3. Estruturas Cristalinas

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25 3. Estruturas Cristalinas As observações da regularidade e perfeição geométrica de cristais macroscópicos forneceram, já no século XVIII, os primeiros indícios de que os cristais são formados por uma coleção de partículas organizadas de forma periódica 1 . A confirmação experimental direta deste fato veio no início do século XX, através dos experimentos de difração de raios-X e do desenvolvimento de uma teoria elementar de difração de ondas por um sistema periódico, descobertas que valeram o prêmio Nobel a W. H. Bragg e W. L. Bragg em 1915 e a M. T. F. von Laue no ano anterior. No capítulo anterior, estudamos porque os átomos se reúnem para formar sólidos; neste capítulo, investigaremos onde eles se posicionam. Estudaremos as propriedades puramente geométricas dos sólidos periódicos, ou seja, a estrutura cristalina. Esta fornece a base elementar para o entendimento de todas as demais propriedades dos sólidos. 1 R. J. Haüy, Essai d’une théorie sur la structure des cristaux, Paris, 1784; Traité de cristalographie, Paris, 1801. Figura 3.1 A orientação relativa das faces dos cristais macroscópicos pode ser explicada a partir da constituição dos mesmos a partir de unidades básicas idênticas (acima). Estas faces (ou superfícies) de alta simetria são aquelas onde o cristal é mais facilmente cortado (“clivado”) (abaixo). Fonte: Kitt el, p.2.

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3. Estruturas Cristalinas

As observações da regularidade e perfeição geométrica de cristais macroscópicos

forneceram, já no século XVIII, os primeiros indícios de que os cristais são formados por

uma coleção de partículas organizadas de forma periódica1. A confirmação experimental

direta deste fato veio no início do século XX, através dos experimentos de difração de

raios-X e do desenvolvimento de uma teoria elementar de difração de ondas por um

sistema periódico, descobertas que valeram o prêmio Nobel a W. H. Bragg e W. L. Bragg

em 1915 e a M. T. F. von Laue no ano anterior.

No capítulo anterior, estudamos porque os átomos se reúnem para formar sólidos;

neste capítulo, investigaremos onde eles se posicionam. Estudaremos as propriedades

puramente geométricas dos sólidos periódicos, ou seja, a estrutura cristalina. Esta

fornece a base elementar para o entendimento de todas as demais propriedades dos

sólidos.

1 R. J. Haüy, Essai d’une théorie sur la structure des cristaux, Paris, 1784; Traité de cristalographie, Paris,

1801.

Figura 3.1 – A orientação relativa das faces dos cristais macroscópicos pode ser explicada a partir da

constituição dos mesmos a partir de unidades básicas idênticas (acima). Estas faces (ou superfícies) de

alta simetria são aquelas onde o cristal é mais facilmente cortado (“clivado”) (abaixo). Fonte: Kittel,

p.2.

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3.1 – Redes de Bravais

Em meados do século XIX, A. Bravais estudou as diferentes maneiras de se

arranjar pontos geométricos de forma periódica no espaço tri-dimensional. Seu trabalho

deu origem ao que se conhece hoje como redes de Bravais.

Há duas definições equivalentes de uma rede de Bravais:

(a) Um conjunto infinito de pontos com arranjo e orientação que parecem

exatamente os mesmos quando vistos de qualquer ponto da rede.

(b) Todos os pontos cujas posições R têm a forma

332211 aaaR nnn ,

onde a1, a2 e a3 são três vetores não coplanares e n1, n2 e n3 são inteiros.

Como consequência das definições acima, diz-se que cada vetor da rede, R, está

associado a uma operação de simetria de translação, TR, que leva a rede nela mesma.

Os vetores ai são chamados vetores primitivos da rede. Para uma dada rede de Bravais, a

escolha dos vetores primitivos não é única, como está mostrado na Fig. 3.2. Nesta figura

está desenhada uma rede de Bravais bidimensional, a rede oblíqua. Note que qualquer

ponto da rede pode alcançado a partir da origem para qualquer das duas definições de

vetores primitivos mostradas na figura: (a1,a2) ou (a1, 2a ). Em geral adota-se a convenção

na qual estes vetores são os de menor tamanho possível ou apresentam certas simetrias.

Nem todo arranjo aparentemente regular de pontos é uma rede de Bravais. Um

contra-exemplo de arranjo bidimensional que não é uma rede de Bravais é a chamada

“rede colmeia” (“honeycomb”), mostrada na Fig. 3.3. Note que a definição (a) não é

válida, e nem tampouco (b), já que é impossível encontrar um conjunto de vetores

primitivos que gere o conjunto de pontos desta “rede”.

(3.1)

0

P

Figura 3.2 – Duas possíveis escolhas de vetores primitivos para a rede oblíqua. Qualquer ponto da rede

pode ser obtido aplicando-se a Eq. (3.1) com ambas as escolhas. Por exemplo, o ponto P pode ser obtido

a partir da origem 0 por ou por . Fonte: Ashcroft, p. 67.

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Além das simetrias de translação, as redes de Bravais podem ter outras operações

de simetria, conhecidas como simetrias pontuais. Estas simetrias são rotações em torno

de eixos, reflexões com respeito a planos e inversões com relação a pontos que deixam ao

menos um ponto da rede invariante. Pode-se mostrar2 que toda e qualquer operação de

simetria que leva a rede nela mesma é necessariamente de um dos três seguintes tipos:

(a) Translação de todos os pontos por um vetor da rede R.

(b) Operação de simetria pontual (rotação, reflexão ou inversão) que deixa pelo

menos um ponto da rede fixo.

