3304008 Livro a Grande Epopeia Dos Celtas

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A GRANDE EPOPEIA DOS CELTAS Primeira poca OS CONQUISTADORES DA ILHA VERDE A PUBLICAR: Segunda poca OS COMPANHEIROS DO RAMO VERMELHO Terceira poca 0 HERIS DOS CEM COMBATES Quarta poca Os TRIUNFOS DO REI ERRANTE Quinta poca OS SENHORES DA BRUMA INDICE PREFCIO Nas fronteiras do real 7 PRELUDIO 0 homem dos tempos antigos I - NAS BRUMAS DA AURORA II - AS TRIBOS DE DANA III - LUG Do BRAO LONGO IV - A GRANDE BATALHA DE MAG-TURED V - A VINGANA DE LUG VI - Os FILHOS DE MIL VII - 0 ESTRANHO DESTINO DOS FILHOS DE UR VIII - AS ATRIBULAES DO JOVEM ANGUS IX - DEMNIOS E MARAVILHAS X - POR AMOR A FINNABAIR XI - A TERRA DAS FADAS .............. XII - ETAINE E o REI DAS SOMBRAS

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Deste modo, impelidos para novos horizontes, Na noite eterna embalados sem retorno, no seremos capazes, no oceano das idades, De lanar ncora ao menos por um dia? LAMARTINE, 0 Lago A identidade e a especificidade de uma civilizao, seja ela antiga ou moderna, s se tomam reconhecveis no caso de nela se encontrar uma tradio transmitida de gerao em gerao e que lhe sirva de testemunha essencial. Esta tradio agrega a memria de um povo ou de um grupo de povos que vivem em condies equivalentes ou, no mnimo, semelhantes, e pode manifestar-se de modos muito diversos, desde os simples costumes at especulaes filosficas muito complexas. Mas, na histria da humanidade, sempre se privilegiou a escrita, por esta ser o meio mais seguro e mais fiel de conservar a memria do passado. Assim se explica que a Grcia seja o pas de Hesodo, Homero, squilo, Herdoto e Plato, apesar de termos aprendido na escola que a escultura ocupa um lugar privilegiado na civilizao que, segundo se diz repetidamente, constitui um milagre sem o qual nada teria sido possvel. Assim, no caso dos gregos, no se coloca a questo de a sua identidade cultural ser reconhecida, pois eles deixaram um nmero suficiente de obras escritas para que possam integrar-se entre os chamados Povos civilizados. Mas o que dizer dos outros povos que, por uma qualquer razo, no conheceram a escrita ou nunca a utilizaram? Antigamente, devido crena ria mentalidade pr-lgica, to cara escola sociolgica francesa do incio do sculo XX, rejeitava-se uma cultura, que no tivesse escrita, por ser considerada incerta, incoerente e Primitiva. Esta ideologia (palavra que se aplica, sem dvida, a essa crena), foi a concretizao de um sistema construdo sobre a universalidade de uma Razo nica que justificava qualquer ato de colonizao, cultural ou outra, e de misso, fossem quais fossem as intenes; ela privou a humanidade durante muito tempo de uma importante parte de si mesma, pois rejeitava, sem apelo nem agravo, tudo o que no pertencesse s normas em uso num sistema imutvel e incontestvel. No interessa se tratava de ignorncia ou de desprezo pela diferena, pois a verdade que j se ultrapassou essa fase, J ningum hoje duvida que Os construtores dos megalticos, que viveram do V ao 11 milnio antes da nossa era, e de quem no se conhece nem o nome nem a lngua, foram extraordinrios artesos de uma civilizao brilhante que ocupou uma grande parte da Europa, tendo nela deixado marcas indelveis. Em termos de obras escritas, apesar disso, nada deles chegou at ns. Deles ficaram apenas monumentos, assim como misteriosos smbolos gravados na pedra, os quais, por terem um contedo mais mgico do que escrito, testemunham sem dvida no apenas um sentido de arte apurado, mas tambm um pensamento muito organizado e quase cientfico. Acontece entretanto que o estudo destes smbolos e da arquitectura extraordinariamente complexa destes monumentos, a anlise e a comparao dos diversos objetos arqueolgicos contemporneos, permitem que se reconstitua a partir de agora, mesmo que de forma incompleta e conjuntural, uma certa tradio caracterstica da civilizao dita megaltica.

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No que respeita tradio celta, est-se perante um caso muito semelhante. Nunca se pensou negar a existncia dos celtas que, bem Pelo contrrio, foram considerados os nicos predecessores dos Romanos, sido-lhes atribudos indiscriminadamente todos os vestgios que eram anteriores a estes ltimos. Mas sempre com um desprezo indisfarado que se faz referncia aos povos cujo nico defeito parece ser o de no se terem deixado seduzir pelos encantos da escrita. H uma realidade incontestvel: os celtas no escreveram nada antes de serem cristianizados, ou seja, antes de monges eruditos e pacientes terem recolhido em manuscritos preciosos Os seus testemunhos orais que estavam em risco de desaparecer e que foram salvos do esquecimento. Deste modo, dispomos de testemunhos que, apesar de incompletos e deformados, nos transmitem os vestgios da alma dos povos celtas. Mas, na verdade, quem foram realmente os celtas? A verdade obriga a que se diga que sobre eles muito pouco se sabe. 0 certo que no os podemos considerar um grupo racial ou tnico delimitado, to vasto e impreciso o seu campo de ao, e to confusa e contraditria a morfologia daqueles a quem se chamou celtas, os quais tanto incluem morenos troncudos e baixos como louros altos e de olhos azuis. Ser mais prudente falarse deles enquanto um povo que fala a lngua cltica. Tambm preciso fazer algumas distines. Os cimbros e os teutes, que foram exterminados por Marius e os romanos, eram sem dvida de origem germnica, embora tivessem nomes celtas: Cimbros o combroges gauls, querendo dizer do mesmo pas (e que deu o gals C-vmri); os teutes provm de uma raa celta de onde saiu o irlands tuath, tribo, e que se reconhece no nome do deus gauls Teutats (ou Toutatis), literalmente pai do povo, e no termo genrico atual deutsch, alemo, o que no deixa de ser algo paradoxal. Quanto aos celtas da mesma poca, existe outra dificuldade: a maior parte deles j no fala uma lngua cltica, como o comprovam certos bretes armoricanos (da Alta Bretanha), nove em cada dez irlandeses, para alm dos gauleses e de outros povos europeus outrora classificados como celtas ou que estiveram sob o domnio celta. Alm disso, os autores da Antiguidade clssica no estavam mais elucidados do que ns a este respeito, confundindo com facilidade celtas e germnicos, ou ento fazendo dos primeiros uns vagos Hiperbreos, ou mesmo Cimrios que viviam num universo sombrio nas fronteiras de Outro Mundo. A verdade que os celtas, cuja existncia no se pode contextar, constituem uns povos quase mticos, ou pelo menos mitolgico Esse fato tambm se explica largamente pela propenso dos celt, para confundirem intimamente o real e o imaginrio e, assim y comearam a fixar a sua histria, para a inventarem deliberadamente em funo dos seus mitos fundadores. 0 certo que os gauleses da Alsia ficariam muito surpreendid se lhes chamassem celtas. Naturalmente, o termo Keltoi existia h m to tempo, mas era grego e fora utilizado pelos historiadores gregos 1 necessidade de classificao, Ora, os gauleses j no se sentiam v tade ao serem considerados gauleses, como o provam as dificulda

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de Vrcingtorix e as acrobacias oratrias a que teve de recorrer no seu discurso de Bibracte (monte Beuvray), em 52 antes da nossa era, para tentar assegurar uma coeso patritica ou nacional na coligao de povos que tinham pegado em armas contra os romanos. Um gauls era antes de mais membro dum povo, duma tribo, portanto duma tuath, e nada mais lhe interessava para alm disso. E foi sempre assim: Nem os irlandeses, nem os galeses, nem os baixo-bretes da Idade Z: Mdia se auto-denomin aram celtas. Esta denominao comum, na qual se incluem actualmente os antigos escoceses, os irlandeses, os galeses, os habitantes da Cornualha e os bretes, tem por base a semelhana das lnguas primitivas faladas por estes povos e um vago parentesco tnico. Esta constatao continua vlida e mostra bem as dificuldades que se podem encontrar quando se tenta definir os celtas, a sua tradio e a sua civilizao. Os celtas, segundo os autores gregos, apareceram na Histria por volta do ano 500 antes da nossa era. Isso no significa que eles no constitussem j nessa altura grupos sociais fortemente enraizados em certas regies da Europa. Neste caso a arqueologia vem colmatar as lacunas da Histria e pe em evidncia o aparecimento de uma nova forma de civilizao na qual o ferro desertipenha um papel fundamental. Chamou-se a este perodo Primeira Idade do Ferro, ou Civilizao de Hallstatt, nome de uma estao arqueolgica austraca. realmente verosmil que o domnio primitivo dos ceitas, dividido em principados independentes, fabulosamente ricos e requintados como no-lo provam os mveis funerrios dos tumul, se estendia ao norte dos Alpes, entre os montes da Bomia e o Harz, prolongando-se at ao sul do Danbio. Actualmente existe um consenso quanto ao facto de ter sido a partir desta regio que os denominados povos celtas comearam as suas migraes, dirigindo-se sobretudo para ocidente, em vagas sucessivas, talvez desde o fini da Idade do Bronze, ou seja, entre 900 e 700 a. C. 1. Dom Lotris Gougaud, Les Chrtienis celtiques, Paris, 1911, p. i (prefcio). o autor vai-se acentuando acrescenta numa nota na rnesma pgina: 0 cepticismo dos sbios dos bretes cada vez mais, no que respeita ao valor do conceito de raa. Tcito, falando (insulares), atribua j uma grande importncia ao ambiente, adaptao, ao meio, em detrimento da ideia de rua. Esta reflexo perfeitamente lcida foi feita no mornento em que o auto-intitulado iniciado Edouard Schur, digno discpulo de Gobineau e precursor de alguns tericos de m me va os valores da raa celta moria, preconiza como sendo de origem nrdica e ariana. Deve reter-se deste facto que os celtas, ou os assim chamados (h quem lhes chame proto-celtas), so principalmente campesinos, criadores de gado, 4

agricultores e artesos. Se mais tarde os vamos encontrar junto ao Atlntico, isso no se deve ao facto de eles terem procurado aproximar-se do mar, mas por terem sido obrigados, por razes ainda desconhecidas, a refugiar-se nos confins do velho mundo. Cr-se que este n primitivo dos celtas resultou de migraes anteriores de povos indo-europeus. Aqui, mais uma vez, necessario precisar este termo, que s pode designar agrupamentos humanos que falavam uma lngua comum - ao menos na origem - e que possuam tcnicas e estruturas sociais idnticas. esta a nica acepo possvel do termo, com excepo de todas as outras que incluem uma noo de raa. Assim que se instalaram no tringulo BomIa-ustria-Harz, os celtas primitivos, ou por causa da superpopulao, ou porque estavam ameaados por outros emigrantes vindos de leste, ter-se-lam dirigido para ocidente a fim de descobrirem novos territrios onde se pudessem estabelecer. Este facto nada tem de extraordinrio e comum a muitos outros povos ao longo da Histria, explicando que todos os celtas, hoje to bem enraizados na Europa ocidental e no extremo do Ocidente, atravessaram o Reno antes de se instalarem nos pases cuja Histria os reconheceu. Graas ao estudo da distribuio das estaes arqueolgicas e da sua datao e tendo em considerao marcas toponmicas e raros vestgios epgrficos, possvel afirmar-se que o fluxo migratrio dos celtas para a Europa ocidental ocorreu em dois perodos bem distintos. 0 primeiro, cronologicamente, situa-se na chaineira das Idades do Bronze e do Ferro e engloba um grupo de povos que falavam uma lngua cltica ainda prxima do indo-europeu comum, a qual, atravs de diversos arcasmos, chegou aos nossos dias encontrando-se no galico da Irlanda, da ilha de Man e da Esccia. Deu-se a este ramo o nome de goidlico ou galico, ou ento de celtas com Q pois eles conservaram, tal como o latim, o uso do som Q indo-europeu primitivo (por exemplo, cmco do lati. quinque, diz-se coic em galico). 0 segundo fluxo migratrio ocorreu 1 1 sido a lti ima depois do ano 500 a. C., atravs de vagas sucessivas, tendo

a dos belgas, no sculo 1 antes da nossa era. Este ramo chamado, com i inclui, alm dos gauleses e dos belgas, alguma liberdade, britnico, pois aleses, o% os antigos bretes insulares cujos actuais descendentes so os 9 habitantes da Cornualha e os bretes armoricanos. No plano lingustico, classificam-se estes povos como celtas com P, porque os seus diversos

