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3 Amarelo ou Imaginário: relicário de imagens “Todo trabalho de decifração se impõe a partir de indícios frágeis”. 82 Michel Vovelle “Quanto mais precisa e clara for a Razão, melhor a Fantasia irá torná-la.” 83 John Ronald Reuel Tolkien “O imaginário remete a uma dimensão ontológica.” 84 Monique Augras Conforme explicitado no primeiro capítulo desta tese, apresentado à guisa de introdução, se na seção anterior tencionei fazer uma revisão crítica das denominações do conceito de Fantasia, com o objetivo de compreender a distinção do termo em relação ao imaginário ou à imaginação, ou até mesmo verificar a pertinência (quiçá a existência) desta mesma distinção, a presente parte do trabalho segue a percorrer a trilha do imaginário. E efetivamente o faz, por vezes diferenciando imaginário de imaginação; por outras, não fazendo distinção entre os nomes. O motivo de tal aparente confusão é exatamente problematizar tal “taxonomia” e expor a dificuldade do estabelecimento de nomenclatura. Como se dá, então, tal articulação? É a fantasia que se nutre da imaginação? Como acontece? Seria o imaginário um espaço no qual se desenvolve a fantasia? É certo que, para alguns, soe contraproducente minha abordagem do termo fantasia no capítulo de imaginário, de maneira análoga o que já feito (quando enfoquei o imaginário na parte destinada à Fantasia, capítulo 2. Laranja ou Fancy- o-rama: caleidoscópio de fantasia), entretanto necessito explicar de forma explícita que esta via é mesmo de dupla direção, pois marcante é a contaminação e a sinergia existente entre os polos. A rigor, poderia falar de vértices, pois não apenas seriam Imaginário e Fantasia, mas também Imaginação, Fantástico, para não expandir com Invenção, Criatividade, dentre outras dimensões, como bem o 82 VOVELLE, Michel. Ideologias e mentalidades. São Paulo: Brasiliense, 1987. 83 TOLKIEN, J. R. R. “On Fairy-Stories” in: Tree and Leaf. “Boston (EUA): Houghton Mifflin Company, 1964. 84 AUGRAS, Monique. “Magia do Imaginário, Imaginário da Magia”. Petrópolis; Rio de Janeiro: Vozes; Editora da PUC-Rio, 2009.

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3 Amarelo ou Imaginário: relicário de imagens

“Todo trabalho de decifração

se impõe a partir de indícios frágeis”. 82

Michel Vovelle

“Quanto mais precisa e clara for a Razão,

melhor a Fantasia irá torná-la.” 83

John Ronald Reuel Tolkien

“O imaginário remete a uma dimensão ontológica.” 84

Monique Augras

Conforme explicitado no primeiro capítulo desta tese, apresentado à guisa

de introdução, se na seção anterior tencionei fazer uma revisão crítica das

denominações do conceito de Fantasia, com o objetivo de compreender a

distinção do termo em relação ao imaginário ou à imaginação, ou até mesmo

verificar a pertinência (quiçá a existência) desta mesma distinção, a presente parte

do trabalho segue a percorrer a trilha do imaginário. E efetivamente o faz, por

vezes diferenciando imaginário de imaginação; por outras, não fazendo distinção

entre os nomes. O motivo de tal aparente confusão é exatamente problematizar tal

“taxonomia” e expor a dificuldade do estabelecimento de nomenclatura. Como se

dá, então, tal articulação? É a fantasia que se nutre da imaginação? Como

acontece? Seria o imaginário um espaço no qual se desenvolve a fantasia?

É certo que, para alguns, soe contraproducente minha abordagem do termo

fantasia no capítulo de imaginário, de maneira análoga o que já feito (quando

enfoquei o imaginário na parte destinada à Fantasia, capítulo 2. Laranja ou Fancy-

o-rama: caleidoscópio de fantasia), entretanto necessito explicar de forma

explícita que esta via é mesmo de dupla direção, pois marcante é a contaminação

e a sinergia existente entre os polos. A rigor, poderia falar de vértices, pois não

apenas seriam Imaginário e Fantasia, mas também Imaginação, Fantástico, para

não expandir com Invenção, Criatividade, dentre outras dimensões, como bem o

82

VOVELLE, Michel. Ideologias e mentalidades. São Paulo: Brasiliense, 1987. 83

TOLKIEN, J. R. R. “On Fairy-Stories” in: Tree and Leaf. “Boston (EUA): Houghton Mifflin

Company, 1964. 84

AUGRAS, Monique. “Magia do Imaginário, Imaginário da Magia”. Petrópolis; Rio de

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fez Bruno Munari, em referência outrora mencionada. Ocorre-me, apenas dar nó

de arremate à passagem de um capítulo para outro, com a afirmação do

pesquisador estadunidense Richard Mathews, em seu estudo “Fantasia: a

liberação da imaginação” (“Fantasy: the liberation of imagination”), “A fantasia

destranca a imaginação” 85

.

Seria a imaginação a fonte, a pulsão inicial, o drive primordial? Seria o

adjetivo já devidamente substantivado “imaginário” tão somente um repositório

de imagens, geradas pela imaginação? Ou seria o imaginário seria o motor,

produzindo soluções impensadas pela racionalidade? Inquietações que vêm e vão,

perpassando toda a construção de um conhecimento que não se quer estático, que

se pretende renovado e renovador, propositivo de novas searas teóricas, de novas

concepções críticas.

O livro “O imaginário no poder: as crianças e a literatura fantástica”, da

pedagoga e psicóloga francesa Jacqueline Held enfatiza a literatura fantástica

destinada às crianças, ainda que não aprofunde a discussão relacionada com a

ontologia dos nomes “fantástico”, “fantasia”, “imaginação”, “imaginário”, realiza

fundamental análise que recupera e valoriza a fantasia, a retirando de sua

condição de subordinação.

É como ela nos assinala: "Digamos, desde já, e claramente: o imaginário

de que nos ocuparemos não é esse pseudo-imaginário com função de

esquecimento, de exorcismo, de diversão, que desvia a criança dos verdadeiros

problemas, do mundo de hoje e de amanhã. 86

Também comungo com a posição que não se debruça em um pseudo-

imaginário. Em seu estudo, Held toma “imaginação”, “imaginário”, “fantástico” e

“fantasia” como minúcias estilísticas de uma mesma dimensão: o irreal elaborado

pela criança. E é bem interessante que ela atribua ao imaginário, ao irreal,

tamanha importância, reforçando seu caráter de protagonismo em um jogo cênico

no qual a Razão costuma aparecer muito mais do que a “louca da casa”. Duas

frases da estudiosa francesa Jacqueline Held em seu livro anteriormente citado “O

imaginário no poder: as crianças e a literatura fantástica” são dignas de

85

“Fantasy unlocks imagination”. in: MATHEWS, Richard. Fantasy: the liberation of

imagination. 86

HELD, Jacqueline. O imaginário no poder: as crianças e a literatura fantástica. São Paulo:

Summus Editorial, 1980. p.22.

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apresentação e de seguido comentário: “O imaginário é o motor do real” e “A

leitura do real passa pelo imaginário”.

Tomar o imaginário como motor do real não é apenas uma bela frase, nos

parâmetros da fruição estética. Trata-se de uma radical alteração no centro de

gravidade do conhecimento do mundo como o concebemos. Confere um estatuto

ao imaginário que o torna indispensável ao real; afinal, sem motor, as coisas não

andam. Assim, seria o imaginário que colocaria o real em curso, como força

motriz, na forma de essência e não como apêndice na instância da colateralidade.

No caso da outra afirmação – a leitura do real passa pelo imaginário –, a

importância se torna ainda maior para este estudo, considerando a relevância e o

peso que o termo leitura possui em nossa área (teoria da literatura infantil). E,

além disso, se afina com a minha proposição filosófica que concebe a fantasia

como espaço fulcral no rol de recortes metodológicos que se arvoram a abarcar a

totalidade dos fenômenos e acontecimentos do mundo.

Ainda que, para muitos, possa pareça tácito, vale considerar o

esclarecimento de que, na frase de Held, a leitura é tomada não como mera

decodificação, mas como interpretação, em uma perspectiva hermenêutica de

apreensão do real, na qual o próprio processo de busca pelo sentido é, também

parte de sua construção. Como travessia, a leitura do real passa pelo imaginário;

como viés, toma o imaginário como ponto de vista a fim de, enxergar o real como

as lentes esmeraldas dos óculos do Mágico de Oz. Mas o que afirmo é que não

temos condições de “enxergar” o real a olho nu. Sem dúvida que concordo com a

premissa de que o real, para o ser humano, se desvela enquanto linguagem. Penso,

todavia, como corolário, que nossa limitação não apenas é resolvida pela

modulação / mediação do real pela linguagem, mas para além da apreensão e da

compreensão, a fantasia se insere como viés propositivo de transposição da

realidade, de estabelecimento de nova realidade, uma sobrerrealidade.

Cabe trazer à tona a discussão acerca da forma (ou das formas) pela qual

(pelas quais) o real afeta o sujeito. Os estímulos existentes no real são captados

pelo indivíduo em função não apenas de sua condição perceptiva como também

modulados em função da sua estrutura de apreensão de linguagem, pois os cinco

sentidos seguramente não dão conta da totalidade do real. Nem os cinco sentidos,

nem a linguagem, nem o ser humano dará conta e, para o bem ou para o mal, terá

que seguir com esta ferida narcísica pelos tempos imemoriais. Ou talvez seja

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exatamente – e exclusivamente o fantástico –, o imaginário (caso se assuma

fantasia e imaginário como faces da mesma lâmina de um machado a abrir

picadas na floresta de signos, clareiras em um bosque, não da ficção, mas da

realidade que nos transpassa) que possa traduzir a condição “hipotrélica” do real.

Recordo a afirmação de Hegel, através da análise do filósofo brasileiro

Paulo Meneses, que, nas suas “abordagens hegelianas”, expõe bem o lugar de

onde o filósofo alemão fala, na questão da compreensão do real em articulação

com o racional.

O racional é o real”. Nenhuma frase de Hegel provocou tanto escândalo.

Contudo, ele não apresenta essa identificação como invenção, mas a atribui a

Platão. Lê-se no Prefácio da Filosofia do Direito e do Estado. “Mostrou Platão o

grande espírito que era, pois, precisamente, o princípio em volta do qual gira toda

a revolução mundial que então se preparava. “O que é racional é real e o que real

é racional. 87

Ainda que o aforismo hegeliano “O que é racional é real e o que é real é

racional” não seja tão conhecido como a máxima cartesiana, “Penso, logo existo”,

pode-se afirmar que ele se entranhou de tal forma na História das Mentalidades do

Ocidente que, hoje em dia, é difícil para o público não especializado não

considerar como axioma a ideia de que o racional se iguala ao real, de que a

realidade equivale à razão.

Mesmo que a ideia da indissociabilidade existente entre a razão e o real

perdure, é notável o aumento de estudos em contraposição a esta tendência.

Mencionei o clássico estudo da década de 80, desenvolvido por Held. Outra

estudiosa – também francesa – do tema, é Monique Augras. Radicada no Brasil

desde 1961, a pesquisadora tem se dedicado ao estudo das religiões afro-

brasileiras há cerca de quatro décadas. Em Imaginário da magia, magia do

imaginário, recente produção crítica (de 2009), ela aborda o diálogo dos

imaginários sociais entre França e Brasil, focando principalmente as religiões

afro-brasileiras.

Cumpre ressaltar que tem sido notado um crescimento significativo dos

estudos antropológicos, filosóficos, sociológicos e de teoria literária que tenham

como foco os saberes que não se filiam à tradição judaico-cristã, como forma de

questionar a forma tradicional e hegemônica do pensamento ocidental por demais

87

MENESES, Paulo. Abordagens hegelianas. Rio de Janeiro: Vieira & Lent, 2006. p.96.

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fincada na racionalidade. Para o presente estudo, contudo, o que interessa é o

último capítulo “Mil janelas: teóricos do imaginário”, no qual ela esclarece os

variados enfoques teóricos que sustentem a utilização da palavra “imaginário”.

