3070

15

Click here to load reader

Transcript of 3070

Page 1: 3070

O CRIME, A PENA E O DIREITO EM ÉMILE DURKHEIM

THE CRIME, PUNISHMENT AND THE WRIGHT IN ÈMILE DURKHEIM

Geraldo Ribeiro de Sá

RESUMOCom a finalidade de contribuir com o debate sobre os fatos sociais e problemas sociais, denominados crimee pena, retomou-se a leitura de algumas obras de Émile Durkheim (1858-1917), acrescida de reflexõesanteriormente elaboradas pelo autor desde artigo. Para se perceber e acompanhar as etapas do processo deconstrução das categorias crime e pena, como elementos de articulação, desarticulação e rearticulação depessoas e grupos em sociedade, optou-se por examinar as obras do autor, seguindo-se a ordem cronológicada publicação de cada uma delas. O artigo encontra-se desenvolvido em alguns momentos fundamentais: a)introdução; b) apresentação e debate a respeito das categorias crime e pena, nas obras do autor, com ênfasesobre a discussão referente à normalidade social da criminalidade; c) algumas indagações a respeito dospropósitos do autor, ao caminhar pelo mundo do direito, detendo-se sobre os temas do crime e da pena; d)finalizando, destacou-se o caráter de instrumentalidade de seus estudos, referentes ao crime e à pena, aserviço da compreensão de como funciona e de como poderia funcionar a sociedade moderna.PALAVRAS-CHAVES: crime, pena, solidariedade, modernidade.

ABSTRACTIn order to contribute witch the debate about the social facts and problems referred to as crime andpunishment, some works by Émile Durkheim (1858-1917) were reread and added to reflections previouslydeveloped by the author of this article. So as to perceive and follow the stages of the building process ofcrime and punishment categories as elements of personal and group articulation, disarticulation, andrearticulation in society, the aforementioned author’s works were examined in chronological order ofpublication. The article comprises some fundamental moments: a) introduction; b) presentation and debateabout crime and punishment categories in author’s work, witch a highlight of the discussion regarding socialnormality in criminality; c) some questions about the author’s aims in his wandering through the legalrealm, and his focus on the crime and punishment theme; d) final focus on the instrumentality of this studiesconcerning crime and punishment, useful to understand how modern society works and and how it couldwork.KEYWORDS: crime, punishment, solidarity, modernity.

1. INTRODUÇÀO

Émile Durkheim (1958-1917) foi um cartesiano de formação e convicção, um positivista confesso, lúcido epolêmico, que dialogou com antecessores seus, como Cesare Bonesana, Marquês de Beccaria (17381794),sobretudo, com o conteúdo do livro Dos delitos e das penas, publicado em 1764. Polemizou comcriminólogos de sua época, com grande destaque e sucesso, como C. Lombroso, E. Ferri, Moselli, Garofalo,entre outros, além de debater com sociólogos famosos, como G. Tarde. Foi lido e citado por filósofos,adversários do positivismo, da segunda metade do Século XX, como M. Foucault, com repercussõesvisíveis na obra Vigiar e Punir. Dialogou com o sentimento, principalmente, com o denominado sentimento

This version of Total HTML Converter is unregistered.

* Trabalho publicado nos Anais do XIX Encontro Nacional do CONPEDI realizado em Fortaleza - CE nos dias 09, 10, 11 e 12 de Junho de 2010 8359

Page 2: 3070

coletivo, ou seja, um dos campos da irracionalidade, porém, de forma racional. Aliás, o tratamento racionaldas manifestações de irracionalidade humana continua sendo fundamental, também, para a compreensão dofuncionamento da modernidade, no século XXI.

Deve-se esclarecer, ainda, que É. Durkheim não foi um jurista e jamais pretendeu sê-lo, porém, na condiçãode primeiro titular da Cátedra de Ciência Social e Pedagogia, na Universidade de Bordéus, e a partir de1902, Professor de Sociologia e Pedagogia, na Sorbonne, sempre se posicionava com o propósito de atingiro status de fundador da sociologia científica. Aliás, com muita competência e sucesso, ele atingiu esteobjetivo: fazer da Sociologia uma ciência. Projeto por demais ambicioso, mas, até certo ponto realizado,dentro dos limites de seus propósitos e contextos da época. Para tanto ele identificou, delimitou e apresentouao mundo científico o objeto de estudo da nova ciência, a metodologia a ser cumprida no tratamento desseobjeto e desenvolveu projetos de pesquisa sobre o crime e o suicídio, entre muitos outros, com a finalidade,sobretudo, de demonstrar a viabilidade e a importância da incipiente ciência.

Com esse propósito, empenhou-se em captar elementos de vinculação, de solidariedade, de soldagem dosindivíduos em sociedade, passando consequentemente pelo tratamento de fatos sociais fundamentais naformação e manutenção das mínimas, máximas e complexas redes de tecidos sociais, com destaque para osdiferentes sistemas morais, religiosos, jurídicos e outros.

Ao se dialogar com É. Durkheim, pensador francês, uma pergunta inicial deve ser feita. Ainda é convenienteler um autor, falecido há quase 100 anos, para se esclarecer questões do presente ou do início do séculoXXI? O ponto de vista do autor deste artigo é pelo sim, e, como fundamentação para essa resposta, algunsmotivos já podem ser antecipados, conforme se verá através das argumentações seguintes.

Uma entre as muitas questões debatidas, inclusive por É. Dukheim e para a qual este pensador ainda temmuito a contribuir, consiste na aversão, dor e revolta, quase sempre acompanhadas pelo sentimento deperplexidade, que perpassam o organismo social, quando este é ferido pelo comportamento humanodenominado crime, cuja ferida é curada ou pelo menos aliviada, através da resposta, denominada pena,apresentada por esse mesmo organismo.

