3 Amarelo ou Imaginário: relicário de imagens · 87 3 Amarelo ou Imaginário: relicário de...
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87
3 Amarelo ou Imaginário: relicário de imagens
“Todo trabalho de decifração
se impõe a partir de indícios frágeis”. 82
Michel Vovelle
“Quanto mais precisa e clara for a Razão,
melhor a Fantasia irá torná-la.” 83
John Ronald Reuel Tolkien
“O imaginário remete a uma dimensão ontológica.” 84
Monique Augras
Conforme explicitado no primeiro capítulo desta tese, apresentado à guisa
de introdução, se na seção anterior tencionei fazer uma revisão crítica das
denominações do conceito de Fantasia, com o objetivo de compreender a
distinção do termo em relação ao imaginário ou à imaginação, ou até mesmo
verificar a pertinência (quiçá a existência) desta mesma distinção, a presente parte
do trabalho segue a percorrer a trilha do imaginário. E efetivamente o faz, por
vezes diferenciando imaginário de imaginação; por outras, não fazendo distinção
entre os nomes. O motivo de tal aparente confusão é exatamente problematizar tal
“taxonomia” e expor a dificuldade do estabelecimento de nomenclatura. Como se
dá, então, tal articulação? É a fantasia que se nutre da imaginação? Como
acontece? Seria o imaginário um espaço no qual se desenvolve a fantasia?
É certo que, para alguns, soe contraproducente minha abordagem do termo
fantasia no capítulo de imaginário, de maneira análoga o que já feito (quando
enfoquei o imaginário na parte destinada à Fantasia, capítulo 2. Laranja ou Fancy-
o-rama: caleidoscópio de fantasia), entretanto necessito explicar de forma
explícita que esta via é mesmo de dupla direção, pois marcante é a contaminação
e a sinergia existente entre os polos. A rigor, poderia falar de vértices, pois não
apenas seriam Imaginário e Fantasia, mas também Imaginação, Fantástico, para
não expandir com Invenção, Criatividade, dentre outras dimensões, como bem o
82
VOVELLE, Michel. Ideologias e mentalidades. São Paulo: Brasiliense, 1987. 83
TOLKIEN, J. R. R. “On Fairy-Stories” in: Tree and Leaf. “Boston (EUA): Houghton Mifflin
Company, 1964. 84
AUGRAS, Monique. “Magia do Imaginário, Imaginário da Magia”. Petrópolis; Rio de
Janeiro: Vozes; Editora da PUC-Rio, 2009.
88
fez Bruno Munari, em referência outrora mencionada. Ocorre-me, apenas dar nó
de arremate à passagem de um capítulo para outro, com a afirmação do
pesquisador estadunidense Richard Mathews, em seu estudo “Fantasia: a
liberação da imaginação” (“Fantasy: the liberation of imagination”), “A fantasia
destranca a imaginação” 85
.
Seria a imaginação a fonte, a pulsão inicial, o drive primordial? Seria o
adjetivo já devidamente substantivado “imaginário” tão somente um repositório
de imagens, geradas pela imaginação? Ou seria o imaginário seria o motor,
produzindo soluções impensadas pela racionalidade? Inquietações que vêm e vão,
perpassando toda a construção de um conhecimento que não se quer estático, que
se pretende renovado e renovador, propositivo de novas searas teóricas, de novas
concepções críticas.
O livro “O imaginário no poder: as crianças e a literatura fantástica”, da
pedagoga e psicóloga francesa Jacqueline Held enfatiza a literatura fantástica
destinada às crianças, ainda que não aprofunde a discussão relacionada com a
ontologia dos nomes “fantástico”, “fantasia”, “imaginação”, “imaginário”, realiza
fundamental análise que recupera e valoriza a fantasia, a retirando de sua
condição de subordinação.
É como ela nos assinala: "Digamos, desde já, e claramente: o imaginário
de que nos ocuparemos não é esse pseudo-imaginário com função de
esquecimento, de exorcismo, de diversão, que desvia a criança dos verdadeiros
problemas, do mundo de hoje e de amanhã. 86
Também comungo com a posição que não se debruça em um pseudo-
imaginário. Em seu estudo, Held toma “imaginação”, “imaginário”, “fantástico” e
“fantasia” como minúcias estilísticas de uma mesma dimensão: o irreal elaborado
pela criança. E é bem interessante que ela atribua ao imaginário, ao irreal,
tamanha importância, reforçando seu caráter de protagonismo em um jogo cênico
no qual a Razão costuma aparecer muito mais do que a “louca da casa”. Duas
frases da estudiosa francesa Jacqueline Held em seu livro anteriormente citado “O
imaginário no poder: as crianças e a literatura fantástica” são dignas de
85
“Fantasy unlocks imagination”. in: MATHEWS, Richard. Fantasy: the liberation of
imagination. 86
HELD, Jacqueline. O imaginário no poder: as crianças e a literatura fantástica. São Paulo:
Summus Editorial, 1980. p.22.
89
apresentação e de seguido comentário: “O imaginário é o motor do real” e “A
leitura do real passa pelo imaginário”.
Tomar o imaginário como motor do real não é apenas uma bela frase, nos
parâmetros da fruição estética. Trata-se de uma radical alteração no centro de
gravidade do conhecimento do mundo como o concebemos. Confere um estatuto
ao imaginário que o torna indispensável ao real; afinal, sem motor, as coisas não
andam. Assim, seria o imaginário que colocaria o real em curso, como força
motriz, na forma de essência e não como apêndice na instância da colateralidade.
No caso da outra afirmação – a leitura do real passa pelo imaginário –, a
importância se torna ainda maior para este estudo, considerando a relevância e o
peso que o termo leitura possui em nossa área (teoria da literatura infantil). E,
além disso, se afina com a minha proposição filosófica que concebe a fantasia
como espaço fulcral no rol de recortes metodológicos que se arvoram a abarcar a
totalidade dos fenômenos e acontecimentos do mundo.
Ainda que, para muitos, possa pareça tácito, vale considerar o
esclarecimento de que, na frase de Held, a leitura é tomada não como mera
decodificação, mas como interpretação, em uma perspectiva hermenêutica de
apreensão do real, na qual o próprio processo de busca pelo sentido é, também
parte de sua construção. Como travessia, a leitura do real passa pelo imaginário;
como viés, toma o imaginário como ponto de vista a fim de, enxergar o real como
as lentes esmeraldas dos óculos do Mágico de Oz. Mas o que afirmo é que não
temos condições de “enxergar” o real a olho nu. Sem dúvida que concordo com a
premissa de que o real, para o ser humano, se desvela enquanto linguagem. Penso,
todavia, como corolário, que nossa limitação não apenas é resolvida pela
modulação / mediação do real pela linguagem, mas para além da apreensão e da
compreensão, a fantasia se insere como viés propositivo de transposição da
realidade, de estabelecimento de nova realidade, uma sobrerrealidade.
Cabe trazer à tona a discussão acerca da forma (ou das formas) pela qual
(pelas quais) o real afeta o sujeito. Os estímulos existentes no real são captados
pelo indivíduo em função não apenas de sua condição perceptiva como também
modulados em função da sua estrutura de apreensão de linguagem, pois os cinco
sentidos seguramente não dão conta da totalidade do real. Nem os cinco sentidos,
nem a linguagem, nem o ser humano dará conta e, para o bem ou para o mal, terá
que seguir com esta ferida narcísica pelos tempos imemoriais. Ou talvez seja
90
exatamente – e exclusivamente o fantástico –, o imaginário (caso se assuma
fantasia e imaginário como faces da mesma lâmina de um machado a abrir
picadas na floresta de signos, clareiras em um bosque, não da ficção, mas da
realidade que nos transpassa) que possa traduzir a condição “hipotrélica” do real.
Recordo a afirmação de Hegel, através da análise do filósofo brasileiro
Paulo Meneses, que, nas suas “abordagens hegelianas”, expõe bem o lugar de
onde o filósofo alemão fala, na questão da compreensão do real em articulação
com o racional.
O racional é o real”. Nenhuma frase de Hegel provocou tanto escândalo.
Contudo, ele não apresenta essa identificação como invenção, mas a atribui a
Platão. Lê-se no Prefácio da Filosofia do Direito e do Estado. “Mostrou Platão o
grande espírito que era, pois, precisamente, o princípio em volta do qual gira toda
a revolução mundial que então se preparava. “O que é racional é real e o que real
é racional. 87
Ainda que o aforismo hegeliano “O que é racional é real e o que é real é
racional” não seja tão conhecido como a máxima cartesiana, “Penso, logo existo”,
pode-se afirmar que ele se entranhou de tal forma na História das Mentalidades do
Ocidente que, hoje em dia, é difícil para o público não especializado não
considerar como axioma a ideia de que o racional se iguala ao real, de que a
realidade equivale à razão.
Mesmo que a ideia da indissociabilidade existente entre a razão e o real
perdure, é notável o aumento de estudos em contraposição a esta tendência.
Mencionei o clássico estudo da década de 80, desenvolvido por Held. Outra
estudiosa – também francesa – do tema, é Monique Augras. Radicada no Brasil
desde 1961, a pesquisadora tem se dedicado ao estudo das religiões afro-
brasileiras há cerca de quatro décadas. Em Imaginário da magia, magia do
imaginário, recente produção crítica (de 2009), ela aborda o diálogo dos
imaginários sociais entre França e Brasil, focando principalmente as religiões
afro-brasileiras.
Cumpre ressaltar que tem sido notado um crescimento significativo dos
estudos antropológicos, filosóficos, sociológicos e de teoria literária que tenham
como foco os saberes que não se filiam à tradição judaico-cristã, como forma de
questionar a forma tradicional e hegemônica do pensamento ocidental por demais
87
MENESES, Paulo. Abordagens hegelianas. Rio de Janeiro: Vieira & Lent, 2006. p.96.
91
fincada na racionalidade. Para o presente estudo, contudo, o que interessa é o
último capítulo “Mil janelas: teóricos do imaginário”, no qual ela esclarece os
variados enfoques teóricos que sustentem a utilização da palavra “imaginário”.
Dirigindo-se, principalmente, aos neófitos no tema, Augras consegue habilmente
se posicionar sem descuidar do rigor necessário à uma exposição de cunho
pedagógico, quase didático. Vale agora, no presente texto, a explicação acerca do
motivo da inclusão e dos comentários realizados como se utilizasse lupa que
incide em uma profusão de trechos do capítulo citado da publicação de Augras. Se
o fiz, foi com o mero objetivo de cobrir o que não foi atendido no subcapítulo
“2.1. – Conceitos que se (con)fundem”, em diálogo travado com a panorâmica das
linhas teóricas que se debruçam sobre o tema do imaginário.
Antes de proceder na interlocução com o mapeamento da “teoria do
imaginário”, vale enfatizar ser de grande valia o depoimento pessoal de Augras
entremeado com jargão teórico: ela afirma que mais do que levantamento
sistemático, a revisão teórica é também do fruto de um percurso pessoal – similar
à minha trajetória – conforme indicado no início desta tese, na constante busca por
mais solidez ao embasar suas pesquisas iniciadas no início dos anos 1980. A
postura crítica que considera o sujeito pesquisador também em sua faceta de
transbordamento da racionalidade está em total sintonia com a proposição de
compreensão da realidade no enfoque “filosofantástico”.