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componentes transformaram, tal como os gregos, o Q primitivo indo~europeu em som P, como o mostra o mesmo exemplo de cinco que se diz pemp em gals e breto, e pente em grego. Foram estes povos, formados provavelmente por pequenas tribos independentes umas das outras, que, no decorrer do primeiro milnio antes da nossa era, invadiram a Europa ocidental, incluindo a plancie do P (Glia Cisalpina) e o noroeste da Pennsula Ibrica. havendo tam~ bm que referir as expedies que, durante o sculo 11, chegaram a formar nos Balcs o reino da Galateia. Entretanto, na sia Menor, estas migraes devem ser entendidas nas suas devidas propores. Estes famosos celtas, fossem quem fossem, no eram numerosos, constituindo apenas uma elite guerreira, tcnica e intelectual. Ora, os pases onde eles se fixaram eram habitados por populaes de que nada se conhece, mas que, com certeza, no foram inteiramente aniquiladas pelos seus dominadores. Bem pelo contrrio, os celtas tinham necessidade de mo de obra, ou seja, de escravos. Fizeram por isso um esforo no sentido de dominar as populaes autctones, celtizando-as, ou seja, ensinando-lhes a lngua e transmitindo-lhes os costumes, a tcnica e a religio, o druidismo que era comum ao conjunto dos grupos ditos celtas. Alm disso, os celtas impuseram-lhes as suas estruturas sociais indoeuropeias, o seu modo de vida e o seu modo de pensar. A partir da o prprio tempo se encarregou de fazer a sua obra inelutvel de assimilao, tomando-se os autctones os novos celtas ao mesmo tempo que os primeiros celtas no deixavam de ser modificados pelas populaes indgenas. Este processo de interaco - extremamente vulgar - contribuiu para a formao do que hoje se chama civilizao celta. Contudo, estas vagas sucessivas de migraes e de misturas nunca deixaram de provocar deslocamentos internos das populaes. Os primeiros invasores de lngua cltica - chamemos-lhes por comodidade galicos - foram empurrados ainda mais para ocidente, o que explica a especificidade da Irlanda, isolada nos limites extremos do mundo antigo, e tendo conservado, mais do que qualquer outro pas de dominao celta, as tradies mais arcaicas e reveladoras. As descobertas arqueolgicas sugerem que os celtas chegaram Irlanda vindo da Gr-Bretanha, podendo ser traada a sua rota atravs de Cumberland C de Wigtownshire at se chegar ao nordeste do Ulster.) esta a opinio 1 . Myles Dillon, Early Irish literaiure, 1994, p. XI. do ceitlogo irlands Myles Dillon, que diverge da de um seu compatriota, ORahilly, que aponta um itinerrio directo dos celtas a partir da Glia. No fundo, as duas teses no so contraditrias, pois pode ter havido diversas migraes como, de resto, os irlandeses da Idade Mdia deferidiam quando procuravam reconstitu,r as idades mais recuadas da sua histria. 0 Importante saber que os dois ramos, o galico e o brflonico, coexistiram durante multo tempo at se dilurem separadamente na Histria moderna, depois de terem tido uma origem 6

comum. .Ora, uma rvore no pode viver se os seus ramos e at a sua folha mais insignificante no forem alimentados pela seiva. A grande aventura dos celtas sifoi possvel porque uma mesma seiva animou desde a origem o ser social que lhe serviu de ponto de partida. Esta selva pode ser identificada com o que se chama a Tradio, ou seja, com o que transmitido de gerao em gerao para que cada unia destas possa conservar o sentido de uma certa identidade e os meios de a exprimir atravs das sucessivas etapas da histria. Em primeiro lugar, esta tradio consiste num corpus de informaes herdadas de um passado sempre apresentado como se remontasse aurora da humanidade, ao que se chama a noite dos tempos. Assim sendo, a questo da tradio celta obriga-nos a pensar como pde ela ser transmitida se a sua primeira transcrio data apenas dos primeiros sculos do cristianismo, sendo este responsvel pelo seu enquadramento. Naturalmente, pode-se lamentar que a falta de escrita seja responsvel por no haver testemunhos essenciais para o conhecimento da antiga cultura celta; mas esta no-utilizao da escrita, longe de atestar uma qualquer espcie de incapacidade, resultou duma escolha deliberada das elites celtas, dos chamados druidas, que eram simultaneamente sacerdotes, filsofos, historiadores, poetas e mgicos. Jlio Csar foi muito claro a este respeito: Os druidas, diz ele, acreditam que a religio no lhes permite escrever a matria dos seus ensinamentos ( ...) pois no querem que a sua doutrina seja divulgada nem que, por outro lado, os seus alunos, fiando-se na escrita, negligenciem a memria. (De bello gallico, VI, 14). Eis a razo pela qual os discpulos dos druidas aprenderam, durante uma vintena de anos, milhares de versos que resumiam, de forma irmernotcnica, o conjunto da tradio celta. A existncia de uma tal tradio oral est largamente comprovada. 0 grego Estrabo (IV, 4), afirma que os poetas dos celtas so bardos, ou seja, cantores sagrados. Outro grego, Diodoro de Sicilia, transmite

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detalhes preciosos (V, 29 e 31): Antes de cada batalha, eles cantam os feitos dos seus antepassados e exaltam as suas prprias virtudes, enquanto insultam os adversrios Eles exprimem-se por enigmas ( ... ) e usam bastante a hiprbole. 0 latino Pomponius Mela observa que estes povos possuem uma eloquncia muito prpria (111, 2); quanto ao poeta Lucano, este apostrofa os poetas gauleses nestes termos, na Pharsale (1, v, 50 sqq.): Vs cujos cantos de glria lembram, ao futuro longnquo, a memria dos fortes antepassados desaparecidos em combate, bardos, vs dais largas sem medo vossa veia fecunda! Enfim, se fosse necessrio um reconhecimento quase oficial, poderamos encontr-lo no historiador grego Poliffio, apesar de tudo, muito prudente nos factos a que se refere. Depois de ter pintado um quadro dos povos gauleses da Cisalpria, afirma convictamente (11, 17) que os autores de histrias dramticas contam a seu respeito lendas maravilhosas. Foram os conflitos que opuseram os romanos aos gauleses da Cisalpina, cerca do ano 387 antes da nossa era, que suscitaram mais comentrios a propsito de uma tradio epica que os celtas transmitiram de gerao em gerao. Quanto aos acontecimentos referidos por Tito Lvio, historiador latino, apesar de natural da Glia Cisalpria, esto muito mais prximos da lenda do que da histria e parecem inspirar-se directamente num fundo tradicional veiculado pelos prprios gauleses, fundo esse que ele conhecia muito bem. A histria das guerras gaulesas, diz Henri Hubert extremamente singular, fabulosa e pica.11 E, a este respeito, Camille Jullian, faz notar precisamente que a derrota dos romanos, diz claramente Tito Lvio, deveu-se ao pavor mgico (miraculum) que lhes inspirou o grito de guerra dos celtas. As narraes de Tito Lvio, de Apio e de Plutarco, cheias de cor e de pormenor, precisas, com um extraordinrio humor religioso e muito favorveis aos celtas ( ... ), sempre me pareceram inspiradas em parte em alguma epopeia gaulesa.`I Trata-se realmente de uma epopeia. A definio clssica do termo, narrativa potica de feitos hericos, no nos impede de acrescentar que o gnero se refere sempre a factos de um passado longnquo, que na sua maioria no podem ser confirmados, mas que fazem parte da memria colectiva de um povo ou de qualquer grupo social. A epopeia gaulesa assinalada por Camille Jullian e conservada por Tito Lvio na 1. Henri Hubert, Les Celtes, Paris, 1932, 11, p.37. 2. Camille Jullian, Histoire de ta Gaule, Paris, 1920, reimpresso 1993, 1, p.294. lngua latina no pertence obviamente histria, sendo antes do mbito da tradio. Querer ento isto dizer que a tradio celta, por estar inscrita no quadro de uma civilizao que rejeitava a escrita, s pode ser conhecida atravs de outras civilizaes? Assim parece ser, pois a epopeia gaulesa em questo s chegou at ns graas aos documentos escritos - pretensamente histricos - que os gregos e os latinos consagraram s guerras travadas por Roma contra os habitantes da Cisalpina e s expedies celtas nos BalcsY1 0 mesmo acontece 8

com a epopeia bret (ou seja, da Bretanha insular) volta do fabuloso rei Artur: as supostas aventuras deste e dos seus cavaleiros, as peripcias da conquista do Graal, todas as matrias que actualmente se consideram de origem celta, s chegaram ao nosso conhecimento, com a excepo de alguns textos gauleses, graas a verses redgidas em lnguas no clticas - nomeadamente o francs (dialecto anglo-normando), o ingls e o alemo. Daqui resulta uma situao no mnimo paradoxal.) Como bvio, existem vrias verses de epopeias redigidas ou transcritas em lnguas clticas, mas so tardias, remontando ao que se designa por Alta Idade Mdia. A primeira questo que se coloca sobre a sua autenticidade, ou seja, gnora-se se elas do conta duma realidade cultural celta incontestvel, 0 facto de terem sido escritas numa conjuntura crist, com todos os equvocos e todas as censuras que isso implica, pode suscitar algumas dvidas e, no mnimo, legitimar alguma reserva. Seria til, entretanto, que se esclarecesse em definitivo a noo de autenticidade associada tradio. Na verdade, o que autntico na Tradio seno a prpria tradio? Por quem foi escrita o Gnesis da Bblia? Com toda a certeza no a escreveram os que viveram nos primeiros tempos da humanidade, Por quem foram escritos os Evangelhos? Corri certeza no os escreveram os supostos evangelistas. De resto, a Igreja romana, muito prudente a este respeito, utiliza um termo 1. Estudei em pormenor as circunstncias destas epopeias meio-histricas, meiolendrias, e a sua difuso em dois captulos Rome et Uepopc celtique, Delphes el raventure celtique, do meu livro de sntese sobre Les Celtes et Ia civilisalion celtique, Paris, Pay01, 1969. reimpresso em 1992. 2. Poderiam encontrar-se pormenores complementares acerca deste assunto nos meus estudos sobre 0 rei Artur e a sociedade clica, Paris, Payot, 1976, reimpresso em 1994, e Merlin LEnchanteur, Paris, Rctz, 198 1, reimpresso Albm Michei, 1992. A questo iambm abordada em oito volumes provenientes da reescrita dos meus romances da Tvola Redonda, 0 Ciclo do Graal, Paris, Pygmalion, 1992-1995, e muito comentada na minha Pequena Enciclopdia do Graal, Paris, Pymalion, 1997.

