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7 a edição revista, ampliada e atualizada 17 Coordenação Leonardo Garcia coleção SINOPSES para concursos 2018 JULIANO TAVEIRA BERNARDES OLAVO AUGUSTO VIANNA ALVES FERREIRA DIREITO CONSTITUCIONAL TOMO II - Direito Constitucional Positivo

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7a ediçãorevista, ampliada e atualizada

17CoordenaçãoLeonardo Garcia

coleção

SINOPSESpara concursos

2018

J U L I A N O TAV E I R A B E R N A R D E S O L AV O A U G U S T O V I A N N A A LV E S F E R R E I R A

DIREITO CONSTITUCIONAL

TOMO II - Direito Constitucional Positivo

?IC A P Í T U L O

Direitos fundamentais em espécie

1. DEFINIÇÕES PRÉVIAS

Como se viu no item 1 da Parte III do Tomo I, direitos fundamentais são o con-junto de direitos estabelecidos por determinada comunidade política organizada, com o objetivo de satisfazer ideais ligados à dignidade da pessoa humana, sobretudo a liberdade, a igualdade e a fraternidade.

Porém, no âmbito dos direitos fundamentais, é preciso tratar ainda de outras divisões.

1.1. Direitos individuais

A Constituição de 1988, embora tenha feito referência no Título II tanto a direitos individuais quanto a direitos coletivos, não estabeleceu critérios precisos para distin-guir os adjetivos aí empregados. Segundo JOSÉ AFONSO DA SILVA, direitos individuais são aqueles que “reconhecem autonomia aos particulares, garantindo a iniciativa e independência dos indivíduos diante dos demais membros da sociedade política e do próprio Estado” (1998a, p. 194). Trata-se, pois, de direitos fundados no conceito amplo de liberdade individual.

1.2. Direitos individuais de expressão coletiva

São os direitos de titularidade individual, mas cujo exercício pressupõe a atuação convergente de uma pluralidade de pessoas. Exemplos: o direito de reunião e de asso-ciação; o direito de votar e de ser votado.

1.3. Direitos coletivos lato sensu

Formam a espécie de direitos fundamentais de titularidade de uma categoria de pessoas, ainda que não possam ser determinadas com precisão. Manifestação do plura-lismo político do Estado brasileiro (art. 1º, inciso V), são direitos metaindividuais que atingem segmentos da sociedade civil (sindicatos, associações, família, partidos polí-ticos), bem como grupos indeterminados ou dispersos de pessoas. Exemplos: o direito de greve e o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado.

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Todavia, no rol de direitos constante do art. 5º da Constituição quase não há direitos tipicamente coletivos. Para JOSÉ AFONSO DA SILVA, são coletivos apenas os di-reitos previstos nos incisos XXI (direito de representação dado às associações); XXXIII (direito à obtenção de informações de interesse coletivo); e XXXIV, letra “a” (direito de petição).

1.3.1. Direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos

Conforme doutrina majoritária, é possível dividir os direitos coletivos a partir dos seguintes tipos de interesses juridicamente protegidos aos quais estão relacionados:

a) Interesse público lato sensu: engloba todos os interesses que, mesmo reflexa-mente, alcancem a sociedade como um todo. Divide-se em:

i) interesse público primário: aqueles que visam ao bem-estar geral, como o interesse social e da coletividade. Exemplos: todos os interesses difusos, coletivos, e mesmo os individuais indisponíveis; e

ii) interesse público secundário: Trata-se do modo pelo qual a Administração Pública vê o interesse público. Para ilustrar, quando o Poder Público decide construir uma usina hidrelétrica, um aeroporto ou quando declara guerra, o interesse público aí envolvido não coincide, necessariamente, com os inte-resses da coletividade.

b) Interesses difusos: interesses “transindividuais” de natureza indivisível, cujos titulares são grupos indeterminados e dispersos de pessoas ligadas por circunstân-

cias de fato. Ver art. 81, parágrafo único, inciso I, do CDC. Exemplo: os interesses conectados ao equilíbrio do meio ambiente, aos direitos do consumidor em não ser alvo de propaganda enganosa etc.

c) Interesses coletivos: são os interesses da titularidade de uma categoria determi-nada ou pelo menos determinável de pessoas. Apresentam dois subtipos, como já reconheceu o Plenário do STF no RE 163.231/SP:

i) interesses coletivos em sentido estrito: os interesses “transindividuais” de natureza indivisível, mas cuja titularidade recai sobre determinado grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas entre si, ou com a parte contrária, por uma relação jurídica base. Ver art. 81, parágrafo único, inciso II, do CDC. Exemplos: os interesses dos taxistas à regulamentação das respectivas concessões; dos advogados dativos em serem remunerados pelo Estado; dos consumidores de certa instituição bancária, em virtude de aumento abusivo e generalizado de tarifas.

ii) interesses individuais homogêneos: interesses de natureza divisível e decorrentes de origem comum, cujos titulares são pessoas individuais ple-namente identificáveis. Trata-se de interesses que poderiam ser defendidos em juízo por meio de ações individuais, mas que a legislação processual

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permite defendê-los coletivamente. Ver art. 81, parágrafo único, inciso III, do CDC. Exemplos: os interesses dos consumidores que adquiriram certo produto industrial que apresenta um mesmo defeito técnico; os interesses dos alunos de uma escola cujas mensalidades sofreram aumentos abusivos. Tais interesses individuais homogêneos, quando revestidos de interesse so-cial qualificado, passam a contar, ainda, com a proteção institucional do Ministério Público e da Defensoria Pública, cujos órgãos poderão defendê--los, extrajudicial ou judicialmente, a depender das circunstâncias.

Sobre a legitimidade do Ministério Público e da Defensoria Pública para atuarem em defesa dos interesses coletivos lato sensu, ver, respectivamente, item 2.7 e item 5 do Capítulo 9.

DIREITOS COLETIVOS SOB A ÓTICA

DOS INTERESSES JURIDICAMENTE PROTEGIDOS

A) Interesse

público lato

sensu:

Interesses que, mesmo reflexamente, atinjam a sociedade como um todo. Tem por es-pécies:(i) interesse público primário:(ii) interesse público secundário:

B) Interesses

difusos:

Interesses “transindividuais” de natureza indivisível, cujos titulares são grupos indeter-minados e dispersos de pessoas ligadas por circunstâncias de fato.

C) Interesses

coletivos:

Interesses da titularidade de uma categoria determinada ou pelo menos determinável de pessoas. Tem por espécies:(i) interesses coletivos em sentido estrito: os interesses “transindividuais” de natureza indivisível, mas cuja titularidade re-

C) Interesses

coletivos:

cai sobre determinado grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica base.(ii) interesses individuais homogêneos: interesses de natureza divisível e decorrentes de origem comum, cujos titulares são pessoas individuais plenamente identificáveis.

Como esse assunto foi cobrado em concurso?No concurso para Juiz do TJMT (2008), foi considerada errada a seguinte alternativa: “O mesmo interesse pode ser ao mesmo tempo difuso, coletivo e individual homogêneo.”

1.4. Abuso de direitos individuais e políticos

Na Constituição anterior, o art. 154 cuidava do “abuso de direito individual ou político, com o propósito de subversão do regime democrático ou de corrupção”, situação para a qual era prevista a “suspensão daqueles direitos de dois a dez anos”, por decisão do STF, após representação do Procurador-Geral da República, e “sem pre-juízo da ação cível ou penal que couber, assegurada ao paciente ampla defesa.” Nesse sentido, pelo regime constitucional revogado, o exercício dos direitos fundamentais era expressamente submetido a controle judicial de seus propósitos políticos, com possibilidade de suspensão de direitos, inclusive em detrimento de parlamentares

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(art. 154, parágrafo único). Tratava-se da chamada “suspensão” de direitos civis, algo típico de regimes de natureza autoritária.

