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REVISTA PERIFERIA VOLUME III, Número 1 Oswald de Andrade, filósofo da diferença 1 Jorge Vasconcellos 1 RESUMO: Oswald de Andrade como filósofo, um filósofo brasileiro. Oswald de Andrade pensador do real. Oswald de Andrade um filósofo da diferença. Estas são as premissas norteadoras deste artigo. Isso porque entendemos que O.A. constitui, para além de seu ativismo político- literário e da força fabulatória de sua obra, poderoso pensamento sobre “o que é o Brasil?” e sobre “quem são os brasileiros?”; valendo-se para tal de categorias que, insistimos, são estritamente filosóficas. Procuraremos mostrar como Oswald de Andrade se filiaria ao que denominamos de filosofia da diferença, linhagem filosófica que articula Nietzsche a Deleuze & Guattari. Palavras-chave: Antropofagia ; filosofia da diferença; ontologia; estética; Oswald de Andrade; Deleuze & Guattari; Nietzsche. ABSTRACT: Oswald de Andrade as a Brazilian philosopher, a thinker of the real. These are the guiding premises of this article. We understand that, in addition to his political/aesthetical activism, in addition to the literary strength of his fictional work, O.A. produces a powerful thought about "what Brazil is" and "who Brazilians are" by making use of strictly philosophical categories. We try to show that this thought belongs to a philosophical lineage that articulates Nietzsche, Deleuze & Guattari. Key words: anthropophagy; philosophy of difference, ontology, aesthetics; Oswald de Andrade; Deleuze & Guattari; Nietzsche. 1 Doutor em Filosofia/UFRJ. Professor do Dept° de Artes e Estudos Culturais e do Programa de Pós- graduação em Estudos Contemporâneos em Artes/PPGCA na Universidade Federal Fluminense. Autor de Deleuze e o Cinema. Rio: Editora Ciência Moderna, 2006. Publicou recentemente, em coautoria com Guilherme Castelo Branco, Arte, Vida e Política: ensaios sobre Foucault e Deleuze. Rio: Edições LCV- UERJ, 2010.

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  • REVISTA PERIFERIA VOLUME III, Nmero 1

    Oswald de Andrade, filsofo da diferena1

    Jorge Vasconcellos1

    RESUMO:

    Oswald de Andrade como filsofo, um filsofo brasileiro. Oswald de Andrade pensador do

    real. Oswald de Andrade um filsofo da diferena. Estas so as premissas norteadoras deste

    artigo. Isso porque entendemos que O.A. constitui, para alm de seu ativismo poltico-

    literrio e da fora fabulatria de sua obra, poderoso pensamento sobre o que o Brasil?

    e sobre quem so os brasileiros?; valendo-se para tal de categorias que, insistimos, so

    estritamente filosficas. Procuraremos mostrar como Oswald de Andrade se filiaria ao que

    denominamos de filosofia da diferena, linhagem filosfica que articula Nietzsche a

    Deleuze & Guattari.

    Palavras-chave: Antropofagia ; filosofia da diferena; ontologia; esttica; Oswald de

    Andrade; Deleuze & Guattari; Nietzsche.

    ABSTRACT:

    Oswald de Andrade as a Brazilian philosopher, a thinker of the real. These are the guiding

    premises of this article. We understand that, in addition to his political/aesthetical activism,

    in addition to the literary strength of his fictional work, O.A. produces a powerful thought

    about "what Brazil is" and "who Brazilians are" by making use of strictly philosophical

    categories. We try to show that this thought belongs to a philosophical lineage that

    articulates Nietzsche, Deleuze & Guattari.

    Key words: anthropophagy; philosophy of difference, ontology, aesthetics; Oswald de

    Andrade; Deleuze & Guattari; Nietzsche.

