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ATIVISMO OU PASSIVISMO JUDICIAL? O PROBLEMA DA LEGITIMIDADE DEMOCRÁTICA DAS DECISÕES JURÍDICAS EM RONALD DWORKIN * Rafael Simioni ** SUMÁRIO: 1 Introdução; 2 Princípios e regras; 3 Princípios morais e políticas públicas; 4 Identificação dos princípios; 5 Hard cases e a força dos argumentos de princípio; 6 Argumentos de princípio e argumentos de política; 7 O problema da legitimidade democrática da decisão jurídica; 8 Conclusões; Referências. RESUMO: Esse artigo objetiva explicitar e discutir a distinção traçada por Ronald Dworkin entre regras (rules), princípios (principles) e políticas públicas (policies). Dentre os vários estímulos pós-positivistas dessa concepção hermenêutica substancialista de direito, a distinção de Dworkin entre regras, princípios e política públicas permite entender de modo mais adequado como a prática interpretativa das decisões jurídicas articula argumentos de princípio e argumentos de política, colocando sob uma nova luz os problemas do ativismo e da legitimidade democrática das decisões jurídicas. PALAVRAS-CHAVE: princípios. políticas públicas. decisão jurídica. ativismo judicial. Ronald Dworkin. ABSTRACT: This paper aims at making explicit and discussing the distinction drawn by Ronald Dworkin between rules, principles and political policies. Among the several post-positivist stimuli of this substantialist and hermeneutic conception of law, Dworkin’s distinction of rules, principles and political policies provides a more adequate way of understanding how legal interpretations articulate principle arguments and policy arguments, bringing new light to the issue of activism and democratic legitimacy in legal decisions. KEY-WORDS: principles. political policies. legal decisions. judicial activism. Ronald Dworkin. 1 INTRODUÇÃO Depois dos neopositivismos de Hans Kelsen e Hart, baseados na análise lingüística do direito, o atual e assim chamado “pós-positivismo jurídico” se divide entre duas grandes perspectivas teóricas. De um lado, tem-se a linha procedimentalista, que parte da convicção de que em uma sociedade pós-metafísica não há mais valores éticos ou princípios morais capazes de universalização em uma perspectiva substancial. De outro lado, tem-se a linha substancialista, que sustenta não só a possibilidade, mas a necessidade de se fundamentar adequadamente a existência de princípios morais e valores éticos substanciais. Na linha procedimentalista nós podemos encontrar pensadores do quilate de Robert Alexy, Klaus Gunther, Jürgen Habermas, dentre outros. E na linha substancialista podem ser encontrados pensadores igualmente importantes do direito, como Ronald Dworkin, Castanheira Neves, Lenio Streck e todos aqueles reunidos sob a perspectiva da hermenêutica filosófica. E não se pode deixar de mencionar também as linhas institucionalistas (MACCORMICK, 1986; 2007) e pragmatistas (POSNER, 2003; 2008), que existem no direito norte-americano e que começaram a despertar, nos últimos tempos, um interesse maior no âmbito do neo-constitucionalismo brasileiro. * Pesquisa realizada no âmbito do Projeto Decisão Jurídica e Democracia (PPGD/FDSM), com o apoio do CNPq. ** Doutor em Direito, Professor do Programa de Mestrado em Direito da Faculdade de Direito do Sul de Minas, pesquisador líder do Grupo de Pesquisa Tertium Datur (PPGD/FDSM), bolsista da Capes em Estágio Pós-Doutoral na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra

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  • ATIVISMO OU PASSIVISMO JUDICIAL? O PROBLEMA DA LEGITIMIDADE DEMOCRTICA DAS DECISES JURDICAS

    EM RONALD DWORKIN*

    Rafael Simioni**

    SUMRIO: 1 Introduo; 2 Princpios e regras; 3 Princpios morais e polticas pblicas; 4 Identificao dos princpios; 5 Hard cases e a fora dos argumentos de princpio; 6 Argumentos de princpio e argumentos de poltica; 7 O problema da legitimidade democrtica da deciso jurdica; 8 Concluses; Referncias.

    RESUMO: Esse artigo objetiva explicitar e discutir a distino traada por Ronald Dworkin entre regras (rules), princpios (principles) e polticas pblicas (policies). Dentre os vrios estmulos ps-positivistas dessa concepo hermenutica substancialista de direito, a distino de Dworkin entre regras, princpios e poltica pblicas permite entender de modo mais adequado como a prtica interpretativa das decises jurdicas articula argumentos de princpio e argumentos de poltica, colocando sob uma nova luz os problemas do ativismo e da legitimidade democrtica das decises jurdicas. PALAVRAS-CHAVE: princpios. polticas pblicas. deciso jurdica. ativismo judicial. Ronald Dworkin.

    ABSTRACT: This paper aims at making explicit and discussing the distinction drawn by Ronald Dworkin between rules, principles and political policies. Among the several post-positivist stimuli of this substantialist and hermeneutic conception of law, Dworkins distinction of rules, principles and political policies provides a more adequate way of understanding how legal interpretations articulate principle arguments and policy arguments, bringing new light to the issue of activism and democratic legitimacy in legal decisions. KEY-WORDS: principles. political policies. legal decisions. judicial activism. Ronald Dworkin.

    1 INTRODUO

    Depois dos neopositivismos de Hans Kelsen e Hart, baseados na anlise lingstica do direito, o atual e assim chamado ps-positivismo jurdico se divide entre duas grandes perspectivas tericas. De um lado, tem-se a linha procedimentalista, que parte da convico de que em uma sociedade ps-metafsica no h mais valores ticos ou princpios morais capazes de universalizao em uma perspectiva substancial. De outro lado, tem-se a linha substancialista, que sustenta no s a possibilidade, mas a necessidade de se fundamentar adequadamente a existncia de princpios morais e valores ticos substanciais.