Na atual Constituição, não há previsão semelhante. Nada obstante, como se viu nos itens 8.5 do Capítulo I da Parte III do Tomo I, nenhum direito fundamental é ab-soluto. De modo que eventuais abusos de direito atraem regime próprio de nulidades e responsabilidades civil, penal, administrativa e/ou política. Vedada, porém, a suspen-são de direitos por práticas que se pode considerar “subversivas”.

1.5. Deveres fundamentais

O nome do Capítulo I do Título II da Constituição trata não somente de direitos, mas também dos “Deveres Individuais e Coletivos”, embora os dispositivos que lhe sigam (art. 5º e seus incisos e parágrafos) não se refiram a estes, propriamente. Para JOSÉ AFONSO DA SILVA (2009, p. 63-64), os deveres decorrem da declaração dos direi-tos, “na medida em que cada titular de direitos individuais tem o dever de reconhecer e respeitar igual direito do outro”. Porém, a “inviolabilidade dos direitos assegurados impõe deveres a todos, mas especialmente às autoridades e detentores de poder”.

Mais sobre o assunto, ver item 1.4 do Capítulo I da Parte III do Tomo I. Sobre a especial vinculação de particulares a deveres originalmente concebidos para vincular o Poder Público, v. item 6.4 do Capítulo I da Parte III do Tomo I.

2. CLASSIFICAÇÃO DOS DIREITOS INDIVIDUAIS NA CONSTITUIÇÃO DE 1988

O critério de classificação abaixo considera o objeto imediato do direito assegura-do. Nessa perspectiva, são espécies de direitos individuais (art. 5º, caput):

a) direito à vida;

b) direito à igualdade;

c) direito à liberdade;

d) direito à propriedade;

e) direito à segurança.

Atenção:Para autores como JOSÉ AFONSO DA SILVA, os direitos que têm por objeto imediato a segurança incluem-se, todos, no campo das garantias individuais.

3. DIREITOS INDIVIDUAIS E COLETIVOS MAIS DESTACADOS

3.1. Direito à vida

Previsto logo no caput do art. 5º, o direito à vida tem múltiplas conexões. Segun-do JOSÉ AFONSO DA SILVA, é integrado por elementos materiais (físicos e psíquicos)

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e elementos imateriais (espirituais). Assim, convertida a vida num bem juridicamente tutelado, o conceito do direito à vida, para JOSÉ AFONSO DA SILVA, engloba também os direitos: (a) à dignidade da pessoa humana; (b) à existência; (c) à integridade físico--corporal; e (d) à integridade moral.

Todavia, embora a Constituição tenha trazido novidades como a equiparação do crime de tortura à categoria dos crimes hediondos (inciso XLIII), o constituinte não quis enfrentar questões polêmicas como a de quando tem início a vida e a morte das pessoas naturais, tampouco a eutanásia, a ortotanásia ou o aborto.

3.1.1. Questões polêmicas

a) Fixação do momento inicial da vida: A despeito da omissão constitucional so-bre o assunto, o legislador ordinário, ao permitir a utilização de células-tronco embrionárias obtidas de embriões humanos produzidos por fertilização in vitro, acabou por excluir do âmbito de proteção efetiva do direito à vida os embriões considerados “inviáveis”, bem como os embriões congelados até 28 de março de 2005, depois de completados três anos contados a partir da data do seu conge-lamento. Ver artigo 5º e parágrafos da Lei de Biossegurança (Lei 11.105/2005), regulamentada pelo Decreto 5.591/2005.

Por outras palavras, o legislador reputou, reflexamente, que a proteção propor-cionada pelo direito à vida não se inicia com a concepção, mas somente a contar de determinada fase de desenvolvimento do embrião humano.

Como o STF enfrentou a questão:Na ADIn 3.510/DF, ao apreciar a constitucionalidade do art. 5º da Lei de Biossegurança, o Plenário do STF considerou que a inviolabilidade constitucional do direito à vida diz respeito, exclusivamente, a indivíduos que sobreviveram ao parto. Ou seja, o âmbito de proteção do direito constitucional à vida não alcança embriões nem fetos, mas somen-te aqueles que nascem vivos. Para a Corte, “o embrião é o embrião, o feto é o feto e a pessoa humana é a pessoa humana. Donde não existir pessoa humana embrionária, mas embrião de pessoa humana.” Contudo, o STF ressaltou que o princípio da dignidade da pessoa humana autoriza o legislador a transbordar a proteção constitucional à vida, para proteger momentos da vida humana anteriores ao nascimento, tal como preveem alguns dispositivos do Código Civil (direitos do nascituro), da Lei 9.434/97 (vedação à gestante de dispor de tecidos, órgãos ou partes de seu corpo vivo) e do Código Penal (criminalização do aborto).

b) Aborto: A Constituição Federal não cuidou do tema, mas a legislação penal con-sidera crime a interrupção da gravidez, mesmo com o consentimento da gestante, salvo se inexistir outro meio de lhe salvar a vida (aborto terapêutico) ou se a gravidez é resultado de estupro – ou de outro crime sexual, por analogia. (Ver arts. 124 a 129 do CP).

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Atenção:No julgamento da ADIn 3.510/DF, todavia, o STF acabou por fixar que a proteção ao feto é matéria de status infraconstitucional. Logo, a Corte antecipou a constitucionalidade de eventuais mudanças legislativas que venham a descriminalizar procedimentos abortivos.

Por outro lado, com relação ao aborto de fetos anencefálicos, na ADPF 54/DF, o STF decidiu pela inconstitucionalidade da interpretação segundo a qual a interrupção da gravidez é conduta penalmente tipificada. Entendeu a Corte que a tipificação penal da interrupção da gravidez de feto anencefálico contraria os preceitos constitucionais referentes à laicidade do Estado, à dignidade da pessoa humana, ao direito à vida e à proteção da autonomia, da liberdade, da privacidade e da saúde.

Ademais, em polêmica decisão de 2016, por três votos a dois, a 1ª Turma do STF promoveu a “interpretação conforme a Constituição” dos artigos 124, 125 e 126 do CP, que criminalizam o aborto provocado pela gestante ou com seu consentimento, e acabou por excluir do âmbito de incidência dos mencionados tipos penais “a inter-

rupção voluntária da gestação efetivada no primeiro trimestre” (HC 124.306/RJ, j. em 29-11-2016). Conforme voto vencedor do Min. BARROSO, a criminalização dessas hipóteses de aborto, nos três primeiros meses de gestação, “é incompatível com os seguintes direitos fundamentais: os direitos sexuais e reprodutivos da mulher, que não pode ser obrigada pelo Estado a manter uma gestação indesejada; a autonomia da mulher, que deve conservar o direito de fazer suas escolhas existenciais; a integridade física e psíquica da gestante, que é quem sofre, no seu corpo e no seu psiquismo, os efeitos da gravidez; e a igualdade da mulher, já que homens não engravidam e, portan-to, a equiparação plena de gênero depende de se respeitar a vontade da mulher nessa matéria.” Entendeu-se, ainda, que a tipificação penal do aborto consentido “viola, também, o princípio da proporcionalidade por motivos que se cumulam: (i) ela constitui medida de duvidosa adequação para proteger o bem jurídico que pretende tutelar (vida do nascituro), por não produzir impacto relevante sobre o número de abortos pratica-dos no país, apenas impedindo que sejam feitos de modo seguro; (ii) é possível que o Estado evite a ocorrência de abortos por meios mais eficazes e menos lesivos do que a criminalização, tais como educação sexual, distribuição de contraceptivos e amparo à mulher que deseja ter o filho, mas se encontra em condições adversas; (iii) a medida é desproporcional em sentido estrito, por gerar custos sociais (problemas de saúde pública e mortes) superiores aos seus benefícios”.