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latino que expressa bem a ideia que quer transmitir, secundum Johannen (ou Marcuni, ou Lucam, ou Mattheum). A palavra secundum. nunca quis dizer por, C a traduo francesa oficial, selon [segunno passa de um substituto de segundo a tradio. do, em portugus], 1 E, sem querer entrar em exegeses sbias, preciso contextualIzar os supostos poemas homricos: Homero nunca existiu historicamente, no passando de um nome emprestado a numerosos rapsodos (literalmente cosedores de cantos), que tentavam inserir num plano de conjunto inmeras lendas e narrativas herdadas de uma tradio oral com origem na noite dos tempos. Ningum hoje em dia acredita que A Il(ada e A Odisseia so obras do mesmo autor e que este, Homero Do caso, foi testemunha dos acontecimentos que relata. Estas duas obras no pas sam de duas verses tardias de lendas orais que dizem respeito a deuses e a heris da Grcia antiga, e por isso mesmo que elas so apaixo nantes, pois testemunham irrefutavelmente um passado que, sem elas, teria mergulhado nas brumas do esquecimento. por isso preciso ter em considerao que as narrativas homricas no so mais do que a expresso duma tradio arca 1 ica expressa numa lngua J clssica, e colocada ao dispor de um pblico que J no era contemporneo do descrito. 0 mesmo se passa com as epopeias celtas. 0 facto de elas terem sido escritas depois de os factos terem ocorrido (se que estes so reais, o que est longe de ser provado), ou de eles terem sido posteriormente manipulados, no significa de modo nenhum que a tradio que veiculam Do seja autntica. Com efeito, quando se falia de epopeia., o problema da autenticidade nunca se deveria colocar, pois ela desemboca necessariamente num no-senso: neste domnio, nada verdade ou falso e tudo existe na forma imaginada, simblica, codificada, testemunhando a realidade profunda de uma civilizao. Se se tiver em conta as datas, a saga irlandesa a que nos d o tipo mais antigo da epopeia celta.( Esta afirmao de Georges Dottin no pode ser refutada, pois foram os manuscritos irlandeses, escritos em lngua galica, que nos transmitiram a maioria das narrativas epicas cujo estudo interno prova claramente a sua antiguidade, nomeadamente em relao s que foram reunidas nos manuscritos do Pas de Gales. E sabe-se, graas a este mesmo estudo interno dos textos, que foi a partir 1. Georges Dottin, Les Liitratlres celiique,, Paris, 1923, p. 52 do sculo VII da nossa era que os monges irlandeses comearam o seu paciente trabalho de passar para a escrita a tradio oral galica que naquela poca ainda era a deles. 10

Como bvio, estes Primeiros manuscritos desapareceram, devido aco do tempo, como aconteceu tambm com os manuscritos que remontam Antiguidade e Alta Idade Mdia. No de crer que os manuscritos conservados nos nossos dias com tanto cuidado - e com r_ i imtanto zelo! - nas bibliotecas e nos arquivos sejam os orio, nais. So s plesmente cpias de manuscritos mais antigos cujo contedo se pre~ tendeu conservar por este escrita uma Iluso de permenciioddmeuiNtoemantoess Idiveraosi,mnpermenosa ter vindo dar s pergaminhos ou os papis velino esto imunes degradao. Quando os monges as grandes epope as do passado, irlandeses passaram para a escrita 1 rtos de que haveria quem mais tarde continuaria 0 seu trabaestavam ce 1 c, is

lho. No espanta por . so que os documentos de que se dispe actualmente, e aos quais as tcnicas cientficas modernas asseguram uma maior longevidade, no s am de modo algum anteriores ao sculo X. Quanto aos riscos que e e asdsaapstcpoia, sdcotrmapnsoprtoasmi,qou,er sejam de erro e de ou tenham a ver com simplifi.cao como de istem. o propno contedo, que o mais importante, bvio que eles exi ir Existem trs manuscritos principais no que respeita epopeia landesa - ou seja, por corisequncia, a mais antiga epopeia celta: o Livre de Ia Vache Brune (Leabhar na hUidr), assim chamado por causa da sua encadernao e que, tendo sido escrito antes de 1106 no clebre recinto monstico de Clonmacnoise, est actualmente guardado na Royal Irish Academy de Dublin; o Livre de Leinster (Leabhar Laigen), anterior a 1160, que se encontra no Trinty College de Dublin; e por fim o manuscrito dito RawIinson B 502, tambm do sculo XII, guardado na BodIeian, Library de Oxford. os trs possuem o que existe de mais antigo e importante na tradio galica. Contudo, a Irlanda continuou a recorrer aos manuscritos no apenas durante a Idade Mdia, mas tambm no decurso do que se chama Tempos Modernos, isto sobretudo com o objectivo de divulgar as obras em galico, que tinham estado proibidas ou, no mnimo, escondidas pelo ocupante ingls. 0 nosso conhecimento da epopeia irlandesa pode ser assim enriquecido graas a um grande nmero de outros preciosos manuscritos. Mencionemos Z:I Lecan, do sc ulo XV (Trinity Collenomeadamente o Livre jaune de

ge), o Livre de BaIlymOte, tambm do sculo XV, (Royal Irish Acade11

my), o Livre de Lismore, do mesmo sculo, actualmente na posse de particulares, sem esquecer o Livre de Fermoy, do sculo X1V, mais especializado nos textos religiosos cristos. Outros, menos importantes, revelam-nos verdadeiras prolas raras. Ao todo so uma centena, estando a maior parte deles guardada na Royal Iristi Academy. S nos podemos maravilhar quando comparamos esta abundncia com a pobreza dos raros manuscritos galeses e inexistnca dos manuscritos bretes anteriores ao sculo XVI. Se no fosse a Irlanda, nada conheceramos da antiga epopeia dos Celtas. 0 que contm estes manuscritos de valor inestimvel? A resposta simples: Coleces muito variadas de narrativas em prosa e em verso, tanto sagradas como profanas versando lendas, histria e a hagiografia, poesia brdica e lrica, tratados mdicos e jurdicos, tudo em galico antigo, mdio ou moderno, sem ter que haver a preocupao da classificao. () 0 que admirvel a mistura, numa mesma narrativa, da prosa com a poesia. Os trechos em prosa, cuja extenso depende dos manuscritos, parece que foram a princpio simples esboos sobre os quas o mprovisador podia criar sua vontade; medida que os poemas Iam desaparecendo, esses trechos iam tomando o seu lugar. (2) Estes esboos so bem demonstrativos de urna poca em que a escrita estava proibida pelos druidas, transmitindo-se a tradio oralmente por meio de versos que os aprendizes estudavam ao longo de vinte anos, podendo enriquecer as suas narrativas quando o Julgassem til. Alm disso, na maior parte das vezes, os trechos em verso das narrativas picas esto repletos de arcaismos que em alguns casos as torna incompreensveis embora estes ltimos comprovem a sua antiguidade. Considera-se que todas estas narrativas so reactuallzaes de contos tradicionais que remontam ao fundo dos tempos. 0 fenmeno muito particular na Irlanda, pois, no Pas de Gales poucos trechos em verso subsistiram nas narrativas em prosa e, na Bretanha armoricana, apenas algumas canes dramticas, os gwerziou, sobreviveram turbulncia da histria e lembram de algum modo as grandes epopeias que deviam ser cantadas pelos bardos de outros tempos. Estas grandes epopeias encontram-se nos manuscritos irlandeses, mas, Da maior parte das vezes, na forma de fragmentos, de episdios 1 . Georges Dottin, Les Liltratures celtiques. 2. Ibidem. que podem ser auto-sufi cientes embora s se tornem realmente compreensiveis quando se ligam uns aos outros, Certas epopeias que tm como personagem principal um her bem conhecido apresentam-se nunia forma elaborada e completa: o que acontece com a clebre Razzia des Boeufs de CuaIng, verdadeiro monumento literrio que muitas vezes comparado Il(ada e que est centrada no temvel guerreiro Cchulann. Este tambm o heri de muitas outras histrias episdicas, o que acontece igualmente com a maioria dos actores, sejam deuses, demnios, humanos ou seres mgicos. DiT-se-ia que as personagens das epopeias eram sobretudo smbolos pr-existentes a todas as 12

narrativas organizadas, esforando-se por lhes revelar a sua significao profunda ao emprestarem-lhes aventuras pretensamente histricas. Esta tendncia, que parece fundamental em todos os celtas, contradiz formalmente a tese de Evhrnre, segundo a qual os deuses no passam de humanos divinizados. Com efeito, sobretudo nas narrativas que se podem classificar como mitolgicas, os deuses aparecem nitidamente inseridos na histria, devido a esta no estar assente em nenhum acontecimento real. Aqui se encontra outra caracterstica dos celtas: quando ignoram a histria do seu passado ou a esqueceram, inventam-na. Pode mesmo chegar-se mais longe. quando eles no esto satisfeitos com a hi stria vivida, negam-na e criam outra, mais de acordo com a sua mentalidade. Nos celtas, extremamente evidente a predon-nnca do mito sobre a realidade quotidiana. Mas o que atrs foi dito no deve ser classificado de acordo com os padres habituais. As epopeias irlandesas apresentam uma desordem s mi olgicas reapaque faz lembrar uma bruma artstica. As personagen it recem constantemente nas narrativas de natureza histrica, e encontram~ -se certos pormenores realistas em contos cuj a beleza se centra no sobrenatural, pois na mentalidade celta, irlandesa ou outra, no existem fronteiras entre o mundo visvel e o invisvel. 0 sobrenatural, como o prprio nome indica, no mais do que o natural visto um pouco mais de cima para que se possam observar as realidades escondidas. Neste caso, o real, que serve de base a qualquer narrativa verosmil, aparece como transcendido, como um autntico surreal, um mundo do pensamento interior, imagem do universo do sidh, ou seja, do Outro Mundo, que, segundo a crena irlandesa, se encontra no interior de grandes tmulos megalticos onde vivem deuses e heris. Estes tmulos abrem-se durante a festa de Samain (noite de Toussaint), o que permite a interco-

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municao entre os dois mundos. 0 que h de mais Datural? No h maravilhoso na epopeia celta, apenas h fantstico. Com efeito, o real que, passando por sucessivas metamorfoses, se torna fantstico. Comportamentos estranhos, cenrios surrealIstas, desordem do contedo e da forina, so algumas caractersticas da epopeia primitiva dos celtas, em particular da que os galicos da Irlanda quiseram transmitir a posteridade. Esta desordem no pode deixar de surpreender quem vive ainda sombra - e ao abrigo - da tranquilizante lgica aristotlica bascada no verdadeiro e no falso. Mas os celtas nunca conheceram Aristteles nem quiseram alguma vez obedecer aos seus apelos ao senso comum, tendo preferido permanecer na dialctica pr-socrtca anterior ao milagre grego, e defender, como o fez Hraclito, que os mesmos caminhos que fazem subir fazem tambm descer. No um paradoxo mas uma pura verdade lgica demonstrar que qualquer juzo humano depende do seu sistema de referncia, por outras palavras, da polaridade da aco, tudo dependendo do que se entende por alto e por baIxo. Alm disso, os latinos, apesar de considerados lgicos, empregavam o mesmo termo, altus, para classificar a altura e a profundidade, o que parece ter cado no esquecimento. Quanto desordem surpreendente da epopeia celta, esta no passa de uma aparncia enganadora: os poetas e os contadores irlandeses sabiam muito bem o que estavam a fazer, pois alguns deles reconstituram o plano de conjunto a partir de contos mitolgicos desordenados ou em forma de fragmentos, procedendo assim do mesmo modo que um Chrtien de Troyes e outros autores franceses da Idade Mdia que, atravs de contos arturianos aparentemente desprovidos de continuidade, escreveram e prolongaram a grande epopeia do Graal e da Tvola Redonda. Com efeito, as epopeias irlandesas formam um ciclo perfeitamente coerente que, no sendo sempre de fcil discernimento, aparece no entanto como um esquema de um extraordinrio rigor. Deste modo, foi redigido antes do ano 1168 o clebre Livro das Conquistas (Leabhar Gabala), que uma espcie de compilao de contos mitolgicos ligados aos sucessivos povoamentos da Irlanda, desde as origens at ao advento do cristianismo. Sabe-se actualmente que na origem desse livro est a escrita em prosa de um cicio de poemas pretensamente histricos atribudos a um certo Gilla Caemain, que morreu em 1097 e cuja obra est hoje perdida. Mas, tal como se encontra, representando o meio intelectual do sculo XII e tendo a preocupao de provar uma identidade galica face invaso anglo-Dorrn anda, esta obra de um valor imenso pois permite que se tenha uma ideia mais aproximada do encadeamento das diversas narrativas cujo objectivo era refazer a histria da Irlanda de modo a acentuar~lhe a especificidade e o valor. Assim se explica que apaream diversas referncias bblicas, sentindo os irlandeses a necessidade de se agarrarem a uma filiao honrada e quase diviido com os romanos na fbula de Eneida, filho de na, como tinha acontec 1 14