(c) Operações construídas a partir de aplicações sucessivas de (a) e/ou (b).

Como exemplo, vamos analisar as simetrias da rede cúbica simples, mostrada na

Fig. 3.4. Os vetores primitivos são xa ˆ1 a , ya ˆ

2 a e ya ˆ3 a , onde a é o tamanho da

aresta de cada cubo. Estes vetores primitivos definem as operações de simetria de

translação da rede.

Vamos analisar agora as simetrias pontuais. Há um total de 48 simetrias pontuais

que podemos classificar usando a notação ),,( zyx , que representa o resultado de uma

determinada operação de simetria em um ponto qualquer da rede ),,( zyx , ou seja,

),,(),,( zyxzyx . Por exemplo, ),,( zyx representa uma rotação de um ângulo em

torno do eixo z (adotamos a notação x para representar x , etc.). As 48 operações estão

indicadas na Tabela 3.1. São elas: a identidade ),,( zyxE , 3 rotações de em torno dos

2 Ashcroft, p. 113.

Figura 3.3 – A “rede favo de mel” não é uma rede de Bravais. As visões da rede que um observador

teria em P e Q são iguais, porém um observador em R teria uma visão invertida. Fonte: Ashcroft, p. 66.

Figura 3.4 – Rede cúbica simples e seus vetores primitivos. Fonte: Ashcroft, p. 65.

P R

Q

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eixos cartesianos ( 2C ), 6 rotações de 2 em torno dos eixos cartesianos ( 4C ), 6

rotações de em torno dos 6 eixos que passam pelas diagonais das faces dos cubos ( 2C ),

8 rotações de 3 em torno dos 4 eixos que passam pelas diagonais principais dos

cubos ( 3C ), a inversão ),,( zyxi , 3 reflexões pelos planos perpendiculares aos 3 eixos

cartesianos ( 1 ), as 6 rotações 4C seguidas da inversão i ( 1S ), 6 reflexões pelos planos

perpendiculares aos eixos que passam pelas diagonais das faces ( 2 ), e 8 rotações 3C

seguidas da inversão ( 2S ).

Notação Operação Notação Operação Notação Operação Notação Operação

E ),,( zyx C4 ),,( zxy i ),,( zyx S1 ),,( zxy

C2 ),,( zyx C4 ),,( zxy 1 ),,( zyx S1 ),,( zxy

C2 ),,( zyx C4 ),,( xyz 1 ),,( zyx S1 ),,( xyz

C2 ),,( zyx C4 ),,( xyz 1 ),,( zyx S1 ),,( xyz

C3 ),,( yxz C4 ),,( yzx S2 ),,( yxz S1 ),,( yzx

C3 ),,( xzy C4 ),,( yzx S2 ),,( xzy S1 ),,( yzx

C3 ),,( yxz C2’ ),,( zxy S2 ),,( yxz 2 ),,( zxy

C3 ),,( xzy C2’ ),,( zxy S2 ),,( xzy 2 ),,( zxy

C3 ),,( yxz C2’ ),,( xyz S2 ),,( yxz 2 ),,( xyz

C3 ),,( xzy C2’ ),,( xyz S2 ),,( xzy 2 ),,( xyz

C3 ),,( yxz C2’ ),,( yzx S2 ),,( yxz 2 ),,( yzx

C3 ),,( xzy C2’ ),,( yzx S2 ),,( xzy 2 ),,( yzx

Além da rede cúbica simples, há outras duas redes de Bravais cúbicas que

apresentam as mesmas 48 simetrias pontuais. São elas a rede cúbica de face centrada

(face-centered cubic, fcc) e a rede cúbica de corpo centrado (body-centered cubic,

bcc). Estas duas redes estão mostradas na Fig. 3.5. Na rede fcc, além dos vértices dos

cubos, há pontos da rede no centro de cada face. Porém, todos os pontos da rede são

indistinguíveis: os da face são também vértices de (outros) cubos, e vice-versa. O mesmo

ocorre na rede bcc, neste caso há um ponto da rede no centro de cada cubo.

A escolha mais simétrica de vetores primitivos para a rede bcc é

)ˆˆˆ(2

1 zyxa a

, )ˆˆˆ(2

2 zyxa a

, )ˆˆˆ(2

3 zyxa a

,

onde a é o comprimento da aresta. Para a rede fcc, a melhor escolha é

)ˆˆ(2

1 zya a

, )ˆˆ(2

2 xza a

, )ˆˆ(2

3 yxa a

.

Tabela 3.1 – Operações de simetria do cubo.

(3.2)

(3.3)

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29

As três redes de Bravais cúbicas formam o sistema cristalino cúbico. Há um total

de 7 sistemas cristalinos distintos: cúbico, tetragonal, ortorrômbico, monoclínico,

triclínico, trigonal (ou romboédrico) e hexagonal, cada um caracterizado por um

conjunto de operações de simetria pontual. Podemos ilustrar estes 7 sistemas através de

objetos que apresentam estas simetrias e que são formados por arestas de lado a, b e c,

que formam ângulos entre si de , e . Os diferentes sistemas cristalinos são então

descritos por relações entre estas arestas e ângulos (veja a Tabela 3.2).

Cada sistema cristalino pode conter uma ou mais rede de Bravais. Há um total de

14 redes de Bravais distintas em 3 dimensões. A descoberta de que há apenas estas 14

maneiras de se preencher o espaço com pontos de forma que cada ponto é indistinguível

dos outros foi feita por A. Bravais em 18453.

