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Revista Brasileira de Estudos Políticos | Belo Horizonte | n. 109 | pp. 13-87 | jul./dez. 2014 A mudança de função da lei no direito da sociedade burguesa 1 2 e change in the function of law in modern society Franz Neumann 3 Resumo: Ao longo do período do capitalismo con- correncial, a teoria jurídica entendia apenas a lei geral como direito e não toda e qualquer medida do 1 Tradução de Bianca Tavolari. Texto publicado originalmente em 1937 sob o título Der Funktionswandel des Gesetzes im Recht der bürgerlichen Gesellschaft na Revista do Instituto de Pesquisa Social: NEUMANN, Franz. Der Funktionswandel des Gesetzes im Recht der bürgerlichen Gesellschaft. In: HORKHEIMER, Max (ed.). Zeitschrift für Sozialforschung, Ano 6, Deutscher Taschenbuch Verlag, 1937, pp. 542-596. O texto é agora publicado em tradução portuguesa na Revista Brasileira de Estudos Políticos com expressa autorização do herdeiro de Franz Neumann, a quem o editor agradece a gentileza. 2 O termo Bürger – e seu adjetivo bürgerlich – tem um duplo sentido na língua alemã: pode ser tanto traduzido por burguês quanto por cidadão. A decisão por sociedade burguesa ao invés de sociedade civil no título desse ensaio se justifica pelo fato de o autor procurar mostrar uma mudança estrutural do direito de acordo com as diferentes correlações de forças entre classes sociais. A tradução para o inglês adotou o termo sociedade moderna. Ver NEUMANN, Franz L. The Change in the Function of Law in Modern Society. In: SCHEUERMANN, William E. (ed.). The Rule of Law under Siege: Selected essays of Franz L. Neumann and Otto Kirchheimer. University of California Press: Berkeley, 1996. [N. T.] 3 Franz Leopold Neumann (1900-1954) foi um dos mais importantes juristas alemães da primeira metade do século XX, tendo se celebrizado por sua DOI: 10.9732/P.0034-7191.2014v109p13

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Ao longo do período do capitalismo concorrencial, a teoria jurídica entendia apenas a lei geral como direito e não toda e qualquer medida do soberano. Dizer que a lei é geral não é apenas dar umadescrição de sua estrutura formal, mas também indicarque ela tem um mínimo de conteúdo material na medidaem que garante um mínimo de liberdade. A teoriae a prática jurídicas passam por mudanças decisivasno estágio do capitalismo monopolista. Esse períodoé caracterizado pela vitória da teoria da livre apreciação,que afirma que o juiz está liberto das amarras dodireito positivo e que desloca o centro de gravidade dosistema jurídico para as cláusulas gerais. Essas cláusulassão enfatizadas porque são um excelente meiopara promover interesses monopolistas para os quaiso direito racional constitui mero obstáculo. A teoriajurídica do capitalismo monopolista foi implementadapelo nacional-socialismo. Se entendermos o direitocomo um sistema de normas distinto da vontade oudo comando do soberano, então devemos negar que osistema jurídico do estado autoritário tenha um caráterjurídico específico.

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    A mudana de funo da lei no direito da sociedade burguesa1 2

    The change in the function of law in modern society

    Franz Neumann3

    Resumo: Ao longo do perodo do capitalismo con-correncial, a teoria jurdica entendia apenas a lei geral como direito e no toda e qualquer medida do

    1 Traduo de Bianca Tavolari. Texto publicado originalmente em 1937 sob o ttulo Der Funktionswandel des Gesetzes im Recht der brgerlichen Gesellschaft na Revista do Instituto de Pesquisa Social: NEUMANN, Franz. Der Funktionswandel des Gesetzes im Recht der brgerlichen Gesellschaft. In: HORKHEIMER, Max (ed.). Zeitschrift fr Sozialforschung, Ano 6, Deutscher Taschenbuch Verlag, 1937, pp. 542-596. O texto agora publicado em traduo portuguesa na Revista Brasileira de Estudos Polticos com expressa autorizao do herdeiro de Franz Neumann, a quem o editor agradece a gentileza.

    2 O termo Brger e seu adjetivo brgerlich tem um duplo sentido na lngua alem: pode ser tanto traduzido por burgus quanto por cidado. A deciso por sociedade burguesa ao invs de sociedade civil no ttulo desse ensaio se justifica pelo fato de o autor procurar mostrar uma mudana estrutural do direito de acordo com as diferentes correlaes de foras entre classes sociais. A traduo para o ingls adotou o termo sociedade moderna. Ver NEUMANN, Franz L. The Change in the Function of Law in Modern Society. In: SCHEUERMANN, William E. (ed.). The Rule of Law under Siege: Selected essays of Franz L. Neumann and Otto Kirchheimer. University of California Press: Berkeley, 1996. [N. T.]

    3 Franz Leopold Neumann (1900-1954) foi um dos mais importantes juristas alemes da primeira metade do sculo XX, tendo se celebrizado por sua

    DOI: 10.9732/P.0034-7191.2014v109p13

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    soberano. Dizer que a lei geral no apenas dar uma descrio de sua estrutura formal, mas tambm indicar que ela tem um mnimo de contedo material na medi-da em que garante um mnimo de liberdade. A teoria e a prtica jurdicas passam por mudanas decisivas no estgio do capitalismo monopolista. Esse perodo caracterizado pela vitria da teoria da livre aprecia-o, que afirma que o juiz est liberto das amarras do direito positivo e que desloca o centro de gravidade do sistema jurdico para as clusulas gerais. Essas clu-sulas so enfatizadas porque so um excelente meio para promover interesses monopolistas para os quais o direito racional constitui mero obstculo. A teoria jurdica do capitalismo monopolista foi implementada pelo nacional-socialismo. Se entendermos o direito como um sistema de normas distinto da vontade ou do comando do soberano, ento devemos negar que o sistema jurdico do estado autoritrio tenha um carter jurdico especfico.

    Palavras-chave: Lei geral. Clusula geral, Sociedade burguesa. Capitalismo monopolista. Estado autorit-rio. Teoria crtica.

    Abstract: During the period of competitive capitalism, legal theory understands by law only the general rule and not every command of the sovereign. To say that the law is general is to give not only a description of its formal structure but also to indicate that it has a

    anlise do nazismo, especialmente no estudo Behemoth: estrutura e prtica do nacional-socialismo. Ativista poltico de orientao marxista e advogado trabalhista, com a Segunda Guerra Mundial Neumann foi obrigado a se exilar nos Estados Unidos devido sua origem judaica. Junto com Ernst Fraenkel e Arnold Bergstraesser, Neumann considerado um dos fundadores da moderna cincia poltica alem. Recentemente uma de suas obras foi publicada no Brasil: O imprio do direito: teoria poltica e sistema jurdico na sociedade moderna (Trad. Rrion Melo. So Paulo: Quartier Latin, 2013).

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    minimum of material content in that it guarantees a minimum of freedom. Legal theory and legal practice undergo decisive changes in the stage of monopoly capitalism. This period is characterized by the victory of the theory of free discretion which demands that the judge is freed from the fetters of positive law and shifts the center of gravity of the legal system to those legal standards of conduct. These legal standards of conduct are stressed since they are an excellent means for furthering monopolistic interests to which rational law merely constitutes an obstacle. The legal theory of monopoly capitalism was implemented by National Socialism. If we undestand by law a system of norms distinguished from the will or command of the sove-reign, then we must deny a specific legal character to the legal system of the authoritarian state.

    Keywords: General law. Legal standards of conduct. Bourgeois society. Monopoly capitalism. Authorita-rian State. Critical theory.

    A antropologia dos homens burgueses to contradi-tria quanto sua atitude em relao ao Estado e ao direito. Crticos fascistas e reformistas sociais costumam denomi-nar o Estado liberal como negativo e a caracterizao do Estado liberal como um guarda-noturno feita por Lassalle hoje uma formulao amplamente aceita nesses crculos. to evidente que tambm o prprio liberalismo veja na no-existncia do Estado sua maior virtude que no exi-ge provas para sustentar esse pressuposto. Segundo essa ideologia, o Estado deve fazer-se desapercebido, deve ser verdadeiramente negativo. Se, no entanto, quisermos en-tender negativo no sentido de fraco, seremos vtimas de uma iluso da histria. O Estado liberal sempre foi to forte quanto a situao poltica e social e os interesses burgueses

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    exigiam. Ele travou guerras e reprimiu greves, protegeu seus investimentos com fortes frotas, defendeu e ampliou suas fronteiras com fortes exrcitos, estabeleceu paz e ordem com a polcia. Ele era forte exatamente naquelas esferas em que precisava e queria ser forte. Esse Estado em que as leis e no as pessoas devem governar (frmula anglo-americana), esse estado de direito [Rechtsstaat] (formulao alem) est baseado em dois elementos: na fora e na lei, na soberania e na liberdade. A burguesia precisa da soberania para ani-quilar foras locais e particulares, para fazer a Igreja recuar dos assuntos seculares, para estabelecer uma administrao e um sistema judicial uniformes, para proteger as fronteiras e travar guerras e para financiar todas essas tarefas. A burguesia precisa da liberdade poltica para assegurar sua liberdade econmica. Ambos os elementos so constitutivos. No h teoria burguesa do direito e do Estado em que a fora e a lei no sejam afirmadas, ainda que a tnica dada a cada elemento seja diferente de acordo com a situao histrica. Mesmo nos casos em que se acredita que a soberania deve-ria se desenvolver exclusivamente a partir da concorrncia, na verdade mesmo nesses casos o poder sem lei exigido independentemente da concorrncia.

    Essa verdadeira contradio j se expressa no duplo significado da palavra direito na terminologia jurdica. Porque, por um lado, direito significa o direito objetivo, isto , o direito (Recht) criado pelo soberano ou ao menos atribu-vel ao poder soberano e, por outro, a pretenso (Anspruch) do sujeito de direito4. Assim, temos a negao da autonomia do indivduo e ao mesmo tempo sua afirmao. Diferentes teorias tentaram resolver essa contradio. Por vezes os direi-tos subjetivos so simplesmente declarados direitos-reflexo

    4 O autor usa os termos Rechtssubjekt e Rechtsperson indistintamente para designar sujeito de direito. [N. T]

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    (Reflexrechten) do direito objetivo e assim a autonomia do indivduo completamente negada (essa teoria alem do final do sculo XIX foi adotada pelo fascismo italiano) ou ento qualquer diferena entre direito objetivo e subjetivo negada. O direito subjetivo aparece como o prprio direito objetivo apenas na medida em que ele, com a submisso por ele estatuda, direcionado a um sujeito concreto (de-ver) ou est disposio dele (autorizao [Berechtigung]).5 Outros6 reduzem o direito objetivo a formas psicolgicas de comportamento dos que esto submetidos ao direito (Recht-sunterworfenen). Todas essas solues so aparentes porque desprezam o fato de que ambos os elementos norma e relao jurdica, direito objetivo e subjetivo so dados ori-ginais do sistema jurdico burgus.7

    I

    Na obra do liberal clssico Locke falta at mesmo a pa-lavra soberania. Mas a ideia est l. Na verdade, como para todos os tericos liberais, para ele as pessoas so boas no estado de natureza e o estado de natureza um paraso que no deve desaparecer mesmo depois da criao do Estado, mas que deve ser em grande medida mantido. De fato, pre-dominam apenas leis ele as chama de standing-laws8 cujo

    5 Hans Kelsen. Reine Rechtslehre. Leipzig und Wien, 1934, p. 49. [Neumann utiliza o termo submisso (Unterwerfung) que no integra essa passagem na obra de Kelsen. O trecho original usa o termo Unrechtsfolge, que poderia ser traduzido por consequncia do ilcito. Ver KELSEN, Hans. Reine Rechtslehre: Studienausgabe aus der 1. Auflage 1934. Editado por Matthias Jestaedt. Mohr-Siebeck: Tbingen, 2008, p. 61.]

