3.4. Viver dentro de casa: a cozinha e o quarto

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3.4. Viver dentro de casa: a cozinha e o quarto Legenda: Nascimento de S. João Baptista, Mestre Desconhecido, pintura portuguesa do século XVI (MNAA).

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Legenda: Nascimento de S. João Baptista, Mestre Desconhecido, pintura portuguesa do século XVI (MNAA).

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A casa predominante das ilhas, e a que deixou vestígios, além das de madeira, foi a de

alvenaria de pedra, com ou sem reboco, com um interior de dois ou três compartimentos,

formando a cozinha num corpo independente, seguindo a tradição romana e como

prevenção de incêndios. A descrição de João Marinho dos Santos, a propósito das

habitações açorianas, é interessante: “ (…) o tecto é desforrado, as divisórias são painéis

de madeira, a luminosidade bastante escassa e o recheio relativamente pobre: uma cama

ou um leito, uma “caixa”, poucos assentos… Nos séculos XV e XVI, nem todos dispunham

de cama, dormindo certamente em esteiras. Enquanto o lume crepitava na cozinha, a

candeia, alimentada a óleo animal ou vegetal (…)”, (SANTOS, 1989, I: 161).

A sobriedade arquitectónica das construções madeirenses foi relatada pelo visitante

inglês. John Ovington, em 1689: “ (…) as casas são feitas sem grande dispêndio ou

esplendor; nem por fora se distinguem pelo embelezamento artístico nem interiormente se

apresentam ricas de ornamentos e mobiliário; algumas atingem uma razoável altura, mas

sem outra característica de grandeza. Geralmente são de telhados baixos, permitindo

toda a ventilação através de janelas que, sem vidros, ficam abertos durante o dia e

fechados com postigos de madeira, à noite.” (OVINGTON, 1981: 200-201).

No caso madeirense, na cozinha verificavam-se pouco utensílios. Pela análise etnográfica

é possível aceder a um ambiente Setecentista, onde a comida era confeccionada numa

panela de ferro bojuda com três pés e duas asas laterais, sem apoio de correntes de ferro

de elevação (BRÜDT, 1937: 87).

Algumas cerâmicas, sobretudo as séries importadas (faianças, na generalidade) e as de

fabrico fino não vidrado, parecem servir uma manifestação decorativa e de prestígio.

Neste estudo, a maioria dos fragmentos surgem em contextos secundários, e outros em

espaços originais (caso de Vila Franca, Massapez, silos do Porto Santo), dados que nos

possibilitam a reconstituição, por inferência, identidade dos compartimentos habitacionais

e, por inerência, das actividades desenvolvidas.

Na utensilagem doméstica identificam-se grupos de cerâmica com funções distintas: de

cozinha, utilizados na preparação dos alimentos sobre o fogo; de mesa, destinadas à

apresentação dos pratos à hora das refeições ou para servir condimentos e temperos; de

armazenamento, conservação e transporte de sólidos e líquidos; contentores de fogo,

próprios para albergar combustíveis para aquecimento ou iluminação; de uso

complementar, adaptados tanto ao uso sobre a mesa, na cozinha, ou para a higiene

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pessoal; objectos de carácter lúdico, ligados ao entretenimento, peças de jogos ou

brinquedos.

3.4.1. O aquecimento da casa O aquecimento da casa seria uma preocupação das regiões mais frias ou constituiria uma

necessidade para ultrapassar os rigores do Inverno. Pelo menos até ao século XVII, as

casas (pelos menos as mais abastadas) apenas possuíam aquecimento através de uma

lareira ou de forno inserido nos compartimentos da habitação.

Nesta segmento, os fogareiros - componentes cerâmicos de aquecimento e iluminação,650

marcam, presença no uso quotidiano insular. Trata-se de uma peça de uso portátil

usada indistintamente para as funções culinárias ou de aquecimento doméstico e das

diferentes divisões da casa. Duas pinturas da escola portuguesa do século XVI 651

mostram essa função de aquecer de uma divisão da casa.

Esta modalidade morfológica surge identificada apenas em cerâmica comum nos estratos

do Mosteiro de Jesus na Ribeira Grande e em níveis setecentistas da Junta de Freguesia

e do Solar do Ribeirinho, na Cidade de Machico. Caracterizam-se, geralmente, por

possuir uma forma bitroncocónica com uma abertura para oxigenação: um corpo inferior

(cinzeiro) com uma abertura para a alimentação do fogo, uma grelha intermédia e uma

parte superior exibindo as paredes abertas e os orifícios para arejamento e activação do

fogo).

Um dos exemplares recolhidos do poço-cisterna da Junta de Freguesia de Machico

(Fig.497) corresponde a uma parte inferior com abertura para a alimentação do fogo,

de base rasa, pasta grosseira de cor avermelhada (T 37), destacando-se na

superfície externa caneluras e inscrições circulares, deduzindo-se uma marca de

oleiro652 ou um indicador da capacidade metrológica. Trata-se de uma peça de fabrico

local, se considerarmos as características da pasta e da superfície, esta muito

próxima à de outros exemplares identificados em níveis bem individualizados do

século XVII. No século XVI eram receptáculos fabricados em dois tamanhos pelos

650

Inseridos na 2.a categorização da classificação cerâmica. Vide, supra, o sub-capítulo “3.1.1. 1.

As categorias funcionais”. 651

Os dois painéis alusivos ao Nascimento de São João Baptista no Museu Nacional de Arte Antiga e no Museu de Arte Sacra, no Funchal. 652

Segundo Alberto Artur Sarmento, o Senado do Funchal, em 9 de Dezembro de 1679, fez aprovar que as marcas no barro deviam corresponder às letras iniciais do nome do fabricante (SARMENTO, 1941, s.p).

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oleiros da Câmara Municipal do Funchal, a julgar pelas posturas de 1587: "fugareiro

grande oitenta reis. Meão quorenta reis".653 Os oleiros de Coimbra, na mesma altura,

produziam fogareiros grandes para assar e cozer e outros mais pequenos, com “vão

bem barado” (CARVALHO, 1917, VI: 233).

Legenda: Fragmento de parede e base de fogareiro de pasta grosseira, vermelha T37 (JFM.PC/00-3-40, Fig.497). Superfícies manchadas a negro, destacando-se na externa inscrições circulares e caneluras. Base rasa. EP: 12mm, EF:

150mm, DB: 190mm.

Os restantes fragmentos exumados dizem, apenas, respeito a pequenos perfis da base,

com evidentes sinais de carbonização (Figs.442, 443 e 496). É, pois, possível que estes

fogareiros tivessem servido para uso culinário, embora a ausência dos componentes do

corpo superior nos impeça de ler e deduzir informação de maior pormenor.

653

Cfr., AHM, Vol. I e II, 1931, p. 20.

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Legenda: Fragmento contendo uma porção de base e de parede para alimentação do fogo de um fogareiro de cerâmica comum. Pasta de textura grosseira, com veios cromáticos a variar entre a cor cinza, M73 e o rosa escuro, L50, (MJ-98-

Peça n.º 22, Fig.443). Desengordurantes de calibre fino, distribuídos irregularmente, destacando-se os elementos micáceos e líticos. Superfície externa engobada de cor rosada, observando-se o registo de caneluras paralelas. Base rasa. DB:

124mm, AL: 106mm, EP: 8mm.

3.4.2. Acender o lume Acender e manter o lume aceso era uma tarefa que exigia um esforço suplementar da

gente pobre e uma rotina da criadagem da gente rica. A invenção dos primeiros fósforos

rudimentares, ainda na primeira metade do século XV – constituídos por pedaços de

madeira ou cana embebidos em cera veio simplificar os métodos de produzir fogo

(SARTI, 2001: 164). O padre Rafael Bluteau descreve, no século XVIII, um tipo de aparas

delgadas, as acendalhas, que os carpinteiros tiravam das tábuas, acrescentando ser,

também, segundo a tradição, um termo usado para designar os “bocadinhos de pao, com

que se acende o fogo” (BLUTEAU, 1712, I: 78).

Os estratos arqueológicos dos séculos XVI, XVII e XVIII forneceram abundantes

elementos líticos (blocos de sílex e de quartzo) com vestígios de marca de talhe humano

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(Figs.1433 a 1436). Estes materiais, inexistentes no contexto litológico insular,654 incluem

as "pederneiras" 655 – nome vulgar atribuído ao sílex ou a uma variedade de quartzo de cor

cinzenta ou acastanhada. As pederneiras eram geralmente minerais muito duros e

resistentes, óptimas para uma percussão eficaz. É muito provável que a sua função

estivesse relacionada com a necessidade quotidiana de produzir fogo, utilizando o

objecto lítico para produzir faíscas, através de percussão directa, empregando-se um

objecto de ferro: o fuzil (Fig.1449). A descrição de Raffaela Sarti é amplamente

elucidativa: “Para produzir fogo usavam-se, sobretudo, fuzis formados por um pedaço de

aço e por uma lasca de sílex que eram batidos com força um contra o outro na esperança

de se conseguir produzir uma centelha não demasiado efémera e suficientemente quente

para incendiar um pedacinho de tecido, a mecha, com a qual depois seria preciso

acender, primeiro, o fósforo e, depois, o combustível em si” (SARTI, 2001: 164).

Ao que sabe, o método de “ferir o lume” com a pederneira, usando a velha expressão de

Bluteau,656 foi usado sensivelmente até aos meados do século XIX (VASCONCELOS,

1924: 41). Uma história inglesa do final do século XVII descreve a tarefa rotineira,

normalmente confinada às mulheres “…When that I rise early in the morn, before that my

head with dressing adorn, I sweep and cleane the house as need, doth require. Or, if it be

cold, I make a fire” (DAVIDSON, 1996: 207).

Alguns artigos de pederneiras foram achados nas proximidades da cozinha do Solar do

Ribeirinho, em Machico, o que pode significar uma relação de uso no lar. São,

basicamente, pequenos blocos de aspecto amorfo de sílex de cor acinzentada,

avermelhada ou negra e quartzo leitoso. É muito provável, também, que para atiçar o

lume, à lareira, se usassem os foles.657

654

Exceptuando os afloramentos de jaspe do Ilhéu da Cal, no Porto Santo. Leia-se, infra, “3.8.3.4. Acessórios de armamento: pederneiras e cadinhos”. 655

Note-se, a título de curiosidade, que existem referências documentais do 1.º quartel do século XVII da venda de pederneira no mercado da Ribeira, em Lisboa, com proveniência da zona saloia (SILVA, GUINOTE, 1998: 86, 95, 96). 656

Rafael Bluteau, Vocabulario portuguez e latino, aulico, anatomico, architectonico, bellico, botanico, brasilico, comico, critico, chimico…, Coimbra, Vol. III, Collegio das Artes da Companhia de Jesus, 1712, p. 80. 657

O inventário da Infanta D. Beatriz de 1507, refere-se a “huu fole de foguo, pequeno” (FREIRE, 1914: 92).

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Legenda: Conjunto de sete pederneiras (JFM/06-22-3250,3231,4134,4233; JFM/00-vala 1-142; CPM/06-5-39, Fig.1435). Medem entre os 23 e 59mm.

Legenda: Método de acender o lume com pederneira (DAVIDSON, 1986: 96).

3.4.3. A iluminação

Dois componentes cerâmicos portáteis, fabricados em cerâmica comum e vidrada,

exumados nos contextos quinhentistas e seiscentistas insulares, atestam uma utilização

na iluminação do interior da habitação. São eles as típicas candeias (Figs.444 a 446) e os

candelabros (candeias de pé alto, Figs.447, 774 a 776).

As candeias surgem em duas tipologias: uma variante mais comum, e exumada nos

Açores (Convento de Jesus, na Ribeira Grande, e nas escavações de Vila Franca do

Campo, Fig.98) 658 e na Madeira (Junta de Freguesia, em Machico, e Santa Casa da

658

Cfr., Rui de Sousa Martins (1996) – Vila Franca do Campo, Ponta Delgada, Editorial Éter, pp. 22, 30, (Fig.98).

11cm

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Misericórdia, em Santa Cruz), com um reservatório trilobado,659 um bico na extremidade e

as paredes convergentes; uma outra, na forma circular simples, sem um bico estreito,660

foi identificada no Forte de São José e na demolição de uma casa rústica junto ao

Convento de São Bernardino, em Câmara de Lobos, Madeira (Fig.501).

Os dois conjuntos, exceptuando as produções locais, exibem normalmente as pastas

finas de cor castanha (N35 ou P70, Fig.446, SCM/05-AP9-259; Fig.444, JFM/06-22-3101,

Fig. 445, JFM/05-22-5830) ou castanho-avermelhado (MARTINS, 1996:30) fundos planos

e de assentamento discoidal, acompanhados por um pequeno bico saliente na

extremidade oposta, onde se embebia um pavio para alumiar. A peça de Santa Casa da

Misericórdia de Santa Cruz, o mais íntegro exemplar recuperado dos estratos

quinhentistas da Ap9 (Fig.446), enquadra-se nas séries utilitárias de importação do

“Reino” e mostra a área do bico com vestígios de exposição ao fogo provavelmente pela

proximidade do uso do pavio. Aparenta, também, vestígios de aguada em ambas as

superfícies. São peças que encontram paralelos com outros exemplares de contextos

similares do ponto de vista cronológico em Almada, Palmela, Cascais, Silves

(CARMONA, SANTOS, 2005; FERNANDES, SANTOS, 2009:69-71; GOMES, GOMES,

CARDOSO, 1996:49, Fig.10, 64).

O achado fortuito (nos entulhos do convento franciscano de São Boaventura do século

XVIII) de quatro exemplares de candeias de barro na Ilha das Flores nos anos 70 do

século XX levantou a problemática da origem do fabrico. Os investigadores Rui de Sousa

Martins661 e João Gomes Vieira662 são unânimes em avançar com a produção açoriana,

inclusive da própria Ilha das Flores, por efectiva análise macroscópica (MARTINS, 1985:

172). A coincidência morfológica com os objectos quinhentistas atrás referidos e o

suposto fabrico tardio das peças (século XVIII) são condições que podem evidenciar a

imitação das formas de importação663 e o desenvolvimento e aperfeiçoamento das olarias

locais.

659

A documentação quinhentista mostra o termo “vieira” associando-o a candeeiros (CARVALHO, 1917, VI: 233), o que pode traduzir-se pela ligação etimológica e morfológica a este tipo de candeias de cerâmica. 660

Na lógica dos estudos de António Rosa Peixoto, “Iluminação popular”, Etnografia Portuguesa (Obra Etnográfica Completa), Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1990, pp. 166-178. 661

“Aditamento 2. A iluminaria Popular nas Ilhas das Flores e Corvo. Contribuição para o estudo da iluminaria popular açoriana”, Arquipélago. História e Filosofia, N.º 2, Ponta Delgada, 1985, p. 172. 662

Cfr., “Breves notas sobre a iluminação tradicional na ilha das Flores”, Diário dos Açores, 27-6-1985, p. 3: “(…) provavelmente, saíram das mãos dos oleiros que trabalharam neste ilha”. 663

Dado que problematizamos no sub-capítulo “3.5.1. A produção da cerâmica local”

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Legenda: Exemplar ligeiramente fragmentado de uma candeia de formato trilobado de cerâmica comum de importação, de pasta de textura compacta de cor acastanhada (N35), com abundantes ENP’s micáceos distribuídos regularmente

(SCM/05-AP9-259, Fig.446) Bordo com inflexão externa e lábio boleado. A área do bico encontra-se bastante queimada, provavelmente pela proximidade do uso do pavio. Base de assentamento discoidal e vestígios de aguada em ambas as

superfícies. ALT: 260mm, EB: 3mm, EP: 4mm.

