos no soto insensatos como os maniqueus que detestam os corpos terrenos como se

    fossem maus por natureza; todavia entendem que estes rgos feitos de terra eestes membros, que tm que morrer, impressionam as almas a ponto de nelasfazerem nascer as doenas que so os desejos, os temores, quer do prazer quer datristeza. Estas quatro perturbaes, como lhe chama Ccero, ou paixes, segundomuitos, traduzem do grego todas as ms propenses dos costumes humanos37.

    As paixes so algumas vezes designadas por Agostinho comoperturbaes da alma (perturbationes animae), outras vezes comomovimentos da alma (motus animae). Estes ltimos tambm seencontram na alma dos justos. Os estoicos integravam a ataraxia ou

    37Agostinho,De civitate deiXIV, 5 (CCL 48, ed. B. DOMBART/ A. KALB,Brepols, Turnhout 1955, p. 448). Edio usada neste artigo: Agostinho,A cidadede Deus, vols. I-III. Traduo, Prefcio, Nota biogrfica e Transcries de J.Dias Pereira, FCG, Lisboa 1993, p. 1247.

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    apatia no tratamento das paixes, considerando-a - na alma e no nocorpo - uma vida livre de todo sentimento oposto razo e perturbadordo esprito. Para Agostinho, tal situao do homem sem dvida umacoisa boa e desejvel, mas no desta vida, pois s a perfeita beatitudedesconhecer o aguilho do temor e da tristeza. O ser humano, aoordenar as suas aes em busca da felicidade, deve encontrar umahierarquia de bens para a vida. Em diversas circunstncias, ao usar osbens, ele substitui bens que so superiores por bens inferiores, alterandoassim o princpio de ordem na hierarquia dos bens38.

    A mente39

    no apenas razo, mas tambm capacidade dejulgamento e de deciso. Portanto, o seu exerccio torna-se indissocivel

    38A obra onde Agostinho debate de modo mais evidente este aspeto da suaantropologia o Dilogo sobre o livre arbitrio, mas a doutrina recorrente aolongo da sua produo filosfica e teolgica. Nela assenta em grande parte aessncia da sua argumentao contra o maniquesmo. Agostinho classifica os

    bens em grandes, pequenos e mdios e situa a liberdade da vontade entre estesltimos. Por sua vez, categoria dos grandes bens pertencem as virtudes e dos

    pequenos, as diversas espcies de corpos. Quando a vontade, que um bemintermedirio, se junta sabedoria, que o bem incomutvel e comum a todos,

    consegue os principais e maiores bens do homem. Pelo contrrio, o mal emergequando o ser humano repudia este bem incomutvel e se converte aos bensmutveis. Este repdio ou agresso verdade estritamente voluntrio. Aquesto derradeira a de saber de onde procede este movimento de separao do

    bem incomutvel, ou seja, qual a origem do pecado.39O vocabulrio de Agostinho acerca da alma e das faculdades da mente

    at certo ponto flexvel. No que se refere ao princpio de racionalide no serhumano, encontram-se estes trs termos: Anima, spiritus e mens. Anima o

    princpio animador dos corpos considerando a funo vital que neles exerce. Otermo spiritus tem dois sentidos inteiramente diferentes, segundo Agostinho,derivado de Porfrio ou das escrituras paulinas. Na significao porfiriana,

    spiritus designa bem o que denominamos imaginao reprodutiva ou memriasensvel, portanto superior vida (anima) e inferior mente (mens). Nasescrituras,spiritusdesigna a parte racional da alma e, por conseguinte, torna-seuma faculdade especfica do homem e que os animais no possuem. Mens asede das faculdades de conhecer, querer e recordar, a parte superior da alma mais

    prxima de Deus, onde os bens inteligiveis so conhecidos e onde ocorre aadeso a eles. A mente contm naturalmente a razo e a inteligncia. Ratio omovimento pelo qual o pensamento se processa de um conhecimento a outro. Ointellectus pertence a mens que iluminada pela luz natural. (cfr. E. G ILSON,

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    da capacidade de possuir os bens contemplados. Diferentemente deSneca, a noo agostiniana de uoluntas insere-se na dinmica damente, quando contempla a ordem dos bens e quando tende, de modoinconcusso, em virtude da dimenso intencional da vontade, para aquelaexpresso de ser que contempla como supremo bem. Assim, umavontade boa, ntegra, imperturbvel, intrpida, que mal ou fora algumapode vergar, poder dominar as paixes mais violentas no interior dohomem.

