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REP - Revista Espaço Pedagógico, v. 19, n. 2, Passo Fundo, p. 325-340, jul./dez. 2012 325 Ciências e possibilidades de melhoria nas concepções de vida e convivência Cleidiana Watte * Roque Strieder ** O trabalho tem como objetivo ree- tir sobre implicações da ciência clássica nas formas de viver, de se relacionar e de aprender. Nesse sentido, a pro- blemática da reexão gira em torno da questão: como e por que, diante do desenvolvimento tecnocientíco, tão exuberante, persistimos com a indife- rença e a insensibilidade para com os seres humanos e o que a educação tem a ver com isso? Reetimos sobre pos- sibilidades de fazer ciência, nascidas na física quântica e nas biociências e suas contribuições para a humanida- de, capazes de redimensionar limites e procedimentos desse fazer ciência, com abrangência e validade humana. No momento de maior exibilidade no campo cientíco, concepções diferentes começam a habitar nossos espaços de convivência, ensino e aprendizagem. Abrem perspectivas de ampliação e melhorias da convivência humana para consigo mesma e para com a natureza, porque contribuem para maior abertu- ra na educação e nas aprendizagens. No desejo de reinterpretar nosso ser e estar no mundo, nossos jeitos de expli- car e conhecer, explicamo-nos e conhe- cemo-nos melhor. Inserir educador e educando no processo das explicações, da aprendizagem e da construção de conhecimentos, permite conhecer e en- tender nosso modo particular de estar no mundo. Ao semear a concepção de interdependência entre ciência e ser humano, entre ser humano e natureza, entre ser humano para com outros se- res humanos, entre a individualidade e a diversidade, as visões míopes, produ- zidas pela fragmentação, desocuparão seus lugares de destaque. Teremos en- tão, como ensonhamos, fronteiras aber- tas para estados de paz e de reencontro para convivências no amar. Palavras-chave: Amar. Ciência. Educa- ção. Estados de paz. Resumo Recebido: 30/07/2012 – Aprovado: 23/08/2012 * Professora da rede municipal de ensino de An- chieta - SC. Mestranda em Educação na Uni- versidade do Oeste de Santa Catarina, Cam- pus de Joaçaba. ** Professor do Programa de Mestrado em Educa- ção da Universidade do Oeste do Estado de San- ta Catarina. E-mail: strieder.roque@unoesc. edu.br

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  • REP - Revista Espao Pedaggico, v. 19, n. 2, Passo Fundo, p. 325-340, jul./dez. 2012

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    Cincias e possibilidades de melhoria nas concepes de vida e convivncia

    Cleidiana Watte* Roque Strieder**

    O trabalho tem como objetivo refl e-tir sobre implicaes da cincia clssica nas formas de viver, de se relacionar e de aprender. Nesse sentido, a pro-blemtica da refl exo gira em torno da questo: como e por que, diante do desenvolvimento tecnocientfi co, to exuberante, persistimos com a indife-rena e a insensibilidade para com os seres humanos e o que a educao tem a ver com isso? Refl etimos sobre pos-sibilidades de fazer cincia, nascidas na fsica quntica e nas biocincias e suas contribuies para a humanida-de, capazes de redimensionar limites e procedimentos desse fazer cincia, com abrangncia e validade humana. No momento de maior fl exibilidade no campo cientfi co, concepes diferentes comeam a habitar nossos espaos de convivncia, ensino e aprendizagem. Abrem perspectivas de ampliao e melhorias da convivncia humana para consigo mesma e para com a natureza, porque contribuem para maior abertu-ra na educao e nas aprendizagens. No desejo de reinterpretar nosso ser e estar no mundo, nossos jeitos de expli-car e conhecer, explicamo-nos e conhe-

    cemo-nos melhor. Inserir educador e educando no processo das explicaes, da aprendizagem e da construo de conhecimentos, permite conhecer e en-tender nosso modo particular de estar no mundo. Ao semear a concepo de interdependncia entre cincia e ser humano, entre ser humano e natureza, entre ser humano para com outros se-res humanos, entre a individualidade e a diversidade, as vises mopes, produ-zidas pela fragmentao, desocuparo seus lugares de destaque. Teremos en-to, como ensonhamos, fronteiras aber-tas para estados de paz e de reencontro para convivncias no amar.

    Palavras-chave: Amar. Cincia. Educa-o. Estados de paz.

    Resumo

    Recebido: 30/07/2012 Aprovado: 23/08/2012

    * Professora da rede municipal de ensino de An-chieta - SC. Mestranda em Educao na Uni-versidade do Oeste de Santa Catarina, Cam-pus de Joaaba.

    ** Professor do Programa de Mestrado em Educa-o da Universidade do Oeste do Estado de San-ta Catarina. E-mail: [email protected]

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    O presente trabalho tem como obje-tivo refletir sobre implicaes da cincia clssica nas formas de viver, de se relacio-nar e de aprender. Entra tambm em per-cepes que nascem com a epistemologia do novo paradigma cientfico, amparado na fsica quntica e nas biocincias, capa-zes de redimensionar os limites e procedi-mentos do fazer cincia, com abrangncia e validade ampla e humanstica.

    Ao partir de princpios lineares, neu-tros e objetivos, a cincia clssica desen-volveu concepes, tecnologias e culturas excludentes, impedindo outros olhares sobre e a partir da cincia, alm de impe-dir outras formas de ver e compreender processos de ensino e aprendizagem.

    No h como negar que a cincia clssica permitiu ao ser humano avanos tecnolgicos, inimaginveis em sculos anteriores. Pela cincia clssica os seres humanos desenvolveram a capacidade de intervir na dinmica ambiental e na dinmica da vida.

