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Braga na Idade Moderna: Paisagem e Identidade Gustavo Portocarrero 27 AR KEO S

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Bragana Idade Moderna:Paisagem e Identidade

Gustavo Portocarrero

27

ARKEOS

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| BR AGA NA IDADE MODER NA: |PAISAGEM E IDENTIDADE

| Gustavo Portocarrero |

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FICHA TÉCNICA

AR KEOS | perspectivas em diálogo, nº 27Propriedade: CEIPHAR - Centro Europeu de Investigação da Pré-História doAlto R ibatejoVolume editado em colaboração com o Museu de Arte Pré-Histórica de Mação(Câmara Municipal de Mação)Direcção: a Direcção do CEIPHARAutor: Gustavo Portocarrero© 2010, CEIPHAR e autorComposição: CEIPHARConcepção gráfica da colecção AR KEOS: Candeias Artes GráficasImpressão e acabamentos: Candeias Artes Gráficas | www.candeiasag.com

CONSELHO DE LEITORES (referees)Abdulaye Camara (Senegal) | Carlo Peretto (Italy) | Fábio Vergara Cerqueira (Brazil)Luís Raposo (Portugal) | Marcel Otte (Belgium) | Maria de Jesus Sanches (Portugal)Maurizio Quagliuolo (Italy) | Nuno Bicho (Portugal) | Pablo Arias (Spain)Saúl Milder (Brazil) | Susana Oliveira Jorge (Portugal) | Vítor Oliveira Jorge (Portugal)

TIRAGEM: 500 exemplares | DEPÓSITO LEGAL: 108 463 / 97ISSN: 0873-593X | ISBN: 978-972-95143-2-6

ARKEOS é uma série monográfica, com edição de pelo menos um volume por ano,editada pelo Centro Europeu de Investigação da Pré-História do Alto R ibatejo,que visa a divulgação de trabalhos de investigação em curso ou finalizados, emPré-História, Arqueologia e Gestão do Património. A recepção de originais é feitaaté 31 de Maio ou 30 de Novembro de cada ano, devendo os textos ser enviadosem suporte digital, incluindo título, resumo e palavras-chave no idioma do texto doartigo, em inglês e em português. Os trabalhos deverão estar integrados na temáticado volume em preparação e serão submetidos ao conselho de leitores. A aprovaçãoou rejeição de contribuições será comunicada no prazo de 90 dias.

Solicitamos permuta | On prie l’échange | Exchange wantedTauschverkehr erwunscht | Sollicitiamo scambio

CONTACTARCEIPHAR | Centro de Pré-História do Instituto Politécnico de TomarEstrada da Serra, 2300 TOMAR | PORTUGAL

Volume editado com a colaboração da Comissão Europeia(Programa Long Life Learning - Erasmus)

TOMAR, ABRIL DE 2010

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Prefácio

Introdução

O estudo das cidades portuguesas da Idade Moderna

Uma abordagem alternativa: paisagem e identidade

Fontes

Braga em finais do século XV

A Nova Braga (I)

A Nova Braga (II)

A Reforma Católica

Uma crise no horizonte

Uma crise de identidade

Uma identidade fragmentada

A Nova Jerusalém

Conclusão

Bibliografia

ÍNDICE

09 |

11 |

15 |

19 |

23 |

27 |

35 |

49 |

61 |

71 |

81 |

89 |

101 |

113 |

117 |

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Abreviaturas

IAN/ TT - Instituto do Arquivo Nacional/ Torre do Tombo

BNL - Biblioteca Nacional de Lisboa

BNA - Biblioteca Nacional da Ajuda

ADB - Arquivo Distrital de Braga

AMB - Arquivo Municipal de Braga

ASB - Arquivo da Sé de Braga

AISV - Arquivo da Irmandade de S. Vicente (Braga)

AISC - Arquivo da Irmandade de Santa Cruz (Braga)

AVOTSF - Arquivo da Venerável Ordem Terceira de S. Francisco (Braga)

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Agradecimentos

Esta livro constitui uma versão abreviada da minha dissertação dedoutoramento, a qual não teria sido possível sem a ajuda e colaboraçãode um conjunto de pessoas a quem eu gostaria de exprimir os meusagradecimentos.

Em primeiro lugar, gostaria de agradecer aos meus supervisores,Fernando António Baptista Pereira e David Austin, por todo o seu valio-so apoio e orientação.

Gostaria também de agradecer às seguintes pessoas pelas suas infor-mações relativamente à história de Braga: Eduardo Pires de Oliveira,Rui Maurício, Ana Maria Magalhães de Sousa Pereira, Luís Costa, LuísFontes, Maria da Assunção Jácome de Vasconcelos e Henrique BarretoNunes.

Finalmente, queria ainda agradecer às seguintes pessoas por me te-rem autorizado o acesso a arquivos privados: Cónego Pio (Arquivoda Sé de Braga), Mário Moura (Arquivo da Confraria de S. Vicente),Alberto Quintas (Arquivo da Confraria de Santa Cruz) e Maria JoséProença (Arquivo da Confraria da Venerável Ordem Terceira de S.Francisco).

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Prefácio

A Dissertação de Doutoramento de Gustavo Portocarrero, apresen-tada e defendida no R eino Unido (Universidade de Lampeter, País deGales, com a orientação de David Austin e do signatário) e entretanto aíeditada (BAR S1928, 2009), que agora se publica em versão portugue-sa, com o título Braga na Idade Moderna: Paisagem e Identidade, é umtrabalho metodologicamente inovador e da maior importância para odesenvolvimento dos estudos sobre a caracterização e história das iden-tidades urbanas. O autor já havia utilizado a mesma metodologia na suadissertação de Mestrado, também apresentada no R eino Unido, em2000, e publicada, em português, com o título Sistemas de Defesa Cos-teira na Arrábida durante a Idade Moderna: uma visão social (Colibri,2003, prefácio de R afael Moreira).

Enquanto no trabalho de Mestrado, Gustavo Portocarrero se debru-çava sobre um segmento do património construído de directo patrocí-nio da Coroa, como são os sistemas defensivos costeiros, o que lhe per-mitiu reconhecer as diferentes estratégias seguidas pelo Poder na expli-citação da imagem da sua função política e militar junto das comunida-des locais, na presente obra, com a extensão e o aprofundamento pró-prios de um doutoramento, o autor aborda toda uma complexa comu-nidade urbana – a Cidade Arquiepiscopal de Braga – constituída pordistintos grupos sociais, com dissemelhantes manifestações identitáriasao nível da iniciativa construtiva, desde os inícios de Quinhentos aoséculo XVIII.

O autor toma como ponto de partida uma enorme variedade defontes, com destaque para as representações cartográficas da cidade, des-de os finais do século XVI até aos excelentes exemplares do séculoXVIII, com o levantamento minucioso de ruas e casas. Através desseextraordinário manancial informativo, muito pouco explorado pela his-toriografia artística tradicional, logra discernir não apenas as grandes li-nhas de força da expansão urbana para fora do perímetro amuralhado,que foram definidas a partir da acção do Arcebispo D. Diogo de Sousa,como interpretar os distintos «lugares» e conjuntos construídos em quena cidade viviam (ou em que se polarizavam) os diferentes grupos so-ciais em presença enquanto manifestações de identidades urbanas de ma-triz aristocrática, letrada, burguesa ou mesteiral/ popular em luta e afir-mação.

Ao invés da historiografia artística tradicional, que tende a arrumaras distintas manifestações artísticas de um tempo ou de uma sucessão detempos na História dos Estilos e dos Tipos, o autor socorre-se de aproxi-mações metodológicas inter e transdisciplinares que recolhem contri-butos da sociologia e da antropologia, sem esquecer o modelo de leiturasemiológica dos vestígios que é própria da iconologia ou da própriaarqueologia em que o autor se formou, para construir um modelo deanálise e de síntese explicativa que não só nos devolve, em inéditas di-mensões de compreensão, a paisagem urbana de Braga, na sua diversi-

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dade e nas suas transformações, como tem múltiplos campos de aplica-ção no nosso país e em muitas outras realidades históricas, próximas oulongínquas.

Graças a esta renovadora abordagem, as alterações estratégicas naprodução do espaço urbano, aparentemente determinadas pelo poder,ou as sucessivas mudanças de gosto na arquitectura ou nos revestimen-tos decorativos dos interiores e exteriores dos edifícios, civis ou religio-sos, surgem aos olhos dos leitores não apenas como meros resultados deuma dinâmica entre o casticismo artístico de ambientes mais conserva-dores e o desejo de actualização artística de meios mais informados oucosmopolitas, mas como genuínas expressões materiais de ideais e devisões de determinados grupos e meios sociais sobre a cidade e o modocomo se deseja viver nela.

Estou certo que o exemplo do trabalho de Gustavo Portocarrero,que chega ao público português graças à generosidade e clarividência doCentro de Investigação de Arte Pré-histórica de Mação, dirigido comtanta proficiência por Luís Oosterbeek, não tardará a frutificar em reno-vadoras abordagens no âmbito da História da Arte Portuguesa, que tãonecessitada está destes influxos metodologicamente inovadores, e, sobre-tudo, ao nível do estudo arqueológico e histórico do imenso patrimó-nio construído e dos inúmeros conjuntos urbanos do vasto mundo por-tuguês.

Parede, Setembro-Outubro de 2009Fernando António Baptista Pereira

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| Gustavo Portocarrero |

1. Introdução

A construção de identidades urbanas por intermédio da paisagemdurante a Idade Moderna em Portugal é uma área de investigação histó-rica que, até agora, tem sido pouco explorada. Neste trabalho, vou pro-curar desenvolver este tema com uma ênfase na cidade de Braga. Estetrabalho procura também ser uma alternativa ao empirismo que, pre-sentemente, é comum nos estudos das cidades deste período.

O empirismo é uma teoria filosófica que assume que o conheci-mento pode ser obtido através de uma cuidadosa observação e cataloga-ção dos fenómenos, extrapolando leis dessas observações. O empirismono Ocidente foi construído segundo a ideia do universo mecanicista,algo que foi em grande medida influenciado pela teoria de Newton quepostulava que o mundo era uma máquina governada por leis abstractasque podiam ser expressas em fórmulas matemáticas, que, supostamente,eram independentes de circunstâncias históricas e variações temporais(Taylor, 2001: 79). Desta forma, há “apenas um sistema do mundo, oqual é governado por leis imutáveis e universais que fazem os processosnaturais potencialmente transparentes e previsíveis” (ibid.: 78; minhatradução). A imagem mais comum deste sistema é o relógio, um apare-lho mecânico feito de partes separadas, que operam em conjunto numestado de equilíbrio segundo leis que não podem ser quebradas (ibid.:79). Se bem que o interesse de Newton fosse com o universo físico, asua análise foi amplamente apropriada para interpretar todos os aspectosda sociedade e cultura (ibid.). Como tal, o raciocínio dos historiadoresempiristas relativamente a esta visão do mundo era a de que “tanto quan-to os humanos são parte desse mundo, também eles são máquinas con-troladas por leis que se aplicam a todos os outros corpos físicos” (ibid.).Foi assim que se desenvolveu uma história empirista, a qual consistebasicamente em 2 aspectos: o primeiro é a determinação dos factos; osegundo é o estabelecimento das leis que, supostamente, regulam a socie-dade humana.

Há, contudo, alguns problemas com esta perspectiva no que diz res-peito à investigação histórica. Um deles, é o de que a investigação tendea ser cada vez mais orientada para as fontes em vez de orientada para osproblemas, não sendo como tal surpreendente que os investigadoresachem extraordinariamente difícil determinar quando chega a altura derealizar uma síntese (Tosh, 2002: 139). Outro problema, é o de quesimplesmente descrever ou colocar dados numa sequência temporal cor-recta nada nos diz acerca “da importância relativa de todos esses factoresvariados, tal como não nos apresenta um relato compreensivo de comoeles interagem uns com os outros” (ibid.: 177; minha tradução). Final-mente, devido ao seu carácter mecanicista, tende a dar pouco valor àagência humana (Austin, 1998: 164; Johnson, 1999: 42, 43), a qual, porsua vez, valoriza as faculdades, capacidade de escolha e de acção humanano mundo, algo que contrasta com a tendência redutora do empirismopara construir sistemas de conhecimento que parecem determinar ocomportamento dos seres humanos, substituindo a predestinação divina

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com as leis imutáveis da natureza mecânica, acabando as pessoas por serreduzidas a robots com pouca capacidade para deliberação criativa. Nestetrabalho procurar-se-á ultrapassar estes problemas recorrendo aos con-ceitos de paisagem e identidade, como se verá adiante no capítulo 3.

R elativamente à sua estrutura, o livro encontra-se organizado deacordo com os seguintes capítulos. O capítulo 2 consiste numa revisãocrítica dos estudos que têm sido feitos nas últimas décadas sobre as cida-des portuguesas, os quais tendem a seguir uma abordagem empirista.No capítulo 3, delineio uma abordagem alternativa para o estudo dascidades da Idade Moderna, com foco nos conceitos de identidade e pai-sagem. Finalmente, o capítulo 4 consiste na apresentação das fontes queforam utilizadas na investigação sobre Braga, em particular mapas, docu-mentos e edifícios que ainda se mantêm de pé.

Os restantes capítulos dizem respeito ao estudo da cidade de Braga.O capítulo 5 consiste numa análise do aspecto que a paisagem urbanatinha no final do século XV e o que daí se pode inferir acerca da suaidentidade. Os capítulos 6 e 7 focam as mudanças radicais que ocorre-ram na paisagem e identidade da cidade no início do século XVI, sobre-tudo através do impulso do arcebispo D. Diogo de Sousa. Devido àextensão destas mudanças bem como às diferenças qualitativas que trou-xe ao espaço de Braga, optei por dividir esta análise em dois capítulos: o6 consiste no espaço da cidade e o 7 nos seus arredores. O capítulo 8 dizrespeito às acções que tiveram lugar em meados do século XVI sob ainiciativa da Igreja por forma a consolidar a identidade católica de Braga.O capítulo 9 lida sobretudo com as acções do arcebispo Frei Agostinhoda Cruz em finais do século XVI com vista a reafirmar o estatuto pri-macial de Braga dentro da monarquia Hispânica. O capítulo 10 cobreos anos 1620-1670, um período de forte turbulência política e social,que viria a causar uma crise de identidade em Braga. No capítulo 11,argumento que esta crise de identidade foi responsável pela fragmenta-ção da identidade de Braga noutras menores entre os seus habitantes.Finalmente, no capítulo 12 analiso as tentativas do arcebispo D. RodrigoMoura Teles no início do século XVIII no sentido de criar uma identi-dade comum que uma vez mais unisse todos os habitantes de Braga.

Para terminar esta introdução, uma vez que a maior parte dos capí-tulos deste livro é sobre Braga, julgo ser conveniente fornecer algumasinformações gerais sobre a sua geografia e história.

Braga está localizada no centro do Noroeste de Portugal, num valecercado por montes, uma paisagem típica desta região. Descrições destaregião feitas durante a Idade Moderna, mencionam-na como sendo aárea mais fértil e densamente povoada de Portugal (Nogueira Silva eHespanha, 1993: 26, 27).

Tanto quanto se sabe actualmente, Braga foi fundada pelos R oma-nos em finais do século I a. C., na área entre a Catedral e o rio Deste,para sul (Martins, 2000: 4). O seu nome original era Bracara Augusta,sendo a primeira palavra uma referência ao povo que vivia naquela área,os Bracari, estando a outra palavra relacionada com o imperador roma-no responsável pela sua fundação, Augusto (ibid.: 3, 4). Contudo, naIdade Moderna, era simplesmente conhecida pelo diminutivo de Braga.A cidade teve uma importância considerável durante o período roma-no, tendo sido a capital da província romana da Galécia, que então com-preendia todo o Noroeste peninsular (ibid.: 7).

Com as invasões germânicas no século V, a cidade tornou-se a capi-tal do reino Suevo, cujos limites coincidiam sensivelmente com todo oNoroeste peninsular. Após a invasão muçulmana no início do séculoVIII, a cidade perdeu muita da sua importância e população uma vezque se tornou uma zona de guerra. Somente no final do século XI,

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quando a fronteira entre os reinos cristãos e muçulmanos ficou conside-ravelmente para sul de Braga, a cidade pôde alcançar alguma estabilida-de. Uma nova cidade desenvolveu-se em redor da área da Catedral,incorporando assim somente a parte nordeste da cidade romana na áreaurbana medieval, tendo o resto sido abandonado (ibid.: 11). A cidademedieval ocupava assim uma área mais pequena que a romana.

Com a conversão do Império R omano ao Cristianismo no séculoIV, Braga tornou-se sede de arquidiocese, vindo a ter o estatuto de pri-maz da Hispânia e o direito a realizar um ritual específico (Bandeira,2000a: 59). R elativamente ao termo “Hispânia” é útil notar que esteera o nome que a Península Ibérica então tinha. Trata-se, assim, de umtermo geográfico; não deve ser confundido com “Espanha”, termo de-rivado do anterior, e que se refere à entidade política que resultou daunião dos reinos de Castela e Aragão no final do século XV. Como tal,neste livro, uso o termo “Hispânia” quando me refiro à entidade geo-gráfica e “Espanha” quando me refiro à entidade política.

O estatuto primacial era muito prestigioso para a cidade, sendo algoque sempre procurou manter. No entanto, a cidade de Toledo tambémrivalizava com Braga pela posse do mesmo título, havendo uma cons-tante disputa entre ambas as cidades pela sua obtenção definitiva; umadisputa que ainda hoje se mantém. Esta rivalidade entre Braga e Toledodata desde o período Germânico, quando ambas as cidades eram, res-pectivamente, capitais dos reinos Suevo e Visigótico, que eram então asduas entidades políticas da península e que competiam pelo seu domí-nio completo.

R elativamente às dimensões da arquidiocese de Braga, elas eramconsideráveis, cobrindo a maior parte do Norte de Portugal em finaisdo século XV (Mea, 1998: 413, 414). Somente a área em redor da cida-de do Porto, para sudoeste, estava fora dela. Em meados do século XVI,Braga perdeu o controlo sobre a área Nordeste da sua arquidiocese, quese tornou na nova diocese de Miranda do Douro (ibid.: 416). Nãoobstante, Braga ainda manteve um largo território, fértil e densamentepovoado, factores que davam uma importância considerável a esta arqui-diocese.

Até o final da Idade Moderna, Braga foi igualmente cabeça de umdomínio temporal com consideráveis dimensões no Norte de Portugalsobre o qual tinha forte jurisdição, tendo desta forma ampla autonomiadentro de Portugal, algo que a Coroa procurou recorrentemente con-trariar, embora com pouco sucesso (Bandeira, 2000a: 80, 82).

Finalmente, convém notar que a cidade de Braga tem uma caracte-rística única que a distingue de várias cidades portuguesas durante a Ida-de Moderna: um clérigo – o arcebispo – governava-a. Os arcebisposeram coadjuvados por um Cabido – corporação de cónegos sob contro-lo dos arcebispos e que os assistia e governava a cidade na sua ausência –,bem como por uma Câmara – sobre a qual os arcebispos tinha umaforte influência e cujos membros pertenciam à aristocracia secular dacidade. A forte presença da Igreja Católica em Braga deu-lhe um papelchave na modelação da paisagem e identidade da cidade.

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2. O estudo das cidades portuguesas daIdade Moderna

Existem vários estudos sobre cidades portuguesas deste período1, osquais, do meu ponto de vista, podem ser basicamente divididos em duasabordagens. Uma, influente na história documental, privilegia o estudode esferas estruturais da vida urbana como a economia, sociedade, admi-nistração e demografia (e.g. R ibeiro da Silva, 1994). Dentro de cadauma destas esferas, outros temas podem igualmente ser considerados;por exemplo, Fernando Castelo Branco na sua investigação sobre a Lis-boa seiscentista (1990), na análise do meio social, divide-o em cerimó-nias oficiais, procissões religiosas, academias, etc. O problema com estaabordagem é que “compartimentaliza a experiência humana em caixas”(Tosh, 2002: 35; minha tradução) sendo difícil compreender como to-dos estes elementos interagiam uns com os outros.

A outra abordagem é o Urbanismo e está exclusivamente virada parao estudo do espaço físico das cidades, sendo praticada por arqueólogose, sobretudo, historiadores de arte. É o carácter desta última abordagemque vai ser agora analisado no resto deste capítulo.

Nas últimas décadas têm sido feitos vários estudos nesta área, querfocando cidades individuais (e.g. França, 1962; Correia, 1984; FerreiraAlves, 1988; Câmara, 1989; Carreira, 1989; Murteira, 1994; AlexandreRodrigues, 1995; Conceição, 1997; Ferrão Afonso, 2000) ou através daelaboração de sínteses gerais (e.g. R ossa, 1995; Teixeira e Valla, 1999).Vejamos então aquelas que me parecem ser as principais linhas destesestudos.

Em primeiro lugar, o que é que estes estudos querem dizer com apalavra “urbanismo”? O significado das palavras não é óbvio: resulta daassociação com outras. No caso dos estudos sobre urbanismo, nota-seuma sistemática associação com a ideia de ordem. Urbanismo é apre-sentado como tendo a ver com a implementação de ordem na cidade.Mas, que género de ordem é essa? Como é que se a reconhece? Aqui,entra outra palavra: regularidade. Mas, o que é regularidade? Nestes es-tudos é apenas uma coisa: uma grelha geométrica com linhas rectas per-pendiculares umas às outras. Mas, porque deve o urbanismo ser organi-zado segundo linhas rectas? Porque elas são o resultado de uma “cons-trução intelectual” (Teixeira e Valla, 1999: 13), ou seja, são racionais.Por forma a tornar o significado destas palavras mais explícito, elas sãogeralmente articuladas em oposições binárias: planeamento versus orgâ-nico. Este último refere-se aos “aspectos espontâneos da cidade” (Rossa,1995: 234), e, obviamente, sendo espontâneo não é racional: não háuma pausa para uma construção intelectual. E, sem esta última, não háuma grelha geométrica: a cidade torna-se irregular, sem ordem, caótica.

Se bem que esta associação entre grelha e razão soe “óbvia” e “lógi-ca” para estes investigadores, pode, no entanto, argumentar-se que tudoisto é senso comum, ou seja, a atribuição de significado a algo usando aexperiência pessoal como único modelo (Johnson, 1999: 6).

1 A palavra “cidade” éusada neste livro paradesignar o fenómenourbano em geral.Note-se que durante aIdade Moderna apalavra mais comumpara designar áreasurbanas em Portugalera “vila”, enquantoque a palavra “cidade”era usada somente paraaquelas vilas que eramcabeças de bispados.

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Isto porque os investigadores do urbanismo estão a trabalhar dentrode um esquema desenvolvido pelos pensadores setecentistas do Ilumi-nismo que “viam na grelha a figura da razão universal” (Taylor, 2001:30; minha tradução). Tome-se, por exemplo, o arquitecto suíço LeCorbusier para quem as linhas e os ângulos rectos caracterizavam a exis-tência humana, sendo a habilidade de seguir uma linha recta o que dis-tinguia os humanos dos animais (ibid.: 26). Dentro desta análise, os hu-manos, para serem considerados como tal e não como “primitivos” ou“bestas”, deviam seguir “a estrita disciplina da grelha através da qual aordem da razão é assegurada. À medida que os sentimentos e as emo-ções são controlados, a ordem é forjada à desordem” (ibid.: 27; minhatradução). Os investigadores do urbanismo, ao esquecerem-se que estãoa trabalhar dentro de uma ideologia e ao assumir a universalidade destesprincípios, acabam por assumir uma visão etnocêntrica que desvalorizaou exclui tudo aquilo julgado diferente da grelha. Mais, as linhas rectasconstruídas antes do Iluminismo são vistas dentro de uma perspectivaanacrónica, uma vez que existe uma assunção implícita de que elas são oresultado da razão trazendo ordem ao caos. Com a geometria inerente àgrelha, a cidade torna-se uma máquina (ibid.).

Os investigadores do urbanismo português consideram geralmentequatro períodos no desenvolvimento de uma “ordem racional” na Ida-de Moderna: os finais da Idade Média (a condição anterior à Idade Mo-derna), o Renascimento (finais do século XV e século XVI), o Barroco(século XVII e primeira metade do século XVIII) e o Iluminismo (se-gunda metade do século XVIII). Assim, por exemplo, olhando para acidade dos finais da Idade Média (e.g. Rossa, 1995: 246-260; Teixeira eValla, 1999: 25-46) há uma identificação e uma descrição de elementosindividuais como muralhas (construídas por razões defensivas e delimi-tação da jurisdição da cidade), o castelo (símbolo senhorial), a câmaramunicipal (o centro administrativo), a igreja (o centro religioso), os ti-pos de casa (as áreas residenciais), a praça ou o terreiro (onde era omercado), o pelourinho (onde a justiça era aplicada), os hospitais, poçose fontes (as utilidades públicas) e as áreas onde minorias religiosas vi-viam. Quanto à rede viária ligando todos estes elementos, se a cidadetivesse sido construída após o século XIII geralmente tinha uma forma“regular” criando longos quarteirões rectangulares; se fosse mais velha,então teria um aspecto mais irregular. Além disso, em todas as cidadeshavia uma rua (às vezes duas) – a rua direita – ao longo da qual os maisimportantes edifícios urbanos podiam ser encontrados. Como se podever, com este género de abordagem o propósito é identificar e descre-ver dentro de um esquema empirista os elementos individuais (religio-sos, económicos, militares) e as suas ligações que permitem que a cidadefuncione como uma máquina. Está-se a lidar aqui com uma narrativadesumanizada que vê os humanos como robots executando ordeiramen-te as suas actividades (rezando, comprando, trabalhando). Esta aborda-gem de senso comum baseada em ideias actuais ignora a possibilidade deque aqueles que habitavam essas cidades pudessem tê-las visto de ma-neiras diferentes.

Nem tudo ia bem, contudo, nesta cidade-máquina e os investigado-res apontam para o R enascimento como o início de um importanteesforço para “racionalizar” a cidade e providenciar “melhores” condi-ções de vida aos seus habitantes (e.g. Câmara, 1989: 33; Carreira, 1989:21; R ossa, 1995: 260-266; Teixeira e Valla, 1999: 83-120). Um dostópicos mais desenvolvidos é o carácter do “caos orgânico” medievalque existia nas ruas: os andares superiores das casas projectavam-se sobreas ruas, escurecendo-as; lojas no andar térreo estendiam-se sobre a rua;as próprias ruas eram estreitas e curvilíneas. Segundo os investigadores,

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a principal consequência disto era tornar o tráfego mais difícil. Por for-ma a resolver este problema, as fachadas das casas foram endireitadas.Graças a estas medidas “racionais” a cidade-máquina, cuja rede de co-municações estava a ficar obstruída, podia continuar a funcionar bem.Foi também neste período que tratados de urbanismo, baseados nos daR oma Clássica (especialmente o de Vitrúvio), começaram a circular.Estes favoreciam uma cidade organizada segundo uma estrita grelhaortogonal com uma praça central onde os principais edifícios pudessemser encontrados e com edifícios residenciais do mesmo tamanho e for-ma. Apesar da disponibilidade destes modelos “racionais”, a sua aplica-ção não foi imediata, uma vez que não era fácil mudar do dia para anoite a estrutura medieval; a aplicação destes tratados teve então de ser“pragmática”, de acordo com as circunstâncias (e.g. R ossa 1995: 263):uma rua rectilínea aqui, uma praça acolá. Note-se, contudo, que o usodas ideias destes tratados é visto apenas através do seu contributo para aformação da cidade “racional”, não sendo considerado que outros mo-tivos lhes pudessem estar subjacentes.

Quanto ao período Barroco, assiste-se aqui à consolidação das for-mas que emergiram no período anterior (Correia, 1989; R ossa, 1995:270, 292-296; Teixeira e Valla, 1999: 149-214). Outras mudanças sãoigualmente observáveis neste período na forma da cidade: há uma mul-tiplicação de igrejas e conventos e várias cidades costeiras e fronteiriçassão fortificadas com novas muralhas construídas com baluartes (algo queos tratados renascentistas já sugeriam). Se bem que causas genéricas (aR eforma Católica, as guerras com Espanha) sejam mencionadas paraestas mudanças, o que interessa nestes estudos é colocar estas mudançasdentro de uma perspectiva funcional: problemas dentro das esferas reli-giosas e defensiva foram responsáveis por elas. Desta forma, a cidade--máquina podia continuar a funcionar.

Uma interessante excepção ao carácter empirista e mecanicista dosestudos deste período consiste nalguns estudos iconológicos e socioló-gicos que lidam com as tentativas de alguns grupos sociais de usarem osespaços da cidade para teatralizar cerimónias de afirmação do seu poder.Exemplos incluem as acções da Coroa em Lisboa (Baptista Pereira, 1994;Pimentel, 2002), mas também as acções dos representantes de Lisboaface à Coroa (Kubler, 1988: 110-133).

Finalmente vem o último período, o Iluminismo, quando a formada cidade assume o carácter de uma estrita grelha (França, 1962; Cor-reia, 1984; R ossa, 1995: 296-315; Teixeira e Valla, 1999: 285-314).Neste período, o urbanismo atinge o seu zénite. A razão prevaleceusobre o caos.

Todos estes investigadores (excepto aqueles que têm uma aborda-gem iconológica e sociológica) estão a trabalhar, como já vimos, dentrode uma ideologia do Iluminismo que promove uma visão matemáticada razão, a qual reduz o mundo a uma máquina, visível na figura dagrelha. E dentro desta ideologia, a história não é mais do que o progres-so de um mundo irracional para um mundo racional (Collingwwodn/ d: 129), exactamente aquilo que os investigadores do urbanismo fa-zem quando organizam a história do urbanismo em períodos cuidadosa-mente arranjados que vão desde a “caótica” Idade Média até ao Ilu-minismo “racional”. Todavia, o que os investigadores fazem é seleccio-nar alguns elementos, “esquecendo-se” de outros, ou, pelo menos, mi-nimizando-os. Note-se, por exemplo, que algumas das características dacidade medieval persistiram ao longo da Idade Moderna; o urbanismoIluminista apenas cobre um punhado de cidades portuguesas, etc.

Um último problema com este género de investigação é o de queexiste uma confusão entre cidade e urbanismo. A cidade é vista como

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uma essência válida por todo o tempo e espaço, com uma “organizaçãosocial complexa (…) [visível na] especialização de papéis e de funçõesdos habitantes e dos espaços” (R ossa, 1995: 239). Contudo, isto é umavez mais o modelo da cidade-máquina e um modelo que, ironicamente,reduz a complexidade da cidade a uma única dimensão. Mais, este mo-delo trata o mundo rural como um espaço “simples”; tal trata-se, noentanto, de uma velha ideologia (cf. Cosgrove, 1993), sendo o espaçorural tão complexo como qualquer espaço. Dentro dos estudos do urba-nismo, o carácter de cada cidade é visto somente através das mudançasda sua forma, contudo, como já argumentei, os períodos identificadospelos investigadores são completamente artificiais. A complexidade decada cidade é reduzida simplesmente a um comentário de quão bem asua forma encaixa dentro do continuum irracional-racional. Existematé umas poucas tentativas empiristas de determinar uma “lei” que ex-plique o carácter das cidades portuguesas: estas são o resultado de umaarticulação entre as abordagens planeada e orgânica (Teixeira e Valla,1999: 316). No entanto, não há nada de especial com essa formaçãodado que o mesmo se passa em várias cidades europeias, como se podever em trabalhos sobre urbanismo europeu (e.g. Burke, 1975: 78; Goi-tia, 1985: 119).

Concluindo, na minha perspectiva, presentemente, os estudos sobreurbanismo são sobretudo narrativas empiristas organizadas de forma adar uma imagem daquilo que a cidade é suposto ser dentro de um es-quema influenciado por ideias do Iluminismo. Como as pessoas durantea Idade Moderna construíam as suas identidades urbanas através da pai-sagem, é algo que continua largamente por explorar.

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3. Uma abordagem alternativa:paisagem e identidade

Após se ter revisto as limitações do empirismo no estudo das cidadesportuguesas da Idade Moderna, é tempo agora de desenvolver um mo-delo alternativo centrado nos conceitos de paisagem e identidade.

R elativamente à paisagem, é importante notar que ela é “um con-ceito singularmente complexo e difícil. A palavra tem múltiplos senti-dos e o seu significado preciso tem mudado repetidamente” (Thomas,2001: 166; minha tradução). Dentro do empirismo, a paisagem é vistacomo um espaço geométrico onde o que interessa é a identificação ecolocação correcta dos achados materiais de modo a construir uma ima-gem daquilo que ela parecia numa certa altura (Tilley, 1994: 9; Thomas,2001: 167). Por exemplo, as representações da cidade de Braga nos sé-culos XVI e XVII são vistas como “distorcidas” e com “pouco rigor”(Bandeira, 1994: 26, 27; 2000a: 47) dado que elas não apresentam acidade na sua fisionomia “real”, isto é, geométrica.

Contudo, outras abordagens à paisagem podem igualmente ser con-sideradas. Por exemplo, Preucel e Hodder distinguem quatro diferentesabordagens (1996: 32, 33). A primeira é denominada “paisagem comoambiente”, a qual “envolve a reconstrução de ambientes específicos.Ela lida com o meio exterior às pessoas e com o qual elas tinham queviver e adaptar-se” (ibid.: 32; minha tradução).

Uma segunda abordagem é denominada “paisagem como sistema”.Estes estudos focam a implantação dos sítios dentro de um padrão geralde actividades dentro e fora desses mesmos sítios. Este género de abor-dagem “é apropriada para estudos sobre estruturas económicas e sociaisuma vez que existe geralmente alguma relação entre as formas como ossítios estão distribuídos e os sistemas económicos e políticos nos quaiseles existem” (ibid.: 33; minha tradução).

A terceira abordagem é denominada “paisagem como poder”. Aqui,a paisagem é vista como estando “ideologicamente manipulada em rela-ções de domínio e resistência. Há uma ênfase em contradições e conflitosque emergem no ambiente perceptível e estão embebidas em relações depoder” (ibid.; minha tradução). Por exemplo, as conquistas envolvem fre-quentemente a destruição da história através da obliteração dos monu-mentos dos vencidos, enquanto que a resistência pode ser expressa nadestruição de símbolos de dominação (Knapp e Ashmore, 1999: 19).

Quanto à quarta abordagem, denominada “paisagem como experi-ência”, a preocupação é “com a forma como os corpos experimentam omundo à sua volta” (Preucel and Hodder, 1996: 33; minha tradução). Éo espaço da experiência sensorial (olfacto, audição) e do movimento docorpo (frente/ trás, dentro de alcance/ fora de alcance). Esta abordagemé bastante recente, datando da década de 1990 com trabalhos como osde Christopher Tilley (e.g. 1994).

Por outro lado, se se olhar para a maneira como outros autores orde-nam as abordagens à paisagem, encontram-se diferenças. Por exemplo,

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R ichard Muir também considera válida a abordagem “paisagem comosímbolo”, onde o foco é a identificação das mensagens e significadossimbólicos contidos na paisagem (1999: 212). Esta abordagem, bastanteinfluenciada pela iconologia, pode ser dividida em duas variantes. Umadelas, mais recente e desenvolvida por geógrafos culturais, considera apaisagem como uma “imagem cultural, uma forma pictórica de repre-sentar, estruturar e simbolizar o que nos rodeia” (Daniels and Cosgrove,1988: 1; minha tradução). Como diz Cosgrove no seu influente traba-lho The Palladian Landscape: geographical change and its cultural re-presentation in sixteenth-century Italy, a paisagem “representa uma for-ma pela qual certas classes significaram-se a si mesmas e ao seu mundoatravés de uma relação imaginada que tinham com a natureza, através daqual sublinharam e comunicaram o seu papel social e o de outras classespor referência à natureza” (1994: 15; minha tradução). Assim, nesta va-riante, através do uso de imagens, os símbolos tendem a ser usados alusi-vamente e de uma forma ambígua quando estão sujeitos a uma negocia-ção social dentro de certas estratégias políticas. A outra variante concerneo uso de estruturas simbólicas (como formas, cores, números) para in-terpretar a cultura material. Ao contrário da outra variante, esta é restri-ta a interpretações formais mais específicas. Esta é uma tradição já velha,como se pode ver em trabalhos como Augustinus Mundus Symbolicus,publicada em 1681 por Philippus and Erath Picinellus, o qual catalogavaa interpretação católica oficial de símbolos. Neste livro, a interpretaçãode símbolos foi feita através da consulta de certos trabalhos como osLouis R éau (1955), George Ferguson (1966), Jean Chevalier e AlainGheerbrant (1994) e Mircea Eliade (2000, 2002).

Como se pode ver, todas estas abordagens têm em comum a ideiado “todo” embora elas divirjam na interpretação daquilo que ele é. Estainstabilidade de sentido é bastante útil se se assumir que não há umaúnica forma de fazer investigação, como acontece com o empirismo;como tal, é possível articular de forma criativa estas e outras abordagensà paisagem segundo circunstâncias específicas de investigação. A paisa-gem oferece assim um esquema integrador para a investigação histórica,como um contexto que liga actos humanos dispersos (Thomas, 2001:175). Tal esquema também nos permite evitar etnocentrismos, uma vezque pode acomodar actividades que a razão moderna teria tendência acolocar em categorias separadas. Assim, enquanto os Ocidentais con-temporâneos tendem a excluir assuntos espirituais tanto espacialmentecomo temporalmente, é importante notar que em muitas culturas asobservâncias religiosas e outros rituais são passíveis de influenciar os pa-drões mundanos (ibid.). Esta observação é particularmente relevante parao estudo da Braga da Idade Moderna onde uma mentalidade religiosa, enão uma razão mecanicista, era dominante. O que isto significa é queno estudo de Braga também deve ser dada atenção às geografias sagra-das. O conceito de geografia sagrada “engloba aqueles aspectos da paisa-gem que estão associados com a religião, o ritual, a magia e o oculto(…). Um tema recorrente neste género de estudos são imagens e sim-bolismo da paisagem, onde tanto os aspectos naturais como os criadossão examinados em termos do seu significado cosmológico” (Parkes,2006: 3; minha tradução). Esta abordagem teve início com os trabalhosde Mircea Eliade (2002) sendo comum aqui encontrar conceitos ausen-tes das análises empiristas como axis mundi, cosmos e caos, e que serãoanalisados mais cuidadosamente nos próximos capítulos deste livro. Mui-to se tem escrito sobre isto da parte de pré-historiadores e antropólogos,bem como por geógrafos culturais (Coggins, 1982; Townsend, 1982;Carmichael et al, 1994; Tilley, 1994; Lahiri, 1996; Parcero Oubina etal., 1998; Knapp and Ashmore, 1999; Bradley, 2000; Smith and Broo-

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kes, 2001; Boivin, 2004), mas o trabalho inovador neste tema relativa-mente a cidades foi Pivot of the Four Quarters da autoria de Paul Whe-atley sobre as cidades chinesas (1971). Estudos sobre cidades de outrasculturas podem igualmente ser encontrados, como os de Insoll (2004) eParkes (2006) sobre a cidade islâmica. Contudo, tem interesse notar queno que diz respeito a cidades do Ocidente, quer em Portugal quer naEuropa (e.g. R ussell, 1972; Burke, 1975: 78, Goitia, 1982: 119; Scho-field and Vince, 2003), estes elementos não são tidos geralmente emconta e, ao invés, é uma visão mecanicista da cidade que predomina,algo relacionado com a visão contemporânea ocidental de um mundodividido num Ocidente “racional” e num Outro “irracional”. Um dosobjectivos deste livro é, como tal, o de introduzir o estudo da geografiasagrada nas cidades ocidentais da Idade Moderna. Tudo age, assim, na, efaz parte da, paisagem.

Alguns autores, contudo, questionam a comensurabilidade destasabordagens (e.g. Preucel e Hodder, 1996: 34); contudo, deve ser nota-do que o conceito de paisagem como um sistema integrado não é omesmo que uma totalidade, onde as coisas estão ligadas apenas de umamaneira; “todos” (ou sistemas), tal como paisagens, são provisórios, sãoo resultado de circunstâncias específicas, e, como tal, uma multiplicidadedeles podem ser construídos.

A paisagem pode ser melhor visualizada através da metáfora da rede,onde uma multiplicidade de elementos (nós) interagem em diferentesescalas (edifícios, ruas, quarteirões, cidades, regiões, etc.) influenciando--se uns aos outros num processo sem limites e sem fim. Isto contrastaconsideravelmente com o empirismo e a sua visão mecânica do mundoonde o que interessa é a identificação de todas as “porcas e parafusos” damáquina e a sua colocação no devido lugar para ver como ela funciona.

Se se aceitar o conceito de paisagem não como algo fixo mas simrelacional, então segue daí que diferentes pessoas ou grupos dão sentidoà paisagem de formas diferentes. E aqui entramos no domínio da identi-dade. A posição distinta de uma pessoa em relação à paisagem resulta dainteracção simultânea de aspectos como o género, classe, etnia, sexuali-dade, idade, tradição cultural e biografia pessoal (Thomas, 2001: 176).Como tal, a mesma localização pode ser um lugar diferente para duaspessoas diferentes, ou simplesmente não “existir” para uma delas. Estátudo dependente da identidade de cada um.

Identidade é o conceito pivô que vai ser usado neste livro para darsentido às mudanças observáveis na paisagem de Braga ao longo da Ida-de Moderna.

R elativamente ao uso do conceito de identidade neste livro irei se-guir o esquema delineado por Kathryn Woodward (1997). Identidadetem a ver com pertença: marca os modos através dos quais somos se-melhantes a outros que partilham uma certa posição e os modos pelosquais somos diferentes de outros que a não partilham. Dá-nos, então,uma localização no mundo e fornece uma ligação entre nós e a socieda-de em que vivemos. A reclamação de uma identidade é geralmente feitapela diferença, pela marcação de um “nós” e de um “outro”. Seme-lhança e exclusão são ambas marcadas simbolicamente através de siste-mas de representação e socialmente através da inclusão ou exclusão decertos grupos de pessoas.

Frequentemente, a identidade é vista através de uma óptica essen-cialista, como se fosse algo fixo e invariável. Por vezes, estas reivindica-ções são baseadas na natureza, como o parentesco em certas versões étni-cas; noutros casos elas são baseadas numa versão do passado que é apre-sentado como uma verdade inalterável. Neste livro, contudo, a identi-dade é vista numa óptica não-essencialista: é uma construção social, um

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produto da intersecção de diferentes discursos políticos e culturais ehistórias particulares, em constante mudança no tempo e no espaço. Assim,para além das diferenças também há uma preocupação com característi-cas comuns ou partilhadas e as circunstâncias da sua construção. Alémdisso, cada indivíduo e grupo fazem parte de múltiplas identidades, asquais não são unificadas e por vezes contradizem-se. Isto pode forçar amarcação de algumas diferenças por forma a obscurecer outras ou a umanegociação por forma a permitir que essas identidades sejam simultanea-mente iguais e diferentes.

A identidade cruza-se com a paisagem uma vez que precisa de umcontexto material, isto é, um espaço e um lugar de modo a poder servivida (Austin, 1998: 168). Por exemplo, uma família precisa de umacasa, uma comunidade religiosa precisa de um local sagrado, etc.

Também relevante para o estudo da identidade é o papel da memó-ria, dado que ela ajuda a sustentar a identidade. A paisagem mapeia amemória, fixando histórias sociais e individuais no espaço (Knapp eAshmore, 1999: 13). Dado que a memória é mais construída que reavi-vada, a paisagem é usada de modo a afirmar “princípios míticos e moraispara a sociedade, recordações de triunfos e catástrofes no passado social”(ibid.; minha tradução). Um bom exemplo desta relação complexa é otrabalho de Simon Schama sobre a apropriação por parte da sociedadecontemporânea de elementos pré-modernos da paisagem (1995).

Como todos os humanos que viveram na Idade Moderna pertence-ram a uma multiplicidade de identidades sociais, a cidade tornou-se“uma arena na qual indivíduos procuraram modelar os seus destinospessoais frequentemente dentro de constrangimentos rígidos do costu-me, lei e expectativa social. As tensões entre indivíduos, grupos e neces-sidades e aspirações comunais estão no coração de todas as interacçõessociais da cidade da Idade Moderna” (Friedrichs, 1995: 14, 15; minhatradução). Como os habitantes de Braga modelaram a sua identidadeurbana ao longo deste período por intermédio da paisagem é o que vaiser, então, analisado nos capítulos 5-12 deste livro.

Convém notar que trabalhos sobre identidades na Idade Modernaem Portugal geralmente focam a identidade portuguesa (Bethencourt eCurto, 1991; Nogueira Silva e Hespanha, 1993) e não tanto a constru-ção de identidades nas cidades.

Para terminar este capítulo, queria fazer alguns comentários relati-vamente à metodologia seguida durante a minha investigação. Da geo-grafia histórica, baseei-me na metodologia da morfologia como formade revelar a sequência e o propósito do desenvolvimento urbano indu-zido das plantas das cidades. O primeiro expoente desta técnica na Eu-ropa foi Conzen com o seu estudo sobre a cidade medieval de Alnwick(1960). Ele chamou a atenção, entre outras coisas, para a tendência daspropriedades urbanas permanecerem mais ou menos intactas e que asmuralhas podiam deixar uma marca duradoura na planta da cidade. Sebem que o interesse nas plantas das cidades fosse velho e já bastantediscutido antes do trabalho seminal de Conzen, estava, até então, focadosobretudo na classificação, taxonomia e hierarquia das plantas urbanaseuropeias (e.g. Fleure, 1931, Smailes, 1953), não havendo consciênciade que estas eram o resultado final de processos não documentados quepodiam ser revelados por intermédio de análises mais aprofundadas.

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4. Fontes

O propósito deste capítulo é o de apresentar as fontes que foramusadas na investigação deste trabalho. Elas podem ser divididas em trêsgrupos: documentos escritos, mapas e espaço construído. O capítulotermina com uma breve revisão sobre a investigação que tem sido feitaaté agora sobre Braga.

R elativamente ao primeiro grupo, utilizei documentos de sobretu-do três instituições: o Cabido, a Câmara Municipal e as Confrarias. Re-lativamente ao Cabido, a fonte mais importante é o notável Índice dosPrazos do Cabido. Este documento (daqui em diante referido apenascomo o Índice) foi feito na década de 1740 durante uma reorganizaçãodos cerca de 100 volumes dos Prazos do Cabido, cuja documentaçãorecua até ao século XV (Ferreira, 1932: 275; Oliveira, 1993: 28; Ban-deira, 2000a: 24, 25). O Índice está dividido em secções organizadaspor ruas e em cada uma delas está uma indicação de todas as casas que oCabido aí tinha. As casas estão ordenadas por números e em cada umadelas um conjunto de elementos pode ser encontrado. Assim, todos oscontratos de arrendamento de cada casa são indicados em ordem crono-lógica com indicação do volume e página dos Prazos do Cabido onde seencontra o contrato original. Isto é bastante útil dado que permite umafácil consulta dos contratos originais e onde a descrição da casa nessaaltura pode ser encontrada2; desta forma torna-se possível identificar asmudanças que tiveram lugar na estrutura da casa ao longo do tempo.Elementos sociológicos como o nome do inquilino e do seu parceiroe/ ou a sua filiação bem como o seu estatuto sócio-económico podemigualmente ser encontrados no Índice. Tal permite um melhor conhe-cimento dos tipos de casa onde membros de diferentes grupos sociaisviviam bem como as mudanças dos padrões residenciais ao longo dotempo. Este Índice é complementado com um mapa das casas da cida-de, onde aquelas que pertenciam ao Cabido estão indicadas com o mes-mo número que tinham no Índice, facilitando assim a sua rápida identi-ficação (mais informação sobre este mapa adiante). Tendo em conta queo Cabido era o principal senhorio em Braga (cerca de metade das casasem 1750 e um número não muito diferente deste anteriormente) comcasas espalhadas por toda a cidade, é fácil notar quão útil o Índice é parauma melhor compreensão das mudanças sociais que tiveram lugar emBraga neste período.

Quanto à Câmara Municipal, existe uma abundância de documen-tos que revelam vários aspectos da vida cívica da cidade como códigosde leis, actas e cartas trocadas com os arcebispos e a Coroa. A CâmaraMunicipal era o segundo maior proprietário em Braga e os volumescom as descrições das suas casas constituem um importante comple-mento daquelas que pertenciam ao Cabido. Contudo, ao contrário dascasas deste último, as casas da Câmara não estavam organizadas numÍndice e mapa, o que dificulta por vezes a sua identificação.

R elativamente às Confrarias, elas foram importantes actores sociaisdurante boa parte deste período; actas e estatutos de algumas das mais

2 Que, no caso deBraga, é bastantedetalhada, cobrindoelementos comomedições, tipo dedivisões, número e tipode vãos, tipo deescadas, tipo de árvoresnos jardins.

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importantes foram consultados por forma a aprender mais sobre o seupapel na cidade.

Finalmente, deve-se ainda considerar um conjunto de textos queforam deixados por pessoas que viveram neste período, como histórias(e.g. Cunha, 1634-35; Argote, 1732) ou diários (e.g. Thadim 1764;Peixoto 1992 [1790-1808]). Embora existam mais fontes documentaisem Braga, o meu acesso a elas foi indirecto, baseando-se em materialpublicado por outros investigadores nos seus trabalhos.