    6 Como, por exemplo, B. Bierling. Juristische Prinzipienlehre. 1984, Vol. 1, p. 141.

    7 Sobre esse problema: E. Paschukanis. Allgemeine Rechtslehre und Marxismus, Wien und Berlin, 1929, p. 72, 73.

    8 Two Treatises of Civil Government, Second Treatise, captulo XI, 136.

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    contedo essencial est privado at mesmo da disposio dos poderes democrticos, mas a afirmao da fora sem lei tam-bm no falta completamente. Ela s no se chama soberania para ele, mas prerrogativa (a palavra soberania soa mal na Inglaterra desde a sinceridade de Hobbes e do absolutismo dos Stuarts). Prerrogativa significa para ele o poder de agir de forma discricionria e segundo a livre apreciao, sem seguir a lei ou at mesmo agir contra ela9. Mas por vezes as pessoas so de fato ms e o prprio Locke precisa reconhecer que a lei positiva estatal no fundo apenas uma imagem imperfeita das leis naturais. Quando essas qualidades ms se manifestam, preciso existir um poder que conduza as pessoas de volta para a bondade natural. A prerrogativa, a fora sem lei, se desdobra de forma mais pura no federative power reconhecido por Locke como poder autnomo ao lado do Legislativo e do Executivo e tantas vezes tido como inexplicvel por seus comentadores. A prerrogativa consis-te na poltica externa. Ela no pode ser dirigida por meio de normas gerais e abstratas, mas precisa necessariamente deixar ao poder executivo uma certa liberdade de ao para deliberar a seu critrio acerca de muitas questes no previstas nas leis.10

    Talvez essa dualidade possa ser melhor expressa nos absolutistas tais como Hobbes e Spinoza. Apesar de, para Hobbes, a lei ser pura voluntas, apesar de o direito e os atos

    9 Second Treatise, captulo XIV, 160.10 Second Treatise, captulo XII, 147. Sua teoria certamente liberal, mas

    tambm imperialista o que frequentemente esquecido. Locke era scio de Sir W. Colleton no Bahama Street Trade (ver H. R. Fox Bourne. The Life of John Locke. London, 1876, volume 1, p. 292, 311). Ele tinha uma amizade prxima com Earl of Peterborough, o comandante da marinha de guerra inglesa (Charles Bastide. John Locke. Paris, 1907, p. 132). Locke certamente integra a tradio imperialista introduzida por Cromwell. [Dois tratados sobre o governo. 2 edio. Traduo de Julio Fischer. Martins Fontes: So Paulo, 2005, p. 530. (N. T.)]

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    do soberano serem de toda forma idnticos, apesar de um direito no poder existir fora do Estado, ele faz fortes limi-taes em sua teoria monista na medida em que o prprio Estado (e assim tambm o direito) est baseado numa lei natural que no apenas voluntas, mas tambm ratio, uma vez que tem por contedo a manuteno e a defesa da vida humana.11 No caso de conflito entre os atos do soberano e a ratio da lei natural, ele concede evidente prioridade lei natural. Os contratos que probem a defesa do prprio corpo so nulos. Ningum est obrigado a confessar um crime, ningum est obrigado a matar a si mesmo ou um semelhante. O servio militar obrigatrio ilcito do ponto de vista da lei natural. Apesar de faltar sua clareza habitual, assim formula Hobbes: A lei natural obriga sempre pe-rante a conscincia (in foro interno), mas nem sempre in foro externo12. O momento em que o dever de obedincia acaba e o direito de insubordinao concedido apenas individual-mente comea formulado novamente apenas de maneira muito ambgua. Se o soberano ordenar que mesmo uma pessoa legalmente condenada se mate, se fira ou se mutile, ou ainda que se abstenha de alimentos, ar, medicamentos ou de outras coisas sem as quais no possa viver, ento a pessoa tem a liberdade da desobedincia13. A atitude am-bivalente de Hobbes fica clara aqui. A nfase est como a poca exigia na soberania, na fora sem lei, na demanda por um poder estatal independente dos grupos em disputa. Mas a liberdade acentuada mesmo que de forma fraca.

    Esse conflito ainda mais visvel em Spinoza, uma vez que, na realidade, ele desenvolve duas teorias: uma teoria do Estado e uma teoria do direito que esto em relao dia-

    11 Leviathan. Molesworth Edition, volume 3, captulo XVI, p. 147.12 Idem. Captulo XV, p. 145.13 Idem. Captulo XXI, p. 204.

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    ltica. Na teoria do Estado de Spinoza, o absolutismo estatal desenvolvido pelo menos de forma to irrestrita como em Hobbes. Faltam os direitos individuais (Reservatrechte), mes-mo que, com grande pathos, a liberdade seja postulada como finalidade do Estado. O sdito est submetido incondicional-mente aos atos do soberano chamados de leis mesmo nos assuntos religiosos. A obedincia faz o sdito 14. Apenas os pensamentos so livres 15. Os ltimos vestgios dos direitos individuais foram completamente eliminados no Tractatus Politicus, provavelmente sob a impresso causada pelo assas-sinato de seu amigo de Witt. Quando ns... entendemos a lei como lei civil..., ento no podemos de forma alguma dizer que o Estado est vinculado s leis ou que poderia pecar... Os direitos civis... dependem somente da deciso do Estado, e, para preservar sua liberdade, o Estado no precisa se dirigir a ningum em sua conduta a no ser a si prprio e no precisa considerar bom ou ruim nada alm do que bom ou ruim para si prprio, segundo seu prprio juzo16. No entanto, ao lado dessa teoria absolutista do Estado est sua teoria do direito, que na verdade apresenta uma decisiva correo da teoria do Estado. O direito natural de toda a natureza e portanto de cada indivduo se estende tanto quanto seu poder. Como consequncia, o que uma pessoa faz segundo as leis de sua natureza, o faz segundo o direito natural mais elevado e ela tem tanto direito sobre a natureza quanto se estender seu poder17. Normalmente o Estado tem o maior poder e tem assim o maior direito. Mas se um indivduo ou um grupo conquistar poder, ento cabe a eles ter direito exatamente na mesma medida. Assim, falta em Spinoza um

    14 Tractatus Theologico-Politicus. Ausgabe Meiner, captulo XVII, p. 293.15 Idem. Captulo XX, p. 356. 16 Tractatus Politicus, captulo IV, 5, p. 45.17 Captulo II, 4.

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    sistema rgido em que a relao entre Estado e sociedade inserida. Os limites so fluidos. Se um grupo social pode-roso, ento ele consegue assegurar tanta liberdade perante a autoridade estatal quanto for o tamanho do seu poder. Ele pode, por fim, tomar a autoridade estatal para si prprio e transformar seu poder social em direito. Essa estranha teoria da legitimidade do factual progressiva aqui. O poder do absolutismo de Estado justificado pelos mesmos motivos que em Hobbes. Mas a liberdade dos indivduos protegida pelo poder, que se torna direito e que pode ser utilizado para, em uma sociedade baseada na diviso do trabalho, fazer ne-gcios, trocar mercadorias e se ajudar mutuamente.18 A teoria segundo a qual o direito igual ao poder serve em primeiro lugar para opresso das massas, que compreensivelmente Spinoza odiava, mas ao mesmo tempo serve luta contra a monarquia. Em Spinoza, essa uma teoria de uma oposio que se sente muito forte, que no desempenhou seu papel e que espera poder converter seu poder econmico em poder poltico o quanto antes.

    II

    antinomia entre soberania e lei correspondem dois conceitos distintos de lei: um poltico e um racional. No sentido poltico, toda medida do poder soberano lei in-dependentemente de seu contedo. Declarao de guerra e acordo de paz, o Cdigo Tributrio e o Cdigo Civil, a or-dem dos policiais e dos oficiais de justia, a sentena de um juiz bem como as normas jurdicas nela aplicadas todas as manifestaes do soberano so, pelo fato de serem manifes-taes do soberano, lei. Esse conceito de lei determinado exclusivamente de forma gentica. Lei voluntas e nada mais.

    18 Tractatus Theologico-Politicus, captulo V, ao final da p. 99.

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    Podemos chamar uma teoria do direito de decisionista na medida em que ela aceita esse conceito de lei. Mas ao lado desse conceito est o conceito racional de lei, que no deter-minado por sua origem, mas por seu contedo. Nem todas as medidas do soberano e no s medidas do soberano so lei. Aqui, lei uma norma passvel de penetrao da razo, aberta ao entendimento terico e que contm um postulado tico, frequentemente o da igualdade. Lei ento ratio e no necessariamente tambm voluntas. Essa lei racional pode, mas no precisa, ser emanao do soberano. Isso porque a teoria, especialmente a do direito natural, afirma a existncia de leis materiais sem referncia vontade do soberano e afir-ma a validade de um sistema de normas mesmo quando a lei positiva estatal ignora os postulados dessa lei material. Esses dois conceitos de lei esto hoje rigorosamente separados.

    O sistema tomista de direito natural ainda no conhecia uma separao como essa. Nele, voluntas e ratio ainda conflu-am. Lei no cada medida da autoridade, mas somente uma medida da autoridade que ao mesmo tempo corresponda s exigncias da lei natural. A lei o fundamento, o critrio, a regula artis com que uma deciso justa deve ser alcanada. Contra uma lei que contradiz os princpios fundamentais da lex naturalis, a resistncia passiva no s um direito, mas dever, uma vez que nem mesmo Deus pode dispensar a lex naturalis. No sistema tomista, a lei natural suficientemente concretizada e em parte institucionalizada: a partir dela que o tomismo desenvolve uma srie de reivindicaes concretas para o legislador e ao mesmo tempo dada a possibilidade de uma aplicao da lei natural contra a lei estatal contradi-tria, por meio do reconhecimento de, pelo menos, o direito passivo de resistncia.