    1 Doutor em Filosofia/UFRJ. Professor do Dept de Artes e Estudos Culturais e do Programa de Ps-

    graduao em Estudos Contemporneos em Artes/PPGCA na Universidade Federal Fluminense. Autor de

    Deleuze e o Cinema. Rio: Editora Cincia Moderna, 2006. Publicou recentemente, em coautoria com

    Guilherme Castelo Branco, Arte, Vida e Poltica: ensaios sobre Foucault e Deleuze. Rio: Edies LCV-

    UERJ, 2010.

  • Oswald de Andrade, filsofo da diferena Jorge Vasconcellos

    Oswald de Andrade prope a, talvez, mais poderosa interpretao j feita do Brasil. Nele

    encontramos ideias como: S gosto do que no meu; aprecio apenas o que do outro;

    preciso comer o que de outrem para a tornar-me o que sou. Estas so algumas das

    palavras-de-ordem, ou melhor dizendo palavras-valise, livremente por ns interpretadas do

    pensamento da Antropofagia de Oswald de Andrade. Essas palavras-Ideias so as

    orientadoras do que entendemos ser o sentido do Manifesto Antropfago. Partiremos deste

    texto oswaldiano para dar a pensar as relaes entre Antropofagia e Filosofia, mostrando

    como esta conexo estaria ainda por ser realizada de modo rigoroso. Enfatizaremos,

    sobretudo, a importncia do texto de O.A. para interpretarmos a cultura brasileira, em seus

    mais radicais aspectos, seja esta uma radicalidade histrica, sociolgica e/ou antropolgica;

    mas, principalmente, em sua radicalidade filosfica. Isso por que afirmamos que Oswald

    pode e deve ser pensado, antes de tudo, como um pensador, como um filsofo: um filsofo

    brasileiro.

    Evidentemente, quando estamos apontando um filsofo brasileiro, preciso que se diga que

    no estamos defendendo a posio de que existam estritamente falando filosofias nacionais.

    No existe propriamente uma filosofia alem, uma filosofia francesa, ou mesmo uma

    filosofia grega em seu carter nacional. Pois, entendemos que a filosofia aspira e implica

    um sentido de universalidade que orienta meditaes acerca da dimenso do humano, da

    terra e do mundo. No obstante, Hegel um filsofo alemo, Pascal um filsofo francs,

    assim como Plato um filsofo grego. Nesse sentido, a despeito de recusarmos a alcunha

    de uma filosofia brasileira, reafirmamos que Oswald de Andrade um filsofo brasileiro.

    O que ento faz da Antropofagia oswaldiana uma filosofia, no sentido forte do termo, isto ,

    um pensamento filosfico constitudo, que investiga e rivaliza com o cnone da filosofia

    ocidental, que compe viso prpria do mundo, instituindo uma cosmoviso do que existe,

    do que ... Apresentando-se, ao fim e ao cabo, como uma teoria do real.

    Em suma, perguntamos pelo que faz a Antropofagia constituir-se enquanto uma ontologia?

    J que ela, a Antropofagia, um saber complexo e sistemtico, com categorias singulares e

    operativas, tornada pelo movimento do pensamento uma cincia do ser enquanto ser. Seria

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    ela, a Antropofagia, uma ontologia para pensar o Brasil e os brasileiros? Que fique claro

    que ao designarmos o pensamento da Antropofagia de Oswald de Andrade como uma

    ontologia, antes de tudo, trata-se de uma ontologia no-metafsica. Ou seja, escapa-se da

    perspectiva ontolgica pautada pela representao que se caracterizaria pela subordinao

    da diferena identidade, a subsuno das singularidades s potncias do Uno. Recusa-se

    pensar o ser refm s relaes do Anlogo, s similitudes do Semelhante e identidade do

    Mesmo. Em suma, as derivaes do platonismo.

    A indagao o que o Brasil e quem so os brasileiros? no o mesmo que a busca pela

    essncia da brasilidade e pela identidade brasileira, como veremos. Trata-se mais de uma

    orientao de sentido, um colocar-se no horizonte problemtico do pensamento. Da, antes

    de tudo, a Antropofagia uma filosofia, Oswald Andrade, um filsofo.