No que concerne os mapas, conhecem-se quatro que representamBraga durante este período. Estes mapas são, no contexto português,excepcionais no seu detalhe; somente Lisboa está relativamente pertonesse aspecto. O mais antigo é de 1594 (fig. 6) e é geralmente conheci-do por mapa de Braun dado ter aparecido pela primeira vez no atlas decidades do mundo (Civitates Orbis Terraurum) impresso por esse editorem finais do século XVI. O mapa, todavia, parece ter sido feito por umportuguês chamado Manoel Barbosa (Dias, 1985). Este mapa, feito sobo patrocínio do arcebispo Fr. Agostinho de Jesus, é a primeira represen-tação completa conhecida de Braga, tendo sido feita numa perspectivaoblíqua.

O segundo mapa (fig. 8), não está datado, mas tendo em conta algu-mas características arquitectónicas que nele estão representadas e cujadata de construção é conhecida, foi datado entre 1687-94 (O liveira,1994: 38). No entanto, segundo as actas da confraria que administrava aigreja de Santa Cruz, a qual encontra-se representada no mapa, foi deci-dido em 1693 deitar abaixo a torre atrás da capela-mor da igreja e substi-tuí-la por duas torres novas construídas ao lado da fachada (AISC, LivroTermos Santa Cruz, 1589-1701: 504). Como o mapa representa umatorre na fachada desta igreja, c. 1694 parece ser uma data mais apropriadapara este mapa.

Este mapa pertence a um álbum com uma colecção de vistas de 39cidades portuguesas seiscentistas, o qual pertence hoje a um colecciona-dor anónimo privado (Nunes, 1994), o qual, no entanto, autorizou apublicação da vista de Braga na revista Forum (ibid). Tal como o mapaanterior, a cidade também foi representada de uma perspectiva oblíqua.É também importante notar que este mapa, ao contrário dos outros, éuma representação da cidade vista por alguém que não morava lá.

Os dois últimos mapas datam de meados do século XVIII e têmuma representação mais apurada do espaço, dentro de uma perspectivamatemática, que os dois anteriores. Um deles foi feito em c. 1757 (fig.9), uma vez que o novo edifício da Câmara Municipal (terminado em1756) na parte oeste do Campo dos Touros está representado, enquantoque a capela de Nossa Senhora da Torre (construída em 1758) perto daporta de Santiago não é mencionada na lista de templos. Está assinadopor um artista bem conhecido da Braga dessa altura, André Soares, e foiquase de certeza encomendado pelo arcebispo D. José de Bragança. Estemapa, ao contrário do de 1594, não foi feito para ser publicado, dadoter grandes dimensões; ao invés, foi feito para ser colocado numa pare-de, embora não se saiba hoje onde estava pendurado dado ter sido maistarde movido para a biblioteca da Ajuda, em Lisboa. Infelizmente, estemapa encontra-se actualmente truncado dos seus cantos superiores; nãoobstante, a maior parte da cidade ainda continua visível. Tal como osdois mapas anteriores, também este tem uma perspectiva oblíqua.

Finalmente, o último e mais notável mapa: o Mapa das Ruas deBraga. Este mapa, desenhado em 1750 pelo padre R icardo da R ochasob a supervisão do Cabido, é único em toda a Europa, uma vez querepresenta as fachadas dos edifícios de quase todas as ruas de Braga (fig.10). O detalhe dos edifícios é notável quando comparado com outros

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mapas desta altura; além disso, outros elementos arquitectónicos visíveisnessas ruas estão igualmente presentes como fontes, cruzeiros, muralhas,etc. A estrutura do mapa é diferente da dos outros, dado estar desenhadarua a rua em folhas de papel de dimensão variada, segundo o compri-mento de cada rua. Ambos os lados das ruas estão representados emfiadas de alçados, embora por vezes somente um dos lados ou parte sejarepresentado. Assim, é comum verificar que várias casas encontram-senumeradas, o que significa que elas pertenciam ao Cabido: este mapaera para ser usado em conjunção com o já mencionado Índice de modoa mais facilmente identificar essas casas. Como tal, se havia pedaços deruas onde o Cabido não tinha casas, estes não são geralmente (com pou-cas excepções) representados. Não obstante, a maior parte das casas nes-sa altura encontram-se representadas – 2310 (Oliveira, 1993: 29) – e sóumas poucas centenas estão ausentes. O frontispício deste mapa tam-bém tem uma vista parcial de Braga centrada nos Campos de Santana(actualmente conhecida por Av. Central) e da Vinha, permitindo a vi-sualização de mais alguns edifícios que não se encontram visíveis nasruas. Finalmente, apesar da diferença de detalhe, os mapas de 1750 e c.1757 podem ser usados para se complementarem um ao outro, dadoque algumas das ruas e edifícios que faltam num são visíveis no outro.

Em relação à terceira fonte material, o espaço construído, existemdezenas de edifícios deste período ainda intactos, sobretudo de finais doséculo XVII e do século XVIII, tratando-se, geralmente, de igrejas oupalácios da aristocracia. Casas mais “comuns” são poucas como se podever ao comparar o que resta hoje com o que se encontra representadono mapa de 1750. Por vezes uma janela ou uma porta é tudo o queresta. A vasta maioria das casas que podem hoje ser vistas no centrohistórico de Braga datam de finais do século XIX e do início do séculoXX.

R elativamente a ruas e praças, algumas que se encontravam no es-paço dentro da antiga muralha urbana foram substancialmente alargadasno século XIX, como a R . Maximinos, enquanto outras como a R .Souto e a R . D. Gualdim foram deixadas intactas. As que se encontra-vam no exterior, estão na sua maioria intactas, permitindo assim umamelhor percepção do tipo de espaço em que as pessoas se moviam. Sebem que, como mencionei antes, a maior parte das casas que bordamestes espaços públicos sejam relativamente recentes, há uma zona deBraga – Pç. Gavião (actualmente conhecida por Pç. Mouzinho de Albu-querque) – cujas praça e edifícios ainda se encontram quase tal comoeram no século XVIII.

Algo que, infelizmente, vai estar notoriamente ausente deste livrosão os resultados de escavações arqueológicas que têm tido lugar emBraga. A prioridade destas escavações têm sido os restos da cidade ro-mana (Martins 2000) e, consequentemente, restos de períodos mais re-centes foram simplesmente guardados no Museu D. Diogo de Sousa,sem qualquer possibilidade de acesso.

Outro elemento relacionado com o espaço construído e que nãotem sido devidamente explorado para a Idade Moderna é a toponímia.Se bem que tenha havido alguma investigação para a Idade Média, talcomo a existência de ruas onde predominavam moradores do mesmoofício (Feio, 1982: 115), mais precisa de ser feito por forma a explorar asacções de indivíduos e grupos sociais através dos nomes que eles davamaos lugares.

Finalmente, há ainda a considerar a investigação que tem sido feitosobre a história material de Braga. O carácter desta investigação é bas-tante semelhante aquele que revi anteriormente relativamente a Portu-gal em geral, isto é, trabalhos empiristas que focam geralmente o urba-

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nismo e a arquitectura. No que diz respeito à interpretação, quando elaocorre, ou é fragmentada ou bastante genérica, guiada por vezes poruma espécie de “espírito do tempo”. Por exemplo, a construção dosantuário do Bom Jesus do Monte na década de 1720 é geralmente vistacomo resultando da R eforma Católica (e.g. Massara, 1988; FernandesPereira, 1989b) ou as reformas urbanistas de D. Diogo de Sousa noinício do século XVI são interpretadas como resultado do Renascimento(Bandeira, 2000b: 24); circunstâncias mais específicas não são tidas emconsideração.

Historiadores da arte e historiadores locais estão geralmente por de-trás da maior parte desta investigação. O trabalho destes últimos seguegeralmente uma perspectiva de antiquário onde “tudo” relativo ao pas-sado da cidade é registado. Entre estes investigadores, nomes comoSenna Freitas (1890), Albano Belino (1895, 1900), Alberto Feio (e.g.1954, 1984), Leonídio Abreu (e.g. 1983), Constantino Ribeiro Coelho(1992), Luís Costa (e.g. 1991, 1993, 1998) e Eduardo Pires O liveira(e.g. 1993, 1994, 1999, 2001a, 2001b) são os mais representativos.

Quanto aos historiadores da arte, R obert Smith, um dos primeiros(e poucos) académicos estrangeiros a mostrar interesse por Braga, pro-duziu alguns trabalhos, hoje clássicos, sobre arquitectura de finais doséculo XVII e do século XVIII (e.g. 1968, 1972, 1973). Entre outrostrabalhos de investigação incluem-se os de António Matos R eis (1990,1995) e Miguel Soromenho (1991) sobre arquitectura do início do sé-culo XVIII; Manuel R ocha (1994, 1996) sobre arquitectura e urba-nismo do século XVII e do início do século XVIII; Ana Sousa Pereira(n/ d, 2000) sobre arquitectura do século XVII e do início do séculoXVIII, mostrando ainda algum interesse por casas mais modestas, algonão muito comum entre historiadores da arte; R ui Maurício (2000)sobre urbanismo e arquitectura do início do século XVI, incluindoigualmente casas de diferentes grupos sociais; finalmente, o geógrafohistórico Miguel Bandeira sobre urbanismo do início do século XVI edo século XVIII. Note-se que muitos destes trabalhos focam o iníciodos séculos XVI e XVIII, algo que está relacionado com a circunstânciade estes serem períodos de grande actividade construtiva. Por outraspalavras, a investigação não é tanto guiada por questões acerca do quesignificava viver em Braga, mas ao invés em registar a sua dimensãomaterial.

Embora o principal propósito destes e de outros estudos não sejatanto interpretativo mas empirista, eles contribuíram positivamente paraum melhor conhecimento das formas, cronologias e artistas/ mecenas daBraga da Idade Moderna.

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5. Braga em finais do século XV

Como mencionei antes, foi somente durante o século XVIII que aideia de um universo mecânico tal como foi formulado por Newtoncomeçou a espalhar-se, acabando por se institucionalizar no século XIX.Antes disso, e durante a maior parte do período sob estudo neste traba-lho, o que predominava era uma experiência religiosa do universo ondeo espaço não é mecânico e homogéneo mas, ao invés, possui rupturas,com porções de espaço qualitativamente diferentes de outras (Eliade,2002: 35). Dentro desta perspectiva há uma oposição entre espaço sa-grado – o único que realmente existe – e espaço profano – amorfo esem estrutura, em redor do espaço sagrado (ibid.).

O mapa de Braga de 1594 (a mais antiga representação conhecida dacidade) e o Memorial das Obras que D. Diogo de Sousa mandou fazer3

(daqui em diante referido apenas como Memorial), escrito após a mortedeste arcebispo em 1532 e consistindo numa descrição comparativa dacidade entre c. 1500 e a altura em que foi escrito, são dois bons pontosde partida para construir uma visão alternativa da paisagem da cidadetendo em conta esta visão sagrada do espaço.

A visão de Braga que pode ser vista no mapa de 1594 era substancial-mente diferente no final do século XV4. A área construída e os espaçospúblicos para além da muralha não existiam: ao invés, esta área estavacheia de vinhas, hortas e árvores, bem como pontilhada por pequenasigrejas e capelas – S. Pedro, S. Sebastião, S. Miguel, S. Vicente e S.Vítor. A muralha marcava os limites da cidade. Dentro da área amura-lhada, alguns dos edifícios representados – a fachada do palácio episco-pal virada à R . Souto, a Câmara Municipal e a igreja de S. Paulo –também não existiam. O mesmo pode ser dito de outras ruas: Sousa, S.João e Misericórdia.

Um edifício que já existia é visível no mapa: a Catedral. A sua posi-ção relativamente ao todo urbano não é casual: está no seu centro. Istoleva-me claramente à geografia sagrada. Na mentalidade religiosa ne-nhum mundo pode nascer no “Caos” da homogeneidade e relatividadedo espaço profano (Eliade, 2001: 36). Para se poder viver no mundo énecessário fundá-lo e, para tal, um “ponto fixo” absoluto, um “Centro”é necessário (ibid.). Este Centro tem valor existencial para as sociedadesreligiosas uma vez que nada pode ter início ou ser feito sem uma orien-tação primária, sendo, como tal, a descoberta ou projecção de um pon-to fixo o equivalente à criação do Mundo (ibid.). Para que tal aconteça,uma manifestação do sagrado que revele esse Centro, o qual geralmenteassume a forma de uma montanha, é necessária (ibid.). Esta montanhasagrada, em virtude de ser o lugar “mais alto” do mundo, uma vez quetoca o céu, é onde a Terra e o Céu se encontram – é um axis mundi(Eliade, 2000: 26). Uma vez que tal ocorra, o mundo em redor desteponto fixo torna-se habitável para os humanos, os quais procuram vivero mais próximo possível daquilo que então se torna o “Centro do Mun-do” (Eliade, 2002: 36).

3 Pode ser encontradopublicado em RuiMaurício (2000, vol. 2:295-303).

4 Todos os lugaresmencionados no textopodem ser vistos emmapas esquemáticosnas figuras 2, 3 e 4.

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No caso da Braga de finais do século XV, a Catedral, através da suaposição central, assume claramente o papel de Centro do Mundo, o quenão surpreende tendo em conta que esta era uma cidade governada porarcebispos. Contudo, ela não se encontra no topo de uma montanha: apaisagem de Braga é relativamente chã, apenas se elevando um poucoperto das portas de S. Sebastião e Santiago. Contudo, nestes casos umtemplo ou um palácio de grandes dimensões podia assumir também opapel de montanha (Eliade, 2000: 26), algo que permite compreendermelhor porque é que a Catedral era tão grande, impondo o seu volumesobre as casas que então existiam (as quais não tinham mais que um oudois andares). Em Portugal, no entanto, era mais comum encontrar umacolina dentro de uma cidade que assumia o papel de montanha sagrada,como, por exemplo, na vizinha cidade do Porto. No caso de Braga, aconstrução da Catedral numa zona chã deve-se provavelmente a razõesde continuidade histórica, uma vez que o local onde se situa talvez seja omesmo onde a primeira igreja de Braga dedicada a Santa Maria (a quem aCatedral foi dedicada) foi construída. A construção de uma nova cidadeem Braga em finais do século XI e inícios do XII coincidiu com umperíodo em que a Igreja deu um forte ímpeto ao culto de Maria, daí aopção por este lugar. Note-se que pesquisas arqueológicas indicaram aexistência de um templo romano neste lugar (Fontes et al, 1997/ 98) que,segundo uma inscrição que pode hoje ser vista numa das paredes da Cate-dral, terá sido dedicado à deusa Ísis, mais tarde cristianizada como Maria.

Outro aspecto que reforça a associação da Catedral com o simbolis-mo do Centro é a existência de duas torres, uma de cada lado da entradaprincipal. Dentro da tradição cristã a torre tem geralmente dois signifi-cados: um (melhor conhecido), é o de vigilância e defesa (Chevalier eGheerbrant, 1994: 649). Convém notar que, neste caso, o inimigo nãoera algo de carne e osso, mas ao invés influências espirituais malignas;afinal de contas, a existência de telhados no topo das torres, como se vêno mapa de 1594, tornariam qualquer tentativa de defesa da Catedralbastante desajeitada. O outro significado da torre é espiritual, estandoassociado com a ascensão (ibid.). Os telhados podem ter tido a mesmacor que pode ser vista em casos semelhantes em várias imagens a cor decidades portuguesas e europeias dessa altura, isto é, o azul5. Azul é a cordo céu, sugerindo a ideia de eternidade, de imaterialidade e, como tal,de não ser deste mundo (Ferguson, 1966: 151; Chevalier e Gheerbrant,1994: 105). Uma vez mais, temos aqui o simbolismo do axis mundi. Eno caso da Catedral de Braga, isto não era um eixo qualquer, era umeixo bastante forte. Afinal de contas, tinha duas torres. Por esta alturaem Portugal, somente as catedrais tinham duas torres na sua entrada; asigrejas paroquiais tinham uma (quando tinham); outras igrejas e capelasdentro de uma paróquia não tinham torre, embora por vezes pudessemter uma atrás. Um arranjo hierárquico de locais sagrados dentro de umterritório é facilmente discernível aqui.

Com a Catedral firmemente estabelecida como o Centro, o Mundo(a cidade de Braga), podia nascer e tornar-se habitado. Contudo, esteMundo não se estendia indefinidamente; tinha os seus limites. Nestecaso, a muralha que cercava a cidade marcava os seus limites. A constru-ção de muralhas, nos estudos portugueses, está geralmente associada arazões militares, isto é, defesa contra ataques externos, e como forma demarcar a fronteira entre os espaços urbano e rural (e.g. Teixeira e Valla,1999: 29, 149). Todavia, do meu ponto de vista, a situação é bem maiscomplexa. Vejamos a relação da muralha de Braga com a paisagemenvolvente.

Se se olhar de novo para o mapa de 1594 é possível notar que paraalém dos limites de Braga, um bosque e uma paisagem desértica são

5 Por exemplo, emPortugal, a imagem dacidade de Évoraconhecida por EboraColonia Romana,datada de 1501; naEuropa, o bemconhecido Tres R ichesHeures du Duc deBerry.

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visíveis. Contudo, lendo os livros das propriedades que pertenciam aoCabido (que controlava uma porção significativa de terreno em redorde Braga), pode notar-se a existência de uma miríade de quintas (cf.ADB, Prazos do Cabido). Então, porque não estão elas representadas nomapa? É importante notar que isto não é algo anómalo dado ser típicodas imagens do século XVI nada representarem para além dos seus limi-tes. Aqui, julgo ser importante chamar a atenção para a posição de J. B.Harley de que os mapas não são imagens isentas de valores (“objecti-vas”), mas pelo contrário carregadas de valores. Nas suas palavras:

Os mapas deixam de ser compreendidos primariamente como registosinertes de paisagens morfológicas ou reflexões passivas do mundo dos objec-tos, mas são vistos como imagens refractadas contribuindo para o diálogonum mundo socialmente construído. Movemos assim a leitura dos mapaspara fora dos cânones da crítica cartográfica tradicional com o seu fio deoposições binárias entre mapas que são “verdadeiros ou falsos”, “apuradosou não” (…). Tanto na selectividade do seu conteúdo como nos seus sinaise estilos de representação os mapas são uma forma de conceber, articular eestruturar o mundo humano, estando inclinados tendencialmente para, pro-movidos por e exercendo influência sobre conjuntos particulares de relaçõessociais (1988: 278; minha tradução).

Sendo assim, neste caso, o que se está a ver no mapa de 1594 é arepresentação de uma paisagem influenciada por uma mentalidade reli-giosa; as quintas estavam lá, mas não faziam parte da cidade; como tal,ao contrário do que acontece com a representação geométrica do espa-ço, elas não foram representadas. Se bem que o mapa seja de 1594,qualquer pessoa, 100 anos antes, veria a área para além da cidade damesma maneira: uma área profana que não fazia parte do Mundo sagra-do a que a cidade pertencia; uma área cheia de desertos e bosques escu-ros, onde bestas e sub-humanos abundavam. A muralha marca assimnão uma separação entre os mundos urbano e rural (uma divisão queentão não existia) mas, ao invés, entre a ordem e o caos, o real e o ilu-sório, o sagrado e o profano6.

Esta separação é ainda mais pronunciada na morfologia da muralha:aproximadamente circular. O círculo, sendo a única figura geométricasem qualquer divisão é geralmente associado com a perfeição, a unida-de, os ciclos astrais (o sol, a lua), a eternidade (Ferguson, 1966: 153;Chevalier e Gheerbrant, 1994: 202). Está, como tal, associado ao céucósmico, ao Céu que os humanos procuram emular mais abaixo na Ter-ra.

Como a cidade de Braga era um Cosmos, todos os ataques externosameaçavam destruí-la e transformá-la no Caos. Aqui, devemos conside-rar o “Dragão”. O Dragão é o modelo exemplar do amorfo, de tudo oque não possui uma forma (Eliade, 2002: 61), isto é, de tudo o que nãopertence a Mundo. Como este último (neste caso, Braga) foi fundadoatravés da imitação do trabalho exemplar da divindade, aqueles que oatacassem eram assimilados ao inimigo: demónios e, sobretudo, o diabo,que se rebelaram contra o trabalho divino – o Cosmos – e lutam para oreduzir ao nada (ibid.: 60).

Nestas circunstâncias, os agressores humanos eram apenas parte doDragão e nem eram a parte mais ameaçadora dele, se se olhar com maiscuidado para a estrutura da muralha e as suas mudanças. Segundo fontesmedievais, a muralha foi construída no século XII (Feio, 1984: 106), namesma altura da Catedral. A sua primeira descrição conhecida data doinício do século XV, sendo da autoria do cronista Fernão Lopes, o qualinforma que Braga não pôde resistir a um ataque Castelhano em 1369por a sua muralha ser demasiado baixa e ter somente uma torre (n/ d:

6 Convém notar queesta análise é válidasomente no que dizrespeito à construçãoda identidade dacidade. Havia outrasdimensões nas quaistanto os habitantes deBraga como oscamponeses dasimediações partilhavamuma identidadecomum, como seremsúbditos da Coroaportuguesa – na qual oOutro eram os súbditosde outras Coroas – oucomo parte daRepública Cristã – naqual o Outro eramaqueles que não faziamparte da comunidadecristã.

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91), a torre de menagem construída no início do século XIV (Feio,1984: 107). Após este ataque a muralha, a torre e o pequeno castelo emredor desta última foram consideravelmente reforçados na década de1370 (ibid.: 108). O que esta sequência de eventos mostra é que naaltura da construção da muralha não houve preocupação em fazê-la sufi-cientemente alta por forma a defender a cidade de ataques humanos.Somente após Braga ter sido atacada houve preocupação em fortalecer amuralha. Isto não significa que até então a muralha tenha somente cum-prido o papel de delimitar o Mundo que a construção da Catedral (oCentro) tinha tornado possível. Também defendia a cidade; a diferençaé que era uma protecção metafísica, mágica (Eliade, 2002: 61, 62), umavez que a forma circular da muralha estava associada ao eterno, ao sagra-do. Nestas circunstâncias, é fácil compreender a pequena altura inicialda muralha. Este carácter mágico é discernível, por exemplo, num epi-sódio que teve lugar em 1570 durante uma epidemia, quando os habi-tantes da cidade realizaram um ritual de circum-ambulação em redordas muralhas da cidade (cf. Senna Freitas, 1890, vol. 2: 71). O propósitodestas caminhadas circulares é a imitação dos ciclos astrais com o objec-tivo de assegurar a harmonia do Mundo (Chevalier e Gheerbrant, 1994:205), algo desesperadamente necessário dado a existência da cidade estarameaçada por epidemias.

É igualmente importante notar que no decorrer dos séculos XV eXVI mais torres foram construídas ao longo da muralha, como se podever no mapa de 1594. Note-se ainda que duas das torres estavam inaca-badas, uma indicação de que elas estavam a ser construídas segundo ascircunstâncias e não segundo alguma urgência defensiva. Além disso,olhando para os mapas de meados do século XVIII, é possível ver que astorres não tinham uma face interna; somente as três faces viradas para oexterior foram construídas. Trabalhos arqueológicos recentes na torrejunto à porta de Santiago confirmam esta observação (Luís Fontes, co-municação pessoal). Numa perspectiva militar, a inexistência de umaquarta face não é muito aconselhável uma vez que enfraquece a estrutu-ra das torres em caso de ataque. O que se está a ver aqui, argumento, éapenas uma utilização do simbolismo das torres – força e axis mundi(ambos, aliás, próximos um do outro) – de modo a apresentar ao mun-do caótico a imagem de uma cidade próxima do sagrado e (por causadisso) capaz de suster os ataques do Dragão.

Embora as muralhas e as torres tivessem um papel importante comoguardiões do limiar, também havia mais dois outros guardiões: as cape-las de S. Miguel e S. Sebastião.

S. Miguel, o arcanjo, é o capitão dos exércitos de Deus e o matadorde dragões. A presença de uma capela dedicada a ele era então umaforma de reforçar simbolicamente as defesas da cidade contra o Dragão.Segundo fontes de meados do século XVI havia aqui uma estátua de S.Miguel matando o diabo (Soares, 1986/ 7: 266), uma incarnação co-mum do Dragão entre a Cristandade. A localização da capela em rela-ção à cidade não é acidental: está mesmo em frente da porta da cidade(Maximinos) que leva directamente à entrada da Catedral. A Catedral,sendo o Centro do Mundo, era o local mais sagrado para os habitantesde Braga: se ela caísse para o Dragão, então o Mundo tornar-se-ia Caos;a localização da capela reforçaria então essa área sensível. Se o Santo nacapela não fosse bem sucedido, então a Catedral, como último recurso,podia ainda contar com as duas torres na entrada e, em particular, com omais poderoso de todos os mediadores com Deus: a Santa Maria, a quema cidade era dedicada, e cuja estátua estava no topo da porta7.

Uma das faces mais assustadoras do Dragão era a epidemia. Comotal, não é surpreendente encontrar também uma capela dedicada a S.

7 Como se pode vernuma escultura nafachada da Catedral nacapela de S. Lourençoda Ordem, que estavaentão a cerca de 1.5km de Braga. Aescultura data dosséculos XVI ou XVII,uma vez que as obrasordenadas por D.Diogo de Sousa naCatedral no início doséculo XVI são visíveis;no início do séculoXVIII, uma novafachada foi construída.Mais sobre estestrabalhos nos capítulos6 e 12.

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Sebastião (o santo que melhor protegia contra ela) na área do limiar8. Asua localização também não é casual. Para começar, está localizada naestrada para o Porto, a maior cidade e o principal porto do Norte dePortugal. Nestas circunstâncias, o Porto, devido ao encontro de pessoasde diversas proveniências era o sítio ideal para transmitir epidemias, aocontrário de locais mais isolados. A capela estava assim na área de onde(pelo menos, a maior parte) das epidemias viriam. A localização topo-gráfica da capela também tem interesse: encontra-se num local elevado.Tal permitir-lhe-ia estar mais perto do Céu por forma a poder ser maiseficaz. Em redor da capela, é visível um número considerável de carva-lhos. Tendo em conta que o carvalho tem um forte simbolismo equiva-lente ao da torre – força e axis mundi (Chevalier e Gheerbrant, 1994:165) –, a sua existência e abundância era simultaneamente uma formade proteger a capela contra o Dragão e torná-la mais eficaz contra asepidemias. O uso de carvalhos neste papel é algo que pode por vezes serencontrado em descrições de edifícios religiosos. Por exemplo, a capelada Senhora da Lomba na paróquia de Pinhanços, Seia, estava entre 4grandes carvalhos (Santa Maria, 1712: 533-535). O detalhe dos carva-lhos é uma indicação de que a capela não era circular (perfeita), mas aoinvés foi construída com quatro paredes, o que significa quatro ângulosmortos a necessitarem de protecção contra espíritos malignos; daí oscarvalhos. É a mesma coisa que implantar uma torre num ângulo mortode um castelo.

Ainda dentro do tópico Cosmos/ Caos, gostaria de chamar atençãopara mais dois elementos na paisagem que indicam a existência de umavisão dual do espaço pelos habitantes de Braga. O primeiro é a existên-cia de uma forca fora da cidade (ADB, Memorial: fl. 333v), possivel-mente numa pequena elevação chamada Monte das Penas9, segundotestemunhos locais recolhidos no início do século XVIII (Argote, 1732:234). Tal local é perfeitamente razoável para uma forca se se olhar parao contemporâneo Livro das Fortalezas de Duarte d’Armas – um livrocom imagens de 55 cidades e aldeias ao longo da fronteira portuguesa// castelhana –, onde as forcas encontram-se sempre representadas numlocal elevado fora (mas perto) da cidade. O propósito era dual: intimidaratravés do exemplo e deixar a alma amaldiçoada, uma vez que os enfor-cados não tinham direito a um enterro cristão, onde ela pertencia – noCaos.

Quanto ao segundo elemento, diz respeito a uma doença que eraentão comum: a lepra. Havia duas leprosarias perto de Braga: uma, parahomens, em S. Lourenço da Ordem, enquanto a outra, para mulheres,ficava perto da igreja de S. Vítor (Feio, 1984: 90). Esta era uma doençasocialmente condenada, tendo um concílio da Igreja realizado em 1179ordenado a separação das suas vítimas da restante população, uma vezque eram vistas como impuras (Duby, 1993: 138). O seu lugar não era,obviamente, a cidade-cosmos, mas sim o Caos.

Esta divisão espacial Cosmos/ Caos com um forte e bem demarcadolimiar com a sua muralha, torres e capelas, fornece, argumento, clarasindicações relativamente à forma como os habitantes de Braga construí-am uma identidade comum. Está-se a lidar aqui com uma identidademarcada pela diferença, ou seja, a construção de um Outro, associadoao Caos. Relativamente a este Outro, os habitantes de Braga exprimiamsimultaneamente receio (uma vez que o Caos ameaçava a sua vida) edesprezo (uma vez que a sua cidade fora criada segundo um modelodivino sendo, como tal, “superior”). No entanto, esta forma de identi-dade baseada no Outro é instável uma vez que está dependente da suaexistência por forma a manter a coesão da comunidade; caso o Outrodesapareça, o mesmo acontece à comunidade. Como tal, uma forma

8 Não pude descobrirquando é que estacapela e a de S. Miguelforam feitas: elas jáexistiam certamentepor volta de 1500,dado o Memorial (fl.333v) indicar obras quetiveram lugar nelas.

9 Onde hoje se situa aigreja de S. Pedro, aqual fica um pouco asul da sua anteriorlocalização.

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alternativa de identidade baseada em valores partilhados é mais dura-doura que a anterior. Havia semelhante identidade em Braga em finaisdo século XV?

Tendo em conta que esta era uma sociedade dominada por umavisão religiosa do mundo, não surpreende que “de todos os muitos ele-mentos que ligavam os homens e mulheres da cidade da Idade Modernanuma civilização comum, nenhum era mais central ou resistente do queser membro da igreja cristã e as suas obrigações para com a religiãocristã” (Friedrichs, 1995: 6). Mas quão vivo estava o cristianismo napaisagem cósmica de Braga?

Comecemos pela Catedral, o Centro do Mundo. Era uma estruturamaciça, feita de pedra e relativamente fechada para o exterior, uma vezque só tinha, além da porta, umas poucas frestas estreitas (Maurício,2000: 33, 34), sendo como tal bastante escuro no interior, algo típicodos edifícios religiosos construídos no Norte de Portugal (muitas delesainda se mantendo) e por toda a Europa nos séculos XI e XII (Duby,1993: 108). O simbolismo deste conjunto de elementos – um espaçofechado, escuro, subterrâneo – é o da gruta, o arquétipo do útero ma-terno (Chevalier e Gheerbrant, 1994: 177). A gruta está associada com acriação, com o início da vida, tendo como tal um carácter “feminino”,reforçado através da dedicação da Catedral a Santa Maria, sendo ela pró-pria o resultado da cristianização das deusas pagãs da fertilidade da mes-ma maneira que outros deuses foram transformados em anjos e santos(cf. Eliade, 1989: 144). Tendo em conta que esta gruta/templo é ummicro-cosmos (Eliade, 2002: 71), que imagem do Mundo ela transmi-te? Para começar, o seu espaço fechado revela simultaneamente protec-ção e receio do exterior. É possível que houvesse também na Catedralesculturas retratando monstros que inspiravam medo, algo que era co-mum nas igrejas dos séculos XI-XII, tanto na Europa (Duby, 1993:182) como em Portugal (R odrigues, 1995: 307-312). A estrutura daCatedral revela assim um mundo onde o medo é uma constante e ondea sobrevivência dos humanos está ameaçada: é este medo que os man-tém unidos.

Esta atitude de receio é igualmente visível na relação entre os habi-tantes de Braga e a Santa Maria/ Mãe Terra, a quem a Catedral e, comotal, a cidade, estavam dedicadas. As suas representações no selo medievalde Braga mostram uma Virgem entronizada com um menino Jesus nosseus braços (Feio, 1954: 8). Ela é, como tal, gloriosa e poderosa, mastambém distante e acima dos humanos. O seu poder sobre os mistériosda vida torna-a um soberano. A fidelidade dos habitantes de Braga paracom ela é baseada nisso e não necessariamente no amor cristão.

Uma das formas mais comuns desta altura de demonstrar amor cris-tão para com os outros era através de obras de caridade, isto é, apoiandohospitais para peregrinos e doentes. Havia nessa altura alguns desses hos-pitais em Braga (Feio, 1984: 84-91; Maurício, 2000: 24, 95). Todavia,estes não resultaram de um esforço comunal ou cívico, mas, ao invés, deiniciativas isoladas (ibid.; ibid.), o que significa que o apoio para aquelesque o precisavam era fragmentário e limitado a certos grupos. Uma vezmais, é possível identificar aqui algumas fraquezas no que diz respeito àexistência de uma forte comunidade cristã.

Outro problema que enfraquecia o sentido de comunidade dentroda cidade era a existência de um grupo de pessoas com uma religiãodiferente: os judeus. Pequenos grupos de judeus eram então uma visãocomum em muitas cidades portuguesas. Todavia, eles não viviam mis-turados com os seus vizinhos cristãos mas, ao invés, em certos quartei-rões ou ruas onde tinham os seus próprios locais sagrados (sinagogas) –as Judiarias. Estas diferenças entre pessoas que viviam dentro da cidade

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mas com diferentes religiões e locais sagrados, segregadas umas das ou-tras, significava que existiam tensões entre elas, do que resultava umenfraquecimento dos laços comunais. Por exemplo: os judeus até 1466viveram próximo da Catedral na R . Santa Maria, tendo então sido for-çados a mudar-se para a R . Santo António (Maurício, 2000: 24). Se-gundo a documentação, a razão para esta mudança era a de que os ju-deus estavam demasiado próximos da Catedral (O liveira, 1993: 104),poluindo-a, assim, espiritualmente, com a sua presença; já a R . SantoAntónio estava bastante mais afastada.

A análise das ruas e casas também revela um fraco espírito comuni-tário. Por esta altura as ruas eram estreitas e irregulares, uma vez que oseu espaço era sucessivamente invadido pelas casas (Maurício, 2000: 39),embora quando a cidade foi construída pelos romanos tenha sido orga-nizada segundo um plano ortogonal (Martins, 2000: 13-15). Além dis-so, era comum a existência de edifícios cujos andares superiores avança-vam sobre as ruas através de balcões, que por vezes – quando perten-ciam à mesma família – estavam ligados às casas em frente (Maurício,2000: 39). O que este conjunto de elementos significa é que quem an-dasse pelas ruas da cidade fá-lo-ia num ambiente escuro, o qual estáassociado às trevas primordiais, ou seja, ao Caos (R éau, 1955: 73; Fer-guson, 1966: 151; Chevalier and Gheerbrant, 1994: 541). Algo nãomuito satisfatório numa cidade que reclamava estar associada com oCosmos, com a criação. Aliás, a situação era tal, que a Catedral – oprincipal referente da população cristã, dado ser o Centro do Mundo –era apenas visível quando se estava perto dela (ADB, Memorial: fl. 329v).

O que é interessante sobre esta escuridão das ruas é que ela era oresultado de acções deliberadas dos habitantes da cidade. Eram as dife-rentes famílias que percepcionavam a rua como sendo um espaço caóti-co e como tal propenso a poder ser ocupada pelo Cosmos das suas casas.Obviamente, estas acções tornariam as ruas ainda mais caóticas.

A análise dos vãos das casas também é reveladora relativamente à suarelação com as ruas. Em Braga, tal como no resto de Portugal, as aber-turas para o exterior eram poucas: as portas eram as únicas em muitoscasos, embora algumas frestas e janelas pudessem também existir, embo-ra sempre nos andares superiores (Conde, 1993: 243; Maurício, 2000:45). Se bem que o palácio episcopal seja a única casa deste período queainda se conserva em Braga, olhando para outros locais onde os vãosdeste período encontram-se melhor preservados, como em Castelo deVide, parece que o género mais comum de portas por essa altura era emarco. O que é interessante nisto, é a sua referência ao divino através dasua forma esférica: cruzar este género de porta é equivalente a entrarnum local puro e sagrado (Chevalier e Gheerbrant, 1994: 202). Nessaaltura, o tipo mais comum era a chamada porta gótica, a qual tem umaponta com forma triangular na sua parte superior; o simbolismo é omesmo da esfera uma vez que o triângulo faz referência ao número três,o número do divino (cf. Réau, 1955: 67; Chevalier e Gheerbrant, 1994:657). Mais, a forma desta porta é a mesma da amêndoa e da mandorla.O arquétipo destes símbolos é a vulva feminina, estando na Idade Médialigada à pureza da Virgem Maria (Ferguson, 1966: 27, 148; Chevalier eGheerbrant, 1994: 61, 435). Entrar numa destas casas era assim o mesmoque entrar num mundo puro. O que estas características revelam, argu-mento, é medo e desconfiança para com o exterior, com a casa fechando--se sobre si com poucos e estreitos vãos, para que a rua-caos não entrassena casa-cosmos. A porta em arco, simbolizando a transição entre um es-paço sagrado e profano – casa e rua –, apenas reforça esta assunção.

Assim, dentro deste raciocínio, a irregularidade que se observa nasruas não é então, como argumenta a história urbana tradicional, um

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urbanismo orgânico ou caótico – no sentido de não ser ortogonal –,mas ao invés o resultado de um fraco espírito comunitário no qual oespaço da família – casa – tem precedência sobre outros espaços da cida-de.

Então e os arcebispos? Não deveriam eles, na qualidade de senhoresda cidade e representantes de Deus na terra, estarem preocupados emassegurar um mais forte espírito comunitário? Olhando outra vez para omapa de 1594, nota-se a divisão da cidade em duas metades distintas:para sul estava uma área urbanizada onde a maior parte das pessoas vivia;quanto à metade norte estava ocupada sobretudo por uma propriedadede grandes dimensões que pertencia aos arcebispos, estando a sua casa (atorre e o edifício adjacente) no meio dela. Está-se a olhar para umapropriedade onde os arcebispos se isolavam do resto da população. Estaobservação é reforçada olhando para a ala quatrocentista (Oliveira, 1999:177) do palácio episcopal (fig. 14): um edifício maciço, fechado sobresi, com ameias afirmando simbolicamente a sua força. Os arcebisposcomportavam-se como senhores distantes e isolados da população demodo a estarem acima dela (seguindo o modelo fornecido pela Virgementronizada na Catedral), bem como desconfiados da sua fidelidade.

Havia outras razões para a atitude dos arcebispos: o século XV foium período em que a sua autoridade sobre a cidade declinou. Entre1402 e 1473, a administração civil da cidade esteve sob controlo daCoroa (Feio, 1984: 91), retendo os arcebispos somente o poder espiri-tual. Após esta última data, os arcebispos recuperaram o poder civil.Contudo, durante esse período, os oficiais da Coroa tinham facilitado oestabelecimento de famílias nobres dentro da cidade, algo que até entãoera proibido (Feio, 1984: 89, 91), uma vez que os arcebispos não que-riam qualquer competição. O problema era que um desses nobres, Fer-não de Lima, era particularmente poderoso dado ser alcaide da vizinhacidade de Guimarães, estando ainda bem ligado, por parentesco, commuitas famílias nobres da região, não aceitando muito bem o retorno dopoder civil aos arcebispos (ibid.: 91). O resultado foi um conflito entreos apoiantes de ambos os campos, tendo o palácio episcopal sido ocupa-do, o castelo cercado, a população importunada e o próprio arcebispovendo-se forçado a fugir para a vizinha cidade do Porto (Cunha, 1634--35, vol. 2: 252-255; Feio, 1984: 91-97). Este conflito acabou por serresolvido através de intervenção do rei tendo o arcebispo obtido o con-trolo da cidade, enquanto que Fernão Lima e a sua família foram força-dos a sair dela (ibid.; ibid). Contudo, este foi um episódio que certa-mente enfraqueceu a autoridade dos arcebispos, dando aos habitantes dacidade outra boa razão para ver a área fora das suas casas como caótica.

Em suma, voltando à questão se havia alguma identidade forte epartilhada em Braga, a resposta é negativa: havia sobretudo medo e des-confiança. Embora a forma (aproximadamente) circular da cidade-cos-mos pretendesse simbolizar harmonia e unidade, estas condições só exis-tiam no que concerne à relação com o exterior, relativamente ao qual omedo e a desconfiança eram ainda maiores. Contudo, embora as mura-lhas permitam dividir e separar, num esforço de impor ordem e contro-lo, o problema é que elas são apenas parte de uma rede mais vasta(Taylor, 2001: 23). Nestas circunstâncias, quantas mais ligações com oexterior existissem, maiores eram as hipóteses de mudança. Uma dessasligações eram os arcebispos (que provinham sempre do exterior) e umdeles, D. Diogo de Sousa, estava prestes a trazer profundas mudanças àcidade.

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6. A Nova Braga (I)

A chegada de D. Diogo de Sousa a Braga em 1505 marcou o iníciode um longo período de governo – até 1532 – no qual as suas acçõesiriam mudar profundamente a paisagem da cidade, bem como dos seusarredores. Neste e no próximo capítulo, vou procurar compreender assuas intervenções sobre a paisagem de Braga em relação à identidade dacidade.

Um bom ponto de partida para analisar as mudanças que então tive-ram lugar é a Catedral, dado ser, afinal de contas, o Centro do Mundo.Este edifício passou por mudanças substanciais nessa altura, algumas dasquais ainda visíveis, em particular a notável capela-mor (fig. 12). Estaúltima foi completamente reconstruída, apresentando características di-ferentes daquilo que existia anteriormente. Uma dessas novas caracterís-ticas é o abundante número de motivos vegetais. Isto é bastante interes-sante dado que até então, a Igreja, de modo a desabituar as pessoas deuma Natureza pagã cheia de maná (uma força sobrenatural que suposta-mente existe em todas as coisas e que lhes dá vida), desenvolveu umaoposição entre Natureza e Graça (o estado de estar protegido pela favorde Deus), sendo a primeira considerada como uma fonte de problemas(Lenoble, 1990: 218). A Natureza era vista como um lugar de tentaçõesque podiam corromper a alma humana através da fraqueza da carne, ma-culada pelo pecado original (ibid.: 218, 219). Florestas cheias de bestaseram assim uma visão comum da Natureza, cuja representação era, comomencionei antes no capítulo 5, comum nas igrejas dos séculos XI-XII.

Todavia, após o século XIII, esta percepção começou gradualmentea mudar, com a Natureza sendo vista, pelo contrário, como obra deDeus e cuja estrutura era independente do drama humano sobre a Terra(ibid.: 219). Não é que os “males” do mundo tivessem diminuído; aoinvés, a Natureza já não tinha qualquer responsabilidade sobre eles (ibid.).A principal razão por detrás desta mudança foi teológica: a salvação hu-mana começou a ser vista como estando dependente da realização deboas obras neste mundo de modo a transformá-lo e fazer dele um me-lhor lugar para viver (Nemo, 2005: 61-88). Isto levou, entre outras coi-sas, a um maior interesse pelo estudo da natureza por forma a conhecê-lamelhor e consequentemente da antiga ciência grega, em particular ostrabalhos de Aristóteles (ibid.). Aqui, a Natureza perde o seu maná –pelo menos no mundo sub-lunar, uma vez que os planetas e as estrelascontinuam cheios dele –, sendo vista em termos de matéria e formacom uma certa finalidade, mantida em equilíbrio por uma “Ideia deBem” (Lenoble, 1990: 66-76). Esta visão foi aceite pela Igreja dado queremovia o maná da Natureza, permitindo assim fazê-la uma criação deDeus para o bem da humanidade (ibid.).

D. Diogo de Sousa foi certamente influenciado por estas ideias quan-do reconstruiu a capela-mor, transformando-a, por intermédio da suaabundante vegetação, de uma gruta num jardim. Convém notar queesta era uma sociedade agrícola com uma forte dependência da fertilida-de da terra e onde havia o anseio por uma Natureza santificada (Eliade,

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1989: 144-146); aliás, basta simplesmente reparar que o ideal de Paraíso,segundo a Bíblia era um jardim: o Éden (Génesis, 2, 8-9). Nestas cir-cunstâncias, a atitude prévia da Igreja para com a Natureza era pertur-badora para a vasta maioria da população, algo que certamente causouproblemas à autoridade da Igreja. Com estas mudanças, o Arcebispoprocurou assim fazer uma ponte entre a nova visão da Igreja relativa-mente à Natureza e o velho Paganismo, ao apresentar uma “Naturezacristã”, como se pode ver pela existência de simbolismo cristão em ele-mentos naturais como as rosetas, que simbolizam a Virgem (Trens, 1946:184), e os espinhos, que simbolizam a Paixão de Cristo (Ferguson, 1966:38). Desta maneira, o mundo não é mais um lugar de medo, cheio debestas que tentam magoar humanos, mas, ao invés, um lugar onde vale apena viver dado estar santificado. As bestas reduzem-se a umas poucasgárgulas, cujo papel é o de lançar a água suja da chuva através das suasbocas e de agirem como guardiãs do limiar.

Outra mudança interessante na catedral foi a colocação de uma está-tua da Nossa Senhora do Leite na parede exterior da capela-mor e vira-da para a rua de modo a ser vista, amamentando o menino Jesus (fig.12). A Senhora do Leite constitui um símbolo do desvelo de Mariapelos seus filhos (os cristãos), os quais, através do seu leite, tornavam-seirmãos adoptivos de Cristo (Trens, 1946: 457-480). Através desta ac-ção, a Virgem agora, argumento, torna-se não mais uma governantedistante mas ao invés uma Mãe Terra dentro do ideal de mulher natradição cristã: carinhosa e terna10.

Mudanças são também visíveis na iluminação da Catedral, em parti-cular a presença na capela-mor de três janelões que permitem a entradaabundante de luz no seu interior. Adicionalmente, segundo a docu-mentação, foram também abertas janelas nas paredes da nave (Maurício,2000: 33, 34). Não se sabe qual o aspecto delas, uma vez que foramsubstituídas por janelas largas no início do século XVIII11 (O liveira,1996b: 240). No entanto, eram suficientemente largas para permitir apassagem de alguma luz que iluminasse a nave. Deste modo, o interiorda catedral tornou-se um espaço mais iluminado, sobretudo na área dacapela-mor onde havia uma forte concentração de luz.

Uma vez que o simbolismo da luz está associado ao divino e a umaera regenerada e pura (Chevalier e Gheerbrant, 1994: 423) então, o queesta mudança significa, argumento, é que agora o mundo já não é maisum lugar de sombras onde os humanos vivem com medo. Basta ler aBíblia para ver quão forte o simbolismo da luz é: “1. No princípio,Deus criou os céus e a terra. 2. A terra era informe e vazia. As trevascobriam o abismo, e o Espírito de Deus movia-Se sobre a superfície daságuas. 3. Deus disse: “Faça-se luz”. E a luz foi feita” (Génesis 1, 1-3).Deus é então luz, uma luz na qual todas as criaturas participam e que atodas une (Duby, 1993: 105).

A forte luz que pode ser encontrada na capela-mor resulta assim dacircunstância de ser o local mais sagrado na Catedral e de onde luz divi-na emanava para o Mundo. Sabe-se que um retábulo de calcário foiconstruído nesta altura na capela-mor, embora hoje, com excepção deuma imagem da Senhora da Misericórdia, nada reste, dado ter sidodestruído em finais do século XVIII (Ferreira, 1932: 367). Contudo,segundo uma descrição de 1723-24 sabe-se que havia uma imagem daSenhora da Misericórdia com o menino Jesus nos seus braços, outra daSenhora da Assunção, bem como várias imagens de apóstolos e arcebis-pos de Braga (Figueiredo, ms. [1723-24]: fl. 30). Assim, tendo em contaque mudanças semelhantes estavam a ter lugar noutras catedrais portu-guesas (Baptista Pereira, 2001: 213), parece que o retábulo de Braga nãoera muito diferente dos demais: uma estrutura de larga dimensão nar-

10 Mais duas notasrelativamente a estaestátua: uma, é de queas mulheres da nobrezanão davam de mamaraos seus bebés, dadoisso ser visto com umaactividade típica dopovo, contratandoassim amas de leite(Lourenço Pereira1998: 658). Contudo,nesta altura, havia ummovimento quedefendia que aamamentação pelasmães biológicas faria ascrianças mais virtuosas(ibid.). D. Diogo deSousa, ao patrocinar aconstrução destaestátua, mostra de quelado do debate estava.Outra nota, é quedevido à forteidentificação entre aIgreja e a Virgem, estaestátua era igualmenteuma forma de edificaro clero. Note-se que ocomportamento demuitos clérigos nessaaltura não era o ideal(Maurício 2000: 30).Convém notar que estaestátua estava virada àR . S. Marcos, a qualera habitada sobretudopor clérigos e nobres,algo que faria estasmensagens maisexplícitas para estasaudiências.11 Por sua vezremovidas na décadade 1930 durante umaintervenção arquitectó-nica que pretendiadevolver a forma“original” a algumaspartes da Catedral.

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rando um conjunto de episódios evangélicos, um dos quais associadocom a Senhora da Assunção, dado que todas as sés portuguesas eramdedicadas a ela. O uso destes retábulos resulta então de uma tentativa denormalização de comportamentos religiosos (ibid.: 72), algo consentâ-neo com uma das primeiras medidas do Arcebispo assim que chegou aBraga, concretamente, a realização de um Sínodo com vista a reformaro clero e a promover um atitude mais catequética para com os fiéis(Maurício, 2000: 29). É fácil imaginar o forte impacto que um resplan-decente retábulo de calcário preenchido com imagens catequéticas sur-tiria: Deus estava a comunicar com os humanos. Deus preocupava-se eestava vigilante.