Os exemplares em calote de esfera do Forte de São José e do Convento de São

Bernardino mostram paralelos com o espólio cerâmico do Mosteiro de S. João de

Tarouca (SEBASTIAN, CATARINO, CASTRO, 2010: 109). Três dos exemplares do Forte

de São José (Fig.498, FSJ/06-S1-24; Fig.499, FSJ/06-S1-83; Fig.500, FSJ/06-S1-192),

confeccionados nas olarias locais, mostram um tratamento das superfícies almagradas e

as pastas de tonalidade avermelhada ou acastanhada (T39 ou T30), contendo

desengordurantes líticos de cor escura e de grão fino. Os bordos variam entre o direito e o

extrovertido, com o lábio de tipologia afilado ou boleado. As bases são de assentamento

discoidal. Os diâmetros variam entre os 59mm e os 65mm. Em quase todos os

exemplares do Forte de São José as paredes internas encontram-se com vestígios de

carbonização. Mais à frente discutimos a hipótese de algumas destas peças oriundas das

olarias locais terem servido como cadinhos ou eventualmente tinteiros.

Legenda: Candeia de iluminação de possível fabrico local, com a superfície externa ligeiramente avermelhada, T30, com nuances mais escuras (Achad.ocas./1991, Fig. 501). Superfície interna mais negra. Bordo com lábio boleado e base de

assentamento discoidal. DE: 60mm, EB: 4mm, ALT: 21mm.

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Legenda: Candeia de fabrico local com as superfícies almagradas contendo elementos não plásticos líticos de grande dimensão (FSJ/06-S1-24, Fig.498). Base de assentamento discoidal irregular, bordo direito e lábio afilado. DE: 59mm, ALT:

24mm, EB: 5mm.

Os candelabros ou as candeias de pé-alto em análise, exceptuando os das escavações

da Ribeira Grande (Fig.905, MJ-4-3-98-Peça n.º 8, Fig.675, MJ-VW-99- Peça n.º 28), têm

um índice de integridade reduzido. São peças que mostravam regularmente um

reservatório com um pé tubular acompanhado por uma asa vertical. Poderia,

eventualmente, enquadrar morfologicamente um tipo de recipiente para iluminação

produzido pelos malegueiros de Coimbra do século XVI, o “candyeiro vidrado com seu

cano” (CARVALHO, 1917,VI: 234).

O fragmento da Ribeira Grande, de gramática barroca, parece enquadrar-se nas séries

de produção local. Mostra uma base rasa e uma pasta de textura semi-compacta, de

tonalidade vermelha clara N55, com uma decoração externa modelada, destacando-se os

ônfalos (concavidades) acentuados. Os três artigos em cerâmica vidrada664 (Figs.774.

775 e 776) reúnem componentes de base e de asas, com pastas de textura semi-

compactas de tonalidades rosa (L51) e castanha (L51, T39). As bases são de

assentamento discoidal.

Legenda: Fragmento de base de uma possível candeia de pé alto, com base de assentamento discoidal, de pasta de textura semi-compacta de tonalidade rosa (L51), com escassos ENP’s (JFM/06-22-3096, Fig.774). Superfícies vidradas e

tom melado. EF: 9mm, EP: 5mm.

664

Reúnem paralelos com os artigos do Barreiro (BARROS, CARDOSO, GONZALES, 2000: 72).

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Legenda: Base de um candelabro de cerâmica comum de provável fabrico local (MJ.4.3/98.Peça n.º8, Fig.905). Pasta de textura semi-compacta, de tonalidade vermelha clara N55, com decoração externa modelada e ônfalos acentuados. Base

rasa. AL: 61mm, EP: 8mm.

Legenda: Fragmento de base de um castiçal de faiança setecentista com arranque do componente cilíndrico do bocal (com 12mm de espessura), onde se deposita a vela (MJ-VW-99- Peça n.º 28, Fig.675). Pasta de textura compacta de tonalidade

creme, K91 com escassos ENP. Superfície externa com cercadura a pintura de azul-cobalto.

A candeia, confeccionada nas suas diversas tipologias foi, certamente, um dos utensílios

mais usuais nos lares da Idade Moderna.665 Sousa Viterbo iniciou no século XIX uma

série de estudos que abordaram a terminologia do uso da “candeia”, tendo observado a

sua correlação com o significado de “velas” (VITERBO, 1899, I: 365-368, 629-631, 858-

860; VITERBO, 1913: 60). Além dos componentes de cerâmica, estão referenciados os

utensílios de metal 666 (castiçais, tocheiras, lanternas,667 MARQUES, 1987: 85; SANTOS,

1964: 302-307).

665

Por exemplo, no interior das casas de lavoura de Trás-os-Montes, no século XVIII, as candeias surgem contextualizadas na área da cozinha (CARDOSO, 1996: 467). 666

Para uma leitura europeia das tipologias tardo-mediaveis dos suportes metálicos e cerâmicos de iluminação consulte-se Norman Pounds, La Vida Cotidiana. Historia de la Cultura Material, Barcelona, Crítica, 1999, p. 254 e Frans Verhaeghe, “Light in the darkness: a ceramic lantern”, Everyday and Exotic Pottery from Europe. Studies in honour of John G. Hurst, David Gaimster and Mark Redknap,edits., Oxbow books, 1992, pp. 167-176. 667

Cfr., O inventário de 1545 da casa da Misericórdia de Machico (“20 tocheiros; 2 lanternas de folha, uma nova e outra velha, 6 farois com duas hastes, 4 castiçais, 2 novos grandes e 2 pequenos usados”, MANSO, 1959: 26).

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As escavações arqueológicas em Vila Franca do Campo forneceram duas formas

fragmentadas em bronze, com decoração em covinhas (Fig.101), que terão pertencido à

primitiva Matriz da antiga vila (MARTINS, 1996: 31). O uso do metal para a confecção da

típica candeia generalizou-se nos séculos XVIII e XIX, dotada com uma haste de

suspensão com gancho e ponta, fabricada em ferro,668 e mais tarde em folha-de-flandres,

cobre e latão (VITERBO, 1913: 59-60; MARTINS, 1984: 261-293; PEIXOTO, 1990: 173-

174). Para a Madeira a iluminação das casas humildes fazia-se, nos finais do século XIX

e inícios do século XX, por um recipiente cónico de metal, o catano, com uma asa lateral

e uma torcida na abertura (BRÜDT, 1937: 90).

Nos Açores, as candeias eram frequentemente alimentadas com diversos óleos de

origem vegetal (da baga de loiro,669 da semente do linho ou rícino) ou animal

(estapagados e pardelas: uma espécie de cagarros; peixe, baleia ou sebo extraído dos

tutanos dos bovinos) - (COSTA, 1956: 216; COSTA, 1978: 190; SANTOS, 1989,I: 331).

Frutuoso descreve a forma de extracção do óleo das aves aquáticas: (…) havia ali, [ilhéus

de Santa Maria] antigamente, muitos estapagados, com que muito se sustentava a gente,

porque lhe comiam a carne e se alumiavam a graxa (…)”.670 Oliveira Marques refere,

inclusive, o uso da cera por parte da população mais rica, sendo que também era

frequente encontrar velas de ceras nas igrejas e mosteiros (MARQUES, 1987: 85). Esta

situação era, contudo, diferente no meio de uma sociedade rural, pobre, como se

observou na Igreja de Nossa Senhora dos Anjos, na Cidade de Ponta Delgada no

primeiro quartel do século XVII, onde não havia “cera para ser acompanhado de alguma

confraria” (SANTOS, 1983: 793).

668

Tenha-se em consideração, também, Carreiro da Costa, “Candeia de Sebo, de Santa Maria”, Etnologia dos Açores, Vol.2, Lagoa, Câmara Municipal da Lagoa, 1991, pp. 557-561. 669

Nas ilhas de São Miguel e das Flores a colheita de baga de loureiro permitiu a sua exportação no século XVI para o mercado lisboeta (SANTOS, 1989, I: 331).

670 Saudades da Terra, Livro III, Ponta Delgada, Instituto Cultural da Ponta Delgada, 2005, p.42.

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3.4.4. Os equipamentos de cozinha 3.4.4.1. Os apetrechos de ir ao fogo: as panelas, os tachos, as frigideiras e as tampas

Os apetrechos de ir ao fogo estão largamente representados pelos componentes de

Cerâmica de Cozinha ou de Funções Culinárias (inseridos na primeira categoria

“Cerâmica de Serviço e de Apresentação de Alimentos”). Os exemplares cerâmicos

mais representados nesta categoria são as panelas e os tachos.

A panela constitui a forma fechada mais representada nos estratos dos séculos XV e

XVI, embora com menor expressividade numérica a partir da segunda metade do

século XVII. Exibem, normalmente, dimensões variáveis, um corpo bitroncocónico, com o

fundo plano ou ligeiramente convexo, e duas asas opostas verticais. Os exemplares

observados (Figs.414 a 418) apresentam variedades no tipo de bordo e bojo e as

superfícies caneladas e, nalguns casos, engobadas (de cor laranja e rosa).

Geralmente são peças de paredes altas, de perfil mais ou menos convexo que

estreita para o fundo e para a boca, que, por sua vez, recebia a cobertura de um

testo (Figs.424 a 430). São peças que serviam para a cozedura de alimentos, em

ambiente líquido demorado, São recipientes usados para a cozedura de alimentos, em

ambiente líquido, ou seja, constituem contentores adaptados para cozer alimentos em

água abundante, na forma de guisado ou em ebulições a fogo vivo, exibindo uma boca

mais ou menos fechada e paredes altas. A documentação Seiscentista do Convento da

Encarnação no Funchal mostra o uso de panelas e panelas na cozinha, referindo

também o uso de “tigelas de fogo” (GOMES, 1995: 262). Se considerarmos a

nomenclatura usada no século XVI, nomeadamente do ofício de malegueiro, as

panelas vidradas eram também utilizadas para conter conservas (CARVALHO, 1917,

VI: 234).

Na quantificação geral dos sítios arqueológicos (Fig.1492) estas peças atingem

percentagens significativas na Junta de Freguesia de Machico (70,37%, horizontes

cronológicos dos séculos XV e XVI) e na Misericórdia de Santa Cruz (27,04%,

estratos do século XVI). Os valores incluem as modalidades de cerâmica comum e as

de cerâmica preta (Figs.942 a 945), de paredes muito finas (2mm) e acabamentos

alisados e brunidos (um dos quais com decoração ondulada na superfície interna e

com algumas variantes na tipologia do bordo).671 Do ponto de vista tecnológico, as

671

Encontramos paralelos com estas formas nos conjuntos arqueológicos da Casa do Infante, no Porto, com cronologias a apontar para o século XVII (BARREIRA, DORDIO, TEIXEIRA, 1998: 173-178).

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panelas de cerâmica preta exibem os bordos extrovertidos, com ressalto, e os lábios

afilados. As pastas são compactas com abundantes desengordurantes micáceos de

pequenas dimensões. Normalmente, estas panelas aparecem associadas aos testos,

objectos que se destinavam a proteger os recipientes que iam ao lume ou também

outros contentores de água. São exemplares muito comuns nos depósitos dos

séculos XV e XVI (embora menos numerosos no século XVII), apresentando alguma

diversidade de tamanhos.

Legenda: Perfil de panela de cerâmica comum de pasta de trama semi-compacta de cor rosada (L45), com desengordurantes micáceos em número razoável e distribuídos regularmente (JFM/06-22-3020, Fig.415). Asa vertical de

secção semi-triangular. Bordo de tipologia extrovertido e lábio semi-aplanado. DE: 160mm, EB: 15mm, EBJ: 4mm.

Legenda: Fragmento de bordo e bojo de panela de cerâmica preta. Pasta compacta, de cor P73 com abundantes ENP, de médias dimensões, nomeadamente feldspato e micas (CTM/03-9-12, Fig.942). Bordo não espessado, de

lábio afilado. DE: 137mm, EB: 3mm, EBJ: 2mm.

Outras peças, que podem corresponder à evolução formal da panela para outras

necessidades gastronómicas, são o tacho e a frigideira. Possuem geralmente um traço

distintivo especial: os sinais de utilização culinária, com evidências de exposição ao fogo.

É um grupo que regista uma ampla variedade de tamanhos e modelos de acabamento

das superfícies (situação verificada, também, pela observação das panelas).

O tacho (Figs.419 a 423 e 492 a 493, 909 e 910) e a frigideira (ou caçarola, Fig.494)

são, respectivamente, duas formas abertas, aptas a suportar temperaturas elevadas

e muito frequentes em níveis arqueológicos dos séculos XVI e XVII.672 Apresentam

672

A título de exemplo, podemos encontrar paralelos com estas peças em vários contextos dos séculos XV (GASPAR, AMARO, 1997: 345) e XVI, em Cascais (CARDOSO, RODRIGUES, 1999: 195, 203), em Almada (SABROSA, SANTO, 1992: 7; SABROSA, 1994: 40,42) e Palmela

Page 15: 3.4. Viver dentro de casa: a cozinha e o quarto

329

pegas triangulares que partem do bordo ou nalguns casos do bojo (como é o caso da

frigideira de fabrico local da figura 494) e superfícies nitidamente manchadas a negro

e com algumas caneluras). Em relação aos tachos, as frigideiras são peças

nitidamente mais baixas, permitindo, assim, uma maior visualização dos alimentos

cozinhados, bem como um melhor remeximento do conteúdo com o auxílio de uma

colher (muito provavelmente de pau). No fundo, são peças que parecem acompanhar

a dieta alimentar quinhentista e seiscentista, adaptando-se às cozeduras rápidas e à

generalização de novos alimentos. É muito provável que pudessem acompanhar os

serviços de louça de mesa com a exposição dos alimentos já confeccionados. Nos

estratos correspondentes aos finais do século XVII e pleno século XVIII, estes

objectos começam a rarear, o que pode, no entanto, evidenciar um uso mais

frequente de peças de metal na cozedura dos alimentos.

As pegas triangulares bem desenvolvidas representam uma pervivência no tempo da

loiça de ir ao fogo. A designação de “tacho” surge nos regimentos quinhentistas dos

oleiros de Lisboa e de Coimbra, particularmente no capítulo relativo às formalidades

impostas aos examinandos para o exercício deste ofício. Curiosamente, o termo não

aparece nas posturas insulares, exceptuando-se os inventários da nobreza açoriana

do século XVI (1 tacho, entre os objectos de cozinha).673 Alguns inventários

seiscentistas corroboraram esta situação, pois no caso particular de Montemor-o-Novo

representavam cerca de 50,3% das peças referidas (FONSECA, 1991:184).

Apesar de não surgirem nas posturas regimentais dos oleiros insulares, a

arqueologia demonstra que este tipo de peças era fabricado pelas olarias locais. Os

dados da Ribeira Grande (Figs.909 e 910) e da Junta de Freguesia de Machico (Figs.

492 e 493) mostram essa evidência. O mesmo se poderá afirmar das frigideiras,674

eram recipientes de corpo hemisférico condicionados a ir ao lume para cozidos com

(FERNANDES, CARVALHO, 1998: 213). Num estudo sobre a Olaria de uso doméstico na arquitectura conventual do século XVI proveniente das estruturas do Convento de São Domingos de Montemor-o-Novo, Margarida Ribeiro publicou imagens de vários tachos de diferentes tamanhos, identificando-os, com base no Regimento de Oleiros de 1572 de Lisboa, como "tigelas de fogo" (RIBEIRO, 1984: 61-64). As posturas da Câmara Municipal do Funchal de 1587 fazem referência a "Huã tigella de fogo de duas canadas vinte reis, huã mais pequena dez reis. E outra de tres canadas". Aponta, ainda, "Huã de quoatro orelhas grande ointenta reis. Outra mais pequena cinquo reis" (AHM, Vol. I e II, 1931: 19). 673

Cfr., Maria Olímpia da Rocha Gil, O Arquipélago dos Açores no Século XVII. Aspectos Sócio-Económicos (1575-1675), Castelo Branco, 1979, p. 61. 674

Surgem, também, citadas na bibliografia com a designação de caçoilas ou sertãs.