    Se assim , ento, quais os problemas a serem enfrentados pela antropofagia oswaldiana?

    Em que plano de imanncia possvel emerge esses problemas? Quais seus operadores, seus

    conceitos? Quais seus personagens conceituais? Enfim, a qual tradio filosfica ela se filia

    e com qual rivaliza? J que fazer filosofia, melhor dizendo, o exerccio da prtica filosfica

    implica, a nosso ver, necessariamente: enfrentar e recolocar problemas filosficos; traar e

    instituir um plano de imanncia a uma determinada filosofia; criar e operar conceitos que

    habitam este plano; forjar e designar personagens conceituais que se articulam aos

    conceitos. Fazer crtica e clnica filosfica.

    Um pequeno deslocamento aqui se faz necessrio, pois, partimos das idias de Gilles

    Deleuze e Flix Guattari, e da concepo que ambos engendram do que seja a filosofia e o

    filosofar, para pensar as relaes entre Antropofagia e Filosofia. Assim, carece explicitar o

    que seja plano de imanncia, conceitos e personagens conceituais para os pensadores

    franceses.

    Em O que a filosofia?2, os autores desenvolvem a noo de personagem conceitual.

    Nesse livro os personagens conceituais constituem-se como elementos pr-filosficos ao

    prprio filosofar, tais quais os conceitos, que seriam propriamente filosficos, enquanto o

    plano de imanncia se estabeleceria como elemento pr-filosfico, uma espcie de topos

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    dos conceitos. A ideia de plano de imanncia est diretamente implicada ideia de conceito

    em Deleuze e Guattari, sobrevida dos conceitos filosficos.

    O que so conceitos sob esse ponto de vista filosfico? Os conceitos so totalidades

    fragmentrias que no se ajustam umas s outras, j que suas bordas no coincidem. Eles

    nascem de um lance de dados, no compem um quebra-cabeas. De todo modo, eles

    ressoam filosofia que os cria, pois s filosofia o pensamento que se d a inventar

    conceitos. Contudo, os conceitos no constituem por si s um plano de imanncia. O plano

    de imanncia no um conceito particular ou um conceito geral, nem por sua vez, um

    Grande Conceito a englobar todos os outros conceitos, ele a pr-condio de existncia de

    todo conceito filosfico, ele o solo onde os conceitos devem vir luz. O plano de

    imanncia a terra do conceito.

    Novamente, ento, o que um conceito para o sentido da filosofia que apontam os escritos

    de Gilles Deleuze e Flix Guattari? Os conceitos so construes na perspectiva deleuziana,

    a prpria filosofia uma espcie de construtivismo, da a importncia de traar planos (de

    imanncia), erguer plats (em espaos-quaisquer), semear campos (de fora). A imanncia

    a argamassa destes campos, plats e planos; e os conceitos so a sua ferramenta. Tanto

    que em linhas gerais, para essa concepo, os conceitos teriam quatro grandes

    caractersticas: 1) Eles no so simples, melhor dizendo, no h conceito simples. Todo e

    qualquer conceito possui componentes, e se definem por eles. Eles, os conceitos, possuem

    uma espcie de cifra. So multiplicidades. Todo conceito implicado por multiplicidades; 2)

    Todo conceito possui um devir que lhe concerne. Os conceitos se acomodam uns aos outros,

    compondo seus respectivos problemas; 3) Todo conceito simultaneamente absoluto e

    relativo: relativo a seus prprios componentes, aos demais conceitos, a partir do plano ao

    qual se limita, aos problemas que enfrenta, porm, absoluto pela condensao que opera,

    pelo lugar que ocupa no plano, pelas condies que impe ao problema; 4) Um conceito

    nunca discursivo, pois a filosofia no uma formao discursiva, j que no encadeia

    proposies. Os conceitos so, como dissemos, ferramentas.