    Na linha procedimentalista ns podemos encontrar pensadores do quilate de Robert Alexy, Klaus Gunther, Jrgen Habermas, dentre outros. E na linha substancialista podem ser encontrados pensadores igualmente importantes do direito, como Ronald Dworkin, Castanheira Neves, Lenio Streck e todos aqueles reunidos sob a perspectiva da hermenutica filosfica. E no se pode deixar de mencionar tambm as linhas institucionalistas (MACCORMICK, 1986; 2007) e pragmatistas (POSNER, 2003; 2008), que existem no direito norte-americano e que comearam a despertar, nos ltimos tempos, um interesse maior no mbito do neo-constitucionalismo brasileiro.

    * Pesquisa realizada no mbito do Projeto Deciso Jurdica e Democracia (PPGD/FDSM), com o apoio do CNPq.

    ** Doutor em Direito, Professor do Programa de Mestrado em Direito da Faculdade de Direito do Sul de Minas, pesquisador lder do Grupo de Pesquisa Tertium Datur (PPGD/FDSM), bolsista da Capes em Estgio Ps-Doutoral na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra

  • Naturalmente, existem srias divergncias dentro de cada perspectiva terica do direito. As crticas de Habermas a Alexy so ilustrativas, como tambm o so as crticas de Castanheira Neves a Dworkin. H muito trabalho ainda a ser feito e desafios importantes a serem superados. De qualquer modo, um dos estmulos mais importantes dessa linha substancialista, sem dvida, foi dado por Ronald Dworkin, um dos principais representantes daquilo que hoje se convencionou chamar de ps-positivismo jurdico, quer dizer, uma perspectiva terica que procura resgatar os princpios morais e os valores ticos para dentro da racionalidade do direito.

    Dentre as vrias e profundas transformaes da concepo de direito promovidas pelo substancialismo hermenutico de Dworkin, nesta pesquisa ns pretendemos explicitar e discutir uma distino fundamental da teoria de Dworkin, que a distino entre regras, princpios e polticas pblicas.

    Essa distino importante no apenas porque ela aponta para uma possvel superao hermenutica do problema das colises de preceitos fundamentais, mas tambm porque ela permite um certo nvel de equilbrio na tenso entre constitucionalismo e democracia. Afinal, na medida em que as decises jurdicas comeam a interferir na definio democrtica de polticas pblicas, a questo da legitimidade democrtica das decises jurdicas torna-se um problema.

    Esse problema tangencia, tambm, a questo da alternativa entre ativismo ou passivismo judicial, j que a deciso jurdica que decide sobre polticas pblicas ou que decide orientada s conseqncias polticas, econmicas etc. dos seus possveis efeitos, torna-se uma deciso jurdica estratgica, instrumental, pragmatista, tpica das decises polticas. E como tal, logo surge a questo da legitimidade democrtica de uma deciso jurdica que invade a esfera do poltico.

    No que segue, pretende-se explicitar a diferena traada por Dworkin entre regras, princpios e polticas pblicas, para demonstrar o critrio indicado para a identificao dos princpios, o modo por meio do qual os argumentos de princpio so articulados nas decises jurdicas e, por fim, o encaminhamento dado por Dworkin ao problema da legitimidade democrtica das decises jurdicas.

    2 PRINCPIOS E REGRAS

    At Kelsen (2003) e Hart (1997), falava-se em normas jurdicas e princpios gerais do direito. Haviam normas jurdicas que eram princpios como os direitos fundamentais e normas jurdicas que no eram princpios. Mas todo o direito positivo era norma jurdica (Raz, 2009). Os princpios gerais do direito eram utilizados apenas como tcnica de integrao das lacunas. Eram apenas cartas na manga ou trunfos utilizados para justificar uma resposta do direito diante de lacunas normativas. Nunca se admitiu uma leitura moral das normas jurdicas, porque o direito era uma questo lingstica, uma questo emprica de existncia ou no de textos jurdicos.

    Talvez a partir da distino de Esser entre normas jurdicas e princpios jurdicos, Dworkin estabelece uma distino importante entre regras (rules), princpios (principles) e polticas pblicas (policies), que inclusive influenciou bastante as teorias procedimentalistas, especialmente a de Robert Alexy (1993) que tambm traa uma distino entre princpios e regras, mas de um modo radicalmente diferente de Dworkin.

    Essa distino de Dworkin to importante que hoje nem mais se fala em norma jurdica. Apenas se fala em regras e princpios. Mas ao contrrio de Castanheira Neves, Alexy e outros, em Dworkin os princpios no so espcies do gnero norma. Os princpios so questes de fundamento e eles no precisam estar necessariamente positivados em leis ou em precedentes, para o caso do common law.

  • Dworkin observa que na prtica das decises judiciais, e especialmente nos casos difceis, os juzes recorrem a regras que no fazem parte do direito positivo. Especialmente nos casos onde no h uma soluo fcil no direito positivo, as decises jurdicas muitas vezes recorrem a padres normativos exteriores ao direito positivo. E geralmente esses padres exteriores ao direito positivo so princpios morais e objetivos polticos, alm de outros padres no to recorrentes (DWORKIN, 1978, p. 22).

    Depois da teoria pura do direito de Kelsen, esses padres morais, polticos, religiosos etc. foram afastados do direito como questes de poltica jurdica, no de proposies cientficas sobre o direito. Mas apesar desses padres ficarem de fora da teoria pura do direito de Kelsen como questes exteriores ao direito, esses padres so, de fato, utilizados na prtica das decises jurdicas, especialmente na prtica das decises sobre casos difceis, casos que no tm uma resposta simples do direito positivo (BREYER, 2006, p. 3).

    Para poder trabalhar esses padres, tradicionalmente externos ao direito, em uma teoria jurdica mais abrangente e conseqente, Dworkin vai traar a distino entre regras jurdicas e princpios.

    As regras so as normas jurdicas do direito positivo, isto , as normas jurdicas escritas, que impem direitos e obrigaes (DWORKIN, 1978, p. 24) ou em termos de lgica modal, aquelas normas jurdicas que obrigam, probem ou facultam algo. A aplicao das regras uma questo de tudo ou nada. Ou a regra vlida ou ela no . No h meio termo, no h graduao. A regra ou se aplica ou no se aplica, vlida ou no , cumprida ou descumprida. Uma regra no aceita medidas ou graus de cumprimento. Ou se observa totalmente a regra, ou se a viola. Um exemplo de regra aquela norma que define o limite de velocidade nas estradas. Ou est dentro ou est fora do limite. No h meio termo.