Page 16: 3.4. Viver dentro de casa: a cozinha e o quarto

330

menos líquidos e ebulições a lume brando. Exibem paredes mais baixas do que o tacho

(com o corpo carenado) e preensões laterais.

Legenda: Fragmento de bordo e bojo de um tacho de cerâmica comum. Superfícies engobadas em tom alaranjado com abundantes vestígios de carbonização (JFM/06-22-740, Fig.42). Pasta de textura semi-compacta de cor castanha. Bordo direito com espessamento interno e lábio aplanado. Pega triangular na extremidade. DE: 380mm, EB: 18mm, EBJ: 6mm.

Legenda: Fragmento de bordo e bojo de frigideira de produção madeirense, com pega triangular (ALF/00-5-391, Fig.494). Superfície externa canelada e engobada a cor avermelhada R25. Pasta porosa, com escassos ENP, de cor avermelhada

N35. DE: 391mm, EB: 13mm, EBJ: 7mm.

A linguagem tipológica das peças terá acompanhado os novos hábitos de cozinhar e

de estar à mesa, na Época Moderna. Podemos admitir, em primeira análise, uma

tendência para uma maior abertura das peças, sublinhando-se, no caso concreto da

louça de cozinha, uma maior utilização dos tachos e das frigideiras de cerâmica

comum, em detrimento das vulgares panelas de forma mais ou menos globular.

Saliente-se, de novo, que em relação às panelas de ir ao fogo, os tachos e as

frigideiras são peças mais abertas e geralmente mais baixas. Nos estratos do século

XVII da Casa com a Porta Manuelina, da Junta de Freguesia de Machico e da

Misericórdia de Santa Cruz representam cerca de 35,5% da totalidade das formas

Page 17: 3.4. Viver dentro de casa: a cozinha e o quarto

331

cerâmicas contabilizadas. Efectivamente, a identificação tipológica dos materiais

cerâmicos dos estratos arqueológicos seiscentistas revela uma predominância

numérica, por um lado dos tachos e frigideiras, como peças típicas de ir ao fogo, e

por outro, dos pratos e das escudelas, objectos que se destinavam ao serviço de

mesa.

Outros recipientes de metal teriam a função de ir ao lume. O exemplo característico,

recuperado arqueologicamente do interior do poço-cisterna da Junta de Freguesia de

Machico, é representado pelo caldeirão, que vem exposto analiticamente no capítulo

dedicado ao fabrico do açúcar e seus derivados “3.5.2. Outros Objectos de apoio à

produção”. Sabemos, inclusive, que entre a segunda metade do século XVIII até

relativamente os anos 70 do século XX que o camponês madeirense usava as panelas de

ferro de base trípode, para a confecção dos alimentos ao lar.

Um interessante exemplar pétreo (Fig.1440A) recuperado nas obras de beneficiação da

Casa Colombo no Porto Santo,675 e entretanto ignorado do contexto expositivo do espaço

museológico, pode ter uma particular relação com os fornos domésticos do século XVII ou

mesmo com as tampas que serviam de cobertura das panelas de ir ao lume. A superfície

interna carbonizada é um significativo indicador ilustrativo dessa função.

Legenda: Tampa esférica de cantaria mole (provavelmente das pedreiras do Porto Santo) com uma asa vertical, ao centro (CC/04-138, Fig.1440 A). Diâmetro: 180mm.

675

Cfr., Élvio Duarte Martins Sousa, Relatório Preliminar da Intervenção Arqueológica no Silo1 (Matamorra) da Casa Museu Cristóvão Colombo no Porto Santo – 1ª Fase, Gaula, p. 16 (texto policopiado).

Page 18: 3.4. Viver dentro de casa: a cozinha e o quarto

332

3.4.4.2. Os utensílios de apoio à confecção de alimentos 3.4.4.2.1. O fabrico do pão: os alguidares (de madeira e de cerâmica) e os discos O fabrico do pão era uma actividade essencial na alimentação do povo insular. George

Forster, companheiro de viagem de James Cook, dava conta da base da alimentação do

madeirense na segunda metade do século XVIII: “Os camponeses são excepcionalmente

sóbrios e frugais; a alimentação consiste em pão, cebolas, vários tubérculos e pouca

carne” (SILVA, 1986).

Os alguidares ou as amassadeiras de madeira e de cerâmica vidrada desempenhavam

um papel determinante na confecção do pão. Um dos exemplares de madeira existentes

no circuito museológico regional está patente no Núcleo Museológico de Machico - Solar

do Ribeirinho. Trata-se de um peça única, com um diâmetro, bordo e diâmetro, acrónimo

Legenda: Amassadeira de Machico, finais do século XVIII inícios do XIX (NMM.SR/06-27, Fig.1582)

Do ponto de vista da recolha etnográfica e confecção do pão caseiro consistia nas

seguintes tarefas. Os ingredientes necessários (farinha, batata-doce cozida, sal e

fermento) são misturados na amassadeira ou no alguidar. A batata-doce cozida, uma vez

esmagada, é adicionada à farinha, juntando-se fermento e água morna. Em seguida,

amassa-se tudo muito bem até ganhar um aspecto consistente. O alguidar é coberto com

uma toalha durante algum tempo para a massa “dormir” - uma técnica utilizada para a

massa descansar, antes de ser tendida. Enquanto este processo se desenrola, o forno de

cantaria vermelha vai consumindo a lenha até atingir a temperatura pretendida. Depois, a

massa é tendida, formando-se dezenas de pães que são colocados na mesa para

posteriormente serem levados ao forno. Entretanto, procede-se à retirada das brasas com

um utensílio de metal (puxa-brasas) e à limpeza, utilizando um “varredor”. Há muitos

anos, as brasas resultantes da combustão eram reutilizadas nos ferros de engomar.

12 cm

Page 19: 3.4. Viver dentro de casa: a cozinha e o quarto

333

O pão é colocado dentro do forno com a pá de madeira e são pronunciadas as seguintes

palavras: “Deus te cresça e aumente”. Em seguida, a tolha sobre a qual repousava o pão,

é sacudida para dentro do forno ao mesmo tempo que se diz “pega que é tudo teu” ou a

reza popular “Nosso Senhor te acrescente como o trigo no fermento e a graça de Deus

para Sempre Ámen”. Fecha-se, de seguida, a porta do forno. Uma outra oração que

acompanha este processo é a seguinte: “Assim cresças tu ai/ Cuma Deus está sobre ti/

Assim cresças tu no forno/ Cum’ à graça de Dês sob’ nós todos/ Assim cresças tu na

massa / Cuma Deus cresceu em Graça.” O tempo de cozedura varia entre trinta a

quarenta minutos dependendo da temperatura do forno, avaliada pela experiência da

“padeira”. Depois de cozido o pão, é tirado com a pá de ferro. Em tempos idos, era

guardado numa “giga” ou “ jiga” (cesto em vime) para ser consumido durante a

semana.676

O alguidar de loiça vidrada (Figs.769, 770, 771 e 771A) é um contentor de forma aberta,

com perfil troncocónico e base plana, de funcionalidade múltipla.677 Mostra

frequentemente o bordo e a base amplas e dimensões diversificadas. Os bordos são

semicirculares, nalguns casos com decoração incisa no lábio, destacando-se os

exemplares do Convento678 da Piedade de Santa Cruz. Trata-se de uma peça

estritamente de uso doméstico e tanto pode encontrar-se na cozinha e servir a lavagem e

a preparação de alimentos ou para amassar pão como, igualmente, servir as funções de

higiene (a lavagem da roupa ou da louça). As peças mais grossas e de maior dimensão

podem ter sido usadas para lavagem de roupa ou como funções de higiene, por exemplo

para dar banho às crianças. Nos sítios arqueológicos insulares surgem nas variantes de

cerâmica comum e vidrada.679

676

Texto do autor inserido no contexto expositivo do Núcleo Museológico de Machico - Solar do Ribeirinho. 677

Surge categorizado na “Cerâmica de Utilização Variada” 678

Os alguidares surgem, na modalidade de loiça vidrada e com a designação de “alguidar de amassar”, nas lides domésticas conventuais (GOMES, 1995: 262). 679

Trata-se de uma peça com significativo relevo na arqueologia medieval europeia, frequentemente associada as tostadores de vários tipos de alimento (LLORET, 1990-91: 172).

Page 20: 3.4. Viver dentro de casa: a cozinha e o quarto

334

Legenda: Conjunto de três bordos e bojos de alguidares vidrados do Convento da Piedade, em Santa Cruz (CP/03-65, CP/03-34, CP/03-1, Fig.769). Pastas de textura semi-compactas a oscilar a tonalidade de cor de tijolo (S37) e cor bege

(L45). EB: 23mm, EBJ: 7mm, EB: 24mm, EBJ: 7mm, EB: 31mm, EBJ: 15mm.

Legenda: Fragmento de bordo e bojp de alguidar com vidrado interno a verde-escuro e de pasta semi-compacta de cor creme, M75, exibindo um orifício logo abaixo do bordo. Bordo extrovertido com espessamento externo (CTM/03-20-19,

Fig.771A). DE: 400mm, EB: 23mm, EBJ: 17mm.

Uma outra peça de cerâmica que pode estar associada ao fabrico de massa de pão é a

forma cilíndrica de cerâmica (Figs.452 a 455). Apesar não existir unanimidade na

associação desta forma ao fabrico do pão, contestando-se a sua utilização como

cobertura de recipientes cerâmicos ou como base para tornear cerâmica,680 a sua

presença nos contextos dos séculos XVI e XVII de Machico levanta uma série de

interrogações, que abordaremos de seguida.

Cláudio Torres identificou esta forma cerâmica recolhida nos Fornos da Mata da Machada

(séculos XV e XVI) com a tradição açoriana do (“bolo de pedra, o bolo de tijolo ou o bolo

do Pico”), onde a massa de pão é espalmada e cozida sobre uma placa de cerâmica

assente sobre um fogareiro (TORRES, s.d., s/p.), aproximando-se, também, ao popular

bolo do caco madeirense conhecido desde o século XIX (pedra circular em cantaria mole

refractária).681 Rui de Sousa de Martins, que estudou as bases de pedra e de cerâmica

relacionadas com o fabrico do pão açoriano, mostra um tipo de grelhador de cerâmica

680

Cfr., Rosalina Carmona, "Formas de Biscoito ou Pratos de Torno", Al-Madan, II.ª Série, N.º 14, Almada, 2006, pp. 131-132. 681

Que nos Açores corresponde à laje de cozer bolo (MARTINS, 1997: 128-134).

Page 21: 3.4. Viver dentro de casa: a cozinha e o quarto

335

baixa de feição circular (conhecido por “cozideira” em Santa Maria e Graciosa, “sertã” em

São Miguel e “tijolo” nas restantes ilhas), que fazia parte do equipamento de cozinha de

uso corrente pelos diferentes estratos sociais nos séculos XIX e XX (MARTINS, 1997:

135; MARTINS, 1995: 493-499). Portanto, é muito provável que os fragmentos de

cerâmica de importação encontrados principalmente na Junta de Freguesia de Machico,

com bordos geralmente convexos e as superfícies internas com aguadas acentuadas e

círculos concêntricos digitados,682 sejam os antecessores dos exemplares do século XIX,

com uma relação directa com o fabrico de géneros farináceos (Figs.452 a 455). Para a

área urbana de Machico é a interpretação plausível, uma vez que as peças são oriundas

dos centros de fabrico continentais, sendo difícil enquadrá-las no contexto local do fabrico

das peças a torno. Por outro lado, é possível que estas peças de ir ao lume, assentes

possivelmente sobre pequenos fornos de barro, de pedra ou fogareiros, tenham servido

para grelhar ou assar outro tipo de alimentos, nomeadamente assar peixe.

Legenda: Fragmento de base e bordo de um possível disco de cerâmica comum de pasta com trama semi-compacta de cor cinza (M31) e alaranjado (M25), com abundantes componentes micáceos (JFM/00-22-76, Fig.453) Bordo direito e lábio

aplanado. DE: 180mm, EB: 12mm, EB: 7mm.

Do ponto de vista geral da sua caracterização, estes discos cerâmicos apresentam

diâmetros de 180mm e 169 mm e as pastas de textura semi-compactas de tonalidades

variadas (cinzenta, P71; laranja, M25;rosa, M37 e M37), com a particularidade de terem

as superfícies internas tratada à base de uma aguada e brunimento, formando círculos

concêntricos (Figs.452 e 455). As bases são de assentamento discoidal.

682

Um exemplar do Forno de Santo António da Charneca apresenta os caracteres incisos “Pan” (BARROS, CARDOSO, GONZALES, 2000: 72).

Page 22: 3.4. Viver dentro de casa: a cozinha e o quarto

336

Na “colónia” espanhola de La Isabela surgem, também, classificados exemplares

análogos, as torteiras, que segundo os investigadores são peças que surgem

correlacionadas com o fabrico de pão de mandioca. Eram usualmente feitas em cerâmica

e, ocasionalmente, em pedra. A maior concentração deste tipo de fragmentos foi

observada na área residencial da elite, deduzindo-se que eram usadas em contexto

doméstico. Uma outra assinalável concentração destes discos cerâmicos foi verificada na

zona da praia, local onde se crê que existiram os estaleiros navais primitivos, sendo

eventualmente um dado para sugerir a utilização destas peças na preparação de comida

a bordo das embarcações (DEAGAN, CRUXENT, 2002: 173, Figura 7.11.). Esta última

hipótese foi, também, avançada por Cláudio Torres, em relação aos exemplares da Mata

da Machada: “Seria, talvez uma das maneiras de fazer pão durante as longas travessias

marítimas e que perdura na tradição insular” (TORRES, s/d: s/p.).

Page 23: 3.4. Viver dentro de casa: a cozinha e o quarto

337

3.4.4.2.2. O fabrico de queijo e do cuscuz Dois fragmentos de cerâmica comum utilitária com orifícios nas paredes, provenientes da

área residual do Mosteiro de Jesus da Ribeira Grande (Fig.478, MJ-99 -Peça n.º 36) e da

Junta de Freguesia de Machico (Fig.491, JFM/00-3-362). A existência de orifícios

cerâmicas antevê uma utilização variada: na cozedura de alimentos em vapor (cuscuz e

queijo) ou, ainda, como coador de auxílio à preparação de vários géneros alimentícios.

Também é provável que tivessem sido utilizados para separar ou peneirar

trigo moído, conforme demonstram os dados arqueológicos recolhidos, por exemplo, em

La Isabela (DEAGAN, CRUXENT, 2002: 170).

O exemplar do Mosteiro de Jesus (Fig.478) com aproximadamente catorze orifícios

circulares e as superfícies ligeiramente inclinadas, pode ter servido de molde (cincho)

para a confecção do queijo, servindo para comprimir a “massa” do leite talhado, saindo o

soro pelos furos. O índice elevado de fragmentação da peça impede uma aproximação

integral à sua morfologia. Por outro lado, a porção de base e de arranque de parede de

um possível coador da Junta de Freguesia de Machico, pertencente ao grupo de pasta de

fabrico local, exibe quatro furos (apenas um deles completo), com um diâmetro de 5mm.

O núcleo apresenta-se de textura compacta, com tonalidades avermelhadas (R11),

contendo desengordurantes líticos em número reduzido.

O cuscuz constava do receituário tradicional das cozinhas dos solares da antiga Vila de

Machico, fazia parte o cuscuz. De acordo com a tradição oral, era costume as casas

abastadas contratarem uma pessoa especializada na confecção desta receita.