Pode-se reconhecer nas mudanças que tiveram lugar nesta altura naCatedral, influências de ideias cíclicas de tempo. Estas, tão bem estuda-das por Mircea Eliade (1989, 2000, 2002), postulavam que o Cosmosfoi criado num “início” por uma divindade, sendo este primeiro temposagrado e perfeito, servindo assim como modelo às actividades huma-nas. Sempre que os humanos sentem que existe caos e decadência, pro-curam retornar à perfeição do início do Cosmos. Obviamente, o carác-ter destes primeiros tempos varia segundo as diferentes circunstâncias delugar. No caso de Braga, o regresso a uma Natureza santificada e a umaMãe Terra generosa era de importância primordial, devido ao forte ca-rácter agrícola da sociedade. Quanto à luz, está-se perante a bem conhe-cida dualidade entre luz e sombra, Cosmos e Caos, ambos sucedendoum ao outro de uma forma cíclica. Embora o cristianismo tivesse umaconcepção linear de tempo com um início e um fim do mundo (dadoque uma noção circular de tempo punha em causa a unicidade da vindade Cristo à Terra), aceitava, não obstante, a teoria da ondulação cíclicado tempo de modo a explicar o suposto regresso periódico de eventosdurante a duração do mundo (Eliade, 2000: 157). Era, de facto, a ideiade que um novo ciclo estava a ter início que D. Diogo de Sousa procu-rou transmitir com os trabalhos da Catedral. Uma nova era cósmica ecomo tal uma nova cidade, ou mais correctamente, uma cidade renova-da, tinha começado.

Esta ideia foi reforçada com a colocação de sete estátuas no topo donártex da Catedral (fig. 11). Estas estátuas representam S. Miguel, nomeio, flanqueado por S. Pedro e S. Paulo, que estão por sua vez flan-queados pelos quatro arcebispos santificados de Braga (dois de cada lado),S. Pedro de R ates, S. Martinho, S. Frutuoso e S. Geraldo (Maurício,2000: 87). S. Miguel está a defender a Catedral dos ataques do Dragão.S. Pedro e S. Paulo são os dois apóstolos mais importantes, estando liga-dos aos tempos iniciais da Igreja. S. Pedro foi o primeiro bispo enquantoS. Paulo foi o apóstolo dos pagãos. Relativamente aos quatro arcebisposde Braga: S. Pedro de R ates foi o primeiro; S. Martinho e S. Frutuosoviveram no período Germânico, tendo o primeiro convertido os Suevose o segundo criado uma rede de mosteiros para converter as áreas ruraispagãs; quanto a S. Geraldo, restaurou a Catedral em finais do século XI.

Há aqui um interessante jogo de associações, que sugere que a colo-cação destas estátuas por D. Diogo de Sousa foi tudo menos casual. Paracomeçar, há aqui uma forte referência à figura do bispo e da sucessãoapostólica através de S. Pedro e dos quatro de Braga. Como eles estãotodos ligados aos inícios da Igreja em R oma e Braga, a sua presençaagora indica que esse tempo “perfeito” dos primórdios está de volta.Estes bispos, bem como S. Paulo, através da sua associação com S. Mi-guel também contribuem para defender a Catedral dos ataques do Dra-gão. A associação dos bispos com a figura de S. Paulo também é impor-tante, dado que eles também são vistos a contribuir para a expansão dafé cristã entre os pagãos.

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A forma das estátuas também é bastante reveladora. As esculturas nasportas de entrada das igrejas dos séculos XI-XIII eram sempre rígidas ehieráticas (R odrigues, 1995: 268). Agora, tal como a estátua de Nossasenhora do Leite, elas apresentam uma forma mais humana e uma lin-guagem corporal mais benigna levantando as mãos para os fiéis e estabe-lecendo contacto visual com eles. As temidas figuras majestáticas anterio-res são postas de lado em nome de um cristianismo renovada.

Outro aspecto interessante acerca destas estátuas é o seu número –sete –, algo que também não considero casual. O número sete, na tradi-ção cristã, tem um rico simbolismo, sendo o número da perfeição, dadoque resulta da adição dos números três e quatro, Céu e Terra (Ferguson,1966: 154; Chevalier e Gheerbrant, 1994: 603, 604). O número seteestá também associado à conclusão do mundo e à plenitude dos tempos(Chevalier e Gheerbrant, 1994: 604). Tal está relacionado com o episó-dio do Génesis no qual Deus descansa ao sétimo dia de modo a restauraras forças divinas através da contemplação da obra concluída (ibid.). Des-ta forma, os humanos são convidados a descansar também no sétimo dia(Domingo) por forma a virarem-se a Deus e repousarem Nele por for-ma a alcançarem a perfeição (ibid.). Um pacto é assim estabelecido en-tre Deus e a Humanidade através do número sete (ibid.), sendo as figu-ras representadas nas sete estátuas da Catedral de Braga os garantes dessepacto.

Com estas estátuas e as mensagens que elas transmitem, reforçadascom a presença de imagens dos arcebispos santos de Braga no novoretábulo da capela-mor, D. Diogo de Sousa está então, do meu pontode vista, a procurar reafirmar o papel e o prestígio do ofício de arcebis-po, que estava bastante afectada aos olhos dos habitantes de Braga antesda sua chegada. Tal é feito, por um lado, reclamando uma genealogiaantiga e ilustre e, por outro, assumindo um papel mais paternal e patriar-cal ao expandir a fé e proteger os fiéis. Por outras palavras, o “bompastor” que toma conta do seu “rebanho”.

Estas tentativas de D. Diogo de Sousa de procurar uma relação maispróxima com os habitantes da cidade são também visíveis nas mudançasque ele efectuou no palácio episcopal, onde uma nova fachada ao longoda R . Souto foi construída (ADB, Memorial: fl. 330). Ao passo queantes o palácio estava isolado das outras casas, agora, com esta extensão(visível no mapa de 1594), está não só próximo mas também integradocom as outras casas. O arcebispo já não mantém a distância; emborapastor, vive no meio do rebanho.

Sumariando, o que estas mudanças revelam é uma tentativa consci-ente de D. Diogo de Sousa de fortalecer a identidade cristã da cidadepor referência a um conjunto de elementos – uma Natureza santificada,a luz de Deus e, sobretudo, um arcebispo paternal e patriarcal – queuniriam os habitantes de uma forma mais positiva, dado não se basearemnaquilo que predominava até então – medo.

Esta reafirmação da identidade cristã por forma a unir as diferençasentre os diversos grupos da cidade foi também facilitado por outro even-to que teve lugar em 1497: a expulsão dos judeus de Portugal. A relaçãoentre judeus e cristãos em Portugal tinha-se deteriorado consideravel-mente após 1492, quando os primeiros foram expulsos de Granada apósa conquista espanhola, tendo muitos deles ido para Portugal, ameaçan-do, com esse súbito influxo, a delicada balança que existia entre as co-munidades (Dias, 1998b: 48, 49). Em 1497, a Coroa portuguesa deci-diu, por sua vez, também expulsar os judeus. Contudo, como o capitalhumano e económico dos judeus era considerável, a Coroa, de modo anão perdê-lo, permitiu que muitos dos judeus se convertessem ao cristia-nismo continuando, como tal, a viver em Portugal. O mesmo aconte-

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ceu também em Braga, uma vez que alguns dos judeus que aí viviamcontinuaram a fazê-lo embora, devido à conversão forçada, a sua fé cris-tã não fosse muito forte como as visitas inquisitoriais mais tarde viriam adescobrir (Mea, 1990: 70). Apesar da permanência de um cripto-judaís-mo em Braga, a tensão aberta que existia entre ambas as comunidadesdesapareceu uma vez que agora, oficialmente, toda a gente dentro dacidade era cristã. É interessante notar que, segundo a informação doÍndice, após esta data a Judiaria foi rebaptizada com o nome de R . SantoAntónio, tendo algumas das suas casas, incluindo a antiga sinagoga (casa12; cf. vol. I: fl. 376), sido ocupadas por clérigos cristãos (vol. I: fls. 361--386). A intenção destas acções é clara: limpar espiritualmente esse es-paço e apagar a memória da presença judaica.

Por forma a enfatizar o carácter da Catedral como Centro do Mun-do e, consequentemente, como modelo das acções humana dentro dacidade, D. Diogo de Sousa efectuou algumas mudanças em redor doedifício. Até então, como mencionei no capítulo anterior, a área emredor da Catedral estava cheia de edifícios, tornando esta pouco visível.O Arcebispo ordenou o alargamento da pequena praça em frente à Ca-tedral (Memorial: fl. 329) na praça larga que ainda hoje é visível – aPraça do Pão. A largura desta praça é a mesma que a da fachada daCatedral, o que significa que agora esta ultima tornou-se bem visível àdistância. A R . Maximinos, que liga esta praça com uma das portas dacidade, foi igualmente remodelada (ibid.: fl. 329v) de modo a permitiruma melhor visão da Catedral. Uma mudança semelhante também ocor-reu nas traseiras do edifício com a remoção de várias casas e quintais e aconstrução de uma nova rua (ibid.: fl. 329v) – S. Marcos12 – cuja larguraé a mesma da capela-mor.

O reordenamento da praça em frente da Catedral também reforçouo papel central desta última; assim, note-se que foi no lado sul da praçaque a Câmara foi reconstruída, cujo edifício anterior, que estava dema-siado junto à Catedral, foi destruído por forma a dar mais espaço à novapraça (ibid.: fl. 329, 329v). Ora a Câmara era de enorme importância navida cívica da cidade devido às suas funções administrativas, sendo igual-mente aí que o pão, o principal alimento desta sociedade, era vendido(ibid.: fl. 329v), daí o nome da praça. A associação destes dois edifíciosnesta praça colocava, devido ao maior tamanho da Catedral, a Câmara(e os vereadores, que eram de estatuto nobre) numa posição subalternaface à Catedral. Desta forma, o Arcebispo, devido à sua forte associaçãocom a Catedral (sobretudo após as mudanças mais recentes), afirma-secomo o único governante de Braga unindo o seu destino com o dacidade.

A centralidade da Catedral foi ainda mais enfatizada através de umreordenamento dos principais eixos da cidade que teve lugar nessa altu-ra. O elemento crucial foi a construção de uma nova rua – R . Sousa13

(em homenagem a D. Diogo de Sousa) – entre uma nova porta14 abertana muralha e a R . Souto (ibid.: fl. 329), ambas unindo-se perto da Ca-tedral. A união das duas ruas permitiu a formação de um eixo contínuoe quase rectilíneo que cruzava a totalidade da cidade num sentido este--oeste, dividindo-a em duas metades. Este eixo é claramente visível nomapa de 1594, ficando a Catedral a meio e ligada a ele através de umapequena praça adjacente ao seu claustro15. Outro eixo é visível no mes-mo mapa, embora desta vez num sentido norte-sul, constituído pela R .Santa Maria16, entre a Catedral e a porta de Santiago. Esta rua, que eraaté então um dos eixos fundamentais da cidade devido ao seu acesso àporta de Santiago e à feira que se realizava no Campo de Santiago (Oli-veira, 1993: 104), dividia, por sua vez, a metade sul da cidade em duasmetades mais pequenas.

12 Conhecida por S.João nos mapassetecentistas.

13 Por vezes tambémreferida na documenta-ção por R . Nova.14 Chamada PortaNova. Até então, haviacinco portas:Maximinos, S.Francisco, Souto, S.Marcos e Santiago (cf.Feio 1984: 106, 107).15 Esta praça é visívelno mapa de c. 1757 eainda lá se encontraactualmente.16 A continuação doeixo para norte daCatedral data de 1565e será analisada nocapítulo 8.

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Desta reorganização, resultaram então dois eixos principais forman-do um T, com a Catedral no meio. Obviamente, numa perspectivageométrica do espaço, esta forma em T não é lá muito regular, como sepode ver no mapa de c. 1757. Contudo, o que interessa é a maneiracomo as pessoas davam sentido ao espaço e, na perspectiva daqueles queviveram no século XVI, a disposição destes eixos formava consciente-mente um T, como se pode ver no mapa de 1594. Está-se, assim, pe-rante uma reorganização espacial que se baseia na imitação conscientedas formas de um mapa T/ O.

Os mapas T/ O foram as mais comuns representações cartográficasdo mundo durante a Idade Média, tendo uma sólida base na PenínsulaIbérica, dado os primeiros terem sido feitos por S. Isidoro de Sevilha noséculo VII (Boorstin, 1987: 104). No território que hoje constitui Por-tugal, o exemplar mais antigo conhecido destes mapas pode ser encon-trado num Apocalipse feito no Mosteiro de Lorvão no século XII. Nes-tes mapas, todas as terras habitáveis eram representadas como um círcu-lo confinado pelo Oceano – o O – e divididas internamente por umcorpo de água em forma de T (ibid.) (fig. 7). No topo do T encontrava--se o continente da Ásia, por baixo e para a esquerda da haste estava aEuropa, enquanto que para a direita encontrava-se a África (ibid.). Ahaste que dividia a Europa da África era o Mar Mediterrâneo; a barraque separava estes dois continentes da Ásia unia os rios Danúbio e Nilo,que se julgava correrem numa única linha (ibid.). No centro do mapa,estava uma representação de Jerusalém, o lugar mais sagrado da Terra natradição cristã, o “umbigo do mundo”, como a versão latina da Bíblialhe chama (ibid.). Um argumento que pode ser colocado contra estainterpretação é a de que o continente Americano, conhecido desde 1492após a viagem de Cristóvão Colombo, está ausente. No entanto, con-vém notar que a maior parte dos membros das elites europeias desteperíodo mostravam pouca preocupação com as descobertas geográficasque estavam a ter lugar pelo globo (Delumeau, 1994: 129). Eles estavamsobretudo preocupados em ter um melhor conhecimento dos escritoresclássicos e, como resultado disso, até meados do século XVI ainda eravulgar julgar-se que o mundo tinha três partes (ibid.). Convém igual-mente notar que Cristóvão Colombo, que morreu em 1506 (ou seja,um ano depois de D. Diogo de Sousa ter iniciado as suas reformas urba-nas), nunca se apercebeu que tinha descoberto outro continente. Assim,como se pode ver, mesmo para aqueles que participaram nessas viagensde exploração, demorou ainda alguns anos até que se apercebessem quetinham descoberto um novo continente. Como tal, não surpreende queo continente Americano não esteja representado em Braga.

Numa perspectiva geométrica de espaço, os mapas T/ O são umacaricatura do mundo, contudo, o seu propósito era sobretudo ecumé-nico, ou seja, pretendiam mostrar o mundo habitável (Boorstin, 1987:104). No contexto da Braga do início do século XVI, o que se está a veraqui é a transposição deste modelo do mundo para a cidade. Como namentalidade religiosa a única coisa que é “real” e merecedora de serseguida como modelo é o mundo sagrado, os humanos, então, procu-ram transmutá-lo para a Terra (Eliade, 2000: 20-26; 2002: 45). No casode Braga, o micro-cosmos da cidade, através da decisão consciente deD. Diogo de Sousa, estava assim a imitar o modelo ideal do macro--cosmos. Outro aspecto importante desta versão do Cosmos é o de queos seus eixos principais – o T – formavam uma cruz, mais precisamenteuma cruz em Tau (uma cruz sem cabeça). Basta recordar a importânciado simbolismo da cruz na tradição cristã: foi numa cruz que Jesus Cristomorreu para redimir a humanidade dos seus pecados. Desta forma, ocarácter cristão da cidade está a ser afirmado. Por outro lado, na lingua-

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gem dos símbolos, a cruz liga o centro original, do qual emana a vida, àtotalidade do Cosmos, tendo como tal um papel chave de intermediação(Chevalier e Gheerbrant, 1994: 245). Tendo em conta que nos mapasT/ O o T resulta da conjunção das correntes de água, argumento que asruas assumem simbolicamente o papel de rios através das quais a energiadivina flui para a cidade. Quanto ao mar oceano envolvendo o Mundo,embora também possuindo água, não flui de um centro original. Sendoassim, é apenas uma massa indiferenciada, uma infinidade de possibili-dades que não se materializam; por outras palavras, o Caos para além doCosmos. Quanto à Catedral de Braga, replicando Jerusalém através dasua posição central no T/ O que a cidade agora assume e participandoem todo o seu simbolismo, reafirma o seu papel de Centro do Mundo.

Se bem que as ruas pudessem ser o meio pelo qual a vida emanava,no caso de Braga havia o problema, como se viu no capítulo anterior,de a sua estreiteza e irregularidade fazê-las bastante escuras – um ambi-ente mais apropriado para simbolizar o Caos. Este aspecto entrava obvia-mente em contradição com a ideia das ruas como “rios divinos” e, comotal, não surpreende que intensas rectificações tenham tido lugar nas ruasda cidade neste período. Estas rectificações assumiam geralmente duasformas: quer através da construção de nova ruas (como R . Sousa ou aR . S. Marcos) ou regularizando tanto quanto possível as fachadas dosedifícios ao longo das ruas existentes (como a R . Maximinos ou a R .Souto) (Maurício, 2000: 39). Em ambos os casos, o resultado era o mes-mo: ruas mais largas e lineares. Como consequência destas mudanças asruas tornaram-se bastante mais iluminadas. Mas esta luz não era uma luzqualquer: era a luz de Deus iluminando espiritualmente os habitantes deBraga; uma luz que alcançava todas as partes da cidade, unindo todosnuma identidade Cristã comum. Mais, graças a estas mudanças nas ruase à convergência intencional da rede de ruas da cidade na Catedral, esteedifício tornava-se mais visível à distância ao longo das ruas, dando aideia, graças à sua posição central, que irradiava luz dela, reafirmando-secomo Centro do Mundo. Desta forma, as ruas, através da sua ligaçãoumbilical à Catedral, tornaram-se extensões desta última e, como tal,lugares mais espirituais.

Com a transformação das ruas de escuro para claro, as autoridadescívicas fizeram um esforço significativo nas décadas que se seguiram nosentido de manter o seu estatuto espiritual. Por exemplo, num conjuntode leis cívicas compiladas em 1551, menciona-se que é proibido atirarcoisas sujas para as ruas (AMB, Livro das Vereações: fl. 63v), bem comopara a muralha, torres e portas da cidade (ibid.: fl. 103) e para a área emredor do castelo (ibid.: fl. 82). Se bem que para observadores dos nossosdias isto possa parecer algo mais relacionado com a higiene pública, con-vém notar que somente no século XIX foi descoberto que as bactériastransmitiam doenças, do que resultou a associação entre sujidade e doen-ça (Douglas, 1991: 50). Até então, a sujidade era vista como impura nosentido de algo que não estava no seu lugar apropriado (ibid.). Isto pres-supõe a existência de um conjunto ordenado de relações e a sua subver-são (ibid.). No caso de Braga, argumento que o lixo orgânico nas ruas eo cheiro que causava eram vistos como impuros porque não tinham umcarácter espiritual.

Há mais exemplos desta política de manter a cidade limpa num sen-tido religioso (e não higiénico). Por exemplo, uma lei de 1577 só per-mitia aos ferreiros descarregar carvão nas ruas desde que elas fossem lim-pas logo de seguida (AMB, Livro das Vereações: fl. 165v). Mais, eraestritamente proibido descarregar carvão nas praças da cidade e perto decruzeiros (ibid.: fl. 165v). Estas acções são compreensíveis se se tiver emconta que a cor escura do carvão pode ser associada ao Caos: a sua per-

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manência em espaços públicos punha em causa a sua pureza. Outroexemplo foi a construção de um açougue com alpendre na R . Sousadurante o período de D. Diogo de Sousa (ADB, Memorial: fl. 329). Éinteressante notar que duas pequenas casas foram construídas perto doaçougue e que eram destinadas às pessoas responsáveis pela limpeza des-se espaço (ibid.). Tendo em conta que a poluição através do sangue erauma noção comum (Douglas, 1991: 78) e que o açougue estava numdos principais eixos da cidade, não surpreende que o seu sangue fosselimpo com regularidade por forma a manter o estatuto espiritual dessarua.

Na minha perspectiva, houve ainda outra razão para fazer as ruas,sobretudo os principais eixos da cidade, mais largas e lineares: a sua trans-formação em “estradas reais”. Estas são as vias directas, em oposição àstortuosas, que conduzem ao centro do reino (Chevalier e Gheerbrant,1994: 307). Dentro do cristianismo, as estradas reais significam Cristo –“Eu sou a estrada” (João 14, 6); “Eu sou o rei” (João, 19, 21) –, ou seja,a ausência de algo que possa distrair a alma e prender a atenção (ibid.).Como tal, não surpreende que no Memorial a existência de ruas tortuo-sas seja condenada e a sua transformação elogiada (fl. 329v). Com atransformação dos principais eixos da cidade em estradas reais, estas nãosó enfatizam a Catedral como Centro do Mundo (ou a “capital do rei-no”), mas também se tornam palcos para cerimónias importantes da vidareligiosa e cívica da cidade, como as procissões e as entradas dos arcebis-pos17 (cf. Basto, 1627: 12v; R odrigues, 1627: 16).

As mudanças que podem ser observada nas ruas da cidade duranteeste período são geralmente vistas por outros investigadores de uma for-ma funcional como meios de facilitar o tráfico (e.g. Maurício, 2000: 40;Bandeira, 2000b: 33). Contudo, não considero esta explicação suficien-te. Por um lado, não tem em conta a mentalidade religiosa desta socie-dade, optando ao invés por uma abordagem mecanicista que vê a cidadecomo uma máquina com problemas de circulação, cuja resolução é ten-tada, de modo a que ela não se “desregule”. Note-se, no entanto, quealgumas das ruas abertas ou rectificadas nesta altura, como as ruas de S.Marcos e do Souto, eram habitadas predominantemente por aristocratase burocratas (cf. Bandeira, 2000b: 52-54). Ora, isso significava que essasruas não tinham um tráfico intenso, o qual está associado à actividademercantil e mesteiral, invalidando, assim, qualquer pretensão de que aconstrução de ruas mais largas e lineares destinava-se somente a facilitaro movimento do tráfico.

Este esforço de transformar o espaço da cidade num espaço cristãonão esteve limitado somente à Catedral e às ruas: as casas também fize-ram parte dele. Uma das mudanças mais notáveis que teve lugar nestaaltura nas casas de Braga foi a de que quase todas passarem a ser caiadas(Maurício, 2000: 107). Até então, muitas casas eram feitas sobretudo demadeira, sendo os seus esqueletos visíveis do exterior (ibid.: 100). Ago-ra, passaram a ser integralmente rebocadas e caiadas. Somente em algu-mas casas pertencentes a alguns aristocratas esta prática não foi adoptada(por razões que serão exploradas adiante neste capítulo); estas últimaseram feitas de pedra aparelhada (e.g. ADB, Prazos do Cabido, tomo 52:fl. 88; tomo 56: fl. 25), apresentando fachadas semelhantes à que aindahoje se pode ver na ala quatrocentista do palácio episcopal (fig. 14).Tendo em conta que o branco é a cor geralmente associada com a pure-za e a divindade, bem como com a luz (R éau, 1955: 72; Ferguson,1966: 152; Chevalier e Gheerbrant, 1994: 129, 130), torna-se fácil com-preender, tendo em conta o que foi dito até agora, a intenção por detrásda brancura das casas: também elas eram lugares cristãos. Desta forma, acobertura da cidade com um manto branco ajudava ainda mais a unifi-

17 Tem interesse notarque escavaçõesarqueológicas na cidaderomana de Bragarevelaram que a larguramédia das ruas era de 3metros; contudo, umadas ruas que se dirigiaao fórum tinha 7,5metros (Martins 2000:14). O que istosignifica é que havianessa altura pelo menosuma estrada real, nestecaso em direcção aofórum, o qual era oequivalente ao Centrodo Mundo.

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car os seus habitantes numa identidade cristã comum. Além disso, comoo branco reflecte a luz, as casas ajudavam também a iluminar as ruas,enfatizando ainda mais o carácter cristão destas últimas.

A construção de uma identidade cristã comum também influencioua disposição das casas de outras maneiras. Umas das principais alteraçõesfoi a relação entre os vãos e as ruas. Começando pelas janelas, ao passoque antes elas eram poucas e estreitas, para não dizer inexistentes, agoraocorre uma multiplicação do seu número. As descrições das casas quepodem ser lidas nos Prazos do Cabido revelam a existência de pelo me-nos uma janela no andar térreo e outra em cada um dos andares superio-res, sendo comum a abertura de duas ou três janelas no primeiro bemcomo no segundo andar18. A forma destas janelas também é considera-velmente diferente, sendo sistematicamente largas e quadradas. Isso éalgo que pode ser lido nas descrições das casas, onde referências a janelasquadradas são uma constante. Algumas destas janelas ainda hoje podemser vistas na cidade, sendo facilmente reconhecidas dado terem chanfro,isto é, terem os lados cortados, sendo este género de técnica bastantecomum durante o século XVI e parte do XVII. Este formato de janela(com ou sem chanfro) tornar-se-ia a norma nas casas de Braga ao longoda Idade Moderna como se pode ver no mapa de 1750, onde quasetodas as janelas são largas e quadradas (fig. 15).

O resultado desta multiplicação de janelas largas foi o de que a ante-rior situação, em que as casas tinham poucas aberturas para a rua, desa-pareceu, uma vez que, agora, com todas estes vãos, passou a haver umaforte ligação entre ambos os espaços. As ruas tornam-se visíveis do inte-rior das casas e, como tal, eventos que têm lugar nas ruas passam a influ-enciar as vidas daqueles que estavam dentro das casas. O oposto tambémocorre: o interior das casas torna-se mais visível do exterior, influencian-do este. A forma quadrada da janela também aponta para esta ligaçãoentre o interior/ exterior. Convém notar que o quadrado é o símbolo daTerra bem como o símbolo do universo criado em oposição ao Caos,dado os seus quatro lados, por não serem dinâmicos, simbolizarem aideia de estabilidade (Réau, 1955: 67; Ferguson, 1966: 153; Chevalier eGheerbrant, 1994: 548-550). Por outro lado, o quadrado mantém umarelação de proximidade com o círculo, uma vez que ambos simbolizamdois aspectos fundamentais de Deus: unidade divina (círculo) e manifes-tação (quadrado) (ibid.: 550). Quando o quadrado encontra-se inseridonum círculo, a Terra está dependente do Céu (ibid.). Nestas circunstân-cias, uma janela quadrada pode simbolizar a receptividade terrestre paraaquilo que vem do Céu (ibid.: 382). Tendo em conta que as ruas sãosagradas, dado elas serem extensões da Catedral, o Céu entra assim den-tro das casas através das suas múltiplas janelas quadradas. O mesmo seaplica às portas rectangulares (o rectângulo resulta de dois ou mais qua-drados sobrepostos), as quais se tornam bastante comuns por esta altura,como se pode ler nos documentos dos Prazos do Cabido, e que se tor-naram a norma em Braga como se pode ver no mapa de 1750.

Argumento que o que estas mudanças nos vãos bem como na bran-cura das paredes significam é que a anterior divisão sagrado/ profanoque existia até então entre as casas e as ruas diluiu-se: elas agora parti-lham o mesmo espaço sagrado. A luz de Deus entra dentro das casaslevando o seu anterior interior secreto aos olhos públicos e cristãos. Asfamílias deixam de viver receosas e fechadas sobre si no pequeno espaçosagrado da casa, mas, ao invés, viram-se para o exterior para o novoespaço cristão que prega uma visão mais positiva da vida na Terra.

Estas mudanças tiveram consequências na organização interna dascasas. Da leitura dos Prazos do Cabido, nota-se que a existência no an-dar superior das casas de uma sala virada à rua tornou-se a norma pelo

18 É rara a existência deum terceiro andar equando ocorre trata-segeralmente de umsótão, como se podever, por exemplo, emalgumas casas da R .Sousa no mapa de1750 (fig. 10).

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século XVI. Até então, a sala existia somente nas casas da elite (Vieira daSilva, 2002: 21); casas do terceiro estado não o possuíam (Conde, 1997:245-248). A sala tinha um papel cerimonial, estando ligada a certas sole-nidades e eventos festivos (Veiga de Oliveira e Galhano, 2000: 40). Des-ta forma, pelo século XVI, através do carácter público da sala e da exis-tência de uma ou mais janelas, a rua entrava na casa; mas a casa tambémentrava na rua. Uma clara demonstração disso, por exemplo, é a peque-na capela que existia no interior da torre de Maximinos, a qual era visí-vel da rua homónima dado que, como mencionei no capítulo anterior,as torres não tinham uma face interna. Segundo a documentação, oshabitantes dessa rua, das janelas das suas casas, podiam participar nasmissas que tinham lugar nessa capela (Abreu, 1983: 6). Esta situação sóera possível por não haver uma descontinuidade entre a sala e a rua:eram ambos lugares sagrados. Mais, como no início do século XVIIalgumas das pessoas que participavam nesta missa não o estavam a fazerde uma forma respeitosa (a documentação não é específica neste aspec-to) o arcebispo só permitiu que as missas continuassem se o altar fossecoberto, algo que foi feito (ibid.). Por outras palavras, como havia umacontinuidade entre ambos os espaços, um comportamento mais profanonas casas afectaria a espiritualidade das ruas.

Outra indicação da ocorrência de uma diluição de espaços até entãodistintos que ocorre nesta altura, pode ser vista em algumas casas daelite, nomeadamente, no aparecimento de escadas exteriores adossadasàs paredes das fachadas destas casas (e.g. ADB, Prazos do Cabido, tomo51: fl. 3; tomo 78: fl. 3) ligando, desta forma, a rua à sala. Até então ascasas da elite só tinham escadas interiores, uma vez que estavam fecha-das ao exterior (Vieira da Silva, 2002: 33, 158). A existência destas esca-das exteriores, acessíveis a qualquer um, significa assim uma menor sus-peição para com o exterior, dado que elas ligavam espaços com signifi-cados semelhantes.

O andar térreo das casas, onde a actividade comercial e mesteiral dacidade tinha lugar, também foi afectado pelas mudanças nos vãos. Em-bora sendo um espaço mais informal que a sala, a relação estabelecidacom as ruas foi semelhante aquilo que estava a acontecer nos andaressuperiores. Convém notar que nessa altura o “trabalho especializado erahonrado e esperava-se que fosse público, visível e aberto ao escrutínio.Em muitas cidades esperava-se que as portadas das lojas permanecessemabertas por forma a que os membros do público pudessem ver o mestree os seus ajudantes à medida que eles trabalhavam” (Friedrichs, 1995:160; minha tradução). Desta forma a anterior escuridão deste espaço eraevitada bem como a possibilidade que uma abordagem menos ética paracom o trabalho pudesse perturbar a vida da comunidade cristã.

Embora as áreas da casa viradas à rua – a sala e a loja – sofressemprofundas mudanças ao tornarem-se espaços públicos, o mesmo não sepassou nas áreas viradas para as traseiras – o quarto e a cozinha –, as quaispermaneceram privadas. Era na cozinha que a maior parte da vida socialda família tinha lugar (Veiga de O liveira e Galhano, 2000: 111). Asmudanças que as casas sofreram nas áreas viradas para a rua não tinhampor objectivo transformar a totalidade da casa num espaço público mas,ao invés, adicionar uma esfera pública a um espaço anteriormente pri-vado de forma a integrar a família numa mais ampla identidade urbana.

Se bem que a área das casas virada para as traseiras permanecesseprivada, isso não significa que não tenham ocorrido aí mudanças subs-tanciais, mais precisamente nos quintais. Estes eram um elemento vul-gar, sendo habitual os proprietários das casas usarem este espaço paracultivo de pequenas hortas e instalação de edifícios ancilares como for-nos para cozer pão, estábulos, palheiros (Maurício, 2000: 116, 117),

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algo de esperar tendo em conta que esta era uma sociedade predomi-nantemente agrícola. Como mencionei antes neste capítulo, após o sé-culo XIII a Natureza deixou de ser demonizada sendo ao invés vistacomo obra de Deus. Uma consequência disso foi que nos séculos XIV eXV começaram a aparecer jardins nas traseiras das casas, em conjuntocom outros elementos que já lá existiam. Os jardins são símbolos doParaíso (Chevalier e Gheerbrant, 1994: 382) e a sua introdução nas casasconstituiu assim uma tentativa dos seus moradores de procurar estar per-to de Deus através de uma experiência sensorial da Natureza. Os jardinspor esta altura copiavam modelos islâmicos onde o uso de árvores defruto com fortes odores como a laranjeira e o limoeiro eram predomi-nantes (Carita e Cardoso, 1987: 26). O uso de árvores de fruto é perfei-tamente compreensível, se se tiver em conta que os frutos são símbolosde abundância (Chevalier e Gheerbrant, 1994: 340), a qual é, afinal decontas, o ideal de qualquer sociedade agrícola, onde o espectro da for-me é uma constante.

No caso de Braga, a mais antiga referência que encontrei para jar-dins data de 1393/ 94 e refere-se a dois pomares na casa de um doscónegos (Tombo do Cabido, vol. 2: fl. 69). Mas seria apenas no séculoXVI que o uso de jardins nas traseiras se tornará comum, como se podeler nos Prazos do Cabido, e que tão bem se encontra ilustrado grafica-mente no mapa de c. 1757. As mudanças que tinham ocorrido nessaaltura na Catedral no sentido de promover a Natureza certamente tive-ram um papel importante no desenvolvimento dos jardins. O tamanhodos jardins era variável: a maior parte das casas tinha somente uma ouduas árvores, ao passo que em algumas da elite havia um número consi-derável de árvores. Por exemplo, na casa da família Coimbra havia ses-senta laranjeiras (Maurício, 2000: 130). D. Diogo de Sousa construiuum jardim quadrangular (simbolizando um espaço ordenado) dentro danova ala do palácio (visível no mapa de 1504) e subdividido em quatropartes, cada uma com quatro laranjeiras (ADB, Memorial: fls. 330, 330v).A laranja era então o fruto mais popular. Tal é compreensível se se tiverem conta o seu simbolismo: a sua forma circular está associada à eternida-de, enquanto a sua cor pode ser associada ao sol. E o sol é um dos emble-mas de Cristo (Réau, 1955: 69; Chevalier e Gheerbrant, 1994: 611).

Assim, como se pode ver, nesta nova cidade, os espaços privadoseram apenas aceitáveis desde que fossem também cristãos: não necessa-riamente um cristianismo baseado em rituais públicos como acontecianos espaços interiores das casas virados às ruas, mas, ao invés, uma expe-riência mais individual e interior de Deus.

Embora, como tenho estado a argumentar, transformar a identidadede Braga numa identidade cristã fosse de importância primordial paraD. Diogo de Sousa, é interessante notar que a análise das casas tambémrevela outra dimensão identitária: a transformação de Braga numa cida-de nobre.

A ideia de que Braga era uma cidade nobre é algo que se encontra jána Idade Média por referência aos significados da sua muralha. Um dossignificados da muralha é a sua nobreza, devido à sua associação comdissuasão e força (Sousa, 1993: 545). Pode-se igualmente adicionar queas suas torres contribuíam para esse carácter nobre, dado que, por esta-rem perto do Céu, legitimavam a superioridade daqueles que viviamdentro da cidade. Desta forma, estava a ser afirmado ao exterior que acidade e, como tal, os seus habitantes, eram nobres. Todavia, existia acontradição interna de somente algumas das casas da cidade serem no-bres.

As casas nobres na Idade Média eram aquelas que para além do an-dar térreo tinham um andar superior (Vieira da Silva, 2002: 121). Este

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primeiro andar transmitia expressamente a ideia de elevado, de estaracima dos mortais (ibid.: 24), o que é compreensível dado estar maispróximo do Céu. O problema é que em Braga c. 1500 havia um núme-ro significativo de casas que só tinham o andar térreo (Maurício, 2000:45). Na prática, o que isto significava era que algumas famílias erammais nobres que outras. Pior ainda era que as quintas fora da cidadenesta altura só tinham um andar térreo, como se pode ler nas numerosasdescrições dos Prazos do Cabido. Isto certamente causava tensões inter-nas em Braga, uma vez que o que estava implícito era que aqueles quenão viviam em casas com andares superiores estavam ao mesmo níveldos camponeses, ou mais correctamente, desses sub-humanos que vi-viam no Caos fora do espaço sagrado da cidade. Que tal causava tensõese que a existência da muralha não era suficiente para as tornar difusas évisível após a chegada de D. Diogo de Sousa quando a construção decasas com andares superiores tornou-se comum, como se pode ler nasdescrições dos Prazos do Cabido. A documentação desta altura revelaum entusiasmo notável da parte do Arcebispo na promoção de váriosprojectos de construção com vista a aumentar a qualidade do edificadourbano (Maurício, 2000: 101). Esta preocupação pelo Arcebispo em darà cidade um carácter mais nobre e tornar os seus moradores parte destaidentidade pode ser visto como o resultado da sua política de “bompastor”. Também aumentava o prestígio da cidade no mundo exteriorpara além do seu, dado ser senhor de Braga. Quase nenhuma casa comsomente um andar térreo permaneceu. Após o século XVI, encontreisomente um par de casas com somente um andar térreo na R . Verde(uma rua secundária) e mesmo assim não se destinavam à habitação mas,ao invés, para apoiar a actividade hortícola (ADB, Índice, vol. 1: fl.407).

A altura não era a única forma de nobilitar casas: o material tambémcontava. A muralha da cidade é, uma vez mais, elucidativa: o únicomaterial com que foi construída foi pedra, como ainda hoje se pode veralgumas áreas onde ela sobrevive como a torre de Santiago (fig. 13). Deum ponto de vista simbólico, a pedra está associada à dureza e perma-nência, dando a ideia de permanecer inalterada (Eliade, 2002: 164). Namentalidade religiosa este carácter absoluto da pedra revela por analogiao absoluto do sagrado (ibid.). Assim, uma muralha de pedra, mais doque defender a cidade eficazmente contra um ataque externo, afirma ocarácter sagrado da cidade. Contudo, tal como sucedeu com a altura,havia também na Idade Média a contradição interna de somente as casasda elite serem feitas de pedra, como o palácio episcopal (fig. 14), aopasso que a maioria da população vivia em casas feitas sobretudo demateriais perecíveis, como a madeira. Uma vez mais, há semelhançasentre estas casas e as dos camponeses. Embora as descrições dos Prazosdo Cabido não mencionem o tipo de material com que as casas doscamponeses eram feitas, ao que pode ser acrescentado o obstáculo dainexistência de escavações arqueológicos, existem, todavia, algumas fon-tes iconográficas deste período com representações de casas rurais. Umdos mais notáveis é um livro de horas datável da década de 1520 (Livrode Horas de D. Manuel) e aqui pode ver-se que os materiais mais utili-zados eram a madeira e a terra.

Tendo em conta que no início do século XVI ocorre um distintouso de pedra nas novas casas da cidade (Maurício, 2000: 104), pode ver--se aqui, uma vez mais, uma preocupação da parte de D. Diogo deSousa em diluir tensões e criar identidades comuns. Note-se que os con-tratos de arrendamento feitos nesta altura pelo Cabido e Câmara im-põem sistematicamente o uso de certos materiais na construção ou re-construção de casas (ibid.: 101, 103, 104). Contudo, isto não significa

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que daí em diante todas as casas passaram a ser feitas integralmente empedra. Em vez disso, é em relação a certos elementos arquitectónicos,como vãos e cunhais, que o uso da pedra se torna visível (ibid.: 105).Quanto às paredes das casas, embora se note que pelo início do séculoXVI houve um uso mais comum de materiais resistentes como o tijoloe diferentes qualidades de pedra, elas eram rebocadas e caiadas (ibid.:104, 107), pelas razões já explicadas. Não obstante, agora todas as casaspodiam mostrar pedra nas suas fachadas, referenciando e reclamandoassim um estatuto mais nobre.

Que a altura e o material eram importantes por forma a exprimirestatuto é ainda mais enfatizado pelo facto de que durante o século XVIItorna-se comum (mas não sistemático) ler nas descrições das casas dasquintas nos Prazos do Cabido que elas começaram a ser feitas de pedratendo também um andar superior. Igualmente comum é o aparecimen-to de telhados de telha, algo que até então era somente comum nascidades ou em edifícios de estatuto elevado nas zonas rurais. Até então,os telhados das casas dos camponeses eram feitos de colmo. Por outraspalavras, os camponeses não estavam muito satisfeitos por serem vistoscomo sub-humanos pelos senhores locais e pelos habitantes das cidadese começaram a emular as suas casas de modo a afirmar uma igualdade. Aintrodução durante o século XVI do milho (após a descoberta da Amé-rica) na dieta alimentar (Magalhães, 1993a: 258), facilitou certamenteestas mudanças devido à sua alta produtividade e à crescente procura dascidades, sendo que o rendimento financeiro destas actividades permitiua muitos camponeses mudar substancialmente as suas casas. Convémnotar que os estábulos anexos a estas casas continuaram a ser construídoscom madeira e cobertos de colmo – os materiais dos animais.

Embora D. Diogo de Sousa tenha dado um forte contributo parauma melhoria do estatuto social visual de vários habitantes da cidade,convém lembrar que esta era ainda uma sociedade baseada em ordenssociais, com o clero e a nobreza no topo e o terceiro estado por baixo.Como foram mantidas estas diferenças enquanto eram instigadas mu-danças na forma social da cidade?

Em alguns casos foi através do maior tamanho das casas. Já na IdadeMédia, as famílias da elite tinham casas de grandes dimensões, sendoalgo que também ocorria em Braga (ibid.: 44), com o palácio episcopalocupando uma posição proeminente. É importante notar que nestas so-ciedades a grandeza das famílias estava dependente do número de servi-dores que tinha (Carita e Cardoso, 1987: 78). Assim, quanto maior acasa, mais servidores tinha, mais poderosa era. Casas grandes continua-ram a existir ao longo da Idade Moderna, ocupando muitas vezes asesquinas das ruas (como se pode ver no mapa de 1750), tendo destamaneira uma fachada que se estendia ao longo de duas ruas, dando assima impressão de serem ainda maiores.

Outro importante elemento de distinção era a existência de umatorre (fig. 16). As famílias nobres de linhagem antiga tinham direito ater uma torre adjacente à casa por forma a simbolizar o seu estatuto(Vieira da Silva, 2002: 62, 68). Há uma óbvia associação com o prestí-gio do simbolismo da torre. Contudo, é interessante notar que aquelessectores da elite que não tinham meios para adquirir casas grandes ou odireito a ter uma torre, circundavam estas limitações adicionando umsegundo andar superior às suas casas de modo a emular as torres19. Porexemplo, o eixo R . Sousa/ R . Souto era então habitado sobretudo pormembros da elite, tendo muitas das casas dois andares superiores (Mau-rício, 2000: 50, 54). Pode-se ainda adicionar a este exemplo o prestígiode viver numa das estradas reais de Braga. Convém também notar quealguns membros mais opulentos do terceiro estado também imitaram

19 Cheguei mesmo aencontrar a descriçãode uma casa com doisandares superiores,onde se comenta quepor causa do seusegundo andar “sobeao modo de torre”(Prazos do Cabido,tomo 66: fl. 203v;minha ênfase).

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estas acções (e.g. ADB, Prazos do Cabido, tomo 56: fl. 76; tomo 57: fl.34), dado que aspiravam a um estatuto superior.

Outra forma de afirmar uma diferença foi através do uso de escadasexteriores que ligavam directamente a rua com a sala das casas no andarsuperior. As escadas ligam simbolicamente a Terra e o Céu (Chevalier eGheerbrant, 1994: 289-292) e, como se viu antes, o andar superior ti-nha um carácter mais cristão e nobre que o andar térreo, que foi semprevisto como uma área de trabalho20 e, como tal, mais próxima do corpoque da alma. Lendo as descrições dos Prazos do Cabido ou olhando parao mapa de 1750, pode-se facilmente notar que muitas das casas têm assuas portas no andar térreo, o que significa que para ganhar acesso aoandar superior as pessoas tinham primeiro que entrar no andar térreo.Assim, alguns membros da elite, incluindo D. Diogo de Sousa (ADB,Memorial: fl. 330), ao construírem escadas exteriores procuravam evitaresse estigma e seguir directamente da rua para a sala. Convém notar queesta divisão já existia na Idade Média, uma vez que havia casas com duasentradas, isto é, uma para cada andar (e.g. Tombo do Cabido, vol. 1: fls.119v, 120), sendo algo que persistiu durante a Idade Moderna em algu-mas casas. Contudo, como no século XVI as ruas deixaram de ser vistascomo Caos, tornou-se mais seguro ter no exterior as escadas que liga-vam ao andar superior. Desta forma, os membros da elite que seguirameste esquema mostravam de uma forma teatral para a audiência da cida-de que eles não frequentavam lugares “baixos”.

Uma última forma de distinção que pode ser observada nas casasaristocráticas foi a persistência de uma fachada feita integralmente depedra quadrada e rectangular. Esta forma geométrica equivale, como jámencionei, a um mundo estável e organizado. Embora outras casas in-corporassem a figura do quadrado através da sua forma geral e dos seusvãos e cunhais, neste caso, a multiplicidade de pedras quadradas adicio-nava mais prestígio aos seus moradores. A falta de um reboco branco nasparedes destas casas não significa, contudo, que as famílias que lá viviamnão se identificassem com a nova identidade cristã da cidade, uma vezque estas casas apresentavam várias janelas e não invadiam as ruas (ex-cepto no caso específico e pontual das escadas exteriores, as quais situa-vam-se geralmente em praças ou ruas largas).

Assim, por um lado, ao permitir um melhor estatuto social ao ter-ceiro estado de Braga face aos camponeses que viviam nas vizinhanças,e por outro, ao assegurar-se que estas mudanças não afectavam a ordemsocial existente, D. Diogo de Sousa foi capaz de levar a cabo um pro-fundo programa que reconstruiu as identidades sociais da cidade, aoponto de ser possível falar de uma nova cidade (no sentido cosmológicode renovação). Este ponto é importante porque se não houvesse umamplo consenso social relativamente a estas mudanças, muitas delas nãoteriam sido possíveis. Contudo, não foi apenas a área intra-muros quesofreu profundas mudanças nesta altura; o mesmo ocorreu também nosarredores de Braga.

20 Convém notar quetodas as casas desteperíodo estavamorganizadas segundo omesmo esquema.Mesmo quando umedifício era dividido aomeio, a divisão erafeita na vertical (e.g.ADB, Índice, vol. 1: fl.119) e não horizontal-mente, como aconteceactualmente.

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7. A Nova Braga (II)

Como mencionei no capítulo 5, na altura da chegada de D. Diogode Sousa a Braga, a área em redor da cidade estava pontilhada de quin-tas. No entanto, quando ele morreu em 1532, esta área estava comple-tamente diferente, estando preenchida com ruas, largos espaços públi-cos e vários edifícios, como se pode ver no mapa de 1594. É o carácterdestas mudanças nos arredores e as suas relações com a nova identidadede Braga que irei agora analisar neste capítulo.

Um primeiro aspecto que precisa de ser considerado é o de queestas mudanças tiveram lugar numa área que era vista, como argumenteiantes, como Caos. Mesmo a recente revalorização da Natureza nãomudou o estatuto desta área uma vez que a Natureza que era valorizadaera aquela que seguia o modelo santificado do jardim. Os campos culti-vados em redor de Braga onde o odor do estrume era mais forte que ocheiro das laranjas certamente não se encaixavam nesse modelo. Sendoassim, em sociedades com uma abordagem religiosa do espaço, comopode o Caos ser transformado num espaço onde os humanos possamviver? A resposta? Através da transformação do Caos em Cosmos atra-vés da imitação dos rituais de criação (Eliade, 2000: 24, 25).

Olhando cuidadosamente para o mapa de 1594, é possível ver umconjunto de ruas e largas áreas públicas organizado de uma forma circu-lar em redor da muralha da cidade. Assumindo que o simbolismo docírculo está relacionado com a totalidade, com o Cosmos, então o queestá a acontecer através desta organização espacial é a incorporação destaárea na ordem do Cosmos. A cidade e os seus arredores partilham agoraalgo em comum: ambas fazem parte do Cosmos; o Caos recedeu nosarredores embora continue para além deles, como se pode ver no mapade 1594.

Transformar os arredores segundo o simbolismo do círculo não erao único ritual de criação que estava a ter lugar nestas mudanças. Tam-bém é igualmente necessário dar um carácter a este novo Cosmos ecomo a identidade principal de Braga era cristã, não surpreende encon-trar esta área pontilhada com cruzeiros, capelas e igrejas. Este processoera similar ao que estava a acontecer por essa altura com os exploradoresportugueses que estavam a descobrir ilhas e outros continentes que nãoeram cristãos e como tal faziam parte do Caos. Como diz Mircea Eliadequando se refere a estes exploradores, sempre que alcançavam uma des-sas terras reclamavam-na em nome de Cristo através da implantação deuma cruz (ibid.: 25). A colocação de uma cruz era o equivalente à “con-sagração da terra”, a um “novo nascimento” (ibid.). O mesmo estava asuceder nos arredores de Braga.

Estes cruzeiros e edifícios, encontrados em cruzamentos ou no inte-rior de espaços abertos, agiam assim como axis mundi localizados, espa-lhando energia divina para a área em redor (existem ainda outros aspec-tos relacionados com eles que irão ser vistos em breve). Estes lugaressagrados ou eram novas construções ou resultavam da incorporação deoutras já existentes.