Monique Augras começa seu panorama sobre o imaginário com o filósofo
existencialista Jean Paul Sartre que escreveu O imaginário, em 1940. E recorda,
muito propriamente que, tributários de Descartes, os primeiros autores a abordar o
tema o situam no diapasão da irracionalidade e da ilusão. Em O imaginário, Sartre
inicia estabelecendo que a imagem “é um modo pelo qual a consciência se dá um
objeto”, ou seja, trabalha com uma perspectiva peculiar da imagem enquanto
representação, prescindindo da presença do objeto e se opondo à sua percepção
propriamente dita. Para o autor de O ser e o nada, imagem e percepção se
excluem mutuamente, o que possibilita que a imagem crie um análogon do
objeto, com a intuito de possessão. Pontua Augras a afirmação de Jean Paul
Sartre: "o pensamento toma a forma de imagens quando quer se intuitivo, quando
92
quer fundamentar as suas afirmativas na visão de um objeto. Nesse caso, tenta
trazer o objeto à sua presença, para vê-lo, ou melhor dizendo, para possuí-lo." 88
Altamente peculiar, a curiosa opção pela “possessão” exercida pelo
pensamento, em Sartre, é uma linha de raciocínio que foi duramente criticada pelo
antropólogo Gilbert Durand, um dos teóricos de grande destaque no campo do
estudos do imaginário. O caráter “mágico” está presente na análise racional que é
desenvolvida. E a corda será tensionada ao máximo, até o seu limite. Pois além do
real e do imaginário estarem em oposição, há um menosprezo dirigido ao
imaginário, que é desqualificado e confinado ao plano da valoração inferior, na
mirada da negatividade, conforme assevera Sartre, quando diz que
Para atuar sobre estes objetos irreais, é preciso que eu me desdobre, que eu me
irrealize eu próprio. (...)
No objeto irreal, somente há um poder, e ele é negativo.
(...) o real e o imaginário não podem coexistir. 89
Não obstante a importância da contribuição do autor de A náusea para o
pensamento contemporâneo, como resultado do impacto da Segunda Guerra
Mundial, é necessário pontuar que, mesmo tendo sido um precursor nos estudos
do imaginário, Sartre, como Platão, muito contribuiu para o juízo ideológico que
desqualifica o imaginário e patologiza a imaginação. Chega mesmo a definir a
esquizofrenia como “patologia da imaginação”. Para ele, as alucinações, as
obsessões, a esquizofrenia são exemplo do que ocorre quando se opta pelo
imaginário. Imaginação como enfermidade não há de ser desejada por ninguém.
Natural que surja a postura de descrédito, repulsa ou desprezo. Ao que parece, há
uma retomada do ranço higienista, na positivista sanha por normatização,
característico do período compreendido entre o final do Século XIX e o início do
Século XX.
Para concluir a passagem pelas concepções sartreanas acerca do
imaginário na visão de Augras, torna-se imprescindível marcar a posição do
filósofo autor de As palavras, pois reforçando a perspectiva de cura, de
restabelecimento da norma, ele encara que o mundo imaginário é o antimundo,
88
SARTRE, Jean Paul. “O Imaginário”. in: AUGRAS, Monique. “Magia do Imaginário,
Imaginário da Magia”. Petrópolis; Rio de Janeiro: Vozes; Editora da PUC-Rio, 2009. 89
SARTRE, Jean Paul. “O Imaginário”. in: AUGRAS, Monique. “Magia do Imaginário,
Imaginário da Magia”. Petrópolis; Rio de Janeiro: Vozes; Editora da PUC-Rio, 2009.
93
que, protagonista, possui o sujeito, levando-o para o reino da irrealidade. Ou seja,
descarta qualquer possibilidade do imaginário estar em intenso diálogo e
elaboração com o paradigma estético, circunscrevendo-o ao espaço da psicose.
Outra contribuição deletéria que se pode inferir do estudo O imaginário,
mas que comentarei tangencialmente, é a postura filosófica que referenciará, de
forma determinante, o imaginário não como alteridade per si, mas tão somente
como ligeiro desvio do estabelecido. É assim que temos o anti-mundo,
referenciado no mundo; o irreal, referenciado no real. Chamados de contraponto,
de polo oposto, mas não de um novo estatuto, de uma nova ordem, em um distinto
formato, operando, em radicalidade, na clave da diferença que constroi.
Todavia, o segundo teórico apresentado no esquema de Augras também
não atende às minhas expectativas ou necessidades. O notório psiquiatra Jacques
Lacan, que tantas contribuições trouxe à psicanálise e à filosofia, responsável por
estabelecer uma tríade conceitual tão marcante quanto a que foi apresentada pelo
pai da psicanálise Sigmund Freud 90
– real, simbólico e imaginário –, exatamente
na seara que nos mobiliza, lamentavelmente traz uma perspectiva que ainda não
alça voos mais ousados. Muito embora seja personagem principal de toda uma
contribuição de fundamental importância não apenas para sua área, mas também a
filosofia e o arcabouço ocidental das teorias da episteme – e aqui demonstro certo
apreço pela importância do estruturalismo, inclusive na minha formação, posto
que sou imigrante das ciências biológicas – Lacan traz uma vertente que, se por
um lado, avança bastante com suas novas perspectivas, por outro lado, não deixa
de permanecer ancorado no desvalor atribuído à imaginação, pois sua concepção é
do imaginário enquanto alienação.
Para tal pensador francês, o imaginário é uma etapa a ser superada para a
constituição do sujeito. É fonte de logro e engano e, de forma um tanto
contraditória, define que o único real que faz algum sentido é o real abstrato da
matemática, na opinião de Jacques Lacan, conforme se pode depreender do
seguinte excerto, ao formular que: "Apenas a matematização alcança algum real,
real este que nada tem a ver com aquilo que o conhecimento tradicional vinha
90
Faço alusão, naturalmente, à tríade freudiana: id, ego e super ego.
94
sustentando, que não é o que ele pensa como sendo a realidade, mas sim uma
fantasia." 91
Não é minha intenção, nem cabe discutir aqui, ou muito menos possuo
estofo intelectual na área psicanalítica para encetar tal digressão, mas não é a
própria matemática, uma das ciências que mais articula o abstrato com o real? Se
é o real abstrato que faz sentido, não é exatamente a abstração, uma forma de
elaboração da fantasia, de pensamento que é da ordem da imaginação, do
imaginário?
Para o presente estudo, entretanto, o que se pode retirar de mais importante
não é ambiguidade lacaniana – que pode mesmo ser considerada como uma
posição de resistência à hegemônica racionalidade platônica – mas o fato de ele
não avançar do patamar definido pelo senso comum, no qual a imaginação e o
imaginário, que é o nosso tópico de abordagem, estão relacionados à ilusão,
adquirindo um caráter negativo. E tal postura está bem explicitada, como foi
propriamente apontada por Laplanche e Pontalis: "o uso específico que Lacan faz
da palavra imaginário não deixa de manter relação com o sentido usual desse
termo, já que toda conduta, toda relação imaginária está, segundo Lacan,
essencialmente dedicada ao engano." 92
Seguindo a trilha indicada por Augras, surge no cenário o filósofo Gaston
Bachelard. Esta passagem não se dá de forma brusca, pois o autor de A poética do
espaço é um contraponto à concepção lacaniana do imaginário, como se verá mais
adiante. Tendo sido originalmente um filósofo da ciência, o autor de O
materialismo racional (1953), enveredou nos estudos sobre imaginação poética, a
partir de suas reflexões epistemológicas e seus questionamentos do método
dedutivo euclidiano. Contrário aos estruturalistas e aos positivistas, Bachelard
fincou posição com o seu “humanismo” subversivo, capaz de reinventar o
Homem, contra os idealistas, indo para além das noções convencionais de sujeito
e objeto.
Em verdade, o autor de O novo espírito científico (1934) era um pensador
cindido, que levou toda sua vida dedicando-se a uma jornada dupla que se dividia
entre o aprofundamento epistemológico, filiado ao racionalismo e a vertente da
91
AUGRAS, Monique. “Magia do Imaginário, Imaginário da Magia”. Petrópolis; Rio de Janeiro:
Vozes; Editora da PUC-Rio, 2009. 92
AUGRAS, Monique. “Magia do Imaginário, Imaginário da Magia”. Petrópolis; Rio de Janeiro:
Vozes; Editora da PUC-Rio, 2009. p. 214
95
hermenêutica da criação poética, que trabalhava com as imagens elementares,
ancestrais, como se pode depreender no texto citado, em primeira fonte, por
Augras, no qual o próprio Bachelard preconiza:
O filósofo que seguiu, com a maior nitidez possível, o eixo do racionalismo ativo
[...] deve esquecer o seu saber, romper com todos os seus métodos habituais de
pesquisa filosófica, se quiser estudar os problemas colocados pela imaginação
poética. 93
Muito embora tenha cunhado a impactante frase “Qualquer coincidência
entre pensamento e realidade é um monstro epistemológico”, o que sublinhava seu
bias de hiato entre pensamento e realidade, o pensador responsável pelo livro de
sublime título A psicanálise do fogo (1939) ocupa uma posição singular entre os
teóricos do imaginário, como também Maurice Merleau-Ponty e Paul Ricoeur.
O destaque ocorre pelo fato de ocupar lugar de precursor desta espécie de
filiação (dos autores dos emblemáticos livros O olho e o espírito e Tempo e
Narrativa, respectivamente), assim como em razão de representar um agudo corte
em uma quase esperada linhagem com Sartre e Lacan, como bem nos lembra a
psicóloga e pesquisadora do campo do imaginário social brasileiro Monique
Augras:
Gilbert Durand vê, na obra de Bachelard, a antítese de Sartre. (...) Bachelard
acaba por elaborar uma proposta antagônica à do psicanalista (Lacan). Não
somente abandona Freud por Jung, mas ainda faz do imaginário, em vez de um
modo de alienação, o lugar onde se elaboram os meios mais requintados de se
abrir ao mundo. 94
De modo de alienação à espaço de elaboração dos meios de abertura ao
mundo, a virada de postura epistemológica é digna de destaque. Que se saliente,
contudo, que o conceito de imaginário para Bachelard, é empregado de forma
híbrida com o de imaginação, condição que já foi discutida anteriormente como
sendo característica do tópico. Uma simplificação ligeira seria classificar como
mera confusão, opto por tomar como fusão de conceitos. O imaginário como
repertório, como repositório de imagens, é uma ideia disseminada que chega
mesmo a contaminar outras modalidades relacionadas dos estudos de Fantasia.
93
AUGRAS, Monique. p. 220. 94
AUGRAS, Monique. (2009). p.221.
96
Por exemplo, ao recuperar uma definição bachelardiana de imaginação (e não
imaginário, ou por outra, e também imaginário, ou como se imaginário fosse)
como um reino autônomo, irredutível a outros modos de conhecimento, Augras
toma a questão das imagens, ao escrever que
a imaginação constitui um reino autônomo, irredutível a outros modos de
conhecimento. Mais ainda: ao abrir a via imaginal de percepção do mundo e de
nós mesmos, o reino das imagens nos cria. E ele [Bachelard] conclui o livro [A
psicanálise do fogo] clamando pela necessidade de se estudar as manifestações
poéticas, reveladora da atuação dessa função criadora. 95
Toma contornos delicados a mescla de imaginário, imaginação e Fantasia.
O amálgama tende a assumir um caráter de potência sinergística, pois os
elementos tornam-se mais fortes quando em síntese. Ao estabelecer, por exemplo,
que a imaginação constitui um reino autônomo, autógeno, segue desenvolvendo o
raciocínio e afirma que “no plano psíquico, somos criados pela nossa fantasia” 96
.
De qualquer maneira, sua postura é primordial, se esquivando de
maniqueísmos. Ainda utilizando a formulação de Augras, “Bachelard consegue
falar, em sua obra, tanto da negatividade como da positividade do imaginário” 97
,
no que se distancia do negativismo sartreano que chega às raias da normatização
em moléstia mental. Para o autor de O ar e os sonhos, o imaginário é visto como
uma força positiva no sujeito, caracterizada pelo seu dinamismo em atualizar as
imagens internas e externas, que, em conseqüência, tomam feições de veículos de
potencializações de significação, que nos permitem descobrir a riqueza do cosmos
e do Ser. Primorosamente, a autora de O duplo e a metamorfose, postula: “O
imaginário remete a uma dimensão ontológica.” 98
. Tal afirmação, como feitio de
aforismo, não por acaso está como uma das epígrafes deste capítulo e se coaduna
com minha linha de raciocínio, com a postura de compreensão que persigo: o
caráter filosófico da fantasia.