    A diviso dos dois conceitos de lei efetuada na esco-la dos nominalistas e na teoria do conclio (Konzilstheorie).

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    Desde ento, a lei aparece tambm como a obra consciente da sociedade burguesa. A substituio do conceito poltico de lei pelo de direito natural no secular ocorreu nas lutas entre Igreja e Estado, na disputa dentro das sociedades eclesistica e secular. Os nominalistas que representavam interesses burgueses especficos se opuseram ao direito do Papa subordinao do poder secular. Nessas lutas, o direito natural ora revolucionrio, ora conservador, ora teoria crtica, ora apologia. Sempre que um grupo poltico ataca posies de poder de um outro, serve-se de um direito natural completamente revolucionrio e deduz desse direito natural at mesmo o direito ao tiranicdio. Sempre que esse grupo conquista posies de poder, renuncia a todos os an-tigos ideais, nega a fora revolucionria do direito natural e o transforma numa ideologia conservadora. Em razo de sua hostilidade contra a reivindicao de soberania da Igre-ja, Marslio de Pdua19 foi uma vez obrigado a restringir o poder do soberano secular por meio do reconhecimento de um direito natural fundado na liberdade. O legislador, o pars principans20 no ilimitado, mas est sob o poder de normas universais de direito natural que so amplamente concretizadas e institucionalizadas. Mas, ao mesmo tempo, para conseguir suficiente apoio popular a suas demandas, ele obrigado a postular direitos democrticos de participao, sendo que o povo no evidentemente entendido como soma de todos os cidados livres e iguais, mas somente como os pars valentior. Os tericos conciliares Gerson e Nicolau de Cusa foram conduzidos aos mesmos postulados em razo de seus conflitos a respeito das reivindicaes do Papa sobera-nia da Igreja. Com toda a clareza, Gerson reduziu a vontade da Igreja vontade individual da aristocracia eclesistica

    19 Defensor Pacis; editado por Previt-Orton, Cambridge (Inglaterra), 1928.20 Idem, Dictio I, captulo XIV.

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    reunida no Conclio. Alm disso, Nicolau de Cusa colocou o poder eclesitico sob normas universais de direito natural e recusou a validade de medidas do Papa que se opunham a essas leis universais.

    A partir do incio do sculo XIV, uma identidade entre lei poltica e lei racional no mais mantida. A lei poltica agora apenas medida do soberano. O direito natural, ex-presso em normas universais, confronta a lei poltica, res-tringido e indicando direes determinadas, conservando certas demandas sociais que incluem a manuteno regular da propriedade e dos direitos polticos de liberdade, mas tambm cada vez mais a reivindicao de igualdade perante a lei. Ao mesmo tempo, esse direito natural principalmente defendido nas lutas dos monarcmacos21, sempre apresen-tado pelo grupo atacante. Para Bodin, que criou o primeiro sistema moderno de Estado e de direito, o compromisso com a soberania como um poder absoluto e duradouro to forte quanto o compromisso com a lei racional que limita esse poder absoluto.

    IIIO direito natural desaparece no liberalismo na me-

    dida em que a democracia e com ela a teoria do contrato social se afirma. A universalidade da lei positiva passa para o centro do sistema jurdico. Apenas uma lei que tenha carter universal chamada de lei e, assim, de direito. Por vezes pensamos que a diferena entre a lei geral e a medida individual apenas relativa, j que, se comparada ao ato executivo, cada ordem do superior aos subalternos geral

    21 Ver nota explicativa sobre o uso que Neumann faz desse termo em NEUMANN, Franz. O Imprio do Direito: Teoria poltica e sistema jurdico na sociedade moderna. Traduo de Rrion Soares Melo. Quartier Latin: So Paulo, 2013, p. 42. [N. T.]

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    em algum sentido porque o executante sempre tem algum grau de iniciativa, ainda que pequeno. Quem reconhece apenas esses conceitos, passveis de ser formulados lgica e claramente, como legtimos na teoria do direito e quem recusa toda deciso como subjetiva e, portanto, como arbi-trria, tambm ir rejeitar a delimitao entre norma geral e medida individual22. Entendemos por norma jurdica um juzo hipottico do Estado sobre um comportamento futuro dos sditos e a lei a forma fundamental em que essa norma jurdica aparece.

    Trs elementos so relevantes para o carter da lei: a lei deve ser geral na construo da proposio (Satzbau), deve ser determinada em sua universalidade e no pode ter fora retroativa. Rousseau formulou a demanda por uni-versalidade na construo da proposio da seguinte forma: Quando eu digo que o objeto das leis sempre universal, entendo que a lei considera os sditos como coletividade e suas aes como abstratas e que nunca entende uma pessoa como indivduo particular ou leva em conta uma ao indi-vidual. Assim, a lei pode muito bem estatuir a existncia de privilgios, mas nunca pode conceder um privilgio nome-adamente a uma pessoa... em uma palavra: toda afirmao que se refere a um objeto individual no pertence ao poder legislativo23.

    22 O problema terico da separao entre norma geral e medida individual no ser tratado aqui. Muito menos ser abordada a questo de at que ponto seu carter geral no pode ser pensado sem esse pressuposto. Esses problemas sero tratados em breve nessa revista, na disputa com o positivismo jurdico (principalmente com a teoria pura do direito e os neo-realistas americanos).

    23 Contrat Social, II, 6. Quand je dis que lobjet des lois est toujours gnral, jentends que la loi considre les sujets en corps et les actions comme abstraites, jamais un homme comme individu, ni une action particulire. Ainsi la loi peut bien statuer quil y aura des privilges, mais elle nen peut donner nommment personne,... en un mot, toute fonction qui se rapporte un objet individuel nappartient point la puissance lgislative.

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    Mas essa primeira determinao no suficiente porque o que direito deve vir a ser lei para adquirir no s a forma da sua universalidade, mas sua verdadeira determinao. Deste modo, a ideia de legislao no significa apenas um momento em que algo se exprime como regra de conduta vlida para todos, mas seu momento essencial interno , antes disso, o conhecimento do contedo em sua definida universalidade.24 Em que consiste o contedo dessa universalidade? Para desenvolver essa determinao concreta, ns distinguimos entre proposies jurdicas (Rechtsstzen) e proposies jurdicas fundamentais (Rechtsgrundstzen) ou clusulas gerais, como so chamadas pela cincia jurdica alem. Proposies como: contratos que violam a public policy ou que so unreasonable ou imorais so nulos (138 do Cdigo Civil Alemo), ou ento que h dever de indenizao quando algum causa danos a outrm por meio da ofensa aos bons costumes (826), ou que ser punido quem comete um ato que a lei declara como passvel de punio ou que merece punio segundo a ideia fundamental de uma lei penal ou segundo o saudvel sentimento popular (2 do Cdigo Penal do Imprio Alemo, na verso da lei de 28 de junho de 1935), no so proposies jurdicas ou leis universais, mas representam uma falsa universalidade. Isso porque, na sociedade atual, no possvel produzir unanimidade a respeito de se uma ao contrria aos costumes ou unreasonable num caso concreto, se uma punio corresponde ou contraria o saudvel sentimento popular. Essas proposies no tm, portanto, contedo claro. Um sistema jurdico que constri suas proposies jurdicas principalmente por meio de elementos dessas assim

    24 Hegel, Grundlinien der Philosophie des Rechts, 211. [Traduo adaptada de HEGEL. Princpios da Filosofia do Direito. Traduo de Orlando Vitorino. Martins Fontes: So Paulo, 1997, p. 186 (N. T.)]

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    chamadas clusulas gerais ou legal standards of conduct , como mostraremos adiante, apenas uma capa que encobre as medidas individuais. Por outro lado, proposies como: a capacidade jurdica das pessoas comea com a concluso do nascimento (1 do Cdigo Civil Alemo), ou a transmisso da propriedade se realiza por acordo das partes e inscrio no registro de imveis (873 do Cdigo Civil Alemo), so normas jurdicas porque os elementos factuais essenciais so determinados e no remetem a ordenamentos morais, que no tm vinculao geral e no so aceitos como vinculantes. Quando os princpios fundamentais ou partes importantes do sistema jurdico esto sob o domnio de clusulas gerais como essas, ento no se pode mais falar em imprio da lei universal.

    Essa estrutura formal da lei geral tambm contm e aqui est o terceiro elemento da universalidade ao mesmo tempo um mnimo de determinao material. Porque a lei geral assim determinada garante um mnimo de indepen-dncia ao juiz, precisamente por no submet-lo s medidas individuais do soberano. A lei geral contm, ao mesmo tempo, a reivindicao pela inadmisso da retroatividade. Uma lei que ordena a retroatividade apresenta regulamentos individuais na medida em que os fatos referidos pela lei j existem.

    Os fatos que a lei encontra e regula ou so esferas de liberdade das pessoas ou so instituies humanas. Em sentido jurdico, a liberdade tem apenas e exclusivamente um significado negativo. Ela apenas ausncia de coero externa25. Essa liberdade negativa ou essa liberdade de entendimento unilateral, mas essa unilateralidade contm sempre contm em si uma determinao essencial: ela no deve ser, portanto, descartada, mas a deficincia do enten-

    25 Hobbes, Leviathan, p. 116.

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    dimento est em que ele ergue uma determinao unilateral condio nica e suprema.26

    No basta se contentar com a apresentao de uma esfera geral de liberdade humana perante o Estado. Ainda que superficial e imprecisa, a distino entre diferentes tipos de direitos de liberdade importante aqui. Tentativas como essa so frequentemente feitas na literatura jurdica alem e executadas com mais ou menos habilidade. Ns distin-guimos fundamentalmente quatro verdadeiros direitos de liberdade (Freiheitsrechte). Os direitos de liberdade pessoal, que so os direitos do indivduo isolado, bem como a deter-minao de que a priso s pode acontecer com fundamento nas leis e em um processo regrado; a liberdade de domiclio e a liberdade de correspondncia. Os direitos polticos de liberdade so polticos porque apenas adquirem significa-do por meio da vida comum no Estado (Zusammenleben im Staat), uma vez que incluem a liberdade de associao, de reunio, de imprensa e o direito ao voto secreto. Eles so tanto liberais na medida em que garantem uma esfera de liberdade ao indivduo quanto democrticos, por serem o meio que permite o estabelecimento democrtico da vontade do Estado (Staatswillen). Uma terceira categoria a dos di-reitos econmicos de liberdade: liberdade de comrcio e de negcio. No perodo da democracia, os direitos polticos de liberdade so transferidos para o plano social por meio do reconhecimento do direito sindical para os trabalhadores. A diferenciao nessas quatro categorias no exige nem coeso lgica nem tampouco completude histrica. Esses direitos de liberdade geralmente no so garantidos nas constituies como liberdades ilimitadas. Uma garantia como essa seria

    26 Hegel, op. cit., 5, Adendo. [Traduo adaptada de NEUMANN, Franz. O Imprio do Direito. Traduo de Rrion Soares Melo. Quartier Latin: So Paulo, 2013, p. 81 (N. T.)]