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No primeiro caso, há a capela de Santana e a igreja de Nossa Senho-ra a Branca no Campo de Santana (ADB, Memorial: fl. 331) e a igrejado Espírito Santo no hospital de S. Marcos (Figueiredo, ms. [1723-24]:fl. 69). No tocante a cruzeiros, seis foram construídos perto das portas dacidade e um outro junto à leprosaria (ADB, Memorial: fl. 331v-332v).O lhando para o único exemplar sobrevivente destes cruzeiros, o queficava na porta de S. Marcos21 (fig. 17), e lendo uma antiga descrição doque ficava na porta do Souto (AMB, Tombo da Câmara 1737: fl. 97),nota-se que a sua forma e iconografia reflectem o simbolismo do axismundi. Na base estava um pedestal quadrado, no topo um globo circu-lar com uma cruz e no meio uma coluna com oito lados unindo-os. Osimbolismo do número oito encontra-se relacionado com a mediaçãoentre o quadrado e o círculo, ou seja, entre a Terra e o Céu (R éau,1955: 68; Chevalier e Gheerbrant, 1994: 483).

Relativamente aqueles lugares sagrados que já existiam, havia as igre-jas de S. Vicente (para nordeste), S. Vítor (para este) e S. Pedro (parasudoeste), para além das capelas de S. Miguel e S. Sebastião22. Quantoaos outros cruzeiros visíveis no mapa de 1594, somente o que se encon-trava perto da igreja de Nossa Senhora a Branca pode ser identificadocom segurança como já lá estando (ADB, Memorial: fl. 331). Relativa-mente aos outros, com excepção do que se encontra para sudeste, cons-truído após 1570 (Araújo, 2003: 27-29), não sei quando foram feitos,embora sejam provavelmente de origem medieval uma vez que se en-contravam em estradas regionais já existentes que ligavam Braga a ou-tros lugares.

Os limites exteriores dos arredores de Braga estavam bem demarca-dos. Como se pode ver em vários locais no mapa de 1594, onde as ruasacabam e o Caos começa há geralmente uma igreja, capela ou cruz mar-cando essa fronteira. Elas anunciam simultaneamente os limites do Cos-mos sagrado e defendem-no contra as forças do Caos. Contudo, emalguns locais este papel era preenchido pelo rio – chamado Deste23 –que se vê atravessando o mapa de 1594 no sentido este-sudoeste. Osrios, devido ao fluir da água, estão associados à fluidez das formas, o quesignifica que atravessá-los torna uma pessoa em alguém diferente (Che-valier e Gheerbrant, 1994: 569, 570). Desenvolvendo esta ideia, os riospodem ser construídos como separando dois domínios: o mundo dosvivos e o mundo dos mortos (ibid.). Isto é o que pode ser visto na partesul do mapa de 1594, onde o rio separa a cidade (para norte) do Caos(para sul). Aliás, é interessante notar que uma nova forca foi construídaa sul do rio (ADB, Memorial: fl. 333v). Esta mudança de localizaçãotem toda a lógica se se tiver em conta que a área entre o rio e a cidade(onde a forca anteriormente se encontrava), ao tornar-se parte do Cos-mos, já não era mais um local de almas amaldiçoadas. O Memorial men-ciona que a nova forca foi construída num monte, provavelmente omonte Picoto, cujo isolamento e forma cónica chamam facilmente aatenção. A nova localização da forca era igualmente visível à distância,mantendo assim a sua mensagem intimidatória a potenciais criminosos.Um último detalhe curioso: ao contrário da forca anterior, esta tinhauma parede em redor dela (ibid.) por forma a manter as almas danadasbem fechadas.

Sumariando, a saturação de símbolos religiosos nos arredores da ci-dade, tornando-os uma presença constante para quem quer que percor-resse essa área, e a moção circular dos corpos humanos ao longo da redecircular de ruas, criariam a sensação de se estar num Cosmos cristão.

A formação destes arredores é interpretada por outros investigadorescomo uma extensão da cidade medieval, que era até então confinada àárea intramuros (e.g. Bandeira, 2000b: 127; Maurício, 2000: 33, 89,

21 Esta cruz encontra-seactualmente no jardimpor trás do antigopalácio episcopal(Araújo 2003: 22).Quanto aos outroscruzeiros, aqueles queestavam perto dasportas de Santiago eNova foram removidosno início do séculoXVII (vd. capítulo 10),enquanto que aquelespróximos das portas deMaximinos e S.Francisco foramremovidos alguresantes de 1737, uma vezque não são referidosno Tombo da Câmaradesse ano. Embora hajadescrições de 1737 dosoutros dois cruzeiros,no caso do que seencontra perto daleprosaria não se sabese a sua forma era aindaa mesma dado ter sidoreconstruído um poucoantes (AMB, Tomboda Câmara 1737: fl.94v). É bastanteprovável que algunsdos cruzeirosremovidos tenhamsimplesmente mudadode local. Por exemplo,em 1737 havia umcruzeiro com o escudode armas de D. Diogode Sousa na R . S.Vicente perto da igrejaepónima (ibid.: fl. 98),embora no mapa de1594 nenhum cruzeiroseja aí visível.22 A capela de N.ª Sr.ªdo Amparo visível naparte leste do Campoda Vinha no mapa de1594 foi construídadepois de 1532(Oliveira 1999: 71).23 Por vezes tambémconhecido por Aleste,como se pode ler norolo na parte direita domapa de 1594. Emambos os casos osignificado do nome éo mesmo, referindo-seao ponto geográfico –leste – de onde o riofluía em relação àposição da cidade.

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94). Por outras palavras, não há diferenças entre ambas as áreas, as quaissão vistas como fazendo parte do mesmo todo: a cidade. A sua únicadiferença é simplesmente a sua relação espacial: a área mais antiga tor-nou-se o centro, enquanto que a mais recente tornou-se a periferia.Outra distinção é simplesmente chamar à mais antiga intramuros e àoutra extramuros. Esta visão assume simplesmente que qualquer massade casas faz parte de um todo, partilhando assim as mesmas qualidades.Há, como se pode ver, uma ênfase em análises quantitativas, algo típicadas abordagens empiristas. Todavia, tal não é a minha perspectiva. Sebem que ambas as áreas partilhem o mesmo Cosmos, não concordo queambas possam ser vistas como uma cidade una. Como tal, vou argu-mentar nas próximas linhas que havia profundas diferenças qualitativasentre ambas as áreas, as quais contam uma história diferente relativa-mente aquilo que na altura constituía uma cidade.

Existem algumas incongruências entre ambas as áreas, que questio-nam seriamente a ideia de uma continuidade entre elas. Uma delas é amuralha. Tendo em conta que o seu papel principal é o de delimitar oslimites da cidade, questiono-me então por que razão não foi objecto demudanças. Ao assumir-se a existência de uma continuidade entre ambasas áreas, a muralha deveria então ter sido desmontada e reconstruída noslimites dos arredores. Em alternativa, a muralha teria sido desmontada,mas ao invés de se construir uma nova, os símbolos separando os arre-dores do Caos seriam suficientes para marcar os limites da nova cidade.No entanto, a velha muralha permaneceu, separando a antiga e a novaárea urbana.

Outra anomalia é a colocação de cruzeiros perto das portas da mura-lha. Como mencionei no capítulo 5, um dos papéis da muralha era aprotecção da comunidade dos ataques do Dragão. Tendo em conta queas portas são o ponto mais fraco de uma muralha, a colocação de cruzei-ros em frente delas era um reforço simbólico contra esses ataques24.Contudo, se ambas as áreas são iguais, não deveriam os símbolos religio-sos de protecção ser colocados somente nos limites exteriores de toda aárea urbana? Porquê então adicionar protecção extra à área originalintramuros? Ao assumir-se a existência de uma continuidade entre asáreas dentro e fora das muralhas, esta acção não faz qualquer sentido. Anão ser, claro, que ambas as áreas fossem qualitativamente diferentes.

A análise das casas encontradas em ambas as áreas também é bastantereveladora. Começando pelas semelhanças, ambas partilham um telha-do com telhas, paredes com reboco caiado, vãos quadrangulares e rec-tangulares e são bem iluminadas, ao contrário das casas colmaças e escu-ras dos camponeses que são sempre representadas com apenas uma por-ta. Até aqui nada de inesperado dado que ambas as áreas partilham omesmo Cosmos cristão. O que é interessante é a diferença relativamen-te à existência de andares superiores. Enquanto na área intramuros, pra-ticamente todas as casas têm um ou dois andares superiores, na áreaextramuros é comum encontrar, da leitura dos Prazos do Cabido , casascom apenas o andar térreo. Aliás, esta situação ainda persistia em 1750,como se pode ver no mapa da cidade desse ano, onde cerca de umquarto das casas representadas na área extramuros têm apenas o andartérreo25 (Oliveira, 1993: 32). Contudo, como argumentei antes, nota-seque no início do século XVI foi feito um esforço notório no sentido deimpedir a existência de casas com apenas um andar térreo no espaço dacidade. Sendo assim, então por que é que este esforço é executado naíntegra na área intramuros, ao passo que na área extramuros existe umamaior tolerância, permitindo-se casas com apenas o andar térreo? Seambas as áreas fossem vistas como cidade, então a existência de um nú-mero substancial de casas sem andares superiores poria em questão a

24 Não há aqui umacontradição relativa-mente aquilo que foidito antes acerca destescruzeiros dado que, sea intenção era somenteconsagrar uma área,não haveria necessida-de de os colocar emfrente das portas; umqualquer outro lugarna vizinhança seriasuficiente. Somente ocruzeiro perto da portade S. Franciscoencontra-se um poucodeslocado por forma atambém santificar oCampo da Vinha. Estescruzeiros têm assim umpapel duplo.25 Eduardo Pires deOliveira sugere quemuitas destas casaseram usadas para apoiara actividade agrícola enão como moradias(1993: 32). Nemsempre, dado que écomum encontrardescrições mencionan-do a existência de umacozinha e quarto, oque mostra que haviapessoas a viver lá.

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tentativa de construção de uma identidade urbana que clamava ser nobre.Há ainda outras anomalias interessantes nos novos espaços públicos

na área extramuros. Uma delas diz respeito aos nomes desses espaços:são todos conhecidos por Campos. É notório o contraste quando secompara com os nomes atribuídos aos espaços públicos da área intra-muros: Praças. Ao designar-se por “Campos” os espaços públicos extra-muros, estas áreas são associadas ao terreno onde a agricultura é pratica-da, algo que não devia acontecer nas áreas públicas de uma cidade, nasquais era suposto celebrarem-se eventos comunitários. Esta associação éainda mais reforçado pela existência em alguns destes Campos (Vinha,Santana e S. Sebastião) de árvores, enquanto na área intramuros não hánenhuma em espaços públicos. Embora houvesse nesta altura uma valo-rização da Natureza, o que predomina nos espaços públicos da área in-tramuros é a luz, a qual está mais próxima de Deus. A natureza encon-tra-se apenas nos espaços privados das casas.

Outra anomalia nos espaços públicos da cidade é a sua forma. En-quanto na área intramuros os espaços públicos construídos nessa altura,como a Praça do Pão ou aquelas na entrada norte da Catedral e naentrada principal do palácio episcopal, eram quadradas ou rectangulares,a forma daquelas construídas na área extramuros era irregular, isto é,não-geométrico. O quadrado, como já mencionei no capítulo anterior,é o símbolo da Terra, de um mundo estável e ordenado. Isso é visível,por exemplo, nos quarteirões rectangulares das cidades medievais; nosclaustros quadrados dos mosteiros e catedrais; nos planos quadrados ourectangulares das casas e nos pátios quadrados em redor dos quais algu-mas casas eram organizados. Assim, como se pode ver, existe uma pro-funda diferença na organização dos espaços públicos nas áreas intra eextramuros que questiona a existência de uma continuidade conceptualentre ambas. Enquanto a primeira apresenta um carácter estável (ao quese pode acrescentar a forma em cruz dos seus eixos principais, a qualtambém se encontra relacionada com o simbolismo do quadrado, dadoque também estabiliza um espaço), a última apresenta um carácter maisfluido, mais próxima do Caos.

Uma anomalia final é a de que as descrições dos Prazos do Cabidodesignam a área intramuros de “cidade”, enquanto que a área extramu-ros é designada por “arrabaldes”. Se ambas fossem a mesma, porque nãochamar simplesmente “cidade” aos arredores?

Julgo que a lista acima mencionada de anomalias é suficiente paraquestionar a tese que a área extramuros era uma extensão da cidade deBraga, partilhando assim com a área intramuros os mesmos atributos. Acidade de Braga continuava a ser delimitada pela muralha. Se bem queambas as áreas fizessem parte do Cosmos cristão, partilhando atributoscomo estarem dentro de um círculo e terem igrejas, capelas e cruzeiros,havia outros aspectos onde elas contrastavam fortemente. Todavia, a áreaextramuros não era o Caos, dado que tinha alguns dos atributos da cidade.Assim, se não era nem cidade nem Caos, o que é que ela era afinal?

A minha resposta é que era uma “paisagem do meio”. As paisagensdo meio, também conhecidas por Jardins, são uma velha ideologia, jáexistente no mundo Clássico (Cosgrove, 1993). Elas fazem parte de umanarrativa mítica na qual a paisagem social

distribui-se espacialmente através de um padrão cósmico e concêntricode (…) três paisagens míticas, cada uma representando uma intervenção pro-gressivamente maior de desígnio e trabalho humano nas formas e padrões da(…) superfície [da Terra]. No centro desta geografia mítica está a cidade, [deseguida] os arredores ajardinados e cultivados, graduando finalmente numermo intocado (ibid.: 293; minha tradução).

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Nesta paisagem arquétipa tripartida, a Cidade é o domínio do poderpolítico e cultural, sendo a sua paisagem “divorciada da vida orgânica,um mundo de pedras, colunas e monumentos, de palavras, de textos(…) [cujo padrão] é modelado na pura geometria intelectual dos céus”(ibid.: 296). Quanto à paisagem do meio ou Jardim, trata-se de umaárea com uma Natureza cultivada e amorosamente controlada, sendocomo tal menos tocada pela intervenção humana e estando mais próxi-ma da ideia de Paraíso (ibid.: 291, 296). É a paisagem da “economiadoméstica, da família amorosa e da vida privada dos cidadãos” (ibid.:296; minha tradução). A sua posição mediana também faz dela “o localde uma saudosa nostalgia, um lugar de efémera admiração juvenil balan-çada entre a inocência da infância e a idade cínica” (ibid.: 297; minhatradução); basta recordar os primeiros dias de Adão e Eva no Éden.Quanto ao ermo, a zona mais afastada da Cidade e da vida cívica (ibid.),partilha as características do Caos26.

A reorganização da paisagem de Braga com a adição de um Jardim,explica melhor as anomalias acima mencionadas. D. Diogo de Sousaestava, assim, a recuperar uma ideia do mundo Clássico e a reorganizarBraga em função da dualidade Cidade/ Jardim, algo facilitado pela mu-dança de atitude face à Natureza, mencionada no capítulo anterior. Jul-go ser útil fazer uma analogia entre a Cidade/ Jardim e a dualidade cristãda alma/ corpo. Assim, a Cidade, sede do poder político e cultural, alémde passar a ter um carácter espiritual, como se viu no capítulo anterior,passou a ser a “alma” de Braga, dado estar mais próxima daquelas queeram vistas como as dimensões mais altas da existência humana. Já oespaço extra-muros tornou-se o Jardim, mais próximo do “corpo”, davida orgânica. Mas, em que constava esse Jardim no contexto da Bragade inícios do século XVI? No sentido Clássico da palavra, o Jardim eraum lugar onde os humanos tomavam conta e complementavam os pro-cessos da Natureza. Contudo, no caso de Braga, isto não pode ser assu-mido de uma forma literal dado que apenas algumas árvores são visíveisnos seus espaços públicos.

A análise da relação entre o estatuto social dos habitantes e a suadistribuição espacial é mais reveladora. Começando pela Cidade, se-gundo o Índice, cerca de 54% das rendas foram pagas por clérigos enobres, 14% por burocratas e mercadores (os estratos mais elevados doterceiro estado) e os restantes 31% por mesteirais (Bandeira, 2000b: 53).Estes números são um pouco relativos dado que não têm em conta al-gumas casas que não pertenciam ao cabido. Não obstante, eles apontamclaramente para o facto de que a maior parte da população que entãovivia na Cidade pertencia aos estratos sociais superiores. Tal constituiuma completa inversão do padrão das cidades medievais, nas quais osmesteirais constituíam a maioria. Isto mostra que o crescimento da po-pulação que ocorreu por esta altura através da abertura de novas ruasresultou sobretudo da imigração de membros da elite. Além disso, mui-tas das casas arruinadas que existiam nessa altura na Cidade foram adqui-ridas e reconstruídas pelas elites (Maurício, 2000: 100). Houve tambémalguma aquisição da parte das elites de casas existentes. Um exemplo é aR . Souto, a qual em finais do século XV era socialmente mista e noséculo XVI era habitada sobretudo por membros dos estratos superiores(ibid.: 47, 54). É interessante notar que D. Diogo de Sousa não proibiuas famílias nobres de entrar em Braga, embora elas fossem todas de famí-lias secundárias, dado que nenhum nome importante se encontrava aviver em Braga. A razão é óbvia, se nos recordarmos dos eventos definais da década de 1470: o Arcebispo não estava interessado em ne-nhum competidor. E quanto aos mesteirais? Lendo o Índice, constata--se a presença de um grande número deles, o que indicia que também

26 Daqui em diante, apalavra “Cidade” com“C” maiúsculo será usada apenas quando semencionar o espaço deBraga com essa qualida-de. As palavras “cidade”com “c” minúsculo e“Braga”serão usadaspara denominar o con-junto Cidade/ Jardim.

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houve uma importante imigração de membros deste grupo para Braga.No entanto, ao contrário do que se passava na Idade Média, os mesteiraispassam a estar concentrados no Jardim, o que explica o seu númerorelativamente reduzido na Cidade.

A divisão entre ambas as áreas segundo grupos sociais é claramentevisível aqui. Assim, a Cidade – centro do poder e mais próxima dos céus– era habitada sobretudo pelas elites sociais. Estas estavam particular-mente concentradas em ruas como a do Sousa, Souto, Santa Maria, S.Marcos (Bandeira, 2000b: 53), as quais eram os principais eixos da Ci-dade; o terceiro estado estava, é claro, concentrado sobretudo em ruassecundárias. Quanto ao Jardim, onde os humanos complementavam aNatureza através do seu trabalho físico, tornou-se o local mais apropria-do para as actividades económicas dos mesteirais. Estes não estavam aser rejeitados, uma vez que faziam parte do Cosmos cristão e a sua acti-vidade era essencial à boa saúde da sua dimensão material; estava-se-lhessimplesmente a mostrar, através de uma divisão espacial, qual era o seupapel na sociedade de Braga.

Esta divisão segundo o estatuto e papel social não foi a única coisa queresultou desta dicotomia Cidade/ Jardim. A análise dos espaços públicosfora da muralha indica que certas actividades foram concentradas nestazona de Braga. Começando pelo de grande dimensão que se encontra anorte – Campo da Vinha –, esta área é o resultado da transformação deuma vinha previamente existente (daí o seu nome) num espaço dedicadoao descanso, conversa e passeios relaxados (Oliveira, 1999: 71). Há aquiuma influência do romano Virgílio e da sua defesa dos prazeres simplesfora das cidades, locais devotados a conversas ociosas onde as pessoas pu-dessem descansar da artificialidade da vida citadina (cf. Duby, 1993: 264).No caso do Campo da Vinha, é possível ver a existência de árvores nestaárea no mapa de 1594, algo que o faria assemelhar-se a um jardim. Basica-mente, o que se tem aqui é o equivalente comunitário dos jardins priva-dos que podiam ser encontrados nas traseiras das casas.

Outro espaço público de grande dimensão pode ser visto para lesteda Cidade, para além da porta do Souto: o Campo de Santana. Esteespaço, argumento, era o grande ponto de encontro entre aqueles queviviam no Cosmos de Braga e aqueles que viviam fora dela. Uma vezque estes últimos não partilhavam a mesma “alma” com Braga, o localde encontro apropriado, para que não houvesse nenhuma poluição es-piritual, era obviamente o mais material: o Jardim. Um conjunto deestruturas pode ser encontrado neste espaço público27, por intermédiodas quais o contacto era estabelecido.

Para começar, esta área tornou-se o principal centro comercial deBraga, dado que era aqui que muitos mercadores itinerantes de outrasparagens iam vender os seus produtos. Segundo o Memorial, por formaa impulsionar esta actividade, o Arcebispo ordenou a construção de al-gumas estruturas perto da porta do Souto para apoiar as actividades des-tes mercadores: uma lugar para descansarem, estábulos para os animais eum alpendre para comerciar (fl. 331v). Estruturas semelhantes foramigualmente construídas perto da porta Nova (fl. 333), embora esta áreanão tivesse as mesmas dimensões e complexidade que o Campo deSantana tinha. Note-se que em ambos os casos, essas estruturas encon-travam-se fora das muralhas, uma vez que estes mercadores não eram deBraga. Finalmente, como a forte actividade comercial gerada aqui atrai-ria pessoas de diversos locais, quem quer que por qualquer razão tivesseque entrar na Cidade, fá-lo-ia directamente através do eixo R . Sousa// R . Souto, a mais importante e impressionante estrada real de Braga.

Toda esta actividade comercial atraía vários géneros de pessoas rela-tivamente às quais a Igreja tinha dúvidas quanto à sua religiosidade. Ha-

27 Excepto a fonte, quefoi construída em finaisdo século XVI (v.capítulo 9).

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via mercadores, com reputação de querer enriquecer a qualquer custo;artistas e actores, com reputação de libertinagem; ladrões e prostitutas(Minois, 2004: 205). Com tais maus exemplos tão perto da Cidade, oArcebispo não podia ficar passivo. Segundo o Tombo da Câmara, ocruzeiro em frente à porta do Souto e, como tal, próxima da área co-mercial, tinha duas estátuas no seu topo: uma representando Cristo nacruz, enquanto que a outra era uma representação da Virgem Marianuma postura de Pietá (fl. 97). É interessante notar que o cruzeiro naporta de S. Marcos, uma área não comercial, não tinha qualquer estátuana sua parte superior. Como tal, parece ter havido, ao colocar-se a está-tua perto da porta do Souto (e talvez também uma igual perto da portaNova), uma intenção consciente da parte do Arcebispo de catequizar,por via do sofrimento de Cristo na cruz, as pessoas que lá fossem, paraconvencer aqueles que duvidavam das virtudes do seu sacrifício. Quan-to à estátua da Virgem Maria, foi criada a pensar sobretudo na metadefeminina da população, representando o sofrimento da mãe pela mortedo filho.

Outra estrutura que foi construída na mesma altura perto da portado Souto, em substituição de uma mais antiga que se encontrava dentroda cidade, foi o pelourinho (ADB, Memorial: fl. 331v). Este era basica-mente um poste (visível no mapa de 1594) onde os criminosos erampunidos e expostos ao público. Estas punições eram sempre públicas porforma a mostrar que a Justiça funcionava e intimidar potenciais crimi-nosos. A sua construção nesta área resultou, do meu ponto de vista, deduas circunstâncias: uma, era que com a Cidade a adquirir nesta alturaum carácter de “alma”, as actividades que envolviam punições físicasdeixaram de ser apropriadas para esta área. Como tal, o seu lugar deviaser na área do Cosmos de Braga onde havia uma maior proximidadecom o mundo físico: o Jardim. A outra, era que sendo o Campo deSantana o espaço público fora da muralha onde havia mais movimentode pessoas, tanto de Braga como fora dela, era, como tal, o local maisconveniente para implantar o pelourinho. A sua proximidade à área co-mercial tornava-o claramente visível para toda a gente, em particularpara aqueles indivíduos mais problemáticos que não se arrependessemquando vissem as estátuas de Cristo e Maria. A sua posição perto daporta torná-la-ia igualmente visível para quem quer que passasse da Ci-dade para esta área.

Cobrindo esta área próxima da porta do Souto, estava a grande massado castelo construído no século XIV. Se bem que os castelos pudessemservir como locais de refúgio, como aconteceu em Braga na década de1470, era mais comum servirem como fortes afirmações de poder dosseus senhores – no caso de Braga, os arcebispos –, sendo que o castelode Braga, com as suas torres e muralhas feitas de pedra, transmitia certa-mente uma ideia de força. Assim, D. Diogo de Sousa, ao certificar-seque o castelo estava integrado neste espaço público, estava a afirmar asua autoridade a uma enorme audiência. A proximidade do castelo dasestruturas que suportavam actividades comerciais e judiciais tornava asua presença mais imponente. Por forma a torná-lo ainda mais impres-sionante, as muralhas do castelo, que até então eram feitas de pedrairregular, foram reconstruídas com pedra esquadriada (ibid.: fl. 331v).Desta forma, o prestígio do simbolismo do quadrado foi associado como castelo (cujas torres já eram quadradas).

A estrutura mais notória do Campo de Santana era a capela de San-tana, a meio dela. O edifício tinha oito lados e era cercado por dozecolunas (colocadas numa forma circular, como se pode ver no mapa de1594) com inscrições datadas do período romano e que tinham sidorecolhidas das ruínas romanas da antiga Bracara Augusta ou de outros

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locais na vizinhança de Braga (ADB, Memorial: fl. 331). Algumas lápi-des romanas com inscrições foram também inseridas nas paredes da ca-pela (ibid.). Estas referências explícitas ao passado romano da cidademostram que o propósito desta estrutura não era somente o de fazer oespaço envolvente sagrado. Qual era então a intenção de D. Diogo deSousa ao construir esta capela?

Um ponto de partida para responder a esta questão são as própriascolunas romanas. Convém notar, antes de mais nada, que as colunasromanas eram apenas um sortido de diferentes tipos (miliares e come-morativas) que estavam fora do seu contexto original (Cunha, 1634-35:11-20).

O elemento do passado que mais se destaca nestas colunas são asletras. As letras, ou de uma forma mais abstracta a Palavra, são todo--poderosas na tradição cristã. Elas têm poder criativo (foi através da Pa-lavra que Deus criou o mundo) e são o meio de comunicação com ahumanidade (a Bíblia) (Chevalier e Gheerbrant, 1994: 501, 502). Nocaso específico de Braga, as letras das colunas não são umas letras quais-quer: elas são letras romanas que recuam aos dias “perfeitos” do impérioromano, sob o qual tanto Braga como a Cristandade nasceram e tiverama sua primeira existência estabelecida. Há, assim, uma tentativa de legi-timar o poder e o prestígio de Braga através da referência a um passadoilustre e antigo.

O ponto seguinte é o número de colunas – doze –, o qual não écasual. Doze é o número de eleição, do povo de Deus, da Igreja (Fer-guson, 1966: 154; Chevalier e Gheerbrant, 1994: 272). Quando Jesusescolheu doze discípulos proclamou, em nome de Deus, a intenção deescolher um novo povo (Chevalier e Gheerbrant, 1994: 272). A dispo-sição circular destas colunas também afirma através do simbolismo docírculo a inexistência de diferenças entre este povo: são todos um emDeus. Tendo em conta que isto é Braga, é o povo de Deus – a Igreja deBraga – que se encontra representada aqui. As colunas, que eram caiadas(Argote, 1732: 244), partilhando assim do simbolismo do branco, e quetinham um carácter de axis mundi, mostram as fundações fortes e purasda Igreja de Braga.

Os dias “perfeitos” dos primórdios estão, como tal, de volta, com acapela de Santana, a meio do círculo, actuando como garante de tal.Note-se também que a capela tem um plano central e oito lados, umaforma encontrada em baptistérios de alguns edifícios religiosos paleo--cristãos e onde o sacramento do baptismo era executado. Desta forma,há, uma vez mais, uma clara referência às origens, com a capela actuan-do como mediador, não só entre o Céu e a Terra, mas também, nestecaso, entre a Antiga e a Nova Braga, com as lápides romanas inseridasnas paredes a reforçarem essa ligação.

É bastante provável que D. Diogo de Sousa se tenha inspirado autilizar restos do mundo Clássico na sequência de duas visitas que fez aR oma em 1493 e 1505, onde certamente observou como o passadoromano estava a ser utilizado pelos papas para criar uma nova Roma. OArcebispo estava assim a emular R oma e a colocar Braga ao mesmonível.

A referência ao passado romano não era a única coisa da Antiguida-de através da qual o Arcebispo emulou Roma. O último edifício públi-co no Campo de Santana – a igreja de Nossa Senhora a Branca, no seulimite leste – refere-se ao episódio em que a Virgem apareceu no calordo Verão no Monte Esquilino em R oma, branquando-o com neve,mostrando o seu desejo que fosse ali construída uma igreja dedicada aela (Carvalho da Costa, 1706, vol. I: 155). A igreja que aí veio a serconstruída, Santa Maria Maggiore, é considerada a primeira igreja cristã

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dedicada à Virgem Maria. O culto de Maria tornou-se de enorme im-portância no decorrer da Idade Média dado que, sendo simultaneamen-te mãe e mulher de Deus, era a principal intercessora da humanidadejunto de Deus (Duby, 1993: 155, 156). Aliás, a importância de Mariaera tal que a Igreja identificava-se fortemente com ela; a Igreja era ocorpo de Maria (ibid.: 156). A Igreja torna-se, como tal, a mulher naqual Deus faz-se carne através de Jesus; por intermédio de Maria, a hu-manidade une-se a Deus (ibid.). Esta identificação entre Maria e a Igrejaacaba por celebrar a soberania da Igreja Católica R omana (ibid.). Ten-do em conta a importância deste culto entre os católicos, torna-se maiscompreensível que D. Diogo de Sousa tenha ordenado a construçãodesta igreja. Ao evocar-se o episódio do aparecimento da Virgem noMonte Esquilino, a antiguidade do seu culto em Braga estava também aser afirmada. Desta forma, Braga proclamava-se como um dos grandespalcos da história religiosa cristã, ao mesmo nível que Roma, algo queera obviamente prestigioso para a cidade.

Estes dois últimos edifícios permitem compreender melhor a razãopela qual este espaço público foi chamado de Campo de Santana. SantaAna era mãe de Maria e avó de Cristo, as duas figuras mais emblemáticasdo catolicismo. Ela está, como tal, fortemente associada às origens docatolicismo, com o nascimento primordial. No caso deste Campo, oseu nome está a ser tomado de empréstimo de modo a enfatizar as men-sagens que estão a ser comunicadas acerca das origens prestigiosas deBraga.

Mas, para que audiência era este complexo programa no Campo deSantana dirigido? Certamente para aqueles que residiam fora de Braga.Contudo, não havia gente de todo o mundo que se dirigisse com fre-quência a Braga. Haveria alguns grupos em mente quando este progra-ma foi organizado? Uma forma de responder a esta questão é ver deonde são provenientes as estradas que vêm dar a este Campo: nordeste,leste e sudeste. As primeiras duas faziam parte de estradas regionais quecruzavam o norte de Portugal numa direcção leste-oeste, correspon-dendo assim com o território que pertencia à arquidiocese de Braga.Note-se que Braga estava próxima da costa, o que levava a que estasestradas ligassem a maior parte dos lugares que estavam sob a sua jurisdi-ção. Quanto à outra estrada, leva directamente a Guimarães, a maiorcidade da arquidiocese. A Igreja de Braga tinha frequentes disputas como Cabido de Guimarães porque este último considerava-se fora da juris-dição de Braga e sob a autoridade directa de Roma, algo que a Igreja deBraga não aceitava (Soares, 1983: 6; 1997: 63). Assim, do meu ponto devista, estas constituiam as duas principais audiências deste programa; apopulação da arquidiocese em geral e a de Guimarães em particular.Note-se que não existe um programa semelhante na estrada para sudo-este, que segue para a cidade do Porto, a maior do Norte de Portugal, e,para além dela, para a capital do reino, Lisboa. O Arcebispo estava, as-sim, mais preocupado em reafirmar a autoridade da Igreja de Braga noseu território após um período de fraqueza28.

O último espaço fora da muralha de que irei falar é o Campo dosRemédios, para sudeste da Cidade, em frente à porta de S. Marcos. Foiaqui que um hospital de grandes dimensões dedicado a S. Marcos foiconstruído (ADB, Memorial: fl. 32). Parece que o nome desta área serelacionava com a existência prévia de uma pequena capela medievalneste local alegadamente contendo o túmulo de S. João Marcos, bispocristão e mártir, que praticou todo o género de milagres na cura deenfermidades físicas daqueles que procuravam a sua protecção (Figuei-redo, ms. [1723-24]: fl. 69v). Assim, este espaço público ao contráriodos outros no Jardim, era dedicado à cura de doenças físicas, embora, à

28 Ainda dentro destetópico de afirmaçãoface a outras cidades doterritório, convémnotar que o edifício daCâmara de Braga tinhadois andares superiores,ao passo que as câmarasde outras cidadesimportantes desteterritório, comoGuimarães e Viana doCastelo (cujos edifíciosainda estão intactos),tinham somente umandar superior.

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semelhança dos outros, estivesse relacionado com aquilo que se consi-derava a dimensão material da vida. Uma característica interessante des-te hospital é de que não era apenas mais um hospital a juntar aos exis-tentes. Pelo contrário: D. Diogo de Sousa incorporou neste hospitaltodos os hospitais que até então tinham existido em Braga (ADB, Me-morial: fl. 32) – por outras palavras, criou um hospital central. Destamaneira, a divisão de cuidados que tinha existido anteriormente foi co-locada de lado em favor de um hospital unificado que servia toda apopulação da cidade bem como peregrinos procurando abrigo.

A administração deste hospital foi inicialmente dada à Câmara deBraga, embora em 1559 tenha passado para a Misericórdia (O liveira,1999: 169). Esta instituição apareceu inicialmente em Lisboa em 1498 eo seu modelo depressa foi copiado por outras cidades portuguesas (Al-meida 1993: 186-189), alcançando Braga por volta de 1513, estandoinicialmente instalada no claustro da Catedral29 (Oliveira, 1999: 119). Oprincipal propósito desta instituição era a prática de obras de misericór-dia (Almeida, 1993: 186). Estas eram catorze: sete espirituais e sete cor-porais (note-se a referência ao número sete, o número perfeito, atravésdo qual a humanidade une-se a Deus). R elativamente às primeiras, elaseram: ensinar os simples, dar bom concelho a quem o pede, castigarcom caridade os que erram, consolar os tristes e desconsolados, perdoaros que ofendem, sofrer injúrias com paciência e rogar a Deus pelos vi-vos e pelos mortos (ibid.). R elativamente às últimas: remir os cativos evisitar os presos, curar os enfermos, cobrir os nus, dar de comer aosfamintos, dar de beber aos sequiosos, dar pousada aos peregrinos e po-bres e enterrar os mortos (ibid.). Por outras palavras, as Misericórdiasestavam vocacionadas para a prática da virtude cristã da Caridade paracom os elementos mais pobres da sociedade. A introdução desta insti-tuição permitiu, como tal, a uniformização e ordenação dessas práticasem Portugal (ibid.: 185).

R elativamente aos seus membros, a aristocracia e o terceiro estadodeviam estar sempre representadas, metade de cada lado. Esta aparenteigualdade esconde o facto de o provedor dever sempre ser um membroda elite (ibid.: 187), o que significava na prática que estas instituiçõeseram controladas pela elite. No caso de Braga, os arcebispos tinhamsempre uma palavra a dizer na administração da Misericórdia (e.g. Cos-ta, 1993: 74; O liveira, 1999: 71). Não obstante, a associação de umnúmero igual de membros da elite e (dos estratos superiores) do terceiroestado, e a ajuda dada aos membros mais pobres da sociedade, fizeramdesta instituição um garante do equilíbrio e ordem social (Almeida,1993: 193).

Esta última observação, no caso de Braga, pode ser ainda mais desen-volvida ao tomar em consideração o nome dado ao novo hospital: Espí-rito Santo. Esta referência ao Espírito Santo é bastante interessante umavez que aponta para os trabalhos do monge Cisterciense Joachim deFlore. Ele defendeu no século XII uma teoria na qual a história da hu-manidade era um progresso linear em direcção a uma era de paz, des-canso e contemplação: a Idade do Espírito Santo (Minois, 2000: 222--225). Ele considerava que entretanto os humanos viviam noutra era – aIdade do Novo Testamento ou do Filho –, que começara com a vindade Cristo. O período anterior a este – a Idade do Velho Testamento oudo Pai – era o primeiro da história humana (ibid.). Esta teoria não foicertamente bem vista pela Igreja, a qual, apesar de também ter umanoção linear de tempo, considerava que a presente idade era a últimaantes do fim do mundo e que mais nenhuma mudança era possível (ibid.:226, 227). Infelizmente para a Igreja, os muitos descontentes por essaEuropa fora com a ordem senhorial adoptaram este esquema na crença

29 Actualmenteconhecida porMisericórdia Velha(Oliveira 1999: 119).

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que uma outra idade era possível, uma idade com uma nova religião,livre, espiritual e sem hierarquias (ibid.: 270-274). Rebeliões e fermen-to religioso tornaram-se uma constante após finais do século XIV, emparticular na Europa Central (ibid.). No caso de Braga (e Portugal), sebem que fosse do interesse da elite preservar a ordem social existente,havia igualmente o risco de uma subversão violenta. Assim, no iníciodo século XVI, parece haver um compromisso entre ambas as posições:a Idade do Espírito Santo tinha chegado, como o nome do hospitalindicava, contudo, em vez de igualdade, havia a virtude cristã da Cari-dade. Esta, era uma caridade que se pretendia que fosse genuína e nãocínica; daí a cuidadosa organização das Misericórdias. Todavia, a ordemsocial existente e as suas desigualdades, acabaram por persistir. Aliás,basta notar que o hospital foi construído no, e tomou o seu nome do,túmulo de um bispo. Note-se aqui uma valorização da figura episcopal,mas desta vez como curador de doenças físicas.

Tem interesse notar que enquanto nos programas da Catedral e doCampo de Santana há uma ênfase no tempo circular com um regressoda perfeição dos inícios, aqui, há, ao invés, um tempo linear progres-sivo que termina numa era de plenitude. Por outras palavras, para di-ferentes dimensões da actividade do Arcebispo, ora se regressa à Idadedo Ouro Clássica, ora se projecta o futuro numa fraternal Idade doEspírito Santo.

A ênfase na caridade também trouxe mudanças relativamente à po-sição das leprosarias. As mais velhas foram abandonadas e uma nova foiconstruída (ADB, Memorial: fl. 332), sem surpresa designada de S. Lá-zaro, no espaço do Jardim, perto do hospital. É assim dada mais digni-dade aos leprosos, embora seja útil notar que eles permaneceram fora daárea espiritual de Braga. É possível ver nesta atitude face aos leprosos ainfluência da Ordem de S. Francisco, que os defendia e era a campeã daspráticas da caridade entre os católicos. Aliás, esta Ordem tinha-se tam-bém instalado por esta altura em Braga, tendo o Arcebispo apoiado aconstrução de um mosteiro franciscano a cerca de 1.5 km a noroeste deBraga em S. Frutuoso (ibid.: fl. 332v), bem como uma casa vizinha paradar apoio a peregrinos (ibid.: 333v, 334v).

Concluindo, como se viu ao longo deste e do capítulo anterior,ocorreu uma profunda redefinição do carácter do espaço de Braga e dasua identidade no início do século XVI sob a liderança de D. Diogo deSousa, cujas acções foram bastante mais complexas do que análises ante-riores haviam sugerido. Contudo, se o Arcebispo estava a contar queesta nova cidade marcaria a (re)emergência de uma era de plenitude e ofim da história então ele estava errado, como os seus sucessores depressadescobririam.

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8. A R eforma Católica

Apesar dos melhores esforços da parte de D. Diogo de Sousa paraconstruir a (na sua perspectiva) cidade ideal, Braga fazia parte de umacomplexa rede, o que significava que a interacção com outros elemen-tos faria dessa estabilidade uma situação temporária. Como tal, na déca-da de 1540, começou a tornar-se evidente para a elite da cidade que umconjunto de circunstâncias estava a ameaçar a identidade cristã, ou maiscorrectamente católica, de Braga. Assim, nas décadas seguintes um con-junto de medidas foi tomado por sucessivos arcebispos, coadjuvados peloCabido e Câmara, por forma a reafirmar essa identidade. Estas medidaspodem ser vistas como fazendo parte de um movimento de reformamais alargado que estava então a ocorrer na Europa católica e que maistarde ficou conhecido por Contra-R eforma embora R eforma Católicaseja um termo mais apropriado uma vez que houve uma completa reor-ganização da vida católica e não somente diferenças teológicas com osprotestantes (Tourault, 1998: 215).

No caso de Braga, as circunstâncias para tal foram as seguintes: aR eforma Protestante, o cripto-judaismo e um persistente paganismo.

Começando com a primeira delas, o movimento protestante teveinício em 1517 por iniciativa de Martinho Lutero na Alemanha. A dou-trina deste monge pode ser basicamente resumida em três pontos: um, éque a salvação é obtida somente pela fé, sendo a prática de boas obrasinútil (Tourault, 1998: 206). O segundo é o de que todos os cristãos sãoiguais através do baptismo, algo que os fazia a todos padres e, como tal,parte da ordem eclesiástica (ibid.). Quanto ao terceiro ponto, há umarefutação da autoridade espiritual do papa e da Igreja, passando a serpossível a qualquer cristão ler e compreender o verdadeiro significadoda Bíblia (ibid.). Estas teses eram obviamente inaceitáveis para a IgrejaCatólica. Esta não era a primeira vez que a doutrina oficial da Igreja eraquestionada, dado que isso foi uma constante ao longo da Idade Média(ibid.: 86-90, 152-156, 193-196). Contudo, quer através do diálogo,quer através da força, todos estes desafios anteriores tinham sido even-tualmente resolvidos, com a Igreja mantendo a posição predominantena Europa. Todavia, desta vez as coisas foram diferentes: as ideias pro-testantes espalharam-se depressa e na década de 1540 a maior parte daEuropa do Norte estava separada da autoridade espiritual da Igreja. Istomergulharia a maior parte do continente em guerras religiosas por maisde um século até 1648 quando os Europeus aceitaram relutantementeesta divisão sob os termos do Tratado de Vestefália.

Já quanto ao cripto-judaismo, convém lembrar que os judeus emPortugal tinham sido convertidos à força ao cristianismo em 1497 (v.capítulo 6). Contudo, por esta conversão não ter sido sincera, muitosmantiveram a sua religião, apesar de a Coroa ter concedido um períodode adaptação de vinte anos (Magalhães, 1993b: 475-477; Mea, 1998:435). À medida que a população cristã começou a notar que muitosjudeus eram apenas cristãos de nome, alguns conflitos emergiram (ibid.;ibid.). Tal também aconteceu em Braga, dado que na visita inquisitorial

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de 1558, 23 judeus foram presos (Mea, 1990: 70). Por outro lado, al-guns judeus aproveitaram-se do seu novo estatuto cristão para preen-cher lugares na administração secular e eclesiástica, entrando em com-petição directa com os cristãos “velhos”, algo que se tornou cada vezmenos aceitável para estes últimos (Cordeiro Pereira, 1998: 334-336;Magalhães 1993b: 476, 477). Assim, quer por resistência passiva, ou, pa-radoxalmente, por uma integração (demasiado) bem sucedida, na décadade 1540, o problema judeu voltou à superfície, com os cristãos “velhos”considerando a sua existência uma ameaça à identidade cristã de Portugal.

Enquanto no caso do protestantismo a preocupação centrava-se nocontrolo do fluxo de ideias e na reafirmação dos dogmas católicos e nocaso do cripto-judaísmo na erradicação de uma minoria, em relação àpersistência de práticas pagãs o problema que se deparava à elite erabastante mais complexo. Isto porque a maioria da população de umaforma ou outra praticava-as.

No caso específico de Braga, a persistência de práticas pagãs resultousobretudo de duas circunstâncias: uma, era que a maior parte das pessoasque imigrou para Braga no século XVI vinham de áreas rurais ondepráticas heterodoxas eram ainda comuns. A outra, era o fraco estatutoda metade feminina da população, que era marginalizada dentro da hie-rarquia da Igreja (Soares, 1997: 396-401). Nestas circunstâncias, nãosurpreende encontrar mulheres activamente ligadas a actividades margi-nais como bruxaria e pactos com o diabo por forma a encontrar solu-ções para problemas para os quais a Igreja não tinha uma resposta ade-quada, em particular problemas emocionais (R osa Araújo, 1990: 118;Mea, 1990: 73; Soares, 1997: 396-401).

Um exemplo desta actividade em Braga é descrito na visita inqui-sitorial de 1558, quando uma mulher, durante a noite, fez um pactocom o diabo, o qual estava representado por uma estátua dentro da ca-pela de S. Miguel (R osa Araújo, 1990: 115). Para este pacto ser eficazela não devia curvar-se perante o santo e não devia olhar para a cruz(ibid.). O que acho interessante neste exemplo é a existência de umasubversão do sentido original da estátua, que era o de representar a der-rota do diabo por S. Miguel. Ao focar a sua atenção somente na repre-sentação do diabo, esta mulher está a dar-lhe um novo sentido. Poroutras palavras, os significados mudam de acordo com as circunstâncias.Esta forma de comportamento heterodoxo era provavelmente comumem Braga por essa altura. Contudo, para a Igreja, esta subversão eraproblemática dado que o compromisso alcançado no início do séculoXVI entre Graça e Natureza (v. capítulo 6) não estava a ir de acordocom o esperado.

Por forma a contrariar todas estas ameaças e reafirmar a identidadecatólica da cidade, a elite de Braga tomou um conjunto de medidas.

Um dos mais eficazes e notórios instrumentos ao serviço da R efor-ma Católica era a Inquisição (e.g. Mea, 1998: 432-441). Esta era umtribunal religioso criado com o objectivo de reprimir as heresias e rein-corporar na Igreja aquelas ovelhas que se tinham extraviadas. Após umfalso começo na década de 1530, ela começou a funcionar regularmentea partir de 1547. O seu modus operandi era geralmente através de visitasinquisitoriais a locais suspeitos onde, através de sermões, os residenteslocais eram convidados a denunciar espontaneamente os seus pecados eos dos outros por forma a obterem a absolvição.

Um processo semelhante de inquérito sobre os hábitos dos seus ha-bitantes foi conduzido pelos arcebispos ou os seus delegados durantevisitas sistemáticas à cidade ou a outros locais da arquidiocese para in-quirir acerca dos hábitos dos seus habitantes (Soares, 1997: 433), comona paróquia de Santiago em 1562 (ibid. 1986/ 87). Este papel mais vigi-

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lante dos arcebispos para com o seu rebanho foi uma das decisões doConcílio de Trento (1546-1563), onde uma definição mais cuidadosados dogmas católicos também teve lugar (Tourault, 1998: 219).

Outra decisão importante deste Concílio foi a criação de semináriospor forma a inculcar devoção e o espírito de religião nos adolescentesque desejavam ser padres (ibid.: 220, 221). Assumia-se que quanto maisnovos eles começassem a vida religiosa, menores eram as possibilidadesde ficarem atraídos pelos prazeres do mundo (ibid.). Afinal de contas, osbispos precisavam de ser apoiados por clérigos eficientes se queriam quea R eforma Católica fosse bem sucedida. Os arcebispos de Braga nãoperderam tempo em implementar esta medida e já em 1571 o primeiroseminário da Península Ibérica começou a ser construído no lado sul doCampo da Vinha (Oliveira, 1999: 73). No mapa de 1594 a larga massado seminário, chamado S. Pedro, já é visível. Na minha perspectiva, asua construção nesta área não foi casual. Como mencionei no capítuloanterior, esta área tornara-se a mais sossegada da cidade, um local favo-rável à meditação. Estas qualidades fizeram desta área o local mais apro-priado para educar jovens que desejassem ser padres.

Houve igualmente em meados do século XVI importantes mudan-ças no sistema educativo português, tendo a pedagogia nos colégios euniversidades sido entregue aos Jesuítas (Mendes, 1993: 406). O propó-sito era garantir que o ensino estava de acordo com os dogmas católicos(ibid.). Em Braga, um pequeno colégio de humanidades estava em fun-cionamento desde 1531, ensinando latim, gramática e lógica (Maurício,2000: 29). Acreditava-se na altura que sendo o latim o veículo de todoo conhecimento, quer Clássico quer cristão, o estudante deveria ser ca-paz de o falar correctamente de modo a facilitar a prática da vida cristã(Delumeau, 1994: 84). Tal como noutros estabelecimentos de ensinoem Portugal, a direcção deste colégio, chamado S. Paulo, foi entregueem 1560 aos Jesuítas (O liveira, 1999: 135). Para além de ensinar, osJesuítas estavam também interessados num contacto mais próximo comos habitantes de Braga, através de confissões e sermões (ibid.: 137). As-sim, por forma a apoiar estas actividades, uma nova igreja, também cha-mada S. Paulo, foi construída entre 1567 e 1590 (ibid.: 135-137), sendojá visível no mapa de 159430 (fig. 18).