Como esse assunto foi cobrado em concurso?No concurso para Procurador da República (2008), na prova discursiva, foi apresentado o seguinte questionamento ao candidato: “Formule, pelo menos, três fundamentos consti-tucionais, incluindo necessariamente argumentos sobre os direitos sexuais e reprodutivos, favoráveis ou contrários à recepção do artigo 124 do Código Penal (Provocar aborto em si mesma ou consentir que outrem lho provoque: Pena – detenção, de um a três anos) pela Constituição de 1988.”

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Como esse assunto foi cobrado em questões dissertativas de concurso?No concurso para Defensor Público/MS (2008), perguntou-se “a Constituição brasileira permite o aborto de fetos anencéfalos?”

c) Momento consumativo da morte: Ao regular a retirada post mortem de tecidos, órgãos e partes do corpo humano para fins de transplante ou tratamento, o art. 3º da Lei 9.434/97 delimitou que o termo inicial da morte se verifica com o diagnós-tico médico da morte encefálica da pessoa, ou seja, com a paralisação irreversível da atividade encefálica. Porém, a determinação de quando e como é que se deva considerar ocorrida a morte encefálica não é tratada pela ciência jurídica, senão apenas pela ciência médica. O legislador fez somente remissão aos critérios clí-nicos e tecnológicos de diagnose da morte encefálica, a serem estabelecidos em resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM).

d) Eutanásia e ortotanásia (direito de morrer?): Eutanásia é a palavra de origem grega cujo significado literal é “morte sem sofrimento”. Trata-se da morte induzida ou antecipada, intencionalmente, com objetivo estancar sofrimento extremo de pessoa sem chances de recuperação. Implica, portanto, redução do período duran-te o qual a vida normalmente se prolongaria. Exemplo: o uso de um medicamento letal para induzir a morte de paciente terminal.

Já a ortotanásia (para alguns, eutanásia passiva) é a morte decorrente da simples interrupção dos tratamentos de saúde que mantinham viva a pessoa, mas sem chances de recuperação. Importa em deixar que a vida se esvaia em seu ritmo natural. Exemplo: o desligamento dos aparelhos de respiração artificial de doente com falência dos órgãos cardiorrespiratórios.

Atenção:A) Há quem faça distinção entre ortotanásia e eutanásia passiva. Nessa linha, na orto-

tanásia, a causa do evento morte já se iniciara quando da interrupção do tratamento; na eutanásia passiva, a própria interrupção do tratamento médico é que dá causa ao resultado morte. Assim, será a conduta omissiva do médico, ou de terceiro, que acarre-tará o evento morte.

B) Na Bioética, discute-se, ainda, a figura da distanásia (ou obstinação terapêutica), que é o abuso das tentativas médicas de prolongar a vida de um doente incurável, me-diante tratamentos artificiais, desproporcionais e até experimentais, mesmo que isso implique causar dor e sofrimento a uma pessoa cuja morte é iminente e inevitável.

As duas figuras envolvem o conflito entre direitos constitucionalmente protegidos. De um lado, o direito à vida e o dever do Estado e dos serviços e profissionais de saúde em protegê-lo satisfatoriamente; e, de outro, o direito à dignidade da pessoa humana e o direito à autodeterminação, que redundariam num direito à morte com dignidade. Porém, como o constituinte se omitiu a respeito, a resolução desse problema de colisão de direitos acaba por exigir juízos de ponderação dos órgãos constituídos (ver item 11

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do Capítulo 7 do Tomo I). Nesse sentido, a origem popular dos mandatos legislativos habilita o Parlamento a funcionar como o mais legítimo dos órgãos para cuidar desses assuntos, o que idealmente se deveria fazer por meio de leis que procedessem a pon-derações em abstrato e, então, antecipassem regras de condutas e soluções concretas.

Pois bem. No Brasil, não há dúvidas em que os procedimentos voltados à euta-násia (ativa) estão proibidos, já que enquadrados no tipo penal do homicídio doloso, ainda que sob a modalidade privilegiada (art. 121, § 1º, do CP). Mas é controversa a situação penal da ortotanásia.

Para muitos penalistas, a ortotanásia constitui homicídio privilegiado praticado por conduta omissiva (homicídio comissivo por omissão), pois o médico que assiste o doente teria a “responsabilidade” de empregar todos os meios disponíveis para evitar o resultado morte (art. 121, § 1º, c/c art. 13, § 2º, do CP). Melhor entender, contudo, que a ortotanásia não configura crime, pois o médico não possui obrigação de artificial-mente prolongar o sofrimento de paciente em estado terminal, se essa não é a vontade dele próprio ou de seu representante legal.

Nesse sentido, por meio da Resolução n. 1.805/2006 e do Código de Ética Médica aprovado em 2009, o Conselho Federal de Medicina evidenciou que essa obrigação mé-dica não existe e passou a permitir “ao médico limitar ou suspender procedimentos e tratamentos que prolonguem a vida do doente em fase terminal, de enfermidade grave e incurável”, desde que respeitada a vontade explícita do paciente ou de seu represen-tante legal e garantidos os cuidados necessários para aliviar o sofrimento do doente.

Atenção:Tramita no Congresso Nacional o Projeto de Lei 6.715/2009 cujo objeto inclui ao CP o seguinte dispositivo que deixará clara a exclusão da tipicidade da ortotanásia: “Art. 136-A. Não constitui crime, no âmbito dos cuidados paliativos aplicados a paciente terminal, deixar de fazer uso de meios desproporcionais e extraordinários, em situação de morte iminente e inevitável, desde que haja consentimento do paciente ou, em sua impossibi-lidade, do cônjuge, companheiro, ascendente, descendente ou irmão. § 1º A situação de morte iminente e inevitável deve ser previamente atestada por 2 (dois) médicos. § 2º A exclusão de ilicitude prevista neste artigo não se aplica em caso de omissão de uso dos meios terapêuticos ordinários e proporcionais devidos a paciente terminal.”

e) Direito ao testamento vital ou biológico (living will): É bastante atual a discus-são sobre o reconhecimento de um novo direito fundamental relacionado ao direito à autodeterminação. Trata-se do chamado direito ao testamento vital, segundo o qual se reconhece à pessoa, em perfeito estado de consciência, a faculdade de outorgar a outrem poderes para decidir sobre questões relativas ao próprio trata-mento médico aplicável, em caso de incapacidade de manifestação da vontade, por ocasião de doença em estado incurável ou terminal. Nessa linha, em países nos quais se admite a eutanásia, o direito ao testamento vital pode incluir até a polê-mica possibilidade de autorização a terceiros para decidir sobre a própria eutanásia (eutanásia indireta).

45Cap. I • Direitos fundamentais em espécie

No Brasil, a eutanásia é proibida e a legislação ainda não cuida, expressamente, do direito ao tratamento vital. Porém, o Conselho Federal de Medicina (CFM) já bai-xou resolução sobre figura similar: as “diretivas antecipadas de vontade” (Resolução 1.995/2012).