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    absurda. Eles so assegurados exclusivamente no quadro das leis, so equipados com a assim chamada reserva da lei, de modo que uma interferncia nas liberdades pode ser realizada com fundamento nas leis. A mais importante e talvez a mais decisiva exigncia do liberalismo consiste em que as intervenes nos direitos individuais (Reservatrechte) no podem acontecer com base em leis individuais, mas exclusivamente em leis gerais.

    Alm das esferas individuais, a lei geral tambm re-gula instituies humanas. Entendemos por instituio o estabelecimento de uma relao de poder ou de cooperao de longo prazo com a finalidade de reproduo da vida so-cial. A relao pode ser tanto entre pessoas ou entre bens ou mesmo entre pessoas e bens. Essa definio no tem qualquer implicao. Ela uma descrio. O conceito de instituio tampouco tem a ver com as teorias pluralistas do Estado ou com a filosofia do direito tomista ou nacional-socialista, que hoje colocam esse conceito no centro de suas teorias. O con-ceito abrange todos os tipos de associaes: instituies, fun-daes, a empresa, o estabelecimento, o cartel, o casamento. Ele abarca especialmente a principal instituio da sociedade burguesa: a propriedade privada dos meios de produo. A propriedade privada em si um direito subjetivo e abso-luto que concede direitos de defesa ao proprietrio contra qualquer pessoa que perturbe a posse ou fruio do objeto da propriedade. Para alm disso, a propriedade privada dos meios de produo tambm uma instituio. Ela pensada para o longo prazo, serve produo e reproduo da vida social e dispe as pessoas em um domnio de poder.

    Instituies e direitos de liberdade integram relaes determinadas e verificveis. Uma liberdade pode ser uma li-berdade principal (Hauptfreiheit) e, para sua segurana e fun-cionamento, pode estar rodeada de liberdades e de institui-

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    es auxiliares ou, como chamou Karl Renner, de liberdades e institutos conexos (Konnexfreiheiten/ Konnexinstituten)27. Da mesma forma, uma instituio pode estar rodeada de liber-dades conexas. A propriedade, entendida como instituio principal da sociedade burguesa, rodeada pelos decisivos direitos conexos de liberdade de contrato e de comrcio. O proprietrio dos meios de produo precisa ter o direito de estabelecer ou de fechar uma operao comercial, ele precisa ter o direito de celebrar contratos de compra e venda, troca, aluguel, arrendamento, emprstimo e hipoteca, porque s por meio do reconhecimento desses direitos de liberdade que ele consegue produzir e reproduzir.

    Os direitos econmicos de liberdade no so protegi-dos para seu prprio bem, mas exclusivamente porque sua proteo necessria para o funcionamento do instituto principal (Hauptinstitutes) em uma determinada fase do de-senvolvimento econmico. O contrato, a forma jurdica em que a pessoa pe sua liberdade em marcha, um elemento constitutivo da sociedade burguesa no perodo da livre concorrncia. Ele suprime o isolamento dos proprietrios, ele serve de mediador entre eles e, assim, torna-se to im-portante quanto a prpria propriedade. esta mediao que constitui o domnio do contrato, esta mediao que a propriedade estabelece, no s de uma coisa com a minha vontade objetiva mas tambm com outra vontade, havendo portanto uma vontade comum de posse.28

    O liberalismo entende o imprio da lei, o rule of law, apenas e exclusivamente como o primado do direito positivo e no o imprio de um direito consuetudinrio ou natural. Na

    27 Sobre o problema, ver Karl Renner, Die Rechtsinstitute des Privatrechts und ihre Funktion. 2 edio. Tbingen, 1929 e Franz Neumann, Koalitionsfreiheit und Reichsverfassung. Berlin, 1932, p. 86 e seguintes.

    28 Hegel, op. cit., 71. [Traduo de Orlando Vitorino em HEGEL. Princpios da Filosofia do Direito. Martins Fontes: So Paulo, 1997, p. 70 (N. T.)]

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    verdade, o direito natural desapareceu na Inglaterra durante o imprio de Henrique VII, uma vez que, nesse perodo, a prioridade das leis do Parlamento e o dever dos juzes de obedec-las no podiam ser negados.29 J no sculo XVI, a fr-mula dominante de supremacia do direito significava nada menos do que o imprio das leis do Parlamento.30 claro que tendncias jusnaturalistas muito fortes emergiram durante a revoluo puritana31, representadas tanto por republicanos na luta contra a monarquia quanto por monarquistas em sua defesa. Desde essa poca, o imprio do direito natural no foi mais defendido nem na prpria literatura, quanto menos no Judicirio. Mesmo Blackstone (1723-1780), que transcreveu o sistema de direito natural de Burlamaqui no primeiro volume de seus Commentaries e que apoiou o imprio de um direito natural eterno e imutvel, precisa admitir, na passagem em que trata sobre a soberania do Parlamento, que o Parlamento poderia fazer o que quisesse e que ele no sabia de nenhum meio para implementar o imprio do direito natural por ele postulado.

    Na Alemanha, o direito natural teve outro destino se comparado Inglaterra. Primeiro ele transformou seu car-ter para em seguida finalmente desaparecer. Por um lado, o direito natural pode ser um direito justificado por meio da liberdade e ento a teoria crtica de uma oposio burguesa que luta contra o absolutismo. Ou ento uma teoria que deve legitimar a soberania estatal e no a liberdade e, nesse

    29 Ver Holdsworth, History of English Law. Volume IV, p. 187.30 Uma exceo o caso Bonham, tratado muitas vezes, mas que pode ser

    explicado a partir do conflito pessoal entre entre Coke e Jaime I. Ver Charles H. McIlwain, The High Court of Parliament and its Supremacy, New Haven, 1910, p. 81 e, principalmente, Theodor F. Plucknett, Bonhams Case and Judicial Review. In: Harvard Law Review, n. 40, p. 30.

    31 Excelente interpretao em Gooch-Laski, English Democratic Ideas in the Seventeenth Century. Cambridge, 1927.

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    sentido, por vezes apologtica. No havia razo para a continuidade de nenhum dos dois tipos de direito natural na Inglaterra. No caso do direito natural libertrio, porque a burguesia chegou ao poder poltico no sculo XVII. No caso do direito natural absolutista, porque a unidade do Estado no estava mais em questo desde Henrique VIII ou mesmo na prpria revoluo puritana. Na Alemanha, pelo contrrio, ambas as tarefas ainda estavam por resolver. Mas o mais urgente era a formao de uma autoridade estatal unitria como uma importante condio de produo da sociedade burguesa. O direito natural de Pufendorf, que teve extraordinria influncia nos juristas dos sculos XVII e XVIII, serviu tarefa de justificar a coero estatal de forma jusnaturalista.32 A natureza humana dominada por dois impulsos: o da sociabilidade e o da auto-preservao.33 Como no existe uma harmonia natural entre os dois instintos, ela precisa ser provocada fora.34 Por no prever sano, o di-reito natural incapaz dessa tarefa. Sua execuo apenas deixada a critrio do foro divino et conscientiae35. Mas isso insuficiente. A sano , portanto, assumida pelo Estado justificado pelo contrato, que deve ser absoluto. O direito do Estado a ordem do soberano, pura voluntas36, e o di-reito de resistncia, admitido por Pufendorf, no se refere a nada de decisivo.37 No sistema de Christian Thomasius, o direito natural apenas um conselho do qual decorrem

    32 As obras de Pufendorf sero citadas a partir da edio do Carnegie Endowment for International Peace. a) Elementorum Jurisprudentiae Universalis Libri Duo, b) De Jure Nature et Gentium Libri Octo, c) De Officio Hominis et Civis Libri Duo.

    33 De Off. I C III, 8, 9.34 De Off. I C V, 5.35 De Off. I C II 7.36 De Off. II C XII, 1.37 De Off. II C XII, 8.

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    certas obrigaes morais.38 Mas como direito e moral so rigorosamente separados e o critrio supremo do direito seu carter coercitivo, ento seu sistema de direito natural tambm serve para a legitimao da coero estatal. Por mais distinto que seja o ponto de partida de Christian Wolff39 e por mais que ele enfatize a validade de uma lex aeterna, ele tambm chega ao resultado de que s o Estado garante uma vida comum ordenada. A diferena para as teorias racio-nalistas de Pufendorf e Thomasius reside no fato de Wolff tambm atribuir tarefas culturais e de bem-estar ao Estado. Da mesma forma que seu sistema era adequado s formas de governo de Frederico II da Prssia e de Jos II da ustria, os sistemas de Pufendorf e Thomasius eram expresso da forma estatal do prncipe-eleitor (Kurfrst) Frederico Guilherme I.

    O direito natural desaparece completamente na teoria do direito de Kant, se ela for vista de forma isolada de sua tica. O Estado a organizao que deve possibilitar a exis-tncia da liberdade de um indivduo junto aos demais. Mas a deciso a esse respeito no da personalidade autnoma (autonome Persnlichkeit), mas do Estado absoluto40, que o postulado lgico do estado de natureza, em que uma pro-priedade provisria e a proposio pacta sunt servanda j so

    38 Fundament des Natur- und Vlkerrechts.39 Citado a partir da edio do Carnegie Endowment for International Peace. Jus

    Gentium Methodo Scientifico Pertractatum.40 Metaphysik der Sitten, Rechtslehre, Segunda Parte, Primeiro pargrafo,

    Observao geral A, Pois aquele que deve restringir o poder do Estado h de ter, decerto, mais poder, ou pelo menos um poder igual, quando comparado com o poder que se quer restringir; e como soberano legtimo, que ordena aos seus sditos resistir, deve tambm poder defend-los e julg-los legalmente em cada caso e, portanto, poder ordenar publicamente a resistncia. Mas esta pessoa, e no a autoridade existente, seria ento o poder supremo; o que contraditrio. [Traduo adaptada de KANT, Immanuel. Metafsica dos Costumes Parte I: Princpios metafsicos da doutrina do direito. Traduo de Artur Moro. Edies 70: Lisboa, 2004. (N. T.)]

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    afirmadas de forma dogmtica. A liberdade do sujeito de direito kantiano apenas garantida pelo fato de apenas ser permitido ao Estado governar por meio de leis gerais. Esse postulado ser sustentado com todo o rigor. Kant recusa at mesmo atenuar o direito estrito positivado em leis gerais por meio do direito de equidade. Isso porque a equidade uma deusa parva que no pode ser ouvida. Disso tambm decorre que um tribunal da equidade (numa disputa de outros sobre seus direitos) envolveria uma contradio.41 De Kant at o final do sculo XIX, a reivindicao pela universalidade das leis ocupa o centro da teoria do direito alem. Ao exigir que o Estado governe por meio de leis universais, Kant recepciona a teoria de Montesquieu e de Rousseau.

