31 - CONFIANÇA EM DEUS

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Cornelius a Lapide, sj (1597-1637) + CONFIANÇA EM DEUS Tradução por Uyrajá Lucas Mota Diniz Fundamentos da confiança em Deus Perguntais, diz São Bernardo, de que modo podeis saber se Deus vos perdoou? Vós o sabereis recordando a cura do paralítico: o Senhor disse-lhe: Levanta-te, toma teu leito e anda: Dicit ei Jesus: Surge, tolle grabatum tuum, et ambula (Johann. V, 8). Deus perdoou-vos: 1º Se vos levantais plenos de desejo das coisas celestiais;

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Texto de Cornélio à Lápide traduzido da Obra "TESOROS DE CORNELIO Á LÁPIDE" - Tomo I, por Uyrajá Lucas Mota Diniz.

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Cornelius a Lapide, sj (1597-1637)+

CONFIANÇA EM DEUS

Tradução por Uyrajá Lucas Mota Diniz

Fundamentos da confiança em Deus

Perguntais, diz São Bernardo, de que modo podeis saber se Deus vos

perdoou? Vós o sabereis recordando a cura do paralítico: o Senhor disse-lhe:

Levanta-te, toma teu leito e anda: Dicit ei Jesus: Surge, tolle grabatum tuum, et

ambula (Johann. V, 8).

Deus perdoou-vos:

1º Se vos levantais plenos de desejo das coisas celestiais;

2º Se levais vosso leito, isto é, vosso corpo, se o subtrais ao império dos

sentidos e das loucuras da terra, de modo que vossa alma não esteja sujeita às

concupiscências dele; mas que ela, como é justo e necessário, governe o

corpo e conduza-o até onde ele não queira ir; e

3º enfim, se caminhais esquecendo o que deixais para trás, e avançando até o

Céu que está diante de vós.

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Desde o momento que tenhais o desejo e o bom propósito de avançar, não

duvideis de vossa cura. Mediante este desejo, assim que vos levantardes, já vossa

carga será leve, já levareis vosso leito e andareis desembaraçados do peso do

pecado. Sem embargo, não separeis o temor da confiança, nem a confiança do

temor 1 (De quatuor orandi modis).

Não é culpável aquele que experimenta tentações ou os ataques da

concupiscência; mas, sim, aquele que neles consente, diz Santo Agostinho: Qui

consentit, non qui sentit, inducitur in tentationem (Lib. V, contr. Julian).

Sentir não corrompe, diz São Bernardo, porém, sim, o consentir; e há mais: o

cansaço que experimentar aquele que resiste às suas paixões converte-se em coroa

do vencedor: Non nocet sensos ubi non est consensus; imo quod resistentem fatigat,

vincentem coronat (Serm. in Cant.).

Quando poderemos estar seguros de que Deus perdoou-nos?, pergunta São

Basílio. Quando tenhamos os sentimentos daquele que diz: Abandonei a iniquidade

e a detestei (Psalm. CXVIII, 163). Quando certo persuasus esse aliquis potest

Deum sibi peccata remississe? Nempe, si affectionem animi in se animadverterit

simulem illius qui dixit: Iniquitatem ódio habui, et abominatus sum (In Disput., Reg.

CCXVI).

OS MOTIVOS DE CONFIANÇA SÃO FUNDADOS...

1º No auxílio de Deus

Deus, diz Santo Agostinho, não manda o impossível; senão que, ao dar

preceitos, adverte que se faça o que se possa fazer, e que se peça auxílio naquilo que

não se possa; então, Ele dá força para operar: Deus impossibilita non jubet; sed

1 Deus é infinitamente justo e, de igual modo, misericordioso. Ele é, por natureza, a união perfeitíssima, coincidente e harmônica entre a Justiça de infinito rigor e a Misericórdia de máxima brandura. Tais predicados Nele, além de totalmente adoráveis, não são opostos, e jamais se alternam (Nota do tradutor).

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jubendo monet, et facere quod possis, et petere quod non possis, et adjuvat ut possis

(Lib. de natura et gratia, c. XLIII).