Dirigindo-se, principalmente, aos neófitos no tema, Augras consegue habilmente

se posicionar sem descuidar do rigor necessário à uma exposição de cunho

pedagógico, quase didático. Vale agora, no presente texto, a explicação acerca do

motivo da inclusão e dos comentários realizados como se utilizasse lupa que

incide em uma profusão de trechos do capítulo citado da publicação de Augras. Se

o fiz, foi com o mero objetivo de cobrir o que não foi atendido no subcapítulo

“2.1. – Conceitos que se (con)fundem”, em diálogo travado com a panorâmica das

linhas teóricas que se debruçam sobre o tema do imaginário.

Antes de proceder na interlocução com o mapeamento da “teoria do

imaginário”, vale enfatizar ser de grande valia o depoimento pessoal de Augras

entremeado com jargão teórico: ela afirma que mais do que levantamento

sistemático, a revisão teórica é também do fruto de um percurso pessoal – similar

à minha trajetória – conforme indicado no início desta tese, na constante busca por

mais solidez ao embasar suas pesquisas iniciadas no início dos anos 1980. A

postura crítica que considera o sujeito pesquisador também em sua faceta de

transbordamento da racionalidade está em total sintonia com a proposição de

compreensão da realidade no enfoque “filosofantástico”.

Monique Augras começa seu panorama sobre o imaginário com o filósofo

existencialista Jean Paul Sartre que escreveu O imaginário, em 1940. E recorda,

muito propriamente que, tributários de Descartes, os primeiros autores a abordar o

tema o situam no diapasão da irracionalidade e da ilusão. Em O imaginário, Sartre

inicia estabelecendo que a imagem “é um modo pelo qual a consciência se dá um

objeto”, ou seja, trabalha com uma perspectiva peculiar da imagem enquanto

representação, prescindindo da presença do objeto e se opondo à sua percepção

propriamente dita. Para o autor de O ser e o nada, imagem e percepção se

excluem mutuamente, o que possibilita que a imagem crie um análogon do

objeto, com a intuito de possessão. Pontua Augras a afirmação de Jean Paul

Sartre: "o pensamento toma a forma de imagens quando quer se intuitivo, quando

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quer fundamentar as suas afirmativas na visão de um objeto. Nesse caso, tenta

trazer o objeto à sua presença, para vê-lo, ou melhor dizendo, para possuí-lo." 88

Altamente peculiar, a curiosa opção pela “possessão” exercida pelo

pensamento, em Sartre, é uma linha de raciocínio que foi duramente criticada pelo

antropólogo Gilbert Durand, um dos teóricos de grande destaque no campo do

estudos do imaginário. O caráter “mágico” está presente na análise racional que é

desenvolvida. E a corda será tensionada ao máximo, até o seu limite. Pois além do

real e do imaginário estarem em oposição, há um menosprezo dirigido ao

imaginário, que é desqualificado e confinado ao plano da valoração inferior, na

mirada da negatividade, conforme assevera Sartre, quando diz que

Para atuar sobre estes objetos irreais, é preciso que eu me desdobre, que eu me

irrealize eu próprio. (...)

No objeto irreal, somente há um poder, e ele é negativo.

(...) o real e o imaginário não podem coexistir. 89

Não obstante a importância da contribuição do autor de A náusea para o

pensamento contemporâneo, como resultado do impacto da Segunda Guerra

Mundial, é necessário pontuar que, mesmo tendo sido um precursor nos estudos

do imaginário, Sartre, como Platão, muito contribuiu para o juízo ideológico que

desqualifica o imaginário e patologiza a imaginação. Chega mesmo a definir a

esquizofrenia como “patologia da imaginação”. Para ele, as alucinações, as

obsessões, a esquizofrenia são exemplo do que ocorre quando se opta pelo

imaginário. Imaginação como enfermidade não há de ser desejada por ninguém.

Natural que surja a postura de descrédito, repulsa ou desprezo. Ao que parece, há

uma retomada do ranço higienista, na positivista sanha por normatização,

característico do período compreendido entre o final do Século XIX e o início do

Século XX.

Para concluir a passagem pelas concepções sartreanas acerca do

imaginário na visão de Augras, torna-se imprescindível marcar a posição do

filósofo autor de As palavras, pois reforçando a perspectiva de cura, de

restabelecimento da norma, ele encara que o mundo imaginário é o antimundo,

88

SARTRE, Jean Paul. “O Imaginário”. in: AUGRAS, Monique. “Magia do Imaginário,

Imaginário da Magia”. Petrópolis; Rio de Janeiro: Vozes; Editora da PUC-Rio, 2009. 89

SARTRE, Jean Paul. “O Imaginário”. in: AUGRAS, Monique. “Magia do Imaginário,

Imaginário da Magia”. Petrópolis; Rio de Janeiro: Vozes; Editora da PUC-Rio, 2009.

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que, protagonista, possui o sujeito, levando-o para o reino da irrealidade. Ou seja,

descarta qualquer possibilidade do imaginário estar em intenso diálogo e

elaboração com o paradigma estético, circunscrevendo-o ao espaço da psicose.

Outra contribuição deletéria que se pode inferir do estudo O imaginário,

mas que comentarei tangencialmente, é a postura filosófica que referenciará, de

forma determinante, o imaginário não como alteridade per si, mas tão somente

como ligeiro desvio do estabelecido. É assim que temos o anti-mundo,

referenciado no mundo; o irreal, referenciado no real. Chamados de contraponto,

de polo oposto, mas não de um novo estatuto, de uma nova ordem, em um distinto

formato, operando, em radicalidade, na clave da diferença que constroi.

Todavia, o segundo teórico apresentado no esquema de Augras também

não atende às minhas expectativas ou necessidades. O notório psiquiatra Jacques

Lacan, que tantas contribuições trouxe à psicanálise e à filosofia, responsável por

estabelecer uma tríade conceitual tão marcante quanto a que foi apresentada pelo

pai da psicanálise Sigmund Freud 90

– real, simbólico e imaginário –, exatamente

na seara que nos mobiliza, lamentavelmente traz uma perspectiva que ainda não

alça voos mais ousados. Muito embora seja personagem principal de toda uma

contribuição de fundamental importância não apenas para sua área, mas também a

filosofia e o arcabouço ocidental das teorias da episteme – e aqui demonstro certo

apreço pela importância do estruturalismo, inclusive na minha formação, posto

que sou imigrante das ciências biológicas – Lacan traz uma vertente que, se por

um lado, avança bastante com suas novas perspectivas, por outro lado, não deixa

de permanecer ancorado no desvalor atribuído à imaginação, pois sua concepção é

do imaginário enquanto alienação.

Para tal pensador francês, o imaginário é uma etapa a ser superada para a

constituição do sujeito. É fonte de logro e engano e, de forma um tanto

contraditória, define que o único real que faz algum sentido é o real abstrato da

matemática, na opinião de Jacques Lacan, conforme se pode depreender do

seguinte excerto, ao formular que: "Apenas a matematização alcança algum real,

real este que nada tem a ver com aquilo que o conhecimento tradicional vinha

90

Faço alusão, naturalmente, à tríade freudiana: id, ego e super ego.

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sustentando, que não é o que ele pensa como sendo a realidade, mas sim uma

fantasia." 91

Não é minha intenção, nem cabe discutir aqui, ou muito menos possuo

estofo intelectual na área psicanalítica para encetar tal digressão, mas não é a

própria matemática, uma das ciências que mais articula o abstrato com o real? Se

é o real abstrato que faz sentido, não é exatamente a abstração, uma forma de

elaboração da fantasia, de pensamento que é da ordem da imaginação, do

imaginário?

Para o presente estudo, entretanto, o que se pode retirar de mais importante

não é ambiguidade lacaniana – que pode mesmo ser considerada como uma

posição de resistência à hegemônica racionalidade platônica – mas o fato de ele

não avançar do patamar definido pelo senso comum, no qual a imaginação e o

imaginário, que é o nosso tópico de abordagem, estão relacionados à ilusão,

adquirindo um caráter negativo. E tal postura está bem explicitada, como foi

propriamente apontada por Laplanche e Pontalis: "o uso específico que Lacan faz

da palavra imaginário não deixa de manter relação com o sentido usual desse

termo, já que toda conduta, toda relação imaginária está, segundo Lacan,

essencialmente dedicada ao engano." 92

Seguindo a trilha indicada por Augras, surge no cenário o filósofo Gaston

Bachelard. Esta passagem não se dá de forma brusca, pois o autor de A poética do

espaço é um contraponto à concepção lacaniana do imaginário, como se verá mais

adiante. Tendo sido originalmente um filósofo da ciência, o autor de O

materialismo racional (1953), enveredou nos estudos sobre imaginação poética, a

partir de suas reflexões epistemológicas e seus questionamentos do método

dedutivo euclidiano. Contrário aos estruturalistas e aos positivistas, Bachelard

fincou posição com o seu “humanismo” subversivo, capaz de reinventar o

Homem, contra os idealistas, indo para além das noções convencionais de sujeito

e objeto.

Em verdade, o autor de O novo espírito científico (1934) era um pensador

cindido, que levou toda sua vida dedicando-se a uma jornada dupla que se dividia

entre o aprofundamento epistemológico, filiado ao racionalismo e a vertente da

91

AUGRAS, Monique. “Magia do Imaginário, Imaginário da Magia”. Petrópolis; Rio de Janeiro:

Vozes; Editora da PUC-Rio, 2009. 92

AUGRAS, Monique. “Magia do Imaginário, Imaginário da Magia”. Petrópolis; Rio de Janeiro:

Vozes; Editora da PUC-Rio, 2009. p. 214

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hermenêutica da criação poética, que trabalhava com as imagens elementares,

ancestrais, como se pode depreender no texto citado, em primeira fonte, por

Augras, no qual o próprio Bachelard preconiza:

O filósofo que seguiu, com a maior nitidez possível, o eixo do racionalismo ativo

[...] deve esquecer o seu saber, romper com todos os seus métodos habituais de

pesquisa filosófica, se quiser estudar os problemas colocados pela imaginação

poética. 93

Muito embora tenha cunhado a impactante frase “Qualquer coincidência

entre pensamento e realidade é um monstro epistemológico”, o que sublinhava seu

bias de hiato entre pensamento e realidade, o pensador responsável pelo livro de

sublime título A psicanálise do fogo (1939) ocupa uma posição singular entre os

teóricos do imaginário, como também Maurice Merleau-Ponty e Paul Ricoeur.

O destaque ocorre pelo fato de ocupar lugar de precursor desta espécie de

filiação (dos autores dos emblemáticos livros O olho e o espírito e Tempo e

Narrativa, respectivamente), assim como em razão de representar um agudo corte

em uma quase esperada linhagem com Sartre e Lacan, como bem nos lembra a

psicóloga e pesquisadora do campo do imaginário social brasileiro Monique

Augras:

Gilbert Durand vê, na obra de Bachelard, a antítese de Sartre. (...) Bachelard

acaba por elaborar uma proposta antagônica à do psicanalista (Lacan). Não

somente abandona Freud por Jung, mas ainda faz do imaginário, em vez de um

modo de alienação, o lugar onde se elaboram os meios mais requintados de se

abrir ao mundo. 94

De modo de alienação à espaço de elaboração dos meios de abertura ao

mundo, a virada de postura epistemológica é digna de destaque. Que se saliente,

contudo, que o conceito de imaginário para Bachelard, é empregado de forma

híbrida com o de imaginação, condição que já foi discutida anteriormente como

sendo característica do tópico. Uma simplificação ligeira seria classificar como

mera confusão, opto por tomar como fusão de conceitos. O imaginário como

repertório, como repositório de imagens, é uma ideia disseminada que chega

mesmo a contaminar outras modalidades relacionadas dos estudos de Fantasia.

93

AUGRAS, Monique. p. 220. 94

AUGRAS, Monique. (2009). p.221.