    Esperava-se da cincia e de sua evo-luo tecnolgica, concebida para ser a diretriz dos rumos da humanidade, a erradicao das injustias sociais, das de-sigualdades econmicas e da distribuio de bem-estar estendido a todos e a cada um dos seres humanos. No entanto, a cin cia e os conhecimentos construdos, em mos hierrquicas e interesseiras, revelaram dimenses ameaadoras, que ascenderam as desigualdades, proliferam ameaas ao entorno ambiente, nosso ni-cho vital e ameaas, sobremaneira, a ns seres humanos enquanto seres humanos. Essa cincia, ao ser apresentada sob o do-mnio de uns poucos especialistas, aliados muitas vezes de oligoplios econmicos, est distante da maioria da populao. O resultado temor diante das ameaas,

    crescente desconfiana diante das pro-messas no cumpridas e um desequilbrio de foras continentais entre os chamados pases desenvolvidos e subdesenvol-vidos.

    A cincia, que promoveu um desen-volvimento espetacular nos mbitos tec-nolgicos e cientficos, no foi e ainda no capaz de estender melhorias de vivncia relacional, melhorias sociais e econmi-cas, alm de encontrar-se com um dbito incomensurvel no campo da tica.

    A humanidade evolui em relao construo e reconstruo de conheci-mentos como em nenhum outro momen-to histrico j vivenciado. Fazemos parte da sociedade da informtica (SCHAFF, 1995), da sociedade do conhecimento (DRUCKER, 1993) e, mais proximamente da sociedade aprendente (ASSMANN, 1998). Os pressupostos tericos e prticos que garantem essas afirmaes esto im-budos da ideia de que a aprendizagem um processo, fundamentada numa matriz biolgica auto-organizativa. As organiza-es aprendentes so propostas criadoras de culturas orientadas para aprendiza-gens dinmicas ao longo da vida.

    Desde os primrdios da moderni-dade, os conhecimentos cientficos e a cincia exercem grande influncia nas decises e aes humanas. Para muitos, a cincia passou a ser uma espcie de deu-sa, responsvel pelo destino da huma-nidade, sem uma preocupao especfica para com essa mesma humanidade. Nessa lgica e nesse endeusamento, o enfoque cientfico e educativo tornou explcito o distanciamento entre diversas disciplinas e reas cientficas, o que implica necessa-riamente uma questo epistemolgica.

    Apostar em conhecimentos alterna-tivos, como a ecologia de saberes, permi-

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    tindo um reencontro com o inconformis-mo, a curiosidade e a diversidade, podem criar condies para reencantar a huma-nidade, consigo mesma, desenvolvendo estados de paz e vivendo o amar. uma tarefa a ser assumida pela humanidade e pela educao. Essa aposta requer novas concepes de ser humano, de relaes humanas, de construo e reconstruo de conhecimentos. Requer romper com os saberes postos e tidos como acabados, condio primordial para a criao de es-paos educativos nos quais as vivncias aprendentes sejam o princpio.

    Diante desses imensos desafios, a problemtica maior da reflexo gira em torno da questo: como e por que, diante do desenvolvimento tecnocientfico, to exuberante, persistimos com a indiferen-a e a insensibilidade para com os seres humanos e o que a educao tem a ver com isso? Talvez seja convidativa uma cincia que provoque em ns um esforo reflexivo visando transformaes em ns mesmos e em nossas relaes sociais. Mi-nimizar a insensibilidade humana pode ser a fonte impeditiva da expanso da fome e da pobreza. Estamos todos envol-vidos em uma crise profunda e generali-zada de natureza ecossistmica, uma crise paradigmtica, que afeta todas as nossas relaes com a vida e a convivncia.

    Cincias e possveis alianas para a

    convivncia Nossa forma de ser, estar, pensar e

    agir, fazer educao e aprender depende dos momentos e contextos histricos vi-

    vidos pela humanidade e da forma como decidimos fazer cincia. A cincia clssica, criada pela humanidade, tambm resulta em aes humanas, que tanto podem fa-vorecer a vida quanto explorar as formas vivas e os nichos que a mantm.

    No novidade que a cincia, junta-mente com o esplendor tecnolgico, lan-ou a humanidade numa crise profunda e globalizada de ordem ecossistmica, que afeta as fontes que sustentam a vida, amea a a existncia de diversas formas vivas e alimenta desentendimentos em nossas relaes interpessoais.

    Pautada num mtodo rgido e fecha-do, universalizado para todas as reas de conhecimento, foi prescrito como vlido para todas as situaes. Foi apresentado como inquestionvel, linear e capaz de fornecer verdades absolutas.

    O mtodo da cincia ocidental, basea-do em entidades fechadas, como subs-tncia, identidade, causalidade linear, sujeito e objeto singularizados, criou um vazio de conhecimentos sobre o ser huma-no. A falta de viso de interdependncia, entre as coisas e os fenmenos, acelerou em ns o individualismo e a incapacidade de conviver com outros. Uma falha grave, como destaca Morin (2001b, p. 80):

    Estas entidades no comunicavam entre elas, as oposies provocavam a repulsa ou a anulao de um conceito pelo outro (como sujeito/objeto), a realidade podia, portanto, ser cercada por ideias claras e distintas [...]. Ora este paradigma do Ocidente, de resto filho fecundo da es-quizofrnica dicotomia cartesiana e do puritanismo clerical, comanda tambm o duplo aspecto da prxis ocidental, por um lado antropocntrica, etnocntrica, egocntrica desde que se trate do sujeito

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    (porque baseada na autoadorao do su-jeito: homem, nao ou etnia, indivduo) por outro e correlativamente manipula-dora, gelada e objetiva desde que se trate do objeto. Ele est relacionado com a identificao da racionalizao com a eficcia, de eficcia com os resultados contabilizveis; inseparvel de toda uma tendncia classificacional, reifica-dora [...].

    A cincia concebeu o universo com forma restrita, determinista e totalmente homognea e, por isso mesmo, plena-mente mensurvel. Ao faz-lo, a cincia separou-se do mundo vida, como ma-nifesto por Koir (apud PRIGOGINE; STENGERS, 1997, p. 24):

    Disse eu que as cincias modernas ti-nham derrubado as barreiras que se-paravam os cus e a Terra, que une e unificou o universo. Isto verdade. Mas, disse-o tambm, ela f-lo substituindo nosso mundo de qualidades e percep-es sensveis, mundo no qual vivemos, amamos e morremos, por um outro mundo: o da quantidade, da geometria deificada, no qual h lugar para tudo, menos para o homem.

