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Merleau-Ponty, M. Fenomenologia da percepção - 3ª ed – São Paulo: Martins Fontes, 2006 Primeira parte – Cap IV- A SÍNTESE DO CORPO PRÓPRIO – (pp 205- 212) M Ponty – A síntese do corpo próprio – pp 205-212 P 205 Capitulo IV A SINTESE DO CORPO PROPRIO A análise da espacialidade corporal conduziu-nos a re- sultados que podem ser generalizados. Constatamos pela primeira vez, a propósito do corpo próprio, aquilo que é verdadeiro de todas as coisas percebidas: que a percepção do espaço e a percepção da coisa, a espacialidade da coisa e seu ser de coisa não constituem dois problemas distintos. A tradição cartesiana e kantiana já nos ensinava isso; ela faz das determinações espaciais a essência do objeto, ela mostra na existência partes extra partes, na dispersão espacial o único sentido possível da existência em si. Mas ela esclarece a percepção do objeto pela percepção do espaço, quando a experiência do corpo próprio nos ensina a enraizar o espaço na existência. O intelectualismo vê muito bem que o "motivo da coisa" e o "motivo do espaço" se entrelaçam, mas ele reduz o primeiro ao segundo. A experiência revela sob o espaço objetivo, no qual finalmente o corpo toma lugar, uma espacialidade primordial da qual a primeira é apenas o invólucro e que se confunde com o próprio ser do corpo. Ser corpo, nós o vimos, é estar atado a um certo mundo, e nosso corpo não está primeiramente no espaço: ele é no espaço. Os ano- sognósicos que falam de seu braço como de uma "serpente" (p206) longa e fria 2 não ignoram, propriamente falando, seus contornos objetivos e, mesmo quando o doente procura seu braço sem encontrá- lo ou o amarra para não perdê-lo 3 , ele sabe onde está seu braço, já que é ali que o procura e que o amarra. Se todavia os doentes sentem o espaço de seu braço como estranho, se em geral eu posso sentir o espaço de meu corpo enorme ou minúsculo, a despeito do testemunho de meus sentidos, é porque existe uma presença e uma extensão afetivas das quais a espacialidade objetiva não é condição suficiente, como o mostra a anosognosia, e nem mesmo condição necessária, como o mostra o braço fantasma. A espacialidade do corpo é o desdobramento de seu ser de corpo, a maneira pela qual ele se realiza como corpo. Ao procurar analisá- la, apenas antecipamos aquilo que temos a dizer da síntese corporal em geral.

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Merleau-Ponty, M. Fenomenologia da percepção - 3ª ed – São Paulo: Martins Fontes, 2006Primeira parte – Cap IV- A SÍNTESE DO CORPO PRÓPRIO – (pp 205- 212)

M Ponty – A síntese do corpo próprio – pp 205-212P 205 Capitulo IV

A SINTESE DO CORPO PROPRIO

A análise da espacialidade corporal conduziu-nos a resultados que podem ser generalizados. Constatamos pela primeira vez, a propósito do corpo próprio, aquilo que é verda-deiro de todas as coisas percebidas: que a percepção do espaço e a percepção da coisa, a espacialidade da coisa e seu ser de coisa não constituem dois problemas distintos. A tradição cartesiana e kantiana já nos ensinava isso; ela faz das determinações espaciais a essência do objeto, ela mostra na existência partes extra partes, na dispersão espacial o único sentido possível da existência em si. Mas ela esclarece a percepção do objeto pela percepção do espaço, quando a experiência do corpo próprio nos ensina a enraizar o espaço na existência. O intelectualismo vê muito bem que o "motivo da coisa" e o "motivo do espaço" se entrelaçam, mas ele re duz o primeiro ao segundo. A experiência revela sob o espaço objetivo, no qual finalmente o corpo toma lugar, uma espacialidade primordial da qual a primeira é apenas o invólucro e que se confunde com o próprio ser do corpo. Ser corpo, nós o vimos, é estar atado a um certo mundo, e nosso corpo não está primeiramente no espaço: ele é no espaço. Os anosognósicos que falam de seu braço como de uma "serpente" (p206) longa e fria2 não ignoram, propriamente falando, seus contornos objetivos e, mesmo quando o doente procura seu braço sem encontrá-lo ou o amarra para não perdê-lo3, ele sabe onde está seu braço, já que é ali que o procura e que o amarra. Se todavia os doentes sentem o espaço de seu braço como estranho, se em geral eu posso sentir o espaço de meu corpo enorme ou minúsculo, a despeito do testemunho de meus sentidos, é porque existe uma presença e uma extensão afetivas das quais a espacialidade objetiva não é condição suficiente, como o mostra a anosognosia, e nem mesmo condição necessária, como o mostra o braço fantasma. A espacialidade do corpo é o desdobramento de seu ser de corpo, a maneira pela qual ele se realiza como corpo. Ao procurar analisá-la, apenas antecipamos aquilo que temos a dizer da síntese corporal em geral.

