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26 CBO Jovem Jornal Oftalmológico Jota Zero | Maio/Junho 2011 CBO-Jovem JOTA ZERO – Trace seu perfil. ANTÔNIO MOTTA – Meu nome é Antônio Francisco Pimenta Motta, nasci em Salvador em junho de 1978, sou solteiro, terminei o curso de Medicina em 2000 na Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública, fiz residência em Oftalmologia no Hospital de Olhos Ruy Cunha, em Ita- buna (BA). Depois disso, fui fellow por dois anos em cirur- gia de catarata no Hospital de Clínicas, em São Paulo. Atual- mente sou chefe do Setor de Catarata da Clínica Oftalmo- lógica Dra. Rita Lavínia, em Salvador. Tenho alguns traba- lhos publicados e participação como palestrante em diversos congressos nacionais e inter- nacionais na área de catarata, inclusive na última ASCRS em março de 2011. Como outro diferencial, tenho um ano de serviço no Exército Brasileiro, em 2001, na cidade de Tefé, no Estado do Amazonas. JOTA ZERO – Por que Medi- cina e por que Oftalmologia? ANTÔNIO MOTTA - Pergunta difícil. No meu caso, acredito que tenha sido chamamento pessoal mesmo, uma vez que meus pais não são médicos: meu pai é advogado e minha mãe dentista, e a mesma F ornecer seu primeiro atestado de óbito num ponto afastado da Amazônia bra- sileira para uma paciente com arritmia cardíaca que não pôde receber os cuidados de Terapia Intensiva foi marcante para o jovem médico oftalmologista Antônio Motta que, nesta entrevista, nos conta algo de sua vida como médico a serviço do Exército Brasileiro. queria que eu fizesse Direito. Ao final do 3º ano do antigo curso científico, em 1994, estudando no interior da Bahia numa cidade chamada Alagoinhas, aos 16 anos, me per- guntava “para que vou prestar vestibular?” e por algum motivo que não consigo explicar escolhi a arte de cuidar das pessoas. Ao lon- go da faculdade fui tomando contato com as diversas áreas da Medicina e decidi que faria alguma área na qual eu pudesse ter contato com os pacientes e que pudesse praticar a arte da cirurgia. No 6° ano, já em 2001, agora aos 22 anos, novamente a hora da decisão: “O que vou fazer?” Nesse ponto já tinha in- clinação para Oftalmologia. Essa tendência foi reforçada pela minha tia que é médica oftalmologista. Porém, pensava ao mesmo tempo em trabalhar um ano para iniciar a residência, uma vez que era “muito novo”. Foi quando recebi a notícia com grande impacto na minha vida: um telefonema na sexta-feira a noite feito por um sargento, dando-me ci- ência que dentro de 5 dias teria que viajar para prestar serviços ao Exército Brasileiro na região da Amazônia. JOTA ZERO – Conte um pouco desta ex- periência. ANTÔNIO MOTTA – Em nosso País todos os homens formandos em Medicina devem se apresentar às Forças Armadas de forma obrigatória após a formatura. Caso exista necessidade, esses profissionais podem ser convocados para prestação do serviço militar obrigatório como médicos em qual- quer local do Brasil desde que não tenham servido no passado. Ao receber a notícia Antônio Francisco Pimenta Motta Numa noite de sexta-feira, o telefonema que mudou tudo

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JOTA ZERO – Trace seu perfil.ANTÔNIO MOTTA – Meu nome é Antônio Francisco Pimenta Motta, nasci em Salvador em junho de 1978, sou solteiro, terminei o

curso de Medicina em 2000 na Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública, fiz residência em Oftalmologia no Hospital de Olhos Ruy Cunha, em Ita-buna (BA). Depois disso, fui fellow por dois anos em cirur-gia de catarata no Hospital de Clínicas, em São Paulo. Atual-mente sou chefe do Setor de Catarata da Clínica Oftalmo-lógica Dra. Rita Lavínia, em Salvador. Tenho alguns traba-lhos publicados e participação como palestrante em diversos congressos nacionais e inter-nacionais na área de catarata, inclusive na última ASCRS em março de 2011. Como outro diferencial, tenho um ano de serviço no Exército Brasileiro, em 2001, na cidade de Tefé, no Estado do Amazonas.