    A pretenso de criar teorias vlidas para todos os acontecimentos, desde os fenmenos da natureza at os fenmenos da vida, pela via da lgica, fez Prigogine e Stengers (1997, p. 39) escreverem: O que a cincia clssica toca, seca e morre. Mor-re para a diversidade qualitativa, para a singularidade, para tornar-se a simples conseqncia de uma lei geral. Na pre-tenso de conhecer e compreender esse mundo passivo, desconsiderando as in-terrelaes, o aleatrio e a desordem, ela transformou-se num manual de simples receita pragmtica que permite uma in-

    terveno eficaz nos processos naturais (PRIGOGINE; STENGERS, 1997, p. 40), priorizando a explorao e a manipula-o.

    Shattuck (1998), em reflexo sobre a cincia, especificamente em relao fabricao de bombas atmicas e aos estudos relacionados ao genoma, ques-tiona: A pesquisa cientfica, que conta com apoio poltico e tecnolgico imenso, representa o pecado final da civilizao ocidental? Ou ela o Graal que buscamos como nica forma remanescente de sal-vao? Mercantilizada, a cincia integra o mercado aberto, depende de patentes e torna-se comercializvel, atendendo muito mais aos interesses de corporaes econmicas e polticas, em detrimento do bem comum. As bombas atmicas que caram sobre Hiroshima e Nagasaki, o foram porque duas perguntas diferentes obtiveram resposta favorvel por parte de Robert Oppenheimer, um fsico terico: Devemos fabricar a bomba? e, Deve-mos utilizar a bomba? (SHATTUCK, 1998, p. 174). A concepo de que o va-lor da cincia est nos benefcios que a mesma destina para a vida humana fica colocado em questo quando a dedicao verdade e da descoberta desinteressada so ofuscadas pela no responsabilidade. Em discurso proferido por Oppenheimer em 1947, o cientista fala em herana de preocupao e diz:

    Falando cruamente, de um modo que nenhuma vulgaridade, nenhuma hipr-bole capaz de suprimir, os fsicos co-nheceram o pecado; e esse um conhe-cimento que no podem esquecer (apud SHATTUCK, 1998, p. 176).

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    Sendo profundos os efeitos sobre a vida e, particularmente, sobre a vida hu-mana, sabendo que o conhecimento cien-tfico jamais foi e estar livre da ptica ex-ploradora com finalidades criminosas, an-tibiticas e anti-humanas, a cincia enfren-ta o dilema dos princpios sociais, ticos, intelectuais e econmicos (SHATTUCK, 1998). um dilema, acima de tudo, ti-co e comportamental, j que o fruto da cincia, transformado em conhecimento e tecnologia, parece, em si mesmo, no comportar nem o mal nem o bem. Shattu-ck denomina esse dilema de condio da ambivalncia que, no fundo, tem a ver com a dificuldade de discernir entre aqui-sio de conhecimento e sua aplicao, j que o mal e a destruio encontram-se somente na forma de aquisio e apli-cao do conhecimento (SHATTUCK, 1998, p. 221).

    Usar a cincia a favor da vida, uma cincia comprometida com o bem-estar dos humanos e do planeta elaborada por cientistas guiados pela responsabilidade e pela curiosidade, no caminho da pru-dncia, podem fazer da cincia uma co-laboradora de benefcios sociais e superar o estigma do servir ao comrcio, s cor-poraes e indstria. A aposta na con-tribuio benfica da cincia para a vida humana persiste forte e

    a humanidade como um todo [...] tem interesse legtimo na lealdade profissional de um cientista a quem foi dado um treinamento prolonga-do e privilegiado (SHATTUCK, 1998, p. 223).

    Tambm Chalmers (1993), ao refletir sobre a cincia reconhece nela imensur-veis mritos para a humanidade, mas, ao

    mesmo tempo, a problematiza. Segundo ele, existe uma crena de que h algo de especial na cincia e em seus mtodos. Para Chalmers (1993), a atribuio do termo cientfico pressupe mrito e grau de confiabilidade, por atender a um mtodo. No imaginrio social e, dentro do prprio campo cientfico, a algo que comprovado cientificamente no cabe contestao. Diante das controvertidas aplicaes do conhecimento cientfico, que vo desde a cura de dores somticas e psicolgicas, aumento substancioso nas mais diversas reas de produo agrco-la e industrial, at as ameaas por armas bacteriolgicas, bombas nucleares, diver-sas tecnologias destrutivas com ameaas de discriminao gentica, Chalmers (1993) questiona: qual a base para esse mrito, essa autoridade concedida cin-cia? Chalmers pe em dvida essa ele-vada estima da cincia, presente na vida cotidiana, nos espaos escolares e acad-micos, na mdia, nas indstrias, nos locais de trabalho, que a transformaram numa nova religio. Segundo ele, criamos uma cultura, providencialmente cega, que aposta, sobretudo, na habilidade de mensurar, de comparar e hierarquizar. Desenvolvemos um antropocentrismo, concebendo-nos autossuficientes como produtores de conhecimentos, formas de pensar e de agir. A cincia e a tecnologia alimentaram a crena de que tudo se re-solveria dentro delas sem mais a necessi-dade de apelos s transcendncias.

    Para Chalmers (1993, p. 46), precisa-mos de profunda reflexo e de muita cau-tela nas ambies daqueles que endeusam teorias e lhes arrogam validade universal.

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    essencial compreender a cincia como um corpo de conhecimento historica-mente em expanso e que uma teoria s pode ser adequadamente avaliada se for prestada a devida ateno ao seu contexto histrico. A avaliao da teoria est intimamente ligada s circunstn-cias nas quais surge (CHALMERS, 1993, p. 46).