    Problemas de coliso entre regras se resolvem mediante a criao de excees ou mediante critrios que permitam decidir qual das regras invlida como as regras de aplicao da lei no tempo e no espao. E o prprio direito positivo pode criar tambm regras que criam excees aplicao de outras regras mais gerais, por exemplo prevendo circunstncias especiais que diferenciam o caso de aplicao da regra geral e o caso de aplicao da regra de exceo. De modo que um enunciado correto da regra, quer dizer, uma interpretao correta da regra, tem que levar em considerao no apenas a regra, mas tambm todas as excees, quer dizer, todas as demais regras que formam o instituto jurdico em questo. E para isso, as teorias jurdicas criaram os tradicionais mtodos de interpretao jurdica, em especial a interpretao conhecida como sistemtica.

    J os princpios so todos os demais padres de moralidade transcendentes ao direito positivo, isto , so todos aqueles padres morais e polticos que as decises jurdicas recorrem para decidir os casos que no so suficientemente solucionados pelas regras do direito positivo (DWORKIN, 1978, p. 22). Os princpios so todos os demais padres normativos que no so regras, que esto para alm do direito positivo.

    Princpios so muito diferentes das regras em vrios aspectos. Princpios no estabelecem as condies prvias de sua aplicao, tal como fazem as regras. E por isso os princpios no so questes de tudo ou nada. O seu cumprimento no uma questo de correo, mas de adequao, de coerncia. Os princpios no so vlidos ou invlidos, mas sim questes de peso, de importncia, questes de fundamento, de justificao adequada. Princpios prevalecem ou no prevalecem.

    Para Dworkin, os princpios enunciam razes que conduzem a interpretao e a argumentao jurdica para uma certa direo. No so questes de certo e errado, validade ou invalidade. So convices que justificam o encaminhamento da soluo

  • para uma direo e no outra. Os princpios so questes de peso na justificao de uma deciso jurdica, que se revelam na forma de razes que inclinam a deciso para uma ou outra deciso (Dworkin, 1978, p. 26). Princpios no so regras contrafticas, so pontos de vista para uma interpretao adequada dessas regras. Os princpios conferem uma posio especial que justifica a interpretao adequada do direito.

    Geralmente, quando uma regra utiliza palavras abertas ou conceitos discricionrios como razovel, injusto, significativo, funo social, boa f etc., isso faz com que a sua aplicao convide ao uso de argumentos de princpio. Os princpios so, assim, convices que vo alm das regras jurdicas. E por isso os princpios vo ser importantes, no apenas para a aplicao de regras abertas, mas tambm para a interpretao de todas as regras do direito, inclusive daquelas consideradas fechadas. Pois mais do que trunfos ou cartas na manga para casos difceis no nvel das regras, os princpios constituem os fundamentos para a justificao adequada de qualquer deciso jurdica.

    3 PRINCPIOS MORAIS E POLTICAS PBLICAS

    Os princpios abrangem tanto os princpios morais quanto os objetivos polticos do governo. Assim, dentro do gnero princpios, Dworkin observa inicialmente que existem duas espcies muito importantes na prtica das decises judiciais e que so bastante recorrentes nas decises sobre casos difceis: o uso de argumentos baseados em princpios morais e o uso de argumentos baseados na conformidade da deciso com os objetivos das polticas pblicas do governo que Dworkin (1978, p. 22) chama de policies.

    Os objetivos polticos do governo (policies), na linguagem do direito e da poltica brasileira, podem ser simplesmente identificados sob o nome de polticas pblicas, tais como as polticas econmicas, as polticas afirmativas, as polticas ambientais, as polticas de segurana pblica, de desenvolvimento agrrio etc. Esses objetivos polticos no so regras jurdicas, mas so padres que, de fato, as decises judiciais utilizam para justificar suas concluses.

    E ao lado dos argumentos baseados nos objetivos das polticas pblicas, Dworkin observa tambm o uso de princpios morais, tais como as exigncias de justia e equidade. Esses princpios vo desempenhar um papel muito importante para a concepo de direito como integridade (DWORKIN, 1986, p. 165). Pois os princpios morais constituem os fundamentos que permitem uma deciso adequada e justificada em favor de uma soluo jurdica. Os princpios morais so convices que permitem inclusive explicar uma conduta.

    Essa distino entre princpios morais e polticas pblicas ento se torna importante. Porque ns podemos interpretar uma lei e ver ela tanto como expresso de um princpio moral, quanto como expresso de uma poltica pblica (Dworkin, 1978, p. 23). Essa deciso depende uma atitude fundamental do intrprete entre, por um lado, considerar o direito de modo instrumental-estratgico, como um instrumento da poltica do governo para o bem estar geral e ajustar a interpretao a essas polticas pblicas ou, de outro, considerar o direito em sua integridade e coerncia com princpios de moralidade poltica, para ajustar a interpretao do direito quilo que revela o seu melhor valor, a sua maior virtude.

    A importncia da distino, no campo dos princpios, entre princpios morais e polticas pblicas, est no fato de que pode haver coliso entre eles. Uma determinada poltica pblica do governo, que poderia em tese ser um argumento de peso para decidir um caso difcil, pode contrariar convices morais importantes da comunidade. As

  • polticas afirmativas de cotas raciais um excelente exemplo da dificuldade que uma deciso jurdica pode sofrer se pretender encontrar uma coerncia entre os objetivos das polticas pblicas de cotas raciais do governo e as convices morais da comunidade como um todo. Dworkin vai propor uma soluo para essa exigncia de coerncia, que no podemos discutir aqui. Agora importante ter presente a distino entre princpios morais e polticas pblicas.

    Os princpios, contudo, no esto acima das regras, no esto acima, mais alm ou mais a priori do direito positivo. Mas nem esto abaixo, como se fossem apenas suplementos argumentativos utilizados pela deciso quando no h uma soluo fcil para o caso. No h nenhuma relao hierrquica entre princpios e regras. Os princpios esto em outro nvel, outra dimenso, que dimenso hermenutica, a dimenso da prtica da interpretao. Os princpios esto nas convices que guiam a interpretao das regras na direo do melhor direito possvel para o caso.