Aquele que ordena o combate ajuda também a combater. Deus não

contempla a luta que empreendeis como o povo contempla o combate do atleta; o

atleta não recebe do povo mais que gritos ou aplausos, porém, jamais auxílios; o

povo prepara-lhe uma coroa, porém não lhe dá a força de conquistá-la. Deus, ao

contrário, inclina seus olhares sobre os combatentes que o invocam, e ajuda-lhes a

alcançar a vitória. Prestai atenção à voz de um grande atleta, o Rei Profeta: Quando

eu dizia ‘Meu pé vai resvalar’, vossa misericórdia, Senhor, acudia a sustentar-me: Si

dicebam: Motus est pes meus; misericórdia tua, Domine, adjuvabat me (Psalm.

XCIII, 18).

Escutai a outro atleta incomparável, que se chama São Paulo: Vemo-nos

assediados por toda sorte de tribulações, porém, nem por isso perdemos o ânimo;

encontramo-nos em grandes apuros, mas não desesperados ou sem recursos; somos

perseguidos, mas não abandonados; abatidos, não inteiramente perdidos2.

Deus é fiel, e não permitirá que sejais tentados acima de vossas forças; aliás,

Ele fará com que a tentação vos seja proveitosa, para que vos possais sustentar3.

Meu jugo é suave e minha carga é leve, diz Jesus Cristo: Jugum meum suave

est, et onus meum leve (Matth. XI, 30). Os mandamentos de Deus não são pesados,

diz o Apóstolo São João: Mandata ejus gravia non sunt (I Johann. V, 3).

Tudo posso Naquele que me conforta, diz São Paulo: Omnia possum in eo

qui me confortat (Philip. IV, 13). Em minha primeira defesa, – escreve o grande

Apóstolo a seu discípulo Timóteo – ninguém me assistiu; pelo contrário, todos me

desampararam... Porém, o Senhor me assistiu e alentou4. O mesmo Deus diz: Eu

não vos deixarei, nem vos abandonarei. De maneira que nós podemos repetir com 2 In omnibus tribulationem patimur, sed non angustiamur; aporiamur, sed non destituimur; persecutionem patimur, sed non derelinquimur; deicimur, sed non perimus (II Cor. IV, 8-9).3 Fidelis Deus est: qui non patietur vos temptari supra in quod potestis; sed faciet etiam cum temptatione proventum ut possitis sustinere (I Cor. X, 13).4 In prima mea defensione, nemo mihi adfuit, sed omnes me dereliquerunt… Dominus autem mihi adstitit, et confortavit me… (I Tim. IV, 16-17a)

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confiança: O Senhor é minha ajuda, não temerei aquilo que os homens possam fazer

contra mim5.

Descarregai todas as vossas inquietudes no seio de Deus, diz o Apóstolo São

Pedro, porque Ele mesmo cuidará de vós: Omenm sollicitudinem vestram

projicientes in eum; quoniam ipsi cura est de vobis (I Pet. V, 7).

Tu viste quão grandes tem sido as perseguições que tive que sofrer, diz São

Paulo a Timóteo, e como o Senhor me livrou de todas elas: Quales persecutiones

sustinui, et ex omnibus eripuit me Dominus (II Tim. III, 11).

O Senhor fez-se o amparo do pobre, diz o Salmista, socorrendo-o

oportunamente na tribulação; confiem, pois, em Ti, ó Deus meu, esperem em Ti,

Senhor, aqueles que conhecem teu Nome, porque jamais desamparaste, Senhor, aos

que a Ti recorrem6. Eu contemplava sempre ao Senhor diante de mim como quem

está à minha destra para sustentar-me7. A misericórdia servirá de muralha aquele

que põe a sua confiança no Senhor: Esperantem autem in Domino misericórdia

circundabit (Psalm. XXXI, 10).

A salvação dos justos vem do Senhor, e é Ele seu protetor no tempo da

tribulação; o Senhor os ajudará e os livrará; e os subtrairei das mãos dos pecadores,

e os salvará, porque puseram sua confiança Nele (Psalm. XXXVI, 39-40).

