3- Aspectos Hemodinâmicos Da Estimulação Cardíaca Artificial

download 3- Aspectos Hemodinâmicos Da Estimulação Cardíaca Artificial

of 5

Transcript of 3- Aspectos Hemodinâmicos Da Estimulação Cardíaca Artificial

  • 7/25/2019 3- Aspectos Hemodinmicos Da Estimulao Cardaca Artificial

    1/5

    79Revista da SOCERJ - Abr/Mai/Jun 2002

    3Artigo deReviso

    O tratamento realmente efetivo dos distrbios doritmo cardaco, que cursam com frequncia cardaca(FC) lenta e causando sintomas, proporcionadopelos marcapassos (MP) cardacos atravs dediversos tipos de estimulao cardaca artificialatualmente disponveis.

    Pode-se dizer que uma das primeiras indicaespara o emprego de MP definitivo foi o BAV Total,sendo a estimulao ventricular isolada o nicomodo disponvel na ocasio, promovendo umritmo cardaco estvel, com frequncia maisadequada, apesar de no reestabelecer umafuno cardaca normal. Com o tempo foi-sepercebendo que alguns pacientes apresentamdeclnio hemodinmico com este modo deestimulao, ficando posteriormente entendidoque isto ocorria, entre outras causas, pelapresena de conduo retrgrada ventriculoatriale/ou pela contrao atrial contra uma vlvula AVfechada, podendo produzir sintomas queconstituem a chamada sndrome do MP(explicaremos com mais detalhes adiante).

    Atualmente estamos em uma fase de rpidoavano tecnolgico, com o surgimento deinmeros recursos de estimulao cardaca, demodo a otimizar o emprego dos MP para cadasituao clnica em particular. Torna-se, portanto,fundamental que o cardiologista conhea

    aspectos interligados da fisiologia cardacanormal e da anormal, alm dos tipos de sistemasdisponveis, no sentido de fazer uma indicaocorreta e mais apropriada possvel para o seu

    paciente que venha necessitar de MP definitivo,um recurso teraputico amplamente utilizado emtodo o mundo.

    Fisiologia Cardiovascular Normal

    As demandas cardiovasculares impostas peloexerccio so alcanadas primariamente peloaumento da FC e secundariamente por aumentosdo volume sistlico. Atletas aerobicamentetreinados conseguem aumentar o volumesistlico proporcionalmente mais, atingindo omesmo dbito cardaco com um aumentorelativamente menor da FC. 1

    Define-se volume sistlico como a quantidade desangue ejetada aps cada contrao ventricular, ouseja, o volume diastlico final menos o volumesistlico final. No corao normal o volumediastlico final depende da presso diastlica deenchimento, volume total de sangue e da sstoleatrial (pr-carga). O volume sistlico final dependeda contralidade miocrdica, da impedncia articae da resistncia vascular perifrica (ps-carga). Alei de Frank-Starling relaciona o grau de presso deenchimento ventricular esquerdo ao dbito cardacoem vrios graus de contratilidade. 2

    Todas essas interrelaes podem ser moduladas por

    alteraes metablicas, mudanas no tnusautonmico ou no ambiente neuro-humoral, aode agentes farmacolgicos e alteraes do ritmocardaco.3

    Aspectos hemodinmicos da estimulao cardacaartificial. O que o clnico deve saber

    No understanding of the circulatory reactions of the body is possible unlesswe start first with the fundamental properties of the heart muscle itself,...

    E.H. Starting, 1920.

    Roberto Luiz Menssing da Silva S, Fernando E. Cruz F, Marcio L.A. Fagundes, Angela C.B. Valverde,

    Maila Seifert e Rodolfo Vasconcelos.Diviso de Arritmia e Eletrofisiologia Clnicado Instituto Nacional de Cardiologia Laranjeiras

  • 7/25/2019 3- Aspectos Hemodinmicos Da Estimulao Cardaca Artificial

    2/5

    80 Vol XV N o 2

    Fisiopatologia Cardiovascular

    Um amplo segmento da populao de portadoresde MP apresentam patologias cardacas e nocardacas que podem evoluir comcomprometimento da FC, do volume sistlico ouambos.

    A incompetncia cronotrpica (falha em utilizar80% da reserva cronotrpica) pode ser devida disfuno sinusal isolada, disfuno autonmica(comuns no diabetos mellitus e na insuficinciacardaca congestiva), ou por ao de drogas queinterferem na resposta cronotrpica ao stressfisiolgico (p.ex., beta-bloqueadores). 4 Apresena de sintomas varivel, podendo o

    indivduo com funo normal de VE serassintomtico em repouso, mas apresentardiferentes graus de sintomas com o exerccio. Emvigncia de disfuno ventricular, a tolernciapode ser menor devido ao comprometimento dovolume sistlico apresentando uma maiordependncia a FC para manter o dbito cardaco.