    E o uso desses princpios tambm no pode ser discricionrio, quer dizer, os princpios no podem ser entendidos como meras convices pessoais do decisor a respeito do que seria um ideal de justia para o caso, tampouco podem ser entendidos como opinies subjetivas ativistas sobre polticas pblicas do governo. A construo de Dworkin, nesse aspecto, vai ser bastante refinada e exigente em termos de coerncia e integridade.

    E ela parte de uma constatao fundamental: se quisermos ir alm do positivismo e tratar tambm os princpios como direito, devemos renunciar armadilha semntica do positivismo jurdico. Pois em nome da segurana lingstica, o positivismo exclui os princpios translegais de seu mbito de interpretao ou os inclui apenas na forma da discricionariedade da deciso jurdica. Para o positivismo, s direito o direito criado em conformidade com seus prprios procedimentos de criao vlida. Para Dworkin, o direito uma atitude interpretativa que, inevitavelmente, faz aflorar todas as convices de moral pessoal do julgador e que exige o confronto dessas convices pessoais com convices mais superiores, que so os princpios de moralidade poltica da comunidade. Mais superiores no em termos de hierarquia em um ordenamento jurdico positivo, mas sim superiores em termos hermenuticos, quer dizer, superiores em termos de peso na interpretao do direito.

    A introduo das questes de princpio no mbito do direito transforma o prprio sentido do dever jurdico. Ao invs de um dever baseado convenes polticas do passado leis, constituies, precedentes jurisprudenciais que o direito mesmo dota de validade positiva, o dever jurdico passa a encontrar a sua justificao em convices de moral poltica, que so mais fortes do que as convices contra a existncia desse dever (DWORKIN, 1978, p. 44).

    O sentido do direito passa ento a ser uma questo de princpios, uma questo de interpretao coerente de princpios, e no mais uma simples questo semntica de subsuno e aplicao de regras. Dworkin substitui assim a concepo positivista das anlises lingsticas do direito por uma concepo hermenutica, que quer ver o direito como uma atitude interpretativa decente, baseada no apenas nos textos jurdicos, mas tambm em convices morais importantes e coerentes tanto com a histria jurdica do passado, quanto com o projeto poltico do futuro da comunidade. Trata-se, em sntese, de uma proposta de leitura moral do direito.

    4 IDENTIFICAO DOS PRINCPIOS

    Tradicionalmente, as teorias do direito indicam vrios critrios diferentes para o reconhecimento de princpios. As teorias positivistas identificam os princpios nos

  • textos legais que afirmam princpios normativamente, como caso dos direitos fundamentais positivados. Outras teorias positivistas identificam os princpios naquelas normas mais genricas, que prescrevem atos inespecficos. Assim, as regras seriam aquelas normas jurdicas que prescrevem atos especficos, enquanto que os princpios seriam aquelas normas jurdicas que prescrevem atos mais genricos, mais inespecficos.

    Para Dworkin, contudo, a identificao dos princpios segue um outro critrio. Saber se um princpio um princpio da comunidade nesse sentido uma questo de argumentao (DWORKIN, 1978, p. 79, trad. livre). No uma questo de relatrio ou de textos legais. Tampouco uma questo metodolgica de teste de pedigree de princpios (DWORKIN, 1978, p. 347), como era o teste de validade de uma norma a partir da regra de reconhecimento de Hart (1997, p. 100), da rule of recognition. Pelo contrrio, a questo dos princpios sempre uma questo de peso na argumentao. No uma questo de hbito (Austin), nem de reconhecimento, tampouco de status dentro da idia de um sistema hierrquico de regras jurdicas, nem mesmo uma questo de pedigree moral segundo qualquer teoria poltica. Os princpios no so apenas normas no sentido positivista de regras que ordenam, probem ou facultam algo. Os princpios so justificaes, so a base para as instituies e leis da comunidade. Sos os padres de moralidade poltica da comunidade que justificam nossas prticas.

    Se h um teste de pedigree capaz de identificar um princpio como um princpio de moralidade poltica, ento esse teste deve ser realizado segundo a capacidade do princpio em propiciar uma justificao mais adequada e melhor justificada da interpretao do direito. E isso pressupe no qualquer teoria poltica, mas uma teoria da moralidade poltica convincente, capaz de colocar a interpretao jurdica sob sua melhor luz, capaz de revelar, do melhor modo possvel, a virtude do direito.

    A identificao dos princpios, portanto, s pode ser realizada argumentativamente. Mas no no sentido das teorias procedimentalistas da argumentao. E sim no sentido de que os princpios so aqueles fundamentos, so aquelas razes de ser das regras, que melhor justificam as nossas prticas. Os princpios so aquelas pr-suposies, aquelas pr-concepes, que ns utilizamos para justificar a interpretao de uma regra como a melhor interpretao possvel para os casos. Os princpios so aquelas convices de moralidade poltica mais profundas, mais intuitivas, mais originais e autnticas, que justificam uma determinada interpretao do direito como a melhor interpretao possvel.

    E no se tratam de convices morais subjetivas, pois h uma diferena importante entre moralidade pessoal e moralidade poltica, quer dizer, entre aquilo que ns individualmente consideramos correto e aquilo que correto para a comunidade como um todo. A questo dos princpios uma questo de moralidade objetiva (DWORKIN, 2000, p. 173). A moral no apenas um sentimento de justia ou uma emoo humana. O fato da escravido ser injusta um bom exemplo de que a escravido injusta por princpio. As questes de aborto e eutansia tambm so bons exemplos de questes de princpio, porque apesar das provveis divergncias que esses dois temas suscitam, nenhum jurista sensato discorda que a vida humana, em qualquer forma, tem um valor sagrado, inerente, e quaisquer de nossas escolhas sobre o nascimento ou a morte devem ser feitas, na medida do possvel, de modo que seja respeitado, e no degradado, esse profundo valor (DWORKIN, 2009, p. VII). Alm disso, a prpria questo de se os julgamentos morais podem ser objetivos j uma questo de moralidade objetiva.