Ao focalizar o direito, como objeto de estudo da Sociologia, o referido autor deteve-se, da mesmaforma, no campo da repressão, refletindo-se particularmente sobre o crime, como fato social que perpassatoda a história da humanidade. Por sua vez, apesar de sua generalidade e universalidade, o crime sempreprovocou no passado e no presente a repulsa de todos, ao ponto de a sociedade exigir, sem exceção edescanso, a resposta denominada pena, diante das instituições repressoras.

Apesar da repugnância universal ao crime e às suas diversas formas de manifestação, o autor chegou auma original e revolucionária conclusão: o crime encontra-se dentro da normalidade estatística, apresentadapelos demais fatos sociais, isto é, ele é um fato social normal. Com esta tese, o autor argumentou ecomprovou que o crime não é uma doença social, em si mesmo, embora o comportamento criminoso, emconcreto, ou mesmo certas elevações, apresentadas pelas taxas de criminalidade, possam indicar umapatologia pessoal ou coletiva conforme se discutirá no desenvolvimento dessas reflexões.

Com esta tese, É. Durkheim estava debatendo e polemizando com criminologistas de sua época, comdestaque para os adeptos da Escola Penal Positiva, liderada pelo médico italiano Cesare Lombroso (1835-1909), defensores da explicação da criminalidade e do crime como fatos patológicos, ou seja, comopassíveis de tratamento médico.

Neste artigo, pretende-se refletir sobre o crime, a pena e o direito em É. Durkheim, procurandodetectar, sobretudo, o espaço ocupado por essas categorias conceituais em algumas de suas principais obras,

This version of Total HTML Converter is unregistered.

* Trabalho publicado nos Anais do XIX Encontro Nacional do CONPEDI realizado em Fortaleza - CE nos dias 09, 10, 11 e 12 de Junho de 2010 8360

Page 3: 3070

bem como expor certos propósitos do referido autor, ao estudar esses temas e, por último, apresentaralgumas considerações finais.

2. O CRIME, A PENA E O DIREITO NAS OBRAS DE È. DURKHEIM

Aliás, por o crime ser um fato de sociologia normal não se segue que não se deva odiá-lo [...] Seria, pois,desnaturar singularmente o nosso pensamento apresentá-lo como uma apologia do crime (DURKHEIM,2002, p. 87).

A análise restringir-se-á, conforme antecipado, ao exame de algumas obras do autor, em discussão,naturalmente as mais indicadas para os objetivos destas reflexões. Seguir-se-á, nesse momento, a própriadisposição cronológica do aparecimento de seus livros e artigos, pois o pensamento de É. Durkheim avançasem se deixar afastar do núcleo central e da linha metodológica delineados por ele desde o início de seusescritos.

2. 1. A Divisão do Trabalho Social

Neste livro, É. Durkheim (1999, p. 107) tratou, nos capítulos iniciais, da solidariedade mecânica ou dacoesão social por semelhanças, usando analogia, nos termos seguintes:

As moléculas sociais, que só seriam coerentes dessa maneira, não poderiam, pois, mover-se em conjunto, anão ser na medida em que não têm movimentos próprios, como fazem as moléculas dos corpos inorgânicos.É por isso que propomos chamar de mecânica essa espécie de solidariedade. Essa palavra não significa queela seja produzida por meios mecânicos e de modo artificial. Só a denominamos assim por analogia com acoesão que une entre si os elementos dos corpos brutos, em oposição à que faz a unidade dos corpos vivos.

A analogia do movimento, desenvolvido de maneira unida e uniforme pelos indivíduos, classificados peloautor como moléculas sociais, dentro dos agrupamentos humanos com o movimento dos elementos nointerior dos corpos brutos ou inanimados, foi empregada pelo autor para esclarecer a forma de solidariedadedenominada mecânica.

Solidariedade ou união mecânica, no sentido de espontânea, padronizada e coesa, a tal ponto que osentimento de um passa ser o sentimento da coletividade, a vontade de um passa ser a vontade de todos e,vice-versa, o desejo do grupo é o desejo de todas as pessoas, a maneira de sentir coletiva passa a ser maneirade sentir de cada um, por exemplo. Ou ainda, nessa forma de solidariedade, a união dos indivíduos é tãocoesa que se assemelha à integração das moléculas de uma pedra, que se movem todas quando esta é roladade morro abaixo ou erguida por um guindaste.

Conforme É. Durkheim, quando a solidariedade social do tipo mecânico prevalece, consequentementepredominam a semelhança funcional, a divisão social de trabalho fundamentada no gênero e na idade, bem

This version of Total HTML Converter is unregistered.

* Trabalho publicado nos Anais do XIX Encontro Nacional do CONPEDI realizado em Fortaleza - CE nos dias 09, 10, 11 e 12 de Junho de 2010 8361

Page 4: 3070

como a incipiente "especialização" de tarefas. Nessas condições, as redes que articulam e unem as pessoas,em sociedade, são constituídas, sobretudo, pela tradição e religião, pelo afeto e parentesco.

Em suas reflexões sobre as formas de solidariedade mecânica, pela primeira vez, o autor apareceucom o estudo a respeito do crime, da pena e do direito. O crime foi analisado, nesse momento, como fatorde ruptura dos laços que vinculam os membros de um agrupamento social, não importando a simplicidadede sua organização, como acontece, por exemplo, numa sociedade tribal. Nesses momentos e nessassociedades, é muito importante a função das normas, que compõem o direito repressivo, destinadas àrecomposição e ao fortalecimento dos vínculos sociais rompidos pelo comportamento do tipo criminoso.

Muito a propósito e de maneira transparente, escreveu É. Durkheim (1999, p. 39):

O laço de solidariedade social a que corresponde o direito repressivo é aquele cuja ruptura constitui o crime.Chamamos por esse nome todo ato que, num grau qualquer, determina contra seu autor essa reaçãocaracterística a que chamamos pena. Procurar qual é esse vínculo é, portanto, perguntar-se qual a causa dapena, ou, mais claramente, em que consiste essencialmente o crime.