    Hoje dispomos de sistemas de estimulaorespondendo com aumento da frequnciacardaca atravs de biosensores (rate response)adaptados ao MP cmara nica (VVI-R) ou duplacmara (DDD-R). O sinal biolgico captado pelosensor para aumentar a FC pode ser a atividadecorporal, temperatura do sangue, respirao(volume-minuto), etc.

    A contratilidade miocrdica pode estarprejudicada por doena arterial coronria, infartodo miocrdio, cardiomiopatias no isqumicas,patologia valvar crnica ou doenas dopericrdio. Pacientes com disfuno de VEindependente da etiologia so mais dependentesde fatores como a pr-carga e a ps-carga paramanter um volume sistlico timo.3

    A Ausncia de Enlace AV e a ConduoRetrgrada Ventriculoatrial

    Coube a Gesell, em 19115, o mrito de estabelecer aimportncia hemodinmica dos trios. Observouem preparaes de corao-pulmo que, paraqualquer presso venosa de enchimento, a contraoatrial aumentava o enchimento ventricular e,portanto, o dbito cardaco em cerca de 50% acimado que ocorria com o enchimento passivo isolado.A sstole atrial aumentava a presso diastlica final

    e o comprimento da fibra muscular cardaca,produzindo desse modo uma contrao ventricularmais potente e prolongada (Lei de Frank-Starling).

    Gesell tambm demonstrou com bastante clarezaque a eficcia da sstole atrial em aumentar odbito cardaco est na dependncia da relaotemporal entre a sstole atrial e a ventricular eque o melhor efeito sobre o enchimentoventricular ocorria quando a sstole atrialprecedia de 0,08 a 0,20s o incio da contraoventricular.5

    Desenvolvemos em 19836 um trabalho utilizandometodologia no invasiva em portadores de BAVTotal com MP com estimulao unicameralventricular (VVI) e sem MP, estudamos acontribuio atrial e a performance ventricular.A figura 1 ilustra estes aspectos hemodinmicos,usando as medidas dos intervalos sistlicos e o

    fluxo arterial perifrico (doppler).

    Figura 1A. Observa-se variaes importantes da frao de ejeo (FE) e

    do fluxo em funo das relaes temporais de P-QRS.B. Traado contnuo mostrando as amplas variaes do dbito

    cardaco atravs do fluxo arterial perifrico dependentes dasrelaes P-QRS. As setas indicam as posies das ondas P naparte superior do traado.

    O emprego da estimulao unicameral em ponta deVD (VVI) ainda largamente utilizado e satisfaz emmuitos casos apesar de estar muito aqum derestituir a fisiologia normal. No entanto algunspacientes apresentam ntido comprometimentohemodinmico com este tipo de estimulao.Falamos no incio deste artigo que isto ocorriadevido conduo retrgrada ventriculoatrial e/ou a contrao atrial contra uma vlvula AV fechada,produzindo sintomas, caracterizando a chamadasndrome do MP (A figura 2 mostra um traado de

    ECG com conduo retrgrada 1:1 em portador deMP VVI com sndrome do MP).

  • 7/25/2019 3- Aspectos Hemodinmicos Da Estimulao Cardaca Artificial

    3/5

    81Revista da SOCERJ - Abr/Mai/Jun 2002

    Figura 2Exemplo de Sndrome do Marcapasso. Observa-se conduoretrgrada 1:1 em portador de MP com estimulao do tipo VVIassociado sintomas de pr-sncope.

    A conduo ventriculoatrial pode resultar emativao de receptores por estiramento mecniconas paredes atriais e veias pulmonares. Fibrasvagais aferentes transmitem esses impulsos parao SNC, resultando em vasodilatao perifricareflexa. Alm disso diversos agentes neuro-humorais, tais como peptdeos natriurticos soativados. A sndrome do MP pode manifestar-sepor uma variedade de sintomas (fraqueza, pr-sncope, sncope, dispnia, etc) e de sinais fsicos(hipotenso, descompensao cardaca, queda daPA durante a estimulao).7

    A sndrome do MP foi inicialmenteidentificada como complicao da estimulaotipo VVI; no entanto pode ocorrer em qualquermodo de estimulao sempre que hajadissociao AV. A prevalncia da sndrome doMP de difcil determinao e depende de como identificada. Tem sido sugerida uma incidnciade 7 a 10%. 8

    Sincronismo AV

    A contribuio do sincronismo AV em manteruma performance cardaca fisiolgica tem sidoconfirmada por mltiplos estudos nos ltimos 25anos. 9 importante entender que apesar depacientes com funo ventricular normal terem omelhor valor absoluto em termos de performanceventricular, quando existe sincronismo AV, umamelhora em termos de valores relativos pode sermais importante em vigncia de disfunosistlica do VE, pois nestes indivduos qualquermelhora decorrente de uma sstole atrial emtempo adequado pode ser benfica.