  • 5 HARD CASES E A FORA DOS ARGUMENTOS DE PRINCPIO

    Casos difceis so aqueles casos que, do ponto de vista das teorias do positivismo jurdico, no podem ser submetidos a uma regra clara de direito (Dworkin, 1978, p. 81). So aqueles casos que, do ponto de vista do positivismo jurdico, admitem duas ou mais respostas igualmente justificveis nos textos legais.

    Para esses casos, as teorias positivistas do direito afirmam que no h uma nica resposta correta do direito. E como no h uma nica resposta correta, ento a deciso jurdica precisa escolher uma dentre as vrias solues jurdicas possveis. E assim as teorias positivistas justificam essa escolha como um ato discricionrio do juiz. Quando h duas ou mais respostas igualmente corretas do ponto de vista do positivismo jurdico, a deciso jurdica poderia escolher entre uma dessas e essa escolha estaria justificada em um poder discricionrio.

    Entretanto, essa justificativa da discricionariedade da deciso jurdica representa um problema grave para o direito. Pois a deciso que cria direito discricionariamente afirma uma contradio insustentvel: a deciso afirma que havia um direito pr-existente da parte que ganhou a ao e, ao mesmo tempo, cria direito novo. Em outras palavras, a deciso jurdica reconhece o direito de uma das partes como um direito pr-existente nos textos legais, mas justifica esse reconhecimento na forma de um ato discricionrio do juiz. E isso significa que a deciso cria direito novo e o aplica retroativamente.

    Dworkin pretende demonstrar que, mesmo nos casos difceis, sempre h uma resposta correta do direito. E o juiz continua tendo o dever de descobrir quais so os direitos das partes e no inventar novos direitos para aplic-los retroativamente. Claro que no h um procedimento ou uma metodologia mecnica para se encontrar a resposta correta do direito para os casos difceis. Mas Dworkin vai demonstrar que, apesar das divergncias jurdicas que um caso difcil pode levantar, apesar das discusses e dissensos que uma questo difcil pode suscitar, isso no significa que a reposta correta do direito seja impossvel de ser demonstrada (DWORKIN, 1978, p. 279).

    Naturalmente, no mbito do positivismo jurdico, no possvel demonstrar que existem respostas corretas. Porque o positivismo v o direito como uma questo semntica que pergunta se um caso concreto se encaixa ou no se encaixa na descrio contida nos textos jurdicos. Logo, para o positivismo, uma descrio jurdica mais vaga, que exige uma interpretao construtiva, sempre aparecer como uma moldura dentro da qual a deciso jurdica pode ser discricionria (KELSEN, 2003, p. 393). Sempre aparecer como uma impreciso lingstica que autoriza vrias respostas igualmente corretas. Mas igualmente corretas apenas do ponto de vista do positivismo jurdico. Porque se ns sairmos do positivismo e assumirmos a prtica jurdica como uma prtica de interpretao construtiva do direito, ento uma nova luz a respeito da resposta correta do direito poder ser lanada.

    Afinal, o princpio do direito um ideal mais nobre do que o dos textos jurdicos. E por isso aspiramos que uma deciso judicial seja uma questo de princpio (DWORKIN, 2000, p. 131, trad. livre). Claro que, com freqncia, os juzes apresentam argumentos de princpio equivocados. Mas mesmo com as tentativas frustradas, o direito sempre sai ganhando. Pois mesmo que os direitos e obrigaes que os cidados tm no sejam claros, pelo menos eles so encorajados a supor que todos tm direitos e obrigaes, que merecem ser reconhecidos pelos tribunais.

  • 6 ARGUMENTOS DE PRINCPIO E ARGUMENTOS DE POLTICA

    Na tradio do positivismo jurdico, as teorias da deciso jurdica sempre recomendam que a interpretao, a argumentao e a deciso jurdica sejam realizadas sombra da legislao. Quer dizer, a deciso jurdica no pode se afastar do direito positivo. Desde Montesquieu se tem a concepo de que a deciso jurdica deve aplicar o direito e no cri-lo. E mesmo nos casos difceis, onde no h uma soluo jurdica clara do direito, a deciso deve adotar uma atitude discricionria para criar o direito dentro da moldura na conhecida expresso de Kelsen do ordenamento jurdico como um todo.

    Mas alm dessa subordinao da deciso jurdica legislao, h tambm um outro nvel de subordinao que tem se tornado cada vez mais importante na prtica das decises jurdicas sobre casos difceis: a subordinao a princpios que justificam as prticas da deciso jurdica (DWORKIN, 1978, p. 82). Isso acontece porque, como Kelsen j havia observado, a escolha de uma dentre as vrias respostas possveis do direito, uma escolha poltica. E por isso, a justificao da deciso jurdica, nesses casos difceis, deve apresentar-se subordinada no s ao ordenamento jurdico como um todo, mas tambm deve apresentar-se subordinada a convices polticas da comunidade. Deve apresentar-se subordinada a convices de princpios.

    Como acima observado, Dworkin traa uma distino entre regras e princpios, sendo que os princpios podem ser didaticamente subdivididos em princpios morais e polticas pblicas. Agora se torna importante observar como a deciso jurdica utiliza esses princpios morais e essas polticas pblicas como formas de argumentao jurdica, como formas de justificao de convices polticas mais profundas para justificar a escolha da resposta do direito para os casos difceis.

    Para Dworkin (1978, p. 82), Arguments of policy justify a political decision by showing that the decision advances or protects some collective goal of the community as a whole. Em outras palavras, os argumentos de poltica, quer dizer, os argumentos baseados na orientao s polticas pblicas do governo, produzem fortes convices para a justificao de uma deciso jurdica. Isso porque esses argumentos procuram demonstrar que a deciso jurdica fomenta, protege ou est em conformidade com os objetivos polticos da comunidade como um todo. Esse tipo de argumentao utiliza uma poltica pblica do governo como justificao da deciso jurdica. Se o governo, por exemplo, traa como uma poltica pblica importante o estmulo s exportaes e reduo das importaes, ento a deciso jurdica pode usar esse valor como justificativa para decidir casos difceis sobre contratos de leasing internacional. Ou se o governo institui uma poltica pblica afirmativa de incluso escolar de crianas, essa poltica pode ser utilizada como um forte argumento para uma deciso jurdica proibir o trabalho de crianas e adolescentes na agricultura familiar em horrio incompatvel com o horrio escolar ou para obrigar uma alocao adequada do tempo etc.