Há rupturas nas relações sociais a serem refeitas. Para se suturar essas rupturas, alguns instrumentosfundamentais a serem usados estão disponíveis de forma latente, combinada, transparente e simultânea: atipificação do crime, a cominação da pena e o conhecimento do direito. Em outras palavras, ocorrido orompimento dos laços de solidariedade social pelo comportamento criminoso, procura-se restabelecê-losatravés da cominação da pena contida nas normas repressivas, em que estão definidos, da mesma maneira,os procedimentos a serem utilizados no restabelecimento ou reconstrução desses vínculos de solidariedade.O direito repressivo, nessas condições, é composto pelo conjunto de normas, sobretudo, costumeiras ereligiosas, positivadas ou não, cujo conteúdo define o crime, a pena e prescreve os rituais de punição. Paraconceituar crime, pena e direito, É. Durkheim (1999) ocupou grande parte do livro primeiro de A Divisão doTrabalho Social, o que na edição consultada, para a feitura destas reflexões, encontra-se entre as páginas 39e 109.

O autor, entretanto, na mencionada obra, não examinou o crime, a pena e o direito, somente nosagrupamentos cujos membros vinculavam-se pela solidariedade mecânica, predominante nas sociedadesorganizadas de forma mais simples, ou de estrutura menos complexa. Nessas sociedades, a divisão dotrabalho social era definida, fundamentalmente, em função de elementos oferecidos por fatores naturais,como a constituição anatômica, determinante na definição do masculino e do feminino, o tempo nadelimitação das faixas etárias, os fatores "sobrenaturais", na determinação dos serviços sagrados e dasatividades mágicas.

Suas preocupações voltaram-se também para as sociedades de organização complexa, nas quais as formasde solidariedade fundamentavam-se, principalmente, na diferenciação de funções ou nas "especializações".Nessas sociedades, a divisão social do trabalho já era mais avançada e complexa. Aliás, sobre a estrutura dassociedades complexas, também conhecidas como sociedades modernas, escreveu É. Durkheim (1999, p.165): "Elas são constituídas não por uma repetição de segmentos similares e homogêneos, mas por umsistema de órgãos diferentes, cada um dos quais tem um papel especial e que são formados, eles próprios, departes diferenciadas".

Se nas sociedades classificadas como "primitivas" a solidariedade social fundamentava-se, basicamente, na

This version of Total HTML Converter is unregistered.

* Trabalho publicado nos Anais do XIX Encontro Nacional do CONPEDI realizado em Fortaleza - CE nos dias 09, 10, 11 e 12 de Junho de 2010 8362

Page 5: 3070

semelhança de funções, de tal forma que os indivíduos formavam-se um coletivo tanto quanto inorgânico,nas sociedades informadas, sobretudo, pela solidariedade orgânica, a coletividade constituía-se, antes detudo, pela interdependência de funções e papéis distintos. Cada órgão desempenhava funções diferentes noagir e interdependentes no existir.

Também nesse segundo tipo de sociedade, o crime esgarça relações e rompe vínculos sociais. Ossentimentos coletivos feridos e rompidos tendem a recompor-se através de sanções ou penalidades dos maisdiferentes matizes. Na medida em que as sociedades modificam suas estruturas, isto é, transformam-se,através da diferenciação e multiplicação de funções, também a solidariedade deixa de se assentar nasemelhança para se fundamentar na diferenciação. Entretanto, pelo fato de uma sociedade se fundamentar nasolidariedade, dominantemente orgânica, não significa que ela exclua totalmente a solidariedade mecânica.

As duas formas de solidariedade coexistem no interior de uma mesma sociedade. O que se quer realçar éque, em momentos diferentes, uma forma de solidariedade pode predominar sobre a outra e, da mesmaforma, uma forma de ruptura social pode prevalecer num ou noutro tipo de solidariedade. Mas, assim comoocorrem transformações nos vínculos sociais, acontecem também mudanças nas formas do comportamentocriminoso, nas sanções, nos sistemas normativos, em geral, e no mundo do direito, em especial, conforme severá mais adiante.

Se nas sociedades informadas pela semelhança de funções predominava o direito repressivo, nas sociedades,onde predomina a solidariedade assentada, sobretudo, na diferenciação funcional, haverá a preponderânciado direito restitutivo.

Aliás, por direito restitutivo É. Durkheim entendeu todo o direito que não fosse o penal ou repressivo. Emtodos eles, porém, está presente a sanção, ora sob forma de pena, ora na figura da restituição. A função dasanção, seja repressiva ou restitutiva, será sempre a de restabelecer vínculos, conexões ou liames sociaisrompidos.

O próprio autor demonstrou, longamente, através de exemplos, as transformações do direito, decorrentes dasmudanças sociais. Por sua vez, ele sempre advertiu ao leitor que o predomínio do direito restitutivo nãoeliminaria, jamais, o papel do direito repressivo. As duas formas de direito iriam sempre coexistir, assimcomo as duas manifestações de solidariedade: a mecânica e a orgânica, embora com a preponderância dasegunda sobre a primeira.

Em outros termos, vê-se, em nossos dias, o direito penal, agora totalmente positivado e totalmente distintodos campos da moral, da religião e das normas de caráter tradicional, coexistindo, entretanto, com os demaisramos do direito. O direito repressivo continua, portanto, com seu novo rosto, agora refletido no direitopenal, na condição de um dos mais expressivos ramos jurídicos, posto nas sociedades contemporâneas,mesmo nas mais modernas, onde a divisão do trabalho social manifesta-se sob formas cada vez maiscomplexas.

Deve-se destacar, ainda, que o autor foi buscar, no direito e não diretamente na moral ou na religião, a fontepara o conteúdo da obra A Divisão do Trabalho Social, tendo encontrado aí os elementos de soldagem e derecomposição da solidariedade rompida. Ele próprio justificou sua incursão pelo mundo do direito, nostermos seguintes:

O estudo da solidariedade pertence, pois, ao domínio da sociologia. É um fato social que só pode ser bemconhecido por intermédio dos seus efeitos sociais [...].