    Se avanarmos no desafio de conce-ber e aplicar princpios razoveis ao fazer cincia para que a violao da vida seja gradativamente superada e a dignidade e a liberdade humanas sejam consideradas soberanas, a cincia precisa aspirar di-versidade e temporalidade em conjunto com a prudncia. Poderemos ento vis-lumbrar a afirmativa de Prigogine e Sten-gers (1997, p. 1): Chegamos hoje a uma situao terica completamente diferente, a uma descrio que situa o homem no mundo que ele mesmo descreve e implica a abertura desse mundo. Essa transfor-mao conceitual, essa modificao de nossa noo do significado de cincia, denominada pelos autores de metamor-fose da cincia. Uma cincia que reco-nhece serem os conhecimentos depen-dentes da cultura, do contexto histrico de uma poca e de determinados grupos sociais. Uma cincia que reconhece que

    os problemas que marcam uma cultura podem ter uma influncia sobre o con-tedo e o desenvolvimento das teorias cientficas (PRIGOGINE; STENGERS, 1997, p. 8).

    Novas concepes, mais abrangentes do que as abordagens analtica e reducio-nista, ampliam-se para abranger aspectos mais abertos da realidade. Esse modo de pensar, no mais preso a um nico

    nvel de realidade busca agora observar essa realidade como uma organizao complexa a ser estudada como um todo, inseparvel em partes, porque reconhece que toda fragmentao implica perda de caractersticas essenciais. Nesse sentido, Prigogine e Stengers (1997, p. 5) afirmam que fenmenos estticos e imutveis j no constituem o foco dos atuais estudos cientficos.

    No so mais situaes estveis e as permanncias que nos interessam antes de tudo, mas as evolues, as crises, as instabilidades. J no queremos estudar apenas o que permanece, mas tambm o que se transforma, as perturbaes geolgicas e climticas, a evoluo das espcies, a gnese e as mutaes das normas que interferem nos comporta-mentos sociais.

    Mais do que preocupada com a construo de verdades, a cincia se abre para aventuras pelo inconformismo, pela novidade e, em direo contestao de si mesma. Ao admitir sua funo constru-tiva, abandona tradicionais bases tericas e, em vez da lgica binria e excludente, considera a existncia de outras possibi-lidades, de outras alternativas nas quais termos como irreversibilidade, esponta-nesmo e indeterminao so reconheci-dos porque presentes na natureza e nas organizaes humanas.

    Prigogine e Stengers (1997, p. 11) reconhecem ser urgente que a cincia se reconhea como parte integrante da cultura no seio da qual se desenvolve e que, assim como a cincia ocidental, no deve ser responsabilizada pelas mazelas do mundo, tampouco deve ser percebida como fonte de salvao.

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    Na nova viso de cincia, propem--se a compreenso e a descrio dos pro-cessos complexos que constituem o mun-do, sejam biolgicos, sejam culturais, o que significa admitir que as teorias, teses e concepes representam nossos jeitos de linguajar sobre um mundo que ns explo-ramos. Um mundo dinmico e em trnsi-to com capacidade de evoluo, de auto--organizao, de inovao, de complexi-dade e emergncias, de irreversibilidade e em constante metamorfose. Estamos no cenrio que contextualiza o fim da rup-tura cultural que faz da cincia um cor-po estranho e lhe d as aparncias duma fatalidade a assumir ou duma ameaa a combater (PRIGOGINE; STENGERS 1997, p. 25). Perceber o contraditrio e ad-mitir uma natureza complementar clama pela presena de uma terceira possibili-dade, alm das existentes, para entrar em outros nveis de realidade, de percepo e compreenso. Uma terceira cultura a cul-tura do dilogo entre a tcnica e a teoria, aliana sistemtica entre a ambio de modelar o mundo e a de compreend-lo (PRIGOGINE; STENGERS, 1997, p. 29). Uma dialgica entre complementaridade e antagonismo, entre imaginao e veri-ficao (MORIN, 1998), entre a fsica tra-dicional e evidncia emprica, entre expe-rincia e teoria, entre fatores sociais e eco-nmicos, entre conhecimentos orientais e ocidentais, entre ser humano e natureza e, principalmente, entre cincias humanas e cincias da natureza. O que se prope uma razo aberta, uma racionalidade que propicie a dialogicidade. Estimular uma sbia razo capaz de reflexo autocrtica, para admitir que no poderemos escapar incerteza de que no poderemos nun-

    ca ter um saber total (MORIN, 2001b, p. 100).

    Se o mito da compreenso lgica e integral do universo est superado, ento permitimos a abertura para o dilogo com a natureza, com a realidade e sua diversi-dade, pois

    a cincia de hoje no pode mais dar-se o direito de negar a pertinncia e o in-teresse de outros pontos de vista e, em particular, de recusar compreender os das cincias humanas, da filosofia e da arte (PRIGOGINE; STENGERS, 1997, p. 41).

    Porm, conforme alertam Prigogi-ne e Stengers (1997), a cincia no so-mente uma arte de manipular a nature-za, mas um esforo para compreender, para responder a algumas questes que, de gerao em gerao, alguns homens no cessaram de colocar a eles mesmos (PRIGOGINE; STENGERS, 1997, p. 203), como, por exemplo, aspectos ligados ao ser e ao devir, a permanncia e mudana. A mudana uma das caractersticas da concepo sistmica de mundo, de vida e de aprendizagem. A viso de sistema dinmico,

    constitui a rigor um sistema do mundo, sem ceder lugar algum a uma realidade que lhe seria exterior [...] o sistema est presente em si, sempre e por toda a parte: cada estado contm a verdade de todos os outros, e todos podem se entre-predizer, quaisquer que sejam suas posi-es respectivas no eixo mondromo do tempo (PRIGOGINE; STENGERS, 1997, p. 204).

    Para os autores, as cincias no po-dem esquecer-se do enraizamento social e histrico das teorias e de que a organi-

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    zao natural e as organizaes humanas no se resumem a singulares princpios de ordem porque a cincia se afirma hoje como cincia humana, cincia feita por homens e para homens. No seio de uma populao rica e diversa em prticas cognitivas, nossa cincia ocupa a posio de escuta potica da natureza (PRIGO-GINE; STENGERS, 1997, p. 215), l onde o ser humano pertence ao mundo, integra e faz o mundo, pertence matria e ma-tria.