À medida que fui travando contato com as referências sobre os estudos de
imaginário – cabe o comentário de que se os estudos disponíveis sobre Fantasia
são escassos, o mesmo não ocorre com os estudos acerca do imaginário – o nome
de Gilbert Durand foi surgindo como recorrente. Se mesmo hoje, o temos como
95
AUGRAS, Monique. (2009). p.218. 96
BACHELARD, G. In: AUGRAS (2009), p. 218. 97
AUGRAS, Monique. (2009). p.219 98
AUGRAS, Monique. (2009). p.219
97
uma referência para o tema, à época do seu lançamento, seguramente, As
estruturas antropológicas do imaginário foi um divisor de águas.
A ousada proposta de Durand, com certeza, é tributária de seu background
dos estudos, da postura, da concepção de cientista e de filósofo desenvolvidos por
Gaston Bachelard, de quem foi discípulo. A proposta de uma nova Ciência, de um
novo fazer científico, de uma nova epistemologia, além do desejo de se debruçar
sobre novos objetos de reflexão encontra centralidade nas pesquisas de Durand,
como aponta Augras em suas “mil janelas”: "O que (o antropólogo Gilbert
Durand) pretende, desde o seu livro fundador, As estruturas antropológicas do
imaginário, de 1960, é fazer da temática do imaginário uma confluência
unificadora de todas as ciências humanas e sociais." 99
Uma ciência que possa aliar imaginação e razão e que seja capaz de
abarcar todos os saberes é ambiciosa tomada de posição. Perspectiva
extremamente sedutora, em minha opinião. Contudo, verifica-se que a
contaminação da ciência pela arte não é inquietação contemporânea, como se
exemplifica a exposição de outros dois subsequentes trechos também retirados do
livro Imaginário da magia, magia do imaginário:
Homo animal symbolicum, esta sentença de Giambattista Vico (1725/1979) (...)
propõe levar até as últimas consequências o projeto de uma ciência nova baseada
na “sabedoria poética”.
Não há mais antagonismo entre razão e imaginação, que são, ambas ferramentas
na construção do mundo. 100
Já se depreende da interessante concepção de Vico que mais do que um
animal racional, o ser vivo possuidor de vinte e pares de cromossomos seria um
animal simbólico. Realmente, a compreensão de um mundo construído pela razão
e também pela imaginação se apresenta como muito pertinente, diria até, natural,
do que um mundo clivado apenas pela razão, mutilando ou apartando a
imaginação, tão constitutiva do ser humano. O estranhamento ocorre mais como
resultado da cisão razão / imaginação na tentativa de explicar a realidade
circundante. O olhar antropológico faz, naturalmente, que o ser humano seja
posicionado como centro da perspectiva, mas permite também que haja uma
articulação da razão e da imaginação não apenas para observação e mensuração
99
AUGRAS, Monique. (2009). p.221. 100
AUGRAS, Monique. (2009). p. 222.
98
dos fenômenos, mas também para uma ação mais engajada com a construção da
realidade.
Conforme Durand, a partir da leitura de Augras, “o imaginário – isto é, o
conjunto das imagens e das relações entre imagens que constitui o capital pensado
do Homo sapiens é a encruzilhada antropológica que permite esclarecer
determinado procedimento de uma das ciências humanas, por determinado
procedimento de outra dessas mesmas ciências.” 101
Importante conceito é o de trajeto antropológico, que situa a produção de
imagens em um percurso que vai desde o biológico até o sociocultural, de tal
modo que o imaginário pode ser estudado em qualquer ponto dessa trajetória,
sem que isso implique hierarquia (graus de verdade ou de ilusão, como em Sartre
ou Lacan) ou ruptura (oposição entre imaginário e racionalidade, como em
Bachelard). 102
O contraponto que o antropólogo francês faz à concepção que Jean-Paul
Sartre desenvolve em torno do imaginário é extremamente fecundo, pois tal
pulsão sempre foi acusada de escapista, alienante ou de fomentadora de
desequilíbrio. "O mergulho sistemático nas narrativas míticas ou nas produções
poéticas, longe de ser sinônimo de algum extravio em caminhos fantásticos, pode,
muito pelo contrário, ser garantia de equilíbrio."103
É trafegando a partir desta conceituação que o autor de A imaginação
simbólica desenvolve uma inovadora e necessária nova proposta epistemológica,
ao se posicionar, em radicalidade, contra o método científico clássico que se
fundamenta na indução e na dedução. Como já havia explicitado, meu incômodo e
minha inquietação emergem exatamente de uma crítica aguda à metodologia
científica enquanto possibilidade hegemônica de apreensão da realidade
objetivando o conhecimento e a transformação.
A “mitodologia” de Durand, em alusão óbvia à metodologia, aponta uma
saída que me parece bem perfilada com aquilo que defendo como possível
resultante simbiótica entre a fantasia e filosofia. Percorrer símbolos, mitos, saídas
encantadas e soluções mágicas com o intuito de refletir questões essenciais do
pensamento sempre me pareceu extremamente convidativo e prolífico ao nível
intelectual e não apenas encantador e atraente.
101
AUGRAS, Monique. (2009). p. 222 102
AUGRAS, Monique. (2009). p. 223. 103
AUGRAS, Monique. (2009). p.225
99
Face ao método científico – fruto do positivismo desencantado –, o autor propõe,
com o desassombro que lhe é peculiar, o uso do mítodo que, diz ele, ‘substitui a
indução clássica (mera ‘dedução’ invertida) por uma indução por assim dizer
‘constelante’, trocando a análise mecanicista por “análises multirreferenciais” 104
O ponto frágil da argumentação de Durand, por mais sedutor que seja o seu
discurso, é que a prática da “mitodologia” implica um conhecimento
enciclopédico de mitos e símbolos e, na ausência desse conhecimento, corre o
risco de descambar para um exercício de pura efervescência retórica, ao qual é
permitido preferir análises mais tradicionalmente rigorosas. 105
As afirmações de Durand postulando seus alicerces da mitodologia são
corajosas e considerando o caráter embriagante da linguagem e a profusão
simbólica que pode ser gerada na própria busca de significações, é extremamente
pertinaz à formulação acima de Augras, ao ressalvar que se deve cuidar para não
incorrer em exercício de “pura efervescência retórica”. Cumpre não olvidar que o
fato de perceber armadilhas não significa que a mitodologia deva ser descartada
ou desconsiderada enquanto perspectiva epistemológica, como possibilidade de se
fazer ciência.
Pelo contrário, considero que usando o devaneio devidamente temperado
com a exata dose de lucidez, é que se pode construir uma cultura (no sentido
amplo, de qualquer atividade humana, como antípoda ao natural, na oposição –
anacrônica e questionável – cultura versus natureza) efetivamente transformadora
e não auto-destrutiva. O imaginário possui um componente fundamental na
contribuição da saúde do tecido social. Como também afirmou Durand: “Não há
sociedades sem poetas, sem artistas, sem valores.” 106
Grego de nascimento, mas radicado na França, o filósofo Cornelius
Castoriadis possui ampla influência em estudos antropológicos, sociológicos e de
educação. A profundidade e a amplitude com a qual estudou o imaginário o
localiza como verdadeiro luminar do tema. Comparado à Husserl, Sartre e Lacan,
o farol Castoriadis ousa mais. Pretende aprofundar a reflexão sobre as raízes da
criação, o que expõe sua ideia de imaginário radical, ou seja, de um imaginário
fundador em nível ontológico.
104
AUGRAS, Monique. (2009). p.225 105
AUGRAS, Monique. (2009). p.226 106
DURAND, Gilbert. (1984): p. 226.
100
Seu conceito de imaginário radical guarda sintonia com “raiz”, filiação
com “radical”, parentesco com radicalidade e se assemelha ao modo de
compreensão ancestral dos pensadores originários (e ele chega mesmo a falar, não
em uma “fantasiática”, análoga à poética, mas em um fantasiar originário,
resgatando a imaginação primeva aristotélica). Ao resgatar Aristóteles,
Castoriadis refunda a primazia do imaginário. Na concepção de Aristóteles,
haveria, por debaixo da imaginação tal como o senso comum a representa, fonte
das fábulas e das fantasias, uma “imaginação” primeva, criadora, ancestral. Uma
imaginação essencial?
Qual seria o fundamento da imaginação? Ou olhando de outro ângulo,
seria a imaginação, o fundamento, a causa sui? Sim, para Castoriadis, imaginário
é o fundamento da atividade imaginativa, o que a torna possível. Para mim, ele,
definitivamente, está em consonância com os pensadores originários – Heráclito
de Éfeso, Parmênides, Anaximandro, Anaxímenes, Xenófanes, Zenão –, o que é
explicitado no trecho apresentado no mapamento dos pensadores do imaginário,
encetado, mais uma vez, por Augras:
Longe de procurar fundamental a fantasia nas pulsões, Freud, ao contrário, fazia
depender o jogo pulsional das estruturas fantásticas antecedentes, devemos
admitir que o fantasiar originário, o que denomino a imaginação radical,
preexiste e preside toda a organização, mesmo a mais primitiva, da pulsão. 107
A ponte com os paradigmas estabelecidos por Freud – por exemplo,
pergunto eu, o imaginário como inconsciente freudiano? –, denota a formação
psicanalítica de Castoriadis. Mas ele vai ainda mais longe, não se contentando
com dicotomias. O ser humano não é capaz somente de racionalidade e
irracionalidade. Na realidade, o autor de A instituição imaginária da sociedade
subverte a zona de conforto na qual a humanidade está fundada, abrigada na
racionalidade. Chega mesmo a afirmar que é a irracionalidade, a característica
especificamente humana. E permanece, com maestria, desenvolvendo sua
perspectiva:
A racionalidade seria, por assim dizer, uma província possível dentro do quadro
geral de irracionalidade: O homem não é um animal, como diz o velho lugar-
comum. Tampouco é um animal doente. O homem é um animal louco (que
107
AUGRAS, Monique. (2009). p. 231.
101
começa sendo louco) e que, também por isso, torna-se ou pode tornar-se racional.
Essa loucura primeva, ligada à vivência existencial da alteridade, talvez seja
outro nome para o imaginário radical. 108
Assim como Durand e Bachelard, Castoriadis atribui uma primazia (e uma
prioridade!) não apenas aos estudos sobre o imaginário, mas ao próprio tema em
si, ampliando sua área de atuação. Como bem assevera Monique Augras, ao
dissertar sobre o autor dos volumes d’As encruzilhadas do labirinto: “nessa
perspectiva, toda criação humana, história, sociedade, ou indivíduo, é igualmente
reveladora da atuação do imaginário”.109
Em um primeiro momento, pareceu-me
que o fundamento do imaginário de Castoriadis fosse a pulsão criativa, que se
espalha infinitamente, alçando dimensões que transcendem mesmo a
subjetividade humana, ainda que não perca tal moldura. É o que determina quando
afirma:
O imaginário de que falo não é imagem de. É criação incessante e essencialmente
indeterminada (social-histórica e psíquica) de figuras / formas / imagens, a partir
das quais somente é possível falar de “alguma coisa”. Aquilo que denominados
‘realidade’ e ‘racionalidade’ serão seus produtos.