Normalmente era um prato confeccionado em Dezembro, antecedendo a matança do

porco. Um interessante exemplar da olaria madeirense dos finais do século XVIII

encontra-se patente ao público no Núcleo Museológico de Machico – Solar do Ribeirinho

(Figs.1580 e 1581, NMM.SR/06-26).

Legenda: Recipiente (coador/queijeira) com orifícios (MJ-99- Peça n.º 36, Fig.478). Fragmento contendo uma porção de

parede de um possível coador exibindo perfurações com um diâmetro médio de 2mm. Núcleo de textura compacta, de cor castanha N27 e escassos ENP. EP: 5mm.

Page 24: 3.4. Viver dentro de casa: a cozinha e o quarto

338

3.4.4.2.3. A utilização do almofariz na cozinha quinhentista

Os almofarizes exumados (Figs. 431 a 434), apresentam as paredes mais ou menos

espessas e as pastas claras (rosadas, M67 e beges, K71). O exemplar JFM/00-4-162

(Fig.431), com bordo introvertido, lábio afilado e perfil troncocónico invertido (onde

paredes mostram indícios muito ténues de vidrado estanífero), mostra semelhanças

morfológicas com uma peça esmaltada exumada do interior do poço-cisterna de

Silves (GOMES, GOMES, 1991: 471). Um outro almofariz, também de pastas claras,

mostra o bordo saliente e lábio aplanado com as superfícies demarcadas por um

conjunto de estrias fundas (Fig.434, S.RIB/98-4-394). com semelhanças morfológicas

com um exemplar existente no Museu da Cidade, em Lisboa.683

Grosso modo, eram utensílios usados eram utilizados para pisar ou triturar

substâncias sólidas com um pilão, quer nos preparos de cozinha (esmagar e pisar

moer ervas aromáticas ou especiarias e triturar legumes); ou eventualmente para a

fabricação de fármacos.684 O pé largo e plano garantia uma maior estabilidade à peça,

sobretudo no equilíbrio com o uso do pilão. O fragmento de bordo e bojo do século XVI da

Junta de Freguesia de Machico (Fig.432, JFM/06-22-3025) mostra uma particularidade

que está seguramente associada à necessidade da sua utilização: uma reentrância

em forma de bico vertedor. Na quantificação geral das cerâmicas por grupo tipológico

(Fig.1482), os almofarizes atingem os valores mais altos na Junta de Freguesia de

Machico (88,24%).

683

Cfr., Rodrigo da Silva e Paulo Guinote, O Quotidiano na Lisboa dos Descobrimentos, Lisboa, 1998, pp. 128-129. 684

Ou no caso da arqueologia subaquática, e com os exemplares metálicos, associados aos cuidados médicos a bordo (BETTENCOURT, 2005: 262).

Page 25: 3.4. Viver dentro de casa: a cozinha e o quarto

339

Legenda: Fragmento de bordo e bojo de um almofariz de perfil troncocónico de cerâmica comum de pasta de textura mais ou menos grosseira de cor creme (K71), com desengordurantes micáceos e quartzosos, de pequena e média dimensão, distribuídos regularmente sobre a peça (JFM/06-22-3025, Fig.432). Bordo de tipologia introvertido

e lábio afilado. O bordo exibe uma reentrância em forma de bico vertedor. DE: 120mm, EB: 30mm, EBJ: 10mm.

Legenda: Fragmento de bordo e parede de almofariz, de perfil troncocónico invertido (JFM/00-4-162, Fig.431). Pasta grosseira de cor rosada M67, com escassos ENP. DE: 130mm, EB: 23mm, EBJ: 9mm.

11cm

2 cm

Page 26: 3.4. Viver dentro de casa: a cozinha e o quarto

340

3.4.4.3. Recipientes para armazenamento e o transporte de líquidos e sólidos

Dentre os recipientes cerâmicos mais comuns para a armazenagem de líquidos e sólidos

destacam-se os cântaros, as talhas e as anforetas, fabricados em pastas de cerâmica

comum, exceptuando os vidrados internos das anforetas e dos barris.

Os cântaros685 eram usados frequentemente no transporte de água da área de recolha

para a área de uso, bem como para conter esse líquido na área de cozinha. São vasos,

em geral, de médio e grande porte e com uma dimensão superior às bilhas, e que

morfologicamente se distinguem daquelas por terem duas asas verticais, colo alto e corpo

tendencialmente globular e ovóide. Os exemplares estudados, sobretudo do grupo de

pasta de Aveiro, restringem-se morfologicamente a elementos de bordo e bojo,

componentes de pança e alguns possíveis fundos de base plana (Figs.458,459,485, 534,

565, 566, 567 e 575). Destacam-se os artigos da Ribeira Grande (Figs.565 a 567) com os

brunidos característicos e os apontamentos decorativos a branco (à base de linhas

circulares, ondulantes ou paralelas, Fig.534).

O barril é um outro recipiente fechado que serviu para armazenagem e transporte de

líquidos. Estas peças estão presentes unicamente nos estratos do século XVI da Junta de

Freguesia de Machico e nas prospecções da ilha do Porto Santo, nomeadamente na área

próxima de uma nascente de recolha de água, junto à primitiva Capela de Graça

(Figs.460 a 463). Possuem um corpo globular de perfil ovóide, um gargalo do tipo

anforeta, estreito e tendencialmente de lábio extrovertido. Na presente inventariação

dispomos, apenas, de fragmentos de parede do corpo, bordos com gargalo e asas de fita

com caneluras. As pastas dos exemplares em estudo são, normalmente, de textura

compacta de cor rosada (M 47, M37 e L51) e creme (L71), com desengordurantes

quartzosos de grão fino e médio, de distribuição regular. Os bordos são ligeiramente

extrovertidos e os lábios boleados, com vidrado interno.

As paredes podem ser confundidas com as anforetas, pois exibem estrias e bases

convexas semelhantes. Estas estrias podem ser o resultado de um instrumento cortante à

roda de oleiro. É uma forma que se distingue morfologicamente das anforetas pela

existência de duas asas laterais. No inventário das espécies com utilidades domésticas e

de serviço à comunidade do Convento da Encarnação do Funchal lê-se “um barril para

água”, ilustrando a sua utilidade no quotidiano conventual (GOMES, 1995: 262). A

estratégia de nivelamento e utilização da peça pode ser iconograficamente observada nas

representações do Livro de Horas de D. Manuel, assentes no solo ou em suspensão,

associadas aos trabalhos agrícolas.

685

É um tipo de peça que surge, por exemplo, na iconografia do século XVI, nomeadamente no Libro de Horas de Bretiandos da Academia de Ciências de Lisboa.

Page 27: 3.4. Viver dentro de casa: a cozinha e o quarto

341

Alguns dos exemplares destes barris são confeccionados no grupo de pasta branca, com

aproximações ainda não confirmadas ao centro de fabrico sevilhano e com paralelos às

formas da cerâmica portuguesa da Época Moderna recuperadas em Inglaterra

(GUTIERREZ, 2007: 70), encontrando ali paralelos sob a designação de “Merida-type”

(HURST, NEAL, BEUNINGEN, 1986: 70-71).

Legenda: Fragmento de bordo e bojo de um cântaro de cerâmica comum importada de Aveiro (MJ-VW-99- XXVI, Fig.567). Bordo extrovertido com lábio arredondado. Superfícies engobadas de cor alaranjada N39, observando-se linhas brunidas

de aplicação vertical. Observa-se uma saliência horizontal junto ao bordo. EB: 13mm, EBJ: 4mm.

Legenda: Fragmento de gargalo de um barril de cerâmica comum com pasta de textura compacta de tonalidade creme (L71), com desengordurantes quartzosos e líticos (CG-PS/07-02, Fig.462). Bordo direito com ligeira inflexão externa e lábio

convexo. EB: 17mm

1 cm

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342

Legenda: Conjunto de doze componentes (asas, bordos, gargalos, paredes e fundos) de barris de cerâmica comum, contendo as pastas de textura compacta de cor rosada (M47) e creme (L71), com desengordurantes quartzosos de grão fino e médio (JFM/06-22-3077; JFM/06-22-3059; CTM/03-9-3489; JFM/06-22-3062; JFM/06-22-3051; JFM/06-

22-97; CTM/03-14-736; JFM/06-22-3053; JFM/06-22-3054; JFM/06-22-3044; JFM/06-22-3065; JFM/06-22-3052, Fig.463).

Dentre os vários conjuntos de cerâmica de armazenamento e de transporte, cuja

produção se aponta para a área da Andaluzia, destaca-se a presença das anforetas

ou das olive jars, termo divulgado por John Goggin686 nos anos sessenta do século

XX. Os exemplares foram identificados em quase todos os sítios arqueológicos em

estudo (Convento da Piedade, Misericórdia, Junta de Freguesia de Machico, Mosteiro

de Jesus, Capela da Graça e Vila Franca do Campo), com assinaláveis valores no

quadro de quantificação do grupo tipológico (Fig.1483).

Geralmente são artigos que têm pastas de trama grosseiras ou semi-compactas com

tonalidades que variam entre o creme (K91) e o rosa (L25, M37) e as superfícies

internas vidradas (com variações entre o verde escuro S91, verde claro N89 e

amarelo escuro P 65 e engobadas de cor alaranjada, M39).

A forma dos bordos dos exemplares em estudo apresentam consideráveis variantes,

o que pode indicar, a priori, diferentes cronologias para o seu fabrico. Com efeito,

alguns gargalos, encontrados em estratos da primeira metade do século XVII, de

bordo vertical e lábio afilado (Fig.467), mostram semelhanças morfológicas com a

forma B do "estilo médio" (1580-1800) da classificação cronomorfológica de John

686

Vide John Goggin, The Spanish Olive Jar. An introductory study, Sidney and W. Yale, Yale University Publications in Anthropology (papers in Caribbean Anthropology, vol. 62), 1960. O investigador classificou as anforetas em três períodos, com base na sua morfologia: o "estilo antigo" (1500-1580), o "estilo médio" (1580-1800) e o "estilo recente" (1800-1850). O conceito de olive jar, proposto por Goggin, é hoje comummente aceite para designar todo um conjunto de contentores cerâmicos navais, pois, segundo o autor: "it seems best to use the term olive jar as the equivalent to a type name with no local ethnographic or linguistic significance" (GOGGIN, 1960:5). No entanto, apesar do termo à partida pressupor o transporte de azeite, estes recipientes serviram, inclusivamente, para o transporte de outros produtos líquidos ou sólidos.

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343

Goggin. Um dos gargalos mostra no interior do bordo uma ligeira concavidade para

rolhamento. Outros exemplares (Figs.465, 466,458 e 469) com bordos altos e

espessados, ligeiramente extrovertidos, assemelham-se a um outro encontrado em

níveis do século XVI, nas escavações da Praça Colombo, no Funchal e integra o

“estilo antigo” da sistematização de Goggin (GOMES, GOMES, 1998:324, Fig. 7).

Certos fragmentos mostram, ainda, sinais de deficiente qualidade de fabrico, como

são as bolhas de ar na pasta, evidenciando, assim, um carácter utilitário sem

preocupações de acabamento. São, aliás, recipientes normalmente de corpo com

tendência ovóide, indicados para a estiva e transporte marítimos (as formas

permitiam maximizar a integridade estrutural do contentor, enquanto que a pequena

abertura permitia um fecho mais fácil com um mínimo de câmara de ar no interior). O

próprio gargalo, mais estreito e espesso, constituía um ponto seguro de fixação

destes contentores às embarcações.

Estes recipientes cerâmicos, como o próprio nome indica, eram utilizados como

contentores de azeite, mas também serviram para embalar outros produtos líquidos

ou sólidos (óleo lubrificante,687 óleo de iluminação, vinho, vinagre, mel, água e frutos).

A documentação castelhana associada à Casa da Contratação refere, segundo um

estudo de Colin Martin, uma terminologia própria consoante a capacidade das

anforetas: as botijas de maior dimensão para o transporte de vinho; as botijas medias

ou peruleras 688 para o azeite e as botijuelas para o mel (MARTIN, 1979: 284). A este

propósito, os livros de vereações da Câmara Municipal do Funchal fornecem

interessantes indicações. Referem, em situações pontuais, o desembarque de azeite

de Sevilha, Lisboa e do Algarve, que vinha armazenado em botijas e em jarras.689

687

Dois fragmentos de parede do sítio arqueológico da Junta de Freguesia mostram as superfícies internas escurecidas, provavelmente por qualquer matéria resinosa. 688

Sobre o conceito de”perulero” cfr., Florence Lister e Robert Lister, A Descriptive Dictionary for 500 years of Spanish-Tradition Ceramics (13th Through 18th Centuries), The Society for Historical Archaeology, 1976, p. 69. 689

" (...) João Tavira e declarou que tinha duzentas arrobas de azeite em botijas e em jaras do Algarve (...) " (ARM, CMF, Livro de Vereações, L.º1326, fl.9, 1632). Noutra situação, as vereações fazem referência à dimensão das anforetas: " (...) declarou Pero Antunes que não tinha azeite mais que (ate?) duas botijas grandes que herão para seu comer e que de botijas piquenas (...) " (ARM, CMF, Livro de Vereações, L.º 1324, fl.14v.º,1626).

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344

Vários conjuntos de anforetas têm sido encontrados em sítios arqueológicos

terrestres e subaquáticos portugueses, europeus, africanos690 e americanos,

sugerindo uma vocação de recipiente comercial marítimo, acompanhando os trajectos

de ligação entre a Espanha e os seus entrepostos.

Os investigadores têm apontado, frequentemente, a zona da Andaluzia,

nomeadamente o bairro de Triana, em Sevilha, como um possível centro de fabrico

destes contentores cerâmicos (MARKEN, 1994: 48; MARTIN, 1979: 299), embora

também se sugira, com base na documentação histórica da Invencível Armada, uma

hipotética produção (pelo menos a título temporário) na zona de Lisboa. Num

documento citado por Colin Martin, refere-se que, para a organização logística da

Invencível Armada, as cidades de Sevilha e Lisboa, forneceram, cada uma, em 1586,

cerca de metade de 100.000 peças de cerâmica, incluindo pratos, escudelas, taças,

panelas e jarros de barro vidrado: "The 100,00 pieces of pottery required were to be

supplied by Seville and Lisbon, at a unit cost of 10 maravedis, each town providing

half of the order." (MARTIN, 1979:299). Acrescenta, ainda, o autor, também

corroborado por Mitchell Marken (MARKEN, 1994:48), que os conjuntos cerâmicos,

incluindo as olive jars, a cerâmica vermelha e a chamada “Mérida-type”, são comuns

nos espólios cerâmicos dos naufrágios de embarcações.

Do ponto de vista dos exemplares disponíveis, referia-se o exemplar pequeno

recuperado nas escavações de Manuel Sousa de Oliveira em Vila Franca do Campo

(Fig.469, VFC/MSO-18).

690

Recipientes desta natureza foram recolhidos no Quénia, Mombaça, quer nos destroços de uma escavação de uma fragata portuguesa "Santo António de Tanna", afundada em 1697, no porto de Mombaça (SASSOON, 1981:119), quer nas escavações no Forte de Jesus (KIRKMAN, 1974: 119, 120, 296).

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345

Legenda: Exemplar de anforeta de pastas de trama semi-compacta, de cor rosada, com elementos não plásticos quartzosos, vidrada pelo interior (VFC/MSO-18, Fig.469). Bordo espessado, engrossado. DE: 70mm, ALT: 190mm.

Legenda: Grupo de seis gargalos de anforetas de cerâmica comum com as superfícies internas vidradas do Mosteiro de Jesus, Ribeira Grande (MJ-VW-98-432; MJ-VW-98-433; MJ-VW-98-434; MJ-VW-98-435; MJ-VW-98-436; MJ-VW-98-437;

Fig. 468).