Uma vez que o direito reproduz as formas principais de solidariedade social, só nos resta classificar as

This version of Total HTML Converter is unregistered.

* Trabalho publicado nos Anais do XIX Encontro Nacional do CONPEDI realizado em Fortaleza - CE nos dias 09, 10, 11 e 12 de Junho de 2010 8363

Page 6: 3070

diferentes espécies de direito para descobrirmos, em seguida, que correspondem a elas (DURKHEIM, 1999,p. 34-35).

2. 2 As Regras do Método Sociológico

Se, no livro A Divisão do trabalho social, a preocupação central era abordar os fatos sociais conforme ométodo das ciências positivas, na obra As regras do método sociológico, o autor propôs-se a construir edemonstrar a metodologia das ciências sociais ou, mais especificamente, da Sociologia. Nesse sentido opensador francês foi bem explícito: "(A ciência do homem) [...] não conhece senão fatos que têm todos omesmo valor e o mesmo interesse; observa-os, explica-os, mas não os julga. Para ela, não os há que sejamcensuráveis "(DURKHEIM, 2002, p, 68).

Nessa obra, o autor ao observar e explicar o fato social denominado crime, não levando em contasuas manifestações singulares, mas, principalmente, suas características universais, ele classificou-o comouma das maneiras de pensar, agir e sentir, dotadas de exterioridade, coerção e generalidade, além de fazerparte da natureza sadia de toda e qualquer sociedade, optando, assim, por classificá-lo como normal. Paratanto, apresentou ao leitor a seguinte argumentação, aliás, muito convincente:

Em primeiro lugar, o crime é normal porque uma sociedade isenta dele é completamente impossível [...].

O crime não se observa só na maior parte das sociedades desta ou daquela espécie, mas em todas associedades de todos os tipos. Não há nenhuma em que não haja criminalidade (DURKHEIM, 2002, p. 82-83).

Para ser fiel ao pensamento do autor, deve-se, contudo, recordar que ele, quando descreveu e comprovou anormalidade do fato social denominado crime, não estava dizendo o mesmo a respeito de todas asmanifestações do comportamento criminoso. As espécies de crime podem variar de sociedade parasociedade, de época para época, de região para região. Noutros termos, quando se conclui que o crime énormal não se está afirmando que os atos de furtar, matar, entre muitos outros, sejam normais, no sentido desocialmente aceitos ou aprovados, ou não sujeitos às penalidades legais, muito pelo contrário. Para o autor,os conceitos de normalidade ou sanidade e de anormalidade ou patologia são constatações resultantes deobservações e de explicações do crime, enquanto componente da sociabilidade humana e das maisdiferentes formas de organização decorrentes dessa sociabilidade.

A inclusão do crime, entre os fatos sociais classificados como sadios, porque constitutivos dos estadossaudáveis de toda e qualquer sociedade, conforme concluiu textualmente o próprio É. Durkheim, contemmuitos outros elementos explicativos, para a compreensão desse detestável e sempre punível fato social oudessas horripilantes maneiras de pensar, agir e sentir. Alguns desses elementos explicativos merecemdestaque.

1º - O próprio É. Durkheim (2002, p. 82) foi muito claro, ao concluir que o crime não é uma enfermidadesocial: "Transformar o crime em uma doença social seria admitir que a doença não é uma coisa acidental,mas que, pelo contrário, deriva em certos casos, da constituição fundamental do ser vivo; seria eliminar

This version of Total HTML Converter is unregistered.

* Trabalho publicado nos Anais do XIX Encontro Nacional do CONPEDI realizado em Fortaleza - CE nos dias 09, 10, 11 e 12 de Junho de 2010 8364

Page 7: 3070

qualquer distinção entre o fisiológico e o patológico".

Entretanto, se o crime está situado no universo da sanidade social, compondo, portanto, a história social dahumanidade, não significa que alguns criminosos não possam ser indivíduos anormais ou doentes, do pontode vista biológico ou psicológico.

Por sua vez, o fato de certos criminosos serem também doentes, não se pode inferir que todos o sejam, o queseria cair em um grave engano. Nesse grave engano, lamentavelmente, incorreu a escola positiva em direitopenal, conforme concordou, inclusive, J. Hall (apud GURVITH, 1964, p. 334-335), citando É. Durkheim,nos termos seguintes: "Considerar o crime como uma enfermidade social foi um dos mais perigosos dogmasda penologia positiva", originada, sobretudo, a partir das pesquisas lideradas, pelo clássico médico ecriminólogo italiano C. Lombroso.

2º - Construiu-se o princípio referente à utilidade e à necessidade do crime. A propósito foi muito segura etransparente a manifestação de É. Durkheim (2002, p. 81): "Por último e, sobretudo, se é verdade que tudoque é normal é útil, pelo menos por ser necessário, é falso que tudo o que é útil seja normal".

A utilidade e a necessidade do crime, aqui, dizem respeito à sua contribuição para as transformaçõessociais, tanto em nível de estrutura como de superfície, conforme foi salientado. O crime, emboralastimável, é útil e necessário às mudanças nos campos da moral, da religião, bem como nos demaisconjuntos de normas de conduta social. Mais uma vez É. Durkheim (2002, p. 82) foi explícito: "O crime énecessário; está ligado às condições fundamentais de qualquer vida social, mas precisamente por isso, é útil;porque estas condições de que é solidário são elas mesmas indispensáveis à evolução normal da moral e dodireito".

O criminoso, portanto, embora se nos apareça horripilante pelo sentimento que feriu e pelas rupturas dosliames sociais que provocou, ele também se nos manifesta como elemento sociável e não de todoparasitário. "Contrariamente às idéias correntes, o criminoso já não aparece como um ser radicalmenteinsociável, como uma espécie de elemento parasitário, de corpo estranho e inassimilável, introduzido noseio da sociedade; é um agente regular da vida social" (DURKHEIM, 2002, p. 87).

3º - Uma relação entre as taxas de criminalidade e a criminalidade, propriamente dita, deve ser explicitada ecomentada.