Foi também em meados do século XVI, mais precisamente entre 1544e 1549 (ADB, S. José, 1759: 12), que o primeiro convento feminino deBraga foi construído. Este é o edifício com alpendre e torre, cuja fachadaocupa a maior parte do lado norte do Campo dos Remédios no mapa de1594. A iniciativa veio do bispo coadjutor de Braga Fr. André de Tor-quemada, que chegou mesmo a oferecer uma casa que tinha nessa área,bem como a comprar outras que estavam adjacentes e a demoli-las, porforma a construir o convento (ibid.: 11). Segundo uma cópia datada de1699 do documento original da fundação deste convento, houve três ra-zões por detrás da sua construção: a presença de um convento enobrecia eengrandecia a cidade; Cristo era servido com isso; e a população era con-solada e edificada com o exemplo das pessoas virtuosas que viviam noconvento (BNA, 54-VIII-24, n.º 72). As duas primeiras razões estão pró-ximas uma da outra: a identidade de Braga tinha um carácter fortementenobre e cristão e, como tal, a instituição de um convento, cujos membrosestavam próximos de uma condição espiritual mais elevada, era uma for-ma de reforçar e reafirmar através da sua presença material a identidade dacidade. Relativamente à terceira razão, como mencionei antes, as mulhe-res eram bastante activas na prática de actividades heterodoxas em Braga.Este convento seria, neste contexto, uma forma de educar as mulheres deBraga na prática das virtudes cristãs e, simultaneamente, de abandonar umcomportamento mais heterodoxo. A presença de um bispo na instituição

30 As duas janelasrectangulares que sãovisíveis na fachada nãosão originais (fig. 18).A sua forma sugereuma adição ocorridaem meados do séculoXVIII; note-se que elasjá são visíveis no mapade c. 1757.

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deste convento e a sua colocação sob a tutela dos arcebispos (ADB, S.José, 1759: 13) são indicações da importância que este convento tinhapara os senhores da cidade.

A localização do convento foi bem escolhida. Note-se que se en-contra no Campo dos R emédios uma área reservada ao tratamento deenfermidades físicas. Neste caso, o convento também trataria uma outraenfermidade, mais precisamente aquelas relacionadas com práticas hete-rodoxas. Aliás, o nome do convento é bastante sugestivo: Nossa Senho-ra dos Remédios, Piedade e Madre de Deus (ibid.: 12). Remédios con-tra a heterodoxia, presumivelmente. É por isso que o bispo se deu aotrabalho de dar a sua própria propriedade bem como a adquirir outrasna vizinhança em vez de procurar por algum espaço livre noutra zona,relativamente ao qual havia bastante nos arredores.

Houve igualmente uma quarta razão por detrás desta construção eque não é mencionada no documento de fundação. Nessa altura, haviaum número considerável de famílias nobres a morar em Braga, algo quenão era normal durante a Idade Média. Tendo em conta que em muitasfamílias nobres era geralmente o filho primogénito que herdava os bensda família, tal significava que a maior parte das mulheres eram forçadas aviver em conventos (Monteiro, 1993: 282). Olhando para as genealogiasde diversas famílias de Braga, é vulgar encontrar duas ou três irmãs emcada geração irem viver juntas para o mesmo convento (Afonso, 1954,1962, 1968, 1969, 1970, 1975). Desta forma, elas fariam companhiauma à outra e continuariam próximas dos seus parentes que viviam forados conventos. Quanto aos arcebispos, arranjariam desta forma um su-primento constante de freiras para o convento. Contudo, havia o pro-blema de muitas destas mulheres não serem freiras por convicção, ten-do, ao invés, sido forçadas a esta condição. Como tal, muitas delas nãoeram as escolhas mais apropriadas para servir de modelo das virtudescristãs às mulheres de Braga, algo que se tornaria cada vez mais evidentemais tarde (v. capítulo 10).

Por forma a promover uma disciplina mais rigorosa e uma entregaespiritual mais profunda entre os fiéis, o clero na Europa católica tam-bém encorajou a formação de novas confrarias, de cujos membros seesperava que se juntassem somente como uma expressão de devoçãoreligiosa (Friedrichs, 1995: 80). Braga também fez parte deste movi-mento, com todo o género de confrarias a aparecerem a partir de mea-dos do século XVI. Aquelas dedicadas à Paixão de Cristo eram bastantepopulares, sendo que os seus membros, através da memória do sofri-mento de Cristo na cruz, procuravam levar uma vida mais humilde evirtuosa (Marques, 1993). Também populares eram as confrarias das al-mas, cujos membros através de missas e orações, procuravam acelerar atransferência para o Céu das almas que sofriam no Purgatório devidoaos seus pecados. A maior em Braga era a dedicada a S. Vicente, tendosido fundada em 1588 (AISV, Livro Termos S. Vicente, 1594-1609: 3),sendo muitos dos seus membros provenientes do terceiro estado. Haviaaté confrarias que estavam misturados com certos ofícios, como a dedi-cada a S. Crispim e S. Crispiniano, fundada em 1629, e cujos membroseram sapateiros encarregues de olhar pelo bem espiritual uns dos outros(ADB, Estatutos S. Crispim e S. Crispiniano, 1731: 3, 4v).

Uma rede de confrarias envolvendo diversos aspectos da vida socialfoi assim criada, para facilitar uma melhor absorção do modo de vidacristão pelos seus membros. Tornou-se assim comum que um indivíduofizesse parte de diversas confrarias.

Um dos edifícios mais complexos construído em meados do séculoXVI em Braga foi a nova igreja da Misericórdia, a norte do claustro daCatedral e onde as ruas do Sousa e Souto se encontram. Foi em 1554

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que esta irmandade decidiu, com a aprovação do arcebispo, construiresta igreja (Senna Freitas, 1890, vol. II: 174), cuja construção teve iní-cio em 1562, tendo sido terminada poucos anos depois (Oliveira, 1999:119, 121). Tendo em conta o facto de que a igreja que hoje se vê temalgumas modificações setecentistas, convém olhar para a sua mais antigaimagem conhecida, do mapa de 1750 (fig. 10), por forma a se poder teruma ideia daquilo que parecia, com excepção das estátuas que ladeiam aporta principal e que datam de 1735 (ibid.: 121). Aqui, pode ver-seuma escada ligando a entrada da igreja com a rua, a qual, devido ao seusimbolismo de ligação entre o Céu e a Terra, é uma forma de dar maisênfase à sacralidade desta igreja. Quanto ao edifício em si, era de grandedimensão, seguindo as linhas da arquitectura Clássica, como a porta emarco e as colunas coríntias (ainda hoje visíveis). O uso de linhas Clássicastornou-se possível após a década de 1540 graças à publicação de diver-sos tratados de arquitectura com numerosas representações das ordensClássicas (Moreira, 1995a: 350). A publicação destes tratados fazia partedo movimento europeu mais amplo de recuperação do passado Clássi-co, geralmente conhecido pelos historiadores como Renascimento. EmPortugal, os trabalhos do italiano Sebastiano Serlio foram bastante po-pulares sendo que se considerava que representavam o “verdadeiro”modelo das linhas Clássicas (ibid.: 351). Note-se contudo que estas for-mas Clássicas não eram muito diferentes das precedentes uma vez queambas seguiam os mesmos arquétipos estruturais, o que significa que osimbolismo era basicamente o mesmo. Assim a porta em arco seria facil-mente reconhecível como uma entrada para uma dimensão mais sagradae as colunas como representações do axis mundi.

A igreja resultante era um edifício imponente que seria impossívelpara quem quer que ali passasse ignorar, além de que tendo em contaque este era o principal eixo da cidade tal significava que praticamentetoda a gente estava familiarizada com ela. Contudo, porque razão aque-les que a construíram desejavam criar um tal impacto?

Convém lembrar o que foi dito previamente acerca da crítica pro-testante da prática católica das boas obras como forma de assegurar asalvação. Em Portugal, a prática da caridade estava organizada em redordas Misericórdias, e talvez não seja surpreendente que uma nova igrejatenha sido construída nessa altura. A Misericórdia está assim a deixar oespaço discreto do claustro da Catedral e através de uma presença públi-ca mais visível estava a reafirmar a importância da prática da caridadecomo essencial para garantir a salvação.

Tem igualmente interesse notar que em 1565 a Câmara decidiu abrirdentro da cidade e em frente a esta igreja, uma nova rua chamada R .Nova da Misericórdia (Arquivo Municipal, 1976: 749). Esta é a rua quese vê no mapa de 1594 perpendicular ao eixo R . Sousa/ R . Souto, cor-tando a metade superior da cidade em duas metades e abrindo uma novaporta na parte norte da muralha, chamada S. António. Tanto a localiza-ção como o nome da rua deixam poucas dúvidas de que a igreja daMisericórdia foi a principal razão por detrás da sua abertura. Esta ruapermitia um novo campo de visão directamente para a fachada da igre-ja, focando, como tal, toda a atenção nela e fazendo mais sentida a suapresença.

Contudo, uma análise mais cuidadosa revela um quadro ainda maiscomplexo por detrás da construção da igreja e da rua. Como mencioneino capítulo 6, a Cidade estava organizada segundo um esquema carto-gráfico cosmológico com um eixo em T que a dividia em três partescorrespondentes aos três continentes então conhecidos (Ásia, África eEuropa). Com a abertura da R . Nova da Misericórdia, a barra verticaldo T foi prolongada mais para norte. A adição de uma extensão ao T

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não mudou o simbolismo da cruz que lhe estava associado e que já foianalisado no capítulo 6. A grande mudança com esta adição foi que, aoinvés de três continentes representados, havia agora quatro. Este quartocontinente era obviamente a América, que já era bem conhecida nessaaltura. É interessante olhar para o sector noroeste da Cidade no mapa de1594 e ver como estava representado este novo continente (a Ásia esta-va agora reduzida ao sector nordeste31). O aspecto mais notável dessesector era um largo espaço aberto que ocupava a maior parte da sua áreae que era designado de Campo do Arcebispo (ibid.). Este espaço eraalgo irregular, sem quaisquer ruas, edifícios ou jardins; uma área maispróxima das condições do Caos e, como tal, completamente diferentedo resto da cidade. Isto obviamente levanta a questão de porque é queesta área tinha um papel central na representação do continente Ameri-cano. Tal pode ser melhor respondido através da leitura das descriçõesque estavam então a ser escritas sobre o Brasil, a área da América com aqual os Portugueses estavam mais familiarizados. Inicialmente, era vistocomo uma terra edénica povoada por pessoas inocentes mas, à medidaque os contactos tornavam-se mais regulares, passou cada vez mais a serconsiderada como uma terra dura com humanos que mais pareciam ani-mais e sem religião (Pires, 1991; Markl, 1995: 420-423). Trata-se, comose pode ver, de uma paisagem que estava longe do modelo europeu desociedade. Como tal, não surpreende que em Braga, o continente ame-ricano esteja representado por um espaço aberto e plano relativamentedesorganizado, um espaço ainda à espera de ser preenchido e completoatravés de uma ordem cristã, civilizadora.

Esta “actualização” do Cosmos, com a igreja da Misericórdia no seucentro, reforçou sem dúvida a importância da caridade na ordem cós-mica das coisas. Tal não significa que esta igreja fosse um substituto daCatedral como Centro do Mundo dado que, convém lembrar, a pri-meira estava umbilicalmente ligada a esta última. Ao invés, a sua associa-ção próxima e a circunstância de a Misericórdia ter sido construída se-gundo linhas Clássicas, também permitiu à Catedral afirmar de uma for-ma mais visível, através da arquitectura, o passado romano da cidade.Este, até então, era feito sobretudo através da Palavra, isto é, inscrições(como as do Campo de Santana) ou estudos e escritos humanistas. Acirculação de tratados de arquitectura após a década de 1540 permitiuque a arquitectura Clássica pudesse ser também usada ao serviço do pre-sente.

Uma das acções mais importantes levadas a cabo pela Igreja apósmeados do século XVI foi a eliminação da esfera sagrada das múltiplasescórias animistas que haviam sido herdadas das velhas crenças naturalis-tas (Minois, 2004: 222). Para a Igreja, a Natureza era um trabalho deDeus criada para o bem da humanidade e não um objecto de devoçãocomo acontece nas práticas pagãs. Embora houvesse um esforço susten-tado de dessacralizar o mundo natural, tal não significa que tenha sidodemonizado outra vez, como acontecera ao longo da maior parte daIdade Média. Ao invés, o que estava agora a suceder era uma tentativade dar um carácter ainda mais transcendente ao divino, para separá-loainda mais do mundo (ibid.). Sendo assim, vou terminar este capítulocom um foco na forma como este esforço de uma maior separação entreo sagrado e o profano afectou as práticas religiosas em Braga. Emboraalgumas das iniciativas que já mencionei previamente fizessem igual-mente parte deste esforço, vou concentrar-me agora na forma como aIgreja e as autoridades cívicas de Braga intervieram em aspectos maisconcretos relacionados com a prática vivida do sagrado.

Uma das áreas de intervenção foi a exuberância incontrolável dosferiados festivos. Isto era algo que a liderança católica achava desagradá-

31 É interessante notarque o palácio episcopalcontinuou a estarsituado na área dacidade que representa-va a Ásia. Estecontinente, dentro dacosmologia medievalera considerado o maisimportante de todos(daí a sua colocaçãoacima dos outros dois),sendo aqui que oJardim do Édensupostamente seencontrava (Boorstin1987: 105). Semsurpresa, era aqui quese encontravam osjardins dos arcebispos,que eram os maiores dacidade.

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vel e que procurou reformular, removendo desses festivais os seus ele-mentos imprevisíveis e incontroláveis e encorajando um maior foco noseu conteúdo devocional (Friedrichs, 1995: 252). De seguida, vou dartrês exemplos de tais acções em Braga.

O primeiro concerne as touradas. Estas eram bastante popularesentre a população e havia sempre uma nas festas mais importantes (e.g.Arquivo Municipal, 1971-72, 1973). No entanto, em 1562 algumascoisas começaram a mudar: a Câmara decidiu que as touradas não po-diam mais ter lugar nas ruas da cidade, como costumava ser, mas aoinvés deviam ser confinadas ao Campo do Arcebispo (ibid. 1975: 378).A razão dada para esta mudança era a de que as touradas estorvavam osperegrinos em romaria (ibid.). Houve assim uma primeira tentativa deseparação entre a actividade espiritual da peregrinação e a actividadeprofana (aos olhos das autoridades cívicas) da tourada. O Campo doArcebispo, sendo uma área grande e aberta onde não havia nenhumatradição de festividades religiosas, pareceu ser um local mais apropria-do para a realização de touradas. Com a transferência das touradas,esta área, em 1567, era já então conhecida por Campo dos Touros(ibid. 1979: 506). Mesmo assim, esta separação não foi, contudo, sufi-ciente para as autoridades cívicas e em 1568 foi determinado que maisnenhuma tourada devia ser permitida no Campo dos Touros (ibid.1980: 964). Nenhuma explicação é adiantada para esta proibição nasActas da Câmara, mas pode assumir-se que a violência física envolvidanão era apropriada a uma cidade que tinha reclamado um estatutoespiritual.

O segundo exemplo está relacionado com as festividades de S. João.O seu ponto alto era a caçada de um porco preto na área a sul do rioDeste, próximo do Monte Picoto (Coelho, 1992: 236). Este porco pre-to era apenas uma das manifestações do Dragão. O porco, simbolica-mente, é visto como o mais impuro de todos os animais, glutão e voraz,comendo tudo o que encontra (Ferguson, 1966: 20; Chevalier e Gheer-brant, 1994: 537). A cor preta, ligada ao Caos, reforça ainda mais estesimbolismo negativo deste animal. Contudo, em 1614, as autoridadescívicas proibiram a caça e a morte do porco, declarando que não eradecente que num festival onde a bandeira da Virgem estava presenteque semelhantes actividades pudessem ocorrer (Coelho, 1992: 238).Uma vez mais, pode ver-se aqui uma tentativa de dar um carácter maispuro e transcendente aos festivais religiosos. Não obstante, tal decisãonão foi bem recebida por toda a gente e há registo da ocorrência dealguma resistência, como em 1638, quando dois homens foram multa-dos por terem morto um porco (ibid.: 247).

Proibições, contudo, não eram apenas a única maneira de combatero paganismo: outra maneira era através do exemplo, ou seja, mostrandoàs pessoas práticas alternativas que podiam ser emuladas. Esta era umaestratégia mais eficiente uma vez que se baseava numa aderência sinceraaos seus ideais morais, e o meu terceiro exemplo, procissões, demonstraessa estratégia.

Entre as várias confrarias fundadas após meados do século XVI esta-va a Arquiconfraria do Cordão, cujos membros procuravam emular aausteridade da Ordem Franciscana. Tal era particularmente notório nasprocissões organizadas pelos seus membros que deviam evitar danças eoutras festividades “profanas” que eram então comuns nas procissõesorganizadas por outras confrarias (AVOTSF, Estatutos ArquiconfrariaCordão 1615: 6). Desta forma, esta arquiconfraria estava a promoveruma forma mais solene de procissão pública, a qual não passaria desper-cebida às outras confrarias por causa do contraste e que eventualmenteinduzi-las-ia a reconsiderar algumas das suas acções “profanas”.

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Outra área de intervenção na delimitação do sagrado e do profanofoi a supressão ou, pelo menos, a contenção dos elementos materiaisque pudessem ser usados ao serviço de práticas mais pagãs.

Entre esses elementos materiais estavam os penedos situados em lo-cais públicos do Jardim de Braga. Entre 1569 e 1572, a Câmara mandouquebrar os penedos que existiam perto dos cruzeiros a meio da R .Chãos, em frente à igreja de Nossa Senhora a Branca e em frente àleprosaria de S. Lázaro (Arquivo Municipal, 1982: 565; 1983: 551; 1984:419). Segundo as Actas da Câmara, a razão dada para esta destruição erao estrago que eles causavam (ibid.: 1982: 565). Contudo, não é especi-ficado que tipo de “estrago” era esse. Poder-se-ia assumir que se pre-tendia facilitar a circulação do tráfico; todavia, se era esta a razão, entãosoa mais a desculpa, uma vez que se sabe que também havia cruzeirosperto desses penedos bem como outros penedos no lado norte do Cam-po de Santana (cf. AMB, Livro Actas Câmara Cx. 21, lv. 42, fl. 18), osquais certamente também incomodavam o tráfico e que, contudo, nãoforam destruídas. Então, o que é que havia de tão específico acerca des-ses penedos?

Como discuti no capítulo anterior, as pedras estavam associadas coma permanência e, por analogia, com o absoluto e o sagrado. Por outrolado, convém notar que todas os penedos destruídas estavam em cruza-mentos, algo que lhes daria o estatuto de Centro. Este papel, na pers-pectiva da elite de Braga, devia pertencer somente aos símbolos cristãosque estavam nessas áreas. Aliás, a destruição destes penedos sugere queeles eram vistas como sagrados por um segmento significativo da popu-lação em detrimento dos cruzeiros vizinhos. Isto pode ainda explicar arazão por detrás da conservação dos penedos no Campo de Santana: pornão se encontrarem em cruzamentos não tinham qualquer importância.Todavia, em 1738, quando foi construída uma Via Sacra em Braga,cujo trajecto passava aí (fig. 9), os penedos foram destruídas (ibid.). Arazão para essa acção é compreensível: a partir do momento em que elasestavam no trajecto de uma via sagrada, havia o risco de adquiriremuma dimensão sagrada.

Os penedos tinham então uma longa história de hierofanias, isto é,manifestações do sagrado (Eliade, 2002), o que ajuda a explicar a razãopelas quais eles eram tão populares. Por exemplo, numa compilaçãode inícios do século XVIII de manifestações da Virgem em Portugal,muitas delas são representados como tendo tido lugar em penedos32

(Santa Maria, 1707). Aliás, quem quer que actualmente visite peque-nas aldeias em áreas rochosas ainda pode ainda ouvir várias histórias dehierofanias associadas com certas formações rochosas, enquanto quecapelas e cruzeiros nas vizinhanças são simplesmente ignorados. A des-truição de penedos ocorria somente em casos extremos porque eramais comum a sua cristianização através da adição de símbolos cris-tãos. Que eles tenham sido destruídas em Braga, sugere que a elitelocal acreditava que a outra abordagem não estava a correr bem e daí asua destruição.

Os elementos materiais de algumas igrejas também ficaram sob es-crutínio devido ao seu potencial mau uso e adulteração para fins pagãos.Olhando para as duas igrejas construídas em Braga na segunda metadedo século XVI – a Misericórdia e a de S. Paulo – e comparando-as coma capela-mor da Catedral de inícios do século XVI, pode notar-se ou-tras diferenças para além das linhas Clássicas. Uma dessas diferenças é acompleta ausência de gárgulas nos novos edifícios. Estas bestas, que jáocupavam uma posição marginal na Catedral, deixam de ser encontra-das nas igrejas construídas após meados do século XVI. As únicas ima-gens que são visíveis nas igrejas após esta data são as humanas. Tal é

32 Geralmente napresença de jovenspastores, o que écompreensível se setiver em conta que ascrianças representam acondição humana antesdo pecado (Chevalier eGheerbrant 1994: 240),ao passo que ospastores são osescolhidos de Deus(ibid.: 506). A últimadestas manifestaçõesem Portugal (paraquem acredita nisso)foi em Fátima em1917.

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compreensível se nos lembrarmos que, na perspectiva cristã, os huma-nos são feitos à imagem de Deus; dado que as igrejas eram a Casa deDeus, somente imagens mais próximas dessa condição deveriam ser aípermitidas. Assim, quaisquer imagens que fizessem referência a elemen-tos próximos do Caos e que pudessem ser usadas e reinterpretadas porsegmentos da população para outros fins foram erradicadas. Quanto àfunção das gárgulas de despejar a água suja da chuva e o seu papel deguardiãs do limiar, elas passaram a ser substituídas após esta data nasigrejas portuguesas por pequenos canhões esculpidos; desta forma, evi-tava-se o uso de imagens de aspecto bestial conectado com o Caos.

A representação da Natureza nas igrejas também foi afectada. Aopasso que na capela-mor da Catedral ocorre uma explosão de motivosnaturais, o contraste é quase chocante quando se olha para as outras duasigrejas. Na igreja de S. Paulo, a fachada é completamente chã, enquantoque na da Misericórdia nota-se alguma contenção com apenas algumasespirais, as quais simbolizam as forças cósmicas da vida (Chevalier eGheerbrant, 1994: 303-305), sendo representadas. Em ambos os casos,por forma a enfatizar o carácter espiritual das igrejas, a representação daNatureza é severamente cortada permitindo que formas geométricas, asquais têm um carácter mais puro, sejam mais proeminentes. As diferen-ças entre ambas as igrejas resultam dos antecedentes dos seus promoto-res: em S. Paulo, o carácter fortemente intelectual e militante da Socie-dade de Jesus; na Misericórdia, leigos seculares. Note-se que este tipode arquitectura com fachadas consideravelmente chãs tornou-se bastan-te comum em Portugal após meados do século XVI (Kubler, 1988;Moreira, 1995b), sendo ainda de referir que o aspecto austero e ordeiroque este género de edifícios têm constituía também uma forma da elitemostrar a sua determinação em defender a doutrina católica (Horta Cor-reia, 1986: 94, 95).

São igualmente visíveis mudanças no interior das igrejas. Após mea-dos do século XVI tornou-se comum cobrir as paredes das igrejas compadrões de losangos verdes e azuis (Meco, 1986: 131, 198, 199). Umavez mais, ocorre aqui um uso de figuras geométricas como um substitu-to de imagens naturais. Contudo, note-se que estes novos padrões aindamantinham uma ligação, embora bastante abstracta, com a Mãe Terra.Afinal de contas o losango encontra-se associado à fertilidade feminina(Chevalier e Gheerbrant, 1994: 416) e a cor verde que os losangos porvezes têm (a cor da Natureza) também aponta para essa ligação. Contu-do, convém notar que a cor azul que outros losangos têm aponta parauma tentativa de dar à Mãe Terra um carácter mais celestial, devido aosimbolismo dessa cor. A escolha das cores dependia assim de quão mili-tantes eram os seus promotores.

O uso de losangos não significa que a representação na Natureza nointerior das igrejas tenha cessado após meados do século XVI. Um nú-mero considerável de igrejas continuou a representar imagens da Natu-reza nas suas paredes, incluindo, por exemplo, a igreja de S. Paulo emBraga. Uma descrição do início do século XVII, menciona que o frisoda igreja estava pintado com duas ordens de jarras grandes com plantasverdes e flores (Basto, 1627: 53). A mudança de intento é, contudo,visível, quando se olha para as formas que a vegetação começava a assu-mir. Se bem que as pinturas de S. Paulo já não sejam actualmente visí-veis, há ainda actualmente muitas igrejas sobreviventes dessa altura comazulejos decorados com motivos semelhantes (cf. Simões, 1971 para umalistagem), incluindo em Braga, nomeadamente na capela do antigo con-vento do Salvador (fig. 19). Se os analisarmos cuidadosamente, podenotar-se que as formas não são tão realistas como as do início do séculoXVI, mas são, ao invés, muito mais abstractas. Desta forma, havia me-

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nor perigo de algumas pessoas os verem como objectos de devoção chei-os de valor espiritual ou maná.

Igualmente comum é uma mistura destes motivos, com vegetaçãoem redor dos losangos, onde a vegetação é disciplinada e submetida àsformas estritas do losango (fig. 19).

Finalmente, pode ainda ser encontrada variação espacial na localiza-ção destes motivos, como losangos azuis nas áreas mais sagradas da igreja(a capela-mor e o baptistério) e vegetação abstracta nas naves.

Com estas mudanças no interior das igrejas, esperava-se que a devo-ção dos fiéis se focasse exclusivamente no retábulo atrás do altar e na suaconcentração de imagens de santos, os quais se tornaram as únicas ima-gens realistas dentro das igrejas.

Em conclusão, este movimento de reforma foi um esforço sustenta-do que continuaria ao longo das décadas seguintes e que através de umacombinação de medidas repressivas e educativas, algumas com aplicaçãomais específica e outras de âmbito mais alargado, alcançou um conside-rável sucesso. A disseminação de ideias protestantes em Portugal e, con-sequentemente, o risco de uma guerra religiosa, foram evitados. O crip-to-judaísmo foi quebrado, quer através da morte dos seus praticantes ouatravés do seu exílio; aqueles que permaneceram acabaram por ser absor-vidos pelo cristianismo. No caso da persistência de práticas pagãs, o su-cesso foi misto. O problema aqui era que para muitas pessoas o sagradovivia-se através da Natureza. A Igreja, ao procurar transformar o sagra-do numa devoção interior e intelectual sem qualquer ligação com omundo material, tornou o contacto do espírito humano com o sagradomais problemático para muita gente (Minois, 2004: 104, 222, 411). Poroutro lado, a Igreja tornou este acto de separação mais difícil ao reteruma posição ambígua acerca de alguns milagres, como a Eucaristia (emque o pão e o vinho se transformam no corpo e sangue de Cristo), algoque deixava os espíritos dos fiéis confusos e dispostos à continuaçãopráticas heterodoxas (ibid.: 411). Finalmente, a imposição desta divisãoestrita estava dependente de um clero vigilante e repressivo. No caso defraqueza ou ausência, havia o risco do regresso de algumas dessas práti-cas heterodoxas. Isso foi algo que teve lugar periodicamente em Braga,como o regresso das touradas no final do século XVI (v. capítulo 9) oudas igrejas construídas por confrarias no final do século XVII (v. capítu-lo 11), obrigando o clero a readaptar algumas das suas acções à mudançade circunstâncias.

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9. Uma crise no horizonte

Em 1580, Portugal foi abalado por um terramoto político quandoFilipe II de Espanha se tornou rei de Portugal. Em relação a Braga, estamudança de eventos foi catastrófica. Como se todos os problemas edificuldades discutidos no capítulo anterior não fossem suficientes haviaagora uma nova situação política que ameaçava o estatuto de Bragacomo sé primaz de toda a Hispânia. Como mencionei na Introdução,desde a Idade Média havia uma forte rivalidade entre Braga e Toledo,com cada cidade a reclamar este estatuto primaz. Antes de 1580, a posi-ção de ambos os antagonistas era consideravelmente reforçada pela exis-tência de dois reinos independentes na Península Ibérica, com cada umdeles a defender a posição da sua cidade. Os eventos de 1580, pelosquais esta região tornou-se politicamente unificada, desta vez sob umamonarquia hispânica, obviamente dava mais relevo à disputa entre Bragae Toledo. Contudo, Filipe II, desejando conquistar os “corações e men-tes” dos Portugueses não forçou uma decisão sobre esse assunto; em vezdisso, preservou a autonomia portuguesa como reino independente, sen-do a única diferença a de tanto Portugal como Espanha partilharem omesmo rei (Magalhães, 1993c: 566). No entanto, era apenas uma ques-tão de tempo até que uma decisão sobre a primazia fosse tomada e nin-guém tinha ilusões que a vencedora seria Toledo, dado que Filipe II fezde Madrid e não Lisboa a capital dessa monarquia partilhada. Assim,implicitamente, havia já alguma predisposição às pretensões de Toledo.Perder esse estatuto seria também prejudicial para o arcebispo de Bragadado que muito do seu prestígio e autoridade vinha do seu título deprimaz.

Que uma porção significativa da população de Braga não estava sa-tisfeita com esta ameaçadora mudança de eventos é claro através da lei-tura das Actas da Câmara. Após uma aclamação inicial de Filipe II noinício de Setembro, no final do mês há relatos de constante agitaçãocivil na cidade, da qual resultaram alguns mortos (Arquivo Municipal,1970: 304, 309). A situação era tão séria que no final de Outubro acidade foi ocupada por tropas espanholas (ibid.: 310, 311). Após isso, asituação ficou mais calma, pelo menos à superfície (ibid.: 312).

No fim, contudo, e apesar dos receios, Braga ainda mantinha oficial-mente o estatuto primaz, pelo que havia ainda espaço para reafirmá-lono contexto da nova monarquia hispânica. Isso foi algo que Fr. Agosti-nho da Cruz, arcebispo de Braga entre 1589 e 1609, procurou fazeratravés do patrocínio de um importante número de obras, como tencio-no mostrar neste capítulo.

Uma das suas primeiras obras foi a construção do chafariz no ladoocidental do Campo de Santana em 1594 (Oliveira, 2001a: 216). Estechafariz já é visível no mapa de Braga desse mesmo ano, embora a suaforma não corresponda aquela que na realidade foi construída33 (fig. 20).A sua forma é consideravelmente diferente da forma das anteriores fon-tes de Braga, cujas construções datam do período de D. Diogo de Sousa(cf. ADB, Memorial). Algumas destas fontes são visíveis no mapa de

33 Embora nos mapasde c. 1694 e c. 1757 asua forma estejacorrectamenterepresentada. Estechafariz ainda estáintacto, encontrando--se actualmente dolado de fora da portaNova.

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1750, como as da R . Cónegas (n.º 58) e em Nossa Senhora a Branca(n.º 42). A forma que estas fontes mais antigas apresentam é a de umtanque com um muro encimado por ameias e um nicho com a estátuada Vigem ao meio. A água, como já mencionei no capítulo 5, é o sím-bolo mais fortemente associado ao início da vida. Como tal, não surpre-ende encontrar uma estátua tutelar da Virgem e ameias num papel pro-tector. Aliás, é bastante provável que, uma vez mais, D. Diogo de Sousaestivesse a emular R oma com a construção de várias fontes. Convémnotar que a Roma papal tinha, no século XV, decidido reconstruir umadas glórias da R oma antiga: o sistema de abastecimento de água quealimentava as fontes públicas (Schama, 1995: 286).

Há diferenças claras quanto às formas entre as fontes do início doséculo XVI e o chafariz de 1594. Enquanto que as primeiras são relati-vamente discretas e compactas, este último tem grandes dimensões. Temum alto eixo central, com espirais e folhagens esculpidas ao longo dele ede cujo topo flui água. Ao longo deste eixo há três taças, cujo diâmetroé cada vez menor há medida que se aproximam do topo, permitindo àágua criar um efeito de cascata. No topo do chafariz há alguns Hermesesculpidos, o brasão de armas de Portugal e o do Arcebispo bem comouma esfera armilar, a qual é coroada por uma cruz com duas aspas. Demodo a dar sentido às diferenças nas formas, uma análise iconológica eespacial deste chafariz é necessária.

Em primeiro lugar, a grande dimensão do chafariz, os seus efeitos deágua e a sua colocação mesmo no meio do lado ocidental do Campo deSantana, significa que houve uma intenção de o tornar visível a umagrande audiência. Afinal de contas, convém não esquecer que este era oponto de encontro mais importante entre os habitantes de Braga e osforasteiros (v. capítulo 7). Aliás, era comum a fonte marcar, na icono-grafia cristã, o local de encontro de todas as nações (ibid.: 287), sendoassim um lugar chave de sociabilidade pública e, como tal, propenso aser utilizado para transmitir mensagens. Mas, que mensagens estava estechafariz a transmitir?

Em primeiro lugar, é importante notar que o seu eixo central parti-lha do simbolismo do axis mundi. Neste caso, parece ser inspirado novelho arquétipo da Árvore da Vida. Nesta interpretação, é significativoque, juntamente com a existência de folhagem esculpida, há ainda oefeito de copa que a água faz quando flui da parte de cima da colunapara o tanque inferior. Note-se ainda que na iconografia cristã a Árvoreda Vida era comummente representada com um rio fluindo das suasraízes e alimentando a Fonte da Vida (ibid.). O tema da Árvore da Vidaera bem conhecido no norte de Portugal, com carvalhos estando co-mummente associados a revelações sagradas (cf. Santa Maria, 1707).Outra característica do axis mundi, suportar a totalidade do Cosmos,também se encontra representada aqui. As taças têm uma forma esférica,a forma do Cosmos, e são três, o que pode ser visto como uma referên-cia aos três níveis do Cosmos: Céu, Terra e o mundo subterrâneo doInferno. Por forma a enfatizar ainda mais a ideia de um Cosmos vivoem perpétua regeneração, associada com a Árvore da Vida, mais algunselementos simbólicos foram acrescentados ao chafariz. Um é, obvia-mente, a água, símbolo do início da vida, que neste chafariz está emconstante regeneração. O outro é a taça, associada com o Graal medie-val, onde o sangue de Cristo foi recolhido, e que é a bebida da imorta-lidade (Chevalier e Gheerbrant, 1994: 627).

O propósito deste complexo programa iconográfico pode ser me-lhor compreendido olhando para a parte superior do chafariz, por cimada taça superior. Aqui, vê-se a cruz de duas aspas, que está directamenteassociada a arcebispados (Ferguson, 1966: 165; Chevalier e Gheerbrant,

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1994: 246), e simbolizando assim a própria Braga. Quanto à esfera armi-lar, desde o inicio do século XVI que se tinha tornado no símbolo daCoroa portuguesa, estando associada com a expansão imperial portu-guesa através do globo na sequência da chegada da expedição de Vascoda Gama à Índia em 1498. Esta associação entre Braga e a Coroa portu-guesa é igualmente visível nos dois escudos de armas, que se encontramlado a lado. Assim, na minha perspectiva, o que está ser afirmado aqui éa predominância do estatuto primaz de Braga e dos seus arcebispos pelomenos no domínio do reino português. Este estatuto, como se viu, ti-nha tremido aquando dos eventos políticos de 1580, mas agora, comtodo o simbolismo de regeneração da Árvore da Vida combinado com aágua e a taça, estava a ser reafirmada a sua sacralidade e permanência. Acolocação deste chafariz no local público mais frequentado de Bragaconstitui uma indicação de quão importante era para o Arcebispo publi-citar esta mensagem.

O chafariz também foi usado para transmitir outras mensagens, maisconcretamente, as seis estátuas de Hermes na sua parte superior. Hermesera o deus Clássico da viagem e comércio. Tendo em conta que esta eraa principal área comercial de Braga, julgo que a sua presença aqui não écasual e que eles estavam a simbolizar os mercadores e as suas activida-des. Aliás, esta ligação reforça-se ainda mais ao olhar para a fachada daigreja da Misericórdia da cidade de Viana, que era governada por umaoligarquia de mercadores, e cuja colunata era composta por um conjun-to de estátuas de Hermes. Também numa perspectiva de ordem socialpode considerar-se que a cruz no chafariz simboliza o clero e a esferaarmilar a nobreza que governava Portugal. Estando as estátuas dos Her-mes representando então aqueles que trabalham, podem-se assim en-contrar representadas ao longo da coluna as três ordens sociais. Qual erao propósito deste esquema? Aqui, convém notar que os judeus não eramos únicos cuja ascensão social estava a ser bloqueada pela elite tradicio-nal dado que o mesmo estava a suceder, em particular após a década de1560, aos artesãos urbanos (Mea, 1998: 334), ou seja, mercadores emesteirais. Assim, a organização deliberada e consciente destes símbolosao longo da linha do axis mundi e a sua colocação precisa no principalespaço comercial de Braga seriam uma forma de legitimar e comunicarao observador qual era o lugar de cada ordem social dentro do esquemacosmológico. Esta afirmação de um mundo dominado pela aristocraciafazia assim parte de um processo de marginalização da classe mercantil edas suas actividades.

Tem interesse notar que um uso semelhante das fontes para fins depropaganda pode igualmente ser encontrado em R oma no segundoquartel do século XVII, no contexto de rivalidades entre as famílias aris-tocráticas locais nas suas ambições para o papado, quando um conjuntodelas foi construído nos espaços públicos de Roma, como a famosa Fon-te dos Quatro R ios de Bernini na Piazza Navona (cf. Schama, 1995:289-306).

Foi também em 1594 que a primeira representação visual de Bragafoi feita: o chamado mapa de Braun (fig. 6). Este mapa é usado comum-mente por investigadores (e.g. Oliveira, 1999; Bandeira, 2000a, 2000b;Maurício, 2000; Sousa Pereira 2000) como meio de obter dados acercade Braga devido à representação elaborada de edifícios (nomeadamenteos mais importantes), a rede viária, a configuração dos quarteirões, amuralha, jardins, cruzeiros, fontes, topónimos, etc. No entanto, existeigualmente consciência que muitos destes elementos não estão bem re-presentados dado que o mapa não segue uma estrita representação geo-métrica do espaço (e.g. Bandeira, 2000a: 47). Como tal, este mapa évisto como tendo um valor sobretudo iconográfico (para representação)

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e não tanto um valor funcional (ibid.). O problema desta distinção entreobjectivo e subjectivo ou funcional e artístico é que ela é, como discutianteriormente no capítulo 5 citando J. B. Harley, oca, dado que os ma-pas são sempre imagens carregadas de valores, sendo no fim influencia-dos por um conjunto de circunstâncias específicas, que são tudo menos“neutrais” ou “meramente estéticas”. Assim, qual era o propósito pordetrás do desenho deste mapa? O que pode a sua análise dizer sobre ele?

Para começar, convém notar que este mapa apareceu no bem co-nhecido atlas de cidades do mundo impresso por Braun. Isto indica aaudiência para que se dirigia: a elite europeia, o único grupo que tinhameios para o adquirir. Outra indicação que aponta para esta audiência éa de que as inscrições são todas em latim, a língua internacional dessamesma elite. Que imagem de Braga está a ser representada aqui? Olhan-do para o canto superior esquerdo, pode ver-se o brasão de armas doArcebispo (sob cujo patrocínio o mapa foi feito) e onde ele reafirma otítulo de Primaz da Hispânia. E aqui está: propaganda internacional. E acidade, claro está, tem de apresentar uma imagem condizente com osaltos títulos que o Arcebispo reafirma.

A escolha do nome da cidade usado no mapa – Nova Bracaræ Au-gusta – não era casual: como mencionei antes, o conceito de “novo”,em noções circulares de tempo, é o que se encontra perto da perfeiçãoprimordial, e como tal mais “autêntico”. É uma cidade em toda a suagrandeza que se encontra representada aqui, ou mais precisamente, umacidade idealizada. E de modo a ser mais eficiente, o mapa apresenta algoque é comum a todos os mapas que são feitos para fins políticos: distor-ção deliberada (cf. Harley, 1988: 287).

Assim, no centro do mapa, concentrando toda a atenção, encontra--se uma imagem desproporcionada da Catedral, de modo a enfatizar oseu papel como Centro do Mundo. Por forma a permitir a posição cen-tral da Catedral, a área entre a parte sul da muralha e o rio, que é maiordo que aquilo que está representado, foi consideravelmente encolhida.Partindo da Catedral, encontra-se o padrão em cruz já antes analisado eque não era tão geométrico como o mapa faz querer. A muralha emredor da Cidade também era menos circular em relação ao que estárepresentado. No entanto, estas são as formas de uma cidade ideal e eraassim que o seu criador e patrocinador queriam que fosse vista, sendotambém assim que as devemos ver.

Para além da Catedral, há mais alguns edifícios que são enfatizadosatravés do seu tamanho ou, pelo menos, de uma inscrição que os iden-tificava. Estes compreendem todos os edifícios religiosos, bem como oscruzeiros. Desta forma estava a ser mostrada à potencial audiência quãocristã Braga era. Mais, o desejo de representar tantos edifícios religiososquanto possível era tal, que na parte norte do Campo da Vinha encon-tra-se uma letra “b”, cuja legenda no canto inferior esquerdo do mapaindica um convento de freiras que aí ia ser construído34. Isto resultou datransferência de um situado em Vitorino das Donas sob o pretexto deque se encontrava isolado numa área rural (o Caos) (Senna Freitas, 1890,vol. II: 257). Também se encontram representados alguns edifícios se-culares essenciais à vida cívica como a Câmara, o colégio, o hospital, opelourinho e fontes. Quanto aos edifícios residenciais, que constituem amassa das casas, são meros estereótipos, dado que não contribuíam paraa grandeza da cidade; encontram-se lá apenas para encher o espaço. Bas-ta olhar para a sua forma e contar o seu número para conformar isso.Por exemplo, segundo o Índice e o mapa de 1750, havia algumas casascom torres adjacentes na R . S. Marcos (fig. 16); contudo, nenhuma émostrada no mapa de 1594. Também o número de casas que as mesmasfontes indicam existir no eixo R . Sousa/ R . Souto é maior do que aque-

34 As letras maiúsculasque podem ser vistasespalhadas pelo mapareferem-se à traduçãogermânica, que nomapa originalencontra-se no verso.

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le que pode ser contado no mapa de 1594. Excepto um par de casascom escadas exteriores visível neste eixo e um par de outras no ladonorte do Campo da Vinha, a única casa que se encontra desenhada commais cuidado, e talvez melhor representada, é o palácio episcopal, demodo a não deixar dúvidas acerca de quem era o senhor da cidade.

Por forma a enfatizar esta renovação do carácter cristão de Braga, éinteressante notar que alguns elementos que podiam vir a ser associa-dos com um passado pagão foram inseridos no mapa para fazer o con-traste mais notório. Estes elementos são o pequeno bosque e a grutaentre a palavra MER IDIES, encontrando-se ambos na parte inferiordo mapa. Note-se que eles estão na área do mapa associada com oCaos, uma indicação de que eles estavam a actuar como seus represen-tantes. Em relação ao bosque, denominado no mapa como Sylva pri-matialis, tal como mencionei no capítulo 5, os bosques, à semelhançados desertos, eram usados para representar o Caos e, no caso de Braga,já então havia uma história milenar de condenação dos bosques comolocais de actividades pagãs, as quais eram vistas como demoníacas,como se pode ler no De Correctione R usticorum de S. Martinho deDume35. O bosque é ainda representado no mapa como local de habi-tação de lebres (quatro são visíveis), com uma inscrição mencionandoa sua abundância aí. A lebre encontra-se ligada aos velhos cultos daMãe Terra, ao simbolismo da água, da vegetação e da renovação per-pétua da vida, tendo o carácter prolífico destes animais um papel cha-ve nesta associação (Ferguson 1966: 20; Chevalier e Gheerbrant 1994:402). Sem surpresa, em religiões menos animistas como o cristianis-mo, a lebre é condenada, sendo o seu carácter prolífico atribuído àluxúria (Chevalier e Gheerbrant 1994: 403). Assim, o bosque no mapacom as lebres, água e vegetação, simboliza velhas práticas pagãs. A suaposição na parte inferior do mapa e, como tal, numa posição inferior àocupada pela cidade, é uma forma de simbolizar a derrota das práticaspagãs em Braga.

O mesmo pode ser dito acerca da gruta. Esta gruta não faz parte dapaisagem real dado que na área em redor da cidade não há grutas. Naminha perspectiva, esta gruta é na realidade uma representação de ummonumento megalítico, um dólmen, e, se estou certo, esta é a maisantiga representação iconográfica de tais monumentos em Portugal. Es-tes são comuns na paisagem portuguesa e ainda existem vários delesvisíveis no noroeste do país. Se bem que actualmente, em muitos casos,somente a estrutura interna do monumento com as largas lajes seja tudoo que resta, originariamente eles eram cobertos com um pequeno mon-te de terra e cascalho. É isto que é visível no mapa, bem como a suaentrada. Estes monumentos já eram então uma velha dor de cabeça paraa Igreja dado que as populações locais geralmente associavam eventossagrados e rituais com muitos deles. Com a R eforma Católica houveum esforço significativo da Igreja no sentido de controlar este fenómeno,sendo seguidas várias abordagens, como a construção de capelas nas pro-ximidades; a sua adaptação a capelas (e.g. S. Brissos); a sua destruição e atransferência dos restos pré-históricos do “santo” aí venerado para a igre-ja local (Oliveira et al, 1997). Não há registo de um megalito perto deBraga mas, quer tenha ou não existido, considero a sua presença nomapa como uma forma de marcar um contraste com a Catedral. Note--se que o megalito é designado por Antrum Reginæ (Gruta da Rainha)e que está alinhada com a Catedral. Esse nome faz uma clara referênciaao simbolismo da gruta e aos velhos cultos da Mãe Terra. Um contrastepode ser feito com a Mãe Terra cristã que é venerada na Catedral, aVirgem Maria, com a posição superior e central desta última simboli-zando a vitória sobre o paganismo.

35 Este texto do séculoVI pode ser lido no seuoriginal em latimacompanhado de umatradução em portuguêsna revista BracaraAugusta, vol. II, pp.223-239.

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O mapa também celebra a antiguidade de Braga através da referên-cia a um conjunto de vestígios romanos espalhados pela cidade. Assim,as ruas que iam para nordeste, sudeste, sudoeste e a rua indicada com aletra “d” (para norte) são mencionadas como sendo de origem romana.As já previamente discutidas colunas romanas em redor da capela deSantana, marcada com a letra “f”, também são indicadas. No Campo daVinha a letra “c” refere-se a um cemitério romano encontrado naquelaárea. As duas últimas referências ao passado romano estão na área dacapela de S. Sebastião. Duas inscrições podem aí ser encontradas: a queestá abaixo da capela refere-se a um arco que ainda se encontrava de pénessa altura. Quanto à outra, menciona que esta era a área do fórumromano, algo confirmado por recentes escavações arqueológicas. Nãosei que fontes foram utilizadas no século XVI para esta identificação,embora possa estar relacionado com uma pedra que estava aí com onome romano da cidade inscrito nela (v. capítulo 10 para mais informa-ção sobre esta pedra).

Outra obra pública patrocinada pelo Arcebispo foi um novo açou-gue (Cunha, 1634-35: 411). Este edifício aparece no mapa de c. 1757entre as portas Nova e de Maximinos. A sua anterior localização era naR. Souto e a sua transferência é compreensível se se tiver em conta que,embora o edifício fosse limpo no final de cada dia, a sua associação asangue animal poluído e o seu cheiro seriam bastante notórios. Assim, oArcebispo, ao removê-lo para a parte de Braga mais ligada à dimensãomaterial da vida procurou purificar a Cidade (a parte intra-muros) edar-lhe um carácter mais sacro.

Uma das mudanças mais importantes que tiveram lugar na paisagemurbana nessa altura ocorreu no Campo dos Touros. Esta área, uma vezmais, tornou-se um espaço dedicado a touradas (Cunha, 1634-35: 411),mas nota-se que não houve mudanças em termos da sua estrutura; todaesta área permaneceu como era antes. Havia, claro, plataformas para osespectadores, mas elas eram todas temporárias, sendo usadas somentequando havia eventos nesta área. O que realmente mudou com a rein-trodução destas festividades nesta área, como se verá de seguida, foi oseu carácter. Para compreendermos isto devemos primeiro perguntarporque razão o Arcebispo decidiu revogar a decisão tomada em 1568 dese proibirem touradas em Braga. Um bom ponto de partida é a leituradas descrições das festividades que tiveram lugar nesta área alguns anosdepois, em 1627, quando um novo arcebispo, D. R odrigo da Cunha,chegou a Braga (Basto, 1627; R odrigues, 1627).

Após solenidades e procissões na Catedral e no eixo principal dacidade, houve dias de festividades no Campo dos Touros. Aqui, realiza-ram-se touradas (ibid.: 29.30; ibid.: 29-30), tal como geralmente acon-tecia nas festividades religiosas após as procissões, contudo, como estaera uma ocasião especial – isto é, a chegada de um arcebispo – tambémhouve outros eventos. Houve uma batalha simulada entre duas compa-nhias de soldados sob a liderança da nobreza de Braga (ibid.: 15v-18;ibid.: 20-22) e uma outra batalha simulada entre dois grupos de cavalei-ros dessa mesma nobreza, um vestindo roupas hispânicas e o outro rou-pas mouriscas (ibid.: 23v, 24; ibid.: 23-27).

Estas cerimónias não eram “meras” festividades, dado que elas ti-nham um significado cósmico e simbólico. Cerimónias como estas, queenvolvem lutas entre dois grupos de combatentes figurantes, represen-tam a dualidade da transição do Caos para o Cosmos, com o grupo quesimboliza o primeiro a ser derrotado pelo segundo (Eliade, 2002: 89). Omesmo pode ser dito acerca das touradas. O touro, aqui, é um símbolode Caos e de força primitiva, de cuja morte emana a vida através do seusangue (Chevalier e Gheerbrant, 1994: 650). No contexto deste con-

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junto de cerimónias compreende-se melhor todo o ritual da luta e mor-te do touro. Frutuoso Basto, que era um bom observador, mencionaque as touradas eram as festividades mais populares entre os membrosdo terceiro estado e que quanto mais violento fosse o touro mais entu-siasmados ficavam (1627: 23v, 24, 29).