Vnus, e como ocorreu tambm na mesma epoca com os bretes insulares que, pela pena de Geoffroy de Morrinouth, afirmaram que o seu antepassado epnimo Brutus era um descendente de Eneida, e por isso de essncia troiana e divina. Como evidente tomavam-se os desejos por realidades, ao mesmo tempo que se conciliava a tradio drudica pag com a tradio judaico-crist passando pelo Egipto e pela Grcia. 0 mesmo acontecer alguns sculos mais tarde com a Histria da Irlanda de Geoffroy Keating que, escrita cerca de 1640 e retomada em diversos manuscritos, s foi impressa em 1723 atravs de uma traduo inglesa. Tanto o Livro das Conquistas como a Histria da Irlanda esto repletos de testemunhos da antiga epopeia celta, que desafia o tempo e o espao. Sendo verdade que estes manuscritos no apresentam a realidade histrica, no deixa de o ser tambm que contm numerosos elementos filosficos e metafisicos, assim como reflexes sociolgicas, que os antroplogos modernos no desdenhariam. Assim, a enumerao e as caractersticas dos diversos povos que ocuparam a Ilha Verde - Ou seja, a Irlanda - desde o dilvio so muito esclarecedoras. os primeiros invasores, a tribo de Partholon, so de um tipo que se pode classificar como vegetativo, preocupando-se unicamente em sobreviver, abrigar-se e procriar, imagem esta que corresponde, numa perspectiva simblica, ao que existe de mais primrio na civilizao, Os segundos invasores so membros da tribo de Nemed: ora, o nome nemed significa sagrado, o que indica desde logo, claramente, uma reflexo metafisica ou religiosa numa sociedade que at ento s tinha preocupaes materiais. Os terceiros invasores so os Fir Bolg: tambm neste caso o nome significativo, pois fir quer dizer homens (vide o latim vir) e bolg tem uma raiz indo-europela que tambm deu em latim.fulgur, trovo. Como bvio, os Fir Bolg so sobretudo ferreiros, mestres do fogo e inventores de tcni1. Para este nome propuseram-se significados extravagantes, em particular homens-sacos, o que no quer dizer abSOILItaniente nada. 0 mesmo aconteceu com o povo dos Belgas, tambm considerados como homens-sacos.

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cas artesanais novas, destinadas guerra ou a trabalhos agrcolas. Os quartos invasores da Irlanda so os famosos Tuatha D Danann, as Tribos da deusa Dana, deusa-me cujo nome est associado a numerosos termos vizinhos do Mdio Oriente, em particular Tana:it, ou tambm Anta, assim como a rios como o Don e o Dantibio (Tanas). Segundo a tradio, essas tribos vieram das ilhas do norte do mundo, tendo introduzido na Irlanda a cincia, a magia e o druidismo. Elas so por isso detentoras de uma sociedade fortemente hierarquizada maneira indo-europeia, baseada em princpios mais ou menos teocrticos e onde predomina uma organizao sacerdotal. Alm disso, os heris dos Tuatha D Danann so as antigas divindades do druidismo celta triunfante. Os quintos conquistadores da lha Verde so chamados, nas narrativas, Os filhos de Mil, ou os milesianos, surgindo do Oriente e passando por Espanha. Correspondem precisamente aos Galicos e representam a sociedade irlandesa tradicional, tal como a descobriram os primeiros missionrios cristos, e tal como ela era ainda quando da chegada dos Anglo~Normandos de Henrique 11 Plantageneta, apesar de uma cristianizao que tentara substituir os druidas pelos padres, os abades e os bispos junto dos chefes dos cls e das tribos. Esta invaso dos milesianos corresponde ao nascimento duma sociedade baseada no equilbrio entre as duas foras que a compem, a poltica (os galicos) e a religiosa (os druidas, portanto os Tuatha D Danann). Esse equilbrio deriva de, aps o triunfo dos Filhos de Mil sobre os Tuatha, estes no se terem deixado eliminar e, segundo um acordo solene, terem ficado na posse dos ttimulos e das ilhas maravilhosas que rodeiam - miticamente - a Irlanda, enquanto os gallcos ocuparam a superfcie da ilha. Graas Incontornvel colaborao entre o druida e o rei, absolutamente indispensvel para que qualquer grupo possa subsistir, a estrutura da sociedade celta um verdadeiro modelo de harmonia entre o mundo visvel e o invisvel. Alm disso, a sociedade descrita na epopeia compsita: por muito que os Tuattia sejam tanto criaturas fericas( como divinas, misturam-se com os seres humanos intervindo nos seus assuntos. Acontece tambm que os elementos originrios da tribo de Nemed e dos Fir Bolg esto sempre presentes. E toda esta gente se v constantemente confrontada com um misterioso povo, o dos Fomore, seres gigantes que, N. T.: Feriques no original; o mundo ferico o mundo das fadas (fes), o mundo mgico. habitando em ilhas longnquas, tm numerosos pontos em comum com os ciclopes da tradio helnica e os gigantes da mitologia germano-escandinava. Tal como eles, provocam frequentes distrbios e atacam sempre que h uma vaga de conquistadores da Ilha Verde, simbolizando, como evidente, as foras obscuras do inconsciente, os poderes da destruio e do caos que devem ser constantemente combatidas para assegurar no apenas o equilbrio mas tambm a sobrevivncia de uma sociedade dita civilizada. 16

Com efeito, os confrontos so constantes. Nada definitivo, e o retomar dos problemas gerais processa-se ao ritmo das estaes e dos dias. Durante largos perodos de adormecimento, a tensao vai-se acumulando, cresce. exacerba-se e acaba por se manifestar, ocorrendo ento as guerras, as aventuras expedicionrias, os acontecimentos imprevistos. Ora, estas crises no so fruto do acaso nas narrativas epicas, podendo constatar~se que elas coincidem sempre com uma data essencial do calendrio celta, o que demonstra que de certo modo se trata de rituais realizados segundo um plano bem determinado e com um significado profundo. As invases, por exemplo, encontram-se sempre datadas volta do P de Maio, e as guerras, no decurso das quais morre um rei, ocorrem volta do 1 de Novembro. 0 conjunto obedece a um esquema superior que os mltiplos autores das narrativas epicas conheciam perfeitamente, o que faz supor que o corpus da epopeia celta da Irlanda exprimia a tradio mais antiga e mais especfica dos povos celtas originais que sobreviveram a todas as migraoes e a todas as vicissitudes. Sabe-se com efeito que o calendrio dos celtas estava ordenado segundo um eixo fundamental que Ia da festa de Samain (I de NovemSegundo tudo leva a crer, a epopeia irlandesa, que conservou unia grande parte de arcasmos, testemunha, mais do que qualquer outra tradio europeia, a existncia de uma epopeia primitiva indo-europeia, ou indo-ariana, pois a comparao que se pode fazer com as narrativas dos ossetes, povos do norte do Cucaso que descendem dos citas e dos sarmatas, particularmente esclarecedora: em arribas as tradies se encontram, apesar de estarem muito distantes no tempo e no espao, os mesmos episdios e as mesmas personagens, embora evidentemente com outros nomes. Podem ler-se a este propsito, dispersos em vrias revistas, diversos artigos de Jol Grisward, e sobretudo duas obras de Geoges Dumzil, Romans de Scythie e dalentour, Paris, Payot, 1978, e Le Livre des Hros, Paris, Gallimard, 1965-1989, contendo esta ltima tradues completas de narrativas ossetas que apresentam extraordinrias semelhanas com as narrativas irlandesas. por isso verosmil a existncia desta epopeia primitiva, o que justifica a procura de um esquema narrativo original.

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bro) da Beltaine (10 de Maio), ou seja, guiava-se em funo da entrada e sada do Inverno. A datao das invases no fim do Inverno e no comeo da estao estival corresponde portanto a uma realidade simblica, tratando-se de um novo princpio, de um novo nascimento, de um novo ciclo. Quanto morte de um rei no incio do Inverno, no h aqui seno a constatao de um certo adormecimento, de uma interrupo das actividades da funo real, guerreira e pastoral, sendo esta ltima particularmente importante no caso da Irlanda, pois a Ilha Verde foi sempre e continua a ser o pas por excelncia da criao de gado, o que explica que a estrutura social dos galicos estivesse profundamente dependente da criao de gado, a nica verdadeira riqueza destes povos ainda marcados pelo nomadismo e cujas fronteiras jamais ultrapassavam os territrios do rei, ou, dito de outro modo, a sua prosperidade dependia de poderem contar com a proteco do rei na sua actividade pastoril. Este um dado muito importante a ter conta se se quer compreender, na sua expresso irlandesa, o sentido profundo da epopeia celta. H por conseguinte nesta grande quantidade de narrativas aparentemente independentes uma coerncia que deixa supor um conjunto de situaes regidas pelos costumes e as crenas dos antigos celtas. Uma comparao se impe desde logo, mesmo que parea paradoxal: as diversas narrativas recolhidas nos manuscritos irlandeses formam uma verdadeira saga (termo que costuma estar reservado s homIogas escandinavas), anloga que Hortor de BaIzac tentou fazer ao compor os mltiplos episdios autnomos da Comdia Humana. Com efeito, nestes ltimos encontra-se de tudo um pouco: fragmentos da vida quotidiana, lutas interminveis pelo poder, a voracidade de tubares de dentes afiados, o sacrifcio de inocentes, histrias de amor de partir coraes, assassnios, barbries, proezas hericas, delrios poticos ou profticos, e ainda muitos outros elementos que so comuns antiga epopeia celta, assim como ao gemo romanesco muitas vezes inspirado pelas vozes do invisvel. um facto inegvel que a saga romanesca de BaIzac se alimenta inconscientemente de mitos existentes na sociedade da primeira metade 1. Sendo um facto que o ano celta possua doze meses lunares, mais um ms intercalar para alcanar o ciclo solar, e que cada ms comeava com a lua cheia, as festas de Samain e de Beltaine no calhavam em datas fixas: ser mais correcto dizer na lua cheia mais prxima do 1 de Novembro ou do 1 de Maio. do sculo XIX. As personagens que encontramos na Comdia Humana e que vo aparecendo, aparentemente em desordem, nos diversos trechos narrativos, so absolutamente indispensveis para a coerncia do plano de conjunto que foi idealizado pelo seu autor. Todas elas representam arqutipos, e facilmente poderamos identific-los com certos heris, no s da epopeia celta da Irlanda mas tambm da epopeia humana em geral. 0 ingnuo mas poderoso Rastignac tem o seu correspondente irlands em Lug do Brao Longo e no seu prolongamento humanizado Cchulainn; o tmido Rubempr encontra-se na tocante personagem de Dermot (Diarmaid), e a pobre Esther Gobseck na de 18