    Na obra A Cidade de Deus, Agostinho faz uma reavaliao da

    doutrina estoica das emoes quando se refere s trs disposies dohomem sbio: alegria, a cautela e a vontade, denominada por Ccerocomo o termo constantia. Diz o hiponense:

    Aquilo que os gregos chamam de apatheia e que Ccero chama em latim deconstantia, reduzem os esticos a trs perturbaes da alma do sbio, pondo avontade em lugar do desejo, o gozo em lugar da alegria e a precauo em lugardo temor. Quanto doena ou dor, a que temos preferido chamar tristeza paraevitar a ambiguidade, negaram eles que possa existir na alma do sbio. Dizemeles que a vontade aspira ao bem que o sbio pratica; que o gozo nasce da possedo bem que o sbio encontra em toda a parte; que a precauo evita o mal que osbio deve evitar. Quanto tristeza ela diz respeito ao mal j sucedido e, comoso de parecer que nenhum mal pode acontecer ao sbio, julgam impossvel que

    alguma destas coisas subsista na sua alma40.

    Agostinho contrape-se a Ccero, quando este afirmar que o querer,o gozar e o precaver pertencem apenas alma do sbio, enquantodesejar, alegrar-se, temer e contristar-se so prprias apenas doinsensato. Se assim fosse, os mpios experimentariam mais gozo do quealegria, pois o gozo propriamente dos bons e piedosos e ningum podequerer algo mau e vergonhoso mas apenas desej-lo. A vontade

    Introduo ao estudo de Santo Agostinho. Traduo de Cristiane NegreirosAbbud Ayoub, Paulus. So Paulo 2006, p. 94). Ver tambm: Agostinho, Dilogo

    sobre a Ordem. Traduo, Introduo e Notas de Paula Oliveira e Silva. NotasComplementares, Nota 1: Anima, animus, spiritus; Nota 3: Intellectus/Ratio,INCM, Lisboa 2000, pp. 237-240; pp. 244-246.

    40Agostinho, Civ. dei, XIV, 8.

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    persegue o bem e a alegria (gaudium) sentida na consecuo do bem,que o sbio alcana em cada situao. Por seu turno, a cautela (cautio) fundamental para evitar o mal. S o sbio pode possuir alegria ecautela. Como a aflio a nica forma de emoo que no podemoseducar (a palavra que Ccero usa para designar aflio, aegritudo),usualmente ela no se restringe ao tormento mental, mas, comoAgostinho assinala, tambm significa uma doena corporal e tormentofsico.

    Na obra de Agostinho, torna-se importante precisar a ambivalncia

    e progresso do termo paixo. Tal ambivalncia deve-se ao facto dehabitualmente os comentadores e estudiosos de Agostinho traduzirem otermo latino libidopor paixo.Percebe-se que a libidofoi identificadaprimeiramente com os movimentos afetivos da alma que agem contra arazo ou esprito. Tal conceo consiste no modelo estoico bemrefletido na filosofia de Agostinho. A distino entre os significados depaixo e libido reside no facto de que o primeiro termo supe ummovimento da alma que no conota necessariamente uma desordem,enquanto o segundo sempre associado concupiscncia ou desejodesenfreado. Assim, a traduo, usual em portugus, de libido porpaixo no parece exata, uma vez que passio usada no sentido mais

    genrico de afeo, enquanto libido associa-se s afees quandorelacionada s sensaes corpreas. Contudo, como se ver, Agostinhofala tambm de outras paixes no apenas corpreas, mas tambm doesprito, como por exemplo, o desejo de vingar-se, de ter dinheiro, devencer, de gloriar-se, presentes no esprito humano.

    A discusso que ocorre emDe libero arbitrioem torno do conceitode cupiditas sobre a influncia das paixes na ao humana e adeterminao da bondade ou malcia delas permite identificar aspaixes com uma forma de desejo41. O embate d-se entre duas paixes,o medo e o desejo, que so movimentos opostos da alma propulsores doagir humano independentemente do seu valor moral. O medo, na

    conceo agostiniana, est subordinado ao desejo, o qual proposto

    41Cfr. Agostinho,LAI, 4, 9.