Um outro receptáculo de uso multifacetado de corpo bitroncocónico, sem asas, era o

pote. Além de ter servido para guardar um certo tipo de alimentos como o mel, o doce e a

banha, é provável que também acompanhasse os serviços de loiça à mesa, por exemplo

para conter água.691 A sua morfologia encontra afinidades com as das panelas de ir ao

lume. A distinção entre as duas formas reside nas características de apresentarem uma

maior dimensão e de não terem asas e sinais de exposição ao fogo. No inventário de

691

Conforme se comprova pelo inventário Setecentista dos bens do Convento da Encarnação do Funchal: “1 pote para água”, na serventia dos oficiais (GOMES, 1995: 265).

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346

bens que a infanta D. Beatriz, mãe do Rei Dom Manuel I, em 1507, deixou ao Convento

da Conceição de Beja consta a existência de potes e panelas de importação com

afinidades de uso comuns: (…) três potes pequenos de conserva de borragees, (…); dous

potes de Castella cheos despecie de limgoa de vaca daçuquar, duas panelas de Valemça

gramdse com huu pouco deaçuquere rosado, huu pote azull com huu pouco de

daçuquare rosado” (FREIRE, 1914:88). A protecção do conteúdo deste tipo de peças

poderia ser feito por testos de barro ou por tecidos envoltos num cordão de amarração.

Do excerto de um inventário do início do século XVII, por morte de Fernão Mascarenhas

de Elvas, se constata o método de cobertura destas peças: “Hum pano de potes de rrede

nova três tostois” (PIRES, 1897: 735).

O regimento de taxas dos oleiros de Coimbra descreve um pote, de aspecto grosso para

azeite, bem cintado (CARVALHO, 1917, VI: 233). Além de ter servido para guardar um

certo tipo de alimentos como o mel, açúcar, conservas várias 692 e banha, entre outros, é

provável que também acompanhasse os serviços de loiça à mesa. Também no século

XVI era costume envolver as peças com verga, de modo a evitar que quebrassem com

facilidade. Um passo do Inventário da Guarda-Roupa de D. Manuel I mostra esse

costume de forrar estes vasilhames: “cimquo potes de barro forrados de vergua”

(FREIRE, 1914: 143). Este hábito era frequente no quotidiano oitocentista madeirense

(cestaria), sobretudo na arte de envolver em vime os garrafões de vinho acondicionados

nas adegas.

Salientamos os poucos exemplares identificados. Um fragmento de bordo e bojo de

cerâmica comum, com o bordo espessado externamente, do Mosteiro de Jesus da

Ribeira Grande (Fig.439). E um outro (Fig.534), de pasta de textura compacta em tom

alaranjado, M37 e com elementos não plásticos micáceos de fina dimensão. A superfície

externa exibe uma decoração a pintura branca, formando motivos geométricos.

692

Veja-se, por exemplo, no inventário do Mosteiro de Évora, 1507, “potes de barro verdes com comserva de peras e fruitas” (FREIRE, 1914: 90).

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347

Legenda: Fragmento de parede do corpo de um possível pote de cerâmica fina não vidrada, com pasta de textura compacta em tom alaranjado, M37, com elementos não plásticos micáceos de fina dimensão (MJ-VW-99-Peça99, Fig.534). EP: 6mm.

As talhas são outros recipientes muito frequentes nas épocas Quinhentista e Seiscentista.

Contentores por excelência, eram executados em grande dimensões, com bordos

espessados e extrovertidos, característica bem visível pela observação dos componentes

das peças inventariados (bordos e paredes, Figs.476, 477 e 502B). O já citado Regimento

dos Oleiros de Lisboa, de 1572 informa, para o oficial que é examinado no ofício, as

características técnicas da peça: “saberaa mui bem fazer talhas de agoa que serão

igoaes da grossura do barro e tenhão bons fundos e cheos” (CORREIA, 1926: 142).

A dimensão e a capacidade destes artigos cerâmicos mostram a sua utilidade como

reservatório de provisões, nomeadamente de produtos alimentares e líquidos (cereais,

vinho, azeite,693 água, entre outros). O registo in situ destas peças está, apenas, anotado

na planta de levantamento arqueológico do Convento da Piedade de Santa Cruz

(Fig.1143), no espaço da cozinha. O apontamento de António Aragão – “um vaso grande

de barro aos pedaços” - é ilustrativo da aproximação morfo-tipológica e da relação uso-

função do recipiente num ambiente conventual de cozinha, junto ao forno (Fig.1143).

Embora o registo de inventário apenas contabilize a existência de paredes destas peças

de corpo hemisférico e de base plana (com a excepção de alguns bordos vidrados do

Convento da Piedade), é possível tecer algumas considerações técnicas sobre a pré-

existência destes formas, em particular no quotidiano de Machico. Os fragmentos

inventariados mostram geralmente pastas de textura semi-compactas de tonalidade

creme (L50) ou avermelhada (M11), com inclusões plásticas quartzosas e nódulos de

barro cozido. As superfícies externas dos pedaços executados em cerâmica comum são

693

No Documento V da taxa de oleiros de Coimbra, vereações do século XVI, lê-se “Uma talha para lagar de azeite sendo bem feitas e forte per maior que seja levando até dezoito e vinte alqueires” (CARVALHO, 1917, VI: 233). Os inventários do século XVIII do Colégio dos Jesuítas do Funchal referem a importação de uma “talha de barro vermelho de Lisboa que serve (guardar o) azeite das capelas” (CARITA, 1986, II: 187).

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348

engobadas em aguadas claras e exibem pormenores decorativos incisos, como é

exemplo o fragmento de parede JFM/00-vala1.47, formando semi-círculos.

Estas peças necessitavam de outros objectos de apoio, tanto para a protecção da

cobertura através de tampas ou testos, como para o auxílio de extracção dos sólidos ou

dos líquidos do seu interior (utilizando os púcaros). Um manuscrito de Vila Franca do

Campo, de 10 de Dezembro de1678, mostra-nos esta relação de dupla utilidade: “os

talhões pequenos e púcaros de duas asas e jarrinhas de canada e canada e meia e

garrafões, a 10 reis, e todos terão suas cobertas [testos] e as talhas e seus púcaros”

(DIAS, 1948: 73). Uma outra postura da Ilha Terceira, do século XVIII, ilustra a confecção

para venda de talhas com os componentes de cobertura: “huma talha almagrada e

burnida com sua tampa, de quatro canadas” (RIBEIRO, 1982, I: 580). De igual modo, se

constata a relação de funcionalidade nos inventários da aristocracia seiscentista açoriana:

“2 talhas com seus puquaros e testos” (GIL, 1979: 193).

Legenda: Conjunto de cinco fragmentos de paredes de talhas com pasta de textura semi-compacta de cor creme (L50) ou avermelhada (M11), com abundantes ENP’s quartzosos e nódulos de barro cozido de tamanho médio (JFM.PC/03-22-

1924; CTM/03-20-1128; JFM/06-22-5910; JFM/06-22-5911; JFM/00-Vala3-272, Fig.477). Superfícies engobadas em cores distintas. EP: 32mm, EP: 16mm, EP: 30mm, EP: 30mm, EP: 27mm.

Este tipo de recipientes foi executado pelos oleiros insulares. Para os Açores, temos

conhecimento dos típicas talhões694 de Santa Maria (Figs.49 e 50) e, para a Madeira, as

balsas Setecencistas de Machico, peças de grandes dimensões (com 720mm de altura e

300mm de diâmetro da boca), usados para a fermentação do vinho e para o

armazenamento de água de serventia da cozinha do solar do século XVII (Fig.502B).

Outros recipientes de pequeno e médio porte, tais como as bilhas e as garrafas, que

serviram para armazenamento de líquidos serão tratados mais à frente, na discussão dos

vasilhames de serventia de mesa.

694

Cfr., infra o capítulo ”3.5.1. A produção de cerâmica local.”

2 cm

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349

Legenda: Fragmento de parede de uma talha com pasta de textura semi-compacta de cor avermelhada (M11), com abundantes ENP’s quartzosos (JFM/00-Vala1-47, Fig.476). Superfícies engobadas numa cor creme, exibindo decoração

incisa na superfície externa. EP: 12mm.

Legenda: Balsa de fabrico local madeirense pertencente à família Cupertino Câmara, cuja cronologia remonta ao século

XVIII (NMM-SR/09-29, Fig.502B). Pasta vermelha com brunido característico. ALT: 720mm DE: 300mm

10 cm

Page 36: 3.4. Viver dentro de casa: a cozinha e o quarto

350

3.4.5. Os serviços de mesa

No século XVI a utensilagem de mesa seria bastante diversificada, sobretudo para os

grupos sociais mais endinheirados. Para a serventia individual e na classe da cerâmica

comum ou vidrada (incluindo a louça esmaltada e a faiança), teríamos a escudela, a tigela

e o prato, acompanhados pelos púcaros e pelas bilhas (e nalguns casos pelos recipientes

de vidro), contando também com a presença das salseiras (no caso da comida ser

acompanhada por algum condimento servido à parte) e provavelmente de um saleiro

comum. A escudela, a tigela e o prato são peças que conquistam o gosto da mesa

moderna, adaptando-se às novas formas de cozinhar e de organizar os sabores. Os

cereais (sob a forma de pão, papas ou sopas), a carne, o peixe e o vinho constituíam

basicamente o essencial da alimentação que, inevitavelmente, se enriquece e se

acentua, sobretudo pela condimentação adquirida pelo processo da Expansão

Portuguesa.695 Há, pois, novos alimentos em circulação: especiarias, milho, tomate,

pimentos, batatas, feijão-verde, entre outros.

O acto de comer à mesa, que assentava tradicionalmente na partilha da comida em

escudelas e pratos comuns696 (ARNAUT, 1986: 77; MARQUES, 1987:1-9;

LAURIOUX, 1992: 96; FERRO, 1996: 37), tende a esbater-se, generalizando-se uma

atitude mais individualizante.697 Posteriormente ao século XVII, os modos de comer

sofrem alterações, sobretudo no que diz respeito à utilização dos talheres e do hábito

de comer-se em pratos individuais e de beber-se em copos de vidro. É possível que

muitos dos talheres fossem de madeira, à semelhança de outras utensilagens em uso

na cozinha e à mesa nesta época, e outros de metal. Do ponto de vista arqueológico,

temos apenas a referenciar o exemplar incompleto de uma colher de metal, com o

cabo cilíndrico (Fig.1314, SC/01-5258), achado em prospecção numa obra de

construção civil da Cidade de Santa Cruz.

695

Cfr. João Pedro Ferro, Arqueologia dos Hábitos Alimentares, Lisboa, 1996, pp. 15-16. 696

Esta situação esteve provavelmente na origem da expressão: "comer com alguém no prato".

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351

Legenda: Exemplar incompleto de colher, em metal. Utensílio de formato convexo semi-circular, ostentando um pequeno

cabo cilíndrico no topo com 4mm de espessura (SC/01-5258, Fig.1314). Mede 48mm de comprimento e 28mm de largura.

James Deetz, referindo-se aos hábitos de comer na América do século XVII, dá conta da

existência de uma baixela de madeira ("trencher") que era colocada sobre o centro da

mesa para uma utilização colectiva, enquanto a tigela de porcelana de importação - como

recipiente de excepção nas habitações - era colocada numa estante. Em meados do

século XVIII com o processo de individualização mais generalizado, a baixela de madeira

dá lugar à tigela de porcelana que deixa a sua função inicial, mais expositiva, para

corresponder a outras necessidades da alimentação quotidiana que afastam cada

comensal do contacto com os outros (DEETZ, 1980: 40-45).

Este costume de comer usando um recipiente comum foi, justamente, observado por Kate

Brüdt, ainda nos anos trinta do século XX, nas comunidades rurais da Ilha da Madeira: "A

comida, quási sempre muito escassa, é deitada numa cesta em forma de prato, tampa.

Geralmente põe-se a panela no chão e a tampa em cima, de maneira que esta

desempenha ao mesmo tempo a função de coador. A família acocora-se em volta da

tampa e cada qual tira o seu quinhão à mão" (BRÜDT, 1937: 86).

Nos séculos XVII e XVIII a utensilagem cerâmica de mesa herdou as formas da centúria

anterior, denotando-se, como vimos, uma maior frequência das peças para uso individual:

tigela e escudela para ingestão de alimentos (sobretudo os liquefeitos) e pratos

individuais. Dos talheres de apoio ao serviço de mesa faziam parte as facas. Dois

interessantes cabos metálicos, provavelmente do século XVIII, do Mosteiro de Jesus da

Ribeira Grande, em São Miguel (Fig.1347, MJ/99-163), mostram um comprimento de 75

mm e uma área superior mais estreita que a inferior, mais espessa e em semi-voluta. Um

outro artigo, também em ferro (Fig.1348, SC/01-5257), reproduz uma faca com uma

extremidade pontiaguda, seguida de um corpo rectangular, exibindo uma lâmina lateral

lisa, utilizada no corte. O negativo do cabo alarga-se em direcção à extremidade e ostenta

dois orifícios para conexão ao cabo, entretanto deteriorado. Mede 154mm de

comprimento, integrando a lâmina de corte com uma largura máxima de 16mm e 11mm

na área do cabo. Tratando-se de um achado fortuito de superfície no centro histórico da

área urbana de Santa Cruz é desaconselhável tecer considerações quanto à sua

cronologia.

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352

Legenda: Duas peças de um cabo, em metal recuperado das escavações do Mosteiro de Jesus, Ribeira Grande (MJ/99-

163, Fig.1347). Comprimento: 75mm.

Legenda: Exemplar de faca em ferro (SC/01-5257, Fig.1348). A lâmina de corte mede 16mm de largura e o cabo 11mm na zona de ligação à lâmina.

1 cm

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353

3.4.5.1. As louças de ir à mesa

Nesta série funcional de louça de ir à mesa incluem-se um conjunto pluri-morfológico de

recipientes, executados em cerâmica comum, cerâmica vidrada, grés e faiança. São eles:

os pratos, as escudelas e tigelas, as malgas, os copos, os púcaros e os pucarinhos, as

salseiras, os jarros ou as bilhas, as taças e as garrafas.

Nesta problemática introduzem-se algumas questões complexas e que têm a ver com o

uso social de alguns serviços de mesa, nomeadamente os de importação peninsular,

europeia e oriental e, naturalmente, da própria faiança portuguesa. Embora nos pareça

que a faiança de importação europeia e nacional fosse usada por fatias da população

com maior poder de compra,698 é compreensível depreender que a louça comum fosse

consumida por quem tinha menor poder de compra e menor prestígio social. A situação

da loiça vidrada é uma outra questão discutível. A ausência da técnica do vidrado nas

olarias insulares, antes dos meados do século XIX terá inflacionado o valor da louça

vidrada, tornando-a menos acessível do ponto de vista económico, exceptuando a pintada

em óxido de estanho. Nos estratos do século XVI é possível verificar que os valores da

cerâmica vidrada são muito baixos.