Dirdr, to exaltada por John Millington Syngee a imagem perfeita da Irlanda oprimida e martirizada. Quanto a Vautrin, ser proteiforme, o Thersite grego, o Lki germano-escandinavo e o Bricriu irlands, ou seja, uma das imagens fundadoras do Diabo medieval, o prprio smbolo do Tentador que, para melhor semear a discrdia, se mascara com as feies benevolentes do deus Ogina da palavra dourada, ou ento com as feies dum estranho Croi mac Dacr que muda de forma e de aspecto sempre que quer enganar um rival. Honor de BaIzac no conhecia rigorosamente nada das lendas irlandesas, mas o gnio de um artista de qualquer poca traduz-se em encontrar atravs da sua criao prpria os grandes mitos fundadores da humanidade, os mitos impereciveis que moldam a estrutura de um pensamento humano e que se manifestam atravs de imagens e de smbolos que remontam noite dos tempos. Alm do seu exemplo, outros poderiam ser aqui referidos. Passando adiante, refira-se que do conjunto de episdios preciosamente recolhidos pelos transcritores irlandeses, saram vrias personagens com caractersticas bem vincadas, com um profundo valor simblico, e com o seu lugar na sociedade irlandesa e na estrutura mental dos celtas. 0 mnimo que se pode dizer que elas so cheias de cor e inesquecveis, to forte o poder de evocao que exercem sobre o imaginrio. Apeteceria chamar-lhes divinas, se este epteto tivesse um verdadeiro significado no esprito dos contadores: na verdade tudo leva a crer que os druidas professavam a existncia de um deus nico, incomunicvel e inominvel, ao qual por vezes era dada uma aparencia humana para que pudesse ser inteligvel. Com efeito, as personagens divinas que deambulam pelas epopeias celtas no passam de funes divinas materializadas, concretizadas e encarnadas por seres que, apesar de terem caractersticas perfeitamente humanas, so dotadas de

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poderes sobrenaturais ou mgicos, trata~se de homens e mulheres que, por natureza ou graas a uma paciente iniciao, atingiram um grau muito elevado de sabedoria e de poder assimilando funes divinas de que so agentes e donos. Quer isto dizer que essas personagens diferem profundamente dos actores da epopeia grega, deuses ou semi-deuses, que, classificados a ttulo definitivo como imortais, se sobrepem aco humana, domnando-a, ou mesmo contrariando-a sempre que ela desafia os limites impostos pelo Destino. Os deuses gregos so polcias e censores encarregados de manter a ordem numa sociedade ideal onde cada pessoa tem um lugar definitivo. Os pretensos deuses celtas so treinadores que mostram ao conjunto dos seres humanos como se trarisfonua um mundo que ainda mal saiu do caos e se o leva a um estado de perfeio. Esta atitude metafisica encontra-se nos mais pequenos pormenores da epopeia e, graas a eles, respira-se uma esperana e uma serenidade que fazem com que cada pessoa encontre o caminho para o pedao de infinito que lhe coube. Acontece na verdade que os heris, em algumas peripcias em que se enredam, esto constantemente nas fronteiras do real e prontos a crivolverem-se com um alm, sendo a atmosfera esseiicialmeDte sagrada, embora permeada aqui e ali por alguns elementos realistas. absolutamente verosmil que estas narrativas, independentemente da forma em que chegaram at Ds, sejam a expresso narrativa, de algum modo romanesca, de antigos rituais religiosos, de velhos dramas litrgicos que entretanto se perderam e nos quais cada personagem era um sacerdote, um druida e portanto um deus, ou ento aspirava a s-lo; os actos so s vezes oraes mais eficazes que as palavras, sobretudo quando estas so pronunciadas de tal maneira que mal se compreende o seu sentido. A regra absoluta por isso a superao pois, na perspectiva celta que encontramos nos textos, Deus no , mas transforma -se, participando todos o seres nesta transformao. Estes seres comportam por isso diversas facetas, no sendo bons nem maus: eles sero. Os seus nomes pouco importam, pois trocam-se entre si; tambm pouco importam as suas aces aparentemente vis, pois pertencem sua massa bruta. Eles sero heris com o seu lugar na subtil e complexa liturgia que decorre no mundo desde que apareceu o primeiro ser vivo. 0 jogo comea. Assim se encontram as personagens na abertura da cena, ou melhor, nos primeiros degraus do santurio. Na tragdia antiga era o coro que, apresentando os heris, abria o ritual. Neste caso, uma testemunha vem contar o que viu, pois qualquer narrativa histrica deve ser Justificada por uma tradio autntica ou tida como tal. Aqui a testemunha uni homem estranho, Tun mac Cairill, acerca do qual se diz ter vivido vrias vidas desde a poca do dilvio tomando diversas aparencias. Em narrativas anlogas, substitui-o um certo Fintan, filho de Boclira e descendente de No. Pouco importa: era necessaria uma testemunha fidedigna e encontrou-se uma. Alm disso, como estas histrias foram redigidas na era crist, impunha-se a cauo da nova religio: esta cauo 20

encarna no monge So Firmen a quem Tun vai contar o que sabe ou, noutra verso, no clebre santo Colum-Cill (Colomba). Alm disso, mais tarde, quando se tratou de transcrever a grande epopeia dos Fiana volta de Finn e de Oisin (Ossan), foi o prprio So Patrco, o grande evangelizador da Irlanda, que veio a evocar a grande sombra do heri Calt, um dos companheiros de Finn, para lhe contar as aventuras de que ele foi ao mesmo tempo testemunha e actor. Acontece, porm, que Cailt tem uma dimenso humana normal e viveu apenas uma vida. Uan mac Cairill tem um aspecto mais mgico, roando as fronteiras do sobrenatural, fazendo lembrar o bardo gals Taliesin que, ao nascer uma segunda vez, adquiriu um conhecimento supremo, e lembrando tambm Merlim, o Encantador, da lenda arturiana, filho de um diabo, mestre da magia e da profecia, que, segundo os prprios textos, confia ao eremita Blaise a misso de passar para a escrita as aventuras do Santo Graal, de forma a chegarem posteridade. Este procedimento permite recuar no tempo e tirar da sombra grandes figuras que vo cumprir o ritual, recuperando-se os antepassados mticos, como Partholon, o primeiro invasor de uma Irlanda completamente deserta a seguir ao dilvio, como Nemed, o primeiro sacralizador da terra da Ilha Verde, ou como os invasores sucessivos, at ao famoso Tuhatha D Danann, que so verdadeiramente heris civilizadores e os pilares da sociedade celta terica, Na verdade, estas figuras mticas esto organizadas e hierarquizadas segundo o modelo sociocultural ndoeuropeu, servindo de fio condutor a tudo o que foi edificado na Irlanda e desejando conservar, apesar da ocupao anglo-normanda, a memria dos velhos galicos, depositrios de toda uma tradio de sabedoria e de concepo do mundo. assim que surge a figura hiertica de Nuada, rei das tribos da deusa Dana, ponto de equilbrio desta sociedade ideal, e que num certo

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sentido se poderia comparar ao Zeus grego e ao Jpiter romano. Nuada evoca tambm o Tyrr germano-escandinavo (e a personagem pseudo-histrica latina Mucius Scaevola), pois perde um brao durante uma batalha. Na tradio germano-escandinava (como na tradio latina), a mutilao deriva de um juramento simulado pronunciado com plena conscincia para proteger o mundo divino, mas na tradio celta trata-se antes de uma ferida herica. 0 problema, no caso dos celtas, consiste em que a integridade fsica do rei anda a par da sua integridade moral: um rei doente ou mutilado no pode reinar, pois se o fizesse o seu prprio reino estaria doente ou mutilado, devido a ambos constiturem uma unidade. Contudo, como entre os celtas as fronteiras do real no so claras, h sempre uma maneira de inverter uma situao catastrfica, bastando um brao de prata para que Nuada readquira a plenitude das suas funes reais. Assim, ele poder nominalmente levar vitria as tribos da deusa Dana contra as foras obscuras - e obscuran.tstas - representadas pelos Fomore, os demnios de um olho nico e malfico que tm por chefe o gigante Balor, o trovejador. Entretanto, a sociedade representada pelos Tuatha D Danam est constituda de forina a reflectir a sociedade humana, agrupando, por vezes de forma elitista e aristocrtica, um certo nmero de indivduos que tanto representam arqutipos de funes sociais, como so de alguma forma especialistas duma arte (podendo esta palavra significar tambm tcnica). 0 rei Nuada acaba por ser o eixo de um mecanismo complexo que s pode funcionar se cada pea estiver no seu lugar. Um rei que no esteja acompanhado de guerreiros, de artesos, de sbios, de sacerdotes, de mgicos e de poetas, no possui nenhuma relevncia.Que seria do fabuloso rei Artur sem os seus cavaleiros e sem o seu adivinho? 0 mesmo acontece com Nuada. sua volta encontramos personagens como Ogrua, o mestre da palavra - aquele Ogrulos que o filsofo grego c pti co Luciano de Samosata descreveu com correntes que, saindo da lngua, chegavam s orelhas dos humanos - o artfice do bronze Credne, o ferreiro Goibniu, o mdico Diancecht e muitos outros artistas que participam numa espcie de conferncia onde cada um tem voto na matria. De entre eles destaca-se a grande figura de Dagda, cujo nome significa literalmente bom deus, e que tem como apelido Ollathair, isto , pai de todos. Este apelido precisamente o epteto de Odin-Wotan, Affiadir, mas Dagda, ao que parece, apenas tem em comum com o deus germano-escandinavo uma certa ambiguidade do carcter. Do mesmo modo que Odin-Wotan o deus dos contratos e no pra de troar deles, Dagda, enquanto bom deus, possui uma moca muito estranha que mata com uma das suas extremidades e ressuscita com a outra. No ser ele o equivalente do deus gauls Sucellos, que estava sempre armado com um martelo e cujo nome significa aquele que bate? Ou tratar-se- de Teutates, ou Toutatis, o pai do povo? Seja como for, medida que, com os sculos, ele se foi folclorizando, transformou-se no Gargantua da tradio francesa, que Rabelais to bem soube recuperar e revalorizar. Trata-se com efeito de um gigante dotado de uma potncia sexual fora 22

do comum e de um apetite voraz. Alm disso, possui um caldeiro maravilhoso, um dos arqutipos do Graal, no qual verte um alimento inesgotvel. Mas ele tambm um artista no sentido que actualmente se d palavra, pois consegue extrair da sua harpa sons que fazem chorar e mesmo morrer, que provocam alegria e riso, ou que adormecem quem quer que os oua. E, como Dagda o pai de todos, possui diversos filhos, com quem tem um relacionamento de contornos muito pouco claros. Da sua irm - ou filha - Boann, epnimo do rio Boyne, ele tem, aps manobras perfeitamente delatrias, um filho que se chamar Oengus (Angus) e cujo apelido ser Mac Oc, ou seja, jovem filho. Oengus uma das personagens mais clebres da tradio galica e uma das que mais se enraizou na memria popular. Rei ferico, ele o senhor do cairn( megaltico mais famoso do mundo, o de Newgrange (em galico, Sidh-naBrug ou Brug-na-Boyne), que serviu de inspirao s grandes lendas da tradio pica irlandesa. E se Oengus tem uma essncia divina, no deixa por isso de se vir misturar com os humanos, intrometendo-se nos seus jogos, nos seus assuntos e nas suas batalhas. Alguns contos populares descrevem-no como estando sempre escondido no meio do arvoredo, pronto a intervir no caso de a ordem do mundo ser alterada. Este jovem filho , em suma, uma espcie de conscincia universal, sempre latente no esprito humano e capaz de se manifestar tanto para operar grandes milagres como para infligir os piores castigos. Todos estes extraordinrios membros das tribos da deusa Dana formam uma espcie de sociedade ideal onde predominam as estruturas ceitas. Cada um deles rei nos seus domnios, reina sobre um I. N. T.: Montculo de forma redonda, feito de pedras e de terra; tmulo celta ou pr-histrico. As antas ou dlmenes estavam normalmente inscridas num cairn. Estes montculos ou outeiros artificiais to so designados por tumulus.