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    como a mais fundamental das paixes humanas. Dado que a almapermanecer naturalmente guiada por um desejo de gozo que nelasubsiste, o desejo necessariamente acompanhado pelo medo. Este, porseu turno, no surge como algo da natureza do prprio desejo, masemerge em virtude do tipo de bens para o qual aquele se encaminha. Omedo surge quando o desejo se orienta na direo da posse de bens queno se podem ter sem perigo de se perder42. Ou seja, o desejo entendidocomo paixo fundamental, leva o homem a querer satisfazer a suatendncia ao gozo ou felicidade. Porm, quando coloca o desejo na

    posse de bens que se podem perder, o prprio desejo fica sob o domniodo medo: medo de perder as coisas que possui e que o prprio medoleva a proteger. No referido Dilogo, ao tratar das paixes, Agostinhoexorta a buscar o mal no na prpria ao ou na exterioridade dosfeitos, mas na vontade43. A ao que se analisa para esclarecer estaquesto o ato do adultrio. Um homem que tivesse decidido em seucorao cometer o adultrio, mas que fosse impedido de faz-lo porcircunstncias independentes da sua vontade, no menos culpado doque aquele que conseguiu passar ao ato44. Nesse caso, o que condena ohomem a sua paixo, a qual se designa tambm com outro nome, asaber, libido. Por isso, afirma Agostinho, o termo libido pode ser

    definido como a tendncia desordenada do esprito: cupiditas45

    . Odesejo desenfreado aquele que exerce a sua dominao em todo ognero de ms aes. Deste modo, a libido perversa porque subverte avontade e a domina, tornando o homem um escravo dos seus prazeres eimpedindo-o de alcanar a beatitude, ao desregrar a alma.

    Para Agostinho, a existncia da mente no homem permite que estesubjugue o desejo desmedido e o domine, uma vez que a mente superior ao corpo onde ocorre o movimento libidinoso ou desejodesenfreado. Afirmando que nenhuma outra realidade torna a mente

    42Cfr. Agostinho,LAI, 4, 10.43Cfr. Agostinho,LAI, 3, 8.44Cfr. Agostinho,LAI, 3, 8.45Cfr. Agostinho, LA I, 4, 9: Scisne etiam istam libidinem alio nomine

    cupiditatem uocari?.

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    companheira do desejo desenfreado seno a prpria vontade e o livrearbtrio46, Agostinho infere que a vontade livre poder ser a causa de oser humano praticar o mal e de se submeter s paixes. A vontadehumana fica assim isolada nas suas decises. Ela a causa daquilo queescolhemos para ns. Sendo boa por natureza, pois se trata de um domdo Criador, ela totalmente livre para querer ou no querer, isto , ela livre em relao a si mesma47. Dessa forma, a libido considerada amaior inimiga da boa vontade, pois ela o impulso que arrasta paragozar bens materiais, que so efmeros mutveis, em detrimento do

    bem supremo que imutvel. Porm, cabe sempre boa vontade aderirao bem inferior para o qual a libido opera, ou opor-se a esse movimentoe agir segundo a reta razo.

    No Dilogo sobre o livre arbtrio, Agostinho evidencia o facto deque a escolha voluntria no se relaciona apenas com o domnio daspaixes por parte da razo, mas que esta no indissocivel da perceoda ordem dos bens, por parte da razo. Ou seja, as paixes no somovimentos de uma dimenso obscura da alma racional humana, nemresidem num princpio que com ela componha, de carter material edaninho, que esteja fora do comando da razo. As paixes entram noprprio domnio da representao do real e da sua ordem. Esta

    integrao das paixes na ordem da razo e na estrutura cognitivo-representativa constitui um momento importante na elaborao de umaontologia no dualista ou no maniquesta. Dito de outro modo, a libido

    46Cfr. Agostinho,LAI, 11, 21.47Em Agostinho o livre arbtrio no se confunde com a liberdade. A

    distino que leva a esta inferncia entre livre arbtrio e vontade, isto , entrepoder de escolha e capacidade de querer o bem. O primeiro a faculdade deescolha com a qual nascem todos os homens, e o Segundo, que permite aliberdade, o maior bem. Portanto, quanto mais prximo ao bem, mais livre sera vontade humana. Segundo Mariana Palozzi, aqui no se trata de uma liberdadede escolha entre o bem e o mal pensados como duas possibilidadescomensurveis de escolha, visto que o mal para Agostinho deficincia,carncia, ausncia do bem, mas da liberdade daqueles que possuem as virtudes(M. P. CUNHA, O movimento da alma: a inveno por Agostinho do conceito devontade, EDIPUCRS, Porto Alegre 2001, pp. 91-92).