Reencontramos na unidade do corpo a estrutura de implicação que já descrevemos a propósito do espaço. As diferentes partes de meu corpo - seus aspectos visuais, táteis e motores - não são simplesmente coordenadas. Se estou sentado à minha mesa e quero alcançar o telefone, o movimento de minha mão em direção ao objeto, o aprumo do tronco, a contração dos músculos das pernas envolvem-se uns aos outros; desejo um .certo resultado e as tarefas distribuem-se por si mesmas entre os segmentos interessados, as combinações possíveis sendo antecipadamente dadas como equivalentes: posso permanecer encostado na poltrona, sob a condição de esticar mais o braço, ou inclinar-me para a frente, ou mesmo levantar-me um pouco. Todos esses movimentos estão à nossa disposição a partir de sua significação comum. É por isso que, nas primeiras tentativas de preensão, as crianças não olham sua mão, mas o objeto: os diferentes segmentos do corpo só são conhecidos em seu valor funcional e sua coordenação não é apreendida. Da mesma forma, quando estou sentado à minha mesa, posso' “visualizar” instantaneamente as (p.207) partes de meu corpo que ela me esconde. Ao mesmo tempo em que contraio o pé em meu sapato, eu o vejo. Esse poder me pertence até mesmo para as partes de meu corpo que nunca vi. É assim que doentes têm a alucinação de seu próprio rosto visto de dentro4. Pôde-se mostrar que não reconhecemos nossa própria mão em fotografia, que muitas pessoas até mesmo hesitam em reconhecer entre outras a sua própria letra, e que, ao contrário, cada um reconhece sua silhueta ou seu andar filmados. Assim, não reconhecemos pela visão aquilo que todavia vimos freqüentemente e, ao contrário, reconhecemos de um só golpe a representação visual daquilo que, em nosso corpo, nos é invisível5. Na heautoscopia, o duplo que o paciente vê diante de si não é sempre reconhecido por certos detalhes visíveis, o paciente tem o sentimento absoluto de que se trata dele mesmo e, em