Atenção:O art. 1º da Resolução 1.886/2012 define as “diretivas antecipadas de vontade” como sendo “o conjunto de desejos, prévia e expressamente manifestados pelo paciente, so-bre cuidados e tratamentos que quer, ou não, receber no momento em que estiver inca-pacitado de expressar, livre e autonomamente, sua vontade.”Ainda conforme a Resolução 1.886/2012: “Art. 2º Nas decisões sobre cuidados e trata-mentos de pacientes que se encontram incapazes de comunicar-se, ou de expressar de maneira livre e independente suas vontades, o médico levará em consideração suas di-retivas antecipadas de vontade. § 1º Caso o paciente tenha designado um representante para tal fim, suas informações serão levadas em consideração pelo médico. § 2º O mé-dico deixará de levar em consideração as diretivas antecipadas de vontade do paciente ou representante que, em sua análise, estiverem em desacordo com os preceitos ditados pelo Código de Ética Médica. §  3º As diretivas antecipadas do paciente prevalecerão sobre qualquer outro parecer não médico, inclusive sobre os desejos dos familiares. § 4º O médico registrará, no prontuário, as diretivas antecipadas de vontade que lhes foram diretamente comunicadas pelo paciente. § 5º Não sendo conhecidas as diretivas ante-cipadas de vontade do paciente, nem havendo representante designado, familiares dis-poníveis ou falta de consenso entre estes, o médico recorrerá ao Comitê de Bioética da instituição, caso exista, ou, na falta deste, à Comissão de Ética Médica do hospital ou ao Conselho Regional e Federal de Medicina para fundamentar sua decisão sobre conflitos éticos, quando entender esta medida necessária e conveniente.”

Nada obstante, em maio de 2014, na I Jornada de Direito da Saúde, organizada pelo CNJ, foi aprovado o Enunciado 37, segundo o qual as “diretivas ou declarações antecipadas de vontade que especificam os tratamentos médicos que o declarante deseja ou não se submeter quando incapacitado de expressar-se autonomamente, devem ser feitas preferencialmente por escrito, por instrumento particular, com duas testemunhas, ou público, sem prejuízo de outras formas inequívocas de manifestação admitidas em direito.”

f) Natureza jurídica do cadáver: Cadáver (i.e., o corpo do indivíduo sem vida) é coisa cujo domínio e disponibilidade fica transferido aos herdeiros a partir do falecimento da pessoa (GÓIS, 2007, p. 420-430). Porém, como o cadáver reflete a imagem do indivíduo, trata-se de coisa fora do comércio (res extra commercium), cuja destinação deve ainda atender a normas de saúde pública. Ademais, o art. 8º da Lei 9.434/97 determina seja o cadáver – cujas partes, órgãos ou tecidos tenham sido aproveitados em transplantes – “condignamente recomposto para ser entregue, em seguida, aos parentes do morto ou seus responsáveis legais para sepultamento”. Essa a razão pela qual GÓIS infere a proibição geral de exposição do cadáver sob condições vexatórias.

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g) Comercialização de órgãos, tecidos ou substâncias humanas: Está proibida pelo § 4º do art. 199 da Constituição, cuja redação diz que a “lei disporá sobre as condições e os requisitos que facilitem a remoção de órgãos, tecidos e substâncias humanas para fins de transplante, pesquisa e tratamento, bem como a coleta, pro-cessamento e transfusão de sangue e seus derivados, sendo vedado todo tipo de comercialização.” Conferir a Lei 10.205/2001, que regulamentou tal dispositivo constitucional.

Atenção:Parte da comunidade científica defende que essa proibição constitucional só abrangeria a comercialização das substâncias humanas “naturais”, sem alcançar as substâncias hu-manas sintetizadas em laboratório, ainda que a partir de células-tronco embrionárias (v. entrevista da geneticista LYGIA DA VEIGA PEREIRA publicada na Folha de S. Paulo do dia 27-12-2014). As justificativas desse posicionamento passam por três vertentes principais: (a) as células-tronco, i.e., as substâncias humanas iniciais (“antecedente”), após doadas para pesquisas, passam por grandes transformações artificiais, o que termina por separá-las do produto final (“consequente”); (b) o produto final pode ser comercializado sem pôr em risco o objetivo constitucional de proteger pessoas em situação de vulnerabilidade, até porque o Constituinte de 1988 nem poderia prever esse tipo de avanço científico havido posteriormente; e (c) a proibição de comercializar substâncias humanas sintetizadas faria com que a iniciativa privada perdesse o interesse no desenvolvimento de novas terapias celulares.

h) Prolongamento da personalidade após a morte (eficácia post mortem da per-

sonalidade): A morte significa o fim da vida do indivíduo, mas não extingue todos os aspectos da personalidade do falecido. De modo que, hoje, não há mais dúvidas em torno da chamada “eficácia post mortem da personalidade”.

Atenção:Embora os bens patrimoniais se transmitam aos herdeiros do falecido, certos atributos da personalidade dele, além de intransmissíveis, continuam a ser juridicamente tutela-dos, como se, por ficção jurídica, a pessoa estivesse ainda viva. Nesse sentido, por exem-plo, o nome, o pseudônimo, a identidade e a honra objetiva do morto recebem proteção jurídica post mortem. São partes legítimas à tutela da personalidade da pessoa morta: por substituição processual (NCPC, art. 18), o cônjuge sobrevivente ou os parentes do falecido (vide CC/2002, art. 12, parágrafo único, e art. 20, parágrafo único).

Nada obstante, a imagem da pessoa morta poderá projetar efeitos econômicos para além da morte, razão por que o cônjuge supérstite e os parentes mais próximos do fa-lecido têm legitimidade ordinária para postularem (em nome próprio) indenização em juízo, seja por dano moral, seja por dano material (STJ, REsp 521.697/RJ, 4ª Turma; e REsp 1.209.474/SP, 3ª Turma).

Da mesma forma, o art. 623 do CPP reconhece (ao cônjuge, ao ascendente, ao descen-dente ou ao irmão do condenado já falecido) legitimidade ativa para propor revisão criminal da sentença penal condenatória de que fora alvo a pessoa morta.

47Cap. I • Direitos fundamentais em espécie

i) pena de morte: O inciso XLVII do art. 5º só a admite em caso de guerra declara-da, nos termos do art. 84, XIX. (Sobre o estado de sítio decretado com fundamento no estado de guerra, v. item 2.2 do Capítulo 10.) Ainda assim, somente poderá ser aplicada, após condenação definitiva e a comunicação ao Presidente da República (CPM, art. 57), pela prática dos mais graves crimes militares previstos no Código Penal Militar, incluindo os delitos de traição, favor ao inimigo e tentativa contra a soberania do Brasil. Já a execução da pena de morte se faz por fuzilamento (art. 56 do CPM).

Atenção:O constituinte previu outro caso equiparável à pena de morte: a dissolução judicial compulsória de associação em razão da ilicitude da respectiva finalidade (CF, art. 5º, incisos XVII e XIX).