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    ou cupiditas, com base na qual se geram as designadas ms aes, no obra apenas do corpo, mas causada pelo esprito na medida em que seintegra na atividade deste. Esta concluso absolutamente decisiva naelaborao da doutrina das paixes, em Agostinho. neste aspeto que adoutrina do hiponense se separa da conceo estoica das paixes, namedida em que esta as considera como movimentos estritamentenaturais e que escapam ao domnio das faculdades humanas superiores.

    4.CONCLUSO

    A nossa investigao da natureza das paixes na obra de Agostinhotomou como como referncia a doutrina estoica das paixes exposta noDilogo sobre o livre e arbtrio, destacando alguns pontos bsicos.Inicialmente, uma referncia ao termo utilizado por Agostinho etambm pelos estoicos: enquanto os estoicos utilizam o termoperturbaes para designar as paixes, Agostinho utiliza termos maisneutros, como 1. affectus(com significado de disposio ou emoo) 2.affectio (com significado de afeo ou alterao sofrida), ou 3. passio(paixo). Na sequncia de Ccero, Agostinho faz uso da classificaoestoica das emoes bsicas em quatro grupos: o prazer/alegria

    (laetitia), o desejo (cupiditas), a tristeza (tristitia) e o medo (metus).O termo libido, frequentemente referenciado no referido Dilogode Agostinho, retrata uma classificao estoica das paixes quecorresponde ao grego horm(impulso). Neste contexto, a paixo podeser entendida como impulso desmensurado, numa definio genrica dotermo paixo para os estoicos. A noo de impulso encontra-se no cerneda psicologia estoica, para diferenciar o impulso humano e racional,daquele dos animais. O estudo do termo impulso passa por umacrescente evoluo no interior da escola estoica, acrescido, em seguida,da investigao de Plutarco sobre o termo assentimento, paracaracterizar a representao compreensiva do impulso. O impulsocomo

    condio suficiente para a ao foi um termo utilizado por Plutarcoseguindo um modelo da Repblica de Plato. Por sua vez, Snecaconsidera que todo ser racional animado por um impulso e cadaimpulso um assentimento, portanto, um movimento da alma. Anatureza conferiu ao homem a capacidade para discernir a ordemnatural das coisas atravs da razo e para completar o curso da vida soba sua orientao. No entanto, a fraca luz inata da natureza poder

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    largamente ser apagada por falsas crenas e ms prticas. Como dizSneca, h certas sensaes a que nem mesmo a maior coragem podeescapar: parece que a natureza a recordar-nos a nossa condio demortais!48. Este elemento natural no pode ser superado pela razo,pois todas as pessoas esto predispostas a experimentar os primeirosmovimentos naturais.

    A adjacncia ntida entre Sneca e Agostinho, a princpio, est nocomum reconhecimento de que as paixes so movimentos naturais eque estes no podem ser superados pela razo. Num segundo momento,

    Agostinho transporta a natureza das paixes para a dinmica da mente epara o domnio da vontade. Diferentemente dos estoicos, a nooagostiniana de uoluntas insere-se na dinmica da mente, quandocontempla a ordem dos bens e quando tende, de modo inconcusso, emvirtude da dimenso intencional da vontade ( intentio) o impulsoestoico torna-se aqui uma direo da mente racional para aquelaexpresso de ser que contempla o supremo bem. Assim, uma vontadeboa, ntegra, imperturbvel, intrpida, que mal ou fora alguma podevergar, poder dominar as paixes mais violentas no interior do homem,permitindo-lhe sobrepor-se fora da natureza por meio da escolhalivre.

    48Sneca, CartaaLuclio57, 4.

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