Libertaste-me, Senhor, de todas as tribulações: Ex omni tribulatione erupuisti me

(Psalm. LIII, 9). Se eu me encontrar, ó Senhor, no meio da tribulação, Vós me

animareis, porque estendeis vossa mão contra o furor de meus inimigos, e me

salvou vossa poderosa destra (Psalm. CXXXVII, 8).

Não temas, Abraão, disse o Senhor; Eu sou teu protetor, e tua recompensa

demasiadamente grande: Noli timere, Abraham, ego protector tuus sum, et mercês

tua magna nimis (Gen. XV, 1).

5 Ipse enim dixit: Non te deseram, neque derelinquam; ita ut confidenter dicamus Dominus mihi adiutor; non timebo quid faciat mihi homo (Heb. XIII, 5-6).6 Et factus est Dominus refugium pauperi, adiutor in oportunitatibus in tribulatione. Et sperent in te qui noverunt nomen tuum, quoniam non dereliquisti quaerentes te Domine (Psalm. IX, 10-11)7 A dextris est mihi: ne commovear (XV, 8).

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Ponde constantemente a vossa confiança em Deus, diz Santo Agostinho, e

confiai-lhe tudo o que tendes; porque Ele não deixará de levantar-vos até Si, e não

permitirá que vos suceda mais do que vos pode ser útil, mesmos sem o saberdes8.

Não trateis de pertencer-vos e de serdes senhores de si mesmos, diz o mesmo

Doutor; tende, pelo contrário, em muita honra, o fato de serdes servos do Deus

clementíssimo e onipotente. Imitemos ao servidor fiel que não vê nem ouve nada

além das ordens de seu amo. Que nossos olhos, nossos ouvidos e nossos corações

somente a Ele vejam, somente a Ele ouçam, e somente a Ele sintam: estejamos

sentados sobre a rocha inabalável da confiança (Lib. I Soliloq.).

Eu, diz o profeta Miqueias, fixarei os meus olhos no Senhor, porei minha

esperança em Deus, Salvador meu; e, então, meu Deus me atenderá9.

Lançai sobre o colo do Senhor vossas ansiedades, e Ele sustentar-vos-á: não

deixará ao justo em agitação perpétua (Psalm. LIV, 43). Vossa misericórdia,

Senhor, seguir-me-á todos os dias de minha vida (Psalm. XXII, 6). O Senhor é

minha luz e minha salvação: a quem hei de temer? O Senhor é o protetor de minha

vida: perante quem eu tremerei?10 Se Deus é por nós, diz o grande Apóstolo, quem

será contra nós? Si Deus pro nobis, qui contra nos? (Rom VIII, 31).

Com o auxílio de Deus, todos os esforços de nossos inimigos convertem-se

para nós em bem, recompensas e coroas.

2º Motivos de confiança fundados nos socorros e méritos de Jesus Cristo

8 Constanter Deo crede, eique te totum committe; ita enim ipse te ad se sublevare non desinet, nihilque tibi evenire permittet,nisi quod tibi prosit , etiam si nescias (Lib. I Soliloq.).9 A Dominum auspiciam, exspectabo Deum salvatorem meum, audiet me Deus meus (Miq. VII, 7).10 Dominus illuminatio mea et salus mea: quem timebo? Dominus protector vitae meae: a quo trepidabo? (Psalm. XXVI, 1-2).

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Ó Deus protetor nosso, exclama o Real Profeta, olhai e vede a face de vosso

Cristo: Protector noster, aspice, Deus, et respice in faciem Christi tui (Psalm.

LXXXIII, 10).

Meus filhinhos, diz São João, estas coisas vos tenho escrito, a fim de que não

pequeis. Porém, ainda quando alguém por desgraça pecar, não desespere, pois

temos por advogado diante do Pai a Jesus Cristo, Justo e Santo: e Ele mesmo é a

vitima de propiciação por nossos pecados; e não somente pelos nossos, senão

também pelos do mundo inteiro: Si quis peccaverit, advocatum habemus apud

Patrem, Jesum Christum justum: et ipse est propitiatio pro peccatis nostris; non pro

nostris autem tantum, sed etiam pro totius mundi (II Johann. II, 1-2).