    Em portadores de MP dupla cmara (DDD),torna-se mandatrio ajustar o intervalo AV parao mais adequado, no sentido de otimizar amelhor performance ventricular. Esteprocedimento pode ser feito com boa seguranaatravs da ecocardiografia bidimensional comdoppler; avaliando diferentes programaes dointervalo AV e documentando a que oferecermelhor dbito cardaco.

    Existem atualmente unidades geradoras quepossuem sistema de regulao automtico dointervalo de acordo com as variaes da FC.

    A cardiomiopatia hipertrfica (CMPH) apresentamltiplas apresentaes clnicas, o que tornadifcil determinar a melhor forma de tratamento.Os pacientes portadores de CMPH possuemgraus variveis de hipertrofia septal e deobstruo a via de sada do VE.

    Em grupos selecionados de CMPH obstrutivaresistentes a tratamento medicamentoso, o usode MP dupla cmara tem sido apontado comouma opo vlida. Trabalhos 10 utilizando MPdupla cmara nestas circunstncias, com

    programao para estimulao DDD comintervalo AV curto no sentido de promover umaativao preferencialmente dos ventrculos apartir da ponta do VD, tm mostrado bonsresultados.

    A hiptese mais amplamente aceita para explicara melhora hemodinmica que pode ocorrer como uso de MP na MCPH obstrutiva seria aalterao que ocorre na ativao septal produzidapela estimulao apical de VD; estapromoveria um menor afilamento da via desada de VE e uma conseqente diminuio doefeito Venturi responsvel pelo movimentosistlico anterior mitral . 10 No entanto apersistncia da melhora da performance

  • 7/25/2019 3- Aspectos Hemodinmicos Da Estimulao Cardaca Artificial

    4/5

    82 Vol XV N o 2

    ventricular mesmo aps ter cessado aestimulao cardaca artificial fala a favor deoutros mecanismos alm de sequncia deativao septal. Acredita-se que o uso de MPdefinitivo em pacientes com CMPH pode resultara longo prazo em remodelagem do VE. 11

    A figura 3 mostra um caso de um paciente de19 anos, masculino, portador de MCPH,submetido a implante de MP dupla cmaradefinitivo. Reparem que com um intervalo AV de175m apresentava um gradiente em trato de sadade VE de 159mmhg e, aps reprogramao dointervalo AV para 70ms, o gradiente caiu para88mmhg com ntida melhora sintomtica dopaciente.

    Figura 3Exemplo de Cardiomiopatia Hipertrfica Obstrutiva. Verdetalhes no texto.

    Procura do Local Ideal para Estimulaodo VD

    Tm ocorrido muita discusso e muita controvrsiasobre as vantagens hemodinmicas em se utilizarlocais alternativos na estimulao do VD emsubstituio localizao convencional em ponta.

    Em um estudo envolvendo 89 pacientes 12, aestimulao do trato de sada melhorou o dbitocardaco, quando comparada estimulaotradicional apical. Outros estudos 13 tambm

    demonstraram melhora hemodinmica semelhantecom estimulao atrial e ventricular unilateralseptal. Existe uma tendncia crescente de evidnciasque a estimulao do trato de sada de VD seria,

    sob o ponto de vista de performance ventricular, amelhor alternativa.

    Estimulao Cardaca Artificial naInsuficincia Cardaca Congestiva

    A despeito dos recentes avanos no tratamentomedicamentoso, a insuficincia cardaca congestiva(ICC) permanece um importante desafio mdico.

    Tem-se tornado bastante evidente que a ICC nopode ser vista apenas como uma diminuio dacontratilidade ventricular. Dados recentes 14indicam que distrbios na conduointraventricular apresentam impacto substancial no

    comprometimento da funo ventricular e namortalidade de pacientes com ICC.