JOTA ZERO – Por que Medi-cina e por que Oftalmologia?ANTÔNIO MOTTA - Pergunta difícil. No meu caso, acredito que tenha sido chamamento pessoal mesmo, uma vez que meus pais não são médicos: meu pai é advogado e minha mãe dentista, e a mesma

Fornecer seu primeiro atestado de óbito num ponto afastado da Amazônia bra-sileira para uma paciente com arritmia cardíaca que não pôde receber os

cuidados de Terapia Intensiva foi marcante para o jovem médico oftalmologista Antônio Motta que, nesta entrevista, nos conta algo de sua vida como médico a serviço do Exército Brasileiro.

queria que eu fizesse Direito. Ao final do 3º ano do antigo curso científico, em 1994, estudando no interior da Bahia numa cidade chamada Alagoinhas, aos 16 anos, me per-guntava “para que vou prestar vestibular?” e por algum motivo que não consigo explicar escolhi a arte de cuidar das pessoas. Ao lon-go da faculdade fui tomando contato com as diversas áreas da Medicina e decidi que faria alguma área na qual eu pudesse ter contato com os pacientes e que pudesse praticar a arte da cirurgia. No 6° ano, já em 2001, agora aos 22 anos, novamente a hora da decisão: “O que vou fazer?” Nesse ponto já tinha in-clinação para Oftalmologia. Essa tendência foi reforçada pela minha tia que é médica oftalmologista. Porém, pensava ao mesmo tempo em trabalhar um ano para iniciar a residência, uma vez que era “muito novo”. Foi quando recebi a notícia com grande impacto na minha vida: um telefonema na sexta-feira a noite feito por um sargento, dando-me ci-ência que dentro de 5 dias teria que viajar para prestar serviços ao Exército Brasileiro na região da Amazônia.

JOTA ZERO – Conte um pouco desta ex-periência.ANTÔNIO MOTTA – Em nosso País todos os homens formandos em Medicina devem se apresentar às Forças Armadas de forma obrigatória após a formatura. Caso exista necessidade, esses profissionais podem ser convocados para prestação do serviço militar obrigatório como médicos em qual-quer local do Brasil desde que não tenham servido no passado. Ao receber a notícia

Antônio Francisco Pimenta Motta

Numa noite de sexta-feira, o telefonema que mudou tudo

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da convocação, tentei obter a dispensa do serviço militar obrigatório, porém sem êxito. Fui então deslocado para Manaus (AM), onde passei o carnaval mais angustiante da minha vida, uma vez que não fui voluntário e tive apenas 5 dias para ajustar “minha vida” que ficava para trás, além de não saber meu destino na região Norte. Após alguns dias na capital amazonense, fui designado para Tefé, cidade com aproximadamente 64 mil habitantes, dos quais 12 mil ribeirinhos. Ao chegar pensei em “Ter fé “ e “Ter férias”, e resolvi abraçar com toda a garra possível aquela oportunidade única na minha vida. Na cidade, existe uma carência muito gran-de de profissionais de saúde e comecei a atuar como médico generalista, juntamente com 12 colegas de todo o Brasil, fazendo atendimentos dos mais diversos, abran-gendo a cidade inteira, os militares e seus familiares. Além desses atendimentos par-ticipávamos de missões humanitárias junto às populações mais carentes: indígenas e ribeirinhos, levando saúde básica, com orientação, exames laboratoriais, atendi-mento odontológico, pequenas cirurgias, tudo de forma integrada com a Marinha do Brasil que tem o segundo maior efetivo das Forças Armadas na região, embora em número bem inferior ao Exército. Em virtude da carência de profissionais e de recursos tecnológicos, tínhamos que caprichar no exame clínico. Em casos graves, tentáva-mos transferir os pacientes de barco ou avião para onde pudessem receber melhor assistência. Havia grande preocupação de-vido a inexistência de anestesiologistas e cirurgiões gerais na localidade.