Jesus Cristo é nosso advogado, nosso patrono, nosso mediador, nosso

intercessor e nossa vítima; Ele mesmo apresenta-se para ser nossa garantia; oferece

a seu Pai suas chagas, seus méritos, sua paixão, seu sangue e sua morte. Por isto, até

depois de sua ressurreição, conservou suas chagas, e as levou ao Céu para

apresentá-las constantemente a seu Pai, e para alcançar-nos com elas o perdão, a

graça e a glória.

Quem é aquele que virá julgar-vos, pergunta Santo Agostinho, senão Aquele

que deixou-se julgar e condenar por vós? De certo modo, quis sofrer a sentença que

vos esperava, e deixou-se condenar para absolver-vos (In Soliloq.).

Ouvi a São João Crisóstomo: Se sois ímpios, pensai no publicano; se sois

impuros, pensai na mulher adúltera; se sois homicidas, pensai no bom ladrão; se

sois criminosos, pensai no blasfemo; considerai a Paulo, que, de grande

perseguidor, converte-se no maior pregador do Evangelho.

Porém, dir-me-eis: eu posso obter o perdão? Sou blasfemo, ímpio, libertino.

Vem-se todos esses crimes nos grandes pecadores que vos precederam. Elegei o

posto que vos agrade, e refugiai-vos nele.

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Quereis exemplos do Novo Testamento? Quereis outros do Antigo? No

Antigo, olhai a Davi, etc.; no Novo, olhai a Paulo etc. E, além do mais, o que é o

pecado e todos os pecados do mundo ao lado da misericórdia de Deus? Uma teia de

aranha que não pode resistir ao sopro do vento: Qui est peccatum ad Dei

misericordiam? Tela aranae, quae vento flante nusquam comparet (Homil. II, in

Psalm. L).

Se Saulo é um santo tão grande, porque eu hei de desesperar?, diz Santo

Anselmo: Si Saulus sanctus est, ego quare despero? (Lib. de Similit.).

O Pontífice que temos, diz São Paulo aos Hebreus, não é tal que seja incapaz

de compadecer-se de nossas misérias, havendo voluntariamente experimentado

todas as tentações e debilidades, à exceção do pecado, por razão da semelhança

conosco no ser homem. Aproxime-nos, pois, confiadamente, ao trono da graça, a

fim de alcançar misericórdia e achar o auxílio da graça para sermos socorridos no

tempo oportuno (Heb. IV, 15-16).

Jesus Cristo pode salvar perpetuamente aqueles que se aproximam de Deus

por sua mediação; visto que está sempre vivo para interceder por nós: Salvare in

perpetuum potest accedens per semetipsum ad Deum; semper vivens ad

interpellandum pro nobis (Heb. VII, 25).

Jesus Cristo não entrou no santuário feito por mãos de homens (tal como era

o da Lei antiga), que era figura do verdadeiro; senão que entrou no próprio Céu para

apresentar-Se agora por nós, em reverência a Deus (Heb. IX, 24).

Tendo a firme esperança de entrar no Sancta Sanctorum ou Santuário do

Céu, pelo Sangue de Cristo... mantenhamos inabalável a esperança que temos

confessado: Habentes fiduciam in introito Sanctorum in Sanguine Christi etc (Heb.

X, 19).

3º Motivos de confiança fundada em outros auxílios

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Além da bondade e dos auxílios de Deus, e da proteção e dos méritos de

Jesus Cristo, que não dão a esperança de obter o perdão de nossos pecados e nossa

salvação, temos, todavia, para maior segurança nossa, a Palavra de Deus, a graça, os

Sacramentos, a Santíssima Virgem, os Santos, a Oração, etc.

Estimai o Senhor, diz a Sabedoria, e buscai-O com simplicidade de coração,

porque aqueles que não O tentam encontram-No, e manifesta-Se àqueles que Nele

tem confiança (Sap. I, 1-2).