Arestas Ângulos Sistema Cristalino Redes de Bravais

cba

90 Triclínico Triclínica

cba

90,90 Monoclínico Monoclínica simples

Monoclínica de base centrada

cba

90 Ortorrômbico Ortorrômbica simples

Ortorrômbica de face centrada

Ortorrômbica de corpo centrado

Ortorrômbica de base centrada

cba

90 Tetragonal Tetragonal simples

Tetragonal de corpo centrado

cba

120,90

Hexagonal Hexagonal

cba

90 Trigonal ou romboédrico Trigonal ou romboédrica

cba

90 Cúbico Cúbica simples

Cúbica de face centrada

Cúbica de corpo centrado

3 Curiosamente, 3 anos antes M. L. Frankheim havia contado 15 possibilidades em vez de 14. Por este

“pequeno” engano, estudamos hoje as redes de Bravais e não as redes de Frankheim...

Tabela 3.2 – Os 7 sistemas cristalinos e as 14 redes de Bravais. Fonte: Ibach, p. 17.

Figura 3.5 – Redes fcc e bcc com seus respectivos vetores primitivos. Fonte: Ashcroft, p. 68 e 69.

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3.2 – Células Unitárias

Uma célula unitária de uma rede de Bravais é um volume do espaço que, quando

transladado por vetores da rede R (não necessariamente todos), preenche todo o espaço

sem se superpor. A Fig. 3.7 mostra em um exemplo bi-dimensional, a rede quadrada,

diversas células unitárias (A, B, C, D e E) e um contra-exemplo (F). Note que a região F,

apesar de ter exatamente a mesma área das regiões A, B e C, não preenche o espaço por

translações de vetores R.

Uma célula unitária primitiva, ou simplesmente célula primitiva, é uma célula

unitária de volume mínimo. A escolha de uma célula primitiva para uma determinada

rede de Bravais também não é única: no exemplo da rede quadrada acima, A, B e C são

células primitivas. Para preencher o espaço todo, uma célula primitiva tem que ser

transladada por todos os vetores R da rede. Por conseguinte, uma célula primitiva contém

Figura 3.6 – Os 7 sistemas cristalinos e as 14 redes de Bravais.

Page 7: 3. Estruturas Cristalinas

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exatamente 1 ponto da rede e o volume de uma célula primitiva, v , se relaciona à

densidade de pontos da rede, n, por nv 1 . Todas as células primitivas de uma

determinada rede de Bravais têm exatamente o mesmo volume.

Uma escolha de célula primitiva que torna fácil o cálculo de seu volume é aquela

formada pelo paralelepípedo gerado pelos vetores primitivos da rede (A e B na Fig. 3.7).

A Fig. 3.8 mostra um exemplo tridimensional. O volume do paralelepípedo é dado por

213

aaa v .

Tomemos a rede fcc como exemplo. Os vetores primitivos desta rede são os da

Eq. (3.3). Desta forma, temos (verifique!) 43213

av aaa , onde a é o lado do

cubo (conhecido como constante de rede ou parâmetro de rede). Uma outra maneira de

se calcular o volume por ponto da rede consiste em tomar a célula unitária definida pelo

próprio cubo da rede fcc. Esta não é uma célula primitiva, mas é importante pois

apresenta as mesmas 48 operações de simetria pontual do sistema cúbico, sendo portanto

de fácil visualização. É conhecida como célula unitária convencional. O volume do

cubo é a3, de forma que, para encontrarmos o volume por ponto da rede, precisamos

contabilizar o número total de pontos da rede que um cubo da célula convencional

F E

D

C

B A

Figura 3.7 – Exemplos e um contra-exemplo de células unitárias da rede quadrada. As regiões A, B e C

são também células primitivas, ou seja, células de volume (área) mínimo(a). Note que a região F, apesar

de ter a mesma área de A, B e C, não preenche todo o espaço por translações de vetores da rede R.

a1

a3

a2

Figura 3.8 – Célula primitiva formada pelo paralelepípedo gerado por três vetores primitivos da rede. O

volume desta célula primitiva (assim como de todas as outras) é .

Page 8: 3. Estruturas Cristalinas

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engloba. Temos, porém, como mostra a (veja a Fig. 3.5), pontos da rede nos vértices e

nas faces do cubo, como contá-los? Bem, cada face é compartilhada por dois cubos, e

cada vértice é compartilhado por oito cubos, de forma que pontos nas faces devem

contribuir com um fator 1/2 e pontos nos vértices devem contribuir com um fator 1/8.

Assim, temos um total de 48681

21 pontos da rede por volume a

3, de modo que o

volume por ponto da rede é a3/4.

É possível escolher uma célula primitiva que tenha também todas as simetrias da

rede de Bravais: a célula de Wigner-Seitz. A célula de Wigner-Seitz é definida como a

região do espaço mais próxima de um determinado ponto da rede do que de qualquer

outro. Por definição, trata-se de uma célula primitiva, já que cada célula está

biunivocamente associada a um ponto da rede. Constrói-se a célula de Wigner-Seitz

associada a um ponto traçando-se planos equidistantes (em duas dimensões, retas

mediatrizes) deste ponto e de pontos ao redor. Um exemplo bidimensional para a rede

oblíqua está mostrado na Fig. 3.9.

Em redes de Bravais tridimensionais, as células de Wigner-Seitz podem ser

objetos geométricos bastante complicados. Veja na Fig. 3.10 as células de Wigner-Seitz

para as redes bcc e fcc, respectivamente um octaedro truncado e um dodecaedro

rômbico. Para a rede cúbica simples, a célula de Wigner-Seitz é um cubo.