    Isso porque a exigncia de que o Estado deva governar por meio de leis universais talvez tenha sido representada de forma mais clara no Esprit des lois de Montesquieu. Mon-tesquieu foi influenciado por Descartes atravs da mediao de Malebranche. Assim como em Descartes o mundo base-ado nas leis universais da mecnica que nem mesmo Deus pode alterar porque toda medida individual estranha a sua essncia e porque Deus se retira do universo e se torna immense, spirituel et inifini , em Montesquieu, a lei estatal geral e privada das medidas do soberano da mesma for-ma42. A Revoluo Francesa foi fortemente dominada pela doutrina de Rousseau e Montesquieu. Mirabeau, presidente do comit de elaborao do projeto dos direitos humanos, props no dia 17 de agosto de 1789 a incluso da seguinte clusula: Por ser expresso da volont gnrale, a lei deve

    41 Metaphysik der Sitten, Rechtslehre, Apndice Introduo I. [Traduo adaptada de KANT, Immanuel. Metafsica dos Costumes Parte I: Princpios metafsicos da doutrina do direito. Traduo de Artur Moro. Edies 70: Lisboa, 2004. (N. T.)]

    42 E. Buss, Montesquieu und Cartesius. In: Philosophische Monatshefte, n. IV, 1869/1870. p. 5 e seguintes.

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    ser universal em seu objeto. Assim, o artigo da Declarao dos Direitos do Homem e do Cidado tambm inclui a clusula de que a lei expresso da volont gnrale, uma ideia que repetida no artigo 6 da Declarao de 1793 e no artigo 6 da Constituio do Ano III. Ao longo da revoluo, foi feita uma diferenciao entre lois e dcrets na Constituio de 1791 e na Constituio jacobina de 1793. A Constituio girondina de 1793, criada sob a decisiva influncia de Condorcet, acen-tua fortemente no artigo 4 da sesso 2: As caractersticas distintivas das leis so sua universalidade e sua durao ilimitada e distingue as leis das medidas (mesures) para o caso de emergncia. Com exceo de Carr de Malberg, a teoria constitucional francesa43 manteve at hoje a diferen-ciao entre lei geral e medida individual, apesar de ela no aparecer mais nas constituies posteriores e de nunca ter sido reconhecida pela praxis francesa.

    A doutrina alem deveu muito francesa, mas se dis-tanciou dela de forma decisiva no final do sculo XIX. Robert von Mohl44, Lorenz von Stein45 e Klueber46: a exigncia de uni-versalidade da lei ocupa o centro da doutrina de todos eles. No entanto, sob a influncia do todo-poderoso Paul Laband desaparece o pressuposto da necessidade da generalidade da lei. Em seu lugar inserida uma outra separao, nomea-damente a separao entre lei formal e material. Lei formal toda expresso da vontade estatal; lei material apenas uma expresso da vontade estatal que contenha uma proposio jurdica, ou seja, que produza direitos e deveres subjetivos.

    43 Comeando com o Rpertoire universel et raisonn de jurisprudence de Merlin. Edio de 1827, p. 384.

    44 Politik, volume 1, Tbingen, 1862, p. 420 e Enzyklopdie de 1859, p. 139.45 Verwaltungslehre, volume 1, p. 73.46 ffentliches Recht des Teutschen Bundes und der Bundesstaaten, Frankfurt a.

    M., 1846, p. 363.

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    Nesse sentido, a lei oramentria no material, uma vez que contm apenas uma autorizao para que o Estado pos-sa realizar despesas nos limites do oramento. Essa teoria dualista foi amplamente aceita pela cincia jurdica alem.

    Apesar da vitria da teoria da supremacia do Parla-mento, o carter geral das leis tampouco foi negligenciado na Inglaterra. Blackstone47 inclusive afirma que uma lei in-dividual antes uma proposio do que uma lei. Mesmo Austin, o representante mais radical do conceito poltico de direito hobbesiano, atreve-se a afirmar48 que s podemos falar de uma lei quando ela tiver carter geral. No nico caso em que os tribunais ingleses trataram da questo de se medidas individuais tm carter de lei e, portanto, carter de direito, a resposta foi afirmativa49. Essa deciso extraordinariamente interessante porque os juzes frequentemente se manifestam sobre por que, nesse caso, uma medida individual tinha de ser entendida como lei. A deciso trata da validade de uma proclamao de um alto comissrio de uma colnia, por meio da qual a liberdade de um nativo foi privada. A pergunta originada pelo caso foi a de at que ponto uma medida indi-vidual como essa poderia suspender as liberdades garantidas pela lei do habeas corpus. O Lord Justice Farwell justificou a legalidade da seguinte forma: A verdade que, em pases habitados por nativos que ultrapassam a populao branca em nmero, leis como essas (a saber, a lei do habeas corpus), apesar de serem o baluarte da liberdade no Reino Unido, podem muito bem se tornar a sentena de morte dos brancos se forem aplicadas l (nas colnias). E o Lord Justice Kennedy acrescenta que a legislao direcionada contra uma pessoa determinada um privilgio e que em geral, assim espero

    47 Commentaries of the Laws of England, volume 1, p. 44.48 Lectures on Jurisprudence. 5 edio, Londres 1929, volume 1, p. 94.49 Re v. Crewe (ex parte Sekgome), 1910, 2 K. B. 576.

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    e acredito, uma legislao como essa no recomendvel nem para o legislador britnico, da mesma forma como ela pouco convinha ao legislador da Roma Antiga. Aqui enfatizado com grande clareza o carter de dois gumes da lei universal em uma sociedade dominada por conflitos de interesse decisivos.

    A postulao da universalidade da lei anda de mos dadas com a recusa da retroatividade da lei. A retroativi-dade o maior atentado que a lei pode cometer. Ela a dila-cerao do contrato social, ela a eliminao das condies que permitem a sociedade ter o direito de esperar obedincia do indivduo. Porque ela priva o indivduo das garantias que ela havia lhe assegurado e que eram a contrapartida de sua obedincia, da qual ele uma vtima. A retroativi-dade priva a lei de seu carter. A lei retroativa no lei.50 assim que Benjamin Constant caracteriza a retroatividade das leis. Tambm esse pensamento provm diretamente da teoria de Rousseau e encontrou aceitao na Declarao dos Direitos do Homem e do Cidado e na Constituio do Ano III, sem que com isso existam hoje obstculos constitucionais para a promulgao de leis retroativas quer na Frana ou na Inglaterra. Na Alemanha, a Constituio de Weimar elevou a proibio de reatroatividade das leis penais categoria de uma garantia constitucional.

    Uma teoria da estrutura formal da lei como essa leva automaticamente a uma teoria especfica sobre o posicio-namento do juiz em relao lei. Quando a lei e s a lei impera, ento o juiz no tem nada alm do que tarefas cognitivas. Os juzes so, como Montesquieu os caracterizou, nada mais do que a boca que proclama as palavras da lei, ser inanimado. Em razo dessa suposta insignificncia, os atos

    50 Moniteur, 1 de junho de 1828, p. 755.

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    dos juzes so en quelque faon nul51. Essa teoria fonogr-fica da aplicao do direito52 est evidentemente vinculada teoria da diviso dos poderes, isto , afirmao de que criao do direito e legislao seriam idnticos e que no seria possvel criar direito fora do processo legislativo, seja atravs da sociedade ou de juzes ou funcionrios administrativos. Cazals foi quem expressou essas ideias de forma mais clara: H apenas dois poderes em cada sociedade poltica: aquele que cria as leis e aquele que as executa. O poder judicirio... consiste apenas na pura e simples aplicao da lei...53. Mas ideias parecidas podem ser encontradas no Federalist; nas teorias inglesas, podem ser encontradas em Hobbes, bem como na histria da common law de Hale.

    Assim, o sistema jurdico do liberalismo foi tido como um sistema fechado e sem lacunas, que apenas deveria ser aplicado pelos juzes. O pensamento jurdico desse perodo chamado de positivismo ou normativismo. A interpretao das leis pelos juzes chamada de interpretao dogmtica (na Alemanha) ou exegtica (na Frana). Para conseguir uma clareza completa do sistema jurdico, tambm Bentham pre-feriu uma codificao do direito ingls porque um cdigo no exigiria escolas para sua interpretao, no necessitaria de casustas para revelar suas sutilezas; ele falaria uma lngua familiar a todos. Qualquer um poderia consult-lo segundo suas necessidades... Os juzes no devem criar o direito... Comentrios, se feitos por escrito, no devem ser citados... Quando um juiz ou um advogado acreditar ter encontrado um erro ou uma lacuna, deve compartilhar sua opinio com a entidade legisladora54. importante que principalmente a

    51 Montesquieu. Esprit des lois. XI, 6.52 Assim a chama Morris R., Law and the Social Order. New York, 1933. p. 112.53 Archives parlementaires. 1 srie, volume 11, p. 892.54 General view of a complete code of laws. Edio Bowring, volume III, p. 210.

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    Revoluo Francesa no se contentou apenas com a doutrina de que os juzes no deveriam criar o direito, mas tentou ins-titucionaliz-la. O desenvolvimento comeou com a famosa exigncia de Robespierre: Essa ideia55 da criao do direito... tem de ser eliminada da nossa lngua. Em um Estado em que h constituio e legislao, a jurisprudncia dos tribunais consiste em nada alm do que a lei56. Assim, os decretos de 16 e 24 de agosto de 1790 proibiam a interpretao da lei pelo juiz e ordenavam que ele recorresse entidade legisla-dora em casos de dvida. As funes desse Rfr Lgislatif, como era ento chamado, foram posteriormente assumidas pelo Tribunal de Cassation e, ainda mais tarde, pelo Cour de Cassation, mas esses rgos eram constitudos como parte da entidade legislativa e no como tribunais. Mais tarde, sobretudo sob a influncia de Portalis, esse doutrinarismo simplesmente impraticvel foi abandonado e a liberdade de interpretao do juiz foi novamente estabelecida no Code Civil. Segundo Portalis, o juiz deve preencher as lacunas com ajuda da luz natural do sentido do direito e do saudvel entendimento humano. Mas essa ideia no encontrou apli-cao na teoria francesa. Pelo contrrio principalmente a partir do ano 1830, a cole de lExgse foi vitoriosa. 1830 o ponto de inflexo da teoria do direito francesa. A partir de ento as leis so interpretadas de forma dogmtica. O sistema jurdico tido como fechado, a teoria fonogrfica aplicada sem hesitao, a funo de criao do direito pelo juiz negada. No h mais recurso a ponderaes de justia

    55 A citao de Robespierre em alemo diz que a palavra criao do direito deve ser eliminada do idioma. Em alemo, a ideia de criao do direito expressa em uma palavra s (Rechtsschpfung), o que no possvel em portugus. [N. T.]