Excelência da confiança em Deus: maravilhas que produz

Próximo de Vós, Senhor, somente a confiança obtém misericórdia, diz São

Bernardo; não derramais o azeite da misericórdia a não ser no vaso da confiança:

Sola spes apud te miserationis obtinet locum; nec oleum misericordiar, nisi in vase

fiduciae, ponis (Serm. III, de Annunt.).

Aquele que põe sua confiança em Mim, diz o Senhor por meio de Isaías,

herdará a terra e possuirá meu santo monte: Qui fiduciam habet mei, haereditabit

terram, et possidebit montem sanctum meum (Isai. LXII, 13).

Bem-aventurado o homem que confia no Senhor e cuja esperança é o Senhor,

diz Jeremias: Benedictus vir qui confidit in Domino, et erit Dominus fidúcia ejus

(Jer. XVII, 7). Será como a árvore transplantada junto às correntes de águas que

estende até à umidade as suas raízes; não temerá os ardores do estio; suas ramas

estarão sempre verdes, nem lhe fará mal a seca, e nunca deixará de dar frutos

(Psalm. XVII, 8). Deus, notai bem, diz que todo aquele que tem confiança Nele é

bendito; porque a confiança honra infinitamente a Deus.

Com efeito: aquele que confia em Deus e se lança em seu seio, como uma

criança no regaço de uma boa e terna mãe, publica altamente que Deus é muito

bom, que obterá auxílio em suas necessidade, e que O achará fiel; não enganando

jamais aos que Lhe entregam sua confiança.

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Abraão confiou contra toda a esperança, e, por isto, Deus lhe deu, como um

milagre, uma posteridade numerosa; e cumulou-lhe de bênçãos; e, sobretudo, a

incomparável e inefável benção de fazer sairem de sua linhagem a Jesus Cristo e a

Santíssima Virgem.

Aquele que não tem confiança em Deus é, pelo contrário, réu de uma grave

injustiça, porque nega a Providência, isto é, pretende que Deus não quer, não pode e

não sabe socorrer.

Aquele homem que põe toda a sua confiança em Deus extrai, dessa mesma

confiança, o auxílio e a graça para sobrepor-se a todas as dificuldades e tentações.

Aquele que confia em Deus extrai Dele uma virtude sólida e todos os bens. Parece-

se ao loureiro. O raio, diz Plínio, fere a tudo o que encontre na terra, menos ao

loureiro: uma grande calamidade pode derrubar, romper, destrui-lo todo, menos a

firme confiança em Deus. A confiança em Deus é uma virtude forte, sempre verde e

louçã, sempre formosa. Como o loureiro, não se seca nem se consome pelos ventos

abrasadores, pelas provas, nem as tribulações. Assim como o loureiro é o emblema

da vitória, a confiança em Deus é também presságio certo de vitória sobre todos os

inimigos que o Inferno, o mundo e a carne armam contra o homem.

Nascemos, em verdade, filhos da ira; porém, enxertados em Jesus Cristo,

pela confiança em Deus e pelo amor que nos tem, convertemo-nos em árvores

carregadas de frutos de bênçãos.

Daniel foi lançado à cova dos leões: os leões respeitaram-no, e ele saiu dali

sem haver recebido ferida alguma. De onde proveio este milagre? Proveio de que

Daniel tinha posto sua confiança em Deus: Eductusque est Daniel de lacu, et nulla

loesio inventa est in eo, quia credidit Deo suo (Dan. VI, 23).

A casta Susana foi injustamente acusada de um crime infame: condenaram-

na à morte, e logo foi conduzida ao lugar do suplício. Porém, com os olhos cheios

de lágrimas, ela olhava o Céu; porque seu coração estava pleno de confiança em

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Deus: Flens suspexit ad coelum; erat enim cor ejus fiduciam habens in Domino

(Dan. XIII, 35). Deus a abandonará? Não. Deus fez um milagre em seu favor;

infundiu seu espírito no jovem Daniel; as falsas testemunhas ficaram convencidas

da impostura; a inocência de Susana foi reconhecida; sua honra foi salva, assim

como também sua vida; e seus caluniadores ficaram desonrados e foram

sentenciados à morte (Dan. XIII). A confiança de Susana foi o que operou todas

essas maravilhas.