Figura 3.9 – Construção da célula de Wigner-Seitz para a rede oblíqua. Veja Ashcroft, p. 74.

Figura 3.10 – Células de Wigner-Seitz para as redes bcc e fcc. Ashcroft, p. 74.

Page 9: 3. Estruturas Cristalinas

33

3.3 – Estrutura Cristalina

Cristais são sólidos ordenados, nos quais as unidades de repetição estão

arranjadas de forma periódica em uma rede de Bravais subjacente. Portanto, uma

estrutura cristalina é definida pela rede de Bravais e um conjunto de posições de um ou

mais tipos de átomos. A este conjunto chama-se base. É importante a distinção entre

redes de Bravais e estruturas cristalinas: a rede de Bravais é uma abstração matemática,

um conjunto de pontos. A estrutura cristalina contém informação das posições ocupadas

por cada átomo e portanto descreve desta maneira a realidade física.

Consideremos um exemplo de uma estrutura bidimensional que apresentamos

como um contra-exemplo de rede de Bravais, a “rede colmeia”. Esta estrutura não é uma

rede de Bravais, mas representa uma estrutura cristalina bidimensional formada a partir

de uma rede de Bravais hexagonal (ou triangular) e uma base de 2 átomos, um na origem

0 e outro em ),( 2131 aa como mostra a Fig. 3.11. Se os dois átomos forem de carbono,

esta é a estrutura do grafeno (uma única folha de grafite). Uma folha de nitreto de boro

(BN) hexagonal também apresenta esta estrutura: neste caso, os átomos de B ocupariam

os sítios 1 enquanto que os átomos de N ocupariam os sítios 2.

Algumas estruturas cristalinas são formadas por apenas 1 átomo por célula

primitiva. Neste caso, as posições atômicas podem ser escolhidas para coincidir com as

posições R dos vetores da rede. Dos casos que analisamos anteriormente, os exemplos

mais importantes são os cristais com estrutura fcc e bcc4. Cristalizam-se na estrutura fcc

os sólidos de gases nobres e vários metais. A Tabela 3.1 mostra o parâmetro de rede para

estes sólidos.

4 A rede cúbica simples não é muito comum entre os sólidos elementares: apenas a fase do polônio

cristaliza-se nesta estrutura.

a1

a2

1

2

Figura 3.11 – A estrutura do grafeno como uma rede de Bravais hexagonal (de vetores primitivos a1 e a2)

e uma base de dois átomos localizados nas posições 0 (átomo 1) e (átomo 2).

Page 10: 3. Estruturas Cristalinas

34

Elemento a(Å) Elemento a(Å) Elemento a(Å) Elemento a(Å)

Ar 5,26 -Co 3,55 Ni 3,52 Rh 3,80

Ag 4,09 Cu 3,61 Pb 4,95 Sc 4,54

Al 4,05 Ir 3,84 Pd 3,89 Sr 6,08

Au 4,08 Kr 5,72 Pr 5,16 Th 5,08

Ca 5,58 La 5,30 Pt 3,92 Xe 6,20

Ce 5,16 Ne 4,43 -Pu 4,64 Yb 5,49

Diversos elementos metálicos, em particular todos os metais alcalinos, se

cristalizam na estrutura bcc. Veja os valores dos parâmetros de rede na Tabela 3.2.

Elemento a(Å) Elemento a(Å) Elemento a(Å)

Ba 5,02 Li 3,49 Ta 3,31

Cr 2,88 Mo 3,15 Tl 3,88

Cs 6,05 Na 4,23 V 3,02

Fe 2,87 Nb 3,30 W 3,16

K 5,23 Rb 5,59

Dissemos anteriormente que há 7 sistemas cristalinos, cada um com seu conjunto

próprio de operações de simetria pontual. Este conjunto de operações forma um grupo

pontual. A definição matemática de grupo está além dos objetivos deste curso. Na

verdade, os grupos e suas propriedades são objeto de estudo de toda uma área da

matemática, a “Teoria de Grupos”, com aplicações importantíssimas em Física da

Matéria Condensada. Quando levamos em conta as operações de translação e pontuais

combinadas, temos um grupo espacial. As 14 redes de Bravais correspondem a 14

grupos espaciais distintos.

Como dissemos, uma estrutura cristalina é formada por uma rede de Bravais e

uma base. Desta forma, a estrutura cristalina pode não ter todas as simetrias da rede de

Bravais a ela associada: depende do objeto (ou conjunto de átomos) que forma a base.

Veja o exemplo na Fig. 3.12: uma estrutura cristalina formada por uma rede de Bravais

quadrada e uma base de simetria menor não apresenta todas as simetrias da rede de

Bravais.

Tabela 3.1 – Parâmetro de rede dos sólidos elementares com estrutura fcc. Fonte: Ashcroft, p. 70.

Tabela 3.2 – Parâmetro de rede dos sólidos elementares com estrutura bcc. Fonte: Ashcroft, p. 70.

Page 11: 3. Estruturas Cristalinas

35

As operações de simetria pontual de todas as estruturas cristalinas possíveis

podem ser agrupadas em 32 grupos, chamados grupos pontuais cristalográficos

(compare este número com os 7 grupos pontuais associados aos 7 sistemas cristalinos).

Quando as operações de translação são levadas em conta, há 230 possíveis grupos

espaciais. Todo e qualquer sólido periódico se encaixa, de acordo com suas simetrias, em

um destes 230 grupos espaciais cristalográficos. Uma extensa e histórica compilação dos

grupos espaciais para diversos compostos está na série de volumes Crystal Structures, de

Wyckoff5. A descrição dos 230 grupos espaciais encontra-se na também histórica coleção

International Tables for Crystallography6.