    No desafio de encontrar uma nova forma de conceber e fazer cincia e produ-zir conhecimento para preencher o bura-co criado pela separao entre cin cias da natureza e cincias humanas formulou-se a viso da complexidade da multi e da transdisciplinaridade. Fazem-se ensaios na tentativa de aproximar disciplinas, interrogamos a legitimidade do mtodo cientfico linear, comeamos a admitir di-ferentes pontos de vista, diferentes expe-rincias culturais e concepes filosficas. Os confrontos diretos entre interrogaes filosficas e cientficas comeam a con-jugar possibilidades de complementari-dade. A natureza, as diversas culturas e pessoas, individualmente, finalmente ouvidas, alm de desmentirem sedutoras teorias cientficas, clamam por reconheci-mento e respeito como indicado por Pri-gogine e Stengers (1997, p. 225):

    devemos aprender a respeitar as outras abordagens intelectuais quer sejam as tradicionais, dos marinheiros e campo-neses, quer as criadas pelas outras cin-cias. Devemos aprender no mais julgar a populao dos saberes, das prticas, das culturas produzidas pelas socieda-des humanas, mas a cruz-los, a estabe-lecer entre eles comunicaes.

    Admitir a multiplicidade de experi-mentaes, renunciar a segurana de nor-mas estveis e permanentes, reconhecer que o mundo no silencioso e monto-no. Significa abrir mo da centralidade humana e da aposta em sua capacidade de, pela cincia, produzir respostas uni-versais. Como afirmam Maturana e Va-rela (1995), de observadores agora passa-mos a observados e, ao olharmos para ns tornando-nos o questionado, reconhe-cemos no termos bases para responder favoravelmente aos inmeros desafios existenciais como seres humanos.

    Ao admitirmos a pluralidade sen-timos a importncia da reconstruo de novos saberes e novos olhares, criados porque nos sentimos novamente liber-tos para dar asas curiosidade, que, por muito tempo foi sendo atrofiada e enco-berta. Se a insuficincia da fragmentao e da simplificao for admitida, abrem-se fronteiras para novas percepes e for-mas de ver o mundo, como um com-plexo conjunto de fluxos contnuos de eventos e processos (STRIEDER, 2004, p. 67). Nessa cincia, observador, observa-do e instrumentos de pesquisa se fundem e se interpenetram, escrevem seus limites, revisitam valores, veem a possibilidade de dilogos entre a cincia e a filosofia, para realimentar sentidos da vida numa verdadeira transitoriedade conceitual.

    Tudo isso exige uma mudana con-ceitual que pode e precisa ser potenciali-zada pelo fenmeno da educao, criado pela humanidade para dar continuidade a um determinado modo de vida, mas tambm para permitir que inovaes se-jam percebidas, semeadas e incorporadas ao viver cotidiano.

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    Das cincias para uma educao mais abertaEstamos imersos num mundo de

    objetos externos, independentes de ns, e estes objetos so os que desejamos co-nhecer. Mas, explicar o fenmeno do co-nhecer exige antes de tudo, explicar o ser humano (MATURANA, 2001). Estudar sobre o humano fundamental, pois

    vivemos num mundo centrado no co-nhecimento. Estamos continuamente atuando uns sobre os outros, exigindo uns dos outros esses ou aqueles compor-tamentos em funo de peties cogniti-vas [...] por isso somos ns, observado-res, o ponto central da reflexo e o ponto de partida da reflexo (MATURANA, 2001, p. 27).

    Se, como afirmou Heisenberg (1996), o que observamos no a prpria natu-reza, mas a natureza exposta ao nosso mtodo investigativo, ento a conscincia do observador tambm influi na defini-o e, at mesmo, na existncia do objeto observado. Entre os dois reina um nico e mesmo sistema. O observador funda-mental, no s para que as propriedades de um fenmeno sejam observadas, mas tambm para ocasionar tais proprieda-des. Einstein, em 1926, conversando com Heisenberg (1996), dizia que observar sig-nifica que construmos alguma conexo entre um fenmeno e a nossa concepo sobre este.

    O observador um ser humano na linguagem, que usa do discurso para ex-plicar os fenmenos, que se constri e exis-te na e pela linguagem. Por isso, conforme leciona Maturana (2001, p. 29), explicar sempre uma reformulao da experincia

    que se explica. Dessa afirmao se pode extrair que existem muitos explicares diferentes, como tambm diferentes mo-dos de escutar e aceitar reformulaes da experincia. Para Maturana (2001), explicaes podem ocorrer: a) dentro do domnio das ontologias transcendentes, por ele denominada de objetividade sem parnteses; b) dentro do domnio das on-tologias constitutivas chamada de objeti-vidade entre parnteses.

    Na objetividade sem parnteses o observador possui habilidades e usa da razo para explicar como a coisa , inde-pendente de si (e ele afirma: percebo-o, vejo-o, detecto-o). O observador pensa ser capaz de distinguir iluso de percepo e, por isso, capaz de referenciar algo que existe independente de si. Nessa posio o observador torna-se refm da concep-o de que aquele que no est consigo est contra ele. E, mais, como as coisas e os fenmenos so independentes do ob-servador, ele no o responsvel pelo co-nhecimento, portanto, far uso da razo para impor as verdades aos outros.

    No domnio da objetividade entre parnteses, o observador leva em conta sua biologia e percebe que interfere no observado. Reconhece no saber distin-guir entre iluso e percepo. Admite a sua incapacidade de explicar como a coisa , e capaz, no mximo, de explicar o que faz e como faz o que faz ao observar. Se a existncia do observado depende do ob-servador e do que ele faz, tambm assu-me a posio de no fazer referncia a en-tidades independentes dele ao construir o explicar e, suas afirmaes cognitivas so validadas pelas coerncias operacionais que a constituem. A realidade ser uma proposio explicativa, o que permite

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    afirmar que h tantas realidades quantos domnios explicativos, todas legtimas (MATURANA, 2001, p. 38). Se entender-mos que na vida cotidiana nos movemos de um caminho explicativo para o outro, abrem-se possibilidades de reconheci-mento e aceitao do outro em sua dife-rena. Na objetividade sem parnteses, a linguagem a forma mais prxima de consensuar as coordenaes de aes, com espao para as emoes porque se entende que todas as aes humanas ocorrem num espao de ao especifica-do estruturalmente como emoo e que no h nenhuma atividade humana que no esteja fundada, sustentada por uma emoo (MATURANA, 2001, p. 46-48).