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palcio maravilhoso, ou sobre um outeiro megaltico; entre eles existem laos que tanto podem ser de aliana pura e simples, como familiares ou meramente contratuais. Aps a batalha de Tailtiu e a partilha da Irlanda com os milesianos, foi Dagda que, na hierarquia, ocupou o lugar cimeiro, como se fosse o rei supremo possuidor de uma autoridade moral incontestvel e de poderes para exercer a justia. Esta proeminncia encontramo-la tambm na personagem de ManaDann, filho de Lir, epnimo da Ilha de Man: este reina sobre a misteriosa Terra da promessa, que tambm se chama Tir-na-nOg ou Pas da Eterna Juventude, que na verdade uma espcie de paraso situado algures em ilhas longnquas, a ocidente, evidentemente, ilhas estranhas com uma vegetao maravilhosa e com grandes espaos conhecidos pelo nome de Mag Mell ou Plancie das Fadas. Acontece entretanto que estes domnios esto situados sob um lago, e s vezes mesmo sob o mar: o Outro Mundo, para os celtas, est sempre muito prximo do mundo dos vivos, que nele podem penetrar. No que respeita s boas gentes, termo popular que se refere aos seres fericos, deambulam pelo mundo humano sem quaisquer problemas, possuindo o dom da invisibilidade e podendo assumir um aspecto humano sempre que o desejem; podem tambm tomar a forma de aves, o que acontece sobretudo quando se trata de mulheres. Entre todas estas personagens, Dagda, Mider, Oengus, Mananann e muitos outras, h uma que muito particular e que escapa a qualquer hierarquia: Lug, ao qual esto associados dois eptetos, Lanifada, isto , brao longo, e Samildanach, arteso mltiplo. Lug constitui a figura da divindade celta mais difundida, no apenas na Irlanda mas em todo o continente europeu, devendo-se a ele o nome de vrias cidades, como Lyon, Laon, Loudun, Leyde e Leipzig, que derivam da antiga designao lugudunum, fortaleza de Lug. a ele que se refere Jlio Csar, nos seus Comentrios, quando menciona um Mercrio gauls, fazendo notar que se trata do deus mais venerado de toda a Glia. A sua origem dupla: ele pertence ao ramo dos Tuatha D Danann pelo lado do pai, e ao dos Fomore pelo lado materno, o que faz com que s ele seja capaz, na segunda batalha de Mag-Tured (Moytura), de enfrentar o av, Balor, de olho malvolo, e de o matar. Alm disso, sem que ocupe nenhum lugar na hierarquia, ele o organizador por excelncia e o arteso da vitria final nesta batalha. Isto deve-se ao facto de ele ser um deus para alm de todas as funes, reunindo o conjunto das qualidades que se encontram nos outros deuses; ele na verdade o Mltiplo arteso, tal como o ser mais tarde, na lenda arturiana, Lancelote do Lago, que e a sua imagem heroicizada e tomada romanesca.( Na epopeia celta encontram-se personagens femininas que nada ficam a dever aos homens. Segundo a tradio, a Irlanda era habitada, antes do dilvio, por uma mulher primordial de nome Cessair; e a prpria Irlanda se tornou uma entidade divina ou ferica, Bariba, a qual, segundo algumas verses da lenda, teria sobrevivido ao dilvio, assegurando assim a perenidade da terra situada nos confins do real. Foi tambm uma mulher, a filha do deus-mdico Dianceclit, que, graas sua cincia e magia, devolveu o poder real ao Nuada vencido, fabricando-lhe um brao de prata to eficaz e vivo como o seu brao de carne, e 24

fazendo-lhe um implante graas a uma extraordinaria operaao cirrgica. Acontece com efeito que, na perspectiva celta, as mulheres so dotadas de poderes ignorados pelos homens. A mulher sempre a imagem simblica da Soberania, pois encarna o conjunto da comunidade da qual o rei - acessoriamente o niarido - a trave mestra terica, um pouco como acontece no jogo de xadrez em que a rainha a pea de maior mobilidade, mas onde o rei uma pea fundamental sem a qual se perde a partida. Nas narrativas epicas aparecem tambm mulheres mgicas, e frequentemente feiticeiras, como Funinach, primeira esposa de Mider, inimiga jurada da bela Etame, e mais tarde mulheres-guerreiras iniciadoras dos jovens e temveis sacerdotisas especialistas em manipular os sortilgios. Estas mulheres nunca deixam de viver em plenitude, arcando com as consequncias dos seus actos. Por muito conscientes que estejam do seu poder, no esquecem que podem morrer de amor, estando sujeitas s circunstncias que lhes alimentou a paixo voraz e ilimitada e aos caprichos 1do fado, ou seja, fora de um Destino desconhecido mas imanente. E preciso no esquecer que a origem da histria trgica de amor de Tristo e Isolda, to clebre no mundo ocidental e chegando a ser considerada o smbolo do amor humano, est claramente inscrita na epopeia celta da Irlanda. A caracterstica mais saliente destas heronas femininas epicas e apresentarem mltiplas aparncias, mltiplos rostos, mltiplos semblantes, geralmente trs, tendo em considerao o nmero simblico sagrado dos Celtas, o qual tanto se apresenta com a forma de trade 1 . A este propsito, ver J. Markale, Lancelot et la Chevalerie arthurienne, Paris, Imago, 1985.

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como de triskell, a tripla espiral que, girando volta de um ponto central, simboliza por excelncia o universo em expanso. As heronas aparecem por isso com inmeras aparencias e nomes, em diferentes pocas e em encamaoes sucessivas. Refira-se em primeiro lugar a tripla Brigit, que se diz filha de Dagda (a no ser que ela no seja sua irm), e que vem a ser nem mais nem menos que a Minerva gaulesa de quem fala Csar, deusa das tcnicas, das cincias e das artes, que os cristos recuperaram com o vocbulo santa Brgida atribuindo-lhe a fundao do clebre mosteiro de Kildare, antigo lugar de extrema importncia do culto drudico. Ora, esta Brigit tambm, com o nome de Boann, a me de Oengus, o Mac Oc que concebeu e deu luz durante o espao temporal da noite de Samain, ou seja, simbolicamente, durante a abolio do tempo, a eternidade. Brigit encama a vida eterna, e o seu nome, derivado de Bo Vinda, vaca branca, mostra bem at que ponto se encontra associada a um alimento inesgotvel, o leite, elemento indispensvel aos povos exclusivamente nmadas e pastores, como era o caso dos celtas. A simbologia do seu nome dar os seus frutos, e Boann toma-se o rio Boyne (grafia moderna) que fecunda com as suas guas doces um vale verdejante ao redor do qual se situam os grandes outeiros fericos, que so domnio dos deuses. E se o nome Brigit (que significa poderosa, alta, luminosa) extremamente significativo, Boann, representando a riqueza avaliada em cabeas de gado entre os celtas, constitui a alma duma sociedade onde predominam claramente as tendncias ginecocrticas. 0 terceiro rosto de Brigit-Boann, o de Morrgane (gentvo de Morrigu), filha de Ernirias, uma das personagens mais marcantes das tribos da deusa Dana, de difcil apreenso devido aos seus contornos pouco claros. 0 que nela melhor se evidencia, em particular na narrativa da batalha de mag-Tured, o facto de se tratar de uma divindade guerreira temvel para os seus inimigos durante os conflitos enquanto exortava os guerreiros a combaterem com encamiamento. 0 furor guerreiro de que ela d provas abundantemente desdobra-se num furor sexual desabrido que a transforma seno numa divindade do amor, ao menos numa espcie de deusa do erotismo. A fria guerreira e a sexual andam assim a par, e nos prolongamentos da epopeia celta encontram-se numerosas mulheres guerreiras que tm poderes mgicos e so especialistas na arte militar, ao mesmo tempo que so iniciadoras dos futuros heris, como o caso, por exemplo, de CGchulainn ou de Finn mae Cool. o nome de Morrigane (Morrigu) que significa grande rainha, evoca o da fada Morgana das novelas arturianas e do ciclo do Graal, tratando-se, em qualquer dos casos, do mesmo arqutipo, ao mesmo tempo guerreiro, sexual e mgico. A Morrigane da epopeia irlandesa toma muitas vezes o aspecto duma gralha, chamando-se ento Bobdh. A analogia com Morgana evidente, pois ela e as suas companheiras da Ilha de Avalon possuem precisamente o mesmo dom de se metamorfosearem. Alm disso, de crer que a mulher ferica que leva um ramo de macieira de Emain ao heri Bran, filho de Fbal, antes de o levar a empreender uma estranha navegao, seja a prpria Morrigane, embora o seu nome no seja pronunciado neste episdio. Porque no havia de reinar a grande rainha nesta terra bem aventurada de frutos maduros durante todo o ano e onde no existem a 26

doena, a velhice e a morte? Seja como for, a ilha misteriosa de Emam Ablach o equivalente, quer lingustico quer mitolgico, da ilha de Avalon, a fabulosa Insula Pornorum para a qual convergem todos os fantasmas da humanidade sofredora. Morrigane bem o tipo de mulher celta vista pelos autores das epopeias mitolgicas; e, muitas vezes, vamos encontrar este tipo nas personagens femininas que, na fronteira entre o humano e o ferico, possuem dons mais ou menos sobrenaturais e o poderoso geis, ou seja, o poder do encantamento mgico que tem o valor de obrigao absoluta para aquele ou aquela que dela objecto. 0 belo Dermot, filho de ODuibhn, um dos companheiros de Finn mac Cool, conhecer bem esse fenmeno, pois subjuga o geis da bela Grairin (Grania), perdidamente apaixonada por ele. Os filtros do amor pouco podem fazer face ao encantamento mgico e religioso que faz intervir o mundo invisvel e faz depender os actos humanos das divindades invisveis. A jovem Etaine, profundamente amada pelo sombrio deus Mider (que tem numerosos pontos em comum com Mlagant de Chrtien de Troyes), no escapa tambm ao ges lanado pela sua rival Furimach, e nada neste mundo a consegue poupar ao longo perodo de turbulncias e depois de metamorfoses que a afectaro profundamente. Apesar disso a aventura de Etaine e de Mider uma histria de amor normal, na mais bela tradio romntica. Na epopeia celta, no entanto, o amor no um sentimento isolado, fazendo parte das grandes mutaes que se operam no universo, tudo se dirige, por entre as diversas peripecias psicolgcas, para uma dimenso csmica qual ningum consegue escapar. 0 que posto em relevo muito menos a natureza fatal da pai-