Iremos descrever agora outros exemplos importantes de estrutura cristalina:

(a) Estrutura do diamante.

Nesta estrutura cristalizam-se os elementos da coluna IV da tabela periódica.

Como mostra a Fig. 3.13, esta estrutura é constituída por uma rede de Bravais fcc e uma

base com dois átomos idênticos, um na origem 0 e outro a 1/4 da diagonal do cubo de

lado a da célula unitária convencional )ˆˆˆ(4

zyx a . Pode-se também visualizar esta

estrutura como duas redes fcc interpenetrantes, deslocadas pelo vetor que une os dois

átomos da base. Como vimos no Capítulo 2, esta estrutura satisfaz a necessidade dos

elementos da coluna IV de formar 4 ligações covalentes com seus vizinhos. Note que

cada átomo fica no centro de um tetraedro formado pelos 4 vizinhos mais próximos. Na

Tabela 3.3, o parâmetro de rede para diversos sólidos com a estrutura do diamante.

5 R. W. G. Wyckoff, Crystal Structures, John Wiley & Sons, New York, 1971.

6 International Tables for Crystallography, Kluwer Academic Publishers, 1996.

Rotação de

Figura 3.12 – Uma estrutura cristalina formada a partir de uma rede de Bravais quadrada e um objeto

complicado como base apresenta redução de simetria. Por exemplo, uma rotação de é uma operação

de simetria da rede de Bravais, mas não da estrutura cristalina.

Page 12: 3. Estruturas Cristalinas

36

Cristal a(Å)

C (diamante) 3,57

Si 5,43

Ge 5,66

-Sn 6,49

(b) Estrutura zincblende (“blenda de zinco”).

Esta estrutura é bastante similar à estrutura do diamante, tendo como única

distinção o fato de que os 2 átomos da base são distintos. Cristalizam-se nesta estrutura

diversos compostos com ligações parcialmente iônicas e covalentes, como os formados

por elementos das colunas III-V e II-VI da tabela periódica. Veja na Tabela 3.4 os

parâmetros de rede de alguns destes compostos.

Cristal a(Å) Cristal a(Å) Cristal a(Å) Cristal a(Å)

CuF 4,26 BeTe 5,54 CdTe 6,48 GaP 5,45

CuCl 5,41 MnS 5,60 HgS 5,85 GaAs 5,65

CuBr 5,69 MnSe 5,82 HgSe 6,08 GaSb 6,12

CuI 6,04 ZnS 5,41 HgTe 6,43 InP 5,87

AgI 6,47 ZnSe 5,67 AlP 5,45 InAs 6,04

BeS 4,85 ZnTe 6,09 AlAs 5,62 InSb 6,48

BeSe 5,07 CdS 5,82 AlSb 6,13 SiC 4,35

(c) Estrutura hcp (hexagonal close-packed).

A estrutura hcp é uma das mais frequentes formas de cristalização dos metais. É

formada por uma rede de Bravais hexagonal, com vetores primitivos xa ˆ1 a ,

)ˆˆ(2

3

21

2 yxa a e za ˆ3 c , e 2 átomos idênticos na base, um na origem e outro no

centro do prisma triangular, em 321

231

131 aaa , como mostra a Fig. 3.14.

Tabela 3.4 – Parâmetros de rede de alguns compostos com estrutura zincblende.

Figura 3.13 – Estrutura do diamante (se todas as esferas representam átomos iguais) ou zincblende (se

esferas brancas representam um tipo de átomo, e esferas cinzas representam outro tipo).

Tabela 3.3 – Parâmetros de rede para sólidos com estrutura do diamante.

Page 13: 3. Estruturas Cristalinas

37

O nome hexagonal close-packed vem do fato de que esta estrutura representa uma

das possíveis maneiras de se “empacotar” esferas duras de modo que elas ocupem o

menor volume possível7. Isto é mais facilmente entendido se analisamos o

empacotamento camada a camada. Em duas dimensões, a configuração de volume

mínimo para um conjunto de esferas duras é a rede triangular. Este arranjo, quando visto

perpendicularmente ao plano, está representado pelos círculos na Fig. 3.15, cada qual

marcado pela letra A. Para colocarmos uma segunda camada de esferas sobre a camada

inicial de forma a preencher o menor volume possível, a melhor escolha são as posições

das “depressões” entre as esferas. Há duas opções equivalentes: o conjunto de posições B

ou C. Ambos conjuntos formam também redes triangulares. A estrutura hcp corresponde

à escolha de empacotamento ABABAB… ou, equivalentemente, ACACAC…. No caso de

esferas duras, este empacotamento forma uma estrutura hcp onde a razão c/a é igual a

38 (lista de exercícios). Este é o valor “ideal” de c/a. Quando empacota-se átomos ao

invés de esferas duras, o valor de c/a pode diferir do valor ideal, mas os dados da Tabela

3.5 mostram que, na maioria dos casos, esta diferença é pequena.

Há inúmeras outras maneiras de obter-se uma estrutura com empacotamento

máximo, basta criar uma sequência de letras A, B e C sem repetição. Por exemplo, a

sequência ABCABC… corresponde à rede fcc (verifique!). Há sistemas que podem se

7 Kepler foi o primeiro a conjecturar esse resultado, em 1611. A demonstração matemática da conjectura de

Kepler ocorreu apenas em 2014! Veja: http://en.wikipedia.org/wiki/Kepler_conjecture

A

A

A

A

A

A

A

A

A

A

A

A

A

B

B

B B

B B

B

B

C

B B

C C

C C C C

C C C

Figura 3.15 – Construção da estrutura hcp ideal camada a camada através do empacotamento de

esferas duras. Na primeira camada, as esferas estão localizadas nas posições A, na segunda, B, e assim

alternando-se ABABAB…. O empilhamento ABCABC…corresponde à rede fcc.