Entretanto, há uma afirmação, quase um aforismo, na linhagem – como
mencionei anteriormente – dos pensadores originários que vai desnudar a
concepção do imaginário para Castoriadis, em um sentido bem mais amplo e
profundo do restrita à pulsão criativa, numa equação bastante precisa: “Imaginário
é, portanto, sinônimo de humano”.110
De acordo com o panorama apresentado por Monique Augras, pelo viés de
Cornelius Castoriadis, toda produção humana na concepção cultural (o adjetivo
“cultural” na conhecida acepção que opõe natureza x cultura) é equivalente ao
imaginário. Esta abordagem demonstra a importância conferida à fantasia, à
imaginação, ao imaginário. Mas por conta desta seção apresentar um formato
formal que privilegia o mosaico de definições, não retomarei Castoriadis agora,
mas em outro momento mais adequado, no capítulo seguinte “4 – Verde ou
Fantasia como horizonte de sentidos”, após seguirmos com nossa trilha pelas
concepções que refletem acerca do imaginário.
108
AUGRAS, Monique. (2009). p. 231. 109
AUGRAS, Monique. (2009). p. 230. 110
AUGRAS, Monique. (2009). p. 230.
102
Continuando o périplo sobre o imaginário com os teóricos franceses,
apesar de François Laplantine já ter sido abordado no capítulo anterior – destinado
a discussão sobre Fantasia – , vale recuperar certos excertos do curto, porém
preciso, livro O que é imaginário, em co-autoria com Liana Trindade.
Naturalmente que a discussão filosófica acerca da representação teria que alcançar
as reflexões acerca do imaginário, já que a relação entre imaginário e imagem é
tão próxima e a imagem e representação podem até serem sinônimos, dependendo
do enfoque que se empregue. Cabe, portanto, esclarecimento em relação aos
termos, a partir dos dois trechos retirados:
O imaginário faz parte do campo de representações, mas não é uma tradução
reprodutora ou uma transposição de imagens. 111
O imaginário ocupa um lugar na representação, porém ultrapassa a representação
intelectual. 112
A primeira afirmação amplia a condição do imaginário na sua relação com
as imagens, e, ao fazê-lo, o retira do seu aspecto de reprodução, transposição,
tradução. A segunda reflexão mostra que é limitante reduzir o imaginário à
moldura representacional, já que poderia deixar que alcançar aspectos que não são
cobertos pela condição do racionalismo. Como Laplantine e Trindade, também
Gilbert Durand articula imaginário e representação. Entretanto, seu tom é distinto,
pois acrescenta uma pitada de seu condimento, enquanto luminar de um imaginar
filosófico, de uma teoria da fantasia, de uma ontologia do imaginário, ao propor
uma abordagem metódica das representações do Universo, ou de uma
“mitodologia”. Já bastante comentado aqui a partir das análises de Augras, o autor
de O imaginário: ensaio acerca das ciências e da filosofia da imagem utiliza a
dicção ontológica do conceito de representação (re-presentação):
O imaginário define-se como uma re-presentação incontornável, a faculdade da
simbolização de onde todos os medos, todas as esperanças e seus frutos culturais
jorram continuamente desde os cerca de um milhão de anos que o Homo erectus
ficou em pé na face da Terra.113
111
LAPLANTINE, F. e TRINDADE, L. (2003). p.77. 112
LAPLANTINE, F. e TRINDADE, L. (2003). p.78. 113
DURAND. Gilbert. “O imaginário: ensaio acerca das ciências e da filosofia
da imagem”. Trad. Renée Eve Levié. Rio de Janeiro: Difel, 1998. p.117.
103
Analogamente ao capítulo “Mil janelas: teóricos do imaginário”, do livro
Magia do imaginário, imaginário da magia, de Monique Augras, outra sólida
referência para o presente capítulo, verdadeira viga teórica que utilizei foi o livro
do pesquisador Richard Kearney, Poetics of imagining: from Husserl to Lyotard
(“Poética do imaginar: de Husserl a Lyotard”), publicado em 1991, contudo
ainda não traduzido para a língua portuguesa. Anteriormente, no capítulo 1 desta
tese doutoral, havia incluído a pergunta “Por que filosofar sobre imaginação?”,
mas agora procedo a um detalhamento de interlocução mais extenso.
O autor de “The wake of imagination” (“O despertar da imaginação”)
organiza um alentado panorama sobre as teorias do imaginário, cobrindo (por se
tratar de uma obra de maior fôlego e de ser o tema central da pesquisa do
estudioso estadunidense, diferentemente do caso da pesquisadora franco-
brasileira) pensadores não tão incensados nos estudos de literatura e, até o meu
conhecimento no momento atual, raramente em interação com textos de literatura
infantil.
O que dá destaque à publicação de Kearney é que não se tratar de simples
compilação ou fortuna crítica. Ele parte de três questões fundamentais de
articulação filosófica com o imaginar – cabe breve e necessária explicação: optei,
deliberadamente, por traduzir o presente contínuo “imagining” do idioma inglês
pelo infinitivo “imaginar” da nossa língua pátria, principalmente por um
argumento conceitual, já que Kearney utiliza “imagining” tanto para “imaginário”
como “imaginação” – para estabelecer uma espécie de fórum investigativo que
norteará todo o seu estudo. Eis as suas três perguntas. Em primeiro lugar: (1) de
que maneira a imaginação se relaciona com a verdade (a questão epistemológica);
como segunda questão: (2) como a imaginação se relaciona com a existência (a
questão ontológica); e, para finalizar, a terceira indagação: (3) como a imaginação
se relaciona com a alteridade (a questão ética).
Através de seus pensamentos, escolhi para dialogar os seguintes “atores”:
Edmund Husserl (definido como um dos principais teóricos da imaginação
fenomenológica), Jean-Paul Sartre (conhecido como grande nome da imaginação
existencialista), Gaston Bachelard (pensador que se debruçou sobre imaginação
poética), Maurice Merleau-Ponty (que elaborou a reflexão da imaginação
dialética), e Paul Ricoeur (que estruturou a imaginação hermenêutica). Em “A
imaginação pós-moderna”, a segunda parte do referido trabalho – Poetics of
104
imagining: from Husserl to Lyotard –, Kearney segue com outros pensadores de
fina estirpe intelectual (Lacan, Althusser, Foucault, Derrida, Vattimo, Kristeva,
Lyotard) e que também possuem importantes abordagens acerca da
problematização do imaginar, porém, por uma questão de prioridade e de foco,
reservei tal embate para futura oportunidade.
Em certo trecho de sua introdução, após relembrar que, para a filosofia
moderna, a imaginação é compreendida como presença na ausência, Kearney
resgata o pensamento kantiano e dos idealistas alemães – nomeadamente
Schelling e Fichte – que concebiam a imaginação (denominada Phantasie or
Einbildungkraft) como uma transformação criativa do real no ideal. E prossegue
na investigação do vínculo do real com a imaginação, comentando que “Fichte
chega a ir mais longe ao afirmar que ‘toda realidade nos é trazida somente pela
imaginação... este ato que forma a base para a possibilidade da nossa consciência,
nossa vida’ ” 114
. E ante a pergunta básica, considerando o approach filosófico, o
que é imaginar?, Kearney traça sua primeira ponte com o pensamento de Husserl
e seus seguidores de linhagem fenomenológica, estipulando o caráter de instância
produtiva que procura a obtenção da verdade, e, complemento eu, busca o
conhecimento. Considero que não vale a restrição apenas ao foco ético bem como
ao epistemológico da questão. Ao indicar uma tripla estruturação conferida ao
imaginar, assim pontua o também autor de Poetics of modernity:
Três reivindicações decisivas da fenomenologia – como emerge a partir de
Husserl e envolve os seus discípulos existencialistas e da hermenêutica – são: (1)
imaginar é um ato produtivo da consciência, não uma reprodução mental; (2)
imaginar não envolve um serviço de mensageiro entre o corpo e a mente mas
uma síntese original que precede a anacrônica oposição entre o sensível e o
inteligível; e (3) imaginar não é uma luxúria de fantasia ociosa mas um
instrumento da verdade. 115
114
KEARNEY, Richard. Poetics of imagining: From Husserl to Lyotard. New York: Routledge,
1991. p. 4. “Modern philosophies developed the basic understanding of imagination as presence-
in-absence – the act of making what is present absent and what is absent present – while generally
reversing the negative verdict it had received in the tribunal of tradition. For Kant and German
idealists such as Schelling and Fichte the imagination (termed Phantasie or Einbildungkraft) is
celebrated as a creative transforming of the real into the ideal. Fichte even goes so far as to claim
that ‘all reality is brought forth solely by imagination... this act which forms the basis for the
possibility of our consciousness, our life’ ” 115
KEARNEY, Richard. Poetics of imagining: From Husserl to Lyotard. New York: Routledge,
1991. p. 6. “Three decisive claims made by phenomenology – as it emerges in Husserl and evolves
through his existential and hermeneutic disciples – are: (1) imagining is a productive act of
consciousness, not a mental reproduction in the mind; (2) imagining does not involve a courier
105
Segundo ele, a investigação acerca das bases filosóficas do imaginário, da
imaginação, do imaginar, em suma, mobilizou vários pensadores de forma mais
intensa no século XX, na tentativa de transpor tanto a anacrônica dicotomia entre
Razão e Des-Razão, Anti-Razão ou como nomeia, Não-Razão. Como diz,
textualmente, no excerto: “uma poética da imaginação crítica que transcenda tanto
o império da razão e o asilo da não-razão se tornou uma preocupação urgente para
um número de pensadores em nosso século.” 116
Da mesma forma que Augras,
Kearney delineia um panteão com os mais destacados pensadores que pesquisam
o tema e como indicou que se trata de uma preocupação dos filósofos modernos,
vai abrir com Edmund Husserl, como já indiquei e indiciei antes.
De acordo com Kearney, o pioneiro Husserl tencionava dar conta das
potencialidades da imaginação, que a maioria das filosofias anteriores teriam
negligenciado. O movimento fenomenológico celebra a intencionalidade da
imaginação, o poder da intencionalidade da imaginação em contraposição às
teorias tradicionais que tendem a estigmatizá-la sob três grupos principais:
dualismo, representacionalismo e reificação:
(1) dualismo – imagens são geralmente consideradas alianças da ordem corpórea
inferior e assim desfavoráveis para as elevadas buscas do intelecto; (2)
representacionalismo – imagens são interpretadas como meras cópias das nossas
experiências sensíveis; e (3) reificação – imagens são tratadas como coisas quasi-
materiais (res) na mente mais do atos de consciência viva. 117
Como já abordado anteriormente, a relação traçada entre imagem e
imaginação é de intenso vínculo, assumindo variadas possibilidades, seja de
sinergia, de oposição, de alternância, de dialética entre a parte e o todo, dentre
outras. Torna-se claro que, não sendo exclusividade da fenomenologia, tal relação
tem nos seguidores de Husserl uma vertente deveras importante. Lidos
service between body and mind but an original synthesis which precedes the age-old opposition
between the sensible and the intelligible; and (3) imagining is not a luxury of idle fancy but an
instrument of truth.” 116
KEARNEY, Richard. Poetics of Imagining: From Husserl to Lyotard. New York: Routledge,
1991. p. 9. “A critical poetics of imagination transcending both the empire of reason and the
asylum of un-reason has become an urgent concern for a number of thinkers in our century.” Vale
lembrar que o livro é do século XX, não mais o “nosso” século. 117
KEARNEY, Richard. Poetics of Imagining: From Husserl to Lyotard. New York: Routledge,
1991. p. 13. “ (1) dualism – images were generally considered allies of the lower corporeal order
and thus inimical to the elevated pursuits of the intellect; (2) representationalism – images were
construed as mere copies of our sensible experiences; and (3) reification – images were treated as
quasi-material things (res) in the mind rather than acts of living consciousness”.