Aqui, entende-se por taxa de criminalidade a relação entre a quantidade anual de crimes e aquantidade de população. A análise dessas taxas pode revelar ao leitor as configurações do crime em seusaspectos anormais ou indicativas de patologia social. Não se pode confundir, entretanto, crime, fato socialnormal, com as formas concretas, sob as quais, às vezes, ele se apresenta, sobretudo através dessas taxas.

Uma das formas de apresentação patológica da criminalidade acontece, quando, por exemplo, o crime atingecertas taxas exageradas, e, exatamente, neste excesso encontra-se caracterizada sua natureza mórbida.Quando esse exagero aparece nas mencionadas taxas, devem ser revistas certas instituições econômicas,jurídicas, políticas, entre outras. Nesse momento algumas indagações devem ser postas a respeitos dessasinstituições. Questões do tipo: O que está provocando taxas anormais de comportamento criminoso? Essasinstituições estão ou não atualizadas? Elas se deixaram de ser eficientes? Devem ser reformuladas ouabandonadas?

2.3 O Suicídio

This version of Total HTML Converter is unregistered.

* Trabalho publicado nos Anais do XIX Encontro Nacional do CONPEDI realizado em Fortaleza - CE nos dias 09, 10, 11 e 12 de Junho de 2010 8365

Page 8: 3070

Num primeiro momento, pode-se parecer que o fato social denominado suicídio, título do livro homônimo,publicado por É. Durkheim, nada tenha a ver com o crime, a pena e o direito. Ao se examinar o suicídio,sobretudo, do ponto de vista histórico e nas maneiras de pensar, agir e sentir, exteriorizadas pelo suicida,esse tipo de fato social deixa de se apresentar apenas com características puramente pessoais, como podeaparecer ao interessado num primeiro momento.

Primeiramente, o autor procura demonstrar que o fato social crime não era penalizável por muitos povos, atéque o cristianismo formalmente o proibiu e, a partir desse momento, o corpo do suicida passou a ser objetode penalidades, executadas através das mais diferentes formas, conforme se verá mais adiante.

A propósito da penalização do cadáver do suicida, manifestou É. Durkheim (1977, p. 386) de maneiraseguinte:

Mal as sociedades cristãs apareceram, logo o suicídio foi formalmente proibido. Em 452, o Concílio deArles proclamou que o suicídio era um crime e que só podia ser a consequência de uma fúria demoníaca.Mas só no século seguinte, em 563, no Concílio de Praga, é que esta prescrição recebe uma sanção penal.

Reforçando o entendimento desta citação, deve-se acrescentar outra argumentação, no dizer do antropólogoB. Malinowski, referente aos habitantes do arquipélago de Trobriand, ao constatar o caráter de expiação daprática do suicídio. "Em nosso relato tocamos em dois pontos importantes: o uso da bruxaria como meio decoerção e a prática do suicídio como expiação e desafio" (MALINOWSKI, 1973, p. 103).

Como se pode verificar, nas sociedades sob influência do cristianismo e, consequentemente, debaixo de suaorientação, com amparo na legislação religiosa e de efeito civil, - pois o civil e o religioso constituíam umaúnica unidade - o fato social tipificado como suicídio foi proibido e tornou-se punível.

Mas, como penalizar o suicida?

Conforme o lugar, onde acontecia o suicídio, as penas recaiam sobre o cadáver e, de acordo com ascircunstâncias, sobre seus bens. A título de ilustração, pode-se citar o fragmento seguinte, extraído de É. Durkheim (1977, p. 387):

Encontra-se uma legislação semelhante em todos os povos cristãos que, aliás, conserva a severidade inicialdurante muito mais tempo do que a francesa. Em Inglaterra, logo no século X, o rei Edgar assemelha, numdos Cânones que publicou, os suicidas aos ladrões, aos assassinos de toda a espécie. Até 1823, houve ohábito de arrastar o corpo do suicida pelas ruas com um pau atravessado e enterrá-lo no campo semnenhuma cerimônia. Ainda hoje o enterro se faz à parte. O suicida era declarado e os bens passavam para acoroa. Só em 1870 é que esta disposição é abolida assim como todas as confiscações tendo por motivo arebelião.

Na medida em que foram ocorrendo separações entre a jurisdição eclesiástica e a jurisdição civil, entre aspráticas de caráter público e de interesse privado, a legislação civil abandonou a prática de punir o suicida.Contudo, até a realização do Concílio Vaticano II, na segunda metade do século XX, a legislaçãoeclesiástica católica ainda punia o suicida. Algumas penalidades consistiam em não permitir os funerais

This version of Total HTML Converter is unregistered.

* Trabalho publicado nos Anais do XIX Encontro Nacional do CONPEDI realizado em Fortaleza - CE nos dias 09, 10, 11 e 12 de Junho de 2010 8366

Page 9: 3070

religiosos para o corpo do suicida: seu cadáver não podia ser conduzido à igreja, o padre não o abençoava, osepultamento não se fazia no local denominado "sagrado", mas na parte conhecida como profana oureservada aos pagãos, quando se tratava de cemitério eclesiástico, evidentemente.

Mesmo deixando de punir o suicida, muitas das legislações civis não permaneceram indiferentes aosuicídio. Deixou de puni-lo o suicida, mas passou a penalizar seu cúmplice, como se pode constatar tambémno Código Penal Brasileiro.

O Código Penal Brasileiro (1940), no artigo 122, preceitua:

Induzir ou instigar alguém a suicidar-se ou prestar-lhe auxílio para que o faça:

Pena-reclusão, de dois a seis anos, se o suicídio se consuma; ou reclusão, de um a três anos, se a tentativa desuicídio resulta lesão corporal de natureza grave.

Parágrafo único - A pena é duplicada.

Aumento da Pena:

I- se o crime é praticado por motivo egoístico;

II- se a vítima é menor ou tem diminuída, por qualquer causa, a capacidade de resistência.

Qual seria a razão de se condenar o suicídio?