Figura 3.14 – Estrutura hcp. Fonte: Ashcroft, p. 78.

Page 14: 3. Estruturas Cristalinas

38

cristalizar em diversas estruturas diferentes (politipos), e outros que apresentam

sequências aleatórias.

Cristal a(Å) c/a Cristal a(Å) c/a Cristal a(Å) c/a Cristal a(Å) c/a

Be 2,29 1,56 He* 3,57 1,63 Os 2,74 1,58 Tl 3,46 1,60

Cd 2,98 1,89 Hf 3,20 1,58 Pr 3,67 1,61 Tm 3,54 1,57

Ce 3,65 1,63 Ho 3,58 1,57 Re 2,76 1,62 Y 3,65 1,57

-Co 2,51 1,62 La 3,75 1,62 Ru 2,70 1,59 Zn 2,66 1,86

Dy 3,59 1,57 Lu 3,50 1,59 Sc 3,31 1,59 Zr 3,23 1,59

Er 3,56 1,57 Mg 3,21 1,62 Tb 3,60 1,58

Gd 3,64 1,59 Nd 3,66 1,61 Ti 2,95 1,59 “ideal” 1,63

(d) Estrutura do NaCl.

Na estrutura do NaCl, mostrada na Fig. 3.16, cristalizam-se a maioria dos

halogenetos alcalinos e de alguns outros cristais iônicos. Nesta estrutura, os íons ocupam

as posições de uma rede cúbica simples, com cada íon positivo rodeado por seis íons

negativos e vice-versa. Porém, como os íons são diferentes, a estrutura não pode ser

descrita a partir de uma rede de Bravais cúbica simples, e sim de uma rede fcc com dois

átomos por base: um ânion (ou cátion) na origem e um cátion (ou ânion) em x̂2a . A

Tabela 3.6 mostra os parâmetros de rede de alguns sólidos com a estrutura do NaCl.

Cristal a (Å) Cristal a (Å) Cristal a (Å) Cristal a (Å)

LiF 4,02 KCl 6,29 AgCl 5,55 SrO 5,16

LiCl 5,13 KBr 6,60 AgBr 5,77 SrS 6,02

LiBr 5,50 KI 7,07 MgO 4,21 SrSe 6,23

LiI 6,00 RbF 5,64 MgS 5,20 SrTe 6,47

NaF 4,62 RbCl 6,58 MgSe 5,45 BaO 5,52

NaCl 5,64 RbBr 6,85 CaO 4,81 BaS 6,39

NaBr 5,97 RbI 7,34 CaS 5,69 BaSe 6,60

NaI 6,47 CsF 6,01 CaSe 5,91 BaTe 6,99

KF 5,35 AgF 4,92 CaTe 6,34

Tabela 3.5 – Parâmetros de rede e razões c/a para diversos cristais hcp. Fonte: Ashcroft, p. 77.

Figura 3.16 – Estrutura do NaCl. As esferas brancas e pretas representam, respectivamente, os íons

positivos e negativos (ou vice-versa). Fonte: Ashcroft, p. 80.

* A T = 2 K e pressão de 26 atm.

Tabela 3.6 – Parâmetro de rede de alguns sólidos com a estrutura do NaCl. Fonte: Ashcroft, p. 80.

Page 15: 3. Estruturas Cristalinas

39

(e) Estrutura do CsCl.

Alguns poucos halogenetos alcalinos e halogenetos de tálio se cristalizam na

chamada estrutura do CsCl, mostrada na Fig. 3.17. Nesta estrutura, os íons ocupam os

pontos de uma rede bcc, mas, por serem dois tipos diferentes de íons, a rede de Bravais

subjacente é cúbica simples, com uma base de dois átomos, um cátion (ou ânion) na

origem e um ânion (ou cátion) em )ˆˆˆ(2

zyx a . Desta forma, cada íon fica rodeado por 8

íons de sinal oposto. Veja os parâmetros de rede dos compostos com estrutura do CsCl na

Tabela 3.7.

Cristal a (Å) Cristal a (Å)

CsCl 4,12 TlCl 3,83

CsBr 4,29 TlBr 3,97

CsI 4,57 TlI 4,20

3.4 – Sólidos Desordenados: Ligas, Amorfos e Quase-cristais

Nem todos os sólidos apresentam a periodicidade característica das redes de

Bravais. Uma consequência desta periodicidade é a propriedade de ordem de longo

alcance: conhecendo-se a posição de um átomo da rede, podemos determinar exatamente

a posição de um outro átomo qualquer, mesmo que esteja a uma longa distância do

primeiro. Alguns sólidos não possuem esta propriedade, e portanto são genericamente

chamados de desordenados. Dentre estes, discutiremos em detalhe as ligas e os

amorfos. Há ainda materiais que exibem um certo tipo de ordem de longo alcance mas

não são periódicos, podendo então ser entendidos como materiais intermediários entre os

cristais e os desordenados: os quase-cristais.