Já a doutrina identifica as seguintes penalidades equiparáveis à pena de morte: (a) a “medida de destruição” de aeronave classificada como hostil, nos termos do § 2º incluí-do pela Lei 9.614/98 ao art. 303 da Lei 7.565/86; e (b) a liquidação forçada da pessoa jurídica constituída ou utilizada, preponderantemente, com o fim de permitir, facilitar ou ocultar a prática de crime ambiental (art. 24 da Lei 9.605/98).

j) Normas legais pertinentes: Vide ainda: (a) a Lei 8.501/92, que dispõe sobre a utilização de cadáver não reclamado, para fins de estudos ou pesquisas científicas e dá outras providências; (b) a Lei 9.434/97, que dispõe sobre a remoção de ór-gãos, tecidos e partes do corpo humano para fins de transplante e tratamento e dá outras providências; (c) a Lei 10.205/2001, que regulamenta o § 4º do art. 199 da Constituição Federal, relativo à coleta, processamento, estocagem, distribuição e aplicação do sangue, seus componentes e derivados, estabelece o ordenamento institucional indispensável à execução adequada dessas atividades, e dá outras providências; e (d) a Lei da Biossegurança (Lei 11.105/2005), que regulamenta os incisos II, IV e V do § 1º do art. 225 da Constituição Federal.

3.2. Direito à privacidade

Direito à autodeterminação sobre a vida privada e à subtração dos assuntos pes-soais em face da intromissão e curiosidade alheias. Previsto em dispositivos cons-titucionais específicos (art. 5º, incisos X, XI, XII e LX; art. 93, IX), o direito à privacidade, em sentido amplo, é o gênero jurídico que engloba os seguintes direitos mais específicos: (a) direito à intimidade; (b) direito à vida privada; (c) direito à honra e à imagem; e (d) direito ao esquecimento.

Além disso, a Constituição articula certas garantias constitucionais para coibir ou para reparar atentados contra o direito geral à privacidade, tais como o direito à indenização por danos materiais e morais (art. 5º, V e X), a garantia contra a autoin-criminação (art. 5º, LXIII) e a proibição da utilização, como meio de prova, de dados e informações obtidos com violação à intimidade (art. 5º, LVI). (Sobre as diferenças entre prova ilícita e convalidação da ilicitude da prova, v. item 3.6.3.2.C.)

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Nada obstante, conforme PAULO BRANCO (2008, p. 379), embasado na doutrina norte-americana, são quatro as modalidades básicas de violação da privacidade: (a) intromissão na reclusão ou solidão do indivíduo; (b) a exposição pública de fatos pri-vados; (c) a exposição da pessoa a falsas ou enganosas percepções do público (false light); e (d) a apropriação do nome e da imagem da pessoa, especialmente aquela com finalidades comerciais. Temas que serão tratados nos itens referentes a cada um dos atributos específicos da privacidade.

Todavia, o direito à privacidade é limitado por razões fundadas em outros bens e direitos igualmente constitucionais, tais como a vedação ao anonimato (art. 5º, IV), o direito geral à informação (art. 5º, XXXIII), a liberdade de expressão comunicativa e jornalística (artigos 5º, IX, 220 e 221) e, sobretudo, pelo interesse público presente nas múltiplas reservas restritivas feitas pelo constituinte (v.g., arts. 5º, XI, XII, XXIII, 93, IX, 145, § 1º). Por fim, certos direitos ligados à privacidade podem ser suspensos durante o estado de defesa e o estado de sítio (artigos 136 a 139).

3.2.1. Teoria das esferas da personalidade

Para analisar o grau de proteção proporcionado pelo direito à privacidade e seus subtipos, a melhor doutrina recomenda utilizar a teoria das esferas da personalidade (ou dos círculos concêntricos da personalidade). De modo que, quanto maior a proxi-midade com a esfera central da personalidade, mais rígidos deverão ser os controles acerca das restrições admissíveis.

Atenção:Essa teoria foi originalmente concebida na década de 1950, por HEINRICH HENKEL, com três esferas (a esfera pública não era considerada): o círculo da vida privada em sentido restrito (a camada superficial) e os dois círculos menores: o círculo da intimidade (a cama-da intermediária) e o círculo do segredo (núcleo das esferas). Porém, surgiram múltiplas variantes a respeito.

O português MENEZES CORDEIRO, por exemplo, alude a cinco esferas (esferas pública, individual-social, privada, secreta e íntima). Segue esboço com quatro esferas, a consi-derar, também, a parte externa dos círculos, ou seja, o círculo ou esfera da publicidade.

Pois bem. Não estão protegidos pelo direito à privacidade os episódios que se desenvolvem no âmbito público, ou seja, na esfera da publicidade (MARCELO NOVE-LINO). Essa esfera inclui aspectos da vida pessoal que são essencialmente públicos (dados não sensíveis) ou que se tornaram públicos pelo consentimento do próprio titular do direito à privacidade (ver item 3.2.2), tais como os eventos havidos em locais públicos (praças, ruas, praias) e nos não reservados (bares, restaurantes, casas noturnas), bem assim os dados que a própria pessoa expôs ou arquivou em locais de acesso público (publicações, blogs ou redes sociais da Internet).

Já no âmbito mais periférico da proteção proporcionada pelo direito à privacida-de está a esfera da privacidade. Tem a ver com aspectos da vida pessoal que, mesmo

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não abrangidos pela esfera da publicidade, são do conhecimento de pessoas sem grande intimidade com o titular do direito, tais como colegas de trabalho, vizinhos, presta-dores de serviço em geral. Nesse âmbito incluem-se todos aqueles aspectos e dados sensíveis protegidos pelo direito geral à intimidade (art. 5º, X, da CF), cujo acesso não consentido pode ocorrer em condições menos rígidas que as exigidas para intervir nas duas outras esferas concêntricas. Daí por que, observados princípios como o interesse público e a proporcionalidade, o legislador pode estabelecer restrições a esta esfera da privacidade, sem que a Constituição exija condicioná-las à reserva absoluta de jurisdição.

Exemplos de aspectos protegidos pela esfera da privacidade cujo acesso indepen-de de autorização judicial: dados de registro telefônico (informações sobre chamadas efetuadas e recebidas), que podem ser obtidos por CPIs ou pela agência reguladora do setor, bem como pelo Ministério Público; as encomendas postais, cuja abertura é permitida em alguns casos previstos na Lei 6.538/79 (ver item 3.2.3.3.A.1); os objetos sujeitos à verificação policial mediante buscas pessoais sem mandado judicial, nos termos do art. 244 do CPP; as informações patrimoniais e os dados cujo conhecimento seja necessário à administração e fiscalização tributárias (Constituição, art. 145, § 1º, c/c art. 195 do CTN). Incluem-se nesse rol os dados referentes aos sigilos fiscal e ban-cário (ver item 3.2.3.2.A).

Atenção:Em se tratando de certos dados sensíveis armazenados por órgãos públicos, mesmo in-formações da esfera da privacidade alheia poderão ser disponibilizadas às pessoas em geral, desde que demonstrada a presença dos requisitos ao exercício do direito geral à informação (art. 5º, XXXIII). Ver item 4.1.2

Por sua vez, em relação à esfera da intimidade da pessoa, a Constituição Fede-ral assegura proteção de nível intermediário. Essa esfera engloba tanto os ambientes reservados em que se desenvolvem os atos da vida privada (domicílio, escritório pro-fissional e, eventualmente, até computadores, tablets e smartphones) quanto aquelas informações e dados sensíveis compartilhados somente por círculo bastante restrito de pessoas, tais como empregados do ambiente domiciliar (âmbito do sigilo domiciliar), amigos próximos (âmbito do sigilo de amizade), familiares (âmbito do sigilo familiar) e profissionais específicos (âmbito do sigilo profissional em sentido amplo) – v.g., médicos, psicólogos, advogados, contadores, padres. No Brasil, a esfera da intimida-de beneficia as pessoas em geral (incluindo as jurídicas) e alcança os bens jurídicos especialmente protegidos pela inviolabilidade do domicílio (art. 5º, XI), pelos sigilos profissionais em sentido amplo (v.g., arts. 5º, XIV, e 53, § 6º) e pelas comunicações/transmissões de dados (art. 5º, XII). De modo que a proteção reforçada a essa esfera faz com que o acesso não consentido a tais aspectos sigilosos, quando admissível, além da presença de outros requisitos, dependa sempre de ordem judicial (reserva absoluta de jurisdição ou monopólio judicial da primeira palavra).