Bem-aventurados são, portanto, todos aqueles que confiam em Deus, diz o

Rei Profeta: Beati omnes qui confidunt in Eo (Psalm. II, 13).

A confiança em Deus faz-nos invencíveis

Se pusermos constantemente nossos interesses nas mãos de Deus, não haverá

demônio nem inimigo que nos possa derrubar, diz Santo Antônio. Muito bem

conhecia este grande Santo a força da confiança em Deus; ele que tinha de

sustentar tão frequentes e tão crueis combates contra as legiões do Inferno (Vit.

Patr.).

Com tua ajuda, Senhor, serei libertado da tentação: e ao lado de meu Deus,

transporei toda muralha, diz o Salmista: In te eripiar a tentatione, et in Deo meo

transgrediar murum (Psalm. XVII, 30).

Olha que sou Eu aquele que te ordena, – diz o Senhor a Josué – tem bom

ânimo e sê constante: não temas nem desanimes; porque contigo estará o Senhor teu

Deus a qualquer parte para onde vás (Jos. I, 9).

O Senhor é Aquele que dá a morte e dá a vida, Aquele que conduz ao

sepulcro e livra dele. O Senhor é quem empobrece e enriquece, o que abate e exalta

(I Reg. II). Quando falte todo socorro humano, guardemo-nos de perder a esperança,

porque então chega o socorro divino.

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Lemos no livro de Judite que em todos os lugares aonde o povo de Deus

chegava, ainda que não tivesse nem arco, nem flecha, nem escudo, nem espada,

tornava-se vitorioso, porque o Céu combatia por ele, por causa da confiança que

tinha em Deus (Judith V, 16).

O justo, dizem os Provérbios, mantém-se de pé, firme como o leão, sem

assustar-se de nada: Justus, quasi leo, confidens, absque terrore erit (Prov.

XXVIII, 1). Com efeito:

1º a confiança reta e inocente é valorosa, gera a liberdade e dá energia e

fortaleza aos justos;

2º a confiança dá tranquilidade à boa consciência, e não a deixa temer nada.

3º Aquele que põe sua confiança em Deus, não teme senão o pecado. Assim,

Santo Hilarião, segundo conta São Jerônimo, tendo sido detido por uns

ladrões, perguntaram-lhe estes se tinha algum temor; e o piedoso solitário

respondeu-lhes: “– Aquele que nada tem, não pode temer ladrões”. “– Sim,

porém, dois ladrões podem te matar!” “– É verdade, porém, precisamente

por isso não os temo, porque estou pronto para morrer”.

4º Os justos sabem que Deus cuida deles e que os leva em seu coração;

apoiados Nele, nada temem; e

5º Deus dá aos justos tanta força e confiança nas cosias difíceis e nos

perigos, que se atrevem a empreender animosamente tudo o que é bom; e,

assim, tornam-se terríveis para seus inimigos. Vede que heroísmo concedeu

Deus aos Apóstolos, aos Mártires, a Santo Atanásio etc.

Pleno desta forte confiança em Deus, de Quem falamos, dizia São João, o

Esmoler: Ainda que todos os homens que habitem na terra se apresentassem, ao

mesmo tempo, em Alexandria para pedir esmola, eu a daria a todos, porque nem o

mundo inteiro poder esgotar os tesouros de Deus (Leont. in ejus vita).

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Deixai, pois, alma sem confiança, deixai de tentar a Deus com vossa

pusilanimidade e vossa desconfiança. Quanto mais dava São João, o Esmoler, tanto

mais recebia de Deus. Deus é a Fonte inesgotável; todo mundo tira água dela, e

jamais deixa de correr com abundância para todo o mundo.

São Sisois, sacerdote, estava tão pleno de confiança em Deus, que, orando,

certo dia, pela cura de seu discípulo Abraão que havia pecado por debilidade, dizia:

Deus meu, quer queirais ou não queirais, eu não vos deixo antes de que lhe tenhas

curado... E obteve o que pedia (Vita Patr.)