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Por exemplo, ao recuperar uma definição bachelardiana de imaginação (e não

imaginário, ou por outra, e também imaginário, ou como se imaginário fosse)

como um reino autônomo, irredutível a outros modos de conhecimento, Augras

toma a questão das imagens, ao escrever que

a imaginação constitui um reino autônomo, irredutível a outros modos de

conhecimento. Mais ainda: ao abrir a via imaginal de percepção do mundo e de

nós mesmos, o reino das imagens nos cria. E ele [Bachelard] conclui o livro [A

psicanálise do fogo] clamando pela necessidade de se estudar as manifestações

poéticas, reveladora da atuação dessa função criadora. 95

Toma contornos delicados a mescla de imaginário, imaginação e Fantasia.

O amálgama tende a assumir um caráter de potência sinergística, pois os

elementos tornam-se mais fortes quando em síntese. Ao estabelecer, por exemplo,

que a imaginação constitui um reino autônomo, autógeno, segue desenvolvendo o

raciocínio e afirma que “no plano psíquico, somos criados pela nossa fantasia” 96

.

De qualquer maneira, sua postura é primordial, se esquivando de

maniqueísmos. Ainda utilizando a formulação de Augras, “Bachelard consegue

falar, em sua obra, tanto da negatividade como da positividade do imaginário” 97

,

no que se distancia do negativismo sartreano que chega às raias da normatização

em moléstia mental. Para o autor de O ar e os sonhos, o imaginário é visto como

uma força positiva no sujeito, caracterizada pelo seu dinamismo em atualizar as

imagens internas e externas, que, em conseqüência, tomam feições de veículos de

potencializações de significação, que nos permitem descobrir a riqueza do cosmos

e do Ser. Primorosamente, a autora de O duplo e a metamorfose, postula: “O

imaginário remete a uma dimensão ontológica.” 98

. Tal afirmação, como feitio de

aforismo, não por acaso está como uma das epígrafes deste capítulo e se coaduna

com minha linha de raciocínio, com a postura de compreensão que persigo: o

caráter filosófico da fantasia.

À medida que fui travando contato com as referências sobre os estudos de

imaginário – cabe o comentário de que se os estudos disponíveis sobre Fantasia

são escassos, o mesmo não ocorre com os estudos acerca do imaginário – o nome

de Gilbert Durand foi surgindo como recorrente. Se mesmo hoje, o temos como

95

AUGRAS, Monique. (2009). p.218. 96

BACHELARD, G. In: AUGRAS (2009), p. 218. 97

AUGRAS, Monique. (2009). p.219 98

AUGRAS, Monique. (2009). p.219

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uma referência para o tema, à época do seu lançamento, seguramente, As

estruturas antropológicas do imaginário foi um divisor de águas.

A ousada proposta de Durand, com certeza, é tributária de seu background

dos estudos, da postura, da concepção de cientista e de filósofo desenvolvidos por

Gaston Bachelard, de quem foi discípulo. A proposta de uma nova Ciência, de um

novo fazer científico, de uma nova epistemologia, além do desejo de se debruçar

sobre novos objetos de reflexão encontra centralidade nas pesquisas de Durand,

como aponta Augras em suas “mil janelas”: "O que (o antropólogo Gilbert

Durand) pretende, desde o seu livro fundador, As estruturas antropológicas do

imaginário, de 1960, é fazer da temática do imaginário uma confluência

unificadora de todas as ciências humanas e sociais." 99

Uma ciência que possa aliar imaginação e razão e que seja capaz de

abarcar todos os saberes é ambiciosa tomada de posição. Perspectiva

extremamente sedutora, em minha opinião. Contudo, verifica-se que a

contaminação da ciência pela arte não é inquietação contemporânea, como se

exemplifica a exposição de outros dois subsequentes trechos também retirados do

livro Imaginário da magia, magia do imaginário:

Homo animal symbolicum, esta sentença de Giambattista Vico (1725/1979) (...)

propõe levar até as últimas consequências o projeto de uma ciência nova baseada

na “sabedoria poética”.

Não há mais antagonismo entre razão e imaginação, que são, ambas ferramentas

na construção do mundo. 100

Já se depreende da interessante concepção de Vico que mais do que um

animal racional, o ser vivo possuidor de vinte e pares de cromossomos seria um

animal simbólico. Realmente, a compreensão de um mundo construído pela razão

e também pela imaginação se apresenta como muito pertinente, diria até, natural,

do que um mundo clivado apenas pela razão, mutilando ou apartando a

imaginação, tão constitutiva do ser humano. O estranhamento ocorre mais como

resultado da cisão razão / imaginação na tentativa de explicar a realidade

circundante. O olhar antropológico faz, naturalmente, que o ser humano seja

posicionado como centro da perspectiva, mas permite também que haja uma

articulação da razão e da imaginação não apenas para observação e mensuração

99

AUGRAS, Monique. (2009). p.221. 100

AUGRAS, Monique. (2009). p. 222.

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dos fenômenos, mas também para uma ação mais engajada com a construção da

realidade.

Conforme Durand, a partir da leitura de Augras, “o imaginário – isto é, o

conjunto das imagens e das relações entre imagens que constitui o capital pensado

do Homo sapiens é a encruzilhada antropológica que permite esclarecer

determinado procedimento de uma das ciências humanas, por determinado

procedimento de outra dessas mesmas ciências.” 101

Importante conceito é o de trajeto antropológico, que situa a produção de

imagens em um percurso que vai desde o biológico até o sociocultural, de tal

modo que o imaginário pode ser estudado em qualquer ponto dessa trajetória,

sem que isso implique hierarquia (graus de verdade ou de ilusão, como em Sartre

ou Lacan) ou ruptura (oposição entre imaginário e racionalidade, como em

Bachelard). 102

O contraponto que o antropólogo francês faz à concepção que Jean-Paul

Sartre desenvolve em torno do imaginário é extremamente fecundo, pois tal

pulsão sempre foi acusada de escapista, alienante ou de fomentadora de

desequilíbrio. "O mergulho sistemático nas narrativas míticas ou nas produções

poéticas, longe de ser sinônimo de algum extravio em caminhos fantásticos, pode,

muito pelo contrário, ser garantia de equilíbrio."103

É trafegando a partir desta conceituação que o autor de A imaginação

simbólica desenvolve uma inovadora e necessária nova proposta epistemológica,

ao se posicionar, em radicalidade, contra o método científico clássico que se

fundamenta na indução e na dedução. Como já havia explicitado, meu incômodo e

minha inquietação emergem exatamente de uma crítica aguda à metodologia

científica enquanto possibilidade hegemônica de apreensão da realidade

objetivando o conhecimento e a transformação.

A “mitodologia” de Durand, em alusão óbvia à metodologia, aponta uma

saída que me parece bem perfilada com aquilo que defendo como possível

resultante simbiótica entre a fantasia e filosofia. Percorrer símbolos, mitos, saídas

encantadas e soluções mágicas com o intuito de refletir questões essenciais do

pensamento sempre me pareceu extremamente convidativo e prolífico ao nível

intelectual e não apenas encantador e atraente.

101

AUGRAS, Monique. (2009). p. 222 102

AUGRAS, Monique. (2009). p. 223. 103

AUGRAS, Monique. (2009). p.225

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Face ao método científico – fruto do positivismo desencantado –, o autor propõe,

com o desassombro que lhe é peculiar, o uso do mítodo que, diz ele, ‘substitui a

indução clássica (mera ‘dedução’ invertida) por uma indução por assim dizer

‘constelante’, trocando a análise mecanicista por “análises multirreferenciais” 104

O ponto frágil da argumentação de Durand, por mais sedutor que seja o seu

discurso, é que a prática da “mitodologia” implica um conhecimento

enciclopédico de mitos e símbolos e, na ausência desse conhecimento, corre o

risco de descambar para um exercício de pura efervescência retórica, ao qual é

permitido preferir análises mais tradicionalmente rigorosas. 105

As afirmações de Durand postulando seus alicerces da mitodologia são

corajosas e considerando o caráter embriagante da linguagem e a profusão

simbólica que pode ser gerada na própria busca de significações, é extremamente

pertinaz à formulação acima de Augras, ao ressalvar que se deve cuidar para não

incorrer em exercício de “pura efervescência retórica”. Cumpre não olvidar que o

fato de perceber armadilhas não significa que a mitodologia deva ser descartada

ou desconsiderada enquanto perspectiva epistemológica, como possibilidade de se

fazer ciência.

Pelo contrário, considero que usando o devaneio devidamente temperado

com a exata dose de lucidez, é que se pode construir uma cultura (no sentido

amplo, de qualquer atividade humana, como antípoda ao natural, na oposição –

anacrônica e questionável – cultura versus natureza) efetivamente transformadora

e não auto-destrutiva. O imaginário possui um componente fundamental na

contribuição da saúde do tecido social. Como também afirmou Durand: “Não há

sociedades sem poetas, sem artistas, sem valores.” 106

Grego de nascimento, mas radicado na França, o filósofo Cornelius

Castoriadis possui ampla influência em estudos antropológicos, sociológicos e de

educação. A profundidade e a amplitude com a qual estudou o imaginário o

localiza como verdadeiro luminar do tema. Comparado à Husserl, Sartre e Lacan,

o farol Castoriadis ousa mais. Pretende aprofundar a reflexão sobre as raízes da

criação, o que expõe sua ideia de imaginário radical, ou seja, de um imaginário

fundador em nível ontológico.

104

AUGRAS, Monique. (2009). p.225 105

AUGRAS, Monique. (2009). p.226 106

DURAND, Gilbert. (1984): p. 226.

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100

Seu conceito de imaginário radical guarda sintonia com “raiz”, filiação

com “radical”, parentesco com radicalidade e se assemelha ao modo de

compreensão ancestral dos pensadores originários (e ele chega mesmo a falar, não

em uma “fantasiática”, análoga à poética, mas em um fantasiar originário,

resgatando a imaginação primeva aristotélica). Ao resgatar Aristóteles,

Castoriadis refunda a primazia do imaginário. Na concepção de Aristóteles,

haveria, por debaixo da imaginação tal como o senso comum a representa, fonte

das fábulas e das fantasias, uma “imaginação” primeva, criadora, ancestral. Uma

imaginação essencial?

Qual seria o fundamento da imaginação? Ou olhando de outro ângulo,

seria a imaginação, o fundamento, a causa sui? Sim, para Castoriadis, imaginário

é o fundamento da atividade imaginativa, o que a torna possível. Para mim, ele,

definitivamente, está em consonância com os pensadores originários – Heráclito

de Éfeso, Parmênides, Anaximandro, Anaxímenes, Xenófanes, Zenão –, o que é

explicitado no trecho apresentado no mapamento dos pensadores do imaginário,

encetado, mais uma vez, por Augras:

Longe de procurar fundamental a fantasia nas pulsões, Freud, ao contrário, fazia

depender o jogo pulsional das estruturas fantásticas antecedentes, devemos

admitir que o fantasiar originário, o que denomino a imaginação radical,

preexiste e preside toda a organização, mesmo a mais primitiva, da pulsão. 107

A ponte com os paradigmas estabelecidos por Freud – por exemplo,

pergunto eu, o imaginário como inconsciente freudiano? –, denota a formação

psicanalítica de Castoriadis. Mas ele vai ainda mais longe, não se contentando

com dicotomias. O ser humano não é capaz somente de racionalidade e

irracionalidade. Na realidade, o autor de A instituição imaginária da sociedade

subverte a zona de conforto na qual a humanidade está fundada, abrigada na

racionalidade. Chega mesmo a afirmar que é a irracionalidade, a característica

especificamente humana. E permanece, com maestria, desenvolvendo sua

perspectiva:

A racionalidade seria, por assim dizer, uma província possível dentro do quadro

geral de irracionalidade: O homem não é um animal, como diz o velho lugar-

comum. Tampouco é um animal doente. O homem é um animal louco (que

107

AUGRAS, Monique. (2009). p. 231.

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começa sendo louco) e que, também por isso, torna-se ou pode tornar-se racional.