Estes elementos permitem-nos fazer um primeiro esboço das razõespor detrás da mudança de política relativamente às touradas bem comode outras festividades que envolviam um certo grau (ainda que algosimulado) de violência. Em todas elas os membros da nobreza ocupa-vam um papel central. O mesmo se passava com as touradas. Até então,estas não eram muito diferentes daquilo que pode ser observado aindahoje em pequenas aldeias portuguesas onde qualquer homem pode par-ticipar (cf. Veiga de O liveira, 1984: 263-272). Em contraste, após areactivação do Campo dos Touros somente homens da nobreza podiamparticipar nestas actividades; aqueles que pertenciam ao terceiro estadotornaram-se assim simples espectadores. O que era até então uma activi-dade comunal tornou-se assim algo restringido à nobreza. Por outraspalavras, estas festividades, onde o drama cósmico era recreado, permi-tiam à nobreza encenar o papel de herói civilizador que assegurava aperpetuação do Cosmos. A nobreza parece ter tido algum sucesso emconvencer a sua audiência. Combater um animal tão indómito como otouro não é coisa fácil e, como mencionei antes, estas lutas eram apre-ciadas. Além disso, nos combates simulados, a coreografia era tão bemfeita que toda a gente ficava em suspenso (Basto, 1627: 18). Qual eraentão o propósito político do monopólio destas actividades pela nobreza?

Os nobres, ao colocarem-se a si próprios no centro do palco e oterceiro estado como espectador, “provavam” através dos seus actos opapel “essencial” que tinham na resolução do drama cósmico. Destaforma, a aristocracia ligava a perpetuação da ordem social com a perpe-tuação do Cosmos. Quanto ao terceiro estado, tudo o que lhe restavafazer era aplaudir a nobreza pelas suas acções.

Contudo, procurar manter a paz social através da reafirmação daordem social tradicional não era a única razão por detrás da decisão doArcebispo de reinstituir as touradas e actividades semelhantes em Braga.Um interessante detalhe mencionado por ambos os cronistas das festivi-dades de 1627 é de que na ala do palácio episcopal virada ao Campo doTouros havia uma janela através da qual os arcebispos participavam nascerimónias (Basto, 1627: 16, 16v; Rodrigues, 1627: 23). Dessa posição,os arcebispos presidiam às festividades que estavam a ter lugar diantedeles; eles eram os patronos que as ofereciam aos espectadores ansiososque aguardavam pelo seu início. Mais, enquanto que as touradas queaqui tiveram lugar na década de 1560 foram um mero expediente, agorao Arcebispo estava a oferecer a totalidade desta área à cidade com opropósito único da realização destas festividades. Há aqui, através destepatrocínio, com o cenário (ala e janela) e com as acções cuidadosamentecoreografadas dos arcebispos, uma teatralidade de poder que instiga aum certo culto da personalidade na figura do arcebispo. Com o podercarismático que daqui resultava, os arcebispos estavam numa posição decompensar alguma da fraqueza que resultara do seu estatuto primacialindefinido. É por causa desta fraqueza que o Arcebispo (e a elite dacidade) decide aproveitar-se de festividades violentas que noutras cir-cunstâncias condenaria. Quanto ao terceiro estado, tinham as touradasde volta, embora com uma forma diferente e com diferentes implica-ções para a vida social da cidade.

Há ainda mais um aspecto destas festividades que desejo explorar:porque razão estavam a ter lugar na área de Braga que é suposto ter umcarácter mais espiritual? Não deveriam antes ter tido lugar nos arredores

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da Cidade, no Jardim? Não necessariamente. Havia, na minha perspec-tiva, boas razões para a opção do Arcebispo por esta zona. Em primeirolugar, ao terem lugar dentro da Cidade estas festividades adquirem umcarácter mais solene. Em segundo lugar, convém notar que no micro-cosmos da Cidade, elas estavam a ter lugar na área que correspondia aocontinente americano, o qual, como mencionei no capítulo anterior,estava associado ao início do Cosmos, não tendo ainda atingido a suacompleta plenitude. Como tal, este era um local apropriado para a cele-bração de festividades violentas que recreavam o drama cósmico. Emterceiro lugar, ao confinar este género de festividades a esta área, separa-va-as de outras mais religiosas que tinham lugar noutros espaços públi-cos da Cidade como as ruas Nova, Souto, Maximinos e a Praça do Pão.Isto, uma vez mais, mostra o cuidado tomado em separar actividadesprofanas das religiosas. Finalmente, permitia ao Arcebispo fazer uso efec-tivo da ala do seu palácio, a qual constituía um dos lados desta área, paraeste teatro do poder.

Houve também outras mudanças no palácio episcopal nessa altura,para além da abertura de uma janela na ala. Na R . Souto, a ala oeste daentrada do palácio foi transformada numa colunata aberta com uma ga-leria por trás (fig. 21), no topo da qual o Arcebispo mandou fazer umnovo quarto para si (Cunha, 1634-35: 411). Esta colunata tem 14 colu-nas, ou seja, duas vezes sete (o número perfeito); repetições são umaforma de multiplicar o valor simbólico de uma imagem (Chevalier eGheerbrant, 1994: 270). Há assim aqui um uso do simbolismo de axismundi da coluna e do número 7 em associação com o quarto do Arce-bispo por forma a aumentar o seu prestígio. Nos mapas pós-1594, emparticular no de 1750, é representada uma janela de sacada feita segundolinhas Clássicas (talvez semelhante à outra cuja forma é desconhecida)ligando este quarto com o eixo da R . Sousa/ R . Souto e que se sabe tersido usada pelos arcebispos para assistir a procissões que aí passavam deuma posição superior (cf. Veríssimo Serrão, 1958: 25). Tal como acon-teceu no Campo dos Touros, esta era uma forma de presidir às cerimó-nias, desta vez religiosas, que passavam ao longo deste importante eixoda cidade. Juntamente com a sua intervenção nesta espaço, é possívelque Fr. Agostinho da Cruz tenha sido o responsável por outras duasestruturas que são visíveis no mapa de c. 1694: um chafariz e uma esca-da dupla na entrada do palácio. O chafariz, cuja forma é similar aoconstruído em 1594 no Campo de Santana, foi removido em 1723 enada mais se sabe sobre ele e seu programa iconográfico. É possível que,na sua posição em frente ao palácio episcopal, celebrasse os arcebisposde Braga. Quanto à escada dupla, que tinha um só lanço no início doséculo XVI, tem-se uma vez mais aqui uma duplicação como forma deaumentar o prestígio.

Parta terminar este capítulo, vou discutir o programa mais ambicio-so deste Arcebispo: a reconfiguração do Campo da Vinha. O que ele fezfoi, nem mais nem menos, emular a contemporânea Piazza del Popoloem Roma. Esta Piazza foi construída entre 1516-1586, com o objectivode proporcionar prestígio e grandiosidade à entrada norte de Roma atra-vés da construção de novas fachadas, tendo sido ainda aí colocado em1589 de um obelisco egípcio, trazido para a cidade originalmente peloimperador Augusto em 10 a.C. Este ficou na precisa intersecção das trêsavenidas que partiam da Piazza em direcção à cidade (Burke, 1975: 80,81). Este foi um dos quatro obeliscos egípcios que os papas ordenaramque fossem reerguidos em R oma, com o propósito de corporizar umaligação simbólica entre a Roma antiga e a posteridade cristã, as duas histó-rias de Roma (Schama, 1995: 284, 285). As razões que me levam a argu-mentar que esta Piazza estava a ser emulada em Braga são as seguintes.

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Em 1595, o Arcebispo adquiriu e doou uma larga parcela de terra naparte ocidental do Campo da Vinha à ordem religiosa de Santo Agosti-nho por forma a construir aí um novo convento (cuja construção ini-ciou-se em 1596) e onde uma faculdade de Teologia foi instalada demodo a permitir uma melhor formação dos pregadores (Ferreira, 1932:101). É interessante notar que este convento foi chamado de Nossa Se-nhora do Pópulo, que é o mesmo nome de uma das igrejas situadas naPiazza del Popolo e que empresta o seu nome à Piazza. Dado que sesabe que este Arcebispo tinha uma grande devoção pela imagem da Se-nhora que estava na igreja romana (Cunha, 1634-35: 410), pode ver-seaqui uma ligação intencional entre o convento bracarense e a igrejaromana. Mais, em ambos os casos estes edifícios pertenciam à Ordemdos Agostinhos, embora no caso de Braga também se possa acrescentarque o Arcebispo estava a favorecer a sua ordem religiosa dado ser tam-bém um Agostinho.

Outro importante ponto de comparação é que um obelisco foi tam-bém construído no Campo da Vinha (embora não com a forma exactade um egípcio), algo que pode ser visto nos mapas de c. 1694 e c. 1757.O obelisco romano tinha quatro fontes nos seus cantos e a versão deBraga tinha nos seus cantos quatro repuxos em forma de golfinhos (fig.22). Tal como o obelisco romano, também este estava construído naintersecção de três importantes ruas. Uma, para sudoeste, a R . Biscai-nhos, ia dar à importante área comercial do Campo das Hortas em fren-te à porta Nova, sendo também aqui que os arcebispos eram cerimoni-osamente recebidos antes de entrarem na Cidade. Outra, para sul, a R .Nova da Misericórdia, leva à Misericórdia e à Catedral. Finalmente,para sudeste, a R . Fonte Cárcova, leva ao Campo de Santana. Não pudeencontrar a data da construção inicial do obelisco; sabe-se que já em1603, o Arcebispo tinha dado ordens para que se iniciassem os trabalhosde abastecimento de água para o Campo da Vinha (AMB, Cartas dosSenhores Arcebispos e Cabidos), embora a mais antiga referência queencontrei que refere explicitamente o obelisco date de 1633, emboranessa altura já estivesse construído e a fornecer água (AMB, Livro ActasCâmara Cx. 16, lv. 33, fl. 321).

Outra semelhança é de que tanto o Campo da Vinha como a Piazzadel Popolo estão no lado norte de, respectivamente, Braga e R oma.

Finalmente, há também fachadas de grande monumentalidade noCampo da Vinha, como as do Seminário, as do convento de freiras doSalvador e as do convento do Pópulo, os quais estão distribuídos pordiferentes partes do Campo – respectivamente sul, norte e leste – porforma a fazer a sua presença mais sentida. Basta olhar para os mapas de c.1694 e c. 1757 para ver como a massa destes edifícios se estendia poruma larga extensão desta área. Assim, tudo o que o Arcebispo tinha quefazer era aproveitar a existência anterior do Seminário no lado sul e oconvento de freiras planeado para o lado norte, e de seguida juntar oconvento do Pópulo e certificar-se que estes dois últimos edifícios eramsuficientemente imponentes.

Mas porque é que o Arcebispo queria emular a Piazza del Popolo?Como mencionei em capítulos anteriores, em sociedades religiosas aorganização espacial é baseada na emulação do sagrado e de modelosprestigiosos. Neste caso, o Arcebispo ao emular uma das mais prestigio-sas praças de Roma, que era a capital do mundo católico, estava a colo-car Braga ao mesmo nível, o que pode ser visto como uma forma dereafirmar o seu periclitante estatuto primacial.

Finalmente, convém notar que existe também alguma influência daReforma Católica na reorganização deste espaço público. Afinal de con-tas, os edifícios dominantes nesta área eram todos religiosos e não secu-

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lares. Basta comparar o mapa de 1594 (onde somente o Seminário évisível) com o de c. 1694 para se poder constatar a diferença. Após aconstrução destes edifícios, para onde quer que uma pessoa dentro destaárea olhasse, havia sempre um proeminente edifício religioso. Isto é in-teressante porque esta área era, desde o início do século XVI, o princi-pal ponto de encontro da população de Braga para relaxar e conversar.Assim, a presença destes edifícios pode ser vista como uma forma decondicionar a interacção entre indivíduos, constantemente relembran-do-lhes a importância da prática de virtudes cristãs.

No entanto, apesar dos melhores esforços do Arcebispo, a situaçãoiria ficar pior tanto para Braga como para a Mitra, como se irá ver nopróximo capítulo.

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10. Uma crise de identidade

O ano 1619 foi um ponto de viragem nas relações entre Portugal eEspanha na Monarquia Hispânica. Até então, não tinha havido nenhu-ma tentativa séria de questionar essa unidade. Sectores influentes da so-ciedade portuguesa ainda esperavam que o rei eventualmente fizesse dePortugal a cabeça desta monarquia e de Lisboa a sua capital. Em 1619, orei Filipe II (III de Espanha), após 36 anos de real ausência em Portugal,foi a Lisboa por forma a obter das Cortes portuguesas um juramentosolene de reconhecimento do seu filho como sucessor. Os portuguesesnão desperdiçaram esta oportunidade única e montaram uma recepçãograndiosa de modo a obter do rei a confirmação da autonomia de Por-tugal (que ultimamente estava a ser erodida em algumas áreas) e, acimade tudo, convencê-lo a fazer de Lisboa a capital da Monarquia Hispâni-ca (Kubler, 1988: 110-112). Os portugueses foram bastante explícitosrelativamente às suas intenções, colocando mensagens ambíguas ao lon-go dos arcos triunfais da procissão real simultaneamente elogiando eameaçando o rei (ibid.: 113, 114). Contudo, o rei não ficou impressio-nado e após obter o juramento regressou rapidamente para Madrid.Nenhum rei espanhol voltaria a visitar Portugal durante o período daMonarquia Hispânica. É fácil imaginar a tremenda desilusão em Portu-gal após estes eventos: todas as esperanças que ainda restavam acerca dePortugal ocupar um lugar proeminente nesta monarquia tinham desa-parecido. Pior ainda, a autonomia de Portugal como reino independen-te estava a ser gradualmente erodida, tornando-se cada vez mais umaprovíncia de Espanha.

Mas para Braga, os eventos de 1619 foram ainda piores. Como se aatitude do rei não fosse suficiente, houve ainda dois incidentes duranteeste encontro que revelaram que o estatuto primaz de Braga estava já aser abertamente contestado. Desde o momento da sua chegada a Lisboa,o arcebispo D. André Furtado de Mendonça estivera a ostentar aberta-mente a sua cruz primacial (Cunha, 1634-35: 458). Contudo, os oficiaisespanhóis opuseram-se a tal, contestando desta maneira o estatuto pri-maz de Braga; o Arcebispo replicou caminhando com a sua cruz pelasruas da cidade bem como entrando no palácio real com ela (ibid.).Como se este incidente não fosse suficientemente preocupante, o Arce-bispo ficou completamente chocado quando o rei o informou que iapermitir que o bispo de Lisboa proclamasse o juramento solene das Cor-tes, sob o pretexto de que a sua diocese era a mais antiga (ibid.: 459). OArcebispo protestou veementemente argumentando que ele era o pri-maz e que como tal devia ser ele a proclamar o juramento, ameaçandodeixar Lisboa e declarar inválido o encontro das Cortes (ibid.). O reiacabou por aceitar mas o Arcebispo ficou furioso e após o encontrovisitou vários lugares da diocese de Lisboa mostrando a sua cruz prima-cial afirmando assim a sua superioridade sobre o bispo de Lisboa cujareacção foi emitir um interdito proibindo D. André Furtado de Men-donça de deambular na cidade (ibid.: 460). O tom entre ambos os ho-mens aumentou tendo acabando em censuras mútuas (ibid.). A relação

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entre eles acalmou-se após a intervenção do núncio apostólico, tendo oArcebispo regressado a Braga (Cunha, 1634-45: 460; Ferreira, 1932: 135).

Este desafio a Braga por Lisboa foi ainda mais chocante que a atitudedos oficiais espanhóis. Afinal de contas, embora houvesse um conflitoentre Braga e Toledo, pelo menos dentro de Portugal a posição de Bragatinha sido previamente indisputada. Agora, à medida que Braga pareciaestar a perder face a Toledo, nem tinha sequer a consolação de ser aprimeira em Portugal, uma vez que havia outras dioceses, mais precisa-mente Lisboa, dispostas a ocupar o seu lugar. Assim, parece que, apesardos melhores esforços de Fr. Agostinho de Sousa em reafirmar o estatu-to primaz de Braga através de todas as obras que ele patrocinou (v. capí-tulo 9), estas não só falharam em impressionar e convencer o rei mastambém, e inesperadamente, a diocese portuguesa de Lisboa. No entan-to, na sequência do que se passou em Lisboa, a elite de Braga aindaprocurou reafirmar o estatuto da cidade com a construção de mais umpar de monumentos celebrativos.

Um desses monumentos foi o cruzeiro (fig. 23) que pode ser vistonos mapas pós-1594 no Campo das Hortas, em frente à Porta Nova36.Este cruzeiro, cuja construção iniciou-se em 1621 (Oliveira, 1999: 45;Araújo, 2003: 23), substituiu o do início do século XVI na mesma posi-ção. O novo cruzeiro manteve alguns dos elementos do predecessor:tinha um formato de axis mundi com uma base quadrangular, uma co-luna no meio e uma esfera no topo e continuou a cumprir os papeis desacralizar o espaço envolvente e defender a porta da Cidade. Mas tam-bém havia diferenças: era mais maciço e alto que o anterior, tendo sidoconstruído segundo linhas Clássicas. Com tal monumentalidade, era di-fícil para quem aí passasse não reparar nele. Frutuoso Basto menciona-oem 1627, comparando-o com aqueles que podiam ser encontrados emRoma (p. 10): uma vez mais, a emulação de Roma. Mas há mais. Note--se que na parte inferior está esculpido um padrão de diamantes. Estes,na tradição ocidental simbolizam a soberania universal, a incorruptibi-lidade, a realidade absoluta (Chevalier e Gheerbrant, 1994: 265). Note--se também que esta cruz tem duas aspas, ao contrário do anterior, quesó tinha uma. Assim, isto não é um cruzeiro qualquer: é o cruzeiro dosarcebispos de Braga como primazes, o qual é, adicionalmente, suporta-do pelos valores associados aos diamantes. Na minha perspectiva, a au-diência a quem este cruzeiro se dirigia eram os oficiais, reais e outros,que vinham de Lisboa. Daí este cruzeiro ter sido colocado no términoda estrada que liga Braga a Lisboa (para sudoeste), junto à muralha.Como tal, está a lembrar a esses oficiais, bem como a outros visitantes,quem era o primaz de Portugal.

Quanto ao segundo monumento celebrativo, foi construído noCampo de Santiago. Segundo um documento da Câmara, foi decididoem 1625 construir aqui uma fonte dado que a área circundante nãotinha muita água (AMB, Cartas Arcebispos e Cabido: doc. 26), Toda-via, olhando para a sua forma37 (fig. 13) pode ver-se que também houveoutra razões para a sua construção. Afinal de contas, para que é que umafonte que fornece água precisa de um obelisco e de uma cruz de duasaspas? Quanto à cruz, importa lembrar que este monumento substituiuo cruzeiro que já existia nesta área, o que significa que continuou acumprir o seu papel. Contudo, porque a cruz também era episcopal,pode ver-se aqui uma associação intencional dos arcebispos com o pres-tígio dos obeliscos. A escolha desta área para mais um monumentocelebrativo era, provavelmente, por se situar na entrada de um dos prin-cipais eixos da Cidade – a R . Santa Maria.

Apesar deste último esforço, outra fonte, construída na mesma altu-ra num minúsculo carvalhal (conhecido por Carvalheiras) perto da ca-

37 Embora haja umadata – 1745 – gravadaneste monumento, asua estrutura é já visívelno mapa de c. 1694.Essa data estáprovavelmenterelacionada comalguma reconstruçãoque teve então lugarno obelisco, dado quea pedra onde está adata é diferente da doresto da fonte.

36 Actualmente, estecruzeiro encontra-seperto da capela deS. Sebastião.

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pela de S. Sebastião38 (ibid.), aponta, por outro lado, para o surgimentode um cepticismo considerável pela elite de Braga relativamente à eficá-cia destes monumentos celebrativos. Uma vez mais, tal como aconteceucom a fonte anterior, a principal razão invocada para esta construção foio fornecimento de água para a área circundante (ibid.). No entanto,olhando para o seu tamanho e localização, pode inferir-se uma outraintenção. Esta fonte era mais pequena que as anteriores e encontra-senuma área fechada, entre árvores, como se pode ver nos mapas pós--1594, ao contrário das outras que estão sempre em espaços abertos evisíveis para uma vasta audiência. Sendo assim, porquê estas diferenças?

Na minha perspectiva, o que a elite de Braga estava a fazer era atransformar a área das Carvalheiras perto da capela de S. Sebastião numJardim Arcádico. Como argumentei anteriormente no capítulo 7, Bragatinha, desde o início do século XVI, sido organizada segundo um es-quema cosmológico com uma Cidade interior, um Jardim exterior e,mais além, o Caos. Em relação ao Jardim, enquanto que a área maispróxima da Cidade era cultivada, à medida que se se afastasse cada vezmais desta, a Natureza tornava-se cada vez menos tocada intensivamentepor mão humana, acabando-se por entrar numa paisagem arquétipa co-nhecida por Arcádia, onde uma economia pastoral era praticada (Coos-grove, 1993: 293). Havia dois tipos de Arcádia descritas na literaturaClássica. Na primeira, de origem grega, a Arcádia é descrita como umapaisagem áspera, habitada por pessoas brutas que viviam em cavernas ouem cabanas rudes (Schama, 1995: 526, 527); a segunda, desenvolvidamais tarde pelo romano Virgílio, por contraste, era um local idílico, deonde todas as coisas selvagens tinham sido banidas, e cheio de árvores,fontes, ribeiros e uma eterna Primavera, e separada de outros lugarespor um bosque (Schama, 1995: 528, 529; Mulinacci, 1999: 33). Foi esteúltimo tipo de Arcádia que foi adoptado pelos Europeus no século XVI,em particular graças ao livro Arcadia de Sannazaro, publicado em Ve-neza em 1519 (Schama, 1995: 531) e cuja influência é igualmente visí-vel na literatura Arcádica portuguesa (Mulinacci, 1999). Olhando parao que estava a acontecer nas Carvalheiras, em Braga, podemos encontaralgumas das características da paisagem arcádica: uma área isolada e cer-cada de árvores, com uma fonte a meio, estando, além disso, fora daCidade. Somente o ribeiro e a “Primavera Eterna” estavam em falta,mas a pouca distância, para sul, fluíam as águas do rio Deste acerca dasquais o arcebispo D. R odrigo da Cunha escreveria poucos anos depoisque elas fazem os campos “aprazíveis à vista e os torna com as flores (…)numa alegre e perpétua Primavera” (1634-35: 27). Assim, parece quetodos os elementos da Arcádia estavam presentes. Porque estava a elitede Braga a adaptar este espaço a uma Arcádia?

O carácter edénico da Arcádia, com as suas próprias leis, indepen-dente dos problemas que afectavam a sociedade humana, era visto pelaspessoas como um abrigo ideal com efeitos terapêuticos sobre as ansieda-des do presente (Cosgrove, 1993: 296; Mulinacci, 1999: 104, 105). As-sim, com todas as ansiedades envolvendo a degradação do estatuto deBraga na década de 1620, pode-se compreender melhor porque é que aelite procurou criar um lugar de refúgio temporário e de idílio pastoral.E os seus membros certamente passavam aí um período de tempo con-siderável apreciando o ambiente, sentados nos bancos que se sabe teremexistido em redor da fonte (AMB, Tombo Bens Câmara, 1737: 101v).Mais, chegou mesmo a abrir-se uma nova porta para esta área através damuralha da Cidade, em frente à capela de S. Sebastião (AMB, LivroActas Câmara, Cx. 16, lv. 33, fl. 52). Esta ligação mais directa entre aArcádia e o interior da Cidade constitui outra indicação de uma inten-ção de se fazer uso frequente dela39.

39 Havia então outraporta numa das torresdessa área, como sepode ver no mapa de1594. Esta porta foiconstruída em 1581(sendo mais pequenaque a que estárepresentada, uma vezque é referida comosendo um postigo, ouseja, uma portapequena) e erautilizada para servir aslatrinas que foramconstruídas nessa torre(Arquivo Municipal1970: 400). Obvia-mente, em taiscircunstâncias, estaporta não era a maisapropriada para fazeruma ligação entre aCidade e asCarvalheiras.

38 Hoje, esta fonte estádentro do MercadoMunicipal de Braga. Asua parte superior, comuma tocha simbolizan-do o fogo da fé, não éa original. Segundo oTombo dos Bens daCâmara, tinhainicialmente umapirâmide e uma cruzde duas aspas (1737:101).

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Mas houve também outra razão para a construção desta Arcádia. Emtodos os mapas de Braga, é possível ver entre as árvores das Carvalheirasuma pedra quadrangular, que era utilizada como mesa. Esta pedra já láestava antes do século XVI e era usada durante as festividades do S. Joãopara colocar pequenos cestos de fruta que eram entregues mais tarde aoscavaleiros que tinham participado na caça do porco preto (Belino, 1895:134), no que parece ter sido um ritual de fertilidade e abundância. Noinício do século XVII, a cerimonia dos cestos de fruta já tinha sidoabandonado (ibid.. 134), talvez por causa da R eforma Católica, mas apedra por lá permaneceu. O que é interessante acerca desta pedra é queela é de origem romana e era localmente considerada como a mais velhainsígnia de Braga, dado que a sua inscrição continha o nome romano dacidade (Figueiredo, ms. [1723-24]: fl. 4; AMB, Tombo Bens Câmara1737: 101v). Não pude apurar se esta tradição datava já da Idade Média,ou resultou da intervenção dos humanistas do século XVI, não obstante,o que interessa é que no início do século XVII era considerada umainsígnia. Segundo D. Luís Figueiredo, em 1625, a Câmara, após tomar adecisão de aqui construir uma fonte, também decidiu talhar de novo asletras da inscrição, dado estarem bastante gastas (1723-24: fl. 4v). Assim,podemos ver aqui uma ligação entre ambas as acções. Quanto à inscri-ção – BRACARA AUGUSTA FIDELIS ET ANTIQUA (que eram ostítulos de Braga em 1625) – foi “transferida” da face superior da pedrapara os seus quatro lados, com cada um deles tendo uma das palavrasprincipais (ibid.: fls. 4, 4v). Esta inscrição não era uma representaçãoautêntica da original – Bracara Augusta –, um facto que o membro daAcademia Portuguesa de História, Jerónimo Contador de Argote, játinha chamado a atenção em 1732 (p. 232), quando demonstrou que osdois últimos adjectivos – Fidelis e Antiqua – tinham sido adicionadosséculos mais tarde. Não obstante tal serve para sublinhar a intenção daselites de Braga em 1625 de forjar uma ligação com o passado romano.Qual era então o propósito da inserir esta pedra nesta nova Arcádia?

Embora se possa argumentar que a cosmologia de Braga estava or-ganizada segundo as suas paisagens arquétipas de Cidade, Jardim e Caos,todas elas estavam, no entanto, inseridas num padrão de tempo cíclicodentro do qual o valor positivo ou negativo de cada uma delas variavasegundo a sua posição numa fase ascendente ou descendente do ciclo(Cosgrove, 1993: 297). Assim, a Cidade podia ser vista a certa alturacomo o pináculo da vida civil e noutra como um lugar de corrupção,gula e violência, ao passo que o Caos poderia ser o local da naturezarude ou a vibrante semente da vida social (ibid.: 297, 298). Desta forma,sempre que o ciclo estava descendente e próximo do seu termo, umacerta dose de sofrimento estava reservada à humanidade, isto é, aosmembros de um certo grupo (Eliade, 2000: 144), que neste caso eramos habitantes de Braga. Dado que o estatuto de Braga estava a degradar--se, os seus habitantes (em particular a elite, que era quem tinha mais aperder) tinham a percepção que a própria Cidade também estava a de-cair. Nestas circunstâncias, o Jardim (em particular a Arcádia, que erasimbolicamente a área do Jardim mais afastada da Cidade) acaba por sermais virtuoso que a Cidade dado que não estava corrompido pela hu-manidade; como tal, esta área tornou-se a semente de uma nova vidasocial, de uma nova Cidade que emergiria assim que o ciclo estivessecompleto. É aqui que entra a pedra romana. Sendo a insígnia da cidaderomana torna-se como tal a sua representante. Estava igualmente na áreaonde, segundo o mapa de 1594, o fórum da cidade romana, ou maisprecisamente, o seu Centro, estava. Ora, como mencionei no capítulo7, a cidade romana estava associada com o início de Braga, quando acidade era vista como estando mais próxima da perfeição, dado que es-

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tava no início do ciclo. Assim, pondo tudo isto junto, argumento que apedra romana era a semente de uma nova Cidade. A sua forma quadradasimbolizava a ideia de estabilidade, de um universo criado em oposiçãoao Caos. A sua pedra, através da sua dureza, fazia referência à ideia doabsoluto, do sagrado. Quanto às suas palavras, uma vez que foi atravésda Palavra que Deus criou o mundo, elas continham a essência de Bragacomo uma potência à espera de ser recriada. A integração desta pedra naArcádia era, como tal, uma forma de assegurar a rápida e saudável recria-ção de uma nova Cidade. Os habitantes de Braga que se dirigiam àfonte para obter alguma água ou simplesmente sentar-se em redor delapodiam também contribuir para este processo. Note-se que no detalha-do mapa de c. 1757, a pedra romana estava num terraço acima da fonte,o que a tornava, bem como à inscrição, visível a quem quer que estives-se perto dela. Qualquer pessoa que se aproximasse da pedra a partir dafonte, curiosa em ler a inscrição que estava gravada nos seus quatro la-dos, seria forçada a andar em círculo em redor dela. Desta forma, umritual circum-ambulatório seria executado, santificando e assegurando apotencial harmonia deste Mundo.

R esumindo, o programa arcádico pode ser visto como o resultadode uma crise de identidade relativamente ao papel de Braga e Portugalnuma monarquia que estava a suprimir as suas identidades e a tornar-secada vez mais espanhola. Há neste programa um desejo de cortar com opresente e regressar a um passado idealizado, como parte de uma reac-ção que emerge nas décadas de 1620 e 1630 e que iria eventualmentelevar a um corte com a Espanha em 1640. Esta reacção pode igualmenteser vista em outros eventos que tiveram lugar em Braga nessas décadas.

O início da construção de uma nova igreja em Braga em 1625 nolado ocidental do Campo dos R emédios por uma das confrarias dedi-cadas à Paixão de Cristo, a Irmandade de Santa Cruz (Costa, 1993: 16),constitui outro sinal de reacção contra a presente situação. Os docu-mentos dessa altura mencionam que as razões para a sua construção es-tavam relacionadas com o desejo da Irmandade em ter a sua própria casabem como a necessidade de acomodar o número crescente de membros(ibid.: 14, 72). Todavia, olhando para a fachada da igreja40 que foi cons-truída (fig. 24), há lá elementos que também apontam para outras moti-vações. A fachada é bastante monumental, tendo sido construída segun-do as linhas da Ordem Dórica, com colunas dóricas no rés-do-chão ecolunas jónicas no primeiro andar, seguindo assim os cânones dos trata-dos de arquitectura Clássica. Segundo estes tratados, a Ordem Dóricadeveria ser usada em igrejas dedicadas a Cristo bem como a santos bra-vos e corajosos (Serlio, 1982 [1611]: 262). No entanto, dado que so-mente uma minoria da população estava familiarizada com estas subtile-zas, há também na fachada um conjunto de elementos que fazem refe-rência explícita à Paixão de Cristo. Assim, os instrumentos da Paixãosão visíveis, bem como a Santa Cruz, a Árvore da Vida e uma palmeira,esta última fazendo referência à Ressurreição de Cristo após o Calvário.Por cima do frontão há três estátuas, representando o imperador roma-no Constantino, a sua mãe a imperatriz Santa Helena e finalmente oprimeiro rei português D. Afonso Henriques (Costa, 1993: 19, 70). Aestátua de Constantino é uma clara alusão à batalha de Ponte Mílviocontra as forças do tirano romano Maxentius. Na véspera da batalha,Constantino, cujo exército estava em inferioridade numérica, viu umacruz no céu com as palavras In Hoc Signo Vinces (latim para “Sob estesigno (a cruz) vencerás”) escritas nela. E graças ao poder da cruz, o seuexército derrotou a força numericamente superior do adversário. Apósa batalha, ele decretou o famoso Édito de Milão, em 313, o qual punhafim às perseguições de cristãos e dava-lhes o direito legal de venerar

40 Ainda intactaactualmente, excepto ofrontão que é doséculo XVIII, bemcomo as torres(Oliveira 1999: 131,132).

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Deus em público. Quanto a Santa Helena, uma devota cristã, ela en-controu a Santa Cruz numa visita a Jerusalém. A estátua de D. AfonsoHenriques pode ser explicada por referência ao milagre da batalha deOurique, no sul de Portugal, em 1139. Nesta batalha, as forças portu-guesas combateram um exército muçulmano numericamente superiore, tal como aconteceu a Constantino, o mesmo milagre da cruz tevelugar antes da batalha, a qual acabou com uma vitória portuguesa. Essemilagre foi eventualmente visto como um sinal de protecção divina so-bre Portugal e na sequência dela D. Afonso Henriques foi proclamadorei de Portugal (até então um condado do reino de Leão) (Mattoso,1993: 70). Este episódio está associado com um dos mitos fundadoresde Portugal. O acto fundador de Portugal resultou de um acto políticodo seu primeiro rei, sob sanção divina (Buescu, 1991; Nogueira Silvaand Hespanha, 1993: 30). É esta mensagem que, do meu ponto de vista,a fachada da igreja de Santa Cruz está a transmitir para uma larga audi-ência, através da sua associação com o significado das estátuas e os sím-bolos cósmicos da vida (a cruz e as árvores). Há um apelo ao regresso deum rei que garantiria a autonomia (vida) de Portugal; uma autonomiaque resultara de uma sanção divina, o que significava que as tentativasde dissolver a autonomia portuguesa iam contra a vontade de Deus. Eum Portugal independente serviria muito melhor as pretensões de Braga.

Há também outros elementos que sugerem que o propósito destaIrmandade era mais que simplesmente a devoção de Cristo, tendo igual-mente uma agenda política de resistência contra Espanha. Devemosigualmente lembrarmo-nos que esta Irmandade foi fundada em 1581por intermédio da acção de vários membros da elite de Braga, em parti-cular clérigos (Costa, 1993: 13, 14). Tendo em conta que Portugal foiincorporado na Monarquia Hispânica no ano anterior, é possível que afundação desta Irmandade nessa altura não seja casual. A elevação destaIrmandade a Irmandade R eal em 1822, algo celebrado pelo escudo dearmas real visível no frontão (ibid.: 20, 21), é outro elemento que mos-tra a ligação próxima entre a Irmandade e a realeza portuguesa.

A publicação em 1634-35 de uma história dos arcebispos de Braga,escrita pelo arcebispo D. R odrigo da Cunha, constituiu outro sinal deforte insatisfação. Esta história foi escrita a pedido dos habitantes deBraga a este arcebispo sob a forma de uma peça teatral alegórica execu-tada aquando da sua entrada na cidade em 1627; algo que foi por eleaceite com um sorriso (Basto, 1627: 74-76). A história começa por men-cionar a antiguidade da cidade, em particular apontando para a existên-cia de diversos vestígios romanos. As inscrições que estavam no Campode Santana e em alguns dos edifícios da cidade foram todas menciona-das, chegando mesmo as imagens de algumas delas a ser impressas (Cu-nha, 1634-35). A história também referia os restos de edifícios de gran-des dimensões, como um anfiteatro e um aqueduto, que ainda eramvisíveis nas ruínas da cidade romana entre Braga e o rio Deste (ibid.:11). Contudo, apesar de Braga ter antiguidades de que poucas cidadespodiam gabar-se, o Arcebispo põe-nas teatralmente de lado mencio-nando que a maior glória desta cidade não estava nas suas antiguidadesmas em ter sido a primeira cidade hispânica a receber a fé de Cristo(ibid.: 27, 28). Segundo o Arcebispo, foi perto de Braga que o apóstoloSantiago inicialmente desembarcou quando veio para a Hispânia, e foinessa cidade que ele começou a pregar (ibid.: 29, 67). O apóstolo Santia-go escolheu S. Pedro de Rates como o primeiro bispo hispânico e, comotal, isto fez de Braga a sé primaz (ibid.: 30, 69). Desta forma, o Arcebis-po assertou explicitamente através da história os direitos primaciais deBraga na Hispânia. Após ter afirmado isto no primeiro capítulo do livro,o Arcebispo iniciou uma longa e ininterrupta genealogia de todos os

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arcebispos de Braga, que agiram como herdeiros e guardiões do pactooriginal entre o apóstolo e o primeiro arcebispo de Braga: um pacto,cuja persistência assegurou o estatuto primaz da cidade e o prestígio dosseus habitantes e, consequentemente, dos seus arcebispos. De modo afazer esta genealogia ainda mais ilustre, o Arcebispo decidiu considerarcomo verdadeiras algumas crónicas apócrifas escritas em 1594 e consi-derar mais dez dos seus antecessores como santos, para além dos quatrojá aceites pela Igreja (Senna Freitas, 1890, vol. 1: 170; vol. 2: 412, 413).

Em 1635, D. R odrigo da Cunha foi afastado e um novo arcebispo,D. Sebastião de Matos Noronha, que era fiel ao rei espanhol, foi impos-to para Braga (Araújo Oliveira, 1990: 187, 189). A publicação por D.R odrigo da Cunha da história dos arcebispos de Braga pouco antes, foiquase de certeza uma das razões para o seu afastamento, uma vez quequestionava as tentativas espanholas de degradar o estatuto de Braga.Por outro lado, as dificuldades financeiras que a Monarquia Hispânicaestava então a ter devido aos seus várias aventuras externas falhados,forçou-a a levantar vários e pesados impostos em Portugal que vieram aafectar todos os grupos sociais, sem qualquer respeito por privilégiosexistentes (ibid.: 187). O rei estava à espera que estas medidas fossemfortemente resistidas, daí a nomeação de um novo arcebispo que iria,esperava-se, executá-las sem levantar objecções (ibid.). D. R odrigo daCunha já tinha mostrado, através dos seus actos, não ser de confiançapara executar estas medidas. A reacção foi rápida. Em 1636 houve mo-tins em algumas cidades da arquidiocese, nomeadamente Viana e VilaR eal, e em 1637 na própria Braga, com membros de todos os grupossociais participando nela, tendo, no entanto, fracassado (ibid.: 188, 191,192). Motins semelhantes também ocorreram em diversas outras cida-des do país.

Mas a situação política em Braga nesta altura estava ainda mais tensadevido à existência de outros factores que perturbavam a paz social.Desde a década de 1620 havia alguma agitação civil provocada peloterceiro estado, que pretendia uma maior participação na vida políticade Braga, tendo um grave motim ocorrido em 1640 (ibid.: 193, 200).Assim, como se pode ver, as medidas tomadas em finais do século XVIpara impedir a ascensão social e participação política do terceiro estadonão estavam a ter os resultados desejados.

Em 1640, um golpe de estado removeu o rei espanhol do tronoportuguês, com uma nova dinastia – os Bragança – declarando a inde-pendência de Portugal da Monarquia Hispânica. Contudo, qualquer ex-pectativa da parte de Braga de que este evento marcaria o início de umanova era mais favorável aos seus interesses foi de curta duração, dadoque a situação política deteriorou-se ainda mais. Seguiu-se uma longaguerra de 28 anos entre os dois reinos, a qual trouxe vários problemas aBraga. Mais motins tiveram lugar nas décadas de 1640 e 1650, devido àpersistência de impostos elevados causados pelo esforço de guerra, bemcomo por diversos abusos envolvendo o recrutamento de soldados (ibid.:194, 197, 202). Tudo isto estava a ocorrer juntamente com o conflitoaberto entre a aristocracia e o terceiro estado de Braga, com este últimoprocurando aproveitar-se da situação instável para tentar obter uma par-ticipação mais activa na vida política da cidade (ibid.: 193-195, 199--201). Obviamente, esta conjuntura de conflito social e instabilidadepolítica, bem como a sua longa duração, enfraqueceu consideravelmen-te o sentimento de comunidade entre os habitantes de Braga.

Mas não deveriam os arcebispos, no seu papel de senhores da cida-de, agir como uma força moderadora por forma a diminuir a tensãosocial? A resposta é afirmativa; o problema é que desde 1641 Braganão tinha tido arcebispos. Na altura do golpe de 1640, o arcebispo era

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D. Sebastião Matos, o qual, como mencionei antes, era um fiel do reide Espanha. Este arcebispo organizou em 1641 uma conspiração paraassassinar o novo rei português, a qual foi descoberta antes de ser execu-tada, tendo D. Sebastião de Matos sido preso (Ferreira, 1932: 165, 166).Pode-se facilmente imaginar o choque e a vergonha que os habitantesde Braga sentiram após saberem que o seu senhor tinha conspirado con-tra vida do rei de Portugal. Pior ainda, devido à pressão espanhola, aSanta Sé recusou-se a reconhecer a nova dinastia portuguesa, o que sig-nificava que o novo rei não podia nomear um novo arcebispo para Braga(ibid.: 179, 180). Somente em 1671, após o final da guerra com Espanha,foi possível aos arcebispos regressar a Braga. Assim, durante 30 longosanos e no meio de uma guerra e instabilidade social, Braga não tevearcebispos, os quais tinham sido desde os dias de D. Diogo de Sousa osprincipais suportes da identidade católica da cidade. Esta série de even-tos viria a ter sérias consequências, dado que a figura na qual a identida-de de Braga estava centrada estava ausente, o que tornava assim difícil apersistência de uma identidade católica comum como meio de unir osseus habitantes.

Obviamente, com tantos membros do clero a viver em Braga e comum Cabido a substituir os arcebispos na sua ausência, poder-se-ia suporque, em conjunto, eles seriam capazes de aguentar a situação. Nem porisso. O problema era que desde o início do século XVI, a autoridade emBraga tinha estado fortemente personalizada na figura do arcebispo, umaautoridade ainda mais fortalecida após o Concílio de Trento que tinhaimposto aos bispos um papel mais vigilante sobre o bem-estar moral eespiritual da população. Por outras palavras, havia demasiado poder con-centrado numa única figura. E com a cabeça ausente por tanto tempo, ocorpo da Igreja em Braga começou a ter problemas, com um númerosignificativo de clérigos não tendo simplesmente a capacidade de fazeraquilo que se esperava deles. Tal é visível nas queixas constantes doterceiro estado, não só em Braga, mas um pouco por todo o Portugal.Por exemplo, era vulgar haver homens que escapavam ao serviço mili-tar fazendo-se clérigos com a conivência dos Cabidos (IAN/TT, Capí-tulos Gerais Estados Povo, vol. 15: 188v-189). Isto resultou num cleroincompetente e pouco educado, o que teve graves consequências para asua reputação (ibid.). Igualmente preocupante era muitos membros doclero participarem em actividades comerciais, algo que lhes era proibi-do, degradando uma vez mais o seu estatuto e causando prejuízos aosinteresses do terceiro estado (ibid. 189, 189v). Finalmente, tornou-semais comum as freiras desrespeitarem os seus votos e deixarem os seusconventos, do que resultaram vários escândalos (ibid.: 190, 190v). Tal écompreensível se se tiver em conta que muitas freiras eram forçadas aesse estatuto contra a sua vontade. Foram os bispos quem, após o Con-cílio de Trento, tinham ficado com a responsabilidade da disciplinaconventual e como eles permaneceram ausentes em Portugal durantecerca de 30 anos, pode-se compreender melhor as acções de muitasdessas freiras.

Assim, o clero, supostamente modelo das virtudes cristãs, tinha per-dido muito do seu prestígio durante este período entre o terceiro esta-do, algo que teria consequências importantes para a identidade de Braga,como se verá no próximo capítulo.

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11. Uma identidade fragmentada

Em 1671, após o final da guerra com Espanha e com o retomar dasrelações diplomáticas com a Santa Sé, um novo arcebispo – D. VeríssimoLencastre – foi nomeado para a sé de Braga. Aparentemente, houve umregresso ao status quo ante: o estatuto primaz de Braga já não estavamais ameaçado devido à independência portuguesa e a presença de umarcebispo iria consolidar a identidade católica de Braga e o seu senti-mento de comunidade. Contudo, estas expectativas eram demasiadooptimistas no que concerne o segundo ponto.

Convém lembrar que Braga tinha estado sem um arcebispo durante30 anos. Trinta anos é muito tempo, sobretudo nas sociedades do Anti-go R egime onde a maioria da população era jovem. O que isto signi-ficava era que em 1671 a maior parte dos habitantes de Braga não estavamconscientes do papel dos arcebispos como garantes da identidade da cida-de, uma vez que nem sequer tinham nascido em 1641 ou eram demasia-dos jovens nessa altura para se lembrarem desse papel. Quanto à geraçãomais velha, a memória dos arcebispos estava certamente manchada pelasacções de D. Sebastião de Matos. Assim, a chegada de um novo arcebispoem 1671 era para a maior parte da população a chegada de um estranho.

A posição dos arcebispos encontrava-se ainda mais fragilizada devi-do ao conflito político que opunha o terceiro estado à elite. O fim daguerra significava a consolidação da nova dinastia e consequentementeda autoridade da elite. Os arcebispos pertenciam e protegiam a elite, e,como tal, a retoma do seu poder em Braga significava que iria ser maisdifícil ao terceiro estado pressionar no sentido de uma maior participa-ção na vida política da cidade, algo que não faria os arcebispos particu-larmente populares.

D. Veríssimo Lencastre estava consciente destas ameaças à sua auto-ridade e tomou algumas medidas no sentido de reafirmar o papel epis-copal. Sabe-se que procurou refrear alguns dos abusos cometidos peloclero. Por exemplo, obrigou os conventos de Braga a ter janelas comgelosias de modo a forçar a reclusão das freiras (AMB, Index das couzasmais memoraveis: fl. 124v). O Arcebispo teve igualmente o cuidado deaparecer várias vezes em público por forma a fazer-se mais visível, demodo a que as pessoas soubessem que havia uma vez mais um arcebispoao comando. Assim, por exemplo, fez extensas visitações na arquidiocesee administrou o cisma a muitos fiéis (Ferreira, 1932: 187), executandodesta forma o seu papel de bom pastor.

Contudo, qualquer impacto positivo causado pelas suas acções de-pressa se evaporou, dado que após o seu regresso a Lisboa em 1677 paradirigir a Inquisição, Braga permaneceu sem um arcebispo durante seisanos. A razão para tal foi que o seu sucessor – D. Luís de Sousa – era oembaixador português em Roma, só tendo deixado esse lugar em 1683.Obviamente, esta longa ausência não ajudou a frágil posição dos arce-bispos em Braga.

Não obstante, após a sua chegada a Braga, D. Luís de Sousa, apoioua construção de duas novas igrejas – Congregados e S. Vítor –, que, do

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meu ponto de vista, revelam uma tentativa de reduzir o fosso entre oterceiro estado e os arcebispos em particular e o clero em geral.

Em relação à primeira igreja, em 1686, um dos mais influentes mem-bros do Cabido, João Meira Carrilho, tomou a iniciativa de ajudar aCongregação do Oratório a estabelecer-se em Braga, algo que teve oforte apoio de D. Luís de Sousa (ibid.: 194-196). Ao contrário das Or-dens religiosas, esta era uma congregação de padres seculares que nãotinham tomado votos espirituais e cuja principal preocupação era o aper-feiçoamento da vida católica através de uma série de exercícios espiri-tuais e práticos que eles procuraram disseminar através da execução decerimónias públicas envolvendo uma vasta audiência (Santos, 1997: 226,227). Esta Congregação era bastante recente em Portugal, tendo a suaprimeira casa sido fundada em Lisboa em 1668 (ibid.: 224).

Desde meados do século XVII que o prestígio e a eficiência do cle-ro tinham-se degradado consideravelmente, pelo que o apoio ao esta-belecimento do Oratório em Braga é compreensível: era uma fundaçãorecente e como tal o preconceito entre o terceiro estado em relação aosseus membros era menor. Desta forma, esperava-se que os membros doclero tivessem de novo um papel mais eficaz, de acordo com preceitosda Reforma Católica.

Em 1687, o Oratório tinha uma pequena igreja construída no Cam-po de Santana, sendo a sua parte superior visível no mapa de c. 1694, nolado sul desta área em frente à capela de Santana (Oliveira, 1994: 38). Aescolha deste local não foi acidental; afinal de contas, esta era a área deBraga onde havia uma maior circulação de pessoas e onde os seus habi-tantes e forasteiros encontravam-se e trocavam produtos, ideias e notí-cias. Desta maneira, os membros do Oratório eram capazes de interagirmais activamente com o terceiro estado e reafirmar as ideias da R efor-ma Católica bem como combater heresias que pudessem desenvolver--se nesse lugar onde pessoas de diferentes proveniências se encontravam.

Quanto à igreja de S. Vítor, situada no limite leste da área extra-muros (fig. 25), o Arcebispo promoveu a sua reconstrução também noano de 1686 (Smith, 1972. 5; Oliveira, 1993: 47). Há um conjunto deaspectos interessantes acerca desta igreja. Um deles é o programa icono-gráfico dentro do edifício. Todas as paredes da igreja estão cobertas depainéis de azulejos com episódios das vidas de 22 santos locais, 16 ho-mens e 6 mulheres (Smith, 1972: 12), com ênfase dada a S. Vítor, oprimeiro mártir da Igreja de Braga. Este programa iconográfico basea-va-se na história dos arcebispos de Braga de D. R odrigo da Cunha,dado existirem painéis onde é feita referência específica à parte do livrode onde os episódios foram retirados (ibid.: 8). Qual era o propósitodeste programa?