    J os argumentos de princpio, que so argumentos baseados em convices morais da comunidade, tambm produzem fortes convices para a justificao de uma deciso jurdica. Mas diferentemente dos argumentos de poltica, os argumentos de princpio procuram demonstrar que a deciso jurdica respeita ou garante direitos individuais ou coletivos. Para Dworkin (1978, p. 82), Arguments of principle justify a political decision by showing that the decision respects or secures some individual or group right. Argumentos de princpios so aqueles que, por exemplo, afirmam direitos igualdade de considerao e respeito de indivduos ou grupos minoritrios diante dos direitos de grupos majoritrios; ou que afirmam direitos no-discriminao. Enquanto um argumento de poltica pode justificar subsdios para estimular o desenvolvimento de

  • um determinado setor da economia, os argumentos de princpio procuram justificar a igualdade de tratamento quando no h motivos morais para discriminaes.

    Os argumentos de princpio procuram justificar que algum ou um grupo de pessoas tem um direito por uma questo de princpio. So argumentos insensveis escolha, porque mesmo quando uma maioria democrtica decida contra argumentos de princpio, os princpios devem prevalecer, como por exemplo, nos casos de pena de morte (DWORKIN, 2002, p. 204). Enquanto que os argumentos de poltica procuram justificar que algum ou um grupo de pessoas, apesar de no ter um direito, devem ser beneficiados pela concesso do direito porque se trata de um objetivo poltico pretendido pelo governo. So, portanto, argumentos sensveis escolha democrtica, pois essas questes de polticas pblicas so questes que dependem da escolha de preferncias feitas pela comunidade poltica.

    Trata-se de uma distino importante. Porque uma coisa argumentar justificando que algum deve ter um direito, porque se trata de um objetivo poltico do governo ou da comunidade poltica democrtica. Outra coisa argumentar que algum tem um direito, porque se trata de uma questo de princpio, quer dizer, porque se trata de uma questo de moralidade poltica. Para Dworkin (1978, p. 338), a adjudication, quer dizer, a deciso judicial, uma matter of principle, uma questo de princpio.

    Esses dois tipos de argumentos, de polticas e de princpios, constituem os fundamentos que, na prtica, so utilizados para justificar as decises jurdicas. Mas segundo Dworkin, embora os argumentos de poltica possam constituir bons motivos para justificar pretenses, somente os argumentos de princpio podem constituir os melhores fundamentos para as decises jurdicas. Pois a diferena entre as decises jurdicas e as decises polticas est, justamente, no fato de que as decises jurdicas devem levar a srio os direitos, quer dizer, devem tratar os direitos como uma questo de princpio, como uma questo de moralidade poltica da comunidade.

    Assim, questes de princpios so questes que no s podem, como tambm devem, ser opostas inclusive contra a opinio das maiorias democrticas. Quer dizer, questes de princpio so questes que devem prevalecer sobre as questes de polticas pblicas. Pois os princpios de moralidade poltica so questes que no esto sujeitas a uma escolha poltica democrtica, no esto sujeitas opinio da maioria. No importa, por exemplo, se uma maioria democrtica decidiu que um pas deve instituir a pena de morte ou a escravido, pois essas questes polticas j esto decididas por princpio. So questes de princpio. Uma poltica pblica que permite as escolas punirem os estudantes por manifestaes polticas, por exemplo, uma poltica que colide com um princpio de moralidade poltica importante da comunidade, que convico de que a liberdade de conscincia central para os direitos dos cidados (DWORKIN, 2008, p. 69, trad. livre).

    S assim o constitucionalismo pode fortalecer a democracia. E s assim a jurisdio constitucional pode exercer a sua mais autntica funo, que a de garantir que, mesmo contra a opinio das maiorias, existem princpios de moralidade poltica que devem ser respeitados por questo de princpio, por uma questo insensvel s escolhas polticas da maioria democrtica, por uma questo que no depende de argumentos de poltica ou de eficincia econmica.

    Se nos casos difceis a escolha de uma entre as vrias solues jurdicas possveis pela deciso jurdica uma escolha poltica, ento a deciso jurdica precisa assumir o seu carter poltico e utilizar tanto argumentos de poltica quanto argumentos de princpio, mas prevalecendo sempre os argumentos de princpio. E isso significa que a deciso jurdica, diante dos casos difceis, precisa extrapolar o direito positivo, precisa ir alm dos textos legais, para encontrar a sua justificao correta tambm em

  • argumentos de poltica, mas principalmente em argumentos de princpio. A deciso jurdica precisa, em outras palavras, admitir seu inevitvel carter poltico e, como tal, procurar justificar-se tambm politicamente e no s no direito em vigor, j que nos casos difceis esse direito no claro.

    7 O PROBLEMA DA LEGITIMIDADE DEMOCRTICA DA DECISO JURDICA

    Quando uma lei promulgada instituindo uma determinada poltica pblica, os direitos previstos nessa lei deixam de ser questes de poltica pblica para ser uma questo de princpio (DWORKIN, 1978, p. 83).

    Algum pode invocar um direito com base em uma poltica pblica do governo para v-lo reconhecido pela deciso jurdica. Mas se esse direito encontra-se previsto na lei, a questo j no mais de argumentao poltica, mas sim de argumentao de princpio. o caso, por exemplo, da diferena entre justificar um direito sade porque a prestao do servio pblico de sade constitui uma poltica pblica do governo necessria para o bem estar da comunidade como um todo e necessria tambm para atingir o objetivo maior de uma populao saudvel para a promoo do desenvolvimento nacional argumento de poltica ; e justificar um direito sade porque esse direito j se encontra reconhecido na lei argumento de princpio.