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xo amorosa do que a sua necessidade metafslca. Acima de tudo, procura transmitir~se a ideia de que, a existir um deus. ele s pode ser o amor, pois este constri o mundo, e a mulher, que iniciadora por essncia, capaz de dar, com o seu amor, um segundo nascimento, o nascimento na eternidade, quele que escolheu amar. Existe muito a ideia, formada ao longo dos tempos, de que a epopeia no deixa nenhum espao para a vida afectiva, para o estudo do comportamento psicolgico dos heris, cuja descrio permanece demasadas vezes ao nvel do exterior, estereotipada segundo as normas do gnero. Naturalmente, as personagens das epopeias so arqutipos carregados de significao simblica, mas no deixam por isso de ser dotadas de reaces humanas e por isso de vida interior. Naturalmente, h um aumento do que se chama qualidades, aumento que indspensvel para se pr em destaque as aces fora do comum. E verdade que existe tambm uma simplificao destinada a inserir as personagens e as aces num determinado quadro acessvel a um pblico que no compreende a profundidade e as subtilezas da psicologia, Apesar disso, no se deve esquecer que os heris so humanos, mesmo quando so apresentados como sobrehinnanos. E tanto nas narrativas picas da antiga Irlanda como nas da antiga Bretanha, so seres humanos que descrevem outros seres humanos que, ao atravessarem a vida, tanto passam por situaes de incerteza, de angstia e de grande sofrimento como, por outro lado, tambm so capazes de viver grandes alegrias e de desfrutar de momentos de grande felicidade. 0 amor de Mider por c Etam comove-nos porque se trata de um amor que qualquer homem pode ter por uma mulher. 0 furor guerreiro com que Lug vinga a morte do pai, no poupando os descendentes do seu assassino, bem demons~ trativo do sofrimento que lhe provoca a injustia de que o seu pai foi vtima. A estranha paixo de Oengus pela mulher que entrev atravs da neblina e o encantamento de Bran, filho de Fbal, quando ouve a voz da rainha das fadas louvar-lhe os encantos da ilha bem aventurada, so sentimentos perfeitamente humanos que qualquer pessoa poderia sentir, nessa universalidade dos sentimentos que se encontra a extraordinria riqueza destas epopeias fragmentrias dispersas nos varios manuscritos da Idade Mdia, cujas linhas directrizes so agora fceis de reconstituir. Para alm de nos fazerem reflectir, num plano metafisico, sobre o mundo e sobre as relaes entre o visvel e o invisvel, essas epopeias testemunham uma sensibilidade que em nada inferior quela 1 que o romantismo pretendeu inventar. Estas diversas narrativas que nos chegam do passado tm um valor que vai muito para alm de serem um testemunho de um mundo imerso em sombras, pois nelas palpita a beleza de histrias que devem ser transmitidas de gerao em gerao com a plena certeza de que nelas o belo, a bondade e o salutar andam de mos dadas. A rvore do conhecimento no poder apontar as suas ramagens frondosas para o cu se as suas razes no estiverem ricamente alimentadas pelas sombras que deambulam pela terra, como 28

o caso das dos fantasmas que esperam desesperadamente pelo momento de encamarem. E s a poesia pode permitir que se cumpra esta subtil operao alqumica. Para que o objectivo se realize, toma~se necessrio que se viaje para as estranhas fronteiras do real, a onde o sonho e a realidade formam duas vertentes duma mesma e nica montanha. Poul Fetan, 1997

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ADVERT E NCIA A narrativa que se segue no uma traduo nem uma adaptao de textos originais, ainda menos uma fico romanesca inspirada por temas picos. Tratase da reescrita da grande epopeia dos celtas tal como possvel reconstitu-la com o auxilio de mltiplas histrias contidas nos manuscritos irlandeses da Idade Mdia, histrias que aparecem como sendo as mais antigas conservadas da tradio celta. Esta reescrita obedece a dois imperativos: contar com a mxima simplicidade possvel, numa linguagem acessvel ao maior nmero de pessoas, e respeitar integralmente o esquema dramtico original. E esse o motivo por que se far, em cada episdio, uma referncia precisa ao texto que lhe serviu de base. As obras do passado pertencem ao patrimnio da humanidade, mas torna-se necessrio s vezes relembr-las a um Pblico novo. Era j essa a tarefa dos transcritores da Idade Mdia, que aqui volta a ser proposta.

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Naquele tempo, o abade Finnen, na companhia de seis dos seus discpulos, percorria a terra da Irlanda para ai pregar o Evangelho e baptizar aqueles que ainda no tinham recebido o baptismo. Um dia acercou-se ele de uma fortaleza que se erguia numa margem, ao fundo de uma baa, numa regio muito isolada do UIster.l1 Como ele e os seus companheiros estavam cansados devido longa viagem, pediram ao chefe da fortaleza que os acolhesse. Mas este respondeu que de modo algum daria acolhimento a vagabundos que incitavam os homens da Irlanda a abandonarem os seus antigos costumes. Perante esta resposta, Finnen ficou furioso e, avanando para a porta da fortaleza, gritou: J que assim, j que te referes aos nossos antigos costumes, eu vou lanar uma maldio sobre o dono deste edifcio, assim como sobre todos os que nele habitam e toda a populao deste pas! Por Deus Todo-poderoso, enquanto no me for feita justia, 1 . Firmen, ou Fman (s vezes conhecido por So Finian, o Leproso, um dos inumerveis santos irlandeses que, sem serem reconhecidos por Roma, so geralmente considerados os Primeiros evangelizadores da ilha Verde. Firmen passa por ter fundado o mosteiro de Mag Bile no Ulster e o de Innisfalien na ilha do grande lago de Killarney, no Kerry, estando este ltimo a ilustrar os seus Anais, de valor inestimvel para a histria da alta Idade Mdia. 2. Trata-se da baa de Sheephaven, no condado de Donegal. No lugar da antiga fortaleza, encontram-se ainda vestgios do castelo de Doe, construdo no sCCulo XVI pela famlia dos Mae Sweeney.

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nada farei para evitar que a desgraa se abata sobre este pas! Nem eu nem os meus companheiros comeremos qualquer alimento enquanto no for satisfeito o nosso pedido de hospitalidade. Se morremos, a culpa ser de quem nos recusou alojamento e de todos aqueles que o seguiram na sua detestvel atitude. A vergonha abater-se- sobre todos e tero de expiar as culpas, estendendo-se o castigo pelos descendentes at nona gerao. esse o costume deste pais e eu juro que o farei cumprir at s ltimas consequncias!11 Aps ter pronunciado estas palavras, Finnen voltou para perto dos seus companheiros e os sete encaminharam-se para o prado existente em frente fortaleza. Era um sbado de noite. Os homens ficaram deitados sobre a erva durante a noite e uma boa parte da manh seguinte at que assomou sobre as suas cabeas um sujeito de compleio imponente, de cabelos brancos e barba abundante, que, depois de os ter observado, se dirigiu a Finnen e se ajoelhou diante dele. Sado-te, homem de Deus! disse ele. Permite-me que faa frente ao desafio que lanaste s gentes deste pas e que, desse modo, no se possa dizer que o costume da hospitalidade foi trado, recaindo a culpa sobre cada um de ns. Eu no moro longe, e pedi aos meus criados que acendessem o lume para cozer os alimentos no meu caldeiro. Vem, homem de Deus; tu e os teus companheiros tero uma acolhimento digno daquele que vos envia a pregar a sua mensagem aos povos desta ilha. Finnert ergueu-se e cumprimentou o velho. Quem s tu que me chamas homem de Deus? s tu tambm um homem de Deus ou vens aqui s para me provocar em nome do Inimigo? - Eu recebi o baptismo em nome do Senhor, o Deus Todo-poderoso, e foi Patrcio que derramou sobre a minha cabea a gua da vida eterna, respondeu o velho. Peo-te que renuncies maldio que lanaste s gentes deste pas e que venhas a minha casa descansar e procurar conforto. Mas quem s tu?, insistiu Finnen. Um homem dos tempos antigos. J h muito tempo que vim a este mundo, e por vontade de Deus que cheguei ao dia de hoje para estar diante de ti. Acho que isto te deve bastar. Acompanha-me a minha casa. Por Deus Todo-poderoso! , exclamou Finnen, nem eu nem os 1. Trata-se do famosojejum legal, praticado frequentemente pelos celtas e que consistia, para o queixoso, em jejuar diante da parte adversria, revelando solenemente os motivos do conflito. Se o que faz jejum morre, a responsabilidade recai sobre aquele que no reparou os seus erros e que, por isso, excludo da comunidade. Encontra-se aqui o mesmo princpio da greve da fome. ineus companheiros te acompanharemos se no nos disseres quem s. Nesse caso ouve bem o que te digo. Nunca ningum tinha desembarcado nesta ilha antes do dilvio. Conta-se no entanto que, quarenta dias antes de as guas subirem, trs mulheres aqui estiveram, tendo o nome de Banba, FothIa e Eriu), e diz-se tambm que elas sobreviveram inundao. Mas o que certo que esta ilha peri-naneceu deserta trezentos e doze anos depois do dilvio. S nessa altura que aqui chegou Partholon, filho de Sera, acompanhado de vinte e quatro homens e das suas respectivas mulheres. E eu prprio estava entre esses vinte e 32

quatro homens. Partholon e o seu cl estabeleceram-se assim na Irlanda e aqui viveram muito tempo. A terra era bela e frtil, com grandes prados onde os gados podiam pastar. E o pas agradava-lhes, porque nele podiam (2) prosperar tranquilamente e sem o receio de animais venenosos. Mas um dia, entre dois Domingos, uma epidemia abateu-se sobre a ilha e morreram todos os seus habitantes. Entretanto, como nunca se ouviu falar de um desastre que no tivesse deixado ficar ao menos um nico sobrevivente para o contar, fiquei eu, a nica testemunha dos dias antigos. Eu senti-me extremamente s e passei a deambular de colina em colina e de falsia em falsia evitando os lobos que percorriam as plancies e as florestas. Errei assim ao acaso durante trinta e dois anos sem encontrar vivalma. Por fim a velhice abateu-se sobre mim e os membros comearam a pesar-me, ficando eu fraco e desamparado. J no conseguia subir as colinas e a certa altura, j no me conseguindo mexer, refugiei-me numa gruta espera da morte. Lembro-me como se fosse hoje. Eu estava entrada da gruta, meio deitado, quando vi chegar Nemed, filho de Agnoman, seguido por vrios homens e mulheres. Vi-os tomarem posse da ilha e, quando chegaram entrada da gruta, no me quis mostrar. Eu tinha deixado crescer os cabelos, as minhas unhas estavam enormes, estava todo grisalho, decrpito e nu, tolhido pela misria e pelo sofrimento. Certa vez, depois de uma noite de sono, ao acordar numa manh de sol, apercebi-me de que tomara a forma de um veado, facto com que I- So os trs nomes tradicionais (e mitolgicos) da Irlanda personificada. 0 ltimo tornou-se o nome galico oficial da Repblica da Irlanda, Eriu no nominativo e Erin no genitivo. 2. No h serpentes na Irlanda. Este fenmeno deriva do facto geolgico de a ilha se ter separado do continente europeu e das Ilhas Britnicas antes da chegada dos animais dos pases temperados e quentes ao norte, no perodo ps-glaciar. Mas segundo uma lenda tradicional irlandesa, So Patrcio em pessoa ter caado serpentes na ilha lanando-lhes uma maldio.