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Atenção:Certas pessoas encaixam-se num regime diferenciado de sujeição ativa em matéria de proteção à esfera da privacidade. Às pessoas “públicas”, ou seja, aquelas pessoas naturais (e também as jurídicas) que explorem comercialmente a própria imagem ou marca (tais como os artistas e esportistas em geral), a proteção assegurada pelo direito à privacida-de é tanto menor quanto maior for o nível do interesse público à informação despertado pela atuação dessas pessoas. O mesmo ocorre com as pessoas que pretendam assumir cargo ou função pública. Daí por que, com base no interesse público, o Estado pode publicar dados sensíveis de candidatos a cargos eletivos (v.g., a declaração de bens exi-gida à candidatura política pelo art. 11, § 1º, IV, da Lei 9.504/97), bem como investigar aspectos da vida privada de candidatos em concursos públicos, especialmente no âm-bito das chamadas carreiras de Estado (magistrados, membros do Ministério Público, policiais, diplomatas, agentes fiscais etc.). E é ainda o interesse público que justifica outras restrições à privacidade dos agentes públicos, tais como a exigência de declara-ção anual de bens (art. 13 da Lei 8.429/92), bem como a divulgação das remunerações respectivas (ver regulamentação da chamada Lei da Transparência – Lei 12.527/2011).

Como o STF enfrentou a questão:Antes mesmo da edição da chamada Lei de Transparência (Lei 12.527/ 2011), no AgRg na SS 3.902/SP, confirmando decisão do Min. GILMAR MENDES, o Plenário entendeu que a situação específica dos servidores públicos é regida pela 1ª parte do inciso XXXIII do art. 5º da Constituição, de modo que a “remuneração bruta, cargos e funções por eles titula-rizados, órgãos de sua formal lotação, tudo é constitutivo de informação de interesse co-letivo ou geral. Expondo-se, portanto, a divulgação oficial. Sem que a intimidade deles, vida privada e segurança pessoal e familiar se encaixem nas exceções de que trata a par-te derradeira do mesmo dispositivo constitucional (inciso XXXIII do art. 5º), pois o fato é que não estão em jogo nem a segurança do Estado nem do conjunto da sociedade.”No mesmo sentido, no ARE 652.777/SP (com repercussão geral, j. em 23-4-2015), o Pleno da Corte decidiu ser legítima a publicação, inclusive em sítio eletrônico mantido pela Adminis-tração Pública, dos nomes de servidores públicos e do valor correspondente aos respectivos vencimentos e vantagens pecuniárias.

Como esse assunto foi cobrado em concurso?No concurso para Juiz do TRF/4ª Região (2010), foi considerada errada a seguinte alter-nativa: “Relativamente ao direito que possui a imprensa de informar, deve-se conferir maior proteção à privacidade e à imagem de pessoas públicas do que às pessoas pri-vadas.” No concurso para Juiz do TJSP (2015/Vunesp), foi considerada correta a afirmação se-gundo a qual: “A divulgação, nos sites dos respectivos órgãos administrativos, de nomes e vencimentos de servidores públicos, observado o decidido pelo Supremo Tribunal Fe-deral no julgamento do ARE 652.777, é medida que deve ser reconhecida como legítima diante dos princípios constitucionais que regulam a atividade pública e da Lei Federal no 12.527/11.”

51Cap. I • Direitos fundamentais em espécie

Por fim, no mais íntimo campo da privacidade da vida pessoal (somente das pes-soas naturais), encontra-se a esfera do segredo, i.e., o menor e mais central círculo da intimidade, onde gravitam as informações confidenciais e os segredos mantidos pelas pessoas naturais. Segundo HIDEMBERG FROTA, cuida-se do “melhor reduto para a pessoa natural estar só, livre para expandir a vertente espiritual de sua existência, onde se projeta a alma humana em sua essência, a personalidade deve evolver plenamente e se planteia a imagem mais autêntica de alguém” (2007, p. 492). Inclui os aspectos da personalidade inteiramente subtraídos do conhecimento alheio e informações de conhecimento apenas das pessoas mais íntimas ou de profissionais cuja atividade en-volva necessário acesso a esses aspectos confidenciais (sigilos profissionais em sentido estrito ou segredos profissionais). Trata-se da esfera da intimidade cuja proteção quase não encontra limites, seja porque é muito difícil haver interesse público que justifique uma intervenção estatal não consentida a esse respeito, seja pela falta de meios juri-dicamente admitidos ou faticamente possíveis que a permitissem conhecer. Exemplos de aspectos da esfera do segredo: sentimentos pessoais, questões conjugais íntimas, orientações e preferências sexuais, motivações íntimas que movem o indivíduo, incluin-do a garantia contra a autoincriminação (art. 5º, inciso LXIII) e o direito a não fazer prova dos motivos de consciência alegados como escusa (art. 5º, inciso VIII e art. 143, § 1º). (Sobre os crimes contra a inviolabilidade dos segredos, v. CP, arts. 153 e 154.)

3.2.2. Regime geral dos sigilos pessoais

A Constituição reveste de sigilo todos os aspectos compreendidos pelas esferas da personalidade incluídas no âmbito de proteção do direito à privacidade. Porém, ne-nhum direito é absoluto, de modo que, em tese, mesmo os sigilos pessoais assegurados constitucionalmente podem sofrer restrições e intervenções baseadas em princípios e bens constitucionais igualmente importantes. Não são absolutos nem mesmo aqueles sigilos imprescindíveis à segurança da sociedade e do Estado (v. item 4.1.2).

A) Solução de conflitos: A solução de conflitos referentes a sigilos constitucionais abarca ponderações acerca dos limites dos direitos e bens constitucionais envolvi-dos, sobretudo o interesse público. Algumas ponderações são feitas abstratamen-te pelo constituinte; outras, pelo legislador. E muitas delas tornam obrigatória a intermediação judicial antes do acesso a informações sigilosas. Mas mesmo quando não há reserva absoluta de jurisdição a respeito (monopólio judicial da primeira palavra), o Judiciário poderá sempre ser convocado para decidir os casos conflituosos de maneira definitiva (monopólio judicial da última palavra).

B) Consentimento do titular: A Constituição protege o direito à privacidade, mas defere ao próprio titular boa margem de liberdade para decidir a extensão das res-pectivas esferas de personalidade. Embora o titular do direito não possa abdicar da privacidade/intimidade em termos abstratos ou indefinidos, poderá deixar de exercê-lo quando violado concretamente ou ainda consentir em tornar acessíveis certos espaços, dados e informações em princípio reservados.

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Importante:O consentimento há de ser livre e bem orientado, embora possa ser tácito ou até poste-rior. Nessa linha, considera-se tacitamente consentida publicidade, por exemplo, quanto a atos praticados em local público, sobretudo por pessoas que despertem interesse pú-blico à informação. Contudo, em geral, não se deve presumir o consentimento tácito em situações de grande assimetria de poder, tais como em certas buscas domiciliares feitas por agentes do Estado.