    Essa a articulao que conjuga conceitos e filosofia, ou mais precisamente, entre plano de

    imanncia e os conceitos que o compem, que garantem ao "filosofante", aquele que estuda

    a filosofia e interpreta a sua histria, conhecer e restituir um determinado filsofo ou

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    mesmo um sistema de pensamento. O plano de imanncia torna possvel desenhar

    diagramas na cartografia do pensamento filosfico. O plano de imanncia faz aparecer um

    rosto em meio bruma da paisagem filosfica.

    Por sua vez, a idia de personagem conceitual talvez seja a mais radical e extraordinria

    desta concepo do filosofar proposta por Deleuze e Guattari. Por exemplo, em O que a

    filosofia? Deleuze e Guattari apresentam Scrates como personagem conceitual de Plato.

    Este Scrates, os autores deixam claro, no se trata do Scrates histrico, nem

    propriamente um simples personagem por intermdio do qual as ideias platnicas seriam

    defendidas, seu porta-voz ou alter-ego, mas de um intercessor. Os personagens conceituais

    so os verdadeiros sujeitos da filosofia. Logo, descartamos qualquer aluso a que os

    personagens conceituais sejam meramente ilustrativos, eles so pr-ativos na construo de

    uma teoria filosfica. No entanto, eles no so conceitos, pois eles dramatizam estas

    filosofias, no so ferramentas como os conceitos, eles fazem a filosofia entrar em jogo,

    eles fazem-nas jogar, como em um jogo de cena.

    Acreditamos que o texto oswaldiano pode ser lido sob essa perspectiva deleuziana da

    filosofia. Isso revelia de fortes correntes interpretativas do Manifesto Antropfago, que

    constitui a fortuna crtica ao legado de O.A., e tm como uma de suas linhas mestras a

    hiptese de destacar que seu sentido aquele o de ler o Brasil por intermdio de

    metforas, contidas na prpria letra do texto de Oswald.

    Por exemplo, segundo Benedito Nunes, em seu ensaio de introduo ao sexto volume das

    Obras Completas de Oswald de Andrade justamente aquele que rene os dois manifestos

    determinantes ao Modernismo de 22 (NUNES: 1972) prope a devorao como smbolo

    do processo antropofgico simultaneamente como: metfora, diagnstica e teraputica.

    O consagrado crtico prope como eixo interpretativo que a metfora seria orgnica, j que

    se inspira em cerimnia guerreira de imolao dos inimigos pelos Tupis, que devoram seus

    algozes aps o combate. Por sua vez, a devorao antropofgica seria ainda um diagnstico

    da sociedade brasileira, traumatizada pela represso colonizadora que teria nos

    condicionado. E, por fim, a devorao faria s vezes de uma teraputica, praticada na ao

    violenta e sistemtica aos mecanismos sociais e polticos, aos hbitos intelectuais e s

    manifestaes literrias e artsticas que teriam produzido este trauma repressivo.

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    Somos contrrios a essa interpretao. Recusamos este sentido dado Antropofagia,

    especialmente idia de devorao, como metfora. Defendemos que: onde se lem

    metforas, lemos conceitos.

    Conforme enunciamos: Oswald de Andrade, como um filsofo, um inventor de conceitos

    devorao opera como um conceito filosfico. E como nenhum conceito simples,

    estes possuem sempre elementos. Diramos, desse modo, que a idia de assimilao

    presente no processo de deglutio do outro, seria um dos elementos do conceito de

    devorao antropofgica. Ao apontarmos esta idia de devorao antropofgica como

    conceito filosfico nos leva a fazer a pergunta por qual ordem de problemas este conceito

    deve enfrentar se faz ento necessria. Dito de outro modo, quais os problemas filosficos,

    propriamente ditos, que so colocados pela Antropofagia? Diramos, a grande questo da

    Identidade, mais especificamente das relaes entre identidade e diferena no bojo do

    processo da constituio de um Povo. No caso o Povo Brasileiro. O ser brasileiro como o

    avesso de uma forma identitria nos parece ser o topos das idias filosficas de Oswald de

    Andrade.