106
conjuntamente, os excertos seguintes desnudam tal vínculo, ao deixar emergir o
trinômio imagem-fenomenologia-imaginação:
Não foi antes de Husserl e dos outros fenomenologistas considerarem a
imaginação como uma intencionalidade livre e criativa que a ‘ilusão de
imanência’ pôde ser finalmente ultrapassada. Dito de forma simples, a
imaginação necessita da fenomenologia; pois sem ela, não pode ser
compreendida como ela em si mesma. 118
A Fenomenologia redefine a imagem como uma relação – um ato de consciência
direcionado a um objeto além da consciência. A imaginação não pode reduzir o
mundo a uma miríade de sensações internas desbotadas, como Hume sustentou. 119
A relação que se depreende da imagem, ou melhor, de como a
fenomenologia apreende a imagem, vale um cuidadoso olhar. De acordo com tal
linha de investigação, a imagem é aceita em seu modo de ser, como modo de
aparecimento para a consciência. Em relação à tradição filosófica, há um
deslocamento encetado pela fenomenologia, que não se quer tão aferrada à
preocupação com a realidade como a metafísica.
Em seu livro Investigações lógicas, Husserl estabelece a distinção entre
imaginação e percepção, uma formulação que é valiosa ao nosso trajeto. Para o
filósofo, o equívoco da tradicional “teoria imagética” seria o de ter confundido o
modo de apresentação com próprio objeto presente. A sutileza da reflexão é que a
imagem e o que é percebido são modos de apresentação distintos. A imaginação
ocupa, sem dúvida, um lugar central nas investigações fenomenológicas, havendo
mesmo uma “fenomenologia da imaginação”, como se pode observar:
A fenomenologia da imaginação como resumida inicialmente por Husserl é uma
resposta para duas questões principais: O que a fenomenologia significa para a
imaginação? e o que a imaginação significa para a fenomenologia? 120
118
KEARNEY, Richard. Poetics of Imagining: From Husserl to Lyotard. New York: Routledge,
1991. p.14. “It was not until Husserl and other phenomenologist acknowleged imagination as a
free and creative intentionality that the ‘illusion of immanence’ could be finally surpassed. Simply
stated, imagination needs phenomenology; for without it; it cannot be understood as it is in itself.” 119
KEARNEY, Richard. Poetics of Imagining: From Husserl to Lyotard. New York: Routledge,
1991. p. 15. “Phenomenology redefines the image as a relation – an act of consciousness directed
to an object beyond consciousness. Imagination cannot reduce the world to a myriad of faded inner
sensations, as Hume maintened.” 120
KEARNEY, Richard. Poetics of Imagining: From Husserl to Lyotard. New York: Routledge,
1991. p. 19. “The phenomenology of imagination as first outlined by Husserl is a response to two
107
Por conta de se analisar a imaginação no viés fenomenológico, há um
desdobramento do pensamento que amplia o ponto de vista e traz para o bojo da
discussão as coisas e os fenômenos, a partir de uma tensão com o naturalismo. As
citações abaixo, apesar de extensas, e sequenciadas, são justificadas pela
condução de importante linha de raciocínio, a ser resgatada mais adiante:
A Fenomenologia está no lado do ‘eidético’; o Naturalismo encerra a visão
oposta de que todos os modos de consciência são reduzíveis aos padrões
empíricos das ciências naturais. Se a fenomenologia é a campeã da imaginação
humana, o naturalismo é o seu adversário preferencial. As coisas são apreendidas
na sua essência (eidos), afirma Husserl, quando elas são captadas não apenas na
sua realidade mas também na sua possibilidade – a última sendo a reserva
especial da imaginação. 121
A atitude naturalista, em contraste, mantém a tradicional dicotomia sujeito /
objeto, e assim ignora a relação essencial entre consciência e mundo. A
Fenomenologia redescobre verdadeiramente esta relação ao (1) suspender o
preconceito naturalista que reduz a experiência humana aos dados observados
empiricamente; e (2) ao considerar a imaginação como um agente indispensável
para a descoberta e a intuição do significado. A Fenomenologia reconhece a
consciência humana como uma experiência primordialmente vivenciada
(Erlebnis)” intencionalmente conectada com o mundo – antes de qualquer
separação entre sujeito e objeto. 122
Como um dos primeiros, e dos mais importantes, teóricos da imaginação
no viés filosófico, Husserl, além de aproximar a imaginação da essência, direciona
a investigação sobre o tema para a relação sujeito / objeto, e, a um só tempo, o faz
em precisa articulação com a mirada que concebe a imaginação como
possibilidade de apreensão de significado. Um outro aspecto que pode se
assemelhar a um parêntese digressivo, mas que em verdade, aponta para uma
espécie de germe de uma reflexão intensa e profunda, que é o reconhecimento que
main questions: What does phenomenology mean for imagination? and What does imagination
mean for phenomenology? 121
KEARNEY, Richard. Poetics of Imagining: From Husserl to Lyotard. New York: Routledge,
1991. p. 20. “phenomenology is on the side of the ‘eidetic’; naturalism holding the opposing view
that all modes of consciousness are reducible to the empirical standards of the natural sciences. If
phenomenology is the champion of human imagination, naturalism is its chosen adversary. Things
are apprehended in their essence (eidos), Husserl claims, when they are grasped not only in their
actuality but also in their possibility – the latter being the special preserve of imagination.” 122
KEARNEY, Richard. Poetics of Imagining: From Husserl to Lyotard. New York: Routledge,
1991. p. 20. “The naturalist attitude, by contrast, upholds the traditional subject/object dichotomy,
and thus ignores the essential relation between consciousness and world. Phenomenology
rediscovers this relation by (1) suspending the naturalistic prejudice which reduces human
experience to empirically observable data; and (2) by acknowledging imagination as an
indispensable agency for the disclosure and intuition of meaning. (...) Phenomenology recognizes
human consciousness as a a primordially lived experience (Erlebnis)” intentionally connected to
the world – before any separation into subject and object.”
108
Husserl faz da consciência humana como experiência primordialmente
vivenciada. Trata-se do fulcro da concepção da interação / inter-relação da ação e
do texto que pode ser encontrado nos estudos de Paul Ricoeur e que,
oportunamente retomarei.
Retomando Husserl, e lembrando que suas afirmações são especialmente
dignas de nota, não apenas para o presente estudo, mas para a maioria dos estudos
literários, tem-se que “as ficções não são impressões do fato nem sub-produtos da
percepção. Elas representam um possível modo de existência da coisa com uma
intenção livre da consciência na qual – paradoxalmente – se alicerça a necessidade
de verdade”.123
E segue o filósofo alemão, fazendo emergir a interação da
fenomenologia com o imaginar, ao apresentar os fundamentos de tal relação:
A fenomenologia necessita da imaginação, portanto, por duas razões: (1) para
separar nosso vínculo natural da experiência empírica; e (2) para fornecer acesso
a um reino de possibilidade o qual a verdadeira liberdade é a marca de uma
necessária (isto é, apodítica e transcendental) ciência das essências. 124
“A imaginação é um pré-requisito de toda a investigação fenomenológica
na medida em que ela revela a vida da consciência humana para si própria.” 125
Esta construção frasal trafega veloz em minha linha de raciocínio, pois agrega
elementos ao corpo crítico que objetivo adensar. A atribuição ou a compreensão
do status do imaginar enquanto revelação da própria consciência, e acrescento,
como desvelamento do universo que circunda o indivíduo. Vale ressaltar que
Husserl é tido como o pai da fenomenologia, e tal epíteto não é gratuito, já que
realmente é ele quem primeiro estabelece os vários momentos de aproximação de
similares e associados que se encontravam separados bem como distingue, de
forma clara, as eventuais dimensões que se mesclavam de maneira equivocada.
123
KEARNEY, Richard. Poetics of Imagining: From Husserl to Lyotard. New York: Routledge,
1991. p. 21. “For Husserl, fictions are neither impressions of fact nor by-products of perception.
They represent a thing’s possible mode of existence as a free intention of consciousness which –
paradoxically – grounds the necessity of truth.” 124
KEARNEY, Richard. Poetics of Imagining: From Husserl to Lyotard. New York: Routledge,
1991. p. 22. “Phenomenology needs imagination, therefore, for two main reasons: (1) to sever our
natural bondage to empirical experience; and (2) to provide access to a realm of possibility whose
very freedom is the token of a necessary (that is, apoditic and transcendental) science of
essences.” 125
KEARNEY, Richard. Poetics of Imagining: From Husserl to Lyotard. New York: Routledge,
1991. p. 22. “Imagination is a prerequisite of all phenomenological inquiry in so far as it reveals
the life of human consciousness to itself.”
109
Um exemplo de necessária separação visando um bom e imprescindível
estabelecimento de categorias é o que ocorre no já aludido caso do binômio
imaginação-percepção. Como aponta Kearney, “Husserl retorna seguidamente à
distinção entre imaginação e percepção. Enquanto a percepção está ligada às
condições efêmeras do aqui e do agora, a imaginação está livre para prescindir de
particulares dados e variar seus objetos intencionais como fenômenos irreais.” 126
Por outro lado, estabelece sólidas vinculações de fundo conceitual para
instâncias ora apartadas, como também recupera o autor de Poetics of Modernity:
“Ao definir imaginação como um portal que conduz do natural ao reino eidético,
Husserl ata imaginação e fenomenologia em um nó górdio.” 127
Aqui, é possível
detectar uma alteração no paradigma, uma mudança conceitual na abordagem. A
investigação filosófica em relação ao imaginar passa a se distinguir. A clave
“essencialista” confere sustentação para a imaginação, que é reiteradamente
desqualificada na tradição do pensamento (e até mesmo pelo senso comum), como
se pode depreender da afirmação – “A imaginação conduz a uma intuição das
essências.” 128
– que pode ser encorpada (e incorporada) por outro trecho extraído
deste panorama que é a Poética do imaginar (Poetics of Imagining): “A
imaginação permite às essências se apresentarem através de instâncias múltiplas
mais do que meramente individuais.” 129
.
O leitor há de notar que eclodem, aqui e ali, ao longo do trajeto que
palmilha o mosaico das concepções e definições do imaginar, do imaginário, da
imaginação, formulações específicas direcionadas à ficção. Isto se dá na
deliberada ênfase que meu texto confere para as passagens dos pensadores
escolhidos. Ocorre também, contudo, no capítulo como um todo, de maneira
brevemente pincelada, desenhando um quadro que se completará ao final, caso se
126
KEARNEY, Richard. Poetics of Imagining: From Husserl to Lyotard. New York: Routledge,
1991. p. 23. “Husserl returns again and again for to the distinction between imagination and
perception. While perception is bound by the ephemeral conditions of the here and now,
imagination is free to prescind from given particulars and vary its intentional objects as unreal
phenomena.” 127
KEARNEY, Richard. Poetics of Imagining: From Husserl to Lyotard. New York: Routledge,
1991. p. 24. “By defining imagination as the portal leading from the natural to the eidetic realm,
Husserl bound imagination and phenomenology in a Gordian knot.” 128
KEARNEY, Richard. Poetics of Imagining: From Husserl to Lyotard. New York: Routledge,
1991. p. 24. “Imagination leads to an intuition of essences” 129
KEARNEY, Richard. Poetics of Imagining: From Husserl to Lyotard. New York: Routledge,
1991. p. 26. “Imagination allows essences to present themselves through multiple rather than
merely single instances.”