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conseqüência, declara que vê seu duplo. Cada um de nós se vê como que por um olho interior que, de alguns metros de distãncia, nos observa da cabeça aos joelhos7 . Assim, a conexão entre os segmentos de nosso corpo e aquela entre nossa experiência visual e nossa experiência tátil não se realizam pouco a pouco e por acumulação. Não traduzo os "dados do tocar" para "a linguagem da visão" ou inversamente; não reúno as partes de meu corpo uma a uma; essa tradução e essa reunião estão feitas de uma vez por todas em mim: elas são meu próprio corpo. Diremos então que percebemos nosso corpo por sua lei de construção, assim como conhecemos antecipadamente todas as perspectivas possíveis de um cubo a partir de sua estrutura geométrica? Mas - para não falar ainda dos objetos exteriores - o corpo próprio nos ensina um modo de unidade que não é a subsunção a uma lei. Enquanto está diante de mim e oferece suas variações sistemáticas à observação, o objeto exterior presta-se a um percurso mental de seus elementos e pode, pelo menos em uma primeira aproximação, ser definido como a lei de suas variações. Mas eu não estou diante (p.208) de meu corpo, ou antes sou meu corpo. Portanto, nem suas variações nem seu invariante podem ser expressamente postos. Não contemplamos apenas as relações entre os segmentos de nosso corpo e as correlações entre o corpo visual e o corpo tátil: nós mesmos somos aquele que mantém em conjunto esses braços e essas pernas, aquele que ao mesmo tempo os vê e os toca. O corpo é, para retomar a expressão de Leibniz, a "lei eficaz" de suas mudanças. Se ainda se pode falar, na percepção do corpo próprio, de uma interpretação, seria preciso dizer que ele se interpreta a si mesmo. Aqui, os "dados visuais" só aparecem através de seu sentido tátil, os dados táteis através de seu sentido visual, cada movimento local sobre o fundo de uma posição global, cada acontecimento corporal, qualquer que seja o "analisador" que o revele, sobre um fundo significativo em que suas ressonâncias mais distantes estão pelo menos indicadas e a possibilidade de uma equivalência intersensorial está imediatamente fornecida. O que reúne as "sensações táteis" de minha mão e as liga às percepções visuais da mesma mão, assim como às percepções dos outros segmentos do corpo, é um certo estilo dos gestos de minha mão, que implica um certo estilo dos movimentos de meus dedos e contribui, por outro lado, para uma certa configuração de meu corpo. Não é ao objeto físico que o corpo pode ser comparado, mas antes à obra de arte. Em um quadro ou em uma peça musical, a idéia só pode comunicar-se pelo desdobramento das cores e dos sons. A análise da obra de Cézanne, se não vi seus quadros, deixa-me a escolha entre vários Cézannes possíveis, e é a percepção dos quadros que me dá o único Cézanne existente, é nela que as análises adquirem seu sentido pleno. O mesmo acontece com um poema ou com um romance, embora eles sejam feitos de palavras. Sabe-se que um poema, se comporta uma primeira significação, traduzível em prosa, leva no espírito do leitor uma segunda existência que o define enquan-(p.209)-to poema. Assim como a fala significa não apenas pelas palavras, mas ainda pelo sotaque, pelo tom, pelos gestos e pela fisionomia, e assim como esse suplemento de sentido revela não mais os pensamentos daquele que fala, mas a fonte de seus pensamentos e sua maneira de ser fundamental, da mesma maneira a poesia, se por acidente é narrativa e significante, essencialmente é uma modulação da existência'. Ela se distingue do grito porque o grito utiliza nosso corpo tal como a natureza o deu a nós, quer dizer, pobre em meios de expressão, enquanto o poema utiliza a linguagem, e mesmo uma linguagem particular, de forma que a modulação existencial, em lugar de dissipar-se no instante mesmo em que se exprime, encontra no aparato poético o meio de eternizar-se. Mas, se se destaca de nossa gesticulação vital, o poema não se destaca de todo apoio material, e ele estaria irremediavelmente perdido se seu texto não fosse exatamente conservado; sua significação não é livre e não reside no céu das idéias: ela está encerrada entre as palavras em algum papel frágil. Nesse sentido, como toda obra de arte, o poema existe à maneira de uma coisa e não subsiste eternamente à maneira de uma verdade. Quanto ao romance, se bem que ele se deixe resu-mir, se bem que o "pensamento" do romancista se deixe formular abstratamente, essa significação nocional é retirada de uma significação mais ampla, como a descrição de uma pessoa é retirada do

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aspecto concreto de sua fisionomia. O papel do romancista não é expor idéias ou mesmo analisar ca-racteres, mas apresentar um acontecimento inter-humano, fazê-Io amadurecer e eclodir sem comentário ideológico, a tal ponto que qualquer mudança na ordem da narrativa ou na escolha das perspectivas modificaria o sentido romanesco do acontecimento. Um romance, um poema, um quadro, uma peça musical são indivíduos, quer dizer, seres em que não se pode distinguir a expressão do expresso, cujo sentido só é acessível por um contato direto, e que irradiam sua signifi-(p. 210)-cação sem abandonar seu lugar temporal e espacial. É nesse sentido que nosso corpo é comparável à obra de arte. Ele é um nó de significações vivas e não a lei de um certo número de termos co-variantes. Uma certa experiência tátil do braço significa uma certa experiência tátil do antebraço e dos ombros, um certo aspecto visual do mesmo braço, não que as diferentes percepções táteis, as percepções táteis e as percepções visuais participem todas de um mesmo braço inteligível, como as visões perspectivas de um cubo da idéia do cubo, mas porque o braço visto e o braço tocado, como os diferentes segmentos do braço,jazem, em conjunto, um mesmo gesto.