    56 Archives parlementaires. 1 srie, volume 20, p. 516. Formulaes parecidas so encontradas em Le Chapelier.

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    e de utilidade.57 Desenvolvimentos parecidos podem ser encontrados na Alemanha. Assim, Frederico II da Prssia proibiu a interpretao de leis no dia 14 de abril de 1780. O artigo 4 da introduo da Allgemeinen Landsrecht proibiu a interpretao de leis contra a letra e o contexto das palavras. Feuerbach provavelmente o autor da instruo da Baviera de 19 de outubro de 1813 que probe funcionrios pblicos e especialistas de escrever comentrios sobre o Cdigo Penal da Baviera de 1813.58 O inimigo de Feuerbach, Savigny, no se diferencia dele nesse ponto. Savigny e a escola histrica do direito vem apenas a lei, o Volksgeist e o direito costu-meiro como fontes do direito.59 Tambm na teoria de Savigny o direito entendido como um sistema fechado, unitrio e completo e o juiz tem apenas de reconhecer a verdade e no cri-la.60 A teoria alem da aplicao do direito dogmtica durante todo o sculo XIX.

    A teoria da separao de poderes, da qual depende essa teoria de aplicao do direito, no significa, no entanto, a suposio de uma igualdade entre os trs poderes, mas implica sempre o reconhecimento da supremacia do poder legislativo, j em Locke como em todos os posteriores. Con-sequentemente, em quase todo sculo XIX e na Alemanha at o ano 1919, negado o direito de reviso judicial de leis promulgadas adequadamente. A teoria constitucional

    57 Um bom ainda que no suficiente do ponto de vista cientfico panorama sobre as teorias francesas pode ser encontrado em Julien Bonnecase, La Pense Juridique Franaise de 1804 lHeure Prsente. 2 volumes, Bordeaux, em especial o volume 1, p. 246. O livro mais famoso o de Franois Gny, Mthode de lInterpretation et Sources du Droit Priv Positif. 2 edio, Paris, 1919. Gny o criador da jurisprudncia sociolgica.

    58 Gustav Radbruch, Feuerbach, Viena 1934, p. 85.59 G. F. Puchta. Gewohnheitsrecht. Volume 1, 1828, p. 144 e seguintes.60 F. K. von Savigny. System des heutigen rmischen Rechts. Volume 1, pp. 262-

    263.

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    alem estava dividida nessa questo: os liberais apoiavam o direito judicial de reviso, os conservadores o rejeitavam. Mas apesar de a maioria ter se declarado a favor do direito de reviso judicial no quarto encontro alemo de juristas em 1863, o nmero de apoiadores declinou rapidamente sob o governo de Bismarck. A prtica negava um direito como esse continuamente e permitia a reviso judicial apenas no que dizia respeito compatibilidade entre leis estatais e federais.

    Qual a importncia social da teoria do imprio da lei, da negao do direito natural e da absoluta submisso do juiz lei? Na Inglaterra, na Alemanha e na Frana, a crena no imprio da lei expressou tanto a fora como a fraqueza da burguesia. A afirmao da supremacia do direito posto implica principalmente a outra afirmao de que medidas sociais s podem ser introduzidas por meio da legislao. Mas a primazia da legislao pressuposta porque, tambm na Inglaterra e na Frana, a burguesia tinha um papel im-portante no processo legislativo. No entanto, leis so sem-pre intervenes na liberdade ou na propriedade. Se essas intervenes s podem ser realizadas por meio de lei ou com fundamento em leis e se a burguesia representada de forma decisiva no Parlamento, ento essa doutrina implica que aquela camada social que objeto da interveno ir, ela prpria, determinar as intervenes e, evidentemente, ir assim resguardar seus interesses. Se o Parlamento o meio decisivo para mudanas sociais, a consequncia disso que o imprio da lei parlamentar se torna ao mesmo tempo um meio de bloquear ou ao menos de parar o avano social. A doutrina esconde, portanto, a relutncia das classes domi-nantes em relao reforma social, na medida em que a len-tido da mquina parlamentar transforma o nico meio de mudana do direito em um meio para a preservao de sua

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    imutabilidade.61 Por fim, a doutrina tem uma ltima funo ideolgica: a do encobrimento dos verdadeiros detentores do poder. A invocao da lei como o nico soberano e o pressuposto de que a soberania seria a government of laws and not of men tornam desnecessrio mencionar que pesso-as exercem o poder, ainda que governem dentro do mbito das leis. Disso decorre que a supremacia da lei parlamentar ocupa o centro da doutrina constitucional contanto que a burguesia tenha influncia decisiva no Parlamento. Se essa influncia comea a diminuir, ento surgem no mesmo ins-tante novas doutrinas jusnaturalistas destinadas a reduzir a supremacia de um Parlamento em que representantes do operariado tambm exeram influncia. Paralela a essa doutrina hegeliana, desenvolveu-se na Frana o ensinamento dos doutrinrios, que proclamavam a soberania da razo em contraposio razo do povo, com o objetivo de excluir as massas e governar sozinhos.62 Mas, ao mesmo tempo, a dou-trina da supremacia da lei parlamentar esconde a fraqueza da burguesia. A afirmao de que mudanas sociais poderiam ocorrer apenas por meio de lei parlamentar ou que juzes e autoridades administrativas apenas declarariam o direito sem cri-lo uma iluso que serve para no ter de admitir o poder de criao do direito de autoridades extraparlamen-tares. A doutrina expressa claramente a ambivalncia do carter burgus: a afirmao enftica da autonomia humana corresponde a uma declarao igualmente apaixonada em favor do imprio da lei.

    61 Ver Georg Jger, Das englische Recht zur Zeit der klassischen Nationalkono-mie. Leipzig, 1929, p. 30.

    62 Karl Marx, Die heilige Familie, VI. Captulo, 1a. [Traduo adaptada de MARX, Karl. A Sagrada Famlia: ou a crtica da Crtica crtica (contra Bauer e consortes). Traduo de Marcelo Backes. Boitempo: So Paulo, 2003. (N. T.)]

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    Mas a teoria do imprio da lei tambm necessria para a satisfao das condies da concorrncia capitalista. A necessidade de previsibilidade e de confiana no sistema ju-rdico e na administrao realmente foi um dos motivos para a limitao do poder dos prncipes-patrimoniais (Patrimonial--Frsten) e da feudalidade com a criao do Parlamento, com a ajuda do qual a burguesia controlava a administrao e as finanas e participava das modificaes do sistema jurdico.63 A livre concorrncia necessitava da lei universal porque ela a forma mais acabada da racionalidade formal e, ao mesmo tempo, porque tambm precisa exigir a submisso absoluta do juiz lei e, assim, diviso de poderes. A livre concor-rncia est condicionada existncia de um grande nmero de competidores com aproximadamente a mesma fora, que concorrem em um mercado livre. Liberdade do mercado de produtos, liberdade do mercado de trabalho, livre seleo no interior da classe empresarial, liberdade contratual e, so-bretudo, previsibilidade do Judicirio so as caractersticas essenciais do sistema liberal de concorrncia, que, por meio de uma empresa capitalista racional e contnua, quer de fato gerar lucro e lucro sempre renovado. A primeira tarefa do Estado consiste na criao de uma ordem jurdica como essa que garanta o cumprimento dos contratos. A expectativa de que os contratos devero ser cumpridos deve ser sempre calculvel. Quando os competidores so aproximadamente iguais, essa previsibilidade s pode ser criada por meio de leis gerais. Essas leis gerais precisam ser to determinadas em sua abstrao para que apenas reste o mnimo de espao para apreciao do juiz. Numa sociedade assim constituda, portanto, o juiz no pode se voltar a clusulas gerais. Quando o Estado intervm na liberdade e na propriedade, ele precisa tornar suas prprias intervenes previsveis. Ele no pode

    63 Max Weber, Wirtschaft und Gesellschaft, Tbingen, 1922, p. 174.

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    intervir com fora retroativa, seno eliminaria expectativas j criadas. Ele no pode intervir sem lei porque uma inter-veno como essa no seria previsvel. Ele no pode intervir por meio de medidas individuais porque cada interveno como essa fere o princpio da igualdade dos competidores. por isso que tambm o juiz precisa ser independente e que o litgio precisa ser decidido independentemente dos desejos e manifestaes do governo. Disso decorre que os poderes precisam ser diferentes. Independentemente de seu significado poltico, a diviso de poderes o elemento organizador da livre concorrncia porque cria competncias e demarcaes claras entre as diferentes autoridades do Estado e, desse modo, garante a racionalidade do direito e sua aplicao.64 Dessa forma, desfaz-se a aparente oposio no posicionamento dos liberais perante a legislao, uma antinomia que Roscoe Pound65 encontrou principalmente na posio dos puritanos americanos. Ela consiste, por um lado, na averso a qualquer tipo de legislao e, por outro, na firme convico na legislao, ligada com a averso ao direito consuetudinrio e ao direito embasado na equidade. Esse o posicionamento do liberalismo como um todo e no s dos puritanos. O liberalismo postulava a primazia da legislao parlamentar de forma a evitar a legislao ou, na medida em que isso no era possvel, subordinar essa legislao aos interesses da burguesia. Mas, por princpio, o liberalismo no amava intervenes.

    Assim, a teoria do imprio da lei universal no foi completamente realizada de nenhuma forma e em nenhum perodo de livre concorrncia. A sociedade do liberalismo no racional e a economia no organizada de forma pla-nejada. Harmonia e equilbrio de forma alguma se restauram

    64 Idem, p. 166.65 The Spirit of the Common Law. Boston 1925, p. 46.

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    automaticamente a cada instante. Medidas do soberano e clusulas gerais so sempre imprescindveis em cada es-tgio. Faz parte da dialtica da categoria do contrato que ele praticamente se torne o meio para transtornar a livre concorrncia e, assim, para destruir o imprio do contrato e as leis universais relacionadas a ele na esfera econmica. Isso porque, segundo a teoria jurdica do liberalismo e em oposio diametral a Adam Smith, a liberdade contratual implica o direito dos proprietrios de se organizar, de for-mar cartis, grupos, sindicatos, comunidades de interesse e, por fim, um trust monopolista para dominar o mercado. Como a teoria jurdica do liberalismo abstraiu os postulados sociais da teoria liberal clssica de Adam Smith seu com-bate concorrncia ilimitada66, seu postulado de igualdade para os competidores, sua luta contra os monoplios67, sua declarao em favor da concentrao das funes de gesto e de provimento de capital na nica pessoa do proprietrio e, assim, sua luta contra a sociedade annima , chegou de forma unnime concluso de que a liberdade contratual no significava nada alm do que a liberdade de celebrar

    66 One individual must never prefer himself so much even to any other individual as to hurt or injure that other in order to benefit himself though the benefit of the one should be much greater than the hurt or injury of the other. Adam Smith, A Theory of Moral Sentiments. 6 edio, 1790, volume 1, parte III, captulo III, p. 339. E ainda: In the race for wealth and honors and preferment, each may run as hard as he can and strain every nerve and every muscle in order to outstrip all his competitors, but if he should justle or throw down any of them, the indulgence of the spectator is entirely at an end. It is a violation of fair play which they can not admit of. Theory, volume I, parte II, seo II, captulo II, p. 2026.