As ligas são o tipo mais simples de sólido desordenado. Forma-se uma liga

quando se misturam duas ou mais espécies atômicas de forma aleatória (ou parcialmente

aleatória) em uma estrutura cristalina, como está esquematizado na Fig. 3.18. Neste caso,

o principal componente da desordem é químico, e não estrutural: os átomos ocupam

aproximadamente as mesmas posições de um material cristalino, mas a ocupação é

aleatória e portanto perde-se a ordem de longo alcance. Muitas ligas são materiais

Tabela 3.7 – Parâmetro de rede de alguns sólidos com estrutura do CsCl. Fonte: Ashcroft, p. 81.

Figura 3.17 – Estrutura do CsCl. Fonte: Ashcroft, p. 81.

Page 16: 3. Estruturas Cristalinas

40

fabricados artificialmente com objetivo de se desenvolver novos compostos com

propriedades intermediárias com relação àqueles que os compõem, sendo de grande

interesse tecnológico.

Um outro tipo importante de sólido desordenado é o chamado sólido amorfo. Em

um amorfo, a desordem está nas posições dos átomos e não necessariamente em sua

composição química. Um exemplo esquemático de um sólido amorfo em duas dimensões

está mostrado na Fig. 3.19. Note que não há ordem de longo alcance. Porém, um sólido

amorfo está longe de ser uma estrutura totalmente aleatória. Existe uma correlação entre

as posições de átomos próximos, que se manifesta de diferentes formas. Por exemplo

note que, na figura abaixo, todas as ligações químicas são praticamente do mesmo

tamanho e cada “átomo” branco tem dois vizinhos pretos, e cada preto tem três vizinhos

brancos. Este tipo de ordem que permanece nos amorfos é conhecida como ordem de

curto alcance.

A distribuição dos átomos em um sólido amorfo não é muito diferente de um

líquido. No líquido, porém, há uma mobilidade muito maior e as ligações químicas não

Figura 3. 18 – Formação esquemática de uma liga AB a partir dos componentes puros A e B.

A AB B

Figura 3. 19– Um sólido cristalino (à esquerda) e um amorfo (à direita). Note a falta de ordem de longo

alcance no amorfo no amorfo, mas a existência de ordem de curto alcance que se manifesta no tamanho

aproximadamente igual de todas as ligações químicas e no arranjo ordenado dos vizinhos de cada tipo.

Fonte: Kittel, p. 526.

Page 17: 3. Estruturas Cristalinas

41

são rígidas, estando continuamente se formando e se rompendo. Aliás, forma-se um

sólido amorfo resfriando-se o material rapidamente a partir do estado líquido, de modo

que os átomos não tenham tempo suficiente de se arranjarem nas posições cristalinas (de

mais baixa energia) e ficam “congelados” no estado amorfo8.

Talvez o material amorfo mais conhecido seja o vidro de silica (SiO2), que se usa

na fabricação de janelas. Outros exemplos de importância prática são o silício amorfo,

bastante usado na fabricação de células solares, e o carbono amorfo, que apresenta

propriedades de dureza semelhantes ao diamante (sendo, no entanto, muito mais fácil de

ser produzido) e que portanto é utilizado em muitas aplicações como revestimento

protetor (inclusive lâminas de barbear!). Um exemplo da distribuição aparentemente

aleatória dos átomos de Si no seu estado amorfo está mostrado na Fig. 3.20.

Uma maneira de se caracterizar a estrutura de um sistema amorfo ou líquido é

através da função de correlação de pares (também chamada de função de distribuição

radial) g(r). Define-se esta função de modo que drrg )( é o número de átomos contidos

em uma casca esférica entre r e r + dr, dado que há um átomo na origem. Desta forma,

podemos relacionar )(4)( 2 rrrg , onde )(r

seria uma densidade radial de

partículas, a partir de uma partícula na origem. A função g(r) descreve então as não-

homogeneidades na distribuição de partículas. Por exemplo, para um gás ideal de

densidade 0 teríamos 0

24)( rrg , ou seja, uma função quadrática. Já para um cristal

ordenado, a função de distribuição seria formada por uma série de picos muito estreitos,

cada qual a uma distância muito bem definida a partir do átomo central, indicando as

distâncias entre os primeiros vizinhos, segundos vizinhos, etc. Já para um sistema amorfo

8 Há uma noção bastante popular, porém errônea, de que o vidro é um líquido com uma viscosidade

extremamente alta. Isto não é verdade, o vidro possui todas as características mecânicas de um material

sólido. Provavelmente as janelas de catedrais antigas têm a base mais larga que o topo porque seus

construtores sabiam que assim elas seriam mais estáveis.

Figura 3. 20 – Arranjo atômico em uma região de silício amorfo contendo 1728 átomos. Note o arranjo

aparentemente aleatório. Porém, uma análise mais cuidadosa revela que os tamanhos de ligação química e

os ângulos entre elas estão distribuídos em torno de valores médios bem definidos.

Page 18: 3. Estruturas Cristalinas

42

ou líquido, a função de distribuição apresenta um comportamento intermediário entre o

sólido e o gás ideal. A ordem de curto alcance fica clara pela presença de picos alargados

nas vizinhanças mais próximas do átomo central. Podemos ver este comportamento na

Figura 3.21, que mostra resultados experimentais para a função g(r) para o sódio líquido.

Na mesma figura, compara-se o resultado obtido com as funções g(r) para o sódio

cristalino e um gás ideal com a mesma densidade.

Figura 3.21 - Função de distribuição de pares para o (a) sódio líquido, (b) um gás ideal com a mesma

densidade do sódio líquido e (c) cristal de sódio na estrutura bcc. Fonte: "X-Ray Diffraction Study of

Liquid Sodium", L. P. Tarasov e B. E. Warren, J. Chem. Phys. 4, 236 (1936).