    Por sua vez, qual o plano de imanncia que sustenta esses conceitos e faz emergir seus

    personagens conceituais? Diramos, estamos diante de um pensamento da pura imanncia,

    como na linhagem filosfica de um Spinoza, de um Nietzsche, de um Deleuze. Pensar o ser

    pens-lo como afirmao do devir... como pensar os processos subjetivos como

    transformao do eu em um outro, um outrar-se como na expresso criada por Fernando

    Pessoa.

    Por fim, qual, ou quais, personagens conceituais so instaurados pela prtica filosfica da

    devorao antropofgica? Arriscamos dizer: o Bispo Sardinha3 um personagem conceitual

    de Oswald de Andrade.

    Oswald, ao apresentar sua Antropofagia, estava produzindo uma rigorosa e meticulosa

    anlise filosfica do Brasil, um diagnstico do nosso presente, um sentido aos nossos

    futuros. Seu texto, mesmo que ao comportar expresses e palavras que sugerem as mais

    extravagantes imagens, que remetem muitas vezes s vanguardas literrias europias, como,

    por exemplo, ao surrealismo, ensejava em seu bojo uma construo que , de fato,

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    conceitual. Assim, uma expresso como a alegria prova dos noves no seria apenas um

    gracejo que reivindicaria ao povo brasileiro a festa, o carnaval, o rito jubiloso encarnado, o

    xtase; mas a afirmao da alegria como sentido (do existente) e valor (da vida). Ou ainda

    outra enunciao clebre contida no Manifesto: O esprito recusa-se a conceber o esprito

    sem o corpo. O antropomorfismo. Necessidade da vacina antropofgica. Trata-se de

    descartesianizar a filosofia. Tratava-se de descartar Descartes. Ou seja, recusar o

    paralelismo cartesiano e propor a este um antdoto: a vacina antropofgica. Ela mesma,

    um conceito. Estamos diante de um mdico da civilizao, de um psiclogo da cultura,

    como Nietzsche, produzindo a sintomatologia da modernidade enferma. Oswald parece

    evocar o sentido da idia de grande sade em Nietzsche com seu pensamento

    antropofgico.

    Nietzsche no se faz notar apenas pelas citaes explcitas ou subjacentes no prprio

    Manifesto, mas, tambm pelo projeto filosfico presente no pensamento da antropofagia de

    Oswald. Como aponta Maria Cristina Franco Ferraz, em artigo que articula a Genealogia

    da Moral de Nietzsche ao Manifesto (2008), Oswald de Andrade digere o dilema do ser e

    do no-ser to caros metafsica clssica e tradio ocidental, devolvendo-o em forma de

    pardia e alegria: ao invs do To be or not To be, em seu lugar o Tupi or not Tupi. Eis

    a questo da devorao antropofgica. Segundo Ferraz, Oswald teria, nesse sentido, se

    aproximado da perspectiva nietzschiana e do estatuto da afirmao em Nietzsche.

    A Antropofagia uma filosofia do Sim, um dizer afirmativo: isto mesmo, a vida. A vida

    nos trpicos, sob o sol... Amrica do Sal, Amrica do Sul, Amrica do Sol... Ser

    antropfago mais que voltar s razes do homem primitivo a devorar e assimilar a cultura

    de outrem, pois,nos parece que os caminhos apontados pela Antropofagia sejam exatamente

    aqueles de inaugurar o novo, fazendo com que tudo o que de-fora seja incorporado,

    modificado, regurgitado no evidentemente por nosso entendimento, mas por nossos

    intestinos. Ainda como Nietzsche, um pensar que vem das vsceras, um pensamento

    visceral. A Antropofagia (Oswald de Andrade) produziu, juntamente com a Tropiclia

    (Hlio Oiticica), o Tropicalismo (Caetano & Gil), O Cinema Novo (Glauber Rocha), O

    Teatro Oficina (Jos Celso Martinez Corra), uma interpretao conceitual e sensvel do

    Brasil.