    Com base nas ontologias constituti-vas, muitas so as apostas na ampliao e reconstruo dos saberes e conheci-mentos da humanidade. Novas ideias e formas de ver e entender as cincias, a vida e a aprendizagem so criadas, dia-riamente, pela humanidade. Entre tantas outras, citamos a aposta na ecologia dos saberes, proposta por Santos e Meneses. Para esses pensadores sem a construo de um pensamento crtico ps-abissal, a reproduo abissal entre Norte e Sul per-manecer. Santos e Meneses (2010, p. 53) propem:

    [...] um aprender com o Sul, usando uma epistemologia do Sul. Confrontam a monocultura da cincia moderna com a ecologia de saberes [...] porque se ba-seia no reconhecimento da pluralidade de conhecimentos heterogneos [...] e em interaes sustentveis e dinmicas entre eles sem comprometer a sua auto-nomia. A ecologia de saberes baseia-se na idia de que o reconhecimento in-terconhecimento.

    Efetivamente Santos e Meneses (2010) esto propondo uma copresena das diferentes cincias, dos diferentes saberes, das diferentes culturas, uma co-presena entre saber cientfico e popular como princpio de interrrelaes Norte--Sul. Todas essas copresenas tm como pressuposto a abolio da intolerncia e da guerra. O pensamento ps-abissal, proposto por Santos e Meneses (2010, p. 54), tem como premissa

    a ideia da diversidade epistemolgica do mundo, o reconhecimento da exis-tncia de uma pluralidade de formas de conhecimento alm do conhecimento cientfico.

    Ao desejarmos vivenciar a ecologia de saberes, nos vrios contextos do coti-diano precisamos de novas e diferentes vises e formas de nos relacionar, para o sonho e a esperana de aes para a paz e a sensibilidade social. Fazer cincia e educao, apostando na paz e na sensi-bilidade social, significa ver e entender o ser humano de maneira diferente e numa diversidade de dimenses que lhe permi-tem a vivncia da liberdade e da respon-sabilidade.

    As reflexes de Ricouer (2006) sobre o reconhecimento e os estados de paz, possveis nas sociedades atuais, propem que, diferentemente do enfrentamento os estados de paz, resultam do reconheci-mento mtuo e das experincias de paz. Em forma de denncia, Ricouer (2006) afirma que numa sociedade dominada pela economia de mercado, onde tudo tem preo e valor comercial, o ato de dar pre-cisa estar pautado na reciprocidade m-tua. Para Ricouer (2006), preciso dar por generosidade e no por retribuio, pois

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    no modelo de transaes e reciprocidade do mercado moderno o pagamento colo-ca um fim as obrigaes mtuas entre os atores da troca [...] a reciprocidade sem mutualidade (RICOUER, 2006, p. 245).

    Ainda, conforme Ricouer (2006), as relaes entre seres humanos vo muito alm das pretendidas pela esfera mer-cantil. Existem em ns valores compar-tilhados e coisas sem preo, cujo valor intangvel. preciso dar e receber com generosidade, com gratido, porque, como diz Mauss, nos damos ao dar, e se nos damos porque nos devemos, ns e nosso bem aos outros (apud RICOUER, 2006, p. 255). Reciprocidade significa dar e aceitar com gratido. Dar e receber com gratido contribui para criar estados de paz.

    Aberturas para a aprendizagem

    Junto com a ecologia dos saberes, dos estados de paz e do reconhecimento m-tuo, precisamos rever nossas concepes de aprendizagem. Faz-lo navegar por termos diferentes, criados recentemente, dentre os quais citamos processos cog-nitivos, processos vitais, antropoi-tica, morfognese. Trata-se de termos que concebem a transversalidade, aplica-dos em diferentes reas do conhecimento para entender melhor as interpelaes entre ordem e caos, equilbrio e desequi-lbrio, coordenao e descoordenao, a imanente coexistncia e a interdepen-dncia. De uma forma ou de outra essas expresses impactam possibilidades de novas aprendizagens.

    Aprendizagem como inscrio cor-poral e como necessidade bsica de vida implica reconhecer que a vida um pro-cesso de aprendncia (ASSMANN, 1998, p. 130), que o sistema neural encontra-se organizado de forma a ser capaz de de-tectar essas invariantes apesar das dife-renas acentuadas nos detalhes, porque aprendizagem uma ao dinmica do sistema neural baseada na participao e no em centralizaes de poderes arbitr-rios (ASSMANN, 1998, p. 130).

    Para entender a aprendizagem, con-forme Maturana e Varela (1995), faz-se necessrio conhecer o conhecer, o como aprendemos e o que acontece no apren-dente quando vive a experincia de co-nhecer. Questionam os autores: o que conhecer?

    Essa questo, to tradicional, mas sempre nova, desafio para melhorar nossa compreenso de como aprendemos e da importncia de considerar a existn-cia de mltiplas formas de ver o mundo. J no temos dvidas que os modelos mentais de cada ser vivo se constituem de formas diferentes e lhe conferem ma-neiras tambm diferentes de aprender. Fica cada vez mais evidenciado que no existem conhecimentos e verdades fora da mente humana, que no h realidade e conhecimento dado, mas construdo in-ternamente porque todo fazer conhecer e todo conhecer fazer (MATURANA; VARELA, 1995, p. 70). E, para alimentar os estados de paz e o reconhecimento mtuo, estamos aprendendo que todo o viver socialmente implica estar sempre em troca e negociao de convergncias e divergncias das nossas linguagens acer-ca do sentido do mundo e da vida (ASS-MANN, 1998, p. 138).