110
guarde a devida distância. Ainda que incorra no risco de se rotulado como
repetitivo e desgastante, reitero que o presente capítulo assim como o anterior,
têm o viés de se apresentarem predominantemente como revisão do tema, fortuna
crítica da questão, preparando o terreno para a discussão crítica do quarto capítulo
e a análise dos textos do corpus literário. Todavia, não é possível seguir
impassível frente a um excerto como o que se encontra abaixo: "A ficção, como
organizada por fenomenologistas e artistas similares, revela não apenas que as
coisas possuem essências inesperadas mas também que a consciência é uma
atividade inesperada – um processo de livre fantasia." 130
Husserl alcança mais um degrau do “prédio da Teoria da Fantasia”,
convocando a postura ativa, a fantasia como processo e não se conformando como
uma ideia meramente essencialista, estanque. A imaginação se apresenta como
essência das coisas, mas não deixa de ser processo ativo, é ela que nos faz olhar
para as coisas, para a essência das coisas e inferir possibilidades de alteridade das
coisas. Como dito por Husserl, ela possibilita que olhemos as coisas em si, como
elas próprias, além das nossas palavras e nossos pensamentos sobre elas. E
ampliando ainda mais o poder e a atuação da imaginação como também o fez
Bachelard, em outros tempos, na perspectiva epistemológica que se articula com
as demais áreas da produção de conhecimento. É que se depreende do trecho que
indica que “é a imaginação, em última análise, que projeta a possibilidade ideal da
fenomenologia como uma rigorosa ciência universal – um ideal perseguido por
todos os grandes pensadores na história da filosofia”. 131
O vínculo estrutural da imaginação com a percepção da realidade, ou por
outra, com a própria realidade (e que abre toda a discussão se haveria inclusive
uma realidade per se, e talvez diversas realidades, ou mesmo a possibilidade
encantatória se toda a ideia de realidade não seria uma exacerbação radical da
realidade?) aflora e traz à tona questões como uma certa indiscernibilidade entre
“o absoluto” e “o relativo”, além do caráter transitório, dinâmico da realidade e
das essências. Estabelece assim Husserl, “porque nós podemos imaginar que nós
130
KEARNEY, Richard. Poetics of Imagining: From Husserl to Lyotard. New York: Routledge,
1991. p. 26. “Fiction, as deployed by phenomenologists and artists alike, reveals not only that
things have unexpected essences but also that consciousness in an unexpected activity – a process
of free fancy.” 131
KEARNEY (1991). p.29. “It is the imagination, in the final analysis, which projects the ideal
possibility of phenomenology as a rigorous universal science – an ideal sought after by all great
thinkers in the history of philosophy”
111
sabemos que a realidade não é algo dado mas uma metamorfose infinita. O
absoluto não é ‘real’, ou em qualquer intensidade não ainda. O absoluto é possível
e, como tal, pode ser intuído apenas através da imaginação.” 132
O absoluto pode
ser intuído apenas através. Afirmação de extrema força e acurácia, em minha
opinião. Para este caminho, me pareceu que os atores já haviam sido convocados,
imaginário, imaginação, fantasia... Porém, na trilha husserliana, vejo que novo
elemento se integra ao elenco: a intuição.
Uma intuição que se debruça sobre a essência das coisas e fenômenos e
que aponta como uma possível saída para o abismo existencial do ser humano,
chaga tantas vezes reaberta pela abordagem encetada pela Metafísica. “A
fenomenologia deve ser intuitiva – e isso significa imaginativa no sentido da
intuição eidética, ou ela perderá sua identidade enquanto movimento filosófico...
A fenomenologia enfrenta uma nova possibilidade de existência, uma aventura de
imaginação – que, eu sugiro, é o verdadeiro destino do ser humano.” 133
Para finalizar esta parte, que abordou a imaginação investigada nos
ensaios de Edmund Husserl, cito o estudo de Richard Kearney, basilar para esta
discussão. No presente excerto, ele avalia a contribuição de Husserl para os
estudos sobre imaginação, em especial, para o seu estudo que tem como fulcro a
triádica perquirição da imaginação (epistemológica, ontológica e ética).
De que maneira, podemos finalmente perguntar, a fenomenologia de Husserl
contribuiu para nossa investigação triádica da imaginação – epistemológica,
ontológica e ética? Em resposta à questão epistemológica, Husserl demonstrou
como a variação imaginativa abre para um reino eidético de possibilidades onde a
intuição das ‘verdades essenciais’ pode surgir. Em resposta a questão ontológica,
ele sugeriu como o grupo dos fatos empíricos podem levar de volta à experiência
transcendental das ‘próprias coisas’ (a atitude fenomenológica). E, em resposta à
questão ética, embora não endereçada diretamente, Husserl revela a capacidade
da imaginação empática de mover da subjetividade a intersubjetividade; e ele
132
KEARNEY (1991). p.33. “Because we can imagine we know that reality is not something
given but an infinite metamorphosis. The absolute is not ‘real’, or at any rate not yet. The absolute
is possible and, as such, can be intuited only through the imagination.” 133
KEARNEY (1991). p.37. “Phenomenology must be intuitive – and that means imaginative in
the sense of eidetic intuition, or it will lose its identity as a philosophical movement...
Phenomenology ventures out into a new possibility of existence, an adventure of imagination –
which, I submit, is the very destiny of man. ”
112
sugere, além disso, que essa transição do si ao outro pode desvelar uma definitiva
motivação teleológica. 134
Muito curioso é o fato da posição filosófica, ideológica e, diria mesmo,
fenomenológica, de Sartre ser quase que diametralmente oposta da de Husserl.
Começo com um comentário de terceira (ou quarta) extração, qual um
pensamento em mise-en-abyme, já que cito Sartre que cita Meyerson analisando
Spinoza. Falando sobre imagem, preparando o terreno para a discussão da relação
entre imagem e pensamento, Sartre cita Meyerson: "Em Spinoza (...), a
imaginação, ou conhecimento por imagens, é profundamente diferente do
entendimento; ela pode forjar idéias falsas e não apresenta a verdade a ser sob
uma forma truncada." 135
Se Husserl aproximou a imaginação da verdade, da essência, da
consciência, Sartre vai reforçar a perspectiva de que a imaginação está na
contracorrente da compreensão, reforçando a postura que associa a imaginação ao
confuso, que atrela a imaginação ao nebuloso, ao que é falso ou enganoso.
Cumpre ressaltar que seu juízo de valor é intrincado, não se trata de algo que
perceba de pronto. Sua desqualificação da imaginação e seu vínculo com as
patologias não se dá logo de saída, como se poderia supor. Se Husserl aproximava
a imaginação da verdade, da essência, da consciência, Sartre vai reforçar a
perspectiva de que a imaginação está na contracorrente da compreensão,
ressaltando a postura que associa a imaginação ao confuso, a mesma que atrela a
imaginação ao nebuloso, ao que é falso ou enganoso. Cumpre ressaltar que seu
juízo de valor é intrincado, não se trata de algo que se perceba de pronto. Sua
desqualificação da imaginação e seu vínculo com as patologias não surge em
leitura ligeira, como se poderia supor.
Também vale enfatizar que, ao se voltar para os estudos do imaginar,
como seus dois textos A imaginação e O imaginário, Sartre, ao mesmo tempo que
134
KEARNEY (1991). p.38. “How, we may ask finally, has Husserl’s phenomenology contributed
to our threefold inquiry of imagining – epistemological, ontological and ethical? In answer to the
epistemological question, Husserl has demonstrated how imaginative variation opens on to the
eidetic realm of possibility where the intuition of ‘essential truths’ may take place. In answer to the
ontological question, he has suggested how the bracketing of empirical facts can lead back to the
transcendental experience of ‘things themselves’ (the phenomenological attitude). And, in answer
to the ethical question, though not directly addressed, Husserl discloses the capacity of empathic
imagination to move from subjectivity to intersubjectivity; and he intimates, furthermore, that this
transition from self to other may uncover an ultimate teleological motivation.” 135
SARTRE, Jean-Paul. A imaginação. São Paulo: Difel, 1967. p. 12.
113
levou a questão a fenomenologia do imaginar para além do ponto estabelecido por
Husserl, também contribuiu negativamente para aumentar a indissociabilidade e a
indiscernibilidade dos termos imaginário e imaginação. Contudo, o mais notório
dos fundadores do existencialismo francês é pensador de obrigatória menção em
um texto que se propõe mínimo mosaico do tema.
Em 1936, Sartre publicou seu livro A imaginação, que se pretendia uma
crítica, pelo prisma da fenomenologia, das principais teorias filosóficas e
psicológicas, de Descartes ao behaviorismo de Skinner e, cabe salientar,
culminando com a teoria da imagem de Husserl. Para Sartre, em A imaginação, a
imagem não é uma percepção ou uma sensação, pálido reflexo do passado. Está
no caminho da abstração e da generalização, no caminho do pensamento... Ainda
que possa ser considerada como incompleta, já está racionalizada, como um
“racionalização do dado sensível” 136
.
Ainda que Sartre formule que a imagem não é uma percepção ou sensação,
quase contraditoriamente afirma que ela possui um conteúdo sensível e tem uma
“matéria impressional idêntica à da percepção” 137
. Tal contaminação do sensível
na imagem é passível de diálogo tanto com o pensamento cartesiano quanto como
a filosofia de Hume. Conforme a teoria da imaginação sustentada por René
Descartes, situada no plano psicofisiológico, isto é, há uma alma e um corpo, a
imagem é uma ideia formada pela alma em decorrência de uma manifestação do
corpo. O que é diametralmente oposto ao pensamento de Hume, que, a princípio,
nada sabe do corpo. Ele parte, ou estima partir, da experiência, dos dados
imediatos da experiência: há impressões fortes e impressões fracas. As impressões
fracas são as imagens e se distinguem das impressões fortes por uma questão de
intensidade. Sartre estabelece a diferenciação: “Em Descartes, as ligações
associativas se estabelecem entre as impressões deixadas pelos objetos, ao passo
que, em Hume, elas se formam entre os próprios objetos.” 138
É fundamental salientar que Sartre tinha como objetivo estabelecer
parâmetros que adensassem a teoria da imaginação que, em seu entender, deveria
atender a duas exigências principais: dar conta da discriminação espontânea que o
espírito opera em suas imagens e suas percepções, bem como explicar o papel
136
SARTRE, Jean-Paul. A imaginação. São Paulo: Difel, 1967. p.85. 137
SARTRE, Jean-Paul. A imaginação. São Paulo: Difel, 1967. p.88. 138
SARTRE, Jean-Paul. A imaginação. São Paulo: Difel, 1967. p.93.
114
desempenhado pela imagem nas operações do pensamento139. Pensamento e
imagem, pensamento e imaginação, imaginação e raciocínio lógico, razão e
imaginação. Parelhas e suas decorrentes articulações que potencializam as
investigações deste estudo.
O mais famoso dos fundadores do Existencialismo francês tomou a
fenomenologia do imaginar a partir do ponto deixado por Husserl. Ao dar
sequência ao título A imaginação, com O imaginário (1940), explicitou-se o
movimento inaugural de Sartre de ampliar a tese husserliana de que a imagem é
um ato de consciência. E assim ele explicita sua linha filosófica: “A imagem é um
certo tipo de consciência. A imagem é um ato e não uma coisa.” 140
Richard
Kearney indica-nos que "Sartre estava determinado a combinar os resultados das
pesquisas eidéticas de Husserl com as preocupações existencialistas de pensadores
como Kierkergaard e Heidegger." 141
Vale refletir acerca da questão da elaboração da imagem mental e da
percepção da realidade. Husserl argumenta que o imaginar se distingue do
perceber não pela referência aos objetos pretendidos, mas pela referência ao ato
de pretender. Assim, a imagem mental seria não apenas uma coisa existente em
meio às demais. Haveria um vínculo sólido entre a percepção do fenômeno (do
objeto), assim como da recepção/decodificação e o ulterior construto mental.
De acordo com a leitura de Sartre feita por Kearney, os dois mundos, o
real e o imaginário, seriam compostos dos mesmos objetos: variável seria apenas
a abordagem a estes objetos. O que define o mundo imaginário, e também o
mundo do real, é uma atitude. Encontro em tal definição da realidade (e também
da imaginação), a chave analítico-interpretativa da questão que pauta a presente
tese. Retomando Kearney que, na posição de comentador arguto de Sartre, puxa o
fio, desvenda o novelo:
A imaginação é um modo de intencionalidade sui generis que, frequentemente,
busca negar o que de maneira específica é (irreal) em favor do que do que
poderia ser (real). Porém, enquanto a imagem é diferente daquilo que é percebido
em seu modo de intenção (irreal mais do que real), é mais frequentemente similar
no seu propósito (a possessão intuitiva do objeto). Assim, Sartre convoca o
139
SARTRE, Jean-Paul. A imaginação. São Paulo: Difel, 1967. p.97. 140
SARTRE, Jean-Paul. A imaginação. São Paulo: Difel, 1967. p.122. 141
KEARNEY, Richard. (1991). p. 48. “Sartre was determined to combine the results of Husserl’s
eidetic researches with the existential concerns of thinkers such as Kierkegaard and Heidegger.”