Essa loucura primeva, ligada à vivência existencial da alteridade, talvez seja

outro nome para o imaginário radical. 108

Assim como Durand e Bachelard, Castoriadis atribui uma primazia (e uma

prioridade!) não apenas aos estudos sobre o imaginário, mas ao próprio tema em

si, ampliando sua área de atuação. Como bem assevera Monique Augras, ao

dissertar sobre o autor dos volumes d’As encruzilhadas do labirinto: “nessa

perspectiva, toda criação humana, história, sociedade, ou indivíduo, é igualmente

reveladora da atuação do imaginário”.109

Em um primeiro momento, pareceu-me

que o fundamento do imaginário de Castoriadis fosse a pulsão criativa, que se

espalha infinitamente, alçando dimensões que transcendem mesmo a

subjetividade humana, ainda que não perca tal moldura. É o que determina quando

afirma:

O imaginário de que falo não é imagem de. É criação incessante e essencialmente

indeterminada (social-histórica e psíquica) de figuras / formas / imagens, a partir

das quais somente é possível falar de “alguma coisa”. Aquilo que denominados

‘realidade’ e ‘racionalidade’ serão seus produtos.

Entretanto, há uma afirmação, quase um aforismo, na linhagem – como

mencionei anteriormente – dos pensadores originários que vai desnudar a

concepção do imaginário para Castoriadis, em um sentido bem mais amplo e

profundo do restrita à pulsão criativa, numa equação bastante precisa: “Imaginário

é, portanto, sinônimo de humano”.110

De acordo com o panorama apresentado por Monique Augras, pelo viés de

Cornelius Castoriadis, toda produção humana na concepção cultural (o adjetivo

“cultural” na conhecida acepção que opõe natureza x cultura) é equivalente ao

imaginário. Esta abordagem demonstra a importância conferida à fantasia, à

imaginação, ao imaginário. Mas por conta desta seção apresentar um formato

formal que privilegia o mosaico de definições, não retomarei Castoriadis agora,

mas em outro momento mais adequado, no capítulo seguinte “4 – Verde ou

Fantasia como horizonte de sentidos”, após seguirmos com nossa trilha pelas

concepções que refletem acerca do imaginário.

108

AUGRAS, Monique. (2009). p. 231. 109

AUGRAS, Monique. (2009). p. 230. 110

AUGRAS, Monique. (2009). p. 230.

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102

Continuando o périplo sobre o imaginário com os teóricos franceses,

apesar de François Laplantine já ter sido abordado no capítulo anterior – destinado

a discussão sobre Fantasia – , vale recuperar certos excertos do curto, porém

preciso, livro O que é imaginário, em co-autoria com Liana Trindade.

Naturalmente que a discussão filosófica acerca da representação teria que alcançar

as reflexões acerca do imaginário, já que a relação entre imaginário e imagem é

tão próxima e a imagem e representação podem até serem sinônimos, dependendo

do enfoque que se empregue. Cabe, portanto, esclarecimento em relação aos

termos, a partir dos dois trechos retirados:

O imaginário faz parte do campo de representações, mas não é uma tradução

reprodutora ou uma transposição de imagens. 111

O imaginário ocupa um lugar na representação, porém ultrapassa a representação

intelectual. 112

A primeira afirmação amplia a condição do imaginário na sua relação com

as imagens, e, ao fazê-lo, o retira do seu aspecto de reprodução, transposição,

tradução. A segunda reflexão mostra que é limitante reduzir o imaginário à

moldura representacional, já que poderia deixar que alcançar aspectos que não são

cobertos pela condição do racionalismo. Como Laplantine e Trindade, também

Gilbert Durand articula imaginário e representação. Entretanto, seu tom é distinto,

pois acrescenta uma pitada de seu condimento, enquanto luminar de um imaginar

filosófico, de uma teoria da fantasia, de uma ontologia do imaginário, ao propor

uma abordagem metódica das representações do Universo, ou de uma

“mitodologia”. Já bastante comentado aqui a partir das análises de Augras, o autor

de O imaginário: ensaio acerca das ciências e da filosofia da imagem utiliza a

dicção ontológica do conceito de representação (re-presentação):

O imaginário define-se como uma re-presentação incontornável, a faculdade da

simbolização de onde todos os medos, todas as esperanças e seus frutos culturais

jorram continuamente desde os cerca de um milhão de anos que o Homo erectus

ficou em pé na face da Terra.113

111

LAPLANTINE, F. e TRINDADE, L. (2003). p.77. 112

LAPLANTINE, F. e TRINDADE, L. (2003). p.78. 113

DURAND. Gilbert. “O imaginário: ensaio acerca das ciências e da filosofia

da imagem”. Trad. Renée Eve Levié. Rio de Janeiro: Difel, 1998. p.117.

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103

Analogamente ao capítulo “Mil janelas: teóricos do imaginário”, do livro

Magia do imaginário, imaginário da magia, de Monique Augras, outra sólida

referência para o presente capítulo, verdadeira viga teórica que utilizei foi o livro

do pesquisador Richard Kearney, Poetics of imagining: from Husserl to Lyotard

(“Poética do imaginar: de Husserl a Lyotard”), publicado em 1991, contudo

ainda não traduzido para a língua portuguesa. Anteriormente, no capítulo 1 desta

tese doutoral, havia incluído a pergunta “Por que filosofar sobre imaginação?”,

mas agora procedo a um detalhamento de interlocução mais extenso.

O autor de “The wake of imagination” (“O despertar da imaginação”)

organiza um alentado panorama sobre as teorias do imaginário, cobrindo (por se

tratar de uma obra de maior fôlego e de ser o tema central da pesquisa do

estudioso estadunidense, diferentemente do caso da pesquisadora franco-

brasileira) pensadores não tão incensados nos estudos de literatura e, até o meu

conhecimento no momento atual, raramente em interação com textos de literatura

infantil.

O que dá destaque à publicação de Kearney é que não se tratar de simples

compilação ou fortuna crítica. Ele parte de três questões fundamentais de

articulação filosófica com o imaginar – cabe breve e necessária explicação: optei,

deliberadamente, por traduzir o presente contínuo “imagining” do idioma inglês

pelo infinitivo “imaginar” da nossa língua pátria, principalmente por um

argumento conceitual, já que Kearney utiliza “imagining” tanto para “imaginário”

como “imaginação” – para estabelecer uma espécie de fórum investigativo que

norteará todo o seu estudo. Eis as suas três perguntas. Em primeiro lugar: (1) de

que maneira a imaginação se relaciona com a verdade (a questão epistemológica);

como segunda questão: (2) como a imaginação se relaciona com a existência (a

questão ontológica); e, para finalizar, a terceira indagação: (3) como a imaginação

se relaciona com a alteridade (a questão ética).

Através de seus pensamentos, escolhi para dialogar os seguintes “atores”:

Edmund Husserl (definido como um dos principais teóricos da imaginação

fenomenológica), Jean-Paul Sartre (conhecido como grande nome da imaginação

existencialista), Gaston Bachelard (pensador que se debruçou sobre imaginação

poética), Maurice Merleau-Ponty (que elaborou a reflexão da imaginação

dialética), e Paul Ricoeur (que estruturou a imaginação hermenêutica). Em “A

imaginação pós-moderna”, a segunda parte do referido trabalho – Poetics of

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104

imagining: from Husserl to Lyotard –, Kearney segue com outros pensadores de

fina estirpe intelectual (Lacan, Althusser, Foucault, Derrida, Vattimo, Kristeva,

Lyotard) e que também possuem importantes abordagens acerca da

problematização do imaginar, porém, por uma questão de prioridade e de foco,

reservei tal embate para futura oportunidade.

Em certo trecho de sua introdução, após relembrar que, para a filosofia

moderna, a imaginação é compreendida como presença na ausência, Kearney

resgata o pensamento kantiano e dos idealistas alemães – nomeadamente

Schelling e Fichte – que concebiam a imaginação (denominada Phantasie or

Einbildungkraft) como uma transformação criativa do real no ideal. E prossegue

na investigação do vínculo do real com a imaginação, comentando que “Fichte

chega a ir mais longe ao afirmar que ‘toda realidade nos é trazida somente pela

imaginação... este ato que forma a base para a possibilidade da nossa consciência,

nossa vida’ ” 114

. E ante a pergunta básica, considerando o approach filosófico, o

que é imaginar?, Kearney traça sua primeira ponte com o pensamento de Husserl

e seus seguidores de linhagem fenomenológica, estipulando o caráter de instância

produtiva que procura a obtenção da verdade, e, complemento eu, busca o

conhecimento. Considero que não vale a restrição apenas ao foco ético bem como

ao epistemológico da questão. Ao indicar uma tripla estruturação conferida ao

imaginar, assim pontua o também autor de Poetics of modernity:

Três reivindicações decisivas da fenomenologia – como emerge a partir de

Husserl e envolve os seus discípulos existencialistas e da hermenêutica – são: (1)

imaginar é um ato produtivo da consciência, não uma reprodução mental; (2)

imaginar não envolve um serviço de mensageiro entre o corpo e a mente mas

uma síntese original que precede a anacrônica oposição entre o sensível e o

inteligível; e (3) imaginar não é uma luxúria de fantasia ociosa mas um

instrumento da verdade. 115

114

KEARNEY, Richard. Poetics of imagining: From Husserl to Lyotard. New York: Routledge,

1991. p. 4. “Modern philosophies developed the basic understanding of imagination as presence-

in-absence – the act of making what is present absent and what is absent present – while generally

reversing the negative verdict it had received in the tribunal of tradition. For Kant and German

idealists such as Schelling and Fichte the imagination (termed Phantasie or Einbildungkraft) is

celebrated as a creative transforming of the real into the ideal. Fichte even goes so far as to claim

that ‘all reality is brought forth solely by imagination... this act which forms the basis for the

possibility of our consciousness, our life’ ” 115

KEARNEY, Richard. Poetics of imagining: From Husserl to Lyotard. New York: Routledge,

1991. p. 6. “Three decisive claims made by phenomenology – as it emerges in Husserl and evolves

through his existential and hermeneutic disciples – are: (1) imagining is a productive act of

consciousness, not a mental reproduction in the mind; (2) imagining does not involve a courier

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Segundo ele, a investigação acerca das bases filosóficas do imaginário, da

imaginação, do imaginar, em suma, mobilizou vários pensadores de forma mais

intensa no século XX, na tentativa de transpor tanto a anacrônica dicotomia entre

Razão e Des-Razão, Anti-Razão ou como nomeia, Não-Razão. Como diz,

textualmente, no excerto: “uma poética da imaginação crítica que transcenda tanto

o império da razão e o asilo da não-razão se tornou uma preocupação urgente para

um número de pensadores em nosso século.” 116

Da mesma forma que Augras,

Kearney delineia um panteão com os mais destacados pensadores que pesquisam

o tema e como indicou que se trata de uma preocupação dos filósofos modernos,

vai abrir com Edmund Husserl, como já indiquei e indiciei antes.

De acordo com Kearney, o pioneiro Husserl tencionava dar conta das

potencialidades da imaginação, que a maioria das filosofias anteriores teriam

negligenciado. O movimento fenomenológico celebra a intencionalidade da

imaginação, o poder da intencionalidade da imaginação em contraposição às

teorias tradicionais que tendem a estigmatizá-la sob três grupos principais:

dualismo, representacionalismo e reificação:

(1) dualismo – imagens são geralmente consideradas alianças da ordem corpórea

inferior e assim desfavoráveis para as elevadas buscas do intelecto; (2)

representacionalismo – imagens são interpretadas como meras cópias das nossas

experiências sensíveis; e (3) reificação – imagens são tratadas como coisas quasi-

materiais (res) na mente mais do atos de consciência viva. 117

Como já abordado anteriormente, a relação traçada entre imagem e

imaginação é de intenso vínculo, assumindo variadas possibilidades, seja de

sinergia, de oposição, de alternância, de dialética entre a parte e o todo, dentre

outras. Torna-se claro que, não sendo exclusividade da fenomenologia, tal relação

tem nos seguidores de Husserl uma vertente deveras importante. Lidos

service between body and mind but an original synthesis which precedes the age-old opposition

between the sensible and the intelligible; and (3) imagining is not a luxury of idle fancy but an

instrument of truth.” 116

KEARNEY, Richard. Poetics of Imagining: From Husserl to Lyotard. New York: Routledge,

1991. p. 9. “A critical poetics of imagination transcending both the empire of reason and the

asylum of un-reason has become an urgent concern for a number of thinkers in our century.” Vale

lembrar que o livro é do século XX, não mais o “nosso” século. 117

KEARNEY, Richard. Poetics of Imagining: From Husserl to Lyotard. New York: Routledge,

1991. p. 13. “ (1) dualism – images were generally considered allies of the lower corporeal order

and thus inimical to the elevated pursuits of the intellect; (2) representationalism – images were

construed as mere copies of our sensible experiences; and (3) reification – images were treated as

quasi-material things (res) in the mind rather than acts of living consciousness”.