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    Tendo como referncia a interdepen-dncia entre conhecer e fazer, a funo da educao ser a de ampliar as oportu-nidades para que se aprenda a aprender, l onde as corporeidades se encontram imersas em relaes sociais de construo de significados. Atualmente, sabe-se que a aprendizagem ocorre motivada por lin-guagens e processos orgnicos vitais, por sermos seres biossocioculturais, que se au-tofazem para manter a vida em-ao ou ao-desde-dentro (ASSMANN, 1998).

    Estamos aprendendo que a natureza foi e continua sendo forjada numa com-plexa engenharia, circular e recursiva e que continua navegando numa dialogici-dade processual evocando processos au-to-organizadores e emergentes (MORIN, 1987).

    Da mesma forma, vida e aprendi-zagem formam uma e nica complexa trama em busca de equilbrios e desequi-lbrios, de interao constante entre caos e ordem, certezas e incertezas, sabendo que toda autonomia dependente do contexto e que toda estabilidade sempre aparente.

    No universo dessas novas concep-es e das possibilidades de mundo e vidas a serem construdas, Maturana e Varela (1995, p. 60-61) convidam a resistir tentao das certezas, pois a tendncia ainda :

    [...] viver num mundo de certezas, de uma perceptividade slida e inquestio-nvel, em que nossas convices nos dizem que as coisas so da maneira como as vemos e que no pode haver alternativa ao que nos parece certo. Tal nossa situao cotidiana, nossa condio cultural, nosso modo corrente de sermos humanos.

    Suspender as certezas permite me-lhorar o entendimento do fenmeno do conhecimento na ao de fazer cincia e do fazer que lhe resultante, sendo que esse fazer, como experincia cognitiva depende daquele que conhece com toda a carga de sua subjetividade e de sua situa-o biolgica.

    Segundo Maturana e Varela (1995), a descontinuidade das coisas, dos objetos e dos fenmenos mostra que no vemos que no vemos, porque os estados de atividade neural que so desencadeados pelas diferentes perturbaes em cada pessoa, so determinados por sua estru-tura individual e no pelas caractersticas do agente perturbador (MATURANA; VARELA, 1995, p. 65). Ou seja, o que vemos e como vemos depende de nossa prpria estrutura, nosso prprio campo visual com suas limitaes e possibilida-des. Assim, conhecimentos socializados ampliam as formas de perceber as rea-lidades, descobrindo que no podemos separar nossa histria de aes biolgi-cas e sociais de como ele nos parece ser (MATURANA; VARELA, 1995, p. 66). Logo,

    conhecer ao efetiva, ou seja, efe-tividade operacional no domnio de existncia do ser vivo [...], uma ao que permite a um ser vivo continuar sua existncia em determinado meio ao produzir a seu mundo (MATURANA; VARELA, 1995, p. 71-72).

    Construir estados de paz e sensi-bilidade social um fazer humano nos domnios singulares e plurais de sua co-existncia. Um fazer humano que leva a repensar nossa vida individual como um conviver social, j que ns humanos

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    existimos nos mundos que geramos nas relaes estabelecidas na e pela lingua-gem, no fluir de nossas emoes, de modo que estas constituem o fundamento e o carter relacional de nosso viver ou con-viver conosco mesmos e com os outros (MATURANA; YEZ, 2009, p. 83). No desafio de vivenciar a sensibilidade social e ativar a esperana da paz, Maturana e Yez (2009) afirmam que esse viver pre-cisa conceber-se em aliana com a emoo de maior significao para o ser humano: o amar, que o fundamento do viver no bem-estar, na aceitao e na legitimidade de toda a existncia. Esse amar, afirmam os autores (2009, p. 83), unidirecional, no espera retribuio e negado pe-las expectativas. O amar um fazer na convivncia que prescinde de adjetivos como generosidade, altrusmo ou solida-riedade, porque seriam revelaes de que o amar no um fazer cotidiano. Para os autores, o amar no precisa de intencio-nalidade porque ento a conduta espera-da ter uma face manipulativa.

    Numa perspectiva diferente das tra-dicionais concepes e descries da ao amar, Maturana e Yez (2009) entendem que o amar tem a ver com as condutas re-lacionais que permitem o reconhecimento do outro como legtimo outro na coexis-tncia com o mesmo. Um outro que forma comigo uma dupla inseparvel e a quem dedico ateno, cuidado e acolhida, num profundo sentimento humano de unida-de. Esse amar inspira-se na confiana e no respeito, permite estabelecer laos entre integridade e beleza e pode ser entendido como nova capacidade para favorecer a paz e a sensibilidade social. , como afir-mam os autores, um fluir na espontaneida-de do viver e conviver com um outro sem

    inteno ou propsito, mas como leg-timo outro na convivncia com algum (MATURANA; YEZ, 2009, p. 84). Para esses autores ainda,

    o amar visionrio, pois ocorre na am-pliao do ver (do ouvir, do sentir, do cheirar, do tocar) prprio do espao das condutas relacionais que ocorrem sem preconceitos, sem expectativas, sem ge-nerosidade, sem ambio [...]. O amar no bom nem mau, simplesmente o viver no bem-estar trazido pelo viver sem o sofrimento que traz o apego ao valor ou sentido que se v no perdido ou que se pode perder (MATURANA; YEZ, 2009, p. 84).

    diferente das contextualizadas re-ciprocidades no universo das trocas mer-cantis com valores equitativos que, quan-do negados ou recusados, causam dor e sofrimento. No amar proposto, no cabe o apego a valores materiais ou intangveis, nem se prioriza e valoriza a conservao de sua ausncia. O amar, enquanto vivn-cia efetiva num domnio existencial a ser construdo em cada instante e de forma espontnea, funda-se na ternura, na sen-sualidade, no prazer da proximidade com o outro. E, diferentemente das vozes obje-tivas e racionalizadas que neutralizam a efetiva participao do ser humano no fa-zer cincia, na aprendncia e na constru-o de mundos, reconhecemos nossa exis-tncia como seres humanos linguajantes, conectveis em redes de conversaes, aceitando que nada de humano ocorre fora desse conversar. Assim, nas palavras de Maturana e Yez (2009, p. 85), todo e qualquer conviver fora do amar no conviver social porque gera emoes de posse, de poder, de ausncia, de mentira e porque gera dor e sofrimento.