Na minha perspectiva, o Arcebispo estava a reafirmar o panteão an-tigo e ilustre dos heróis responsáveis pela identidade católica de Braga.Através desta igreja, ele estava assim a promover o seu culto e a reafir-mar a sua importância por forma a impulsionar o prestígio e a autorida-de episcopal, dado o Arcebispo ser, afinal de contas, o herdeiro destesheróis. Não há nada de novo aqui, uma vez que D. Diogo de Sousa játinha feito o mesmo na entrada da Catedral de Braga no início do sécu-lo XVI com as estátuas de quatro santos locais (v. capítulo 6). O que éinteressante aqui é comparar o número de santos que estão representa-dos em ambas as igrejas: 4 numa e 22 noutra. Isto parece sublinhar umsentimento de insegurança da parte de D. Luís de Sousa, dado sentir anecessidade de representar assim tantos santos para o apoiarem…

Havia também um certo número de elementos dentro e fora destaigreja que ajudavam a realçar este programa. O preenchimento das pa-redes, por exemplo, com painéis cujas cenas são feitas segundo uma

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representação geométrica, dá a ilusão de se estar a olhar para um espaçotridimensional semelhante a um palco teatral (fig. 26). O realismo resul-tante não só faz as acções dos santos mais credíveis ao espectador, facili-tando assim o processo de identificação e reflexão, mas também dá ailusão de a parede não existir, uma vez que o espaço parece estender-separa além dela. Desta maneira, o interior da igreja não parece mais serum espaço fechado. Este efeito é ainda mais reforçado pela abertura devárias janelas largas nas paredes laterais do edifício, com a resultante ex-plosão de luz não só ajudando a visualização dos painéis mas tambémdando ao interior da igreja a impressão de ser um espaço infinito ecelestial, como tal mais próximo de Deus, em vez de um espaço fecha-do e terreno, mais próximo da Mãe Terra. A cor azul e branca dosazulejos contribuíram também para dar ao interior da igreja um caráctermais celestial. Estas mudanças no interior da igreja também encontra-ram a sua correspondência no seu exterior, na fachada. Aqui, se se olharpara os vãos, não como elementos isolados, como nas análises empiristas,mas ao invés como estando articulados, eles parecem dar à fachada aforma de uma face humana: os dois nichos na metade superior são osolhos e a porta é a boca. E a cara humana, não o esqueçamos, é a cara deDeus (Duby, 1993: 290). Assim, todas estas características não só contri-buíram para os esforços da Igreja desde a R eforma Católica de dar umcarácter mais transcendente ao divino, mas deram também um cenáriomais celestial, humanizado e menos abstracto ao programa iconográfico:elas ajudaram a torná-lo mais autêntico e mais próximo do fiel.

Havia também outros elementos topográfico que ajudaram a realçara igreja de S. Vítor. O edifício está no topo de uma pequena elevação,colocando-o numa posição elevada, e como tal mais celestial, face à áreacircundante. A ligação entre a entrada desta igreja e a rua foi feita atra-vés de uma larga e monumental escadaria, ligando simbolicamente oCéu e a Terra, por forma a enfatizar a importância da igreja.

Outro ponto interessante acerca desta igreja é o de que o Arcebispoordenou o alargamento da rua que a ligava ao Campo de Santana, R .Régoa/ Nova da Seara (Oliveira, 1993: 126). Desta maneira a igreja tor-na-se perfeitamente visível do Campo de Santana, a área onde estavamdois edifícios – a capela de Santa Ana e a igreja da Senhora a Branca –que também celebravam as origens de Braga. Desta forma, uma ligaçãovisual une esta área prestigiosa com a nova igreja celebratória, a qual estáespecificamente relacionada com os santos de Braga.

Contudo, apesar destes esforços, o Arcebispo adoeceu em 1687, per-manecendo na cama até à sua morte em 1690 (Ferreira, 1932: 196), algoque dificultou as suas tentativas de reafirmar o seu papel como foco daidentidade católica de Braga.

Braga permaneceu sem arcebispo por mais um par de anos até 1692quando um sucessor foi nomeado: D. José de Meneses. Todavia, so-frendo de gota, só chegou a Braga em 1694. O seu governo não come-çou bem. Um par de dias após a sua chegada ocorreu um motim doterceiro estado, a qual exigia um representante na Câmara além de quei-xar-se da falta de pão (Senna Freitas, 1890, vol. III: 280, 281; Ferreira,1932: 201). É possível que a queixa acerca do pão fosse apenas umaforma de suavizar a principal queixa: a representação política. O Arce-bispo resistiu a esta demonstração de força ordenando a abertura dosceleiros e declarando que ele próprio seria o representante do terceiroestado (ibid.; ibid.). Não obstante, a situação deve ter sido bastante sériauma vez que tropas reais foram enviadas para a cidade, aí permanecendopor dois meses e meio até que tudo se acalmasse (ibid.; ibid.). O queeste motim revela é que os esforços feitos pelos arcebispos anteriores nosentido de regressar ao status quo ante não estavam a ter os resultados

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desejados, permanecendo o divórcio entre os arcebispos e o terceiroestado. Quanto a D. José de Meneses, foi incapaz de fazer o que querque fosse para mudar esta situação. Sofrendo de gota, limitou-se a per-manecer no seu quarto no palácio desde o primeiro dia em que chegouaté à sua morte no início de 1696 (ibid.; ibid.).

Com a inacção D. José de Meneses, a posição dos arcebispos emBraga atingiu o seu ponto mais baixo desde o início do século XVI. Talé bem visível, por exemplo, num episódio que teve lugar após a suamorte, quando o seu corpo foi exposto no palácio para as pessoas pres-tarem-lhe a última homenagem. Dado que o seu corpo estava a decom-por-se, as pessoas ficaram chocadas e começaram a gritar imprecações,seguindo-se um tumulto dentro do palácio durante o qual um dos cria-dos foi esfaqueado (ibid.: 281; ibid.: 204). O que este episódio revela éque os arcebispos tinham perdido a sua aura. Em sociedades religiosas,os corpos de pessoas com aura não se decompõem. Dado que os arce-bispos desde o século XVI tinham-se esforçado para se rodearem destaaura, este episódio é bastante revelador de quão degradado o seu estatu-to em Braga tinha-se tornado. Quanto aos tumultos dentro do palácio,tal era algo inaudível desde a década de 1470 (v. capítulo 5).

Outro testemunho da degradação da posição dos arcebispos em Bra-ga é visível numa descrição do seu palácio em finais de 1696, escritapouco antes da chegada do novo arcebispo, D. João de Sousa. Segundoesta, o palácio tinha infiltrações de água, os vidros das janelas estavampartidos e faltavam várias telhas no telhado (BNA, 54-VIII-20, n.º 397).Por outras palavras, era uma casa abandonada, algo que pode ser vistocomo uma metáfora do falhanço dos arcebispos de manter a sua posiçãocomo núcleo simbólico da identidade católica de Braga.

O novo arcebispo, D. João de Sousa, apesar de um período de go-verno relativamente curto – 1697 a 1703 – instigou algumas medidasnuma tentativa de mudar esta situação. Ordenou a impressão das Cons-tituições da Diocese de Braga (Ferreira, 1932: 217), algo importantepara uma melhor regulação do clero, dado que as regras determinandoos fundamentos da vida religiosa tornavam-se desta maneira mais fami-liares para os membros do clero. O Arcebispo foi também responsávelpela construção de uma nova sacristia na Catedral, com uma sala dotesouro para exposição das relíquias (ibid.: 214, 215). O novo edifício(ainda visível) é largo e construído segundo o estilo Clássico, providen-ciado assim um cenário mais grandioso às relíquias. Assim, do meu pon-to de vista, o Arcebispo esperava promover o seu culto e, desta forma,reafirmar a Catedral como centro espiritual de Braga. O Arcebispo tam-bém iniciou o processo para a beatificação de Fr. Bartolomeu dos Már-tires (ibid.: 218, 219), um dos arcebispos mais populares de Braga, ten-do governado a cidade entre 1559 e 1582. Pode-se assumir que D. Joãode Sousa procurava desta maneira tomar de “empréstimo” o seu prestí-gio para o bem da Mitra. Contudo, apesar dos esforços de D. João deSousa, as suas medidas não foram bem sucedidas, dado que o seu suces-sor, D. R odrigo Moura Teles, continuou a defrontar-se com os mes-mos problemas (v. capítulo 12).

Resumindo: em finais do século XVII uma combinação de arcebis-pos fracos, curtos períodos de governação, períodos sem arcebispos emedidas limitadas, contribuíram para o falhanço geral das tentativas dereafirmação dos arcebispos como foco da identidade católica de Braga.

Aliás, a melhor evidência de que os esforços dos arcebispos estavama falhar pode ser vista num fenómeno paralelo que estava a ter lugardesde 1670: o controlo gradual pelo terceiro estado da direcção de vá-rias confrarias religiosas. Até então, a direcção de uma confraria perten-cia a um clérigo ou a um membro da nobreza da cidade (e.g. AISV,

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Livro Termos S. Vicente, 1594-1609, 1669-1682). A única excepçãoeram as confrarias que eram simultaneamente profissionais e religiosas,sendo que nesse caso havia um clérigo a ocupar a posição estratégica desecretário, dado que tudo tinha de passar pelas suas mãos (e.g. AISV,Estatutos Irmandade Santo Homem Bom, 1688: 7). Em ambos os casos,o controlo das actividades directivas das confrarias estava firmementenas mãos da elite. Após 1670, a situação mudou radicalmente.

Em 1674, certos membros da Arquiconfraria do Cordão decidiramcortar com ela e fundar uma Ordem Terceira de S. Francisco (Proença,1998: 48). Este género de instituições era para leigos que desejavamviver mais de acordo com a espiritualidade das Ordens religiosas. Nosseus estatutos de 1680 menciona-se que a presença de membros da no-breza e de Ordens religiosas não é desejável (fl. 1v); contudo, os padrescontinuavam a ser aceites, podendo dirigir a Ordem Terceira e ser seussecretários (fl. 4). Mesmo assim, a relação entre padres e membros doterceiro estado não era muito boa, dado que em 1695 os estatutos foramreformados e logo no primeiro artigo é explicitamente declarado queem nenhuma circunstância podiam membros do clero dirigir a OrdemTerceira. O controlo da Ordem Terceira estava agora firmemente nasmãos de membros do terceiro estado.

Outro exemplo é a Irmandade de S. Vicente. Segundo os estatutosde 1723, embora os nobres e clérigos pudessem fazer parte dela, não apodiam dirigir (fl. 23). Esta medida foi certamente estabelecida na re-forma de 1675 (cujo livro está perdido), dado que após essa data as Actasda Irmandade mencionam somente membros do terceiro estado nospapéis directivos (AISV, Livro Termos S. Vicente, 1669-1682; 1682--1700).

Um terceiro exemplo é a Irmandade dos Passos, a qual estava esta-belecida no Convento do Pópulo. Pelo menos desde 1695 há notíciasde disputas entre a Irmandade (cujos membros eram sobretudo do ter-ceiro estado) e os monges, tendo a primeira acabado por abandonar oconvento em 1724 (AISC, Livro Segundo Termos Irmandade dos Pas-sos, 1686-1740: 103, 447). Os nobres também não eram populares dadoque desde 1707 a Irmandade tinha obtido do arcebispo D. R odrigoMoura Teles a garantia de eles não poderem assumir qualquer papeldirectivo (AICS, Estatutos Irmandade dos Passos, 1707: 31).

Mesmo em confrarias onde a presença do clero limitava-se somenteao secretário, também houve mudanças. Por exemplo, a confraria doSanto Homem Bom, que congregava os alfaiates de Braga, tinha reser-vado nos seus estatutos de 1688 o lugar de secretário somente para umpadre (fl. 7). Contudo, quando os estatutos foram reformados em 1725,não havia qualquer referência estipulando que o secretário deveria serum padre (fl. 15v). O lugar estava assim aberto a leigos.

Do meu ponto de vista, estas mudanças revelam uma tentativa deafirmação do terceiro estado face ao clero e à nobreza no universo laicalda Igreja. Desde 1670 a emancipação política do terceiro estado tinha--se tornado notavelmente mais difícil devido à estabilização da vida po-lítica portuguesa. Tal ficou claramente visível no motim falhado de 1694quando a Coroa interveio militarmente ao lado da elite local. Desafios àordem política tradicional não eram tolerados. Assim, através do con-trolo das confrarias, o terceiro estado procurava uma forma alternativade auto-expressão e afirmação face à elite. Há aqui ecos da Idade doEspírito Santo, com o seu ideal de uma religião livre, espiritual e semhierarquias. Esta ligação pode ser observada nos seguintes exemplos.

A nova Ordem Terceira de S. Francisco estava inicialmente estabe-lecida na igreja do Espírito Santo (Proença, 1998: 48), algo que consi-dero bastante interessante dado que, como argumentei no capítulo 7,

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esta igreja estava associada com a ideologia da Idade do Espírito Santo.Assim, o estabelecimento nesta igreja foi intencional, mostrando o de-sejo dos seus membros de viver mais plenamente dentro desses ideais.

Nos estatutos de diversas destas confrarias vê-se claramente uma preo-cupação com a prática de uma vida mais religiosa e ética. Por exemplo,enquanto que a Igreja esperava que os fiéis se confessassem pelo menosuma vez por ano, os membros da Irmandade de S. Vicente deviam tam-bém confessar-se nos (seis) dias das festividades da Irmandade (AISV,Estatutos S. Vicente, 1723: 28). A confraria de S. Crispim e S. Crispi-niano, que juntava os sapateiros, era ainda mais estrita, esperando que osseus membros se confessassem pelo menos uma vez por mês e, se possí-vel, todas as semanas (ASB, Estatutos S. Crispim e S. Crispiniano, 1702:6v). Os seus membros deveriam também aos domingos à tarde e aosferiados rezar o terço com a família, ler livros espirituais, fazer um exa-me nocturno de consciência (ibid.: 5v, 6). Convém, no entanto, subli-nhar que, apesar destas mudanças, estas práticas não revelam uma rebe-lião contra os dogmas e ética católicos, como sucedeu no Norte da Eu-ropa com o protestantismo. Havia ainda um respeito pelo catolicismo eos padres continuavam a celebrar a missa.

Mas esta autonomia das confrarias era um fenómeno ainda mais com-plexo, dado que com o falhanço dos arcebispos em reafirmarem o seupapel como foco da identidade católica de Braga, as confrarias torna-ram-se centros alternativos dessa identidade. Por outras palavras, a iden-tidade anterior de Braga implodiu como resultado do conflito entre oterceiro estado e a elite. Agora, em vez de uma comunidade vivendo emBraga, cujos membros estavam unidos por um conjunto de valores co-muns, havia ao invés uma multiplicidade de comunidades vivendo emBraga, com diferentes fidelidades. Um bom exemplo desta fragmenta-ção da identidade de Braga é a construção das novas igrejas de S. Vicente(fig. 27) e a da Ordem Terceira de S. Francisco. A construção da primei-ra iniciou-se em 1689 e a segunda em 1694 (Oliveira, 1993: 47), um perío-do que coincide com a presença de arcebispos adoentados em Braga.

Ambas as igrejas têm um tamanho considerável, apresentando umaestrutura semelhante à da igreja de S. Vítor. Elas foram feitas para serembem visíveis na paisagem urbana, servindo como foco para os seus mem-bros, sendo ainda um modo de afirmação em relação a outros gruposem Braga. Tal é particularmente visível na localização da igreja da Or-dem Terceira: a norte do castelo no Campo de Santana, perto de umanova entrada para a Cidade aberta na muralha (relativamente a esta en-trada, mais elementos adiante neste capítulo), como se pode ver no mapade c. 1757 (n.º 21). Esta igreja está assim na área de Braga onde haviamais circulação de pessoas. Quanto à igreja de S. Vicente, foi recons-truída no seu local anterior.

Há também elementos nestas igrejas que indicam que a sua fidelida-de última residia fora de Braga, não sendo, como tal, não para com osarcebispos. No caso de S. Vicente, foi erigida, no topo do frontão, umacruz de três aspas, a qual é nem mais nem menos o símbolo do Papa.Lêem-se ainda nas inscrições que ladeiam a porta principal que esta Ir-mandade beneficiava das indulgências (ou seja, remissões dos castigosdos pecados cometidos) dadas por Latrão. O que tem interesse aqui éque Latrão é a catedral da diocese de R oma e como tal do Papa. Osmembros da Irmandade de S. Vicente estavam assim a colocar-se sob osauspícios de uma entidade para além de Braga, ou seja, R oma. Quantoà Ordem Terceira de S. Francisco, desde 1695 a sua santa padroeira eraa Imaculada Conceição (Proença, 1998: 77, 78). Ora é interessante no-tar que desde 1646 a Imaculada Conceição era a santa padroeira doreino de Portugal.

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Aliás, este movimento em direcção à fragmentação era igualmenteextensível para as confrarias da elite, algo que revela divisões no seio daprópria elite. Em 1693 uma delas, a Irmandade de Santa Cruz, decidiuremover a torre na parte de trás da sua igreja e construir duas novastorres na fachada (AISC, Livro Termos Santa Cruz, 1589-1701: 504).Até então, a única igreja em Braga com duas torres na sua fachada era aCatedral algo que, como mencionei no capítulo 6, era uma forma dedistinção. Esta Irmandade ao construir estas duas torres estava, como tal,a emular conscientemente a Catedral. Estas torres foram construídasnuma altura de arcebispos doentes e/ ou ausentes e assim, do meu pontode vista, a sua construção revela descrença da parte de sectores da elitena capacidade dos arcebispos em retomar o seu estatuto anterior. Comesta emulação (de outra forma impensável caso a posição dos arcebisposfosse mais forte) a Irmandade estava assim a fazer da sua igreja o princi-pal foco de identidade para os seus membros em Braga. As boas relaçõesque esta Irmandade tinha com a Coroa portuguesa são igualmente umaboa indicação relativamente a onde a sua fidelidade estava.

Voltando às igrejas da Ordem Terceira e de S. Vicente, há elemen-tos nas suas fachadas que indicam outros aspectos relativamente à formacomo estas confrarias viviam a sua vida religiosa. Se bem que elas sejamestruturalmente semelhantes à igreja de S. Vítor, há diferenças na orga-nização das fachadas. A fachada de S. Vítor, por exemplo, não é muitodiferente daquilo que se tornou típico após a R eforma Católica emmeados do século XVI, com pouca ornamentação realista fazendo refe-rência a uma religião natural, sendo ao invés composta por linhas geo-métricas. Contudo, no caso das outras duas igrejas, em particular S.Vicente, há uma abundante representação desses ornamentos, como es-pirais, grinaldas e vegetação. Isto é bastante interessante, porque revelaque o terceiro estado nunca aceitou completamente a versão fortemen-te intelectualizada do catolicismo que o clero procurou impor. “Sentir”o sagrado através dos sentidos era igualmente uma parte importante des-sa experiência, como a fachada revela, e somente a Natureza podia daros meios para tal experiência. Todavia, convém notar que não há aquium regresso a práticas pagãs e a uma rejeição total da versão mais inte-lectual da religião. Como se discutiu anteriormente, esta última faziacada vez mais parte da experiência religiosa do terceiro estado. O queocorre aqui, ao invés, é uma síntese dessa experiência. A fachada diztudo: está estruturada de acordo com a forma geométrico de Deus e estáornamentada por motivos naturais. Apesar do retorno da Natureza, oplano central agora é o do intelecto divino.

Aliás, é interessante notar que entre as décadas de 1730 e 1760 (operíodo que os historiadores da arte geralmente designam de tardo bar-roco e rococó), ou seja, após a consolidação das confrarias dominadaspelo terceiro estado, as fachadas de várias igrejas (quer de confrarias oude ordens religiosas) e edifícios institucionais sob controlo da elite deBraga, sofreram uma reforma que as fizeram mais parecidas com as duasigrejas anteriores, ou seja, uma forma geométrico e uma abundante or-namentação natural. Exemplos incluem a nova ala do palácio episcopalna área virada ao Campo dos Touros; o novo edifício da Câmara Muni-cipal: a igreja de Santa Cruz; a igreja da Misericórdia; a igreja do Ora-tório (fig. 28) (cf. Smith 1968, 1972, 1973 e Oliveira 1999 para maisinformação sobre estas obras). O mesmo género de mudanças na orna-mentação também é visível nos retábulos construídos nessa altura (cf.Alves, 1989a; 468; 1989b: 408). Do meu ponto de vista, estas mudançasrevelam uma tentativa da elite de voltar a captar a confiança do terceiroestado, mostrando mais tolerância para com a Natureza e, consequen-temente, a formas mais sensoriais de experimentar o sagrado.

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Há um interessante paradoxo aqui: enquanto que antes de finais doséculo XVII o terceiro estado estava mais próximo de uma experiênciamais natural do sagrado, tendo só depois se aproximado de uma visãomais intelectual por forma a afirmar-se perante os seus superiores so-ciais, a elite, por outro lado, tendeu sempre a ter uma visão mais inte-lectual do sagrado, tendo só depois mostrado uma maior tolerância paracom a experiência do sagrado através do natural (desde que o núcleo davivência religiosa continuasse a ser intelectual) com a intenção políticade manter o terceiro estado sob controlo.

A fragmentação da identidade social de Braga em finais do séculoXVII é também visível noutras dimensões. Ainda dentro das confrariascontroladas pelo terceiro estado, um aspecto interessante é o de quequem quisesse fazer parte delas tinha que preencher um conjunto derequisitos sociais para poder ser aceite (cf. AVOTSF, Estatutos OrdemTerceira S. Francisco 1680: 3v; AISV, Estatutos Santo Homem Bom1688: 4, 4v; ASB, Estatutos S. Crispim e S. Crispiniano 1702: 17v;AISV, Estatutos S. Vicente 1723: 23v, 24). O primeiro requerimentoque é sempre mencionado é a necessidade de ter sangue puro. Era umacrença comum na sociedade da Idade Moderna que, em grande medida,as virtudes e vilezas das pessoas eram determinadas pelas qualidades daslinhagens de cada pessoa, isto é, pelo sangue (Cordeiro Pereira, 1998:278). Obviamente, dentro desta ideologia, as linhagens dos nobres eramas mais puras, algo que legitimava a sua posição superior na sociedade,enquanto que ao mesmo tempo excluía os seus adversários mais directos– os judeus – dado o sangue destes não ser puro (ibid.: 278, 279). Aexclusão de judeus é algo que também estava presente nas confrarias,sendo também comum a inclusão de duas outras categorias sem sanguepuro: muçulmanos e negros (trazidos para Portugal para trabalhar comoescravos). Outra categoria de excluídos era constituída por aqueles cujotrabalho era considerado baixo ou vil, como os carniceiros (por causado tabu do sangue), porteiros (vistos como uma espécie de cães de guar-da) e cobradores de impostos (que eram geralmente concessionários daCoroa, tendo o direito de reter algum do dinheiro colectado). Alémdisso, jornaleiros que não eram capazes de cumprir as obrigações finan-ceiras da confraria eram igualmente excluídos. Do meu ponto de vista,o que estes requerimentos revelam é que o terceiro estado, não tendoacesso à nobreza, estava a usar as confrarias como forma de emular aatitude de casta da elite, ao exigir e mostrar atributos como sangue puroe posses que eram assertadas pela nobreza como sinais de superioridade.

Estes requisitos significavam também que havia divisões no seio doterceiro estado de Braga, permanecendo alguns dos seus membros forado movimento dominante das confrarias. Estes membros faziam partede agrupamentos mais marginais como a taberna. Esta pode ser vistacomo uma espécie de “contra-igreja”, com uma vida dissoluta e onde asideias eram livremente discutidas, disputando aos padres a clientela mas-culina nos dias de missa (Minois, 2004: 408). E em Braga, sabe-se que astabernas tinham por essa altura a sua quota-parte de clientes dado quenão só os arcebispos tinham problemas frequentes com elas, mas tam-bém as confrarias. No primeiro caso, o arcebispo D. R odrigo MouraTeles chegou mesmo a proibir a actividade das tabernas em 1718 acu-sando-as de serem frequentadas por todo o género de desordeiros (AMB,Index das couzas mais memoraveis: fls. 92v, 146). Também tem inte-resse notar que, por essa altura, as tabernas encontravam-se situadas per-to das entradas das cidades, em locais como R eal e Goladas (ibid.), osquais já se situavam no Caos mas suficientemente perto de Braga parafazer a sua presença tentadora (ou ameaçadora) para os habitantes dacidade. Quanto às confrarias, sabe-se que nos estatutos de algumas delas

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é explicitamente mencionado que os clientes das tabernas não deviamser aceites (ASB, Estatutos S. Crispim e S. Crispiniano, 1702: 17v).

Mas também havia nessa altura outra divisão no seio do terceiroestado: a formação de uma identidade de grupo entre os seus membrosmais ricos, geralmente mercadores e joalheiros, constituindo aquilo queviria a ser conhecido no século XIX por burguesia. Os seus membros,apesar de manterem a ligação com as confrarias, procuraram separar-sedo terceiro estado e rivalizar com a elite, num processo que é aparenteem padrões residenciais e na arquitectura.

Em primeiro lugar, no caso dos padrões residenciais, o eixo R.Sousa/ R . Souto é paradigmático. Lendo a lista dos seus inquilinos noÍndice é notório que houve um estabelecimento gradual de membrosda “burguesia” neste eixo viário ao longo do século XVII, num proces-so que se encontrava consolidado no início do século XVIII. Por alturado mapa de 1750 quase todas as casas que aí são mostradas pertenciam amembros deste grupo em contraste com o século XVI quando, como seviu anteriormente (v. capítulo 6), os seus inquilinos eram provenientessobretudo da elite. Contudo, esta última, por razões que irão ser analisa-das em breve, perdeu gradualmente o interesse em continuar a viver aí.Quem se aproveitou desta situação foi a “burguesia”, que se mudou emmassa para as áreas centrais de Braga, em particular o eixo R . Sousa/ R .Souto, o mais prestigioso de todos. Ao moverem-se para aqui os mem-bros da recentemente formada “burguesia” não só ganhavam prestígio,mas também uma maior consciência de si como membros de um grupodistinto graças à proximidade que resultava da sua concentração numaúnica área. Além disso, ao permanecerem juntos sentiam-se mais prote-gidos num mundo instável.

A consequente transformação deste eixo numa área sobretudo co-mercial esteve provavelmente na origem de um par de mudanças quetiveram lugar na sua vizinhança no final do século XVII. Uma, foi a aber-tura de uma nova entrada (e não porta) numa área da muralha a norte docastelo algures durante o século XVII mas antes do mapa de c. 169441,dado ser já visível nele. Isto abriu uma nova saída da R. Souto e permitiu,assim, um maior volume de tráfico. A outra mudança foi a remoção dopelourinho da sua posição em frente à R . Souto em 1694, tendo os seusvizinhos (que eram sobretudo membros da “burguesia”) pago para que talmudança ocorresse (Thadim, 1764: fl. 70). O pelourinho não se afastoumuito, tendo sido movido somente alguns metros para norte, ficandoperto do chafariz, como se pode ver no mapa de c. 1757. Esta mudança écompreensível tendo em conta o crescimento do tráfico ao longo da R .Souto, o que significa que o pelourinho estava a causar uma obstrução.

Mas porque é que um número substancial de membros da elite per-deu interesse em continuar a viver nesta área, facilitando assim o estabe-lecimento aqui da burguesia? Segundo as genealogias de famílias nobres,nota-se que muitas delas, como os Fraga, Fonseca Coutinho, Leite Pe-reira, Pacheco Pereira, Paiva Brandão, Portocarreiro, Bravo, deixaramas suas residências na Cidade e foram viver para os arredores durante oséculo XVII (cf. Afonso, 1954, 1962, 1968, 1969, 1970, 1975). É im-portante lembrar que após as décadas de 1620/ 1630, a elite de Bragaestava a ser afectada por uma forte crise política e social: as tentativas daMonarquia Hispânica de degradar o estatuto de Braga, a longa guerracom Espanha, os conflitos constantes com o terceiro estado e a falta deautoridade episcopal, entre outras razões. Se bem que, espacialmente,esta mudança fosse irrelevante – apenas alguns metros para lá da muralha– simbolicamente, estava cheia de significado porque o que isto revela éque as famílias estavam a deixar o que elas entendiam ser uma Cidadedecadente e a mudar-se para um Jardim terapêutico e incorrupto.

41 Também visível nomapa de c. 1757.

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Quanto às casas construídas pela nobreza no Jardim de Braga, mui-tas são visíveis no mapa de c. 1757. Aqui, é possível ver jardins geomé-tricos de grandes dimensões junto a essas casas. A forma mais comumdesses jardins é cruciforme, símbolo da Terra e de um Mundo organiza-do. Desta forma, através dos seus jardins, onde a ordem do Mundo estáancorada a uma Natureza ordenada, estes membros da elite estavam tam-bém procurando consolo num período de ameaças constantes para aordem tradicional. Mas fornecer consolo não era a única razão por de-trás da construção destes jardins. É interessante notar que os jardins pas-saram a deixar de ser fechados ao exterior como costumava ser, e passa-ram a ser exibidos a uma vasta audiência através da abertura de janelasnos muros (embora com grades, para que ninguém entrasse) que rodea-vam as casas da elite42. Isto é visível tanto em edifícios que chegaram aosnossos dias (como o palácio dos Biscainhos, na rua do mesmo nome) etambém em alguns dos representados no mapa de 1750 (como a casa n.º5 na R . S. João). Até mesmo no palácio episcopal um enorme jardimseguindo este esquema cosmológico foi construído perto da nova aber-tura na muralha para norte do castelo, como se pode ver no mapa de c.1757. No mapa de 1750, vê-se nesta área (rua n.º 7, conhecida porLoura) um grande portão ladeado por duas janelas que permitiam aque-les que por aqui passassem uma visão do jardim. Através da exibiçãopública destes jardins, a elite estava a mostrar ao terceiro estado a suacapacidade de replicar e controlar a ordem da Natureza (e como tal doMundo e da ordem social), procurando assim legitimar o seu estatutosuperior em Braga (v. Leone 1984 para um estudo semelhante). Contu-do, a persistência da instabilidade social é uma indicação do sucesso li-mitado destes jardins.

Em segundo lugar, em relação ao outro ponto que mencionei ondea rivalidade entre a elite e a burguesia é visível – ou seja, a arquitectura–, há um conjunto de mudanças importantes que tiveram lugar nas fa-chadas das casas.

Uma delas foi o aparecimento de fachadas simétricas nas casas. Du-rante o século XVI, não houve muita preocupação relativamente a isso,havendo uma distribuição assimétrica dos vãos. O aparecimento emmeados desse século de tratados de arquitectura Clássica com desenhosde edifícios simétricos não mudou imediatamente o carácter da compo-sição das fachadas em Braga; ao invés, o que era mais comum era umaselecção de certos detalhes arquitectónicos (Sousa Pereira, 2000: 85).Contudo, em finais do século XVII e inícios do XVIII, é notório queum número considerável de fachadas começou a ser organizado segun-do linhas simétricas (Soromenho, 1991: 190; Sousa Pereira, 2000: 138).Isto é algo que está bem representado no mapa de 1750 com casas cujasfachadas ou são completamente simétricas ou, mais comummente, so-mente os seus andares superiores (figs. 10 e 29). Porquê esta mudança?

A maior parte das casas onde isto estava a suceder pertenciam sobretu-do à elite e à “burguesia”. Por contraste, a maior parte das casas do tercei-ro estado ainda tinham uma fachada assimétrica como se vê no mapa de1750. Assim, do meu ponto de vista, neste contexto de identidade frag-mentada e rivalidade social, aqueles que estavam a adoptar simetria – so-bretudo a elite e a “burguesia” – estavam a pôr ao seu serviço a “pureza”e o prestígio das linhas geométricas da arquitectura Clássica e, conse-quentemente, uma afirmação social face ao outro bem como em relaçãoao terceiro estado. Mesmo assim, apesar desta motivação para a mudança,é interessante notar que alguns membros da elite não sentiram necessida-de de reafirmar o seu estatuto através de fachadas simétricas, optando aoinvés por continuar em viver em casas associadas a anteriores símbolos depoder, ou seja, edifícios grandes com torres adjacentes (fig. 16).

42 Note-se que estesjardins “públicos” sãoalgo que também podeser encontrado noutraszonas de Portugal nosséculos XVII e XVIII,sendo o relevocomummente usadocomo forma de osenfatizar (Carita eCardoso 1987: 95, 225,260), algo que não erapossível em Braga,devido ao seu terrenochão.

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Outra mudança importante que começa a ser visível pela mesmaaltura foi o uso de janelas com gelosias nas fachadas das casas, cuja formatornava o interior das casas mais discreto para quem estivesse a olhar doexterior. Até então, o seu uso não parece ter sido comum em Braga. Amais antiga referência que encontrei data de 1667 e é de uma casa (n.º38) na R ua do Souto que pertencia a um membro da elite onde semenciona que duas das suas janelas tinham gelosias43 (ADB, Prazos doCabido tomo 64: fl. 104). A referência seguinte que encontrei para estasjanelas com gelosias é de 1701, mas desta vez na casa de um mercador(ibid., tomo 78: fl. 228v), também na R . Souto (n.º 40). Após esta data,a sua referência em documentos torna-se mais regular.

O propósito das janelas com gelosias nas casas era o de proteger avirtude das famílias (isto é, das mulheres) que lá viviam (Rebelo da Cos-ta, 1788: 56). Tal está relacionado com a visão dominante entre a eliteacerca do principal papel das mulheres casadas: elas deviam proteger a“honra” do marido, ou, por outras palavras, não deviam cometer adul-tério, sendo que a melhor maneira de garantir isso era manter as mulhe-res tanto quanto possível dentro de casa (N izza da Silva, 2001: 443,444), dado elas serem os garantes das linhagens familiares.

As janelas com gelosias em Braga apareciam geralmente nas casas daelite e da burguesia. No entanto, olhando cuidadosamente para o mapade 1750, pode notar-se diferenças importantes no seu uso. No caso daelite, somente algumas casas as tinham e mesmo assim o seu uso estágeralmente restrito a uma ou duas janelas. Obviamente, isto não eraclaramente suficiente para proteger o interior das casas de olhares exte-riores devido ao grande tamanho das casas. Contudo, tendo em contaque havia nas casas nobres divisões reservadas às actividades das mulhe-res e das suas criadas (ibid.), esta falta de gelosias torna-se mais compre-ensível. Mesmo assim, em alguns casos, é possível que as janelas comgelosias que são visíveis no mapa de 1750, fossem provavelmente usadascomo forma de “proteger” o oratório da sala de actividades exterioresmenos próprios. Afinal de contas, com a fragmentação da identidade deBraga nessa altura, as ruas estavam a tornar-se cada vez menos espaçosde unidade e comportamento ordeiro entre os seus habitantes. Sendo ooratório uma peça de mobiliário, nunca é mencionado nos Prazos doCabido, os quais descrevem somente elementos arquitectónicos. Con-tudo, na vizinha cidade do Porto, numa descrição de 1746 de uma casada elite na R . Flores, há referência a um oratório que estava entre duasjanelas com gelosias; quanto às restantes janelas dessa casa, elas não ti-nham gelosias (v. Ferrão Afonso, 2000: 286).

Por outro lado, nas casas da “burguesia”, é vulgar encontrar todas asjanelas das suas casas com estas gelosias. Aliás, elas são um dos elementosque melhor distinguem este grupo, em particular no eixo R . Sousa/ R .Souto (fig. 29), dado todas as janelas das casas “burguesas” estarem co-bertas por gelosias. Contudo, o que é interessante aqui, é que a “bur-guesia” através do uso enfático de gelosias, está a adoptar por volta de1700 um ideologia da elite acerca das mulheres por forma a se distinguirmais marcadamente dos restantes membros do terceiro estado44. Note--se que as casas das classes mais baixas do terceiro estado não tinhamgelosias (fig. 15), algo inútil uma vez que sendo casas de famílias maispobres, elas eram redundantes dado que as mulheres tinham de partici-par mais activamente em actividades económicas de modo a sustentar afamília. Isto significava que tinham de estar com mais frequência fora decasa.

Um último ponto que pretendo apontar neste capítulo acerca doenfraquecimento do sentimento de solidariedade comunal em Bragaconcerne as escadas exteriores nas casas: elas desaparecem gradualmente.

43 E onde está tambémmencionado que elaseram oleadas,permitindo assim umamelhor preservação.

44 No entanto, apesardeste recato, houve ocuidado de deixarentrar luz dentro dasdivisões das casas comgelosias. Note-se queem muitas das casas(figs. 10 e 29) há umapequena janela brancapor cima das gelosias, aqual permitia a entradade luz. Além disso, estacor não só reflecte aluz melhor, mastambém contribui parao simbolismo brancodas fachadas, jáanalisado na capítulo 6.A posição dessapequena janela tambémgarantia que ninguémfora de casa podia veras pessoas no seuinterior.

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Na viragem do século começa a assistir-se a uma mudança no acesso àsescadas, das ruas para o interior das casas (e.g. casas 20 e 21 na R .Alcaide). Mesmo as escadas do palácio episcopal não escaparam a estamudança, sendo transferidas para o seu interior em 1709. Por altura domapa de 1750 somente restavam cinco escadas exteriores: duas na áreaintramuros e três na área extramuros. Assim, à medida que as ruas setornavam cada vez mais locais de competição entre diferentes gruposrivais que as usavam para propaganda, como por exemplo as numerosasprocissões das confrarias ou as diferentes fachadas de casas, a anteriorligação entre salas e ruas começou a desgastar-se e as escadas voltarampara o interior das casas, para aumentar a intimidade destes espaços.

Foi, assim, num contexto de identidade fragmentada, que um novoarcebispo, D. R odrigo Moura Teles, chegou a Braga em 1704.

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12. A Nova Jerusalém

D. Rodrigo Moura Teles governou Braga durante um longo perío-do de tempo desde 1704 a 1728, ao longo do qual foi responsável porum esforço sustentado com vista a ultrapassar a fragmentação identitáriada cidade; um esforço que culminaria numa nova identidade para Braga.

Contudo, inicialmente, as acções do Arcebispo não diferiram mui-to das dos seus predecessores. Pouco depois da sua chegada, passou osanos de 1705 e 1706 em sistemáticas visitas pastorais à arquidioceseinquirindo acerca dos hábitos católicos dos seus habitantes e clero(Ferreira, 1932: 230). Os resultados não foram muito satisfatórios, dadoque no final de 1706 publicou uma Pastoral com várias instruções re-lativamente à disciplina do clero, costumes populares, obrigações dospadres paroquiais e decência do culto (ibid.). Em 1713, o Arcebispoorganizou um sínodo por forma a reforçar estas medidas (ibid.), indi-cando assim que elas não estavam a ter o efeito desejado. D. R odrigoMoura Teles estava, assim, a mostrar a sua preocupação em assumir elevar a sério o seu papel vigilante sobre o seu rebanho, o qual era,como se viu no capítulo 8, uma das mais importantes medidas da R e-forma Católica.

O Arcebispo também instigou a construção de edifícios religiosos ecivis em diversas cidades da arquidiocese. Exemplos incluem o conven-to feminino de S. Bento de Barcelos; o convento feminino de NossaSenhora da Conceição em Chaves; o convento feminino da Madre deDeus em Guimarães; o convento masculino de S. Bento em Viana; e osaljubes de Valença e Moncorvo (ibid.: 230-233, 248-251, 268). Nocaso dos aljubes, a intenção era proporcionar mais conforto físico aospresos de modo a evitar a degradação moral que poderia resultar daexistência de condições precárias (R ocha, 1996: 160). Desta maneira,ao assumir o papel de bom pastor, ele estava a procurar afirmar a suaautoridade noutros locais da arquidiocese fora de Braga, actuando osedifícios como marcos materiais.

No seguimento da construção de uma nova sacristia e sala do tesou-ro pelo seu predecessor, o Arcebispo também promoveu um importan-te programa de trabalhos na Catedral por forma a reafirmá-la como ocentro espiritual de Braga. Assim, entre 1707 e 1712, várias capelas daCatedral, incluindo as dos arcebispos de Braga que eram santos, foramreconstruídas, algo que lhes deu uma aparência mais monumental (Ro-cha, 1996: 76-80, 94-99). O Arcebispo tinha assim a intenção de pro-mover o seu culto e celebrar a sua importância para os habitantes deBraga. Em 1713 foi decidido abrir catorze novas janelas nas paredes danave bem como construir um novo zimbório de modo a permitir aentrada de mais luz no interior da igreja; as paredes da nave foram tam-bém cobertas com azulejos (ibid.: 77, 78, 83-87). Estas mudanças sãobastante interessantes porque são iguais às que foram vistas no períodoanterior na igreja de S. Vítor. Infelizmente, os azulejos estão actualmen-te perdidos e desconhece-se o seu programa iconográfico, embora sepossa assumir que celebravam os arcebispos e/ ou a Virgem Maria.

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D. R odrigo Moura Teles também prestou atenção aos monumen-tos que testemunhavam a antiguidade de Braga, embora dentro de umaagenda que procurava também celebrar os arcebispos de Braga. Assim,em 1715, foi responsável pela reconstrução da capela de S. Sebastião, naárea das Carvalheiras, tendo feito substanciais contribuições financeiraspara esse propósito (Ferreira, 1932: 246, 247). O edifício resultante45

era bastante diferente do anterior: tinha uma planta centralizada comquatro braços iguais (formando assim uma cruz perfeita) e uma cúpulacentral. Há aqui de novo uma reutilização de modelos de planta centra-lizada que fazem referência a um passado paleo-cristão. Contudo, destavez, o modelo que está a ser seguido não é o da capela octogonal cons-truída por D. Diogo de Sousa no Campo de Santana, mas, ao invés,uma cruz. Convém notar que a planta cruciforme era comum na regiãode Braga nos séculos VI e VII (Maciel, 1995: 128-139). Este tipo deplanta apareceu primeiro no Ocidente durante o século V, sendo omelhor exemplar preservado desses dias o mausoléu de Galla Placidiaem R avena. Na Península Ibérica, ela foi introduzida pelos bizantinos,os quais ocuparam a sua zona sul durante algum tempo (ibid.). Esta foi aaltura em que alguns dos mais importantes arcebispos santificados deBraga (S. Martinho de Dume e S. Frutuoso) viveram, os quais foramtambém responsáveis pela construção de edifícios religiosos com plantascruciformes, alguns dos quais ainda eram visíveis no século XVIII. Ha-via claramente consciência no século XVIII de quão velhos estes edifí-cios eram e quem os tinha construído. Um deles era o mausoléu torna-do igreja de S. Frutuoso (ainda hoje intacto) (fig. 30). Neste caso, sabe--se inclusivamente que quando os Franciscanos (a quem D. Diogo deSousa tinha dado a igreja; v. capítulo 7), procuraram construir uma novaigreja, D. R odrigo Moura Teles proibiu-o com receio que a memóriada anterior se perdesse, só permitindo a nova construção desde que oedifício da anterior permanecesse intacta (Soromenho, 1991: 94). As-sim, como é evidente, havia uma forte ligação entre este tipo de igreja eos primeiros arcebispos santificados de Braga. Este esquema arquitectó-nico estava a ser montado na área onde estava a lápide romana que des-de a década de 1620 tinha simbolizado o nascimento de Braga. Comotal, do meu ponto de vista, o que o Arcebispo estava a procurar alcançar aoconstruir esta igreja, era de lembrar a toda a gente que as origens da cidadeestavam também indissoluvelmente ligadas aos arcebispos católicos.

Foi também em 1715 que o Arcebispo iniciou algumas mudançasno Campo de Santana que viriam a acrescentar uma nova dimensão aeste espaço. Na área perto da porta do Souto onde, desde o início doséculo XVI, tinha havido um alpendre para apoiar a actividade mercan-til, o Arcebispo promoveu a sua substituição por uma arcada (Thadim,1748-64: 88). A estrutura resultante (fig. 31) continuou a desempenharo mesmo papel de apoio para a actividade comercial. O que é interes-sante acerca dela é a sua forma. Se bem que actualmente a arcada estejasubstancialmente alterada devido a uma reconstrução tardo-setecentista,a sua forma original ainda é visível no frontispício do mapa de 1750:catorze arcos monumentais e Clássicos. Convém lembrar que catorze éduas vezes sete, o número sagrado, mas, porquê este investimento for-temente simbólico da parte do Arcebispo numa área que estava sobre-tudo ligada à actividade comercial?

Uma resposta a esta questão pode ser encontrada numa estátua quefoi colocada por cima da arcada (fig. 32) (v. BNL, Figueiredo, ms.[1723-24]: fl. 61v). Esta estátua (mudada em finais do século XVIII parao topo da porta Nova, após a reconstrução desta última) representa umafigura feminina que é uma alegoria de Braga. A figura segura uma lançanuma mão, uma pequena imagem da Catedral noutra e um escudo ao

45 Que ainda lápermanece, emboracom algumasmodificações: umacapela-mor alongada euma torre.

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seu lado com o nome da cidade escrito nele. A lança é outro símbolo doaxis mundi, sendo geralmente associada a contextos que pretendem ex-pressar a força da autoridade pública (Chevalier e Gheerbrant, 1994:399). A Catedral representa os arcebispos, enquanto que o escudo re-presenta simultaneamente o universo (ou seja, Braga e os seus habitan-tes) e protecção (ibid.: 296). Assim, esta associação constitui uma formade reafirmar a Catedral, isto é, os arcebispos, como o axis mundi deBraga e consequentemente como o garante da ordem citadina.

A esta mensagem foi dada ainda mais ênfase através de uma inscriçãoem latim por baixo da estátua, a qual, embora tenha sido deitada foraapós a remoção da estátua, tinha as seguintes palavras segundo o memo-rialista Inácio José Peixoto (1992 [1790-1808]: 73):

NOBILIS AC ANTIQUA VOCOR SUM BRACARA FIDA/ TURRIBUSINDE POTENS, MENIBUS INDE SUR GENS./ HESPER IA PR IN-CIPES PR IMATUM LITOR HABER A/ OR BIS AD INVIDIAN NU-BILA CLARA PETO

(Uma nobre e antiga força sou chamada, sou Braga, confiante nas minhastorres de onde [a minha] força vem, levantando-se por isso às mentes. Comoprincipal primaz do Ocidente, serei um manto e escudo protector para in-veja do Mundo).

Há aqui uma referência aos títulos de Braga bem como às torres daCatedral, ou seja os arcebispos, de onde vem a força da cidade e a pro-tecção dos seus habitantes.

Esta referência à Catedral através da figura alegórica como sendo oaxis mundi de Braga é muito interessante. Até então a Catedral estavafisicamente situada em frente à Praça do Pão no centro da Cidade. En-tão, para quê trazer uma representação da Catedral para o espaço doJardim? Convém lembrar que até então Braga estava dividida segundoum esquema cosmológico tendo uma Cidade interior, com a Catedralno seu centro, e um Jardim exterior que não tinha o mesmo estatuto daCidade interior devido, entre outras coisas, à ausência da Catedral. As-sim, do meu ponto de vista, o que o Arcebispo estava a procurar fazerera a trazer a Catedral, simbolicamente, para a área fora da muralha. Épor isso que existe uma arcada monumental com referência ao sagradoatravés da repetição do número sete: era uma forma de emular o nártexque estava no edifício da Catedral na Praça do Pão. Mas, qual era opropósito deste programa? Argumento que o Arcebispo estava a procu-rar fazer do Campo de Santana um palco para projectar o poder daCatedral. Note-se que a arcada e a estátua estavam na área do Campo deSantana onde toda a actividade comercial tinha lugar. Esta área era, afi-nal de contas, o mais importante ponto de encontro de Braga, commembros de todos os grupos sociais estando aí envolvidos em assuntosdo dia-a-dia, e como tal um lugar onde um actor com dificuldades deafirmação, isto é o Arcebispo, podia causar um maior impacto, ao con-trário do espaço limitado da Praça do Pão. Desta forma, o Arcebispoestava a tentar convencer os habitantes de Braga de que a “normalida-de” do seu dia-a-dia resultava sobretudo da presença protectora da Ca-tedral.

Note-se ainda que o projecto de estender a Catedral ao Jardim foifacilitado pela circunstância das fronteiras entre a Cidade e o Jardimterem ficado consideravelmente menos bem definidas no decorrer doséculo XVII: várias famílias aristocráticas mudaram-se para o Jardim,enquanto que várias famílias “burguesas” mudaram-se para o eixo R .Sousa/ R . Souto. Assim, através deste programa, o Arcebispo estava aexpandir a Cidade para o Jardim, fazendo do Campo de Santana o foco

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irradiador da área extramuros, à semelhança da Praça do Pão na áreaintramuros. Aliás, isto foi algo que já estava planeado desde 1714. Len-do as descrições das casas dos Prazos do Cabido, é interessante notar quedesde esse ano, as ruas e espaços públicos fora da muralha deixaram deser referidos como estando nos arredores da Cidade. Somente um parde ruas mais distantes – Chãos de Cima e Cruz da Pedra – eram aindamencionados, e mesmo assim nem sempre, como estando nos arredores(e.g. tomo 88, fls.: 17v, 184v).