115
essencialmente “absurdo” projeto da imaginação – para afirmar o que deve
sempre negar, para possuir o que deve sempre permanecer intangível, para
perceber um objeto ao despercebê-lo. 142
Conclui-se, a partir dos estudos fenomenológicos sartreanos, que como a
imaginação e a percepção são dois modos heterogêneos de observação, não
podem entrar em colisão ou adquirir como modo de ser ou como interação, a
sobreposição. É como aponta Kearney, mais uma vez, de maneira acurada em seu
norteador texto Poetics of Imagining:
Para Sartre os mundos da percepção e da imaginação são mutualmente
exclusivos. Pressupor o imaginário é ipso facto negar o real. Mas o é porque a
imaginação é essencialmente ‘carente’ na riqueza mundana da percepção,
precisamente por anular o mundo real que determina a percepção, que é livre. Ao
postular o mundo como o nada ao invés de realidade, a imaginação revela a si
mesma como liberdade. Este último ponto é fulcral para toda filosofia
existencialista de Sartre. 143
O autor de O Ser e o Nada naturalmente reflete acerca da imaginação, do
imaginário, de uma poética do imaginar, enfim, à luz do Nada, sua pedra de
fundamento filosófico. Em seu viés, o nada do imaginário se divide em três
vertentes principais: a primeira, a irrealidade espacial, o Nada do espaço; a
segunda, a irrealidade temporal, o Nada do tempo e, por último, a irrealidade das
relações intra-mundo. E prossegue, posicionando o Nada como cerne do embate
(ou diálogo) entre o real e o imaginário: "O real e o imaginário estão sempre
separados por uma muralha chinesa do Nada. 'O mundo do imaginário é
completamente isolado,' escreve Sartre. 'Eu apenas posso penetrá-lo ao irrealizar-
me nele'.” 144
142
KEARNEY, Richard. (1991). p. 51. “Imagination is a sui generis mode of intentionality which
frequently seeks to deny what it specifically is (unreal) in favour of what it would like to be (real).
But, while the image is different from the percept in its mode of intention (unreal rather than real),
it is often similar in purpose (the intuitive possession of the object). Thus, Sartre intimates the
essentially ‘absurd’ project of imagination - to affirm what it must alwas negate, to possess what
must always remain intangible, to realize an object by unrealizing it.” 143
KEARNEY, Richard. (1991). p.54. “For Sartre the worlds of perception and imagination are
mutually exclusive. To posit the imaginary is ipso facto to negate the real. But its because
imagination is essentially ‘lacking’ in the mundane richness of perception, precisely because it
nihilates the real world which determines perception, that it is free. By positing the world as
nothingness rather than reality, imagination reveals itself as freedom. This last point is pivotal to
Sartre’s entire existentalist philosophy.” 144
KEARNEY, Richard. (1991). p. 58. “The real and the imaginary are always separated by the
Chinese wall of le néant. ‘The world of imaginary is completely isolated,’ writes Sartre. ‘I can
only enter it by unrealizing myself in it.’ ”
116
Cumpre salientar a dimensão ontológica da investigação sobre o imaginar
para Sartre, que posiciona o ontológico imerso nas indagações: (a) seria a função
imaginária um tipo de especificação (contingencial e metafísica) da essência ou,
pelo contrário, seria uma função constitutiva da essência? E mais, (b) de que
maneira as condições existentes para perceber uma consciência imaginativa se
assemelhariam às condições de uma consciência em geral?
Em certos momentos, há o endosso de Sartre às idéias de Husserl, em
outros instantes, Sartre parte do ponto deixado pelo filósofo nascido na atual
república checa, patrono da Fenomenologia. De acordo com Husserl, é a
imaginação que nos permite escapar das restrições da realidade imediata e
considerá-la com um olhar crítico. Uma forma de transcender o real e nos projetar
no possível. Tal posicionamento que é corroborado pelo francês e que está em
intensa consonância com o que tenciono estabelecer como um enfoque prolífico
para uma leitura crítica da literatura de fantasia para crianças e jovens. É o que
enfatizo como sendo a cunha interpretativa que se distingue da linha mais
tradicional de análise da literatura infantil e juvenil, que chamo de “encanto
crítico”.
A partir do encanto, do enlevo, da fruição, do onírico, do devaneio, do
fantástico (e do fantasioso) que é característico ao gênero, emerge um insight
percuciente que vai precisamente ao ponto nevrálgico da essência do objeto (ou
do fenômeno). A apreensão do real, em radicalidade, apenas pode se dar por
intermédio do imaginário. A citação abaixo é extensa, mas se mostra como
indispensável, já que trafega em assemelhada digressão:
A razão para esta complexa combinação do real e do irreal, que na ontologia
tardia de Sartre emergirá como um dualismo entre ser e nada, é melhor exposta
pelo próprio autor: ‘O imaginário aparece no alicerce do mundo, mas
reciprocamente toda a apreensão do real enquanto mundo implica uma
ultrapassagem oculta pelo imaginário. Toda a consciência imaginativa usa o
mundo como uma base negada do imaginário e reciprocamente todas as
consciências do mundo chamam e motivam um consciência imaginativa como
alcançada de um sentido particular da situação... Então a imaginação, longe de
aparecer como uma característica real da consciência, se torna uma essencial e
transcendental condição da consciência. 145
145
KEARNEY, Richard. (1991). p. 69. “The reason for this complex pairing of the real and the
unreal, which in Sartre later’s ontology will emerge as a dualism of being and nothingness, is best
expounded by the author himself: The imaginary appears on the foundation of the world, but
117
A despeito de suas contribuições positivas e fundamentais para o campo
filosófico, e, de forma mais específica para o presente estudo, na seara do
imaginar, a verdade é que também Sartre ainda não alcançou o patamar de uma
teoria da fantasia, uma poética do imaginar que não apontasse fissuras. Causa
espanto sua tendência a patologizar a imaginação. Em um viés comprometido e
esquemático, quase que evocando uma leitura atualizada do platonismo, dividirá a
imaginação em suas expressões normais e anormais.
Como expressões normais teríamos o sonho, a paixão passageira, a
fascinação e mesmo a apreciação estética, a fruição barthesiana. Já como
manifestações anormais da imaginação, encontraríamos a alucinação, a
esquizofrenia, a neurastenia. Mas não tenho condições de me aprofundar em tal
vertente psicológica. Poderia, no entanto, perguntar se seriam os indícios iniciais
da doutrina existencialista, com o ser humano não passando de uma criatura
absurda, inútil e nauseante. Kearney é que dá o fecho para o diálogo do
existencialismo sartreano com a imaginação: "O que a filosofia da imaginação
existencialista de Sartre falhou em endereçar adequadamente foi o fato de que se a
realidade sem ficção é cega, a ficção sem realidade não possui força." 146
Um outro filósofo importante para caminho de investigação dos
desdobramentos filosóficos da imaginação é Gaston Bachelard. A fenomenologia
da imaginação, para Bachelard, ainda que fundada na proposição do
questionamento da existência, da ontologia, não se esquiva em questionar os
paradigmas da ciência, desvelar com rigor o modelo epistemológico tradicional,
por em xeque o espírito científico. Libertando-se das amarras cartesianas (ainda
muito fortes em Husserl e em Sartre), o autor de O novo espírito científico
concebe o ser humano como um ser des-centrado, nutrido por uma força poética
transbordante, que transcende ao seu controle. Expõe assim a falível faceta
humana trazida por Freud: o homem não é o senhor do seu próprio castelo.
reciprocally all apprehension of the real as world implies a hidden surpassing towards the
imaginary. All imaginative consciousness uses the world as the negated foundation of the
imaginary and reciprocally all consciousness of the world calls and motivates an imaginative
consciousness as grasped from the particular meaning of the situation... So imagination, far from
appearing as an actual characteristic of consciousness, turns out to be an essential and
transcendental condition of consciousness.” 146
KEARNEY, Richard. (1991). p. 78. “What Sartre’s existential philosophy of imagination failed
to address adequately is the fact that if reality without fiction is blind, fiction without reality is
powerless.”
118
De acordo com o pensamento de Bachelard, a criação científica e a
criação poética possuem a mesma origem poética, ou melhor, poiética, de poiesis,
uma poiesis mais profunda na qual imaginação e realidade constroem e
reconstroem a outra. Para o autor de A psicanálise do fogo, a criatividade não se
configura como negação do ser, mas sim, um lampejo do ser na imaginação.
Costura imaginação com filosofia, estabelecendo a necessidade de uma
fenomenologia da imaginação. Nas suas próprias palavras, ‘visando esclarecer o
problema da imagem poética, filosoficamente, nós devemos possuir o recurso de
uma fenomenologia da imaginação’. E corrobora Kearney, “toda a fenomenologia
da imaginação de Bachelard está relacionada com a ideia de fornecer uma
justificativa para uma interpretação dialógica da imagem.” 147
Retomo Sartre, contrapondo-o a Bachelard, pois o autor de O ar e os
sonhos, rejeita o solipsismo de Jean-Paul Sartre e considera a imagem como o
degrau de Si para o Outro. A mescla, a imbricação, a relação simbiótica entre
imagem e imaginação permite que eu desenvolva um desdobramento que
estabelece que a imaginação é o degrau de Si para o Outro, ao permitir a trajeto do
ausente em direção ao presente, ‘presentificando’ (e aqui emprego o termo sem
receio de ser acusado de tautológico) o que é apenas uma possibilidade, tornando
real aquilo que não é, ainda que seja na mente, no onírico, no delírio, no
fantasioso, enfim, é fundamentalmente contrário ao solipsismo, desconectado
como Outro, como o externo, como o exterior, pois traz a alteridade para articular
com a subjetividade, num confronto que pode ser também um conluio.
Ainda discutindo a poética do imaginar com Richard Kearney, resgato o
extenso excerto que elucida bem a questão do Si, do Outro, da imaginação e desta
interrelação:
Tanto para Sartre quanto para Bachelard, a análise fenomenológica da
imaginação envolve conclusões ontológicas – um desvelar da essência do nosso
ser-no-mundo. Mas, se o primeiro descreve a existência imaginativa do homem
como fundamentalmente “ipsorelativa”, o segundo pinta um quadro inteiramente
diferente do imaginador como “aliorelativo”, isto é, intencionalmente direcionado
para o Outro ao invés do que para Si. Similarmente, enquanto Sartre
147
KEARNEY, R. (1991). p. 90. “For Bachelard creativity is not negation of being, but ‘a flare-up
of being in the imagination (...) Bachelard insists, in terms of phenomenology – ‘In order to clarify
the problem of the poetic image, philosophically, we shall have to have recourse to a
phenomenology of the imagination’ (...Bachelard’s whole phenomenology of imagination is
concerned with providing a justification for a dialogical interpretation of image.”