JOTA ZERO – Você chegou a atuar como médico oftalmologista?ANTÔNIO MOTTA – Não tínhamos os equipamentos de exame oftalmológico e fazíamos Medicina geral. Nas missões rio acima, que por vezes duravam duas sema-nas, os atendimentos eram feitos nos locais onde parávamos e, no caso de algo mais grave, enviávamos os doentes até a cidade com condições de atendimento mais pró-xima. A malária endêmica era a maior pre-ocupação e atendíamos frequentemente traumas, afogamentos após ingestão de álcool, além das viroses e doenças cardio-vasculares de forma geral, nos preocupan-do sempre com a constante vigilância por causa dos animais selvagens.

JOTA ZERO – A população urbana conside-ra que a situação sanitária das populações afastadas dos grandes centros urbanos é lamentável. É fato ou preconceito? ANTÔNIO MOTTA - Aquelas populações que moram afastadas dos centros urbanos vivem em comunhão com a natureza, fazen-do coleta de castanha do Pará, palmito de pupunha e açaí, juntamente com o plantio da mandioca para fabricação de farinha artesa-nal, banana e outras culturas; muitas vezes praticam escambo com as balsas mercantes que circulam na vasta rede hidrográfica da região. Não possuem estrutura sanitária adequada e, muitas vezes, lançam dejetos no rio onde se banham. Quanto mais afas-tado dos centros urbanos, mais se acentua essa condição.

Decidi que faria alguma área na qual eu pudesse ter contato com os pacientes e que pudesse praticar a arte da cirurgia

Antônio Motta durante seu serviço militar

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JOTA ZERO - Você viu tracoma? Oncocer-cose? Cegueira for falta de vitamina A?ANTÔNIO MOTTA - Existem muitos casos de tracoma na região, porém não tínhamos como examinar oftalmologicamente os pacientes e ficávamos com diagnóstico de presunção de acordo com o quadro clínico of-talmológico, como entrópios cicatriciais. Não é frequente oncocercose, nem cegueira por deficiência de vitaminas, porém a presença de catarata como fator de cegueira nos ido-sos era notada pela presença de leucocoria em alguns casos.

JOTA ZERO - Casos e situações que te marcaram.ANTÔNIO MOTTA - A situação que mais me marcou foi preencher o primeiro Ates-tado de Óbito de minha vida. Era de uma paciente com quadro de arritmia cardíaca associada à intoxicação digitálica, que acompanhei durante todo plantão até o seu falecimento sem poder ajudar, uma vez que não tínhamos unidade de Terapia Intensiva. A filha ficou inconsolável, mas ao fim de tu-do agradeceu-me pelo esforço de mais de oito horas. Outro caso muito marcante foi o diagnóstico de simulação de parestesia de membros inferiores, apresentado pelo filho de um sargento com oito anos de idade, que estava triste pelo retorno das férias

que passara junto aos primos que moravam no Rio de Janeiro. Foi difícil, pois tive que afastar todas as causas possíveis com o exame clínico e dar ao pai o diagnóstico sem exame algum que pudesse confirmar minha suspeita.

JOTA ZERO - Depois de servir nas For-ças Armadas, o que fez da vida, como aquela experiência te marcou?ANTÔNIO MOTTA - Após o término do serviço militar, retornei a Bahia para o início da residência médica em Oftalmologia. A experiência de vida adquirida naquele ano, no qual fizemos fortes ligações de amizade e aprendemos muito, serviu para nortear minha conduta durante a residência e colocar de forma simbólica um “filtro” diferente na minha visão e forma de viver.

JOTA ZERO - Que diria ao jovem médi-co que se encontra diante da possibi-lidade de servir nas Forças Armadas?ANTÔNIO MOTTA - É uma oportunidade única de fortalecer o caráter e o espírito,com aprendizado real sobre a vida, sobre solida-riedade e sobre patriotismo. É o momento a ser encarado como uma grande aventura, um grande e recompensador desafio na sua vida que servirá para sempre na sua prática profissional.

É uma oportunidade única de fortalecer o caráter e o espírito,com aprendizado real sobre a vida, sobre solidariedade e sobre patriotismo