Mesmo a partir do momento em que o suicídio deixa de ser ato punível, a legislação repressiva não semanteve indiferente a esta forma de comportamento. Em nossos dias, ainda que prevaleçam sociedadeslaicas e pluralistas, individualistas e secularizadas, a prática do suicídio continua provocando espanto, mal-estar, horror, compulsão. Seriam essas reações simplesmente motivadas por causa do tabu da morte? Pareceque não.

Um dos motivos dessas reações reside no fato de a morte ter sido provocada por agente humano,diretamente, e em circunstâncias muito especiais, pois, no comportamento suicida, o autor e vítima seidentificam. A pessoa humana, enquanto uma entidade ou um ser moral é autoviolada. Neste sentidotambém, foi o pensamento de É. Durkheim (1977, p. 399):

A nossa dignidade de ser moral deixou de pertencer à cidade; mas não passou por isto a pertencer-nos a nóspróprios, nem adquirimos o direito de dispor dela à nossa vontade. Com efeito, se a sociedade, esse sersuperior a nós, não tem o direito de o fazer, por que razão o teríamos nós?

Nestas condições é necessário que classifiquemos o suicídio entre os atos imorais; porque a sua essêncianega esta religião da humanidade.

Outra indagação merece ser posta. Existem relações entre suicídio e homicídio, ou suicida ehomicida? Se existe alguma relação, esta consistiria no fato de pertencerem ambos à espécie de crimescontra a pessoa?

This version of Total HTML Converter is unregistered.

* Trabalho publicado nos Anais do XIX Encontro Nacional do CONPEDI realizado em Fortaleza - CE nos dias 09, 10, 11 e 12 de Junho de 2010 8367

Page 10: 3070

A resposta não é pacífica e foi muito discutida à época, inclusive, por criminólogos contemporâneosde É. Durkheim, como "Enrico Ferri (1858-1929), este juntamente com C. Lombroso deram uma novaorientação à Criminologia" (DICIONÁRIO DE SOCIOLOGIA, 1961, p. 133).

Para alguns existe antagonismo entre suicídio e homicídio, para outros há relação entre ambos a ponto de sepoder afirmar que o homicida é um suicida em potencial, pois ambos odeiam a vida. Para um terceiro grupo,não há relação alguma entre ambos as formas de comportamento antissocial, porque ambos originam-se decausas distintas.

Diante da polêmica mencionada, esclareceu É. Durkheim (1977, p. 424):

Portanto, em resumo, tão depressa o suicídio coexiste com o homicídio como se excluem mutuamente; tãodepressa reagem de maneira idêntica quando se encontram sob a influência das mesmas condições comoreagem no sentido oposto, sendo os casos de antagonismo os mais freqüentes. Como explicar estes fatosaparentemente contraditórios?

A única maneira de os conciliar é admitir que existem diferentes espécies de suicídios, uns apresentandouma certa analogia e outros repelindo-os.

Após analisar as diferentes espécies de suicídios, o pensador francês conseguiu aceitar a existência de certaconvergência entre algumas espécies de homicídios e os suicídios anômicos, ou seja, suicídios provocados,sobretudo, pela ausência de normas ou regras sociais "no espírito dos indivíduos" (AZEREDO, ApudBARROS, 2009, p. 52).

2. 4 Deux Lois de L´évolution Pénale

O título acima compõe um artigo publicado por É. Durkheim na revista L'année SocioIogique , no volumeIV, de 1900.

À semelhança do conteúdo de A Divisão do Trabalho Social, encontra-se nele uma história do crime,da pena e do direito repressivo de forma muito bem articulada. O crime e a pena, por exemplo, sãoconsiderados como faces de uma mesma moeda, ou de um mesmo fato social: vínculos sociais rompidos,clamando por uma recomposição, regulada pelas normas repressivas.

Conforme a gravidade ou importância do laço rompido, define-se o crime e se comina a pena. Com aevolução da sociedade, os laços que informam o respectivo tipo de solidariedade se transformam e,juntamente com eles, o significado do comportamento das pessoas.

O significado da pena adquire configurações diversas, consoante o momento vivido pelas diferentessociedades. Assim, no período em que predominava o sentimento da vingança, sobretudo o da vingançadivina, também predominava a crueldade na administração da pena. Essa crueldade deveria ser tanto maiscruel quanto mais grave fosse considerado o delito:

This version of Total HTML Converter is unregistered.

* Trabalho publicado nos Anais do XIX Encontro Nacional do CONPEDI realizado em Fortaleza - CE nos dias 09, 10, 11 e 12 de Junho de 2010 8368

Page 11: 3070

O direito imperava como uma revelação dos deuses, em que Menés promulgou um corpo de leis que teriasido ditado pelo deus Thot. A morte dos animais sagrados constituía crime dos mais graves e os atentadoscontra os faraós eram delitos de lesa divindade aos quais se aplicavam atrozes penas. Os cinco livroschamados livros sagrados continham as leis penais vigorando, também, o talião material e o simbólico: àespiã cortava-se a língua, à adúltera o nariz, ao estuprador os órgãos genitais, os falsos escribas tinham asmãos cortadas (DURKHEIM, Apud OLIVEIRA, 1984, p. 7 e 8).

Com certeza, amplo é o espaço ocupado pelos temas do crime, da pena e do Direito nas principais obras deÉ. Durkheim aqui citadas e examinadas de maneira muito sucinta.

3. PROPÓSITOS DE É. DURKHEIM COM O ESTUDO DO CRIME E DA PENA

Com efeito, quantas vezes não é ele (o crime) uma antecipação da moral que está por vir, umencaminhamento que tem que ser! Segundo o direito ateniense, Sócrates era criminoso e sua condenaçãonão deixou de ser justa. Todavia, seu crime, isto é, a independência de seu pensamento, não foi útil apenas àhumanidade como também à sua pátria. Pois servia para preparar uma moral e uma fé novas de que osatenienses tinham necessidade então, porque as tradições nas quais tinham vivido até aquela época nãoestavam em harmonia com suas condições de existência. Ora, o caso de Sócrates não é isolado; reproduz-seperiodicamente na história (DURKHEIM, 1972, p. 62).