    67 Wealth of Nations, volume I, livro I, captulos VII e XI; volume 2, livro IV, captulo VII, parte III e a seguinte passagem das suas Glasgow Lectures: Lecture on Justice Police Revenue and Arms, editado por Cannan, Oxford 1890, p. 177, ao tratar das corporaes de ofcio dos padeiros e dos aougueiros: For a free commodity... there is no occasion for this [ou seja, para estabelecer preos oficiais], but it is necessary with bakers who may agree among themselves to make the quantity and prices what they please.

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    qualquer tipo de contrato contanto que no previsse nada de explicitamente proibido pela lei e, assim, tambm inclua a possibilidade de celebrar aqueles contratos que declaravam a sentena de morte da livre concorrncia. A transformao da liberdade de contrato de um conceito social, cujo senti-do era o intercmbio de desempenhos de igual valor entre competidores de igual fora, em um conceito jurdico formal contribuiu para que o capitalismo monopolista, em que con-trato e lei universal desempenham papeis completamente secundrios, se desdobrasse a partir da base e com a ajuda do sistema contratual.

    IV

    Mas a lei geral e o princpio da diviso de poderes tm uma terceira funo, uma funo tica, que ganhou expresso mais clara na filosofia do direito de Rousseau. A universalidade da lei e a independncia do juiz garantem um mnimo de liberdade pessoal e poltica. A lei universal estabelece a igualdade entre as pessoas. Ela a base para interferncias na liberdade e na propriedade. por isso que o carter da lei a que devem ser reduzidas todas as interven-es de significado decisivo. A liberdade apenas garantida quando intervenes como essas puderem ser reduzidas lei universal e, assim, quando o princpio da igualdade for garantido. A frase de Voltaire de que liberdade significa no ser dependente de nada alm da lei68 leva em conta apenas a lei universal. Se o soberano pode decretar medidas indivi-duais, se pode prender essa ou aquela pessoa, confiscar essa ou aquela propriedade, isso acontece contra a verdadeira independncia dos juzes. O juiz que deve executar medidas

    68 La libert consiste ne dpendre que des lois in: Penses sur le Gouvernement. Edio de Garnier Frres, volume 23, p. 526.

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    individuais como essas se torna um mero policial e oficial de justia. por isso que a verdadeira independncia pres-supe o imprio do Estado por meio de leis universais. A universalidade da lei, a independncia dos juzes, bem como a doutrina da diviso de poderes tm, portanto, tarefas que transcendem a necessidade de livre concorrncia. O fen-meno fundamental subjacente universalidade da lei a capacidade jurdica plena e igual de todas as pessoas no foi violado em nenhum perodo do liberalismo. A igualdade perante a lei certamente formal, ou seja, negativa. Mas mesmo Hegel, que mais claramente reconheceu a fraqueza da mera determinao formal-negativa do conceito de li-berdade, j tinha alertado contra seu descarte. Todas as trs funes da universalidade encobrir o poder da burguesia, tornar o sistema econmico previsvel e garantir um mni-mo de liberdade e igualdade so decisivas e no apenas a segunda, como querem sobretudo os adeptos do Estado total. Se virmos na universalidade da lei apenas um meio para satisfao das necessidades da livre concorrncia, como faz Carl Schmitt, por exemplo, ento se impe a concluso natural de que, com a eliminao da livre concorrncia e sua substituio por um capitalismo de Estado organizado, tambm devem desaparecer a lei universal, a independncia do juiz e a diviso de poderes. Assim, o verdadeiro direito passa a ser ou a ordem do Fhrer ou a clusula geral.

    V

    A forma jurdica que a sociedade da livre concorrncia criou para si prpria no sculo XIX diferente na Inglaterra e na Alemanha. O fenmeno especificamente alemo o estado de direito (Rechtsstaat). O fenmeno especificamente ingls a combinao da supremacia do Parlamento com o rule of law.

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    A ideia de Rechtstaat foi realizada no sistema kantiano. O estado de direito aparece aqui como a criao da burguesia alem na qualidade de uma classe econmica ascendente, mas politicamente estagnada. Ela est satisfeita com a prote-o jurdica de seus direitos de liberdade econmica e estava resignada em relao ao poder poltico estatal. A essncia desse conceito de estado de direito est na separao da for-ma jurdica da estrutura poltica do Estado. A forma jurdica deve garantir liberdade e segurana independentemente da estrutura poltica. nessa separao que est a diferena fundamental entre a teoria alem e a teoria inglesa. Na teo-ria alem, o estado de direito no se tornou a forma jurdica especfica da democracia, como o caso da Inglaterra. O estado de direito se relaciona antes de forma neutra em re-lao forma de Estado. Esse posicionamento indiferente expresso de forma mais clara por Friedrich Julius Stahl.69 O Estado deve ser estado de direito essa a soluo e tambm a verdade para o impulso do desenvolvimento dos novos tempos. Ele deve determinar precisamente e garantir de forma inviolvel os caminhos e fronteiras de sua eficcia, bem como a esfera de liberdade de seus cidados, atravs da lei; ento ele deve realizar diretamente apenas aquilo que pertence esfera do direito. Esta sim constitui a concepo do Rechtsstaat, e no a ideia de que o Estado deve meramente aplicar a ordem jurdica sem fins administrativos, ou ento meramente garantir os direitos dos indivduos. Ele significa sobretudo no os fins e contedos do Estado, mas somente o tipo e a natureza de sua realizao.70 Essa definio de Stahl tambm foi aceita, em parte com expressa referncia e aprovao do conceito, pelos tericos liberais do estado

    69 Rechts- und Staatslehre. 3 edio, Volume 2, pp 137-146.70 Traduo adaptada de NEUMANN, Franz. Imprio do Direito. Traduo de

    Rrion Soares Melo. Quartier Latin: So Paulo, 2013, p. 309 [N. T.]

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    de direito, a saber, Gneist71, Robert von Mohl72, Otto Bhr73 e Welcker74. Esse conceito de estado de direito, desenvolvi-do em polmicas fervorosas de Stahl contra De Maistre e Bonald, culmina com a negao de que o monarca seria o representante de Deus na Terra e termina com a afirmao de que o monarca no pode governar contra a lei, mas s com a representao do povo e s por meio da burocracia. A definio mostra duas coisas claramente: o Estado tambm tem funes administrativas que no so controladas. A forma jurdica, pelo contrrio ou seja, o governo por meio da lei , independente da forma do Estado.

    Na teoria constitucional inglesa, ambos os elementos soberania do Parlamento e imprio da lei so igual-mente enfatizados, o que j ocorria desde Blackstone75. Em contraposio burguesia alem, a burguesia inglesa no assegurava seus direitos de liberdade econmica por meio da criao de entraves para a legislao parlamentar. Assim, no assegurava esses direitos de forma material, mas de for-ma gentica, apenas por meio da participao na legislao. Mesmo assim, a teoria inglesa no completamente indi-ferente em relao estrutura do conceito de lei76. A teoria do direito alem no est interessada na gnese da lei e se ocupa exclusivamente com a interpretao da lei positiva, criada em algum momento e de alguma forma. A burguesia

    71 Gneist, Der Rechtsstaat. 2 edio. 1872, p. 333.72 Geschichte der Literatur der Rechtswissenschaften, 1885. Volume 1, p. 296 e

    seguintes.73 Der Rechtsstaat, 1864, p. 1-2.74 Artigo Staatsverfassung In: Rotteck-Welcker, Staatslexikon. 1843, volume 15.75 Op. cit., volume 1, p. 160.76 A nfase uniforme em ambos os conceitos expressa de forma mais clara

    no livro que dominou a teoria constitucional inglesa durante sculos e que continua a dominar hoje. Dicey, Introduction to the Study of the Law of the Constitution. 1 edio, Londres, 1885.

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    inglesa est interessada na formao das leis, interesse que essencialmente poltico. A teoria alem constitucional--liberal, a inglesa constitucional-democrtica. A burguesia inglesa manifestava sua vontade por meio do Parlamento. A alem descobriu as leis dos monarcas constitucionais, que foram sistematizadas e interpretadas para garantir o mximo de liberdade econmica perante um Estado mais ou menos absoluto. Assim, enquanto no podemos encontrar discusses de alguma forma relevantes acerca da estrutura formal da lei na teoria inglesa, a teoria alem repleta de discusses sobre o que se pode entender por lei77. A teoria alem, especialmente a representada por Laband e tornada ponto de vista dominante, uma clara expresso da fraqueza poltica da burguesia alem.

    A partir de 1848, a independncia do juiz no foi mais contestada. Os juzes aplicavam as leis de forma literal. A livre apreciao, mais visvel nas clusulas gerais, no tinha qualquer papel. As clusulas gerais praticamente no so mencionadas nos primeiros trinta volumes das decises do tribunal do Reich78. O artigo sobre a polcia do Landrecht, a clusula geral mais importante do direito administrativo, tambm caiu no esquecimento. Ainda em 1911, o segundo encontro alemo de juzes adotou as seguintes resolues79: 1. O poder judicirio subordinado lei. O juiz no tem, portanto, autorizao para desviar do direito. 2. A ambi-guidade de contedo da lei no permite que o juiz decida segundo seu prprio critrio; a dvida deve ser antes resol-vida pela interpretao da lei de acordo com seu sentido e

    77 Anlises precisas sobre a relevncia sociolgica da teoria alem podem ser encontradas em Carr de Malberg, Contribution la Thorie Gnrale de ltat, volume 1, Paris, 1920.

    78 Justus Wilhelm Hedemann, Die Flucht in die Generalklausen. Jena, 1933.79 Citado por Ernst Forsthoff, Zur Rechtsfindungslehre im 19. Jahrhundert. In:

    Zeitschrift fr die gesamte Staatswissenschaft, Volume 96, 1935, p. 63.

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    finalidade e, quando cabvel, por analogia. 3. Se uma lei for passvel de diferentes interpretaes, ento o juiz deve dar preferncia quela interpretao que melhor corresponda ao entendimento jurdico e s necessidades sociais (Verkehr-sbedrfnisse).