Nos séculos XVI e XVII a utensilagem cerâmica de mesa consistia, basicamente, numa

triologia de uso individual composto pela escudela, pela tigela e pelo prato. Os pratos

terão desempenhado, a priori, uma função muito semelhante à das tigelas ou das

escudelas, e consubstanciariam a serventia à mesa, através da utilização individual. No

gráfico da distribuição das principais formas cerâmicas nos sítios arqueológicos com

informação quantificável (Fig.1493) estas formas atingem os valores representativos:

44,84% na unta de Freguesia de Machico, 34,19% no Convento da Piedade e 20,97% na

Misericórdia. Surgem numa tipologia variada ao nível do bordo e variantes de abertura e

são confeccionados nos seguintes grupos tecnológicos: cerâmica comum com tratamento

das superfícies à base de engobes (incluindo o grupo de pasta de Aveiro, Figs.558 a 564);

em cerâmica vidrada (sobretudo melados com decoração geometricizante a óxido de

698

Como comprova o estudo de Isabel Fernandes “os pratos de faiança eram considerados de maior valor – quer nos custos de aquisição quer em termos de projecção social – do que os de loiça vidrada. No Mosteiro de Tibães, no rol de loiças que os beneditinos compravam nos séculos XVII e XVIII, e que foram apontando no “Livro de gasto de Congregação”, aparecem pratos de faiança e pratos vidrados especificando-se pelo menos três vezes “pratos vidrados para os criados”. Ou seja, os pratos de faiança eram utilizados no serviço aos monges e os vidrados utilizados pelos criados” (FERNANDES, no prelo: 10).

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354

manganês, Figs.761 a 767); e cerâmica esmaltada e faiança de importação nacional e

europeia (da Andaluzia, de Itália, Países Baixos e França). 699

As pastas dos pratos melados são normalmente de textura semi-compacta e homogénea

e de tonalidades rosa (M37 e N57) e bege (K91). Os bordos são de tipologia extrovertida

e os lábios boleados e afilados (Figs.761 a 767) com diâmetros variáveis a atingir

dimensões máximas de 280mm de abertura. Os outros exemplares congéneres,

executados a vidrado de estanho (sem decoração ou combinando o azul sobre o branco e

o azul e vinado com temas decorativos geométricos e vegetalistas) atingem tamanhos

significativos, ou seja, 280mm nos pratos sevilhanos do tipo Isabella Polychrome

(Figs.699, 702, 703 e 704), 223mm nos azuis lineares (Fig.706) e 225mm nos brancos

lisos sem decoração (Figs.629, 630, 708 e 709), com pastas de cor rosada (K29) e

cremes (K51 e K71). O interior destes pratos reserva um ônfalo saliente, rodeado de um

filete relevado. As bases são de assentamento e aresta.

Uma loiça muito característica à mesa dos ilhéus é o prato de importação de Aveiro

(Figs.558, 560, 561 e 564). Apresentam, geralmente, as pastas avermelhadas

compactas, com as superfícies internas engobadas e brunidas, com bordos

extrovertidos e lábios ligeiramente afilados.700 É, em síntese, um recipiente usado

frequentemente na serventia à mesa e usado para a ingestão de alimentos,

correspondendo na maioria dos casos a dimensão aproximada dos pratos de sobremesa

utilizados actualmente.

Legenda: Fragmento de bordo e bojo de um prato com as superfícies brunidas, da região de Aveiro (CPM/06-5-5842, Fig.560). Pasta com abundantes desengordurantes micáceos e quartzosos de pequena dimensão, de textura semi-

compacta de cor alaranjada (N39). EB: 8mm, EBJ: 12mm.

699

Cfr., o sub-capítulo supra “3.2.1. As importações: as cerâmicas do Reino, da Europa e do Mundo”. 700

Encontramos alguns paralelos com estes pratos em Cascais (CARDOSO, RODRIGUES, 1999:195, 202) e Almada. Um outro prato (JFM/00-3-501) com brunido interno de cor vermelha M37 (Cailleux), de pasta compacta acinzentada, encontra consideráveis semelhanças com uma forma exumada nas escavações da Ria de Aveiro (Formas 2 e 3) (AAVV, 1998:193), sobretudo na sua forma tronco-cónica e acabamento das superfícies.

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355

Legenda: Fragmento de bordo e bojo de prato com a superfície interna engobada e brunida de cor vermelha M37, (JFM/00-3-501, Fig.564). Pasta compacta, de cor cinzenta M71 e com abundantes ENP (micas e quartzo). Bordo extrovertido, de

lábio afilado. DE: 210mm, EB: 10mm, EBJ: 12mm.

Legenda: Exemplar de um prato de louça de mesa, branca lisa sem decoração exibindo uma pasta de trama semi-compacta de cor rosada (K29), (Fig. 709, CP/03-976). Superfícies esmaltadas a oxido de estanho, observando-se na parte

inferior, um ônfalo saliente e uma base concava. Bordo com inflexão externa e lábio aplanado. DE: 200mm, EB: 12mm, AL: 40mm .

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356

Legenda: Fragmento de perfil de um prato executado em faiança portuguesa da primeira metade do século XVII, exibindo decoração geométrica apenas na superfície interna (CP/03-911, Fig.639C). Bordo extrovertido e lábio

afilado. Base de assentamento anelar. DE: 220mm, EB: 5mm, EBJ: 6mm, EF: 120mm.

Legenda: Perfil de um prato esmaltado de louça de mesa, liso, sem decoração (JFM/06-22-3043, Fig. 708). Bordo não espessado de lábio ligeiramente afilado. DE: 225mm, EB: 5mm, EBJ: 10mm, AL: 30mm.

Page 43: 3.4. Viver dentro de casa: a cozinha e o quarto

357

As tigelas, as escudelas e as suas congéneres malgas, que no gráfico de distribuição

das principais formas cerâmicas atingem valores de 46,30% e 76,09% são as peças

mais comuns dentro dos grupos da cerâmica esmaltada e vidrada (Figs.1488 e 1501).

As escudelas são peças de serviço de mesa, na linha morfológica da tigela, mas com a

particularidade de exibirem externamente uma carena que as singularizam das demais

tigelas. Usada para serventia de alimentos líquidos ou liquefeitos, surge no registo

arqueológico na modalidade tecnológica de cerâmica vidrada (melado com decoração

a manganês e a verde liso, Figs.749 a 755) e esmaltada (Figs.624 a 628). Estas

últimas, produzidas em série e fazendo uma dupla com os pratos esmaltados lisos e

com decoração, atingem diâmetros de 164mm e as bases são geralmente em pé de

anel, com a particularidade de mostrarem apêndices plásticos no bojo. Um exemplar

esmaltado (Fig.723, JFM/06-22-3521), com uma asa lateral em formato triangular

recortado (tipicamente conhecido por escudela de orelhas), foi recolhido dos estratos

do século XVI da Junta de Freguesia de Machico, e é amplamente retratado com

decoração dourada na pintura portuguesa do século XVI Genericamente estas

escudelas mostram um corpo hemisférico aberto, o lábio biselado ou boleado e com um

carena acentuada. As bases variam entre o assentamento discoidal e em aresta.

Legenda: Fragmento de uma possível asa de uma escudela de formato triangular (FM/06-22-3521, Fig.723). Pasta de textura compacta, de tonalidade clara (L71), com escassos desengordurantes. Bordo direito, lábio afilado. EB: 25mm.

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358

Legenda: Escudela carenada de pasta compacta, de cor creme K91, com escassos ENP e superfícies meladas (CTM/03-19-16, Fig.754). Bordo ligeiramente extrovertido, de lábio convexo e base de assentamento anelar.

DE: 175mm, EB: 6mm, EBJ: 9mm.

Fragmento de corpo de taça de faiança esmaltada a branco. Pasta compacta de cor branca K71. Bordo ligeiramente extrovertido e lábio convexo (JFM/00-4-4, Fig.656). Apresenta na superfície externos motivos predominantemente vegetalistas, articulados com decoração geométrica. O fundo da peça apresenta círculos concêntricos. Base de

assentamento anelar. DE: 110mm, EB: 4mm, EF: 7mm.

As malgas assemelham-se neste estudo, a uma vasilha em forma de calote de esfera, de

tamanho mais reduzido que a escudela ou a tigela. Aparece, na maioria das vezes, em

vidrado plumbífero e estanífero. Teriam provavelmente a mesma função à mesa das

escudelas e tigelas ou ainda a substituição das salseiras (pratinhos pequenos para a

apresentação de condimentos). A taxa dos malegueiros de Coimbra de 1573-1574 refere

as malgas como vidradas por dentro e por fora e com a particularidade de serem

semelhantes às “porçolanas dellguada da borda” ou “outras majores repolgadas pollas

bordas” (CARVALHO, 1917, VI: 234).

Page 45: 3.4. Viver dentro de casa: a cozinha e o quarto

359

As tigelas eram peças igualmente imprescindíveis nos lares quinhentistas, pois eram

usados para diversas finalidades, entre as quais a de cozinhar e a de servir alimentos.

Surgem nas variantes tecnológicas de cerâmica comum (inclusive nas séries de

importação de Aveiro (Figs.554 a 556, e nos conjuntos de produção das olarias

insulares, Figs.495, 925, 926, 1052 e 1053 e Quadro 5), vidrada, esmaltada, faiança

(Figs.633 a 635, 641 a 643, 653 a 658) e cerâmica preta (Figs.946 e 947), atingindo

valores significativos nos gráficos de distribuição morfo-tipológicas dos sítios

arqueológicos inventariados (Fig.1501). De uma maneira geral possuem os bordos

direitos ou com inflexão externa e lábios de tipologia afilada ou convexa.

É interessante verificar que na lista de preços das posturas funchalenses de 1587701 o

termo tigela surge com duas funcionalidades individualizadas, “tigella de fogo de duas

canadas” e “tigella de comer”, demonstrando a versatilidade desta peça como apetrecho

culinário e de serventia de mesa. No entanto, a leitura do documento pode revelar três

tipos de tigela, a de comer, a de fogo e a tigela propriamente dita (Hua de quoatro orelhas

grande oitenta rs, outra pequena cinquo rs). Quanto aos indicadores de capacidade e de

tamanho, verificamos que a tigela de fogo possuía três tamanhos: uma maior, de “três

canadas”, uma intermédia de “duas canadas” e “huma mais pequena”, a dez réis. Um

exemplar de perfil de cerâmica comum de importação (Fig.437, JFM/06-22-3088), com

uma pasta de trama semi-compacta, núcleo acastanhado (N49, com desengordurantes

micáceos e quartzosos) e bordo direito, mostra nítidos sinais de exposição ao fogo, em

ambas as superfícies. Pode, neste caso, coincidir com a utilidade variada desta peça nas

lides de cozinha e de mesa da Época Moderna.

Na relação de posturas da Ilha Terceira de 1788 referem-se dois tamanhos, as “tigellas

grandes” e as “menores cada hua cinco reis” (RIBEIRO, 1982, I: 580). É admissível que a

designação de tigela, na actualidade, signifique um vaso para beber ou para uso

doméstico, de acordo com as dimensões, sendo a expressão tigela de fogo muito comum

no século XX, para a distinção da loiça de água (RIBEIRO, 1984: 61). Esta mesma

investigadora expressa a difusão do termo tigela associado as mais diversas utilidades no

século XVI, respectivamente as modalidades de cerâmica comum e vidrada: ”Além da

tigela de fogo propriamente dita, existiam “tigelas para gente”, tigelas maiores “para

comer em companhia de gente”, tigelas para salgar carne, tigelas com seu cabo de

palmo, tigelas para cozer lampreia e tigelinhas aferidas para se saber as onças e

quantidade de sangue que se tirava e que todos os sangradores e barbeiros eram

obrigados a possuir em reserva, e havia “outras maiores respolgadas pelas bordas”, isto

é., Com repolego (cordãozinho torcido de barro)” (RIBEIRO, 1984: 62; CARVALHO, 1917,

701

Cfr., AHM, Vol. I e II, 1931.

Page 46: 3.4. Viver dentro de casa: a cozinha e o quarto

360

VI: 193). Este uso multifacetado da tigela à mesa da Época Moderna complementa-se

com o uso da tigela para a serventia da batatada, um doce habitual no Natal do século

XVII, confeccionado com açúcar e batata (e eventualmente almíscar), sendo uma doçaria

remetida inclusive da Madeira para Lisboa (GOMES, 1995: 142). Tratava-se de uma

doçaria que exigia um recipiente de suporte e daí provavelmente o recurso às tigelas para

a sua conservação. No Convento da Encarnação do Funchal era habitual a importação de

louça para a serventia de doces à comunidade de religiosas e para oferta (GOMES, 1995:

262-265). Curiosamente, os oleiros de Coimbra confeccionavam, também, variantes

“majores para na comer companhia de gente Reall” (CARVALHO, 1917, VI: 233).

Estas vasilhas, com especial significado para as de cerâmica comum não exibem

frequentemente sinais de terem sido utilizadas ao lume. As bases são de assentamento

anelar e as superfícies apresentam-se engobadas e polidas, característica muito singular

das peças utilitárias das produções de Aveiro. Os diâmetros variam entre os 150mm e os

160mm. Nas variantes vidradas, as paredes são tipologicamnete convexas e exibem,

pontualmente, a cobertura com vidrado verde que escorre em parte para o exterior da

parede, e um vidrado amarelado interior, coincidindo com a tradição árabe (Fig.745,

JFM/06-22-86). As pastas mostram tonalidades rosas (M39) com núcleos de textura

compacta.

Legenda: Fragmento de bordo e bojo de uma tigela de cerâmica comum com nítidos sinais de exposição ao fogo, notando-se, na superfície interna, um engobe à base de uma solução avermelhada (JFM/06-22-3088, Fig.437). Pasta de textura

semi-compacta com abundantes ENP’s micáceos e quartzosos de coloração acastanhada (N49) Bordo direito com canelura externa e lábio arredondado. DE: 185mm, EB: 14mm, EBJ: 5mm.

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361

Legenda: Fragmento de perfil de uma tigela de cerâmica comum de pasta acastanhada (M49), possuindo uma pasta de trama pouco compacta com desengordurantes distribuídos de forma irregular (mica e quartzo). Bordo direito e lábio

aplanado (JFM/06-22-3085, Fig.435). Base de assentamento discoidal. DE: 175mm, EB: 7mm, EBJ: 6mm.

Legenda: Fragmento de bordo e bojo de uma tigela de cerâmica comum com bordo espessado externamente e lábio convexo, com as superfícies engobadas em tonalidade rosa (M37), e decoração incisa com reticulado (JFM/06-22-98A,

Fig.436). Pasta de textura semi-compacta de tonalidade castanha clara (M33), com elementos não plásticos pouco visíveis. EB: 150mm, EBJ: 6m.

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362

Legenda: Conjunto de seis fragmentos colados de um perfil de uma tigela com bordo ligeiramente extrovertido e lábio convexo, exibindo uma pasta de trama compacta de tonalidade rosa (M39), com escassos ENP’s (JFM/06-22-86, Fig.745).

Superfície externa de tonalidade verde e interna de tonalidade amarelada DE: 200mm, EB: 6mm, EBJ: 8mm.

Legenda: Fragmento e bojo de tigela, de cerâmica preta, de pasta não muito bem depurada de cor castanha escura S51 (CTM/03-19-18, Fig.946). O bordo é ligeiramente espessado, de lábio convexo. DE: 225mm, EB: 12mm, EBJ: 5mm.

As taças equivalem morfologicamente à tigela. Todavia, são peças de maiores

dimensões, com diâmetros externos normalmente superiores a 200mm. Seriam peças

preferencialmente para a utilização individual no serviço de mesa, designadamente na

preparação de alimentos e ou para levar condimentos. Do ponto de vista quantificativo,

ocorrem em números expressivos no Convento da Piedade de Santa Cruz (com 92,31%,

Fig.1497), nomeadamente pela presença das faianças portuguesas dos séculos XVII e

XVIII. Além da faiança, estas taças estão presentes nas modalidades tecnológicas da

cerâmica comum e de cerâmica vidrada (Figs.438, 659 a 632B e 741).

Page 49: 3.4. Viver dentro de casa: a cozinha e o quarto

363

Legenda: Fragmento de perfil de taça esmaltada a branco e pintada a azul-cobalto. Predominam os motivos de natureza fitomórfica e geométrica. Pasta semi-compacta de cor amarelada K91 e com escassos ENP (ALF/00-4-52, Fig.661). Bordo

espessado externamente com lábio convexo e fundo de assentamento discoidal. DE: 200mm, EB: 8mm, EBJ: 6mm.