Do mesmo modo que acima o hábito motor esclarecia a natureza particular do espaço corporal, aqui o hábito em geral permite compreender a síntese geral do corpo próprio. E, do mesmo modo que a análise da espacialidade corporal antecipava a análise da unidade do corpo próprio, agora podemos estender a todos os hábitos o que dissemos dos hábitos motores. Na verdade, todo hábito é ao mesmo tempo motor e perceptivo, porque, como dissemos, reside, entre e percepção explícita e o movimento efetivo, nesta função fundamental que delimita ao mesmo tempo nosso campo de visão e nosso campo de ação. A exploração dos objetos com uma bengala, que há pouco apresentávamos como um exemplo de hábito motor, também é um exemplo de hábito perceptivo. Quando a bengala se torna um instrumento familiar, o mundo dos objetos táteis recua e não mais começa na epiderme da mão, mas na extremidade da bengala. É-se tentado a dizer que, através das sensações produzidas pela pressão da bengala na mão, o cego constrói a bengala e suas diferentes posições, depois que estas, por sua vez, medeiam um objeto à segunda potência, o objeto externo. A percepção seria sem-pre uma leitura dos mesmos dados sensíveis, ela apenas se faria cada vez mais rapidamente, a partir de signos cada vez-(p.211)-mais claros. Mas o hábito não consiste em interpretar as pressões da bengala na mão como signos de certas posições da bengala, e estas como signos de um objeto exterior, já que ele nos dispensa de fazê-lo. As pressões na mão e a bengala não são mais dados, a bengala não é mais um objeto que o cego perceberia, mas um instrumento com o qual ele percebe. A bengala é um apêndice do corpo, uma extensão da síntese corporal. Correlativamente, o objeto exterior não é o geometral ou o invariante de uma série de perspectivas, mas uma coisa em direção à qual a bengala nos conduz e da qual, segundo a evidência perspectiva, as perspectivas não são índi-ces, mas aspectos. O intelectualismo só pode conceber a passagem da perspectiva à própria coisa, do signo à significação como uma interpretação, uma apercepção, uma intenção de conhecimento. Os dados sensíveis e as perspectivas seriam, em cada nível, conteúdos apreendidos como (aujgefasst ais) manifestações de um mesmo núcleo inteligível . Mas essa análise deforma ao mesmo tempo o signo e a significação; ela separa um do outro, objetivando-Ihes o conteúdo sensível, que já é "pregnante" de um sentido, e o núcleo invariante, que não é uma lei mas uma coisa; ela mascara a relação orgânica entre o sujeito e o mundo, a transcendência ativa da consciência, o movimento pelo qual ela se lança em uma coisa e em um mundo por meio de seus órgãos e de seus instrumentos. A análise do hábito motor enquanto extensão da existência prolonga-se portanto em uma análise do hábito perceptivo enquanto aquisição de um mundo. Reciprocamente, todo hábito perceptivo é ainda um hábito motor, e ainda aqui a apreensão de uma significação se faz pelo corpo. Quando a criança se habitua a distinguir o azul do vermelho, constata-se que o hábito adquirido a respeito desse par de cores be-neficia todas as outras10. Será então que através do par azul vermelho a criança percebeu a significação "cor", que o momento decisivo do hábito está nessa tomada de consciência, -(p.212)- nesse advento de um "ponto de vista da cor", nessa análise inteletual que subsume os dados a uma categoria? Mas, para que a criança possa perceber o azul e o vermelho sob a categoria de cor, é preciso que esta se enraíze nos dados, sem o que nenhuma subsunção poderia reconhecê-Ia neles -

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primeiramente é preciso que, nos painéis "azuis" e "vernelhos" que lhe apresentam, se manifeste esta maneira particular de vibrar e de atingir o olhar que chamamos de azul e de vermelho. Com o olhar, dispomos de um instrumento natural comparável à bengala do cego. O olhar obtém mais ou menos das coisas segundo a maneira pela qual ele as interroga, pela qual ele desliza ou se apóia nelas. Aprender a ver as cores é adquirir um certo estilo de visão, um novo uso do corpo próprio, é enriquecer e reorganizar o esquema corporal. Sistema de potências motoras ou de potências perceptivas, nosso corpo não é objeto para um "eu penso": ele é um conjunto de significações vividas que caminha para seu equilíbrio. Por vezes forma-se um novo nó de significações: nossos mo-vimentos antigos integram-se a uma nova entidade motora, os primeiros dados da visão a uma nova entidade sensorial, repentinamente nossos poderes naturais vão ao encontro de uma significação mais rica que até então estava apenas indicada em nosso campo perceptivo ou prático, só se anunciava em nossa experiência por uma certa falta, e cujo advento reorganiza subitamente nosso equilíbrio e preenche nossa expectativa cega.