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conjuntamente, os excertos seguintes desnudam tal vínculo, ao deixar emergir o

trinômio imagem-fenomenologia-imaginação:

Não foi antes de Husserl e dos outros fenomenologistas considerarem a

imaginação como uma intencionalidade livre e criativa que a ‘ilusão de

imanência’ pôde ser finalmente ultrapassada. Dito de forma simples, a

imaginação necessita da fenomenologia; pois sem ela, não pode ser

compreendida como ela em si mesma. 118

A Fenomenologia redefine a imagem como uma relação – um ato de consciência

direcionado a um objeto além da consciência. A imaginação não pode reduzir o

mundo a uma miríade de sensações internas desbotadas, como Hume sustentou. 119

A relação que se depreende da imagem, ou melhor, de como a

fenomenologia apreende a imagem, vale um cuidadoso olhar. De acordo com tal

linha de investigação, a imagem é aceita em seu modo de ser, como modo de

aparecimento para a consciência. Em relação à tradição filosófica, há um

deslocamento encetado pela fenomenologia, que não se quer tão aferrada à

preocupação com a realidade como a metafísica.

Em seu livro Investigações lógicas, Husserl estabelece a distinção entre

imaginação e percepção, uma formulação que é valiosa ao nosso trajeto. Para o

filósofo, o equívoco da tradicional “teoria imagética” seria o de ter confundido o

modo de apresentação com próprio objeto presente. A sutileza da reflexão é que a

imagem e o que é percebido são modos de apresentação distintos. A imaginação

ocupa, sem dúvida, um lugar central nas investigações fenomenológicas, havendo

mesmo uma “fenomenologia da imaginação”, como se pode observar:

A fenomenologia da imaginação como resumida inicialmente por Husserl é uma

resposta para duas questões principais: O que a fenomenologia significa para a

imaginação? e o que a imaginação significa para a fenomenologia? 120

118

KEARNEY, Richard. Poetics of Imagining: From Husserl to Lyotard. New York: Routledge,

1991. p.14. “It was not until Husserl and other phenomenologist acknowleged imagination as a

free and creative intentionality that the ‘illusion of immanence’ could be finally surpassed. Simply

stated, imagination needs phenomenology; for without it; it cannot be understood as it is in itself.” 119

KEARNEY, Richard. Poetics of Imagining: From Husserl to Lyotard. New York: Routledge,

1991. p. 15. “Phenomenology redefines the image as a relation – an act of consciousness directed

to an object beyond consciousness. Imagination cannot reduce the world to a myriad of faded inner

sensations, as Hume maintened.” 120

KEARNEY, Richard. Poetics of Imagining: From Husserl to Lyotard. New York: Routledge,

1991. p. 19. “The phenomenology of imagination as first outlined by Husserl is a response to two

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107

Por conta de se analisar a imaginação no viés fenomenológico, há um

desdobramento do pensamento que amplia o ponto de vista e traz para o bojo da

discussão as coisas e os fenômenos, a partir de uma tensão com o naturalismo. As

citações abaixo, apesar de extensas, e sequenciadas, são justificadas pela

condução de importante linha de raciocínio, a ser resgatada mais adiante:

A Fenomenologia está no lado do ‘eidético’; o Naturalismo encerra a visão

oposta de que todos os modos de consciência são reduzíveis aos padrões

empíricos das ciências naturais. Se a fenomenologia é a campeã da imaginação

humana, o naturalismo é o seu adversário preferencial. As coisas são apreendidas

na sua essência (eidos), afirma Husserl, quando elas são captadas não apenas na

sua realidade mas também na sua possibilidade – a última sendo a reserva

especial da imaginação. 121

A atitude naturalista, em contraste, mantém a tradicional dicotomia sujeito /

objeto, e assim ignora a relação essencial entre consciência e mundo. A

Fenomenologia redescobre verdadeiramente esta relação ao (1) suspender o

preconceito naturalista que reduz a experiência humana aos dados observados

empiricamente; e (2) ao considerar a imaginação como um agente indispensável

para a descoberta e a intuição do significado. A Fenomenologia reconhece a

consciência humana como uma experiência primordialmente vivenciada

(Erlebnis)” intencionalmente conectada com o mundo – antes de qualquer

separação entre sujeito e objeto. 122

Como um dos primeiros, e dos mais importantes, teóricos da imaginação

no viés filosófico, Husserl, além de aproximar a imaginação da essência, direciona

a investigação sobre o tema para a relação sujeito / objeto, e, a um só tempo, o faz

em precisa articulação com a mirada que concebe a imaginação como

possibilidade de apreensão de significado. Um outro aspecto que pode se

assemelhar a um parêntese digressivo, mas que em verdade, aponta para uma

espécie de germe de uma reflexão intensa e profunda, que é o reconhecimento que

main questions: What does phenomenology mean for imagination? and What does imagination

mean for phenomenology? 121

KEARNEY, Richard. Poetics of Imagining: From Husserl to Lyotard. New York: Routledge,

1991. p. 20. “phenomenology is on the side of the ‘eidetic’; naturalism holding the opposing view

that all modes of consciousness are reducible to the empirical standards of the natural sciences. If

phenomenology is the champion of human imagination, naturalism is its chosen adversary. Things

are apprehended in their essence (eidos), Husserl claims, when they are grasped not only in their

actuality but also in their possibility – the latter being the special preserve of imagination.” 122

KEARNEY, Richard. Poetics of Imagining: From Husserl to Lyotard. New York: Routledge,

1991. p. 20. “The naturalist attitude, by contrast, upholds the traditional subject/object dichotomy,

and thus ignores the essential relation between consciousness and world. Phenomenology

rediscovers this relation by (1) suspending the naturalistic prejudice which reduces human

experience to empirically observable data; and (2) by acknowledging imagination as an

indispensable agency for the disclosure and intuition of meaning. (...) Phenomenology recognizes

human consciousness as a a primordially lived experience (Erlebnis)” intentionally connected to

the world – before any separation into subject and object.”

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108

Husserl faz da consciência humana como experiência primordialmente

vivenciada. Trata-se do fulcro da concepção da interação / inter-relação da ação e

do texto que pode ser encontrado nos estudos de Paul Ricoeur e que,

oportunamente retomarei.

Retomando Husserl, e lembrando que suas afirmações são especialmente

dignas de nota, não apenas para o presente estudo, mas para a maioria dos estudos

literários, tem-se que “as ficções não são impressões do fato nem sub-produtos da

percepção. Elas representam um possível modo de existência da coisa com uma

intenção livre da consciência na qual – paradoxalmente – se alicerça a necessidade

de verdade”.123

E segue o filósofo alemão, fazendo emergir a interação da

fenomenologia com o imaginar, ao apresentar os fundamentos de tal relação:

A fenomenologia necessita da imaginação, portanto, por duas razões: (1) para

separar nosso vínculo natural da experiência empírica; e (2) para fornecer acesso

a um reino de possibilidade o qual a verdadeira liberdade é a marca de uma

necessária (isto é, apodítica e transcendental) ciência das essências. 124

“A imaginação é um pré-requisito de toda a investigação fenomenológica

na medida em que ela revela a vida da consciência humana para si própria.” 125

Esta construção frasal trafega veloz em minha linha de raciocínio, pois agrega

elementos ao corpo crítico que objetivo adensar. A atribuição ou a compreensão

do status do imaginar enquanto revelação da própria consciência, e acrescento,

como desvelamento do universo que circunda o indivíduo. Vale ressaltar que

Husserl é tido como o pai da fenomenologia, e tal epíteto não é gratuito, já que

realmente é ele quem primeiro estabelece os vários momentos de aproximação de

similares e associados que se encontravam separados bem como distingue, de

forma clara, as eventuais dimensões que se mesclavam de maneira equivocada.

123

KEARNEY, Richard. Poetics of Imagining: From Husserl to Lyotard. New York: Routledge,

1991. p. 21. “For Husserl, fictions are neither impressions of fact nor by-products of perception.

They represent a thing’s possible mode of existence as a free intention of consciousness which –

paradoxically – grounds the necessity of truth.” 124

KEARNEY, Richard. Poetics of Imagining: From Husserl to Lyotard. New York: Routledge,

1991. p. 22. “Phenomenology needs imagination, therefore, for two main reasons: (1) to sever our

natural bondage to empirical experience; and (2) to provide access to a realm of possibility whose

very freedom is the token of a necessary (that is, apoditic and transcendental) science of

essences.” 125

KEARNEY, Richard. Poetics of Imagining: From Husserl to Lyotard. New York: Routledge,

1991. p. 22. “Imagination is a prerequisite of all phenomenological inquiry in so far as it reveals

the life of human consciousness to itself.”

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Um exemplo de necessária separação visando um bom e imprescindível

estabelecimento de categorias é o que ocorre no já aludido caso do binômio

imaginação-percepção. Como aponta Kearney, “Husserl retorna seguidamente à

distinção entre imaginação e percepção. Enquanto a percepção está ligada às

condições efêmeras do aqui e do agora, a imaginação está livre para prescindir de

particulares dados e variar seus objetos intencionais como fenômenos irreais.” 126

Por outro lado, estabelece sólidas vinculações de fundo conceitual para

instâncias ora apartadas, como também recupera o autor de Poetics of Modernity:

“Ao definir imaginação como um portal que conduz do natural ao reino eidético,

Husserl ata imaginação e fenomenologia em um nó górdio.” 127

Aqui, é possível

detectar uma alteração no paradigma, uma mudança conceitual na abordagem. A

investigação filosófica em relação ao imaginar passa a se distinguir. A clave

“essencialista” confere sustentação para a imaginação, que é reiteradamente

desqualificada na tradição do pensamento (e até mesmo pelo senso comum), como

se pode depreender da afirmação – “A imaginação conduz a uma intuição das

essências.” 128

– que pode ser encorpada (e incorporada) por outro trecho extraído

deste panorama que é a Poética do imaginar (Poetics of Imagining): “A

imaginação permite às essências se apresentarem através de instâncias múltiplas

mais do que meramente individuais.” 129

.

O leitor há de notar que eclodem, aqui e ali, ao longo do trajeto que

palmilha o mosaico das concepções e definições do imaginar, do imaginário, da

imaginação, formulações específicas direcionadas à ficção. Isto se dá na

deliberada ênfase que meu texto confere para as passagens dos pensadores

escolhidos. Ocorre também, contudo, no capítulo como um todo, de maneira

brevemente pincelada, desenhando um quadro que se completará ao final, caso se

126

KEARNEY, Richard. Poetics of Imagining: From Husserl to Lyotard. New York: Routledge,

1991. p. 23. “Husserl returns again and again for to the distinction between imagination and

perception. While perception is bound by the ephemeral conditions of the here and now,

imagination is free to prescind from given particulars and vary its intentional objects as unreal

phenomena.” 127

KEARNEY, Richard. Poetics of Imagining: From Husserl to Lyotard. New York: Routledge,

1991. p. 24. “By defining imagination as the portal leading from the natural to the eidetic realm,

Husserl bound imagination and phenomenology in a Gordian knot.” 128

KEARNEY, Richard. Poetics of Imagining: From Husserl to Lyotard. New York: Routledge,

1991. p. 24. “Imagination leads to an intuition of essences” 129

KEARNEY, Richard. Poetics of Imagining: From Husserl to Lyotard. New York: Routledge,

1991. p. 26. “Imagination allows essences to present themselves through multiple rather than

merely single instances.”