Os púcaros ou os pucarinhos exibem formas geralmente globulares, de tamanhos

distintos (alguns dos quais em cerâmica fina não vidrada), com adereços de asa verticais.

Utilizavam-se à mesa para a serventia de líquidos (conter e beber), embora também se

admita a sua utilização na cozinha, considerando as superfícies enegrecidas por acção do

fogo (podem ter sido usados para cozinhar ou aquecer pequenas quantidades de

alimentos, facto atestado pela observação das peças JFM/05-22-4, Fig.470 e MJ.4.3/98-

Peça n.º21, Fig.472). A taxa dos oleiros de Coimbra, de 1573, demonstra uma variedade

de púcaros: uns para beber com o seu alguidarzinho de base e a cobertura com testo,

outros exemplares de coruchéu com pé e ainda vasilhames para beber, sem pé

(CARVALHO, 1917, VI: 233). As posturas da Câmara do Funchal atestam dois tipos de

púcaros: “pequenos de aza” e de “duas azas de hua canada”.

Legenda: Púcaro. Perfil de um púcaro de corpo esférico, com pasta semi-compacta, de tonalidade rosa escuro M33, com ENP em quantidade escassa (micas e feldspato), distribuídos regularmente (JFM/05-22-4. Fig.440). Superfície externa e interna engobadas de cor rosada M35, com vestígios de carbonização. Bordo ligeiramente introvertido e lábio boleado.

Base e fundo ligeiramente convexos. DE: 72mm, EB: 4mm, EBJ: 4mm, EP: 5mm, AL: 83mm.

1 cm

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364

Legenda: Fragmento de perfil de um pucarinho de cerâmica, sem o componente de bordo. Superfície externa de cor rosada, M47, engobada, com pequenas nuances escuras, provavelmente resultantes da acção de carbonização

(MJ.4.3/98.Peça n.º21, Fig.472). Pasta de textura semi-compacta, de cor acastanhada R29, com escassos ENP micáceos, em número reduzido. Apresenta vestígios do arranque de uma componente de asa observando-se, também, no corpo da

peça, uma canelura saliente. Base de assentamento discoidal. DB: 46mm, EP: 5mm, AL: 84mm.

Os copos são outras peças relativamente raras no contexto de estudo. Surgem, apenas,

nas variantes de cerâmica comum, cerâmica fina não vidrada e vidra (Figs.450, 514 e

756). A ausência do registo arqueológico destes recipientes usados para a serventia de

mesa na ingestão de líquidos pode ser explicada pelo uso de outros serviços, tais como

os púcaros e as escudelas, provavelmente utilizados na função de ingestão de alimentos

liquefeitos. Os exemplares disponíveis mostram o corpo cilíndrico, munido de asas

verticais (ou não), que arrancam imediatamente a seguir ao bordo; e o bordo de tipologia

direita ou introvertida. O exemplar de cerâmica comum (Fig.451) exibe as superfícies com

decoração canelada, com acabamento engobado.

Legenda: Possível copo ou boca de cântaro de cerâmica comum de importação, exibindo a superfície externa canelada, em linhas paralelas (MJ.4.3/98.Peça n.º11, Fig. 451). Pasta de textura semi-compacta de tonalidade cinzenta, R70, com

razoáveis desengordurantes micáceos de grão fino, distribuídos regularmente. Bordo direito e lábio boleado. DE: 75mm; EB: 5mm, EBJ: 6mm.

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365

Legenda: Fragmento de bordo e bojo de um recipiente fechado de cerâmica vidrada em tons melados, exibindo uma pasta de textura compacta de cor bege (K51) com escassos ENP’s (JFM/06-22-3098, Fig. 756). Bordo introvertido e lábio

convexo. EB: 5mm, EBJ: 6mm.

Um outro serviço individual que acompanhava os comensais à mesa era a salseira,

nomenclatura que se adopta doravante, em detrimento dos termos (especieiro ou godé)

usado em estudos anteriores.702 É uma espécie de prato de pequena dimensão, com

diâmetros de boca a variar entre os 57mm e os 85mm.703 Surge, apenas, nas

modalidades tecnológicas de cerâmica esmaltada e vidrada (com três exemplares:

Figs.620 a 623) e da cerâmica vidrada de tons esverdeados (com apenas um exemplar:

Fig.619, JFM/06-22-3033). Nas peças esmaltadas os núcleos são claros (bege, K91),

com escassos elementos não plásticos e as bases são rasas. Os bordos são direitos ou

ligeiramente introvertidos e os lábios de tipologia convexa e afilada. Sobre a origem

geográfica destas salseiras de louça branca nos séculos XVI e XVII, Isabel Fernandes

refere os centros produtores de Lisboa, Porto e Gaia (FERNANDES, no prelo: 13).

Legenda: Fragmento de perfil de uma salseira esmaltada a branco e de base rasa. Esmalte pouco espesso, com revestimento apenas na superfície interna (JFM/00-4-70, Fig.620). Pasta muito bem depurada de cor creme K91, com

escassos ENP. DE: 82mm, EB: 5mm, EBJ: 6mm, EF: 7mm.

Isabel Fernandes, que esclarece a adopção do termo, elucida a sua função na serventia

de condimentos à mesa, para o tempero dos pratos: “levar à mesa não apenas salsa (…)

702

Vide Arqueologia na Área Urbana de Machico. Leituras do Quotidiano nos séculos XV, XVI e XVII, Gaula, 2003 (Dissertação de Mestrado em História Regional e Local apresentado à Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa). 703

Encontramos paralelos destas peças, em níveis do século XVI, em Almada, Cascais e Porto (PEQUITO, BARROS, 2000:62; CARDOSO, RODRIGUES, 1999:196; TEIXEIRA, DÓRDIO, 1998: 117).

1 cm

Page 52: 3.4. Viver dentro de casa: a cozinha e o quarto

366

mas também “adubos” ou seja molhos e condimentos”704 (FERNANDES, no prelo: 12).

Este tipo de peças, com uma percentagem significativa reduzida no gráfico da distribuição

morfo-tipológica da Junta de Freguesia de Machico (Fig.1496) surge à mesa dos ilhéus

no século XVI, situação que pode igualmente estar conectada à introdução de novos

alimentos e de condimentos, e ter assumido a função de especieiro.

Além destas peças existiam, também, os saleiros comuns, provavelmente peças705 de

pequena dimensão, e que aparecem nos inventários do século XVI das famílias

senhoriais açorianas, com antecedentes de ligações comerciais com a Europa e com o

Oriente: “1 saleiro” e “1 saleiro de Pisa” (GIL, 1979: 70). Além da confecção em cerâmica,

as salseiras e os saleiros existiriam em madeira e em metal, como se pode constatar da

leitura do inventário da Infanta D. Beatriz (FREIRE, 1914: 97-108).

Legenda:Fragmento de perfil de uma salseira com as superfícies esmaltadas de cor rosada (JFM/06-22-5829, Fig.623). Pasta compacta, de cor esbranquiçada K71 e bordo direito de lábio afilado. DE: 75mm, EB: 5mm, EBJ: 7mm.

As bilhas são outros vasilhames de corpo globular ou piriforme, com um colo cilíndrico, e

frequentemente uma asa lateral, usadas para conter e verter líquidos.706 O índice alto de

fragmentação das cerâmicas tem, neste caso em particular, dificultado a classificação

morfológica destas peças ao serviço de mesa quinhentista. Do ponto de vista da seriação

da amostra de estudo, esta forma está representada tecnologicamente nos vidrados

verdes. Exemplifica-se com o interessante exemplar proveniente das escavações do

Convento da Piedade, em Santa Cruz (Fig.744, MQC 51063876), exibindo um bico

trilobado, uma asa de orientação vertical e uma base de assentamento discoidal. A asa

704

Ou também para mostarda: “sallceiras de mostarda, por cada huma dous reis”, conforme a taxa dos malegueiros de Coimbra, de 1573-1574 (CARVALHO, 1917, VI: 234). Rafael Bluteau (1712-1728) define o termo salseira como o “pratinho, que se põe na mesa com salsa picada” (BLUTEAU, 1720: 452). 705

Nos inventários do século XVII aparecem como peças de mesa (FONSECA, 1991: 180). 706

As infusas ou pichéis eram cerâmicas usadas na contenção de líquidos. O termo infusa designa, “uma peça com asa e bico oposto à asa usada no serviço de líquidos, principalmente água e vinho” (FERNANDES, no prelo: 9-11). No vocabulário tradicional ceramológico madeirense designa uma vasilha mais ou menos bojuda com asa central e de bico oposto.

1 cm

Page 53: 3.4. Viver dentro de casa: a cozinha e o quarto

367

vertical fitiforme arranca do colo e termina a meio do bojo. Trata-se de uma peça idêntica

a uma outra, de produção portuguesa dos fins do século XVI e inícios do seguinte,

encontrada em Amesterdão e nas escavações subaquáticas de “La Trinidad” (HURST,

NEAL, BEUNINGEN, 1986: 72-73; MARTIN, 1979: 279-302). Em Cascais, peças muito

semelhantes estão identificadas em contextos quinhentistas (CARDOSO, RODRIGUES,

1999).

Legenda: Bilha vidrada a verde-escuro com pasta de textura semi-compacta de cor acinzentada (N71), observando-se falhas de desgaste do vidrado (MQC 51063876, Fig.744). Junto ao corpo da peça, observam-se três caneluras. Bordo

extrovertido e lábio afilado. Base de assentamento discoidal. DE: 20mm, DB: 110mm, AL: 245mm.

Com uma tipologia de bordo e um gargalo idênticos, a forma acima representada, embora

confeccionada em cerâmica utilitária de importação, aparece nos estratos arqueológicos

do Mosteiro de Jesus na Ribeira Grande (Fig.473, MJ-VW-99- Peça n.º29). O bordo

trilobado, com um bico vertedor cilíndrico, é um indicador que atesta a serventia de

líquidos, ou seja, uma espécie de galheteiro para servir vinho, água, vinagre, tornando-a

num objecto eminentemente doméstico que tanto pode servir para levar água (ou outro

líquido) ou como recipiente de apoio à lavagem das mãos.

É muito provável que fosse igualmente uma peça executada pelos oleiros insulares, no

grupo que designamos de cerâmica fina não vidrada de imitação local. Um dos prováveis

indícios desta dedução reside na parte do corpo de uma bilha (Fig.940, MJ-VS-98-Peça

n.º 6) executada em pasta de textura compacta de tonalidade castanha (N45), de

assentamento raso, e com as superfícies engobadas e brunidas com almagre,

característica singular do processo de acabamento da loiça utilitária regional.707

707

Consulte-se infra “3.5.1.5. A aceitação e a difusão dos modelos de importação”.

Page 54: 3.4. Viver dentro de casa: a cozinha e o quarto

368

Legenda: Bilha ou almotolia. O núcleo das paredes é de cor rosado, M35, com uma textura compacta com ENP em número razoável (quartzo e mica). Bordo decorado com duas caneluras espessas e gargalo exibindo linhas verticais (MJ-VW-99-

Peça n.º29, Fig.473). EB: 4mm

Legenda: Base e arranque do corpo de um possível púcaro de cerâmica fina não vidrada de fabrico local. Superfícies, externas e interna, engobadas, com indícios de brunimento característico da loiça utilitária regional (MJ-VS-98- Peça n.º 6, Fig.940). Pasta de textura compacta de tonalidade castanha, N 45m com escassos ENP. Base de assentamento raso.DB:

60mm, ALT: 120mm, EP: 3mm.

Dos eventuais apetrechos de mesa faziam, ainda, parte as garrafas de cerâmica,

designação adoptada para caracterizar as peças com um gargalo cilíndrico, ligeiramente

alto e estreito, e bojo bitroncocónico (supondo-se que a base fosse de assentamento em

aresta). Dos únicos quatro exemplares seriados para amostra, três fragmentos derivam

das produções locais açorianas (Figs.929 a 931, MJ-VS – 98-52, MJ–VS–87-I, MJ-VW-99-

63–L), em uso no Mosteiro de Jesus da Ribeira Grande, provavelmente a servir de

galhetas para levar líquidos à mesa, considerando-se também o azeite e o vinagre e um

da cerâmica de importação (Fig.464, MJ–VS-98-42). Os núcleos das pastas locais são de

trama semi-compacta e de tonalidades castanhas (N 49) ou avermelhada (S39). As

superfícies encontram-se cuidadosamente almagradas e brunidas com apontamentos de

acabamento decorativo modelados.

Os jarros ou bules de faiança portuguesa seriam igualmente serviços comuns nas mesas

abastadas (Figs.676 e 676A). As pastas são de textura compacta, de cor creme (L75),

com escassos ENP, e mostram figurações antropomórficas.

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369

Legenda: Fragmento de um gargalo de uma possível garrafa, com bordo tendencialmente extrovertido e lábio aplanado. Superfície externa suavemente engobada e acabada com quatro caneluras espessa (MJ–VS-98-42, Fig.464). O gargalo

exibe duas linhas horizontais. Desengordurantes de calibre fino, distribuídos irregularmente (elementos micáceos). Pasta compacta de tonalidade alaranjada, S39. EB: 4mm, EBJ: 4mm

Legenda: Bordo em bico de possível gargalo de uma provável garrafa (MJ–VS–97-I, Fig.929). Apresenta uma decoração modelada com lábio convexo. Superfície externa cuidadosamente brunida e em relevo. Superfície interna ligeiramente

rugosa. Pasta de forma compacta de cor avermelhada (S39) com diversos ENP de pequenas dimensões, de distribuição irregular. EB: 3mm EG: 3 mm

Apesar de muito raros no contexto arqueológico regional, é muito provável que as

garrafas de grés importado, do tipo “Bellarmine”, fossem utilizadas para o

armazenamento de bebidas, inclusive o uso à mesa dos séculos XVI e XVII (Figs.609,

610 e 613). Um dos exemplares de importação germânica é o fragmento de semi-perfil de

uma garrafa encontrada no Funchal, figurando a típica estilização antropomórfica

masculina, encimada sobre um escudo de armas, e uma asa lateral de secção circular

(Fig.609).

Legenda: Fragmento de semi-perfil de um jarro com bico de faiança portuguesa do séc. XVII, exibindo uma decoração azul scobalte sobre esmalte branco, com figurações geométricas e motivos antropomórficos. Pasta de textura compacta de cor

creme, L75, com escassos ENP’s. EP: 5mm.

1 cm

1 cm

1 cm

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370

Legenda: Fragmento de semi-perfil de uma garrafa de grés do tipo “Bellarmine”, possivelmente de produção germânica da primeira metade do séc. XVII, (FX/1998, Fig.609). Pasta de textura porosa, de coloração creme (L70). Na superfície externa

observa-se a estilização da figura antropomórfica masculina, com barbas que encima um escudo de armas. Asa lateral fracturada de secção circular. EP: 7mm

Um conjunto variado de peças cerâmicas necessitavam de protecção da boca. Esta

função é desempenhada pelas tampas ou testos, objectos geralmente em forma de disco

(exceptuando-se os exemplares de cerâmica fina não vidrada), que acompanhavam as

loiças de uso culinário (panelas) como também os contentores de armazenamento de

líquidos e de higiene diária (bilhas, infusas,708 cântaros, púcaros,709 talhas, balsas e

privados). 710

Os exemplares em estudo (Figs.424 a 430A, 440, 526, 585, 734 e 738) mostram alguma

diversidade formal, se considerarmos os exemplares de cerâmica fina não vidrada de

importação, e anexam geralmente, ao centro da superfície externa, um botão ou uma

pega de preensão (pitorra) de perfil esférico ou cilíndrico. Este tipo de tampas coincide

com uma largo contexto temporal. Surgem tanto nos estratos quinhentistas e

seiscentistas da área urbana de Machico (com 75,3% da Junta de Freguesia) e de Santa

Cruz (com 24,64% da Santa Casa da Misericórdia), associados provavelmente ao uso

708

Vide por exemplo, a Tacha dos Oleiros de Coimbra, 1573-1574: “hua enfusa meã não pasara com seu testo de quatro reis” (CARVALHO, 1917, VI: 232) 709

“Hum testo para cubrir o púcaro, meo real” (CARVALHO, 1917, VI: 233) 710

“Huum privado de dous palmos e allto bem cozido e forte com seus testos” (CARVALHO, 1917, VI: 233-234)

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371

culinário de panelas ou na cobertura de bilhas de produção local brunidas utilizadas na

serventia de líquidos, como nos contextos mais tardios da Ribeira Grande, ao gosto da

influência de loiça barroca de importação representada pelos cântaros e pelas bilhas.