Como o STF enfrentou a questão:Diferentemente da posição defendida no texto acima, no HC 79.512/RJ, o Plenário do STF entendeu que a prova da prévia resistência do particular era necessária à caracte-rização da violação do domicílio por parte de agentes fazendários, pois a Constituição ressalva as hipóteses em que o ingresso domiciliar ocorre sob a permissão do morador.

Atenção:O direito geral à liberdade e à autodeterminação permite à pessoa consentir em que um dado seu, compreendido em quaisquer das esferas concêntricas da personalidade, seja transferido para esferas mais periféricas ou mesmo à esfera da publicidade.

Exemplo: uma pessoa, espontaneamente, pode divulgar segredos íntimos numa re-união de trabalho ou numa rede social da Internet. Todavia, se a pessoa resolver dar publicidade a dado reservado que também pertença à privacidade de outrem, o con-sentimento deverá ser plural, sob pena de colisão de direitos fundamentais idênticos (Tomo I, Parte III, item 9.2).

Exemplo: o namorado publica vídeo no qual aparece em cenas íntimas com a namorada, que não consentira com a publicação.

Por fim, nas hipóteses em que o consentimento do titular é requisito necessário ao acesso alheio a dados sigilosos, mesmo que tais dados já tenham indevidamente caído na esfera da publicidade, o direito à intimidade serve de fundamento à pretensão de retirá-los do domínio público, sem prejuízo das eventuais indenizações por danos mate-riais e morais. Exemplo disso são os frequentes pedidos judiciais para bloqueio de acesso ou para retirar vídeos e fotos clandestinamente publicados em redes sociais da Internet.

C) Quebra vs. transferência de sigilo: As restrições e intervenções admitidas em desfavor do direito à intimidade não implicam automática quebra de sigilo. Quan-do a Constituição e a leis asseguram a autoridades públicas o poder de acessar informações sigilosas, o interesse público a nortear a mitigação ao direito à inti-midade justifica, via de regra, apenas a transferência do sigilo a ambiente diverso (em geral, o ambiente das investigações policiais e dos processos judiciais). De modo que os dados, embora licitamente acessados, seguem sigilosos em face de outros ambientes. A efetiva quebra do sigilo só ocorrerá quando for obrigato-riamente público o ambiente para o qual as informações sigilosas tiverem sido licitamente transferidas.

53Cap. I • Direitos fundamentais em espécie

Sobre a questão específica do sigilo de dados processuais, v. item 3.2.3.2.C.

Direito à intimidade vs. liberdade de imprensa:Informações confidenciais obtidas ilicitamente não podem ser divulgadas por quem quer seja, tampouco pelos meios de comunicação social, pois a própria Constituição, ex-plicitamente, determinou que a liberdade de informação jornalística se conformasse ao direito à intimidade previsto no inciso X do art. 5º (v. art. 220, § 1º). A rigor, informações confidenciais contidas em processos administrativos ou judiciais de tramitação sigilosa, ainda que obtidas licitamente, enquanto não levantado o sigilo, só podem ser publica-das sob autorização da autoridade que presida o feito e somente quando constatada a presença de “interesse público à informação”, como deixa claro o inciso IX do art. 93 da Constituição. Cabe revisão judicial da decisão que indevidamente negar a pretensão de tornar públicos dados sobre os quais o interesse público à publicação justifica a mitiga-ção do direito à privacidade (Constituição, art. 5º, XXXV).

Por outro lado, o jornalista que publica segredo de justiça não responde pelo crime (pró-prio) do art. 325 do CP, cujo tipo penal só alcança funcionários públicos. Já o crime do art. 10 da Lei 9.296/96 – que proíbe divulgação de dados obtidos em interceptações telefô-nicas, informáticas e telemáticas – não traz restrição semelhante, pois tipificou o ato de “quebrar segredo da Justiça, sem autorização judicial ou com objetivos não autorizados em lei”. Sobre a liberdade de imprensa e o regime de restrições à liberdade de expressão, v. itens 3.4.5.2 e 3.4.5.3.

Como o STF já enfrentou a questão:a) no famoso precedente Rede Globo vs. Garotinho, o Plenário do STF decidiu que a Cons-

tituição não permite a divulgação jornalística do “produto de interceptação ilícita – hoje, criminosa – de comunicação telefônica”, independentemente do conteúdo ou do interesse público que possa haver em torná-lo conhecido, a despeito “da notoriedade ou do protagonismo político ou social dos interlocutores” (MC na Pet 2.702/RJ);

b) na Rcl 9.428/DF (caso Estadão), o STF decidiu pela constitucionalidade da decisão do TJDF que proibira a publicação de dados processuais sigilosos a que o periódico tivera acesso. Entendeu o Plenário da Corte que, diante do conflito entre a liberdade de imprensa e os direitos previstos nos artigos 5º, X e XII, e 220, caput, da Constitui-ção, deve prevalecer a “inviolabilidade constitucional de direitos da personalidade, notadamente o da privacidade, mediante proteção de sigilo legal de dados cobertos por segredo de justiça”. Daí não ter sido sequer conhecida a reclamação, pois a Corte entendeu não ter havido ofensa ao julgamento da ADPF 130/DF, que versara sobre a não recepção da Lei de Imprensa. (Sobre o regime de restrições à liberdade de imprensa em geral, v. item 3.4.5.3.)

Como esse assunto foi cobrado em concurso?No concurso para Juiz do TRF/4ª Região (2010), foi considerada errada a seguinte alter-nativa: “Havendo colisão entre o princípio da liberdade de imprensa e o direito à privaci-dade, prevalecerá aquela, porque informada pelo interesse público.”

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3.2.3. Direito à intimidade

Direito de salvaguardar aspectos da vida pessoal em face do conhecimento, da curiosidade ou da intromissão alheia. Está protegido, em termos gerais, pelo inciso X, primeira figura, do art. 5º da Constituição. Mas conta ainda com disposições de pro-teção específica em relação a determinados bens jurídicos, tais como o domicílio (art. 5º, XI), as comunicações/transmissões epistolares, telegráficas, telefônicas e de dados (art. 5º, XII) e as informações pessoais constantes em processos judiciais (art. 5º, LX, e art. 93, IX). E é também com base no direito à intimidade que se cristalizam posições de vantagem asseguradas pelos vários tipos de sigilos constitucionais.

A proteção à intimidade contra as intromissões estatais, todavia, deve muito ao direito norte-americano. Como exposto por MACIEL (2014), a despeito da inexistência de norma constitucional expressa, mas a partir das chamadas “emanações” e “penum-bras” protetivas dos direitos fundamentais existentes na Constituição estadunidense, a jurisprudência da Supreme Court iniciou fecunda construção constitucional do direito à privacidade/intimidade. Do direito à liberdade e do direito à busca da felicidade (right to pursuit of happiness), passando pelo direito à não autoincriminação e pelo princípio do devido processo legal substancial, a Suprema Corte norte-americana sou-be como nenhuma outra delinear os conceitos de privacidade, sobretudo o direito de ficar só (right to be alone).