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o meu esprito se alegrou pois eu voltava a ser jovem. Revestido da minha forma animal, passei a tomar conta dos gados da Irlanda, vendo passar a meu lado grupos de veados arruivados que corriam atravs de plancies e vales, e atravs de montanhas at chegarem aos esturios dos rios. Foi essa a minha vida no tempo de Nemed. Os do seu cl tomaram-se numerosos e chegaram a formar quatro mil e trinta casais. Mas as gentes de Nemed tiveram de combater gigantes que vinham das ilhas imersas em nevoeiro e aqueles que no se exilaram foram sucumbindo sucessivamente. Assim fiquei s, nesta ilha, a tomar conta do numeroso gado, e tendo de me refugiar do vento que vinha do largo e da chuva que me encharcava e me obrigava muitas vezes a esconder~me debaixo dos carvalhos da floresta. E mais uma vez fiquei velho, com os membros entorpecidos. Eu sabia no entanto que o meu destino ainda no se cumprira, pois faltava-me voltar ao UIster j que fora nessa regio que eu mudara de aspecto. Resolvi por isso refugiar-me numa gruta, no longe daqui, e ficar espera do que poderia acontecer de seguida. Foi nessa altura que assisti ao desembarque nesta terra da Irlanda daqueles a quem se chama os Homens-Trovo. Eles eram muito numerosos e ocuparam esta terra depois de terem feito frente aos gigantes das ilhas que queriam impedi-los de aqui viver em paz. Assisti a terrveis perseguioes nos vales e ao longo dos esturios, assim como a combates mortais e a caadas ao homem na floresta. Mas, por fim, os Homens-Trovo acabaram por dominar este pas. Em dada altura estava eu entrada da minha caverna, lembro-me disso como se fosse hoje, e o meu corpo voltou a mudar de aspecto, passando a ter a forma de um javali. Consigo mesmo lembrar-me que entoei uma cano inspirado pela maravilha que comigo ocorrera: Hoje, sou um javali, Sou um reijorte e vitorioso. 0 meu canto e as minhas Palavras eram agradveis, outrora, nas assembleias, encantando os jovens e belas mulheres. 0 meu carro de combate era belo e majestoso, a minha vo: emitia sons graves e doces, eu era hbil nos combates, tinha um rosto encantador Mas, hoje, sou wnjavali negro... Ora, os Homens-Trovo foram vencidos por outras gentes que desembarcaram nesta terra na noite anterior s calendas de Maio. Eu vi essas gentes Incendiarem os navios nas margens e penetrarem nos vales; e vi-as combaterem os HomensTrovo nas plancies. Pertenciam s tribos da deusa Dana cuja origem, segundo se diz, desconhecida. Mas provvel que eles viessem do cu, pois tinham uma 34

inteligncia rara e os seus conhecimentos ultrapassavam largamente os dos outros povos do universo. Mais uma vez fiquei velho, apoderando-se de mim a tristeza e a melancolia. Eu j no era capaz de fazer o que fizera antes. No me queria misturar com os outros e habitava em cavernas sombrias e em covas que existiam entre os grandes rochedos. Eu fugia de tudo o que mexia, fossem homens ou animais. Lembro-me agora perfeitamente de que me deitei ao comprido no cho e de que passaram minha frente as formas que j possura at ento, o que fez com que a minha tristeza aumentasse. Jejuei ento durante trs dias, ao fim dos quais senti que j no tinha foras. Mas, sem disso me aperceber, tornei-me um pssaro, uma grande guia do mar. Fiquei de novo alegre, por perceber que poderia percorrer incansavelmente os cus desta ilha voando mesmo rente s nuvens. Foi assim que levantei voo e que pude testemunhar tudo o que se passava na Irlanda. E eu cantarolava estes versos: guia do mar hoje, jfui noutros tempos umjavali. Vivi antes entre varas de porcos selvagens, e eis-me agora entre bandos de pssaros ... Que histria estranha me contas! , disse Finnen. E como possvel que agora sejas um homem como qualquer outro? - Os desgnios de Deus so insondveis, respondeu o velho, pois o futuro a Ele pertence. Fica contudo a saber que foi na forma de animais que conse~ gui sobreviver a todos os povos que invadiram esta ilha. Tambm assisti chegada dos Filhos de Mil e sua luta contra as tribos da deusa Dana. Nessa altura tinha eu a forma de pssaro e estava no buraco de uma rvore, junto ao rio. Estive adormecido durante nove dias, ao fim dos quais acordei com o aspecto de um salmo. Atirei-me ento gua e comecei a nadar. Sentia-me bem, com muita energia, e saltei de rocha em rocha em di-

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reco nascente. Graas minha habilidade, escapei durante muito tempo a variados perigos, s redes de pesca dos pescadores, s garras das aves de rapina que tentavam agarrar-me, aos dardos que os caadores me atiravam, s lontras que me perseguiam atravs da corrente. Mas, um dia, lembro-me muito bem, fui apanhado por um pescador, que me ofereceu como presente mulher de CarilI, o rei deste pas. 0 cozinheiro meteume numa grelha, para me cozer num fogo de ramos secos. A mulher do rei, ao passar perto, ficou cheia de vontade de comer-me e devorou-me, passando eu a habitar no seu estmago. Lembro-me como se fosse hoje, do tempo em que estive no estmago da mulher de Carifi. Lembro-me tambm de ter nascido outra vez sob uma forma humana, graas mulher de Carifi. Comecei ento a falar como os homens falam, e fui capaz de revelar tudo o que se tinha passado na Irlanda desde a poca do dilvio. E foi depois do meu novo nascimento que me chamaram Tun, filho de Carlll. Muito bem, disse Finnen. Agora podemos seguir-te at tua casa, j que nos ofereces hospitalidade para nos compensares da m conduta e da perversidade dos habitantes deste pas. Tun, filho de CarilI, conduziu ento Finnen e os seus discpulos sua casa que se erguia sobre uma colina de onde se avistava o esturio. Era uma casa real, cercada por um muro e por uma paliada, e guardada por alguns guerreiros armados. Tun fez entrar os seus hspedes, mas quando quis dar-lhes de comer na sala dos festins, Finnen disse-lhe: Hoje Domingo e ainda no prestmos homenagem ao Senhor. No comeremos nem beberemos absolutamente nada enquanto no tivermos cumprido o nosso dever. No h problema, respondeu Tun, h aqui um local para orao. Vem com os teus companheiros e cumpram o vosso dever. Quando Firmen e os seus companheiros acabaram de celebrar o ofcio de Domingo, seguiram Tun at sala de festins. Tun pedira aos seus criados para cozerem os alimentos num grande caldeiro, no fogo que se encontrava ateado a meio da sala. A volta havia juncos e palha fresca. Finnen, os seus companheiros e Tun, filho de CarilI, sentaram-se ao redor do fogo. Tomai e saciai-vos, disse Tun. Por Deus Todo-poderoso! , gritou Finnen, Ns no comemos nenhum alimento nem tomamos nenhuma bebida enquanto tu no comeares a contar-nos o que aconteceu nesta ilha a seguir ao dilvio. S um bom anfitrio e diz-nos o que sabes, para que possamos apreciar a tua generosidade ao mesmo tempo Ilharemos contigo o que tu 1 que part prazer, respondeu Tun. sabes acerca da histria do mundo. Com todo o

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0 anfitriao comeou ento a narrar as cinco invases que a Irlanda sofrera desde os tempos distantes do dilvio. E, enquanto os seus hspedes comiam e bebiam, o homem dos tempos antigos falava. Os discpulos de Firmen ouviam o que ele dizia. Foram estes que, mais tarde, contaram tudo o que ouviram aos seus proprios discpulos, os quais transmitiram a mensagem a novos discpulos e assim por diante. E assim que, graas a Tun, filho de CarilI, e tambm ao abade Firmen, ns conhecemos a grande epopeia dos celtas.() 1Segundo a narrativa do Rawlinson B. 512, publicada com traduo inglesa de Kuno Nleyer, The Voyage of Bran, Londres, 1987. Outra verso, a do Leabhar na hUidr, foi traduzida Para francs por Ch.-J. Guyonvarch, Textos mitolgicos irlandeses, Rennes, 1980.

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C a p t LI 1 0 epois de terem sido expulsos do Jardim do den, Ado e a sua companheira Havali, ou seja, Eva, erraram por muito tempo pela terra em busca de um lugar que os pudesse proteger do calor ardente e do frio cortante. Com eles levavam uma pedra verde cada do cu e um ramo da rvore da Vida. Assim que encontraram um lugar propcio, a construram uma cabana com pedras e pedaos de argila, e Havah cravou no solo o ramo da rvore da Vida. Passaram a viver na cabana, criaram gado, cultivaram trigo, plantaram vinhas. E tiveram uma numerosa descendncia que se espalhou por toda a terra, chegando s regies mais longnquas e s margens do grande oceano que rodeia o mundo. Ora, entre os filhos dos filhos de Ado e da sua companheira Havali, contavam-se diversas filhas. E estas filhas ocuparam as plancies e os vales da terra e chegaram s margens do grande oceano. Ora, estas filhas eram muito belas, e os filhos de Deus que, descendo da profundeza dos cus, vinham contemplar a terra, observaram-nas e ficaram seduzidos por elas. Aproximaram-se ento e uniram-se a elas, fazendo com que, em breve, das filhas de Ado nascessem crianas de grande estatura. Estes gigantes, por seu turno, uniram-se a outras filhas de Ado e engendraraM novos gigantes. E, assim sucessivamente, sucederam-se diversas geraes de gigantes que se espalharam por toda a terra. I- Isto faz lembrar a esmeralda de Lucifer que se transformar no Santo Graal numa verso gnstica da lenda.

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Nessa altura, Deus compreendeu que o mal provocado por Ado ia arruinar toda a sua criao. Triste com esse facto e arrependido por ter dado vida a Ado e sua companheira Havali, resolveu ento acabar com as criaturas que o ultrajavam, poupando a vida apenas a um homem com quem simpatizava: No, um homem justo que venerava o Eterno. Deus preveniu-o de que iria fazer chover sobre a terra durante quarenta dias e quarenta noites para destruir o que havia de mal na criao. E ordenou-lhe que construsse uma arca, que nela embarcasse um casal de cada espcie animal que habitava na terra, nos ares e nos oceanos, e que depois nela se refugiasse com toda a sua famlia, pois graas a ele sobreviveria o que havia de melhor na criao. Ento, No construiu um barco e reuniu tudo o que deveria ficar a salvo da clera de Deus. Os Livros dizem que No tinha trs filhos, Sem, Cham e Japliet. Mas os Livros no dizem que ele tinha um quarto filho, de nome Bith, e que este filho tinha uma filha chamada Cessair. Ora, esta Cessair, quando foi avisada de que as guas iriam inundar a superfcie da terra e engolir tudo o que fosse vivo, excepo do que estivesse dentro da Arca, tentou escapar ao Destino pelos seus prprios meios. Segundo ela pensava, devia haver no mundo um lugar onde nenhum homem tivesse chegado e que por isso deveria desconhecer qualquer tipo de crime ou de mal; alm disso, esse lugar, que deveria ser poupado pelo Dilvio, jamais deveria ter sido habitado por serpentes ou por monstros. A pensar nesse pas, chamou os druidas e perguntou-lhes onde ele se poderia encontrar. Os druidas111 reflectiram longamente, e disseram-lhe que s um pas poderia ser poupado, a Irlanda, pois esta ilha estava situada no lado ocidental do mundo, para norte, do mesmo modo que o Jardim do den estava situado a oriente, e para sul. Com efeito, acrescentaram eles, estas duas regies tm muitas semelhanas tanto no que respeita sua natureza como sua situao sobre a superfcie da terra. Assim como o Paraiso no pode dar abrigo a animais perigosos, do conhecimento geral que a ilha da Irlanda no tem serpentes, nem drages, nem lees, nem sapos, nem ratos, nem escorpies, nem quaisquer outros animais capazes de fazer o mal, se exceptuarmos o lobo. Irlanda chama-se ilha do Ocidente. Mais tarde, os Gregos chamar-lhe-o Hyberocl) e os Romanos, que dominaro o inundo, charnar~lhe-o Occasimi.(21 A Irlanda est prxima da Ilha da Bretanha mas, no que respeita sua dimenso, mais estreita, sendo no entanto mais frtil. Estende~se desde o norte de frica, fica na vizinhana da Ibria e do oceano Cantbrico, e este o motivo por que lhe chamaro um dia Hibrnia. Mas tambm lhe chamaro Scotia porque ser povoada pela nao dos escotosl1. ento para ai que temos de ir, disse Cessair aps ouvir aquelas palavras. Ela mandou construir navios e preveniu os que lhe eram prximos de que iriam partir po