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guarde a devida distância. Ainda que incorra no risco de se rotulado como

repetitivo e desgastante, reitero que o presente capítulo assim como o anterior,

têm o viés de se apresentarem predominantemente como revisão do tema, fortuna

crítica da questão, preparando o terreno para a discussão crítica do quarto capítulo

e a análise dos textos do corpus literário. Todavia, não é possível seguir

impassível frente a um excerto como o que se encontra abaixo: "A ficção, como

organizada por fenomenologistas e artistas similares, revela não apenas que as

coisas possuem essências inesperadas mas também que a consciência é uma

atividade inesperada – um processo de livre fantasia." 130

Husserl alcança mais um degrau do “prédio da Teoria da Fantasia”,

convocando a postura ativa, a fantasia como processo e não se conformando como

uma ideia meramente essencialista, estanque. A imaginação se apresenta como

essência das coisas, mas não deixa de ser processo ativo, é ela que nos faz olhar

para as coisas, para a essência das coisas e inferir possibilidades de alteridade das

coisas. Como dito por Husserl, ela possibilita que olhemos as coisas em si, como

elas próprias, além das nossas palavras e nossos pensamentos sobre elas. E

ampliando ainda mais o poder e a atuação da imaginação como também o fez

Bachelard, em outros tempos, na perspectiva epistemológica que se articula com

as demais áreas da produção de conhecimento. É que se depreende do trecho que

indica que “é a imaginação, em última análise, que projeta a possibilidade ideal da

fenomenologia como uma rigorosa ciência universal – um ideal perseguido por

todos os grandes pensadores na história da filosofia”. 131

O vínculo estrutural da imaginação com a percepção da realidade, ou por

outra, com a própria realidade (e que abre toda a discussão se haveria inclusive

uma realidade per se, e talvez diversas realidades, ou mesmo a possibilidade

encantatória se toda a ideia de realidade não seria uma exacerbação radical da

realidade?) aflora e traz à tona questões como uma certa indiscernibilidade entre

“o absoluto” e “o relativo”, além do caráter transitório, dinâmico da realidade e

das essências. Estabelece assim Husserl, “porque nós podemos imaginar que nós

130

KEARNEY, Richard. Poetics of Imagining: From Husserl to Lyotard. New York: Routledge,

1991. p. 26. “Fiction, as deployed by phenomenologists and artists alike, reveals not only that

things have unexpected essences but also that consciousness in an unexpected activity – a process

of free fancy.” 131

KEARNEY (1991). p.29. “It is the imagination, in the final analysis, which projects the ideal

possibility of phenomenology as a rigorous universal science – an ideal sought after by all great

thinkers in the history of philosophy”

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sabemos que a realidade não é algo dado mas uma metamorfose infinita. O

absoluto não é ‘real’, ou em qualquer intensidade não ainda. O absoluto é possível

e, como tal, pode ser intuído apenas através da imaginação.” 132

O absoluto pode

ser intuído apenas através. Afirmação de extrema força e acurácia, em minha

opinião. Para este caminho, me pareceu que os atores já haviam sido convocados,

imaginário, imaginação, fantasia... Porém, na trilha husserliana, vejo que novo

elemento se integra ao elenco: a intuição.

Uma intuição que se debruça sobre a essência das coisas e fenômenos e

que aponta como uma possível saída para o abismo existencial do ser humano,

chaga tantas vezes reaberta pela abordagem encetada pela Metafísica. “A

fenomenologia deve ser intuitiva – e isso significa imaginativa no sentido da

intuição eidética, ou ela perderá sua identidade enquanto movimento filosófico...

A fenomenologia enfrenta uma nova possibilidade de existência, uma aventura de

imaginação – que, eu sugiro, é o verdadeiro destino do ser humano.” 133

Para finalizar esta parte, que abordou a imaginação investigada nos

ensaios de Edmund Husserl, cito o estudo de Richard Kearney, basilar para esta

discussão. No presente excerto, ele avalia a contribuição de Husserl para os

estudos sobre imaginação, em especial, para o seu estudo que tem como fulcro a

triádica perquirição da imaginação (epistemológica, ontológica e ética).

De que maneira, podemos finalmente perguntar, a fenomenologia de Husserl

contribuiu para nossa investigação triádica da imaginação – epistemológica,

ontológica e ética? Em resposta à questão epistemológica, Husserl demonstrou

como a variação imaginativa abre para um reino eidético de possibilidades onde a

intuição das ‘verdades essenciais’ pode surgir. Em resposta a questão ontológica,

ele sugeriu como o grupo dos fatos empíricos podem levar de volta à experiência

transcendental das ‘próprias coisas’ (a atitude fenomenológica). E, em resposta à

questão ética, embora não endereçada diretamente, Husserl revela a capacidade

da imaginação empática de mover da subjetividade a intersubjetividade; e ele

132

KEARNEY (1991). p.33. “Because we can imagine we know that reality is not something

given but an infinite metamorphosis. The absolute is not ‘real’, or at any rate not yet. The absolute

is possible and, as such, can be intuited only through the imagination.” 133

KEARNEY (1991). p.37. “Phenomenology must be intuitive – and that means imaginative in

the sense of eidetic intuition, or it will lose its identity as a philosophical movement...

Phenomenology ventures out into a new possibility of existence, an adventure of imagination –

which, I submit, is the very destiny of man. ”

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sugere, além disso, que essa transição do si ao outro pode desvelar uma definitiva

motivação teleológica. 134

Muito curioso é o fato da posição filosófica, ideológica e, diria mesmo,

fenomenológica, de Sartre ser quase que diametralmente oposta da de Husserl.

Começo com um comentário de terceira (ou quarta) extração, qual um

pensamento em mise-en-abyme, já que cito Sartre que cita Meyerson analisando

Spinoza. Falando sobre imagem, preparando o terreno para a discussão da relação

entre imagem e pensamento, Sartre cita Meyerson: "Em Spinoza (...), a

imaginação, ou conhecimento por imagens, é profundamente diferente do

entendimento; ela pode forjar idéias falsas e não apresenta a verdade a ser sob

uma forma truncada." 135

Se Husserl aproximou a imaginação da verdade, da essência, da

consciência, Sartre vai reforçar a perspectiva de que a imaginação está na

contracorrente da compreensão, reforçando a postura que associa a imaginação ao

confuso, que atrela a imaginação ao nebuloso, ao que é falso ou enganoso.

Cumpre ressaltar que seu juízo de valor é intrincado, não se trata de algo que

perceba de pronto. Sua desqualificação da imaginação e seu vínculo com as

patologias não se dá logo de saída, como se poderia supor. Se Husserl aproximava

a imaginação da verdade, da essência, da consciência, Sartre vai reforçar a

perspectiva de que a imaginação está na contracorrente da compreensão,

ressaltando a postura que associa a imaginação ao confuso, a mesma que atrela a

imaginação ao nebuloso, ao que é falso ou enganoso. Cumpre ressaltar que seu

juízo de valor é intrincado, não se trata de algo que se perceba de pronto. Sua

desqualificação da imaginação e seu vínculo com as patologias não surge em

leitura ligeira, como se poderia supor.

Também vale enfatizar que, ao se voltar para os estudos do imaginar,

como seus dois textos A imaginação e O imaginário, Sartre, ao mesmo tempo que

134

KEARNEY (1991). p.38. “How, we may ask finally, has Husserl’s phenomenology contributed

to our threefold inquiry of imagining – epistemological, ontological and ethical? In answer to the

epistemological question, Husserl has demonstrated how imaginative variation opens on to the

eidetic realm of possibility where the intuition of ‘essential truths’ may take place. In answer to the

ontological question, he has suggested how the bracketing of empirical facts can lead back to the

transcendental experience of ‘things themselves’ (the phenomenological attitude). And, in answer

to the ethical question, though not directly addressed, Husserl discloses the capacity of empathic

imagination to move from subjectivity to intersubjectivity; and he intimates, furthermore, that this

transition from self to other may uncover an ultimate teleological motivation.” 135

SARTRE, Jean-Paul. A imaginação. São Paulo: Difel, 1967. p. 12.

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113

levou a questão a fenomenologia do imaginar para além do ponto estabelecido por

Husserl, também contribuiu negativamente para aumentar a indissociabilidade e a

indiscernibilidade dos termos imaginário e imaginação. Contudo, o mais notório

dos fundadores do existencialismo francês é pensador de obrigatória menção em

um texto que se propõe mínimo mosaico do tema.

Em 1936, Sartre publicou seu livro A imaginação, que se pretendia uma

crítica, pelo prisma da fenomenologia, das principais teorias filosóficas e

psicológicas, de Descartes ao behaviorismo de Skinner e, cabe salientar,

culminando com a teoria da imagem de Husserl. Para Sartre, em A imaginação, a

imagem não é uma percepção ou uma sensação, pálido reflexo do passado. Está

no caminho da abstração e da generalização, no caminho do pensamento... Ainda

que possa ser considerada como incompleta, já está racionalizada, como um

“racionalização do dado sensível” 136

.

Ainda que Sartre formule que a imagem não é uma percepção ou sensação,

quase contraditoriamente afirma que ela possui um conteúdo sensível e tem uma

“matéria impressional idêntica à da percepção” 137

. Tal contaminação do sensível

na imagem é passível de diálogo tanto com o pensamento cartesiano quanto como

a filosofia de Hume. Conforme a teoria da imaginação sustentada por René

Descartes, situada no plano psicofisiológico, isto é, há uma alma e um corpo, a

imagem é uma ideia formada pela alma em decorrência de uma manifestação do

corpo. O que é diametralmente oposto ao pensamento de Hume, que, a princípio,

nada sabe do corpo. Ele parte, ou estima partir, da experiência, dos dados

imediatos da experiência: há impressões fortes e impressões fracas. As impressões

fracas são as imagens e se distinguem das impressões fortes por uma questão de

intensidade. Sartre estabelece a diferenciação: “Em Descartes, as ligações

associativas se estabelecem entre as impressões deixadas pelos objetos, ao passo

que, em Hume, elas se formam entre os próprios objetos.” 138

É fundamental salientar que Sartre tinha como objetivo estabelecer

parâmetros que adensassem a teoria da imaginação que, em seu entender, deveria

atender a duas exigências principais: dar conta da discriminação espontânea que o

espírito opera em suas imagens e suas percepções, bem como explicar o papel

136

SARTRE, Jean-Paul. A imaginação. São Paulo: Difel, 1967. p.85. 137

SARTRE, Jean-Paul. A imaginação. São Paulo: Difel, 1967. p.88. 138

SARTRE, Jean-Paul. A imaginação. São Paulo: Difel, 1967. p.93.

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114

desempenhado pela imagem nas operações do pensamento139. Pensamento e

imagem, pensamento e imaginação, imaginação e raciocínio lógico, razão e

imaginação. Parelhas e suas decorrentes articulações que potencializam as

investigações deste estudo.

O mais famoso dos fundadores do Existencialismo francês tomou a

fenomenologia do imaginar a partir do ponto deixado por Husserl. Ao dar

sequência ao título A imaginação, com O imaginário (1940), explicitou-se o

movimento inaugural de Sartre de ampliar a tese husserliana de que a imagem é

um ato de consciência. E assim ele explicita sua linha filosófica: “A imagem é um

certo tipo de consciência. A imagem é um ato e não uma coisa.” 140

Richard

Kearney indica-nos que "Sartre estava determinado a combinar os resultados das

pesquisas eidéticas de Husserl com as preocupações existencialistas de pensadores

como Kierkergaard e Heidegger." 141

Vale refletir acerca da questão da elaboração da imagem mental e da

percepção da realidade. Husserl argumenta que o imaginar se distingue do

perceber não pela referência aos objetos pretendidos, mas pela referência ao ato

de pretender. Assim, a imagem mental seria não apenas uma coisa existente em

meio às demais. Haveria um vínculo sólido entre a percepção do fenômeno (do

objeto), assim como da recepção/decodificação e o ulterior construto mental.