As incursões de É. Durkheim pelos temas do crime, da pena e do direito foram de maneirainstrumental. Elas estiveram, permanentemente, a serviço de outro objetivo seu, considerado o maior peloautor entre muitos outros: cumprir a missão auto-imposta de fazer da Sociologia uma ciência. Essa foi umadas razões de não se encontrar um tratado seu, específico, sobre o crime, a pena e o direito.

Direcionado pela missão de fazer da Sociologia uma ciência, elaborou suas obras, com o intuito dedefinir a metodologia da nova ciência, delimitar seu objeto de estudo e demonstrar sua necessidade eimportância. Preocupação já presente, de maneira implícita, em sua tese de doutorado, intitulada A Divisãodo Trabalho Social, publicada em livro, com título homônimo.

Este livro é, antes de mais nada, um esforço para tratar os fatos da vida moral a partir do método dasciências positivas[...]. Não queremos tirar a moral da ciência, mas fazer a ciência da moral, o que é muitodiferente (DURKHEIM, 1999, p. XLIII).

Para o autor, a moral, na qualidade de fato social, é processada no interior das consciências individuais e na

This version of Total HTML Converter is unregistered.

* Trabalho publicado nos Anais do XIX Encontro Nacional do CONPEDI realizado em Fortaleza - CE nos dias 09, 10, 11 e 12 de Junho de 2010 8369

Page 12: 3070

intimidade da consciência coletiva. Por consequência, para tratá-la cientificamente, é necessário captá-la emsuas manifestações exteriores, acessíveis aos sentidos.

Em busca das manifestações exteriores da moral, É. Durkheim pediu socorro ao direito, porque este éconstituído de normas positivas, isto é, de regras colocadas objetivamente ao alcance de todos, porintermédio dos códigos, das leis esparsas e, excepcionalmente, através dos costumes. Ao transitar pelomundo do direito, o autor se encantou com o princípio da coerção, componente essencial da norma jurídica.Por isso, no início de seu livro intitulado As Regras do Método Sociológico, ele destacou a coerção,enquanto uma das características também essenciais dos fatos sociais, objeto de estudo da Sociologia. Pode-se dizer também que assim como a coerção foi o ponto de contato que permitiu a É. Durkheim fazer apassagem de seus estudos do campo da moral para o mundo do direito, o direito repressivo foi a mediaçãoque lhe permitiu transitar já no campo do direito através dos estudos do crime, da pena e do direito.

O autor, entretanto, foi mais distante em suas incursões pela floresta jurídica. Além da coerção, eleencontrou a sanção. Além do crime, ele encontrou o delito. Além da pena, ele encontrou a penitência. Alémda sanção, ele encontrou a reposição com função de restaurar o tecido social esgarçado.

A propósito, manifestou o autor:

A própria natureza da sanção restitutiva basta para mostrar que a solidariedade social, a que esse direito(restitutivo) corresponde é de uma espécie bem diferente.

O que distingue essa sanção é que ela não é expiatória, mas se reduz a uma simples restauração. Umsofrimento proporcional a seu malefício não é infligido a quem violou o direito ou o menospreza; este ésimplesmente condenado a submeter-se a ele. Se já há fatos consumados, o juiz os restabelece tal comodeveriam ter sido. Ele enuncia o direito, não enuncia as penas (DURKHEIM, 1999, p. 85).

Concluiu que a sanção estava presente em todos os ramos da árvore jurídica. Também, nassociedades modernas, inclusive em sua pátria, a França, não existia somente o direito repressivo, mastambém o restitutivo, que restabelecia os vínculos rompidos, mas de natureza diferente daqueles que odireito repressivo recompunha. Se a solidariedade nas sociedades denominadas "primitivas" era,predominantemente, mecânica, agora ela se fazia, principalmente, através da diferenciação funcional, dadivisão social do trabalho, da especialização, ou seja, ela adquiriu características, principalmente, orgânicas.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Levando-se sempre em consideração a preocupação fundamental do autor, objetivada em sua missãode fazer da Sociologia uma ciência, espelhada nos padrões metodológicos das ciências naturais, suaabordagem referente ao crime, à pena e ao direito foi sempre sociológica, de constatação, isto é, no sentidode descrever e interpretar os fatos sociais como eles são. Sua abordagem dos fatos sociais referidos não foijurídica, uma vez que a preocupação fundamental do direito é mais com o dever ser, com normas deorganização social e padrões de comportamento ideais e generalizados.

Sua intenção também fugiu aos objetivos do campo religioso e criminológico, entre outros, muitoembora ele tenha cogitado e posto em prática fazer a sociologia da religião, do direito, do crime e da pena,

This version of Total HTML Converter is unregistered.

* Trabalho publicado nos Anais do XIX Encontro Nacional do CONPEDI realizado em Fortaleza - CE nos dias 09, 10, 11 e 12 de Junho de 2010 8370

Page 13: 3070

ou seja, tenha trazido o estudo desses fatos sociais para compor o objeto de indagação e reflexãosociológica. O que justificou sua preocupação em distinguir sua conclusão sociológica, científica sobre anormalidade do fato social denominado crime, enquanto tal, do sentimento de horror individual e coletivoprovocado por ele.

Da mesma forma, ele se preocupou em distinguir a apologia do crime, a que o autor era radicalmentecontra, do fato de o crime fazer parte da natureza sadia de toda e qualquer sociedade. Por sua vez, toda equalquer sociedade sã, normal, não pode subsistir sem a punição do comportamento criminoso, o que aconduz, necessariamente, a exigir a punição do crime e a não suportar a conivência e a convivência com aimpunidade.