    O problema que nos casos difceis os direitos no so claros. O reconhecimento de um direito prvio na lei no est claro ou est em coliso com outro direito. Ento surge a questo da deciso jurdica precisar ir alm do direito positivo para justificar adequadamente a sua resposta aos casos difceis, por meio de argumentos de poltica e de princpio. Mas ao utilizar argumentos de poltica, a deciso jurdica se politiza. E isso significa que, como deciso poltica, a escolha da resposta correta do direito tambm precisa enfrentar a questo da sua legitimidade democrtica.

    Para evitar esse problema da legitimidade democrtica da deciso jurdica, Dworkin (1978, p. 84) recomenda que a deciso jurdica utilize apenas argumentos de princpio e no de polticas pblicas. Essa recomendao tem vrias razes. A primeira razo a de que uma argumentao baseada em polticas pblicas coloca muitos problemas de legitimidade democrtica da deciso, j que os juzes no so eleitos democraticamente como representantes polticos do povo, nem podem estar submetidos opinio pblica ou a negociaes polticas de compromissos partidrios.

    Uma segunda razo forte para a deciso jurdica no recorrer a argumentos de polticas pblicas est no fato de que a deciso jurdica no pode decidir os direitos das pessoas segundo as opes polticas do governo atual, j que o judicirio deve ser responsvel tambm pelos direitos das minorias polticas, independentemente das trocas de governo a cada eleio.

    Essas duas fortes objees ao uso de argumentos baseados em polticas pblicas no servem, contudo, para o uso de argumentos baseados em princpios morais (DWORKIN, 1978, p. 85). Os princpios conferem deciso jurdica uma posio mais adequada para uma melhor interpretao dos conflitos e das divergncias polticas. E por isso, os princpios morais, especialmente os princpios de moralidade poltica, vo ser muito importantes para a adequao e justificao da resposta correta do direito.

    Assim, enquanto que os argumentos baseados em princpios visam justificar direitos individuais, os argumentos baseados em polticas pblicas estabelecem objetivos coletivos. Os princpios informam direitos, as polticas pblicas informam objetivos (DWORKIN, 1978, p. 90). A fora de justificao dos argumentos baseados em polticas pblicas depende da coerncia entre o objetivo poltico e uma teoria

  • poltica geral convincente. J a fora de justificao dos argumentos baseados em princpios no depende de teorias polticas, pois as questes de princpio envolvem no apenas negociaes polticas, mas sobretudo questes de coerncia e integridade moral da comunidade.

    A diferena entre a fora dos argumentos de princpio e a dos argumentos de polticas pblicas pode variar diante dos casos concretos. Mas para Dworkin, na deciso jurdica devem prevalecer os argumentos de princpio. Pois so os princpios que tornam possvel uma interpretao adequada e justificada das prprias polticas pblicas. Afinal, o constitucionalismo um aperfeioamento da democracia somente quando, mas somente quando, sua jurisdio limitada a questes de princpio (DWORKIN, 2002, p. 209, trad. livre).

    Desse modo, com base em princpios de moralidade poltica, o problema da legitimidade democrtica de uma deciso jurdica fica resolvido, j que os juzes que decidem com base em princpios no precisam ser eleitos democraticamente, como se fossem tomar decises sobre objetivos polticos. A deciso jurdica poltica, mas no no sentido de substituir o governo ou o legislador. A deciso jurdica poltica no sentido dela ultrapassar o texto escrito das leis para encontrar em princpios de moral poltica a interpretao adequada e justificada da resposta do direito para os casos. E assim Dworkin apresenta uma soluo para a questo da justificao poltica da deciso jurdica: com base em princpios e no em polticas pblicas, a deciso deve procurar descobrir e no inventar os direitos das partes de um processo judicial1.

    Poder-se-ia objetar que essa idia de princpios de moralidade poltica depende das convices pessoais de cada juiz e, por esse motivo, a deciso estaria recorrendo s prprias convices, preferncias e objetivos pessoais do decisor (DWORKIN, 1978, p. 124). Entretanto, diferentemente da concepo positivista tradicional, que procura explicar o uso de princpios morais como suplementos das decises sobre casos difceis, para Dworkin os princpios so convices que guiam todos os atos de interpretao do direito, no apenas a interpretao dos casos difceis ou das leis vagas ou abertas.

    Toda interpretao jurdica utiliza, quer se tenha conscincia disso ou no, convices de princpio (DWORKIN, 2006, p. 9). Toda interpretao carrega consigo uma interpretao moral que parte, inevitavelmente, de uma noo intuitiva de moralidade, que John Rawls (1971) chamou de posio original. Existe uma inevitvel influncia, na interpretao do direito, pelas prprias convices polticas de quem o interpreta (DWORKIN, 2006, p. 57). A questo ento no est na possibilidade de divergncia sobre essas convices, mas sim em uma questo muito maior ou muito mais profunda: a questo da existncia de convices de moralidade poltica da comunidade to slidas e sinceras a ponto de justificar inclusive decises contrrias opinio da maioria. E isso possvel porque questes de princpio so diferentes das questes de polticas pblicas.

    8 CONCLUSES

    A questo, portanto, no ter que optar entre uma atitude ativista ou passivista na afirmao dos direitos. Para Dworkin, a deciso jurdica precisa ser ativista no que se refere a afirmao dos princpios e passivista no que se refere s polticas pblicas.

    Interpretao adequada de uma lei uma interpretao decente (DWORKIN, 1986, p. 351). uma interpretao na qual juzes sensatos devem ento decidir por si

    1 I insist that the process, even in hard cases, can sensibly be said to be aimed at discovering, rather than inventing, the rights of the parties concerned, and that the political justification of the process depends upon the soundness of that characterization (DWORKIN, 1978, p. 280).

  • mesmos qual das concepes mais honra o seu pas (Dworkin, 2006, p. 17, trad. livre). Nessa perspectiva, no h mais diferena entre texto claro ou texto obscuro. Porque a clareza ou a obscuridade do texto da lei deixa de ser um problema de interpretao sinttica ou semntica, para tornar-se uma questo de interpretao coerente, adequada, justificada, ntegra.