Este programa também marca uma mudança subtil nas tentativas doArcebispo de recuperação da sua autoridade sobre Braga. Enquanto queaté então ele estava preocupado em reafirmar a Catedral como o Centrodo Mundo, agora ele estava a ser mais pragmático e a levar a Catedralpara o Mundo.

Em 1719 e 1720, o Arcebispo também tomou algumas medidas paradignificar ainda mais o Campo de Santana bem como a assumir o papelde bom pastor ao promover a construção de duas novas casas religiosas.Uma foi o convento feminino da Penha de França (Ferreira, 1932: 251--253; R ocha, 1996: 103-111). O outro foi o R ecolhimento de SantaMaria Madalena, o qual era uma instituição que procurava salvar pros-titutas das suas vidas de pecado e ensinar-lhes virtudes cristãs bem comoalgum ofício honesto (Ferreira, 1932: 254; Friedrichs, 1995: 231).

No entanto, apesar dos melhores esforços do Arcebispo, as suastentativas sistemáticas de reafirmar a Mitra como foco da identidadede Braga tinham falhado. A melhor indicação deste falhanço é umgrande projecto urbanístico que se iniciou em 1719-1720 onde, comoirei argumentar nas de seguida, o Arcebispo desistiu de ser o únicofoco de Braga e procurou unir os seus habitantes em redor de umanova identidade.

Este projecto teve lugar no morro de Santa Margarida, um pequenomorro rochoso e estéril, para nordeste de Braga. Em 1719, iniciou-se aconstrução de uma capela chamada Senhora da Guadalupe no seu pontomais alto (O liveira, 1993: 54). Em 1720, na área abaixo desta capela,também teve início a construção de uma zona residencial com quatroruas que formavam uma cruz perfeita e com uma praça em forma delosango na intersecção (ibid. 2001b: 159). Tanto a capela como a árearesidencial formavam uma unidade indissociável, estando uma das ruasdirectamente ligada à capela, a qual, por sua vez dominava visualmentea área abaixo dela (Soromenho, 1991: 84). Sabe-se também que o Arce-bispo esteve ligado financeiramente a ambos os projectos (Rocha, 1996:-148).

Este projecto está geralmente associado à necessidade de acomodaruma população crescente (Oliveira, 1999: 67). Claro, mas não só. Con-vém lembrar que esta era uma sociedade religiosa e como tal qualquerintervenção no espaço tendia a seguir um modelo ideal baseado nomundo sagrado. Neste caso, argumento que os elementos associadoscom este projecto baseavam-se no modelo do santuário de Nossa Se-nhora da Guadalupe no México, construído após o aparecimento daVirgem nesse local em 1531. Em primeiro lugar, o santuário mexicanoestá perto da cidade e para norte dela, tal como o monte de Santa Mar-garida em Braga. O morro onde a Virgem apareceu era rochoso e estéril(Saint-Joseph, 1743: 144); o monte de Santa Margarida também tinhaas mesmas características antes do projecto urbanístico. Finalmente, ummilagre ocorreu aquando do aparecimento da Virgem no morro mexi-cano no qual apareceram várias flores (ibid.: 152); no caso de Braga,após a construção da capela, a construção da praça, ruas e casas trouxe-ram ordem e vida a um pedaço de terra cujas características tornavam--na mais próxima do Caos.

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Qual era o propósito desta emulação?A Senhora da Guadalupe era também representada como a Imacu-

lada Conceição, dado que apareceu no dia da sua celebração (ibid.: 145,149). O que é interessante aqui é que após o golpe de 1640, no qualPortugal separou-se de Espanha, a nova dinastia de Bragança, por formaa reforçar a sua legitimidade, declarou em 1646 que a Imaculada Con-ceição, que era a padroeira dos Bragança, seria também a padroeira dePortugal. Desta forma, os Bragança tornaram-se uma espécie de protec-tores do reino e a Virgem a rainha de Portugal; daí que os reis e rainhasde Portugal daí em diante passassem a ser representados sem coroa, aqual era, ao invés, colocada nas imagens da Virgem. Isto não só refor-çou a posição dos Bragança, mas também ao fazer da Virgem a mãe detodos os portugueses, a nova dinastia esperava encontrar um símbolopoderoso que os unisse a todos.

Todas as cidades portuguesas, incluindo Braga, tiveram de jurar aVirgem como padroeira de Portugal bem como de colocar nas portasprincipais uma lápide comemorativa padronizada deste evento (Ferreita,1932: 178, 179), dando assim uma presença mais material e duradoura aesse juramento. Estas lápides ainda são visíveis em cidades perto de Bragacomo Guimarães, Ponte de Lima, Barcelos, Caminha. Não há evidên-cia da existência de uma lápide semelhante em Braga, embora seja im-provável que não houvesse uma dado que a cidade tinha interesse numPortugal independente como forma de melhor defender o seu estatutoprimaz. É possível que tenha havido uma lápide na porta Nova, masque tenha sido mais tarde removida após a reconstrução desta porta emfinais do século XVIII.

Assim, tendo em conta este novo papel da Imaculada Conceição comosímbolo unificador do Estado, argumentaria que o Arcebispo, ao cons-truir a sua nova capela, estava a tentar associar Braga a esta mudança decircunstâncias. Com efeito, ele estava a procurar criar um novo Centrodo Mundo e assim a unir os habitantes de Braga em redor de um referentecomum. O monte de Santa Margarida assumia desta maneira o papel demontanha sagrada que até então pertencera à Catedral. A área residencialconstruída abaixo era, por sua vez, o Mundo idealizado que resultava porassociação com este novo Centro. Note-se também que assumia formasque até então estavam reservadas para a área intramuros: tinha forma decruz, uma praça geométrica e ruas rectilíneas. Todas as casas na praçaassumiam a mesma forma geométrica e simétrica, como ainda hoje sepode ver, mostrando assim uma imagem de harmonia e unidade. Esteconjunto de características foi também possível porque, desde 1715, comoargumentei antes, o Arcebispo tinha estado a alargar o perímetro da Cida-de, o qual passou a incorporar a maior parte do Jardim. Havia ainda in-tenção de construir uma fonte, símbolo da vida, no centro desta praça(AMB, Livro Actas Câmara Cx. 20, lv. 41, fl. 50v), embora, por razõesque desconheço, somente em 1772 aí foi construída uma.

Apesar dos esforços do Arcebispo de fazer da Imaculada Conceiçãoo novo foco de Braga, é interessante notar que ele também procurouassociá-la à Mitra. Tal é visível na forma que a capela da Guadalupeassume: uma cruz perfeita, semelhante à reconstruída capela de S. Se-bastião (fig. 33). Como mencionei antes, esta forma está associada comos primeiros arcebispos de Braga. Igualmente importante é que a cons-trução de um dos primeiros templos dedicados à Virgem no mundo e oprimeiro na Hispânia foi atribuído ao seu primeiro arcebispo, S. Pedrode R ates (Santa Maria, 1707: 18, 19). Assim, através desta capela, D.R odrigo Moura Teles procurou reafirmar a associação de Braga com aVirgem, através do papel pioneiro da Sé na promoção do seu culto,esperando assim reter alguma da influência da Mitra.

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Mesmo assim, apesar das notórias mudanças que este projecto trou-xe para a identidade e paisagem de Braga, depressa o Arcebispo decidiuque também não era suficiente para reunir os seus habitantes. Assim, umpar de anos mais tarde, em 1722, D. R odrigo Moura Teles embarcounum projecto ainda mais radical: o santuário do Bom Jesus do Monte.

Este santuário foi construído num monte elevado a cerca de trêsquilómetros para leste de Braga. Até então, tinha havido desde 1629naquele lugar uma via crucis, ou seja, uma reconstituição do caminhode Cristo para o Calvário em Jerusalém (Massara, 1988: 25, 35, 36).Nessa altura, esta tradição já era velha na Europa católica, tendo o pri-meiro destes calvários reconstituídos em montanhas sido construído em1224 no monte Verna, fora de Varallo, no Piemonte, sob iniciativa deS. Francisco de Assis (Schama, 1995: 436). Este caminho era usado porperegrinos que, através da imitação dos últimos e dolorosos momentos davida de Cristo, procuravam purificar-se e regenerar-se (Massara, 1988:86). Sabe-se também que ao longo este trajecto havia pequenos nichoscom imagens representando episódios da Paixão, terminando numa pe-quena capela na parte superior do monte (ibid.: 25, 35, 36).

Em 1722, na sequência de um conflito entre o deão do Cabido e aconfraria que administrava esta via crucis, o Arcebispo autonomeou-sejuiz da confraria e iniciou a construção de um novo santuário (ibid.:36). Os trabalhos que se seguiram (fig. 34) são geralmente vistos peloshistoriadores como uma “melhoria” da anterior via crucis, dado quederam um carácter mais monumental ao que até então era um espaço dereclusão e contemplação (Fernandes Pereira, 1989b: 93). Foi construídauma entrada em arco para o escadório na base da montanha com a ins-crição “Sancta Jerusalem restaurada e reedificada”; oito capelas foramconstruídas em lugar dos anteriores nichos; e uma nova igreja com plantacentral em vez da anterior capela na parte superior do monte. Quantoao acesso final para a igreja havia um escadório monumental em formapiramidal, com fontes alegóricas em cada andar representando os senti-dos humanos. O propósito deste escadório era o de assinalar a fragilida-de do corpo humano e o conhecimento que dele emanava e contrastá--los com a Verdade Divina que só podia ser alcançada pelo afastamentodo mundo material (ibid.: 94). Assim no início do escadório está a fonteda Visão, enquanto que no seu final está a do Tacto, formando assimuma jornada ascendente do menor para o maior sentido pecaminoso, oqual tinha o contacto mais próximo com o mundo material (ibid.).

Se bem que não esteja em desacordo com as análises anteriores acer-ca do Bom Jesus, argumento que as razões por detrás da reconstruçãopromovida pelo Arcebispo foram mais complexas. Para começar, note--se que esta reconstrução deu à parte superior do santuário – o escadóriomonumental – a forma de um trono gigantesco. Os tronos eram estru-turas em forma de pirâmide que replicavam a forma do trono de Salo-mão e que foram usados no contexto da R eforma Católica com o pro-pósito de expor o Santíssimo Sacramento e promover a sua devoção emreacção à crítica protestante deste dogma (Sancho Martins, 1991: 20--31, 57). Os tronos foram introduzidos em Portugal em 1608 e 1609,respectivamente pelos Carmelitas e Jesuítas, como estruturas portáteispara o Lausperene, o qual era uma exposição do Santíssimo Sacramentoà adoração dos fiéis, normalmente por um período de 40 horas (ibid.:25-29). Em Braga, pelo menos desde 1660, há notícias do seu uso naigreja jesuítica de S. Paulo (ibid.: 30). Em finais do século XVII, estegénero de estrutura começou a ser transferido para os retábulos das igre-jas e colocado em exposição permanente (Alves, 1989a: 468). Em Braga,o primeiro deste tipo de retábulos apareceu na década de 1690 na recen-temente construída igreja de S. Vítor (fig. 35) (Smith, 1972: 6). Mas

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qual era o propósito desta mudança? Nessa altura, a divisão da Europaem áreas católicas e protestantes era aceite por ambos os lados e haviapouco perigo de as ideias protestantes espalharem-se em Portugal. Domeu ponto de vista, a resposta é identidade fragmentada. O principalintento do Santíssimo Sacramento é a união com Cristo pelo amor, demodo a que diferentes pessoas e grupos esqueçam as suas diferenças eprocurem unidade no seu amor por Cristo. Não é uma coincidênciaque o primeiro trono em Braga apareça na igreja de S. Vítor, cuja in-tenção era a promoção da união da população local (v. capítulo 11).Agora, com o projecto do Bom Jesus o mesmo fenómeno estava a sertentado mas a uma escala gigantesca: do espaço limitado da igreja para atotalidade da paisagem urbana, dado que o santuário dominava Braga dasua elevada posição (fig. 36). Daí a forma piramidal das escadas que le-vam à igreja do santuário e daí a forma circular deste último, dado seresta a forma do Santíssimo Sacramento.

Mas há mais. Em 1723 ou 172446 foi escrito Notícias do Arcebispadode Braga, que é uma história da arquidiocese de Braga feita pelo bispocoadjutor de Braga D. Luís Figueiredo (Senna Freitas 1890, vol. 1: 97).Esta história seguiu as mesmas linhas daquela escrita cerca de um séculoantes por D. R odrigo da Cunha embora com algumas diferenças im-portantes como se verá em breve. Esta história começa com a descriçãode Braga, a qual é explicitamente comparada a um paiz (fl. 1). Paiz epaisagem eram então termos da pintura que se referiam a painéis comrepresentações de árvores, prados, fontes bem como outros “aprazíveisobjectos do campo” (Bluteau, 1720, vol. VI: 187). Braga é assim apre-sentada por D. Luís Figueiredo nos seguintes termos líricos:

A todos oferece liberalissima a vista engraçada e verde gala com que seornão seus largos e dilatados campos, a quem hua infinidade de cristalinasfontes retalha e guarnece de líquida e fina prata. Adornão a esta bizarriacopadas alamedas, frutíferos pomares e odoríferos jardins, com que mais seformoseia este aggradavel Paiz. Tudo nascido da bondade de seu clima, aon-de as rigorosas inclemencias do Inverno, nem os activos ardores do Estiofazem as operações costumadas. (fl. 1; minha ênfase)

Outro elemento importante é a descrição dos limites do paiz. Se-gundo o autor, Braga é “defendida com o muro das liquidas correntesde varios rios que lhe fazem amparo” (fl. 1). O autor menciona o rioCávado para o norte, o rio Deste para sul e as águas do Oceano paraoeste. Isto revela uma importante transformação no Cosmos de Braga.Enquanto que desde o início do século XVI havia uma Cidade limitadapelas suas muralha e um Jardim para além dela, agora, o anterior Jardimfoi absorvido pela Cidade (um fenómeno iniciado em 1715) e a áreaque ia até os cursos de água tornou-se o novo Jardim de Braga. Aliás,outra indicação de que a velha muralha de Braga estava a ter cada vezmenos importância para definir os seus limites é também visível numapetição enviada algumas décadas mais tarde, em 1796, pela Câmara àCoroa, solicitando autorização para demolir as torres e muros por formaa usar a pedra para fazer sistemas de canalização e outras obras públicas(Belino, 1895: 125-128). Foi inclusivamente mencionado nessa petiçãoque a muralha era obra de Bárbaros (ibid.), algo que pode ser visto comouma forma de degradar o seu estatuto e assim facilitar a sua demolição.

O que é interessante nestas duas descrições – o paiz e os seus limites– é que elas só ganham sentido quando se está no topo do Bom Jesus. Ésomente daqui que se pode visualizar o vasto vale verde com a cidade ameio dele bem como os cursos de água fronteiros, dado que o santuárioencontra-se a leste de Braga47. Além disso, é importante notar que adescrição do paiz feita por D. Luis Figueiredo não é real mas sim ideal,

46 Se bem que estetrabalho não estejadatado, pode serfacilmente datado de1723-24 tendo emconta os seguinteselementos: menciona ochafariz em frente aopalácio episcopal(fl. 61v), o qual temuma inscrição referindoque foi construído em1723, e tambémque as novas torresda Catedral estavam aser construídas (fls. 62,62v), as quais forampor sua vez terminadasem Novembro de1724 (Thadim 1748--64: fl. 113).

47 Embora este efeitovisual esteja actualmen-te bastante desvaneci-do, devido à enormeexpansão urbana dacidade nas últimasdécadas.

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ou seja, aponta somente os elementos que constituem dentro da pinturaum paiz. Assim, do topo do Bom Jesus, Braga torna-se uma pinturapaisagística de um paiz. Porquê?

Julgo ser importante que as características do paiz tal como estãoidentificadas neste texto são essencialmente uma descrição do Paraíso,do jardim cristão e de uma natureza harmoniosa. Tendo em conta opapel da natureza como modelo de uma legalidade e de uma verdadeindependente de contingências sociais e até religiosas (Lenoble, 1990:264), argumento que esta correlação entre Braga e o paiz em que é oJardim e não a Cidade que tem predominância, constitui uma tentativade refazer a identidade de Braga. Por outras palavras, com a anteriorunidade de Braga em redor dos arcebispos perdida, agora, a identidadede Braga está a ser refeita em redor da natureza. Enquanto que até en-tão, o Jardim resultava das acções dos habitantes da Cidade que conver-tiam o Caos numa natureza cristã, agora, ao invés, há uma naturezacristã preexistente – o paiz de Braga – que torna possível a existência daCidade. Agora, o centro de Braga, o Centro do Mundo, a montanhasagrada que liga o Céu e a Terra já não é a Catedral, mas o santuário doBom Jesus, fora da Cidade e no Jardim, e como tal mais puro, de cujotopo pode-se discernir uma natureza harmoniosa na qual a Cidade estáintegrada. Aliás, convém notar que o trono, na liturgia católica, é ex-pressivamente associado ao Monte Sião, a montanha cósmica, sendo osseus degraus as virtudes que os fiéis tinham de praticar de modo a alcan-çar a salvação (Sancho Martins, 1991: 58). Passava-se o mesmo emBraga, onde o escadório monumental imitava a forma da montanha cós-mica. Além disso, à medida que os seus habitantes subiam para o topodo santuário, que estava constantemente a acenar-lhes com a sua pre-sença física, num movimento em direcção à união com Cristo, tambémeles tinham que fazer uma expurgação gradual por forma a estarem maispuros quando alcançassem o topo. E daqui – o equivalente do SantíssimoSacramento e como tal o lugar mais puro – eles eram presenteados coma vista do paiz de Braga. A identidade católica de Braga em vez de estarbaseada numa linhagem ilustre de homens santos estava agora baseadanuma terra santa da qual eram todos filhos e filhas.

A centralidade do santuário do Bom Jesus do Monte na criação deuma nova identidade para Braga pode ainda ser vista na inscrição naentrada onde este espaço é designado de Jerusalém. Jerusalém era umavisão de paz, justiça e união de todas as tribos de Israel e mais tarde,dentro do cristianismo, tornou-se o símbolo do reino messiânico e daIgreja aberta a todos os povos (Chevalier e Gheerbrant, 1994: 385). Aeste respeito, é importante que a igreja do Bom Jesus também tem umaplanta central igual à do Santo Sepulcro em Jerusalém. Este santuárioanunciava, assim, o início de uma nova era de união para os habitantesde Braga, de uma Nova Jerusalém, uma Utopia visionária, e onde apertença a uma certa confraria ou grupo social tornava-se de importân-cia secundária.

Esta noção construída de Braga como paiz foi um sucesso, como sepode depreender dos seguintes exemplos.

Enquanto, por exemplo, que na história escrita por D. R odrigo daCunha, os arcebispos são os únicos actores nomeados, na de D. LuísFigueiredo a situação é outra dado que além dos arcebispos há várioscapítulos com referências a outros actores locais. Assim, também há ca-tálogos dos bispos coadjutores de Braga (capítulo XX); das igrejas paro-quiais (capítulo XXI); das igrejas das confrarias (capítulo XXII); dosconventos (capítulo XXIII); dos oficiais eclesiásticos (capítulo XXIV);dos oficiais seculares (capítulo XXV); e dos oficiais militares (capítuloXXVI). Igualmente interessante é que esta última história foi escrita

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pelo bispo coadjutor e não pelo Arcebispo. Assim, desta maneira, ou-tros actores que até então estavam na sombra passaram agora para opalco principal e tornaram-se parte da história de Braga. Os arcebisposjá não estavam sozinhos.

Textos de história escritos após a década de 1720 referem-se expli-citamente a Braga como um paiz. Por exemplo, Contador Argote, nadedicatória da sua história eclesiástica do arcebispado de Braga mencio-na esta última como paiz (1732) e Manoel Silva Thadim escreve emfinais do século XVIII uma história de Braga com o sugestivo títuloHistória Ecclesiástica e Política do Paiz Bracarense da Época do SéculoXVIII.

Em 1729, foi decidido que um novo mapa de Braga devia ser feito,embora nada mais se saiba sobre ele (Oliveira, 1994: 37). A intenção defazer um novo mapa de Braga é bastante interessante porque revela quea anterior representação oficial da cidade – o mapa de 1594 – já não eraadequada e que uma nova era necessária. No entanto, cerca de um quar-to de século depois, um mapa, o de c. 1757, acabou por ser feito e aquipode ver-se o resultado das mudanças que tiveram lugar na década de1720. Este mapa, ao contrário do de 1594, foi feito segundo uma cor-recta projecção matemática da escala e como tal com uma percepçãomais racionalista do espaço, mas tal não significa que ele fosse mais “ob-jectivo” dado que, de forma semelhante, foi feito de maneira a transmi-tir certas mensagens. Para começar, convém notar que as ruas no limitesul de Braga, na área mais próxima do rio Deste, não estão representadasno mapa48. Isto permitiu a manipulação do centro do mapa. Contudo,desta vez não é a Catedral que ocupava essa posição mas ao invés a áreado castelo e da arcada. A escolha deste lugar é mais compreensível seuma pessoa estiver pessoalmente nessa área. Este é o lugar de Braga quetem melhor vista para o santuário do Bom Jesus, que se encontra exac-tamente em linha recta para leste (fig. 36), a direcção simbólica de Jeru-salém para toda a Cristandade. Assim, desta maneira, o santuário doBom Jesus, embora não esteja representado, está indirectamente presen-te no mapa a presidir sobre o mais importante espaço público de Braga,visível para toda a gente que lá se dirigisse nos seus afazeres diários. Éigualmente interessante notar neste mapa que todos os edifícios religio-sos estão cuidadosamente enumerados e nomeados numa lista, todoseles juntos contribuindo para a santidade e glória do paiz de Braga emvez de rivalizarem uns com os outros. Amplos espaços verdes são igual-mente visíveis neste mapa, dando assim a Braga a ilusão de ser um EdénUtópico e como tal um paíz harmonioso. Outro aspecto importantedeste mapa é que, ao contrário do de 1594, as casas residenciais não sãomeros estereótipos estando lá apenas para preencher espaço, mas ao in-vés estão todas individualizadas. Isto é bastante importante porque per-mitia aqueles que viviam em Braga identificar as suas próprias casas, algoque os fazia sentir como parte da cidade. Assim, a população de Bragatornou-se parte integrante na representação pública da cidade. Os ele-mentos que eram privilegiados no mapa de 1594, como os edifíciosreligiosos, a muralha, a Câmara, o palácio episcopal e as antiguidades, jánão são por si suficientes para representar a cidade. Uma das principaisideias dos pensadores iluministas, o uso da grelha como figura de igual-dade humana que podia nivelar as hierarquias sociais (Taylor, 2001: 30),teve uma aplicação prática em Braga.

Um último exemplo é o Jubileu de 1774. Jubileus eram indulgên-cias concedidas pelos papas em certas circunstâncias, e baseavam-se nafestividade hebraica que tinha lugar em períodos de sete vezes sete anos,o Grande Ano (Bluteau, 1713: 212, 213). No caso de Braga, 1774 era oano do Jubileu do Bom Jesus e a sua confraria solicitou ao arcebispo em

48 Por exemplo, a R .dos Pelames, que ligavao Campo de Santiagoao rio Deste, só tinha asua metade superiorrepresentada no mapa.

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1773 para obter do papa um Jubileu para o seu santuário (Ferreira, 1932:374, 375). O arcebispo foi bem sucedido e o papa concedeu amplosprivilégios comparáveis ao do santuário de Santiago de Compostela, emEspanha, e dos lugares santos de Jerusalém, algo que a cidade preparou--se para festejar em 1774 com enormes festividades (ibid.). Compostelae Jerusalém eram, claro, os dois mais importantes lugares de peregrina-ção do mundo católico dessa altura. A colocação do Bom Jesus ao mes-mo nível era uma enorme honra e algo que obviamente enchia de or-gulho os habitantes de Braga, dando um importante contributo ao sen-timento colectivo de solidariedade e união. Contudo, quando as festivi-dades estavam prestes a começar a Coroa bloqueou-as (ibid.). Isto ébastante interessante porque mostra uma vez mais quão importante oBom Jesus era. Nessa altura, o governo português, sob a liderança doMarquês de Pombal, era fortemente centralizador, baseado em Lisboa eesta declaração de autonomia e estatuto feita por Braga não era bemvista. Assim, ao bloquear o Jubileu, o governo português estava implici-tamente a reconhecer a importância que o Bom Jesus tinha nessa alturapara a validação política de Braga.

Embora o Bom Jesus tenha contribuído para dar aos habitantes deBraga um sentimento de identidade comum, convém notar que as riva-lidades anteriores não desapareceram. Por exemplo, como mencioneino capítulo anterior, a “burguesia” continuou a preencher as fachadasdas suas casas com gelosias e a elite remodelou a fachada de alguns edifí-cios religiosos e institucionais usando uma abundante ornamentação.No entanto, o ambiente de forte conflitualidade social que ocorrera noséculo XVII, tinha desaparecido. Apesar das rivalidades, havia agora umaidentidade comum na qual todos participavam.

E o que dizer em relação ao arcebispo D. R odrigo Moura Teles?Perdeu toda a sua influência em Braga após a construção do santuáriodo Bom Jesus? Não, dado que ele teve o cuidado de se fazer a si (e aosseus sucessores) primus inter pares, primeiro entre iguais, o herói queatravés das suas acções garantia a identidade de Braga, fazendo dele umactor indispensável. Há alguns exemplos disso.

Na história de D. Luís Figueiredo, os arcebispos são nomeados antesdos outros actores e as suas acções são amplamente descritas.

No mapa de c. 1757, o primeiro edifício religioso da lista é a Cate-dral. Aliás, tem interesse notar que em 1723-24, a fachada da Catedralfoi reconstruída. A principal razão invocada para a sua reconstrução foia de não ser bem proporcionada (Rocha, 1996: 90), por outras palavras,não era simétrica. A fachada resultante ainda hoje é visível (fig. 11),apresentando linhas mais clássicas. Da fachada anterior só ficou o nártex,presumivelmente devido às alusões que fazia a arcebispos anteriores. Areconstrução é mais compreensível se se tiver em conta que havia entãooutras igrejas com fachadas mais monumentais e Clássicas que a Cate-dral. Assim, o propósito da nova fachada era o de reclamar uma posiçãode primazia para a Catedral.

Na entrada para o santuário do Bom Jesus, há, juntamente com ainscrição que identifica o lugar como Jerusalém, outra onde se mencio-na que D. R odrigo Moura Teles foi o responsável pela sua construção.Além disso, no início da escadaria monumental, havia ainda uma fontecom o brasão do Arcebispo (Massara, 1988: 71) – sete castelos –, umavez mais lembrando aos peregrinos quem tornou possível aquela reali-dade.

Esta associação entre o Arcebispo e o Bom Jesus é também visívelno chafariz que foi construído em 1723 na praça em frente ao palácioepiscopal (fig. 21). Aqui é possível ver uma cidade amuralhada com seistorres e uma sétima de maiores dimensões a meio, com uma criança no

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topo dela. Manuel R ocha dá várias explicações possíveis para este cha-fariz: podia estar relacionada com a alegoria de Santa Teresa do castelocom sete níveis de oração até atingir a união mística com Deus, ou emalternativa, uma dimensão apocalíptica, dado que o tanque do chafariztem doze lados tal como as fundações de Jerusalém (1996: 178). Eduar-do Pires de Oliveira, por seu lado, argumenta que dado que o casteloera o símbolo heráldico do Arcebispo, o chafariz foi feito com o propó-sito de exaltar publicamente a sua personalidade (1999: 33). Do meuponto de vista, o chafariz representa a cidade de Braga, a qual é compa-rada à Nova Jerusalém. Uma das características da Nova Jerusalém éuma gigantesca torre central que toca o céu e é visível para toda a gente(cf. Eliade, 2000: 23); daí também as doze fundações. A criança no topoda torre empresta o seu simbolismo de juventude e pureza a esta novacidade. Quanto às sete torres, concordo que estejam relacionadas com oArcebispo, embora não para celebrar o seu ego, mas mais para associá-locom esta Nova Jerusalém, que só foi tornada possível graças às suas ac-ções.

Finalmente, o Arcebispo também restaurou as colunas romanas noCampo de Santana. Estas estavam então tombadas, tendo sido levanta-das e as letras animadas com ouro-mate (Senna Freitas, 1890, vol. 1:139). Além disso, duas das colunas tinham desaparecido, tendo o Arce-bispo oferecido duas outras que tinha no jardim do seu palácio para assubstituir. Por último, e este é o aspecto mais importante, foi feita eadicionada uma décima terceira coluna com uma inscrição que celebra-va D. R odrigo Moura Teles (ibid.). A inscrição fazia referência ao res-tauro que tinha feito além de listar os seus numerosos títulos, sendo asprimeiras palavras Bracara Augusta Dynastes et Ampliator (senhor eampliador de Braga) (Belino, 1895: iv). Para além da propaganda, a adi-ção de uma décima terceira coluna pelo Arcebispo tem interesse poroutra razão. O treze é geralmente visto como o número do azar; noentanto, quando aparece num grupo com doze outros também pode servisto como o mais poderoso e sublime desses números (Chevalier eGheerbrant, 1994: 657). Assim, tendo em conta que as doze colunassimbolizam o povo de Deus e os Apóstolos (v. capítulo 7), o Arcebispo,ao associar-se à décima terceira, legitima assim um lugar excepcional, ode Cristo, nesse povo.

Contudo, apesar do sucesso das acções de D. Rodrigo Moura Teles,a forte influência que os arcebispos tinham sobre Braga não iria durarpara sempre. O golpe que viria a reduzir a forte influência dos arcebis-pos em Braga veio em 1790. Neste ano, a Coroa portuguesa, sob influ-ência do Despotismo Iluminado, procurou eliminar o que restava dos“poderes regionais”, removendo a jurisdição secular dos arcebispos so-bre a cidade, deixando-os apenas com a religiosa (Ferreira, 1932: 395--401).

A situação mais estável que o Bom Jesus do Monte tinha ajudado acriar e simbolizar, só viria a estar de novo sob pressão no século XIXdurante as R evoluções Liberais, pelas quais a “burguesia” tornou-sepoliticamente dominante. O seu declínio tornou-se visível na segundametade do século XIX, quando os arcebispos, no novo contexto dasR evoluções Liberais, com o choque entre ideias republicanas e fé reli-giosa, instigaram a construção de um novo santuário no Sameiro dedi-cado à Imaculada Conceição, que tinha entretanto sido proclamadacomo dogma pelo papa. Desta maneira, através deste novo monte sa-grado, os arcebispos procuraram reafirmar a identidade católica de Bragacontra os excessos do secularismo.

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13. Conclusão

Com o paiz de Braga, termino a minha análise sobre a identidade ea paisagem de Braga durante a Idade Moderna. Ao longo desta análiseprocurei pôr em prática os princípios do modelo que foi delineado nocapítulo 3. O modelo baseia-se na metáfora da rede como alternativa àmetáfora mais corrente da máquina enquanto guia e princípio organi-zador da investigação histórica das cidades portuguesas durante a IdadeModerna. Assim, em vez de dividir as cidades em diferentes componen-tes, argumentei que da sua articulação resulta um melhor conhecimentohistórico. Nada existe em isolamento; ao invés, todas as coisas estãoligadas através de redes e como resultado dessa interacção elas estão cons-tantemente a influenciar-se umas às outras e a transformar-se em algonovo. Julgo que o melhor meio para observar e estudar essas interacçõese as mudanças que têm lugar ao longo do tempo é a paisagem. Para darsentido a essas mudanças usei o conceito de identidade, pelo qual elassão vistas como o resultado de afirmações, negociações ou negações daidentidade dos habitantes locais. Desta maneira, foi possível alcançar ummelhor entendimento das pessoas que viveram em Braga no períodosob estudo.

O resultado deste modelo alternativo pode ser visto no seguinte su-mário sobre a identidade e paisagem de Braga durante a Idade Moderna,onde as diferenças face aos modelos empiristas são notórias.

Em primeiro lugar, convém notar que esta era uma sociedade ondehavia uma experiência religiosa do universo, o que significa que somen-te os espaços que seguiam um modelo sagrado podiam ser consideradosreais. Esta ideia também era válida para as cidades, incluindo Braga, asquais procuravam replicar na Terra os modelos sagrados do Céu. Argu-mentei que no final do século XV, Braga tinha um centro ligando am-bos os mundos, a Catedral, e do qual a vida fluía. A cidade era delimita-da por uma muralha, para além da qual se encontrava o Caos, ou seja,terras que na perspectiva dos habitantes de Braga não estavam organiza-das segundo modelos sagrados. Era uma cidade com fortes divisões in-ternas, como se depreende da existência de casas fechadas para o exte-rior, da apropriação do espaço público por privados e de conflitos inter-nos, só para dar alguns exemplos. A única coisa que acabava por unir osseus habitantes era um medo ainda maior do Dragão, isto é, de todo ogénero de perigos provenientes do exterior, e contra os quais havia umaabundância de defesas espirituais e materiais.

Esta forma de identidade baseada no medo viria a ser contestada noinício do século XVI através da acção do arcebispo D. Diogo de Sousaque procurou desenvolver uma identidade mais positiva entre os habi-tantes. Tal baseou-se sobretudo na afirmação de uma forte identidadecristã centrada na Catedral e garantida por uma linhagem prestigiosa dehomens santos, representados pelos arcebispos. O Arcebispo teve assimo cuidado de colocar-se a si e aos seus sucessores no centro desta identi-dade, algo que viria a marcar a identidade bracarense nos dois séculosseguintes. O Arcebispo promoveu profundas mudanças na cidade de

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modo a dar-lhe um carácter mais próximo das origens evangélicas docristianismo. A cidade assumiu a forma do Cosmos, com três conti-nentes e dois eixos perpendiculares que formavam uma cruz. No cen-tro, a Catedral – símbolo do poder dos arcebispos –, actuando comoJerusalém, o umbigo do mundo. Por forma a melhor enfatizar estacentralidade, ele remodelou a área em redor dela de modo a tornar aCatedral ainda mais patente. As ruas também foram remodeladas demodo a torná-las mais largas e rectilíneas permitindo assim uma ex-plosão de luz – associada a Deus – dentro da cidade, algo que eraextensível às casas, que eram agora pintadas de branco e com váriosvãos largos para as ruas, permitindo, assim, a entrada de luz. Através daluz, todos os habitantes de Braga participavam numa união comumcom Deus. Além disso, para diminuir tensões sociais internas relacio-nadas com o estatuto, o Arcebispo promoveu uma melhoria “social”geral das casas dos grupos sociais mais baixos através da construçãogeneralizada de andares superiores e do uso de pedra (ambos símbolosnobres), tornando o terceiro estado um activo participante na nobili-tação da cidade.

O Arcebispo também promoveu a organização de um espaço inter-médio entre as muralhas de Braga e o Caos: o Jardim, baseando-se,assim, numa dualidade Cidade/ Jardim de origem Clássica. Este espaçoestava organizado em redor de amplos espaços públicos fora das portasda Cidade, os Campos, e estava associado à Natureza, estando assimmais próximo do mundo material, em contraste com a Cidade, quetinha um carácter mas espiritual. Com esta divisão, o Arcebispo colocano Jardim as actividades consideradas menos espirituais mas não obstantenecessárias à vida, tornando mais relevante desta maneira o carácter es-piritual da Cidade. Entre as actividades que eram praticadas nos Camposestavam o lazer, a cura física, a actividade comercial e a propaganda (emparticular através da emulação com o passado Clássico e Mariano deRoma).

Em meados do século XVI, a identidade católica de Braga começa aser desafiada por um conjunto de factores – a R eforma Protestante, ocripto-judaísmo bem como um cripto-paganismo – que forçaram a eliteda cidade a tomar um conjunto de medidas durante as décadas seguintescom vista a reforçar a identidade católica oficial. Foi assim que váriosedifícios religiosos, como conventos, igrejas e mesmo um seminário,foram construídos na cidade, os quais transmitiam várias mensagens quevisavam reforçar essa identidade. Por exemplo, a igreja da Misericórdiareafirmou a importância da prática das boas obras que era criticada pelosprotestantes; todos estes edifícios assumiram linhas mais geométricas,colocando de lado a representação realista da Natureza que era comumem edifícios anteriores e que podia ser usada para devoções encobertasde paganismo. Houve ainda o cuidado em colocar estes edifícios emlargos espaços públicos por forma a torná-los, e às mensagens que trans-mitiam, mais visíveis.

Em 1580, com a união das coroas portuguesa e espanhola, Bragaentrou num período de incerteza relativamente ao seu estatuto primaz,o qual ficou em risco de se perder para Toledo. Tal era algo que preo-cupava mais que qualquer um os arcebispos dado que esse estatuto con-tribuía para a sua forte posição em Braga. Assim, em finais do séculoXVI e inícios do XVII tiveram lugar um conjunto de importantes obrascom vista a reafirmar o estatuto primaz de Braga. Por exemplo, porforma a impressionar audiências externas foi desenhado o mapa de Bragade 1594; a área do Campo da Vinha foi transformada de modo a emulara prestigiosa Piazza del Popolo em Roma. Para impressionar audiênciasinternas e dar uma imagem de poder e confiança, a Mitra organizou

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uma área da cidade para touradas, as quais tinham uma forte importân-cia cosmológica para o terceiro estado.

Contudo, apesar destas medidas, pelas décadas de 1620 e 1630, Bragatinha perdido muito do seu estatuto dentro da Monarquia Hispânica.Tal causou introspecção e o desejo de regressar a uma situação políticamais favorável à cidade. O melhor exemplo desta atitude é a transfor-mação da área em redor da capela de S. Sebastião num Jardim Arcádico(um lugar de refúgio das dificuldades do presente) e a colocação simbó-lica nesse local da insígnia romana de Braga na expectativa que em se-melhante ambiente puro uma nova cidade pudesse florescer. Apesar dePortugal recuperar a independência em 1640, a situação em Braga tor-nou-se ainda pior, porque as circunstâncias políticas desse evento pro-vocaram a ausência dos arcebispos por um período de 30 anos. A ausên-cia do símbolo mais forte de Braga causou o colapso da identidade dacidade. Em consequência, conflitos sociais entre o terceiro estado e aelite, que os arcebispos até então tinham conseguido manter sob con-trolo, exacerbaram-se.

Em 1671, os arcebispos regressaram a Braga e tomaram um conjun-to de medidas de modo a retornar a cidade ao seu status quo ante. Exem-plos incluem a remodelação da Catedral e a construção da igreja de S.Vítor com o propósito de promover o culto de vários santos associadosà Mitra; a introdução de novos conventos que não estavam ligados aosanteriores cujo comportamento era menos que exemplar. Contudo, es-tas medidas não obtiveram o resultado esperado. Ao invés, durante ofinal do século XVII e início do século XVIII, ocorreu uma notóriafragmentação da identidade da cidade tendo o terceiro estado procura-do afirmar-se face à elite através do controlo de várias confrarias religio-sas. Esta fragmentação foi também visível na formação por essa altura deuma “burguesia” que também procurou assertar a sua independênciaface à elite e a outros sectores do terceiro estado através da modificaçãodas fachadas das suas casas. Estas incluíam a adopção de formas simétri-cas, modeladas na pura geometria da arquitectura Clássica e como talmais prestigiosas, bem como o uso de gelosias para ocultar as mulheres,o que era uma forma, nesta sociedade, de afirmar a honra da família.

Na década de 1720, quando se tornou notório o falhanço dos arce-bispos em fazer regressar a cidade ao seu status quo ante, D. R odrigoMoura Teles, decidiu recriar a identidade de Braga através do santuáriodo Bom Jesus do Monte, de cujo cume a cidade era visível como umpaiz harmonioso. Este santuário permitiu a formação de uma nova iden-tidade que se baseava no conceito de um território sagrado, no qualtodos eram iguais dado que eram seus filhos e filhas, em vez da identida-de anterior de uma linhagem ilustre de homens santos. Isto era algo queera notavelmente visível nos mapas de 1750 e c. 1757, nos quais todas ascasas estão cuidadosamente desenhadas. Não obstante, o Arcebispo pro-curou recriar-se como primus inter pares por forma a manter a sua in-fluência na cidade, algo que os seus sucessores conseguiram manter atéfinais do século XVIII.

Uma última palavra: este sumário de Braga não deve ser visto comoalgo que pode ser encaixado automaticamente noutras cidades portu-guesas da Idade Moderna. Isso é o género de raciocínio que se podeesperar do empirismo, onde o propósito é encontrar leis às quais tudopossa ser subordinado. Neste livro, como a metáfora organizadora é arede e não a máquina, cada cidade tem a sua própria história: há seme-lhanças mas também há diferenças. Por exemplo, alguns anos após aconstrução do santuário do Bom Jesus, santuários semelhantes foramtambém construídos no Porto e em Lamego. Assim, pode assumir-seque havia problemas semelhantes nessas cidades e que o modelo de Braga

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estava a ser copiado. Por outro lado, em algumas cidades costeiras, comoSetúbal e Caminha, na segunda metade do século XVII, a Coroa pro-moveu a construção de novas muralhas que incluíam as anteriores cida-des mais os vizinhos bairros piscatórios, algo que não ocorreu em Braga.Estes são lampejos de exemplos complexos esperando futuros estudos.Mesmo a narrativa que fiz sobre Braga não é de forma alguma definiti-va, dado que ela é apenas o resultado das linhas de investigação quesegui. Diferentes linhas dirão diferentes coisas.

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VII – Arquivo da Sé de BragaEstatutos da Irmandade de S. Crispim e S. Crispiniano (1702)

VIII – Arquivo da Irmandade de S. Vicente (Braga)Estatutos da Irmandade de S. Vicente (1723)

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Livro dos Termos da Mesa da Irmandade de S. Vicente (1594-1609)

Livro dos Termos da Mesa da Irmandade de S. Vicente (1669-1682)Livro dos Termos da Mesa da Irmandade de S. Vicente (1682-1700)

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Livro dos Termos da Mesa da Irmandade de Santa Cruz (1589-1701)Livro Segundo dos Termos da Mesa da Irmandade dos Passos (1686-1740)

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FIG. 1. Mapa dePortugal.

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FIG. 2. Braga emfinais do século XV(mapa adaptado deTeixeira e Valla1999: 114).

A - R . Souto | B - R . Santa Maria | C - R . S. António | D - Feira

1 - Catedral; 2 - Igreja de S. João do Souto; 3 - Igreja da Cividade;4 - Igreja de S. Pedro; 5 - Igreja de S. Vitor; 6 - Igreja de S. Miguel;7 - Igreja de S. Sebastião; 8 - Capela de S. Vicente; 9 - Palácio episcopal;10 - Castelo; 11 - Câmara; 12 - Porta de Maximinos;13 - Porta de S. Francisco; 14 - Porta de Souto; 15 - Porta de S. Marcos;16 - Porta de Santiago; 17 - Forca

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FIG. 3. Braga em1530 (mapaadaptado deTeixeira e Valla1999: 115).

Eixo em T

A - R . Souto | B - R . Santa Maria | C - R . S. António | D - R . Sousa |E - R . S. Marcos | F - R . Maximinos | G - R . Direita | H - Praça do Pão |I - Campo da Vinha | J - Campo de Santana | K - Campo dos Remédios |L - Campo de Santiago | M - Campo de S. Sebastião | N - Campo das Hortas

1 - Catedral; 2 - Igreja de S. João do Souto; 3 - Igreja da Cividade; 4 - Igrejade S. Pedro; 5 - Igreja de S. Vitor; 6 - Igreja de S. Miguel; 7 - Igreja de S.Sebastião; 8 - Capela de S. Vicente; 9 - Palácio episcopal; 10 - Castelo;11 - Câmara; 12 - Porta de Maximinos; 13 - Porta de S. Francisco; 14 - Portade Souto; 15 - Porta de S. Marcos; 16 - Porta de Santiago; 17 - Igreja de NossaSenhora a Branca; 18 - Cruzeiro; 19 - Capela de Santana; 20 - Pelourinho;21 - Hospital de S. Marcos; 22 - Leprosaria de S. Lázaro; 23 - Porta Nova

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FIG. 4. Braga em1725 (mapaadaptado deTeixeira e Valla1999: 116).

R. Misericórdia

A - R . Souto | B - R . Santa Maria | C - R . S. António | D - R . Sousa |E - R . S. Marcos | F - R . Maximinos | G - R . Direita | H - Praça do Pão |I - Campo da Vinha | J - Campo de Santana | K - Campo dos Remédios |L - Campo de Santiago | M - Campo de S. Sebastião | N - Campo das Hortas |O - R . Pelames | P - Campo dos Touros | Q - “Arcadia” | R - R . R égoa/Nova da Seara | S - Área residencial do monte S. Margarida

1 - Catedral; 2 - Igreja de S. João do Souto; 3 - Igreja da Cividade; 4 - Igrejade S. Pedro; 5 - Igreja de S. Vitor; 6 - Igreja de S. Miguel; 7 - Igreja de S.Sebastião; 8 - Capela de S. Vicente; 9 - Palácio episcopal; 10 - Castelo;11 - Câmara; 12 - Porta de Maximinos; 13 - Porta de S. Francisco; 14 - Portade Souto; 15 - Porta de S. Marcos; 16 - Porta de Santiago; 17 - Igreja deNossa Senhora a Branca; 18 - Cruzeiro; 19 - Capela de Santana;20 - Pelourinho; 21 - Hospital de S. Marcos; 22 - Leprosaria de S. Lázaro;23 - Porta Nova; 24 - Capela de Nossa Senhora do Amparo; 25 - Igreja daMisericórdia; 26 - Igreja de S. Paulo; 27 - Igreja de Santa Cruz; 28 - Igreja daOrdem Terceira de S. Francisco; 29 - Capela de Nossa Senhora da Guadalupe;30 - Convento dos R emédios; 31 - Convento do Salvador; 32 - Convento doPópulo; 33 - Convento de Penha de França; 34 - Congregação do Oratório;35 - R ecolhimento de Santa Maria Madalena; 36 - Seminário; 37 - Colégiode Artes; 38 - Porta de S. António; 39 - Porta para o Campo de S. Sebastião;40 - Fonte; 41 - Obelisco; 42 - Arcada

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FIG. 5. Área daBraga medieval(linha simples)sobreposta à area daBraga romana (linhadupla) (adaptado deBandeira 2000: 61).

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FIG. 6. Braga numaimagem de 1594(fonte: GeorgBraun, CivitatisOrbis Terrarum,volume V, fl. 3).

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FIG. 7. Mapamedieval T/ O(fonte: S. Isidoro,Etymologiarumsive originum,livro XX).

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FIG. 8. Braga numaimagem de c. 1694(fonte: Forum,15/ 16, p. 23).

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FIG. 9. Braganuma imagem dec. 1757 (fonte:BibliotecaNacional daAjuda).

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FIG. 10. Secção daR . Nova no mapa de1750 (fonte: Mapa dasRuas de Braga).

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FIG. 11. A fachadaprincipal da catedral(colecção do autor).

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FIG. 12. Capela-morda catedral (colecçãodo autor).

FIG. 13. Campo deSantiago: emprimeiro plano, afonte de 1625; atrás,uma torre medieval(colecção do autor).

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FIG. 14. Vista da alaquatrocentista dopalácio episcopal(colecção do autor).

FIG. 15. Vistaparcial da R . Direitano mapa de 1750(fonte: Mapa dasRuas de Braga).

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FIG. 16. Algumascasas nobres na R .S. João no mapa de1750 (fonte: Mapadas Ruas de Braga).

FIG. 17. O cruzeiromandado construirpor D. Diogo deSousa em frente àporta de S. Marcos(colecção do autor).

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FIG. 18. Igreja de S.Paulo (colecção doautor).

FIG. 19. Azulejos doinício do séculoXVII na igreja doconvento doSalvador (colecçãodo autor).

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FIG. 20. O chafarizconstruído em 1594no Campo deSantana (colecçãodo autor).

FIG. 21. Vista dapraça em frente àentrada do palácioepiscopal: emprimeiro plano, ochafariz de 1723;atrás, a colunadafeita em finais doséculo XVI(colecção do autor).

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FIG. 22. O obeliscoque estava noCampo da Vinha(colecção do autor).

FIG. 23. O cruzeiroconstruído em 1621em frente à portaNova (colecção doautor).

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FIG. 24. A fachadaprincipal da igrejade Santa Cruz(colecção do autor).

FIG. 25. A fachadaprincipal da igrejade S. Vítor(colecção do autor).

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FIG. 26. Azulejos nointerior da igreja deS. Vítor (colecçãodo autor).

FIG. 27. A fachadaprincipal da igrejade S. Vicente(colecção do autor).

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FIG. 28. A fachadaprincipal da igrejado Oratório(colecção do autor).

FIG. 29. Casas na R .Souto (fonte: Mapadas Ruas de Braga).

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FIG. 30. Igreja de S.Frutuoso (colecçãodo autor).

FIG. 31. A Arcadano mapa de 1750(fonte: Mapa dasRuas de Braga).

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FIG. 32. A estátuade 1715 represen-tando Braga queestava no topo daArcada (colecção doautor).

FIG. 33. Capela deNossa Senhora daGuadalupe (colecçãodo autor).

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FIG. 34. Imagem doSantuário do BomJesus do Montenuma imagem doséculo XVIII (fonte:Luís Costa).

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FIG. 35. Trono emforma de pirâmideno altar-mor daigreja de S. Vítor(colecção do autor).

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FIG. 36. O santuáriodo Bom Jesus doMonte visto doCampo de Santana(colecção do autor).

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