    Essa atitude dos juzes em relao lei compreen-svel durante o perodo de Guilherme II. O Estado sabia como manter completa influncia sobre os juzes, apesar de sua independncia. A posio social dos juzes era fixa. Ele comeava sua carreira como oficial de reserva e ali apren-dia a importncia da obedincia e da disciplina. Os postos de presidente eram quase exclusivamente preenchidos por antigos promotores pblicos, que, ao contrrio dos juzes, eram funcionrios pblicos dependentes e vinculados a instrues superiores. Tambm na qualidade de presidentes, eles sabiam como atender os desejos do ministro, mesmo quando eles no eram expressos de forma clara. Mas, por fim, se comparado com seu colega ingls, o juiz prussiano era sobretudo um funcionrio mal pago, que tinha que es-perar durante anos por sua contratao definitiva, de forma que s os membros da mdia burguesia tinham condies para entrar na profisso. O juiz desse perodo tinha todas as caractersticas da mdia burguesia: o ressentimento contra os trabalhadores, principalmente contra aqueles que eram organizados e bem pagos; a venerao pelo trono e pelo altar e, ao mesmo tempo, a indiferena contra o capital fi-nanceiro e monopolista. Os juzes representavam a aliana entre coroa, exrcito, burocracia, proprietrios e burguesia. Seus interesses eram idnticos aos daqueles que provinham da constelao dessas camadas da nao. E como as leis correspondiam a esses interesses, no havia motivo para interpret-las de outra forma que no fosse literal. Tampou-co havia espao para qualquer direito natural. A burguesia

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    alem estava satisfeita com o poder estatal. Juzes e tericos do direito no precisavam mais evocar um direito natural para combater um direito positivo que lhes era contrrio e hostil. Ambos direito natural e filosofia do direito desa-pareceram. O positivismo foi vitorioso no apenas na inter-pretao do direito e nesse sentido ele tem tambm traos progressistas , mas tambm na teoria do direito, isto , na renncia a qualquer teoria do direito e, assim, na aceitao acrtica de um relativismo obediente nesse sentido ele reacionrio. Esse completo abandono do direito natural na segunda metade do XIX e no incio do sculo XX expresso de forma mais clara por Windscheid80: No, ns no temos vergonha de dizer: o direito que temos e que construmos no o direito. No existe direito absoluto para ns. O so-nho do direito natural se dissipou e as tentativas titnicas da nova filosofia no provocaram tempestades no cu. Karl Bergbohm manifestou o anseio por segurana jurdica de forma muito clara quando exps que aquele que pressupe um direito independente da criao humana recai em corrupo jusnaturalista.81

    Se certo que o Rechsstaat era um estado de coalizo das camadas dominantes, isso no significa que ele era desptico. A universalidade da lei e a independncia do juiz continham elementos que transcendiam a funo de encobrimento do poder e de criao da calculabilidade capitalista. A diviso de poderes certamente no era apenas uma diferenciao de poderes, mas era ao mesmo tempo tambm uma diviso do poder estatal entre as diferentes camadas dentro de uma co-alizo. Mas esse domnio de classe era calculvel, previsvel e, portanto, no arbitrrio. Mas, para alm disso, em parte

    80 B. Windscheid, Recht und Rechtswissenschaft. Leipziger Rektoradsrede von 1854, p. 23.

    81 K. Bergbohm, Jurisprudenz und Rechtsphilosophie. Leipzig, 1892, p. 131.

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    devido fuso de elementos prussiano-conservadores do Es-tado policial com a indstria, em parte devido s concesses que o Estado teve que fazer a um proletariado fortalecido, a racionalidade do direito acabou por beneficiar em grande medida os pobres e os trabalhadores. Isso aconteceu princi-palmente por meio da formao de um sistema jurdico para os pobres (Armenrechtssystem), que atingiu uma amplitude extraordinria depois de 1918 e que tornou o sistema jurdico alemo do perodo de Weimar o mais racionalizado do mun-do. E aqui racional no tem apenas o sentido de produo de calculabilidade, mas tambm um sentido eminentemente social, ou seja, de que as vantagens do direito racional be-neficiaram a classe trabalhadora e, para alm dela, tambm os pobres. Isso aconteceu em oposio ao que se passava na Inglaterra, onde at hoje a racionalidade no sentido da manuteno da ordem vigente ainda garantida de forma decisiva por meio da formao completamente insuficiente de um sistema jurdico para os pobres, por meio de custos processuais extraordinariamente elevados e da concentrao da justia no High Court of Justice, com a consequncia de que grandes camadas da populao fiquem sem direitos na prtica. Assim, o sistema jurdico desse perodo est centra-do nos seguintes elementos: direitos de liberdade pessoal, poltica e econmica que implicam a afirmao do carter pr-estatal dessas liberdades.

    1. A estrutura formal do sistema jurdico: Essas liber-dades so garantidas por meio do direito formal e racional, ou seja, por leis universais e por sua rigo-rosa aplicao por parte de juzes independentes, pela negao do carter de criao do direito na atividade do juiz e ao ignorar as clusulas gerais.

    2. A estrutura material do sistema jurdico: Esse sis-tema jurdico estava economicamente vinculado

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    livre concorrncia. Ela encontrava sua expresso nas garantias conexas da propriedade e nas liberdades de contrato e de comrcio.

    3. A estrutura social do sistema jurdico: Ele era so-cialmente orientado a uma situao em que a classe trabalhadora no era gravemente perigosa.

    4. A estrutura poltica do sistema jurdico: Ele era politicamente relacionado a um sistema de diviso e de distribuio de poderes. Na Alemanha, estava orientado a uma situao em que a burguesia no tinha um papel crucial; na Inglaterra, a um sistema em que a burguesia determinava o contedo das leis e em que o poder parlamentar era dividido entre a coroa, a aristocracia e a burguesia.

    VI

    Tanto a teoria quanto a prtica jurdica passam por uma mudana decisiva no perodo do capitalismo monopolista, que comea na Alemanha com a democracia de Weimar. Para entender as transformaes jurdicas, necessrio levar a construo poltica da democracia de Weimar em considerao e no as mudanas econmicas estruturais frequentemente descritas. O fato poltico decisivo da de-mocracia de Weimar o novo significado do movimento operrio a partir de 1918. A sociedade burguesa no podia mais ignorar a existncia de uma oposio de classe como ainda fazia o antigo liberalismo. Ela precisava antes tomar conhecimento desses conflitos e, reconhecendo esse fato, tentar de alguma forma construir uma constituio. O meio tcnico para isso tambm era o contrato, que possibilita por si s o compromisso poltico. O Estado moderno cer-tamente no surgiu por meio de um contrato social, mas a

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    ideia do contrato social na filosofia poltica moderna no esgota seu significado na mera hiptese. Quando o contrato visto como origem da sociedade burguesa, ento aqui h o pressuposto de que o contrato uma condio principal para a realizao e para o funcionamento dessa sociedade. Ela efetivamente atinge os contratos e no apenas na esfera econmica. Grupos poderosos da sociedade se unem, fazem seus interesses serem os nicos legtimos e sacrificam com isso a universalidade. Na ltima fase da sociedade burguesa, a fundao da Repblica alem revela o sentido do contrato social. A Repblica teve incio com os seguintes contratos: o contrato mais importante, firmado em 10 de novembro de 1918 por Ebert, por um lado, e por Hindenburg e Grner, por outro, cujas condies descreviam Grner como teste-munha do assim chamado Mnchener Dolchstossprozess82, tem no restabelecimento da paz e da ordem seu objetivo positivo e no combate ao bolchevismo seu objetivo negativo. A celebrao do acordo que criou o grupo de trabalho central

    82 Der Dolchstossprozess in Mnchen. Mnchen, 1925, p. 224. Na qualidade de testemunha, Grner diz: Ns nos unimos [quer dizer, Ebert e o Supremo Comando do Exrcito (Oberste Heeresleitung OHL)] na luta contra o bolchevismo. No era possvel pensar na implantao da monarquia. Nosso objetivo no dia 10 de novembro foi a implantao de um governo ordenado, o apoio desse poder por meio da fora militar e a convocao da assembleia nacional o quanto antes. Primeiro aconselhei o marechal de campo a no combater a revoluo com armas, pois havia o receio de que um combate como esse fracassaria com a constituio das tropas. Eu o aconselhei que seria bom que o OHL se unisse a MSP [Mehrheitssozialdemokratie Partei Deutschlands denominao do Partido Social-Democrata Alemo (SPD) entre 1917 e 1922], j que naquela poca no havia qualquer partido com influncia suficiente junto ao povo e principalmente junto s massas para restabelecer um governo com o OHL. Os partidos de direita tinham desaparecido completamente e ir junto com os extremos radicais estava fora de questo. claro que essa no foi uma soluo completamente simptica ao velho marechal de campo, mas como ele sempre tinha viso suficiente para renunciar s suas opinies pessoais em sua atuao, concordou com a proposta. A resposta tambm foi manifestada em uma carta que o marechal de campo escreveu ao senhor Ebert em 8 de dezembro de 1918.

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    (Zentralarbeitsgemeinschaft) em 15 de novembro de 1918 teve o mesmo efeito na esfera social o assim chamado acordo Stinnes-Legien fez com que os empregadores se compro-metessem a no tolerar mais sindicatos amarelos83, a apenas reconhecer os sindicatos independentes e s trabalhar junto com eles e a regular as condies de trabalho por meio de acordo coletivo. Esse acordo eliminou no apenas o bolche-vismo, mas toda e qualquer forma de socialismo e formou as bases para o sistema em que a Alemanha viveu de 1918 a 1930. No dia 4 de maro de 1919, o partido social-democrata de Berlim e o governo do Reich acordaram a introduo de comits de trabalhadores e seu ancoramento na constituio do Reich, sendo que havia clareza de que esses conselhos no deveriam ter nada a ver com os conselhos revolucionrios de trabalhadores e de soldados. Em um tratado entre o Reich e os estados (Lnder) de 26 de janeiro de 1919, a estrutura federal do Reich foi mantida. E o quinto e ltimo tratado, que na verdade abarcava todos os demais, firmado entre os trs partidos de Weimar centro, social-democracia e democratas , estabeleceu a manuteno da antiga burocracia e da justia, rejeitou o sistema sovitico, manteve as posies de poder da Igreja, sancionou os direitos civis de liberdade, ainda que tenham sido levemente limitados por direitos fundamentais sociais, e introduziu a democracia parlamentar.

    Esse sistema de Weimar foi chamado de democracia coletiva porque a integrao da vontade do Estado supos-tamente no deveria mais resultar da soma das vontades de cidados eleitores, mas da intermediao de organizaes sociais autnomas. O Estado deveria se limitar a um papel de terceiro neutro entre essas organizaes livres. Nesse sentido,

    83 Sindicatos amarelos a expresso utilizada para designar sindicatos apoiados e financiados por empregadores. Eles se opunham aos sindicatos vermelhos, de orientao socialista ou social-democrata. [N. T.]

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