Quase-cristais formam uma outra classe de material desordenado (ou, mais

corretamente, quase-ordenado). Como vimos neste capítulo, as redes de Bravais e as

estruturas cristalinas podem ser classificadas de acordo com suas simetrias. Vimos que

algumas destas simetrias são operações pontuais como rotações, inversões e reflexões.

Em cristalografia, há muito se sabe que as possíveis simetrias de rotação são por ângulos

de n2 , onde n = 1, 2, 3, 4 ou 6. Operações de simetria por rotações de 52 são

incompatíveis com a periodicidade cristalina, um fato que se expressa em duas dimensões

pela impossibilidade de preenchermos o plano com células unitárias pentagonais, como

mostra a Fig. 3.22. Analogamente, em três dimensões é impossível preencher o espaço

com dodecaedros ou icosaedros, sólidos platônicos que também apresentam simetria de

rotação de 52 (Fig. 3.23).

Foi então surpreendente quando, em 1984, Shechtman, Blech, Gratias, e Cahn9

demonstraram, por difração de elétrons, que certas ligas de Al-Mn rapidamente resfriadas

a partir do estado líquido formavam sólidos que combinavam simetria de rotação de

52 no espectro de difração e ordem orientacional de longo alcance, significando que

as diversas unidades que compõem o sólido estavam todas orientadas da mesma forma.

9 D. Schechtman, I. Blech, D. Gratias, J. Cahn, Metallic phase with long range orientational order and no

translational symmetry, Phys. Rev. Lett. 53, 1951 (1984).

Page 19: 3. Estruturas Cristalinas

43

Este tipo de ordem orientacional até então era associada à periodicidade cristalina que,

como dissemos, é incompatível com a simetria de rotação de 52 . A estes materiais,

que pareciam apresentar algumas propriedades de um sistema cristalino (ordem

orientacional de longo alcance), mas não outras (periodicidade), deu-se o nome de quase-

cristais. Por sua descoberta, Shechtman ganhou o Prêmio Nobel de Química em 2011.

Há versões unidimensionais dos quase-cristais que, mesmo sem apresentar

simetrias de rotação, ilustram a possibilidade de um sistema ter um certo tipo de ordem

sem ser periódico. O protótipo 1-D de quase-cristal é a cadeia de Fibonacci, uma

sequência unidimensional infinita formada por dois tipos de elementos, A e B (que podem

representar dois átomos distintos ou duas ligações de comprimentos diferentes). A

sequência infinita S é gerada recursivamente a partir de duas sequências iniciais A e AB

através do algoritmo 11 nnn SSS :

...

ABAABABA

ABAAB

ABA

AB

A

Figura 3.22 – É impossível recobrir um plano apenas com pentágonos.

(3.4)

Figura 3.23 – Os sólidos platônicos: tetraedro, cubo, octaedro, dodecaedro e icosaedro. Destes, os os

dois últimos são os únicos com os quais não se pode preencher o espaço, devido às suas simetrias de

rotação de 2/5.

Page 20: 3. Estruturas Cristalinas

44

Note que esta sequência não é periódica: não há nenhuma unidade básica que se repita.

Ao mesmo tempo, existe uma certa ordem visto que a distribuição de A’s e B’s não é

aleatória, mas gerada a partir de regras bem definidas.

Esta cadeia tem este nome por analogia com a sequência de números de

Fibonacci, 0, 1, 1, 2, 3, 5, 8, 13, 21, …, na qual um elemento é dado pela soma dos dois

antecessores10

. A razão entre um número de Fibonacci e seu antecessor tende ao número

irracional 2

15 , conhecido desde a antiguidade por estar associado a proporções

esteticamente harmoniosas, e por isso chamado “proporção áurea”. Pode-se mostrar

que, na cadeia de Fibonacci infinita, a razão entre elementos A e B é igual a . A

proporção áurea também está presente de diversas maneiras em quase-cristais em 2 e 3

dimensões.

Em duas dimensões, o quase-cristal mais conhecido é o chamado “ladrilho de

Penrose”. Interessantemente, foi inventado antes da descoberta experimental dos quase-

cristais pelo físico-matemático Roger Penrose, em 1974. O ladrilho, mostrado na Fig.

3.24, representa um arranjo não-periódico de dois tipos de paralelogramos de lados iguais

através de regras bem definidas. Note que os diversos decágonos regulares da figura estão

todos orientados da mesma forma, indicando a ordem orientacional de longo alcance. A

proporção áurea também se faz presente: é igual à razão entre os números de

paralelogramos de cada tipo.

Nos quase-cristais reais, em três dimensões, os átomos de Mn e Al se organizam

de forma que 12 Al formam uma “gaiola” icosaédrica com 1 Mn no centro, e os diversos

icosaedros se agrupam pelas bordas de maneira paralela.

10

Os números de Fibonacci aparecem de forma intrigante em diversos fenômenos da natureza,

especialmente em biologia.

Figura 3.24 – O ladrilho de Penrose.

Page 21: 3. Estruturas Cristalinas

45

Referências:

- Ashcroft, Caps. 4 e 7.

- Kittel, Cap. 1 (cristais), Cap. 19 (amorfos) e Cap. 22 (ligas).

- Ibach, Cap. 2.

- Um bom artigo introdutório sobre quase-cristais: D. R. Nelson, Scientific

American, agosto de 1986, p. 33.

- R. W. G. Wyckoff, Crystal Structures, John Wiley & Sons, New York, 1971.

- International Tables for Crystallography, Kluwer Academic Publishers, 1996.