De acordo com a leitura de Sartre feita por Kearney, os dois mundos, o

real e o imaginário, seriam compostos dos mesmos objetos: variável seria apenas

a abordagem a estes objetos. O que define o mundo imaginário, e também o

mundo do real, é uma atitude. Encontro em tal definição da realidade (e também

da imaginação), a chave analítico-interpretativa da questão que pauta a presente

tese. Retomando Kearney que, na posição de comentador arguto de Sartre, puxa o

fio, desvenda o novelo:

A imaginação é um modo de intencionalidade sui generis que, frequentemente,

busca negar o que de maneira específica é (irreal) em favor do que do que

poderia ser (real). Porém, enquanto a imagem é diferente daquilo que é percebido

em seu modo de intenção (irreal mais do que real), é mais frequentemente similar

no seu propósito (a possessão intuitiva do objeto). Assim, Sartre convoca o

139

SARTRE, Jean-Paul. A imaginação. São Paulo: Difel, 1967. p.97. 140

SARTRE, Jean-Paul. A imaginação. São Paulo: Difel, 1967. p.122. 141

KEARNEY, Richard. (1991). p. 48. “Sartre was determined to combine the results of Husserl’s

eidetic researches with the existential concerns of thinkers such as Kierkegaard and Heidegger.”

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115

essencialmente “absurdo” projeto da imaginação – para afirmar o que deve

sempre negar, para possuir o que deve sempre permanecer intangível, para

perceber um objeto ao despercebê-lo. 142

Conclui-se, a partir dos estudos fenomenológicos sartreanos, que como a

imaginação e a percepção são dois modos heterogêneos de observação, não

podem entrar em colisão ou adquirir como modo de ser ou como interação, a

sobreposição. É como aponta Kearney, mais uma vez, de maneira acurada em seu

norteador texto Poetics of Imagining:

Para Sartre os mundos da percepção e da imaginação são mutualmente

exclusivos. Pressupor o imaginário é ipso facto negar o real. Mas o é porque a

imaginação é essencialmente ‘carente’ na riqueza mundana da percepção,

precisamente por anular o mundo real que determina a percepção, que é livre. Ao

postular o mundo como o nada ao invés de realidade, a imaginação revela a si

mesma como liberdade. Este último ponto é fulcral para toda filosofia

existencialista de Sartre. 143

O autor de O Ser e o Nada naturalmente reflete acerca da imaginação, do

imaginário, de uma poética do imaginar, enfim, à luz do Nada, sua pedra de

fundamento filosófico. Em seu viés, o nada do imaginário se divide em três

vertentes principais: a primeira, a irrealidade espacial, o Nada do espaço; a

segunda, a irrealidade temporal, o Nada do tempo e, por último, a irrealidade das

relações intra-mundo. E prossegue, posicionando o Nada como cerne do embate

(ou diálogo) entre o real e o imaginário: "O real e o imaginário estão sempre

separados por uma muralha chinesa do Nada. 'O mundo do imaginário é

completamente isolado,' escreve Sartre. 'Eu apenas posso penetrá-lo ao irrealizar-

me nele'.” 144

142

KEARNEY, Richard. (1991). p. 51. “Imagination is a sui generis mode of intentionality which

frequently seeks to deny what it specifically is (unreal) in favour of what it would like to be (real).

But, while the image is different from the percept in its mode of intention (unreal rather than real),

it is often similar in purpose (the intuitive possession of the object). Thus, Sartre intimates the

essentially ‘absurd’ project of imagination - to affirm what it must alwas negate, to possess what

must always remain intangible, to realize an object by unrealizing it.” 143

KEARNEY, Richard. (1991). p.54. “For Sartre the worlds of perception and imagination are

mutually exclusive. To posit the imaginary is ipso facto to negate the real. But its because

imagination is essentially ‘lacking’ in the mundane richness of perception, precisely because it

nihilates the real world which determines perception, that it is free. By positing the world as

nothingness rather than reality, imagination reveals itself as freedom. This last point is pivotal to

Sartre’s entire existentalist philosophy.” 144

KEARNEY, Richard. (1991). p. 58. “The real and the imaginary are always separated by the

Chinese wall of le néant. ‘The world of imaginary is completely isolated,’ writes Sartre. ‘I can

only enter it by unrealizing myself in it.’ ”

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116

Cumpre salientar a dimensão ontológica da investigação sobre o imaginar

para Sartre, que posiciona o ontológico imerso nas indagações: (a) seria a função

imaginária um tipo de especificação (contingencial e metafísica) da essência ou,

pelo contrário, seria uma função constitutiva da essência? E mais, (b) de que

maneira as condições existentes para perceber uma consciência imaginativa se

assemelhariam às condições de uma consciência em geral?

Em certos momentos, há o endosso de Sartre às idéias de Husserl, em

outros instantes, Sartre parte do ponto deixado pelo filósofo nascido na atual

república checa, patrono da Fenomenologia. De acordo com Husserl, é a

imaginação que nos permite escapar das restrições da realidade imediata e

considerá-la com um olhar crítico. Uma forma de transcender o real e nos projetar

no possível. Tal posicionamento que é corroborado pelo francês e que está em

intensa consonância com o que tenciono estabelecer como um enfoque prolífico

para uma leitura crítica da literatura de fantasia para crianças e jovens. É o que

enfatizo como sendo a cunha interpretativa que se distingue da linha mais

tradicional de análise da literatura infantil e juvenil, que chamo de “encanto

crítico”.

A partir do encanto, do enlevo, da fruição, do onírico, do devaneio, do

fantástico (e do fantasioso) que é característico ao gênero, emerge um insight

percuciente que vai precisamente ao ponto nevrálgico da essência do objeto (ou

do fenômeno). A apreensão do real, em radicalidade, apenas pode se dar por

intermédio do imaginário. A citação abaixo é extensa, mas se mostra como

indispensável, já que trafega em assemelhada digressão:

A razão para esta complexa combinação do real e do irreal, que na ontologia

tardia de Sartre emergirá como um dualismo entre ser e nada, é melhor exposta

pelo próprio autor: ‘O imaginário aparece no alicerce do mundo, mas

reciprocamente toda a apreensão do real enquanto mundo implica uma

ultrapassagem oculta pelo imaginário. Toda a consciência imaginativa usa o

mundo como uma base negada do imaginário e reciprocamente todas as

consciências do mundo chamam e motivam um consciência imaginativa como

alcançada de um sentido particular da situação... Então a imaginação, longe de

aparecer como uma característica real da consciência, se torna uma essencial e

transcendental condição da consciência. 145

145

KEARNEY, Richard. (1991). p. 69. “The reason for this complex pairing of the real and the

unreal, which in Sartre later’s ontology will emerge as a dualism of being and nothingness, is best

expounded by the author himself: The imaginary appears on the foundation of the world, but

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117

A despeito de suas contribuições positivas e fundamentais para o campo

filosófico, e, de forma mais específica para o presente estudo, na seara do

imaginar, a verdade é que também Sartre ainda não alcançou o patamar de uma

teoria da fantasia, uma poética do imaginar que não apontasse fissuras. Causa

espanto sua tendência a patologizar a imaginação. Em um viés comprometido e

esquemático, quase que evocando uma leitura atualizada do platonismo, dividirá a

imaginação em suas expressões normais e anormais.

Como expressões normais teríamos o sonho, a paixão passageira, a

fascinação e mesmo a apreciação estética, a fruição barthesiana. Já como

manifestações anormais da imaginação, encontraríamos a alucinação, a

esquizofrenia, a neurastenia. Mas não tenho condições de me aprofundar em tal

vertente psicológica. Poderia, no entanto, perguntar se seriam os indícios iniciais

da doutrina existencialista, com o ser humano não passando de uma criatura

absurda, inútil e nauseante. Kearney é que dá o fecho para o diálogo do

existencialismo sartreano com a imaginação: "O que a filosofia da imaginação

existencialista de Sartre falhou em endereçar adequadamente foi o fato de que se a

realidade sem ficção é cega, a ficção sem realidade não possui força." 146

Um outro filósofo importante para caminho de investigação dos

desdobramentos filosóficos da imaginação é Gaston Bachelard. A fenomenologia

da imaginação, para Bachelard, ainda que fundada na proposição do

questionamento da existência, da ontologia, não se esquiva em questionar os

paradigmas da ciência, desvelar com rigor o modelo epistemológico tradicional,

por em xeque o espírito científico. Libertando-se das amarras cartesianas (ainda

muito fortes em Husserl e em Sartre), o autor de O novo espírito científico

concebe o ser humano como um ser des-centrado, nutrido por uma força poética

transbordante, que transcende ao seu controle. Expõe assim a falível faceta

humana trazida por Freud: o homem não é o senhor do seu próprio castelo.

reciprocally all apprehension of the real as world implies a hidden surpassing towards the

imaginary. All imaginative consciousness uses the world as the negated foundation of the

imaginary and reciprocally all consciousness of the world calls and motivates an imaginative

consciousness as grasped from the particular meaning of the situation... So imagination, far from

appearing as an actual characteristic of consciousness, turns out to be an essential and

transcendental condition of consciousness.” 146

KEARNEY, Richard. (1991). p. 78. “What Sartre’s existential philosophy of imagination failed

to address adequately is the fact that if reality without fiction is blind, fiction without reality is

powerless.”

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De acordo com o pensamento de Bachelard, a criação científica e a

criação poética possuem a mesma origem poética, ou melhor, poiética, de poiesis,

uma poiesis mais profunda na qual imaginação e realidade constroem e

reconstroem a outra. Para o autor de A psicanálise do fogo, a criatividade não se

configura como negação do ser, mas sim, um lampejo do ser na imaginação.

Costura imaginação com filosofia, estabelecendo a necessidade de uma

fenomenologia da imaginação. Nas suas próprias palavras, ‘visando esclarecer o

problema da imagem poética, filosoficamente, nós devemos possuir o recurso de

uma fenomenologia da imaginação’. E corrobora Kearney, “toda a fenomenologia

da imaginação de Bachelard está relacionada com a ideia de fornecer uma

justificativa para uma interpretação dialógica da imagem.” 147

Retomo Sartre, contrapondo-o a Bachelard, pois o autor de O ar e os

sonhos, rejeita o solipsismo de Jean-Paul Sartre e considera a imagem como o

degrau de Si para o Outro. A mescla, a imbricação, a relação simbiótica entre

imagem e imaginação permite que eu desenvolva um desdobramento que

estabelece que a imaginação é o degrau de Si para o Outro, ao permitir a trajeto do

ausente em direção ao presente, ‘presentificando’ (e aqui emprego o termo sem

receio de ser acusado de tautológico) o que é apenas uma possibilidade, tornando

real aquilo que não é, ainda que seja na mente, no onírico, no delírio, no

fantasioso, enfim, é fundamentalmente contrário ao solipsismo, desconectado

como Outro, como o externo, como o exterior, pois traz a alteridade para articular

com a subjetividade, num confronto que pode ser também um conluio.

Ainda discutindo a poética do imaginar com Richard Kearney, resgato o

extenso excerto que elucida bem a questão do Si, do Outro, da imaginação e desta

interrelação:

Tanto para Sartre quanto para Bachelard, a análise fenomenológica da

imaginação envolve conclusões ontológicas – um desvelar da essência do nosso

ser-no-mundo. Mas, se o primeiro descreve a existência imaginativa do homem

como fundamentalmente “ipsorelativa”, o segundo pinta um quadro inteiramente

diferente do imaginador como “aliorelativo”, isto é, intencionalmente direcionado

para o Outro ao invés do que para Si. Similarmente, enquanto Sartre

147

KEARNEY, R. (1991). p. 90. “For Bachelard creativity is not negation of being, but ‘a flare-up

of being in the imagination (...) Bachelard insists, in terms of phenomenology – ‘In order to clarify

the problem of the poetic image, philosophically, we shall have to have recourse to a

phenomenology of the imagination’ (...Bachelard’s whole phenomenology of imagination is

concerned with providing a justification for a dialogical interpretation of image.”