119
frequentemente parece considerar a imaginação como um modo particular da
intencionalidade que conduz à descoberta do poder fundamentalmente negador
da consciência, Bachelard reverte a ênfase e considera a negação como uma das
muitas forças da imaginação. Embora ele concorde com a definição sartreana de
imaginação como uma força sui generis distinta da percepção e da concepção, ele
vê esta distinção como a base para interrelação prolífica. Assim Bachelard pode
sustentar que “o que o homem imagina, dita o que ele compreende; e que ‘é
necessário imaginar muito para que possamos pensar, e então realizar”. 148
É muito estimulante verificar a subversão trazida por Bachelard ante os
séculos da tradição filosófica de octanagem racionalista: é o que o homem
imagina que regula a sua compreensão e não o contrário, é imperativo e
primordial que ele inicialmente imagine, para só então, pensar. E uma vez
pensado, passar à realização, construção da realidade. “Se não podemos imaginar,
nós não podemos prever... a função do real e a função do irreal devem ser feitas
para cooperar.” 149
Uma das pedras de toque do pensamento de Bachelard é que, ao negar a
realidade, a imaginação não está se direcionando ao nada, mas pavimentando a
trilha para que ocorra uma redenção do real. Dito de outra forma, o imaginário,
em sua concepção não é um “mundo de i-realidade”, mas de “sobre-realidade”.
Não de trata de uma negação da realidade per se, mas apenas a casca ossificada e
habituada da realidade. Ela não anula o mundo real; ela mobiliza seus potenciais
de transformação. 150
Ainda de acordo com o conceito de uma dimensão de sobre-
realidade, e não de i-realidade, que trafega na negação e na ausência, para
Bachelard, a imaginação “fabrica imagens da realidade; é uma força que forma
148
KEARNEY, R. (1991). p. 92. “For both Sartre and Bachelard, the phenomenological analysis
of imagination involves ontological conclusions – a disclosure of the essence of our being-in-the-
world. But, whereas the former describes man’s imaginative existence as fundamentally
‘ipsorelative’, the latter paints an entirely different picture of the imaginer as ‘aliorelative’, that is,
intentionally directed towards the other rather than the self. Similarly, while Sartre often appears
to regard imagination as one particular mode of intentionally which leads to the discovery of the
fundamentally negating power of consciousness, Bachelard reverses the emphasis and regards
negation as but one of the many powers of imagination. Through he agrees with Sartre’s
definition of imagination as a sui generis power distinct from perception and conception, he views
this distinction as the basis for a fruitful interplay. Thus Bachelard can hold that ‘what man
imagines dictates what he perceives’; and that ‘it is necessary to imagine too much in order that we
may think, and so realize, enough’. 149
KEARNEY, R. (1991). p. 94. “If we cannot imagine, we cannot foresee... the function of the
real and the function of the irreal must be made to cooperate.” 150
KEARNEY, R. (1991). p. 93 “(…) It does not annihilate the real world; it mobilizes its
potencies of transformation.
120
imagens que ultrapassam a realidade visando mudar a realidade. É uma força de
sobre-humanidade.” 151
Mais adiante, discutirei a linha de pensamento, esboço de análise crítica
que tenho denominado de “encanto crítico”, que define a fantasia como passível
de ser considerada como ferramenta filosófica, posto que a imaginação seria uma
forma de apreender a realidade, considerando o pensamento de Paul Ricoeur que
estabelece a metáfora como forma de redescrever a realidade e, em minha opinião,
que os criadores de literatura de fantasia (e também os poetas, não abordados
neste estudo) seriam, em radicalidade, críticos da realidade, filósofos / pensadores,
portanto. Bachelard, partindo da etimologia, traça esclarecedora trilha que vai da
imaginação e confere status de filósofos aos artistas.
Brincando com a etimologia grega do termo, ‘phantasia’, Bachelard afirma que é
precisamente porque a imaginação (phantasia) está relacionada com ser na sua
origem e emergência (phainesthai) que ela clama por uma fenomenologia
(phainomenon). E neste contexto Bachelard aprova totalmente a máxima de Van
der Berg de que “poetas e pintores são fenomenologistas natos” 152
Conforme o autor de A água e os sonhos, “a imagem literária não vem
para vestir uma imagem nua ou para fornecer uma palavra a uma imagem muda.”
É mais que isso. Segundo Bachelard, “a imaginação, em nós, fala... toda atividade
humana deseja falar. Quando esta palavra se torna consciente de si própria, então
a atividade humana deseja escrever... A literatura não é, portanto, a ramificação de
outra atividade. É o preenchimento do desejo humano como ele emerge na
imaginação”. O vínculo profundo entre imaginação e linguagem, com o viés
fenomenológico, foi explorado inicialmente por Bachelard e depois por Paul
Ricoeur e demais fenomenologistas hermenêuticos.” Imaginação, linguagem,
crítica e criança (o ente que não fala) são elementos e dimensões que se trançam
em uma interação intensa. Já foi dito que a contribuição mais significante de
Gaston Bachelard para a fenomenologia da imaginação foi o desvendar do papel
poético da linguagem. Reforçando tal afirmação, fica o trecho do pensamento
151
KEARNEY, R. (1991). p. 93 ‘which fabricates images of reality; it is a power which forms
images which surpass reality in order to change reality. It is the power of a sur-humanity.” 152
KEARNEY, R. (1991). p. 93. “Playing on the Greek etymology of the term, ‘phantasy’,
Bachelard affirms that it is precisely because the imagination (phantasia) is concerned with being
in its origination and emergence (phainesthai) that it calls for a phenomenology (phainomenon).
And in this context Bachelard fully approves Van der Berg’s maxim that ‘poets and painters are
born phenomenologists’.”
121
poético de Bachelard que com suas belas imagens, reforça a parelha poesia-
filosofia evocada pelo movimento romântico alemão:
A imaginação é a grande sintetizadora do nosso universo: ‘A imaginação possui a
força integradora da árvore. Ela é raiz e galhos. Vive entre a terra e o céu. A
imaginação vive entre a terra e o vento. A árvore imaginativa é
imperceptivelmente a árvore cosmológica, a árvore que resume o universo, que
faz um universo. 153
Outro pensador crítico que vale ser incluído em meu mosaico que percorre
os domínios da fantasia, do imaginário, da imaginação, do fantástico, ainda que ao
apagar das luzes deste capítulo, é Maurice Merleau-Ponty. Verdadeira referência
para os estudos de antropologia e de simbologia voltados para as épocas
ancestrais, o filósofo busca dar conta dos tópicos que não foram contemplados, ou
não foram aprofundados pelos seus antecessores. O que almeja, em verdade, é
uma ontologia dialética do imaginar, que ultrapasse as oposições dicotômicas, que
ultrapasse as aporias cristalizadas pela história do pensamento mágico-filosófico.
Segundo o próprio Merleau-Ponty, “a imaginação é dialógica”154
. A ideia de uma
imaginação dialógica, obviamente, em qualquer mínima discussão no âmbito
filosófico, convoca a pensar no termo ‘dialética’.
Merleau-Ponty compreende ‘dialética’ tanto no sentido tradicional quanto
moderno do termo – no sentido tradicional na extensão de que suas reflexões
sobre o imaginar constituem um ‘diálogo’ entre a posição contrária dos seus
parceiros-filósofos (em particular Husserl, Sartre, Heidegger e Bachelard); no
sentido moderno na acepção de que o seu raciocínio é profundamente informado
pelo método dialético desenvolvido por Hegel e Marx. A proclividade cartesiana
em torno da antítese – que ainda assombra as oposições husserliana e sartreana
entre imanência e transcendência, o imaginário e o real, é superada por um
impulso hegeliano em direção à síntese e à sinergia. 155
153
KEARNEY, R. (1991). p. 94. “Imagination is the great synthesizer of our universe:
‘Imagination has the integrating power of the tree. It is root and branch. It lives between earth and
sky. Imagination lives in the earth and in the wind. The imaginative tree is imperceptibly the
cosmological tree, the tree that summarizes a universe, which makes a universe.” 154
KEARNEY, R. (1991). p.115. “Imagination is dialogical.” 155
KEARNEY, R. (1991). p.113. “Merleau-Ponty understands ‘dialectics’ in the both traditional
and modern senses of this term – in the traditional sense to the extent that his reflections on
imagining constitute a ‘dialogue’ between the adversarial position of his fellow-philosophers (in
particular Husserl, Sartre, Heidegger and Bachelard); in the modern sense to the extent that his
reasoning is deeply informed by the dialectical method advanced by Hegel and Marx. The
Cartesian proclivity toward antithesis – which still haunts the Husserlian and Sartrean oppositions
between immanence and transcendence, the imaginary and the real, is overridden by a Hegelian
drive towards synthesis and synergy.”
122
Diálogo e dialética, síntese e sinergia. Mas a questão pode descer a níveis
mais profundos. Maurice Merleau-Ponty considera que a imaginação teria a
faculdade de acessar as dimensões ocultas do Ser. Acesso privilegiado que seria
vedado à racionalidade. É o que chama de “o invisível”, que pode ser imaginado
mas não pode ser visto. Ele não é não-existente. Ele pré-existe no visível. Presença
na ausência ou do ausente. É a presença do imanente, o latente, ou do oculto. Nas
palavras escritas por Kearney, ao discutir o pensamento de Merleau-Ponty, “o
imaginário é muito mais próximo e muito mais distante do real – mais próximo
por estar no corpo como um diagrama da vida do real... mais distante do real
porque a pintura é como um análogo ou retrato apenas de acordo com o corpo;
porque não apresenta a mente com uma oportunidade de repensar a relação
constitutiva das coisas; porque ao invés... oferece à visão suas tapeçarias internas,
a textura imaginária do real” 156
. Eis a chave, na minha opinião, do que se propõe
a literatura de fantasia e, talvez, por extensão, toda a arte literária, investigar a
textura imaginária do real! Segue Kearney, palmilhando a filosofia da imaginação
que esbarra na ontologia, na estética, na filosofia da linguagem e na ética (ao
intercalar o movimento Si-Outro), como se pode atentar ao ler os trechos abaixo:
A transcendência da realidade da arte é, para Merleau-Ponty, alicerce
fundamental do Ser que o preserva do veredicto do nada. Embora ele
frequentemente mencione a imaginação tanto como presença-na-ausência quanto
como ausência-na-presença, é sempre como uma ausência e como uma presença
que pressupõe o Ser. A visão imaginativa não é, ele salienta, “um certo modo de
pensamento ou de presença em si mesmo; ela é ‘o modo que me é dado para estar
ausente de mim mesmo, para estar presente na fissão do Ser a partir do meu
interior – a fissão em cujo final, e não antes, eu retorno para mim. 157
156
KEARNEY, R. (1991). p.116. The picture and the actor’s fantasy-imaginary are not devices to
be borrowed from the real world in order to signify prosaic things that are absent. For the
imaginary is much nearer to, and much farther away from, the actual – nearer because it is in my
body as a diagram of the life of the actual... farther away from the actual because the painting is an
analogue or likeness only according to the body; because it does not present the mind with an
occasion to rethink the constitutive relations of things; because, rather... it offers to vision its
inward tapestries, the imaginary texture of real.” 157
KEARNEY, R. (1991). p.118. “Art’s transcendence of reality is, for Merleau-Ponty, always
grounded in a fundamental bedrock of Being which saves it from the verdict of nothingness.
Though he frequently speaks of imagination as both a presence-in-absence and an absence-in-
presence, it is always as an absence and a presence which pressuposes Being. Imaginative vision is
not, he points out, “a certain mode of thought or presence to itself; it is the ‘means given me for
being absent from myself, for being present at the fission of Being from inside – the fission at
whose termination, and not before, I come back to myself.”
123
Merleau-Ponty e Bachelard transcendem o dualismo de Sartre da
imaginação e da realidade ao declararem que a função primária da imaginação é
um diálogo entre o interior e o exterior, entre o ser que está no mundo e o mundo
que está no ser: uma reciprocidade enraizada em um Ser fundamental que está em
ambos. Para concluir, o fecho que, com acurácia milimétrica, sintetiza a
contribuição do autor de O olho e o espírito: “Merleau-Ponty traz a imaginação
de volta para a vida ao demonstrar que, antes de tudo, a imaginação nunca deixou
a vida real.” 158
158
KEARNEY, R. (1991). p. 120.“Merleau-Ponty brings imagination back to life by
demonstrating that imagination never left real life in the first place.”