O mercado das importações europeias faz-se, também, representar nestes apetrechos.

Os elementos mais característicos são os artigos europeus dourados (Fig.585) e

esmaltados a azul linear e a azul liso (Figs.734 e 738), bem como os de faiança

portuguesa.

Legenda: Exemplar de um testo com pitorra de cerâmica comum, de pasta com trama semi-compacta de cor acastanhada (N27), com abundantes quartzosos de tamanho pequeno e médio e micáceos de tamanho reduzido (CPM/06-5-5934,

Fig.430A). Bordo extrovertido e lábio boleado. Base de assentamento em disco. ALT: 21mm, EB: 6mm EP: 7mm.

Legenda: Elemento de tampa em cerâmica fina, de pasta de textura semi-compacta de cor avermelhada (N35), com ENP’s de calibre muito fino (JFM/05-20-43, Fig.440). Acabamento em pega triangular. EP: 4mm.

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372

Legenda:Fragmento de um componente de tampa, visivelmente decorado com reticulas de transparência dourada sobre o esmalte branco, já deteriorado, de pastas rosadas escuras (M20) muito bem depuradas (JFM/06-22-3048, Fig.585) . DB:

94mm, EP: 8mm.

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373

3.4.5.2. Outros artefactos 3.4.5.2.1. “A louça de pau” A par das cerâmicas, as fontes impressas referem o fabrico de artefactos de madeira - a

chamada loiça de pau - objectos que, segundo os relatos de Frutuoso, seriam bastante

comuns e apreciados pela população insular. O cronista alude ao seu uso nas ilhas do

Porto Santo, onde aliás era comum a madeira dos dragoeiros711 e em São Miguel, onde

ocorria a confecção de cabaças, bacios e escudelas de pau de sanguinho.712 Ao que

parece era uma louça igualmente utilizada em caminhadas713 e em viagens,714 sendo

muito apreciada715 para guardar líquidos e cozer alimentos no solo. A preciosidade e a

fragilidade destes bens exigiam estratégias quotidianas no sentido a minimizar o impacte

do seu extravio. O testemunho, novamente, do cronista das ilhas afigura-se curioso: “se

as mulheres ou filhas dele [Fernão Afonso] e dos outros quebravam alguma, escondiam

os pedaços dela pelos não verem seus maridos, como neste tempo, quebrando uma rica

porcelana da Índia se escondem os testos dela, para que não soubesse a grande perda

que se fazia em uma cabaça” (FRUTUOSO, 2005, IV: 238).

No inventário de bens da Infanta D. Beatriz, datado de 1507, anotam-se vários

apetrechos, especificamente: gamelas, trinchos, “bandejas com coberturas e sem elas”,

escudelas, trinchos, bacios, salsinhas, saleiros, castiçais, reforçando que todos estes

vasilhames eram “tudo de pau” (FREIRE, 1914: 97-108). Teixeira Carvalho salienta que

era um tipo de apetrechos produzidos em Portugal no século XIV, com a particularidade

de a “conservarem sempre branca” (CARVALHO, 1918, VII: 146).

711

“E em muitas partes desta ilha produziu a Natureza muitos dragoeiros, do tronco dos quais se faz muita louça, e muitos são tão grossos, que se fabricam de um só pau barcos que hoje em dia ha, que são capazes de seis, sete homens, que vão pescar neles, e gamelas que levam um moio de trigo. Tira-se desta louça bom proveito, de que se paga dízima a el-Rei (...)”, (FRUTUOSO, 1968: 62). 712

“E, não tendo naquele tempo potes, nem talhas, nem outra louça, se serviam de cabaças em seu lugar e de bacios e escudelas de pau, e o mais grave bacio que tinham era de pau de sanguinho, com um corte dentro no meio, como talho de carniceiro, em que cortavam a carne” (FRUTUOSO, 2005, IV: 238 e ATAÍDE, 1974: 323). 713

Consta que o donatário de São Miguel, Rui Gonçalves da Câmara, as utilizava nas caminhadas à Achada, São Miguel (FRUTUOSO, 2005, IV: 238). 714

Na listagem de bens que o Rei Dom Sebastião mandou vir da Flandres e da Alemanha em 1578 para a preparação da Jornada em África enumeram-se mil gamelas de pau pequenas e vinte mil escudelas de pau (Archivo Pittoresco, Vol.III, 1860: 36). 715

No Colégio dos Jesuítas do Funchal surgem na forma de jarras prateadas (CARITA, 1987: 187), servindo também as preocupações estéticas nos espaços de interior.

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374

Legenda: A confecção de colheres de pau pelo artesão Luís Guilherme Correia, Freguesia de Gaula.

Embora não surja compreensivelmente no registo arqueológico, estamos em crer que

seriam apetrechos muito comuns na quotidianidade material quatrocentista e pós-

quinhentista, estando a sua confecção sujeita à disponibilidade da matéria-prima e às

restrições no abate de vegetação. Este tipo de loiça foi ainda bastante usada nos séculos

XIX e XX nas ilhas. Por exemplo, parte da utensilagem rural madeirense (medidas para

capacidade metrológica; recipientes para uso da cozinha e de adega) foi confeccionada

em madeira de espécies distintas. Kate Brüdt, na descrição do interior da casa

madeirense do início do século XX, destaca quatro objectos em madeira de uso

quotidiano, além dos de barro716 e folha:717 o pote (balde de madeira); a caneca (usada

para buscar água) e dois tipos de “quarto” (usado para deitar o sal), BRÜDT, 1937: 88-

89). Nos dias de hoje, persiste, com uma significativa expressão na Freguesia de Gaula,

a confecção das típicas colheres e mexilhões de pau. 718

716

Bilha, infusa, alguidar e púcara. 717

Leiteira e catano. 718

Cfr., Luísa Gonçalves e Duarte Gomes, “Uma arte que vem de Gaula. José Andrade e as suas colheres de pau”, Xarabanda, n.º7, Funchal, 1995, pp. 25-27.

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375

3.4.5.2.2. Recipientes de Vidro

O espólio vítreo, nomeadamente ao nível dos recipientes de mesa, apesar de

abundante nos sítios arqueológicos em análise, não é objecto de um tratamento

aprofundado. No entanto, nos estratos que balizam na centúria de setecentos e de

oitocentos recolheram-se maioritariamente, peças de serviços de mesa e garrafas de

diferentes tamanhos, que interessam registar.

O vidro coloca vários problemas de conservação e, justamente, de identificação dos

fragmentos, operação que nem sempre é possível concretizar, perante um índice

muito elevado de fragmentação. Grande parte dos fragmentos recolhidos não

obtiveram leitura tipológica, a agravar o facto de muitos deles se apresentarem de

aspecto muito frágil com as superfícies irisadas, formando finas camadas

paralelas.719 As tonalidades variam entre o incolor, o azul-escuro e claro, o verde e o

amarelo. Alguns fragmentos de cor-de-rosa transparente e azul mostram decoração

moldada, provavelmente conseguida recorrendo a um molde auxiliar.

A análise muito sumária, com base na interpretação dos exemplares que permitiram

uma interpretação formal aproximada, temos presente formas abertas e fechadas,

tais como as taças (Fig.1430A) e as garrafas de colo moldurado e estreito e de bordo

saliente em aba soerguida (Fig.1430B).

Legenda: Taça de bordo tubular (S.RIB/98-4-4, Fig. 1430A).

719

O tratamento de conservação e restauro de alguns destes fragmentos de vidro seguiu uma metodologia elementar, que passou pela imersão dos objectos em água destilada, depois pela secagem, com o auxílio de álcool etílico, e armazenagem em local com baixo nível de humidade relativa.

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376

Legenda: Garrafa de colo moldurado e bordo saliente em aba (JFM/00-4-1, Fig. 1430B)

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377

3.4.6. O interior do quarto 3.4.6.1. Objectos de higiene pessoal e da casa: o bacio e o alguidar.

No quarto ou noutros compartimentos da casa decorriam os cuidados de higiene. No

extenso conjunto artefactual, inclui-se os objectos ligados à lavagem do corpo, às

dejecções, ao vestir e ao pentear. Além dos exemplares de pentes e de escovas, 720 os

bacios (ou penicos) acompanhavam os compartimentos de dormir. Dos quatro

exemplares exumados, dois são confeccionados em cerâmica comum, com tratamento

superficial à base de um engobe alaranjado (Figs.474 e 475, MJ-VS-99-XXXVIII e MJ 4-3-

98-XXII), um de cerâmica vidrada721 de importação (Fig.742A, MJ/98-Peça n.º16) e um

outro de faiança portuguesa, da segunda metade do século XVII (Fig.640, CP/03-598).

Este último, resultante das escavações do Convento da Piedade, em Santa Cruz, exibe o

bordo extrovertido e o lábio boleado, com a particularidade decorativa dos temas florais

na superfície externa. Trata-se de um tipo de vasos de noite, que surge na documentação

histórica com a designação de “privado” e com a indicação variada em termos de

dimensão (de tipologia alta ou pequena), servindo estes últimos para servir “mininos e

creanças pequenas” (FONSECA, 1991:186).

Legenda: Penico de cerâmica vidrada verde de importação com duas asas verticais laterais (MJ/98 - Peça n.º16, Fig.742A). Pasta de textura semi-compacta de tonalidade vermelha N39, com escassos ENP. Base de assentamento discoidal e lábio

ligeiramente extrovertido. DE: 190mm, EB: 7mm, AL: 124mm.

720

Sobre estes utensílios de uso na higiene diária consulte supra o sub-capítulo “3.7.2.4. Óculos, espelhos e pentes”. 721

Nas taxas dos oleiros e do ofício de malegueiro de Coimbra surgem referenciados em cerâmica vidrada, acompanhados com as suas tampas (CARVALHO, 1917, VI: 233-234).

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378

Legenda: Fragmento de semi-perfil de um penico de faiança portuguesa decorada a azul e vinado (motivos florais, apenas

na superfície externa, CP/03-598, Fig.640). Bordo extrovertido, lábio boleado. Pasta de textura semi-compacta de cor creme, K71. DE: 170mm, EB: 6mm, EBJ: 5mm.

A função dos alguidares seria multifacetada. Vamos encontrá-los na serventia da cozinha

a auxiliar a lavagem e a preparação de alimentos e muito provavelmente para o uso na

higiene pessoal (sobretudo para dar banho a crianças e auxiliar os adultos). Não obstante

os alguidares de cerâmica comum – que mostram as superfícies alisadas no exterior,

sendo o interior revestido por uma aguada ou engobe avermelhado, polido com um seixo

rolado, o que permitia uma melhor impermeabilização – os artigos vidrados seriam,

porventura, os mais usados para a higiene pessoal.

3.4.6.2. Outras tarefas: a leitura e a escrita.

A leitura e a escrita eram actividades reservadas àqueles que tinham um nível de

instrução mais elevado. O material de escrita entre os séculos XVI e XVIII incluía

escrivaninhas portáteis e equipamento próprio (canetas de pena, tinteiros, canivetes e por

vezes, um recipiente com pó).722

As canetas de pena não sobreviveram arqueologicamente. No entanto, os recipientes

usados como tinteiros (onde se poderá incluir os fragmentos de vidro tubular que não

incluem nos inventários desta dissertação) são peças que se inserem nesta categoria

relacionada com a leitura e com a escrita. Alguns exemplares cerâmicos do século XVIII

do Forte de São José, no Funchal, podem ter servido esses hábitos, além da sua provável

utilidade como candeia. São pequenos recipientes globulares (59mm de diâmetro),

executados pelos oleiros madeirenses, contendo as superfícies almagradas e a base de

assentamento discoidal, com falhas de cozedura. Os bordos são direitos e os lábios

afilados.

722

Cfr., Kathleen Deagan, Artifacts of the Spanish Colonies of Florida and the Caribbean, 1500-1800, Vol. 2, Washington and London, Smithsonian Institution Press, 2002, p. 306.

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379

Legenda: Candeia ou tinteiro do Forte de São José, Funchal (FSJ/06-S1-24, Fig.498).

DE: 59mm, ALT: 24mm, EB: 5mm.

No século XVIII e durante a centúria Oitocentista, as placas de ardósia e respectivos lápis

partilhavam os hábitos e a aprendizagem da escrita. Este facto é deduzido pela grande

quantidade destes componentes líticos (em xisto) recuperados nos estratos superficiais

do Convento da Misericórdia de Santa Cruz (Fig.1432, SCM/05-AP1-5798). Os ponteiros,

usados para escriturar (actividade específica de registo e de escrituração) têm uma forma

cilíndrica com um comprimento máximo de 53mm.

Legenda: Conjunto de placa e três marcadores, em ardósia (SCM/05-AP1-5798, Fig.1432). A placa tem um formato quadrangular com as faces planas. Os marcadores apresentam uma forma cilíndrica, tendo um deles uma extremidade

afunilada. A placa mede 142mm de comprimento por 77mm de largura. Os marcadores têm entre 47 e 53mm.

As cartas eram normalmente seladas com cera ou com um selo próprio da pessoa ou da

instituição que a escreveu. O único exemplar de selo de chumbo, com as armas do

monarca D. Manuel, foi recuperado de um contexto secundário da Casa com a Porta

Manuelina do Centro Histórico de Machico (Fig.1376, NMM-SR/06-13). Mede

aproximadamente 20mm de diâmetro e exibe as armas de Portugal e o emblema do rei: a

esfera armilar.

1 cm

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380

Legenda: Exemplar de um selo de chumbo dos finais do século XV e inícios do século XVI (SCM/05-AP1-5798, Fig.1432).

Possui as armas de Portugal e no reverso o “emblema” do Rei D. Manuel, séc. XVI. Esfera armilar, sete castelos (dois virados para dentro). Diâmetro: 20mm

A leitura era, de facto, uma actividade da população letrada, em particular em contexto

religioso. Até o século XV os livros eram ligados com capas de madeira (tábuas), forradas

em cabedal grosso e decoradas com desenhos embutidos, estampados ou ainda

dourados. Embora estas tábuas de madeira, as forras de cabedal e as folhas em papel

não tenham sobrevivido ao contexto arqueológico, alguns ornamentos de metal

evidenciam os sistemas de protecção ou de fecho. É o caso do raro exemplar em cobre

disponível (Fig.1359, MJ/99-179) do sítio religioso da Ribeira Grande – o Mosteiro de

Jesus – um possível elemento de fecho ou ligação dos livros religiosos daquele mosteiro,

e com paralelos nos exemplares da América do Sul (DEAGAN, 2002:308-309, Figs. 14.25

e 14-26). Tem 33mm de comprimento e apresenta dois furos ao centro e um no topo,

sendo a base cilíndrica de forma a permitir a rotatividade no sistema de preensão do livro.

Legenda: Fecho de livro do Mosteiro de Jesus, Ribeira Grande (MJ/99-179, Fig.1359).