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    A cincia clssica e tambm as cin cias, sem a pretenso de absolutos, contriburam para amenizar dores fisio-lgicas, somticas e dores psicolgicas. Mas, a dor e o sofrimento causados pelo esquecimento do humano, pelas relaes humanas postergadas, pelo no reconhe-cimento dos estados de paz e da sensi-bilidade social, pela quase ausncia do amar desinteressado, tem pouca chance de cura pela via cientfica e tecnolgica. Por isso, se no alimentarmos os desejos de benquerena, de bem-estar corporal e psquico de ns prprios e do outro, e no nos reconhecermos como seres multidi-mensionais, a vivncia do amar permane-ce no limbo da postergao. importante reconhecer que

    existimos na realizao [...] de muitas identidades diferentes que se entrecru-zam em nossa corporalidade e que se conservam como formas particulares de ser [...] no fluir relacional (MATURA-NA; YEZ, 2009, p. 85).

    nosso viver relacional pelas emo-es que define o carter de nosso viver, possibilitando ou impedindo a convivn-cia.

    O amar a nica emoo que expande o olhar em todas as dimenses relacio-nais e amplia o ver, o ouvir e o tocar [...] Consiste precisamente no abandono das certezas, das expectativas, das exign-cias, dos juzos e dos preconceitos (MA-TURANA; YEZ, 2009, p. 86).

    Maturana e Yez alertam que viver o amar s possvel se abandonarmos a cul-tura patriarcal-matriarcal, que centrada na desconfiana, no controle, na autorida-de e na subjugao. O seu convite est em dissolver as ideias duais bem e mal, belo e feio, amor e dio, entre outras, pois vi-

    ver esse viver viver no caminho do amar, viver espontaneamente na unidade de tudo (MATURANA; YEZ, 2009, p. 87).

    Consideraes finais Vivenciamos um momento histrico,

    no qual a reflexo sobre ns mesmos, so-bre nossas formas de viver, aprender, agir e relacionar recebe ateno e dedicao.

    O ser humano, no decorrer de um longo processo evolutivo, posicionou-se como o grande observador da e na na-tureza, tentando explicar e descrever as coisas e os fenmenos. Atualmente, diante dos vazios existenciais e das crises relacionais existentes, comeamos a dese-jar a ser no somente observadores, mas tambm observados. O momento e a con-dio de observados comeam a render ganhos nas cincias e nas tecnologias por-que provoca mudanas nas concepes de vida, de ser humano e de natureza. As pessoas desejam reinterpretar nosso ser e estar no mundo, nossos jeitos de explicar e conhecer, explicando-nos e conhecen-do-nos. Reorientadas, nossas reflexes passam a integrar a autorreflexo, consi-derando o que expe Maturana (2001) de que tudo o que dito dito por algum em particular, num lugar em particular e que as teorias nada mais so do que nos-sos jeitos de linguajar sobre a realidade e sobre ns mesmos.

    Dessa mudana nas concepes e jeitos de fazer cincia, tendo o ser huma-no como desencadeador do processo e tambm como referncia explicativa no decorrer do processo, cabe tarefa impor-tante para a educao. Esta, fundamenta-da em sua gnese formativa, pode contri-

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    buir na superao da viso linearizada e objetiva de natureza e de vida e de suas pretensas absolutizaes. Disposta a inse-rir educador e educando no processo da aprendizagem, no processo de construir conhecimentos, conhecer e entender o seu modo particular de estar no mundo, ser tambm a educao que estimula o incon-formismo diante do considerado determi-nado e absoluto. Ao semear a concepo de interdependncia entre cincia e ser humano, entre ser humano e natureza, entre ser humano para com outros seres humanos, entre a individualidade e a di-versidade, as vises mopes produzidas pela fragmentao desocuparo o seu lu-gar de destaque. Ento, vises mltiplas e transversais sero mais ricas e oportunas para solucionar parte dos grandes proble-mas criados pela humanidade.

    A educao e a humanidade como um todo tm um longo caminho a cons-truir. preciso desejar vivenciar o amar, a ecologia de saberes, a curiosidade, no-vos conhecimentos e saberes. Esse desejo precisa ser coletivo e estar presente nas universidades, nos programas de pesqui-sa, nas escolas, nas perguntas constantes e nas respostas incompletas, num profundo processo de autorreflexividade, requeren-do novas formas de ver e fazer cincia.

    Science and possibilities for improvement in the

    conceptions of life and living

    AbstractThis study aims to refl ect about the

    implications of classical science in ways of living and how to relate and learn. In this way, the set of problems of refl ec-tion are about the questions how and why, in a so exuberant techno-scientifi c development, we persist with indi-fference and apathy towards humans and what does education has to do with it? We refl ect about the possibili-ties of doing science, born in a quan-tum physics and biosciences and their contributions to humanity, capable of resizing limits and procedures that make science like, with comprehensi-veness and human validity. At the time of greater fl exi bility at scientifi c fi eld, different views begin to inhabit our living spaces, teaching and learning. These conceptions open prospects for expansion and improvement of human coexistence for herself and for natu-re because they contribute to greater openness in education and learning. In desire to reinterpret our existence and being in the world, our ways of explain and know, we explain us and know us better. Insert educator and learner in the process of explanations, learning and knowledge construction, allows to know and understand our particular way of live in the world. To sow the concept of interdependence between science and human, human and nature, human towards other human and be-tween individuality and diversity, the myopic visions produced by the frag-mentation will leave its prominent pla-ces. We will then, as we dream in, open borders for a real peace moment and a new meeting for coexistence in love.

    Keywords: Education. Peace moments. Science. To love.

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