  • Oswald de Andrade, filsofo da diferena Jorge Vasconcellos

    Ele mesmo, Oswald de Andrade, nos diz o significado da ANTROPOFAGIA:

    A ANTROPOFAGIA ritual assinalada por Homero entre os

    gregos e segundo a documentao do escritor argentino Blanco

    Villalta, foi encontrada na Amrica entre os povos que haviam

    atingido uma elevada cultura Asteca, Maias, Incas. Na expresso

    de Colombo, comiam los hombres. No o faziam, porm, por gula

    ou por fome. Tratava-se de um rito que, encontrado tambm nas

    outras partes do globo, d a idia de exprimir um modo de pensar,

    uma viso de mundo, que caracterizou certa fase de toda a

    humanidade.

    Considerada assim, mal se presta interpretao materialista e

    imoral que dela fizeram os jesutas e colonizadores. Antes pertence

    como ato religioso ao rico mundo espiritual do homem primitivo.

    Contrape-se em seu sentido harmnico e comunial, ao

    canibalismo que vem a ser a antropofagia por gula e tambm a

    antropofagia por fome, conhecida atravs da crnica das cidades

    sitiadas e dos viajantes perdidos.

    A operao metafsica que se liga ao rito antropofgico a da

    transformao do tabu em totem. Do valor oposto, ao valor

    favorvel. A vida devorao pura. Nesse devorar que ameaa a

    cada minuto a existncia humana, cabe ao homem totemizar o tabu.

    Que o tabu seno o intocvel, o limite? Enquanto na sua escala

    axiolgica fundamental, o homem do Ocidente elevou as categorias

    do seu conhecimento at Deus, supremo bem, o primitivo instituiu

    a sua escala de valores at Deus, supremo mal. H nisso uma

    radical oposio de conceitos que d uma radical oposio de

    conduta. (2011, 138-139)

  • REVISTA PERIFERIA VOLUME III, Nmero 1

    Como tal caracterizamos aqui no s a figura de Oswald de Andrade, como constituinte

    imagem de filsofo, como de autor inaugural da maior radicalidade filosfica criada entre

    ns. E mais, Oswald est filiado linhagem dos pensadores da diferena, do heterogneo,

    da pluralidade e postulante construo de uma ontologia no-metafsica do que seria a

    brasilidade. Oswald de Andrade/Nietzsche/Deleuze.

    Oswald de Andrade, filsofo da diferena.

  • Oswald de Andrade, filsofo da diferena Jorge Vasconcellos

    REFERNCIAS:

    ANDRADE, Oswald. ANDRADE, Oswald. A crise da filosofia messinica. IN: Oswald

    de Andrade: A Utopia Antropofgica. So Paulo: Editora Globo, 2011, pp. 138-9.

    DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Flix. O que a filosofia?. Traduo de Bento Prado Jr e

    Alberto Alonso Muoz. So Paulo: Editora 34, 1992.

    FERRAZ, Maria Cristina Franco. Nietzsche Educador: Negatividade, Afirmatividade e

    Antropofagia. IN: Nietzsche, Filosofia e Educao. Vnia Dutra de Azevedo (org.). Iju:

    Editora Uniju, 2008.

    NUNES, Benedito. Antropofagia ao Alcance de Todos. IN: Obras Completas 6.

    Oswald de Andrade: Do Pau-Brasil antropofagia e s utopias. Rio de Janeiro: Editora

    Civilizao Brasileira, 1972.

    1 Texto ligeiramente modificado de interveno em Mesa de Conversao Filosfica ao DIA MUNDIAL DA

    FILOSOFIA, promovido pela UNESCO-ONU, em 11 de novembro de 2009, na Casa da Cincia, Rio/RJ.

    Brasil. 2 DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Flix. O que a filosofia?. Traduo de Bento Prado Jr e Alberto Alonso

    Muoz. So Paulo: Editora 34, 1992. 3 Isso mesmo, falamos daquele proco, 1 Bispo do Brasil, que teria sido devorado pelos Caets.