    Muitos pacientes (mais de 50%) com cardiomiopatiadilatada (CMPD) apresentam distrbios deconduo intraventricular, manifestado no ECGcomo padro de bloqueio de ramo esquerdo (BRE).O assincronismo de contrao entre o ventrculodireito e o esquerdo, resultante deste distrbio deconduo, produz significativo retardo noenchimento ventricular, discinesia septal eregurgitao mitral, contribuindo para importantedeteriorao hemodinmica nestes pacientes.Estratgias teraputicas que possam corrigir ouminimizar estas anormalidades do distrbio deconduo esto sendo testadas. A durao do QRStem sido implicada como um fator independentede risco em pacientes com ICC. 15

    Tm surgido na literatura inmeros estudos 16avaliando os benefcios da ressincronizaoventricular atravs de estimulao cardacamultistio ou biventricular simultnea (catteres emAD, VD e VE). Este tipo de estimulao promove aressincronizao entre o VD e o VE, estreitando oQRS e melhorando deste modo a dinmica decontrao ventricular; espera-se com isso melhorana classe funcional do paciente e na sobrevida destesindivduos que apresentam severocomprometimento da funo sistlica ventricular edistrbio da conduo intraventricular.

    Concluses

    A estimulao cardaca artificial com toda a certezaconstitui um recurso relativamente simples e efetivo

    para a correo de bradiarritmias sintomticas. Oenorme avano tecnolgico disponibilizou para ocardiologista inmeras opes e particularidades nomodo de estimulao que visam restituir sempre

  • 7/25/2019 3- Aspectos Hemodinmicos Da Estimulao Cardaca Artificial

    5/5

    83Revista da SOCERJ - Abr/Mai/Jun 2002

    que possvel a fisiologia normal do corao. Oentendimento das repercusses e das possibilidadesde programao dos diversos parmetroshemodinmicos para cada caso especfico permiteque se otimize os recursos disponveis em benefcioda qualidade de vida e sobrevida dos pacientes.

    Bibliografia

    1. Fletcher GF, Balady GS, Amsterdam EA et al. ExerciseStandards for Testing and Training. A Statement forHealthcare Professionals from the Americam HeartAssociation. Circulation. 2001; 104: 1694 1740.

    2. Braunwald E, Frahm CJ. Studies on StarlingsLaw of the heart IV. Observations on thehemodynamic function of the left atrium.

    Circulation. 1961; 24: 633 - 37.3. Opie LH. The Heart. Physiology, From Cell toCirculation. 3rd Ed. Lippincott-Raven. New York. 1997.

    4. Lauer MS. Heart Rate Response in Stress Testing:Clinical Implications. Cur J Rev. vol. 10 n5,2001. 16 - 19.

    5. Gesell RA. Auricular systole and its relation toventricular output. Am J Physiol. 1911; 29, 32 -38.

    6. S RLMS. Tese de Mestrado. PUC - RJ. 1983.7. Buckingham TA, Janosik DL, Pearson AC. Pacemaker

    hemodynamics: clinical implications. Prog CardiovascDis. 1992; 34, 342 - 366.

    8. Heldman D, Mulvihill D, Nguyer H, et al. Trueincidence of pecamaker syndrome. Pacing ClinElectrophysiol. 1990; 13, 1742 - 1750.

    9. Hayes DL, Zipes DP. Cardiac Pacemakers andCardioverter - Defibrillators. In Heart Disease: ATextbook of Cardiovascular Medicine. 6th Ed. Edited by Braunwald E, Zipes DP, Libby P. Phyladelphia WBSaunders Company. 2001. pp 775 - 810.

    10. Jeanrenaud X, Goy JJ, Kappenberger L. Effects of dual-chamber pacing in hypertrophic obstrutivecardiomyopathy. Lancet 1992; 339, 1318 - 1323.

    11. Fananapazir L, Epstein ND, Curiel RV et al. Longtermresults of dual-chamber (DDD) pacing in obstrutivehypertrophic cardiomyopathy. Evidence forprogressive symptomatic and hemodynamicimprovement and reduction of left ventricularhypertrophy. Circulation. 1994; 90, 2731 - 2742.

    12. Giudici MC, Thornburg GA, Buck DL, et al.Comparison of right ventricular outflow tract andapical lead permanent pacing on cardiac output. Am J Cardiol. 1997, 79; 209 - 212.

    13. Karpawich PP, Mital S. Comparative left ventricularfunction following atrial, septal, and apical singlechamber heart pacing in the young (abstract). Pacing

    Clin Electrophysiol 1997, 20, 1983 - 1988.14. Shamim W, Francis DP, Yousufuddin M, et als.Intraventricular conduction delay. A predictor of mortality in chronic heart failure? Eur Heart J. 1998.19. Abstract 926.

    15. Xiao HB, Roy C, Fujimoto S, Gibson DG. Naturalhistory of abnominal conduction and its relation toprognosis in patients with dilated cardiomyopathy.Int J Cardiol. 1996; 53, 163 - 170.

    16. Cazeau S, Leclerg C, Lavergne T, et al. The MultisiteStimulation in Cardiomyopathies (MUSTIC) StudyInvestigators. N Engl J Med. 2001. 344, 873 - 880.