Faltando, no deserto, alimento para Santo Heleno e aos seus, exclamou o

Santo pleno de confiança: Deus pode dispor aqui para nós uma mesa servida com

abundância; e ao momento, segundo conta Paládio, um misterioso anjo trouxe-lhes

tantos víveres quantos puderam consumir.

O Senhor está comigo como um guerreiro formidável, diz Jeremias: por isso,

aqueles que me perseguem, cairão e ficarão sem forças; serão inteiramente

confundidos (Jer. XX, 11). Não percais vossa confiança que há de obter tão bela

recompensa, diz São Paulo aos Hebreus: Nolite amittere confidentiam vestram,

quae magnam habet remunerationem (Heb. X, 35). Aquele que ora, ore com fé, sem

sombra de dúvida ou desconfiança, diz o Apóstolo São Tiago: Postulet in fide, nihil

haesitans (Iac. I, 6). Aquilo que aguardais com confiança de Deus obtê-lo-eis

infalivelmente, diz Santo Agostinho: Quod speras, hoc certo impetrabilis (In

Psalm.).

É preciso que não depositemos nossa confiança senão em Deus

Maldito seja o homem que confia em outro homem, e não em Deus, e se

apoia em um braço de carne, diz o Senhor por boca de Jeremias: Maledictus homo

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qui confidit in homine, et ponit carnem brachium suum (Jer. XVII, 5). Será como o

cardo que ignora os dias de abundância (Jer. XVII, 6).

O pecador que não tem confiança em Deus:

1º não acerta o negócio de sua salvação;

2º não produz nenhum bom fruto;

3º está privado da doce chuva da graça e da sabedoria; vê-se abandonado de

Deus.

4º Converte-se em joguete do inferno em todas as circunstâncias, porém,

sobretudo, na desgraça.

Deus deve ser o único refúgio, o único asilo do homem; Deus deleita-se em

vir em auxílio e em manifestar seu poder e sua bondade infinita para com aqueles

que, plenos de confiança, dirigem-se somente a Ele.

É preciso evitar com o maior cuidado a desconfiança para com Deus nas

grandes provas, e não desesperar; é preciso nos munir de confiança: com ela

estamos seguros do auxílio divino, o qual se manifesta até com milagres.

Isto é o que sucedeu a Ló rodeado dos infames sodomitas (Gen. XIX). Assim

sucedeu a Moisés e aos Hebreus perseguidos pelos furiosos egípcios (Êxodo XIV);

a Davi, perseguido por Saul (I Reg. XXIII, 27); a Judite e à cidade de Betúlia sitiada

por Holofernes; ao rei Ezequias quando ameaçado por Senaquerib (Isai. XXXVIII,

14); aos Macabeus, ao serem atacados por Antíoco.

Vendo Santa Clara que a cidade e o convento em que habitava iam cair em

poder dos inimigos, apresentou-se sozinha e cheia de confiança sobre a muralha.

Ali, diante dos sitiadores, dirigiu a Deus a oração do Real Profeta: Ne tradas bestiis

animas confidentes tibi: Senhor, não entregueis em poder dessas feras as almas que

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Te confessam e adoram (Psalm. LXXII, 19). E, de repente, feridos de um pânico

terrível, os inimigos escaparam e desapareceram.

A desconfiança vem da falta de fé; aquele que desconfia, não crê vivamente

que Deus é onipotente, pleno de provisão e de bondade. A desconfiança vem

também da esperança que depositamos nos homens e nas criaturas, como se

tivessem mais poder e vontade que Deus para ajudar-nos.

Esta conduta é digna dos pagãos, e muito injuriosa a Deus: por isto Ele a

castiga permitindo que as criaturas, nas quais temos confiado, abandonem-nos,

enganem-nos, prejudiquem-nos e impeçam o bom êxito de tudo quanto desejamos.

Por outro lado, Deus faz prosperar, sobretudo espiritualmente, aos que confiam

Nele.

Considera, rogo-te, diz Elifaz a Jó, se jamais pereceu algum inocente, ou

quando foi que aconteceu de os bons terem sido exterminados (Job. IV, 7).