Percebeu-se um nexo permanente entre crime, pena e o direito, em suas obras ora examinadas de formamuito sucinta, o qual deve ser procurado, máxime, nas regras da moral ferida. A moral, que em últimaanálise, vincula e solda as pessoas em sociedade, contém normas de caráter difuso, sendo, por consequência,também difusas as suas sanções pelo seu caráter interno e difuso externamente. No entendimento do autor, amoral se explicita e se torna eficaz, quando se objetiva e é subsumida pelo ordenamento jurídico, ou seja, odireito explicita e objetiva, em normas positivas, o que está difuso na moral.

As pessoas percebem quando seus sentimentos, individuais e coletivos são violados e procuram, semdescanso, recompor esses sentimentos feridos através de diversas formas. A essas diferentes maneiras dereconciliação correspondem os diversos momentos constitutivos da história do crime e da pena, e também,do direito. À recomposição dos sentimentos feridos corresponde também muitos momentos da história dassociedades, no pretérito e na contemporaneidade, em suas batalhas, passadas e cotidianas, carregadas depercalços e vitórias, na busca de transformações sem, contudo, perder os vínculos de solidariedade e decoesão.

Como um bom adepto da escola positivista, liderada pelo filósofo francês Augusto Comte (1798-1857),embora discordasse deste em muitos pontos fundamentais, É. Durkheim ainda cultivou certos ideaisevolucionistas muito caros ao positivismo. Tais ideais aparecem quando, por exemplo, o autor percebe edestaca a passagem da solidariedade mecânica para a solidariedade orgânica.

A primeira foi construída a partir da tradição, da religião, do parentesco e de outras formas de união daspessoas, à semelhança das ligações existentes entre as moléculas de um ser inanimado, uma pedra, porexemplo. A segunda categoria de solidariedade foi e continua sendo formada pelos liames sociaissemelhantes aos vínculos existentes entre as células e os órgãos de um organismo, como no corpo humano,em sua totalidade, por exemplo.

A solidariedade orgânica, assentada na diversidade funcional ou na especialização, denominada pelo autorde divisão social do trabalho, porque fundada, especialmente, em princípios científicos, com certeza trariamais progresso para a humanidade e melhores condições de vida coletiva e individual, o que comprovariasua superioridade sobre a solidariedade mecânica, fundada em princípios elaborados fora do campocientífico. Mais uma vez, portanto, o autor confessou sua crença na superioridade qualitativa do maiscomplexo sobre o mais simples, do orgânico sobre o inorgânico, das sociedades civilizadas sobre associedades primitivas, da ciência sobre outras formas de conhecimento, da razão sobre a tradição e areligião.

Uma discussão acadêmica sobre direito repressivo e direito penal objeto dessas reflexões também foiprovocada pelo autor. Como suas incursões sobre o campo do direito foi instrumental, isto é, a serviço deoutro campo científico, ele não se deteve nos meandros dos componentes do direito penal, segmento dodireito público moderno. Como fundador da Sociologia científica, seu entendimento a respeito do conteúdo

This version of Total HTML Converter is unregistered.

* Trabalho publicado nos Anais do XIX Encontro Nacional do CONPEDI realizado em Fortaleza - CE nos dias 09, 10, 11 e 12 de Junho de 2010 8371

Page 14: 3070

do denominado direito repressivo era como se fosse um misto de normas morais, religiosas e, especialmentetradicionais. Não era, ainda de forma alguma, a noção de direito penal dos juristas, inclusive,contemporâneos seus. O mesmo aconteceu com o conceito de pena. Houve semelhança, mas não identidade,entre o seu conceito de repressão com a definição de pena, elaborada pelos juristas..

Finalmente, nada mais oportuno para se concluir essas reflexões do que a citação de um fragmento originaldo autor: "Para que os assassinos desapareçam é preciso que nas camadas sociais onde eles se recrutam, cresça o horror pelo sangue derramado; mas, para isso, é necessário que ele cresça em toda a sociedade"(DURKHEIM, 2002, p.84) .

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BARROS, Marco Aurélio Nunes de (Coord). Uma ciência dos fatos sociais. Ciências sociais: vivendo eaprendendo. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2009.

BECCARIA, C. Dos DeIitos e das Penas. Trad. de Paulo M. Oliveira. São Paulo: EDIPRO, 2003.

DICIONÁRIO DE SOCIOLOGIA. 1 ed. Rio de Janeiro/ Porto Alegre/ São Paulo: 1961.

DURKHEIM, Émile. O Suicídio. Trad. de Luiz Cary, Margarida Garrido e J. Vasconcelos Esteves. Lisboa:Editorial Presença Ltda, 1977.

________________ As Regras do Método Sociológico. Trad. de Pietro Nassetti. São Paulo: Martin Claret,2002.

________________ As regras do método sociológico. 6 ed. Trad. de Maria Isaura Pereira de Queiroz. SãoPaulo: Companhia Editora Nacional, 1972.

________________ A Divisão do Trabalho Social. Trad. de Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes,1999.

________________ Deux Lois de L'levolution Pénale. Paris: L'année Sociologique, 1900, vol. IV.

GURVITCH, Georges. Sociologia del Siglo XX. Barcelona: EI Ateneo, 1964, vol. l.

Ververver FOULCAUT, Michel. Vigiar e punir. 1 ed. Trad. de Ligia M. Pondé Vassallo Petrópolis:

This version of Total HTML Converter is unregistered.

* Trabalho publicado nos Anais do XIX Encontro Nacional do CONPEDI realizado em Fortaleza - CE nos dias 09, 10, 11 e 12 de Junho de 2010 8372

Page 15: 3070

Vozes, 1977.

MALINOWSKI, B. Crimen y Costumbre en la Sociedad SeIvje. Barcelona: Ediciones Ariel, 1973.

OLIVEIRA, Odete Maria de. Prisão: Um Paradoxo Social. Florianópolis: UFSC, 1984.

This version of Total HTML Converter is unregistered.

* Trabalho publicado nos Anais do XIX Encontro Nacional do CONPEDI realizado em Fortaleza - CE nos dias 09, 10, 11 e 12 de Junho de 2010 8373