    Cai tambm a distino entre direito e outros sistemas de referncia comunicativos. Pois essa distino nada mais que um aguilho semntico do positivismo (Dworkin, 1986, p. 360). uma pressuposio de direito baseada na linguagem positivista dos textos. essa armadilha semntica que traa a distino entre orientao ao direito e orientao a valores exteriores ao direito. Na hermenutica de Dworkin, no h essa exterioridade. Porque ela inadequada. Ela produz a distino infecciosa entre juzes que decidem conforme ao direito e juzes que decidem com bases extralegais. Na hermenutica poltica de Dworkin, o direito s pode ser entendido como interpretao. No como qualquer interpretao, mas como uma interpretao moral, como uma leitura moral que insere a moralidade poltica no prprio mago das leis.

    E cai tambm a alternativa entre ativismo judicial e passivismo judicial. Porque os direitos no so restritos aos textos das leis ou inteno original do legislador (passivismo), tampouco justifica que o judicirio ordene tiranicamente os demais poderes a fazerem o que ele acha que deve ser feito (Dworkin, 1986, p. 378). Os direitos devem ser resultados de uma interpretao adequada ajustada s prticas histricas e justificada em princpios de moralidade poltica. A integridade exige coerncia, no passividade, muito menos ativismo judicial.

    A interpretao jurdica no deve se subordinar opinio dos polticos, pois ela tambm responsvel pela democracia, e no apenas uma boca dela. E tambm responsvel pela regra contramajoritria, pelo constitucionalismo, pela proteo dos direitos das minorias. Exatamente por esse motivo, a interpretao jurdica no pode ceder aos interesses que a maioria considera corretos.

    Mas isso no significa que a interpretao jurdica deva ser ativista. Ela no vai substituir o legislador ou o governo em assuntos de poltica pblica. Mas vai intervir em questes de princpio, vai intervir nas questes de moralidade poltica. Nas questes de polticas pblicas, onde as questes so de estratgia para atingir objetivos polticos, o ativismo da interpretao jurdica deve ser um ativismo sobre os princpios, no sobre as escolhas democrticas a respeito de prioridades polticas.

    Para Dworkin, os juzes tm a obrigao de efetivar os direitos constitucionais at o ponto em que essa efetividade deixa de ser uma questo de interesse para ser uma questo de princpio2. Portanto, importante a distino entre princpios e polticas pblicas. Pois uma coisa contestar s aplicaes (os meios empregados) das teses baseadas em princpios, outra contestar os prprios princpios. fcil dizer, como por exemplo no procedimento de ponderao de Alexy, que tal meio empregado para proteger um direito inadequado ou no necessrio em face de outras alternativas fticas possveis. Mas a contestao do direito mesmo j , bem antes de uma questo de ponderao, uma questo de princpio.

    Referindo-se Constituio norte-americana, Dworkin (2006, p. 59) afirma que ela a vela moral do barco norte-americano e temos de nos ater coragem da convico que enche essa vela: a convico de que todos ns podemos ser cidados de uma repblica moral. Trata-se de uma f nobre, e s o otimismo pode faz-la valer. As constituies no so apenas textos hierarquicamente mais importantes do que os textos

    2 Vale a pena transcrever aqui estas palavras de Dworkin (1986, p. 392): that judges have a duty to enforce constitutional rights up to the point at which enforcement ceases to be in the interests of those the rights are supposed to protect.

  • jurdicos infraconstitucionais. As constituies exigem uma leitura moral. Pois a partir dessa leitura moral das constituies que a interpretao jurdica encontra a luz da vela moral que clareia o que o direito tem de melhor, o que o direito tem de mais virtuoso para a afirmao de princpios de moralidade poltica.

    A interpretao jurdica, portanto, no tem que ser nem ativista, tampouco passivista. Ela tem que ser adequada e justificada em princpios de moralidade poltica, em princpios capazes de torn-la a melhor interpretao possvel, a interpretao que melhor revela a virtude do direito.

    Naturalmente, podem haver divergncias e dissensos sobre os contedos desses princpios de moralidade poltica, como tambm h sobre os objetivos polticos. Entretanto, a deciso jurdica pode ser suficientemente sensata para distinguir entre as preferncias pessoais do decisor e as preferncias gerais da comunidade como um todo. Para isso vai ser importante a distino entre moralidade pessoal, como o conjunto das opinies morais pessoais de algum, e a moralidade poltica, como o conjunto dos princpios que justificam a adequao e a unidade do projeto poltico maior da comunidade.

    Questes de princpio so, portanto, diferentes das questes de objetivos polticos. Os objetivos polticos estabelecem preferncias, para as quais a opinio pblica ou a opinio da maioria se torna um importante argumento de justificao. Entretanto, questes de princpio no estabelecem preferncias polticas, estabelecem direitos coerentes com todos os princpios que justificam o projeto poltico da comunidade. E como tais, a fora dos princpios e dos direitos por eles justificados valem inclusive contra a opinio pblica ou a opinio da maioria. E esse mais um motivo pelo qual a deciso jurdica deve ser conduzida por argumentos de princpio e no por argumentos de polticas pblicas.

    A relao entre princpios e polticas pblicas de Dworkin pode ser entendida tambm como aquela diferena entre constitucionalismo e democracia, na qual o constitucionalismo expressa os princpios e a democracia os objetivos polticos da comunidade. Por isso que os princpios so como promessas das maiorias s minorias de que sua dignidade e igualdade sero respeitadas independentemente dos objetivos polticos traados democraticamente pelas maiorias. E longe disso ser uma questo formal, longe de ser uma questo de interpretao semntica de textos legais, essa conciliao entre princpios de moralidade poltica e objetivos das polticas pblicas democrticas mais uma atitude, uma ao poltica, um gesto, que deve ser o mais sincero possvel (Dworkin, 1978, p. 205, trad. livre).

    Levar os direitos a srio significa reconhecer o carter poltico de toda deciso jurdica e assumir que o direito uma atitude interpretativa e no uma mera questo de sintaxe ou semntica lgica. Levar os direitos a srio significa reconhecer e afirmar direitos justificados em fortes convices de moralidade poltica, apesar das divergncias, dos dissensos e tambm apesar de s vezes eles colidirem com os objetivos das polticas pblicas do governo.

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