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frequentemente parece considerar a imaginação como um modo particular da

intencionalidade que conduz à descoberta do poder fundamentalmente negador

da consciência, Bachelard reverte a ênfase e considera a negação como uma das

muitas forças da imaginação. Embora ele concorde com a definição sartreana de

imaginação como uma força sui generis distinta da percepção e da concepção, ele

vê esta distinção como a base para interrelação prolífica. Assim Bachelard pode

sustentar que “o que o homem imagina, dita o que ele compreende; e que ‘é

necessário imaginar muito para que possamos pensar, e então realizar”. 148

É muito estimulante verificar a subversão trazida por Bachelard ante os

séculos da tradição filosófica de octanagem racionalista: é o que o homem

imagina que regula a sua compreensão e não o contrário, é imperativo e

primordial que ele inicialmente imagine, para só então, pensar. E uma vez

pensado, passar à realização, construção da realidade. “Se não podemos imaginar,

nós não podemos prever... a função do real e a função do irreal devem ser feitas

para cooperar.” 149

Uma das pedras de toque do pensamento de Bachelard é que, ao negar a

realidade, a imaginação não está se direcionando ao nada, mas pavimentando a

trilha para que ocorra uma redenção do real. Dito de outra forma, o imaginário,

em sua concepção não é um “mundo de i-realidade”, mas de “sobre-realidade”.

Não de trata de uma negação da realidade per se, mas apenas a casca ossificada e

habituada da realidade. Ela não anula o mundo real; ela mobiliza seus potenciais

de transformação. 150

Ainda de acordo com o conceito de uma dimensão de sobre-

realidade, e não de i-realidade, que trafega na negação e na ausência, para

Bachelard, a imaginação “fabrica imagens da realidade; é uma força que forma

148

KEARNEY, R. (1991). p. 92. “For both Sartre and Bachelard, the phenomenological analysis

of imagination involves ontological conclusions – a disclosure of the essence of our being-in-the-

world. But, whereas the former describes man’s imaginative existence as fundamentally

‘ipsorelative’, the latter paints an entirely different picture of the imaginer as ‘aliorelative’, that is,

intentionally directed towards the other rather than the self. Similarly, while Sartre often appears

to regard imagination as one particular mode of intentionally which leads to the discovery of the

fundamentally negating power of consciousness, Bachelard reverses the emphasis and regards

negation as but one of the many powers of imagination. Through he agrees with Sartre’s

definition of imagination as a sui generis power distinct from perception and conception, he views

this distinction as the basis for a fruitful interplay. Thus Bachelard can hold that ‘what man

imagines dictates what he perceives’; and that ‘it is necessary to imagine too much in order that we

may think, and so realize, enough’. 149

KEARNEY, R. (1991). p. 94. “If we cannot imagine, we cannot foresee... the function of the

real and the function of the irreal must be made to cooperate.” 150

KEARNEY, R. (1991). p. 93 “(…) It does not annihilate the real world; it mobilizes its

potencies of transformation.

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imagens que ultrapassam a realidade visando mudar a realidade. É uma força de

sobre-humanidade.” 151

Mais adiante, discutirei a linha de pensamento, esboço de análise crítica

que tenho denominado de “encanto crítico”, que define a fantasia como passível

de ser considerada como ferramenta filosófica, posto que a imaginação seria uma

forma de apreender a realidade, considerando o pensamento de Paul Ricoeur que

estabelece a metáfora como forma de redescrever a realidade e, em minha opinião,

que os criadores de literatura de fantasia (e também os poetas, não abordados

neste estudo) seriam, em radicalidade, críticos da realidade, filósofos / pensadores,

portanto. Bachelard, partindo da etimologia, traça esclarecedora trilha que vai da

imaginação e confere status de filósofos aos artistas.

Brincando com a etimologia grega do termo, ‘phantasia’, Bachelard afirma que é

precisamente porque a imaginação (phantasia) está relacionada com ser na sua

origem e emergência (phainesthai) que ela clama por uma fenomenologia

(phainomenon). E neste contexto Bachelard aprova totalmente a máxima de Van

der Berg de que “poetas e pintores são fenomenologistas natos” 152

Conforme o autor de A água e os sonhos, “a imagem literária não vem

para vestir uma imagem nua ou para fornecer uma palavra a uma imagem muda.”

É mais que isso. Segundo Bachelard, “a imaginação, em nós, fala... toda atividade

humana deseja falar. Quando esta palavra se torna consciente de si própria, então

a atividade humana deseja escrever... A literatura não é, portanto, a ramificação de

outra atividade. É o preenchimento do desejo humano como ele emerge na

imaginação”. O vínculo profundo entre imaginação e linguagem, com o viés

fenomenológico, foi explorado inicialmente por Bachelard e depois por Paul

Ricoeur e demais fenomenologistas hermenêuticos.” Imaginação, linguagem,

crítica e criança (o ente que não fala) são elementos e dimensões que se trançam

em uma interação intensa. Já foi dito que a contribuição mais significante de

Gaston Bachelard para a fenomenologia da imaginação foi o desvendar do papel

poético da linguagem. Reforçando tal afirmação, fica o trecho do pensamento

151

KEARNEY, R. (1991). p. 93 ‘which fabricates images of reality; it is a power which forms

images which surpass reality in order to change reality. It is the power of a sur-humanity.” 152

KEARNEY, R. (1991). p. 93. “Playing on the Greek etymology of the term, ‘phantasy’,

Bachelard affirms that it is precisely because the imagination (phantasia) is concerned with being

in its origination and emergence (phainesthai) that it calls for a phenomenology (phainomenon).

And in this context Bachelard fully approves Van der Berg’s maxim that ‘poets and painters are

born phenomenologists’.”

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poético de Bachelard que com suas belas imagens, reforça a parelha poesia-

filosofia evocada pelo movimento romântico alemão:

A imaginação é a grande sintetizadora do nosso universo: ‘A imaginação possui a

força integradora da árvore. Ela é raiz e galhos. Vive entre a terra e o céu. A

imaginação vive entre a terra e o vento. A árvore imaginativa é

imperceptivelmente a árvore cosmológica, a árvore que resume o universo, que

faz um universo. 153

Outro pensador crítico que vale ser incluído em meu mosaico que percorre

os domínios da fantasia, do imaginário, da imaginação, do fantástico, ainda que ao

apagar das luzes deste capítulo, é Maurice Merleau-Ponty. Verdadeira referência

para os estudos de antropologia e de simbologia voltados para as épocas

ancestrais, o filósofo busca dar conta dos tópicos que não foram contemplados, ou

não foram aprofundados pelos seus antecessores. O que almeja, em verdade, é

uma ontologia dialética do imaginar, que ultrapasse as oposições dicotômicas, que

ultrapasse as aporias cristalizadas pela história do pensamento mágico-filosófico.

Segundo o próprio Merleau-Ponty, “a imaginação é dialógica”154

. A ideia de uma

imaginação dialógica, obviamente, em qualquer mínima discussão no âmbito

filosófico, convoca a pensar no termo ‘dialética’.

Merleau-Ponty compreende ‘dialética’ tanto no sentido tradicional quanto

moderno do termo – no sentido tradicional na extensão de que suas reflexões

sobre o imaginar constituem um ‘diálogo’ entre a posição contrária dos seus

parceiros-filósofos (em particular Husserl, Sartre, Heidegger e Bachelard); no

sentido moderno na acepção de que o seu raciocínio é profundamente informado

pelo método dialético desenvolvido por Hegel e Marx. A proclividade cartesiana

em torno da antítese – que ainda assombra as oposições husserliana e sartreana

entre imanência e transcendência, o imaginário e o real, é superada por um

impulso hegeliano em direção à síntese e à sinergia. 155

153

KEARNEY, R. (1991). p. 94. “Imagination is the great synthesizer of our universe:

‘Imagination has the integrating power of the tree. It is root and branch. It lives between earth and

sky. Imagination lives in the earth and in the wind. The imaginative tree is imperceptibly the

cosmological tree, the tree that summarizes a universe, which makes a universe.” 154

KEARNEY, R. (1991). p.115. “Imagination is dialogical.” 155

KEARNEY, R. (1991). p.113. “Merleau-Ponty understands ‘dialectics’ in the both traditional

and modern senses of this term – in the traditional sense to the extent that his reflections on

imagining constitute a ‘dialogue’ between the adversarial position of his fellow-philosophers (in

particular Husserl, Sartre, Heidegger and Bachelard); in the modern sense to the extent that his

reasoning is deeply informed by the dialectical method advanced by Hegel and Marx. The

Cartesian proclivity toward antithesis – which still haunts the Husserlian and Sartrean oppositions

between immanence and transcendence, the imaginary and the real, is overridden by a Hegelian

drive towards synthesis and synergy.”

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Diálogo e dialética, síntese e sinergia. Mas a questão pode descer a níveis

mais profundos. Maurice Merleau-Ponty considera que a imaginação teria a

faculdade de acessar as dimensões ocultas do Ser. Acesso privilegiado que seria

vedado à racionalidade. É o que chama de “o invisível”, que pode ser imaginado

mas não pode ser visto. Ele não é não-existente. Ele pré-existe no visível. Presença

na ausência ou do ausente. É a presença do imanente, o latente, ou do oculto. Nas

palavras escritas por Kearney, ao discutir o pensamento de Merleau-Ponty, “o

imaginário é muito mais próximo e muito mais distante do real – mais próximo

por estar no corpo como um diagrama da vida do real... mais distante do real

porque a pintura é como um análogo ou retrato apenas de acordo com o corpo;

porque não apresenta a mente com uma oportunidade de repensar a relação

constitutiva das coisas; porque ao invés... oferece à visão suas tapeçarias internas,

a textura imaginária do real” 156

. Eis a chave, na minha opinião, do que se propõe

a literatura de fantasia e, talvez, por extensão, toda a arte literária, investigar a

textura imaginária do real! Segue Kearney, palmilhando a filosofia da imaginação

que esbarra na ontologia, na estética, na filosofia da linguagem e na ética (ao

intercalar o movimento Si-Outro), como se pode atentar ao ler os trechos abaixo:

A transcendência da realidade da arte é, para Merleau-Ponty, alicerce

fundamental do Ser que o preserva do veredicto do nada. Embora ele

frequentemente mencione a imaginação tanto como presença-na-ausência quanto

como ausência-na-presença, é sempre como uma ausência e como uma presença

que pressupõe o Ser. A visão imaginativa não é, ele salienta, “um certo modo de

pensamento ou de presença em si mesmo; ela é ‘o modo que me é dado para estar

ausente de mim mesmo, para estar presente na fissão do Ser a partir do meu

interior – a fissão em cujo final, e não antes, eu retorno para mim. 157

156

KEARNEY, R. (1991). p.116. The picture and the actor’s fantasy-imaginary are not devices to

be borrowed from the real world in order to signify prosaic things that are absent. For the

imaginary is much nearer to, and much farther away from, the actual – nearer because it is in my

body as a diagram of the life of the actual... farther away from the actual because the painting is an

analogue or likeness only according to the body; because it does not present the mind with an

occasion to rethink the constitutive relations of things; because, rather... it offers to vision its

inward tapestries, the imaginary texture of real.” 157

KEARNEY, R. (1991). p.118. “Art’s transcendence of reality is, for Merleau-Ponty, always

grounded in a fundamental bedrock of Being which saves it from the verdict of nothingness.

Though he frequently speaks of imagination as both a presence-in-absence and an absence-in-

presence, it is always as an absence and a presence which pressuposes Being. Imaginative vision is

not, he points out, “a certain mode of thought or presence to itself; it is the ‘means given me for

being absent from myself, for being present at the fission of Being from inside – the fission at

whose termination, and not before, I come back to myself.”

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Merleau-Ponty e Bachelard transcendem o dualismo de Sartre da

imaginação e da realidade ao declararem que a função primária da imaginação é

um diálogo entre o interior e o exterior, entre o ser que está no mundo e o mundo

que está no ser: uma reciprocidade enraizada em um Ser fundamental que está em

ambos. Para concluir, o fecho que, com acurácia milimétrica, sintetiza a

contribuição do autor de O olho e o espírito: “Merleau-Ponty traz a imaginação

de volta para a vida ao demonstrar que, antes de tudo, a imaginação nunca deixou

a vida real.” 158

158

KEARNEY, R. (1991). p. 120.“Merleau-Ponty brings imagination back to life by

demonstrating that imagination never left real life in the first place.”

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