Nesse sentido, foi com fundamentos baseados na garantia constitucional da pri-vacidade/intimidade que o Supremo Tribunal americano recavou, por exemplo: (a) o direito à não intromissão estatal em matéria de planejamento familiar, a despeito da lei que proibia a utilização de métodos contraceptivos (caso Griswold vs. Connecticut, 1965); (b) o direito de possuir e acessar material pornográfico no âmbito da intimidade do lar (caso Stanley vs. Georgia, 1969); (c) o direito dos pais decidirem acerca da saúde, guarda e controle dos filhos (caso Troxel vs. Granville, 2000); (d) o direito a manter relações homossexuais (Lawrence vs. Texas, 2003); e, mais recentemente, (e) o direito ao casamento entre pessoas do mesmo sexo (Obergefell vs. Hodges, 2015), julgado no qual a Corte entendeu que os direitos fundamentais da Constituição norte-americana “estendem-se a certas escolhas pessoais e centrais da dignidade e autonomia indivi-duais, incluindo as íntimas escolhas que definem a identidade e crenças das pessoas”.

No Brasil, é também com base no direito à intimidade que se discute a constitu-cionalidade, por exemplo: (a) da criminalização do porte e consumo de entorpecentes para uso próprio (ver RE 635.659/SP, ainda pendente de julgamento); e (b) da proibi-ção total de castigos físicos contra crianças e adolescentes, ainda que leves e aplicados pelos responsáveis no âmbito da educação privada familiar (art. 13 da Lei 8.069/90, com redação da Lei 13.010/2014).

Em casos assim, de intervenção estatal em assuntos da esfera privada íntima, o caráter subsidiário da atividade legislativa (item 3.2 do Capítulo 7) exige do legislador grandes preocupações em evitar o transbordamento do poder de conformação legisla-tiva dos direitos fundamentais. Sob pena de inconstitucionalidade, será preciso haver

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fortes justificativas sobre a necessidade, a adequação e os prós e contras das medidas (proporcionalidade), em face do núcleo essencial dos direitos fundamentais envolvidos (v. item 10.5 da Parte III do Tomo I).

Por outro lado, as novas tecnologias de informação, sobretudo a Internet, ofere-cem imensos benefícios (elevação da produtividade, maior possibilidade de prevenção ao crime, melhora no atendimento médico, diversão interativa), mas costumam vir acompanhadas da diminuição do âmbito de intimidade.

Marco Civil da internet e direito à intimidadeA recente Lei 12.965/2014, que trata dos princípios, garantias, direitos e deveres para o uso da Internet no Brasil, prevê série de dispositivos relacionados à intimidade. Desta-cam-se os seguintes: (a) o art. 3º traz como princípios a disciplinarem do uso da Internet no Brasil: (a.1) proteção da privacidade; e (a.2) proteção dos dados pessoais, na forma da lei; (b) pelo art. 7º, o usuário tem assegurado o direito à “inviolabilidade da intimidade e da vida privada, sua proteção e indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”.

3.2.3.1. Sigilo do domicílio

Conforme inciso XI do art. 5º da Constituição, “a casa é asilo inviolável do indi-víduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por deter-minação judicial”. (Conferir ainda o art. 150, §§ 4º e 5º, do CP, na parte em que trata do crime de violação de domicílio.)

A) Âmbito de proteção: Segundo esclareceu o Ministro CELSO DE MELLO no RE 251.445/GO, o âmbito de proteção efetiva do inciso XI do art. 5º compreende um conceito amplo de “casa”, de modo a proteger: (a) qualquer compartimento habitado (casa, apartamento, trailer, barraca); (b) qualquer aposento ocupado de habitação coletiva (hotel, apart-hotel, pensão); ou (c) qualquer compartimen-to privado onde alguém exerça profissão ou atividade (escritórios, ofícios, lojas, estabelecimentos comerciais). Ainda para o STF, a inviolabilidade do domicílio também alcança (d) os estabelecimentos empresariais, que igualmente “estão sujeitos à proteção contra o ingresso não consentido” (HC 106.566/SP, 2ª Turma).

Atenção:Embora a proteção do domicílio tenha sido estendida pela jurisprudência, para além do “indivíduo”, a ponto de alcançar as pessoas jurídicas, a garantia não pode ser por elas invocada para evitar o acesso do próprio Fisco a documentos fiscais arquivados em esta-belecimentos comerciais/industriais. Do contrário, estaria comprometida a autoexecu-toriedade dos atos da administração tributária, a quem o constituinte atribuiu poderes para conferir efetividade à tarefa de apurar a capacidade tributária e as atividades eco-nômicas do contribuinte (art. 145, § 1º). Daí a constitucionalidade do art. 195 do CTN, na parte em que afasta “quaisquer disposições legais excludentes ou limitativas” do direito

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do Fisco “de examinar mercadorias, livros, arquivos, documentos, papéis e efeitos comer-ciais ou fiscais, dos comerciantes industriais ou produtores, ou da obrigação destes de exibi-los” (art. 195 do CTN).

Bem por isso, decidiu a 2ª Turma do STF que pessoa jurídica que exerce atividade tri-butável não pode invocar o sigilo domiciliar para evitar a fiscalização nem a eventual apreensão de seus documentos fiscais (HC 87.654/PR).

A 2ª Turma decidiu que “as apreensões de documentos no interior de veículos automo-tores, por constituírem hipótese de busca pessoal — caracterizada pela inspeção do corpo, das vestes, de objetos e de veículos (não destinados à habitação do indivíduo) —, dispensam autorização judicial quando houver fundada suspeita de que neles estão ocultados elementos necessários à elucidação dos fatos investigados, a teor do disposto no art. 240, § 2º, do CPP”, não se caracterizando o veículo como extensão da casa (RHC 117.767/DF)

B) Restrições admissíveis: Conforme redação do inciso XI do art. 5º, o acesso não consentido à “casa” de alguma pessoa só pode ocorrer:

b.1) durante o dia: em situações de flagrante delito, desastre ou para prestar socorro, e ainda por determinação judicial; ou

b.2) durante a noite: em caso de flagrante delito, desastre ou para prestar socor-ro. Nesse sentido, segundo o STF, nos crimes de natureza permanente (o pre-cedente envolvia tráfico de entorpecente), caracteriza-se automaticamente a situação de flagrância, razão pela qual é cabível a prisão do criminoso no próprio domicílio, mesmo que durante o período noturno (HC 84.772/MG, 2ª Turma).

Atenção:Os conceitos de dia e noite seguem o critério físico-astronômico. Assim, o período diurno compreende o lapso entre a aurora e o crepúsculo, e não o intervalo entre as 6 e as 18 horas.

Contudo, a intenção do inciso XI é proteger as dependências físicas do domicílio contra a penetração indevida de pessoas destituídas do consentimento do morador. Daí não incidir a cláusula de proteção domiciliar em face, por exemplo, de interceptações telefônicas, mesmo que os interlocutores falem ao telefone a partir dos respectivos domicílios. Nessas hipóteses, aplica-se o regime especial de sigilo previsto pelo inciso XII do art. 5º. Idêntico raciocínio se aplica, por analogia, às chamadas interceptações ambientais (ver item 3.2.3.3), ainda que tenham por alvo sinais acústicos, eletromag-néticos e/ou óticos provenientes de recintos domiciliares. Nesse sentido, o Plenário do STF, no Inq 2.424/RJ, afastou a incidência do sigilo domiciliar e validou provas obtidas em interceptação ambiental feita em escritório de advocacia. A despeito de os apare-lhos de escuta terem até sido instalados no local durante o período noturno, prevaleceu o voto do Ministro CÉZAR PELUSO, para quem a “escuta ambiental não se sujeita, por razões óbvias, aos mesmos limites da busca domiciliar, sob pena frustração da medida.”