343o do matuto na poesia de Jessier...

101
1 UNIVERSIDADE ESTADUAL DA PARAÍBA - UEPB CENTRO DE EDUCAÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LITERATURA E ESTUDOS INTERCULTURAIS ARÃO DE AZEVÊDO SOUZA A REPRESENTAÇÃO DO MATUTO NA OBRA DO POETA PARAIBANO JESSIER QUIRINO Campina Grande-PB 2009

Transcript of 343o do matuto na poesia de Jessier...

Page 1: 343o do matuto na poesia de Jessier Quirino)pos-graduacao.uepb.edu.br/ppgli/download/dissertacoes... · Figura 3. Amacio Mazzaropi disfarçado de Jeca Tatu Figura 4. Pôster do filme

1

UNIVERSIDADE ESTADUAL DA PARAÍBA - UEPB

CENTRO DE EDUCAÇÃO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LITERATURA

E ESTUDOS INTERCULTURAIS

ARÃO DE AZEVÊDO SOUZA

A REPRESENTAÇÃO DO MATUTO NA OBRA

DO POETA PARAIBANO JESSIER QUIRINO

Campina Grande-PB

2009

Page 2: 343o do matuto na poesia de Jessier Quirino)pos-graduacao.uepb.edu.br/ppgli/download/dissertacoes... · Figura 3. Amacio Mazzaropi disfarçado de Jeca Tatu Figura 4. Pôster do filme

2

ARÃO DE AZEVÊDO SOUZA

A REPRESENTAÇÃO DO MATUTO NA OBRA

DO POETA PARAIBANO JESSIER QUIRINO

Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado em Literatura e Interculturalidade, da Universidade Estadual da Paraíba – UEPB, como parte dos requisitos para obtenção do título de Mestre em Literatura, área de concentração: Literatura e Estudos Interculturais.

Orientadora: Profª. Dra. Geralda Medeiros Nóbrega

Campina Grande-PB

2009

Page 3: 343o do matuto na poesia de Jessier Quirino)pos-graduacao.uepb.edu.br/ppgli/download/dissertacoes... · Figura 3. Amacio Mazzaropi disfarçado de Jeca Tatu Figura 4. Pôster do filme

3

ARÃO DE AZEVÊDO SOUZA

A REPRESENTAÇÃO DO MATUTO NA OBRA

DO POETA PARAIBANO JESSIER QUIRINO

Dissertação apresentada como parte dos requisitos para obtenção do título de Mestre em Literatura do Programa de Pós-Graduação em Literatura e Interculturalidade da Universidade Estadual da Paraíba – UEPB. Área de Concentração: Literatura e Estudos Interculturais Linha de Pesquisa: Cultura Popular e Prática Simbólicas

Aprovado em 19 de fevereiro de 2009

BANCA EXAMINADORA

__________________________________________________________________

Profa. Dra. Geralda Medeiros Nóbrega / UEPB

Orientadora

__________________________________________________________________

Prof. Dr. Luciano B. Justino / UEPB

Examinador

__________________________________________________________________

Prof. Dr. Humberto Hermenegildo Araújo / UFRN

Examinador

Page 4: 343o do matuto na poesia de Jessier Quirino)pos-graduacao.uepb.edu.br/ppgli/download/dissertacoes... · Figura 3. Amacio Mazzaropi disfarçado de Jeca Tatu Figura 4. Pôster do filme

4

A Cumade Geralda Medeiros Nóbrega (Minha orientadora),

A Ester de Azevêdo Souza (Dona Irene, minha mãe),

A Antônio Lima de Souza (Seu Dodô, meu pai),

E a todos os outros matutos paraibanos que, na sua

simplicidade, têm revelado os valores morais e culturais que

conduziram o meu engenho nesta pesquisa.

A todos,

Dedico este trabalho.

Page 5: 343o do matuto na poesia de Jessier Quirino)pos-graduacao.uepb.edu.br/ppgli/download/dissertacoes... · Figura 3. Amacio Mazzaropi disfarçado de Jeca Tatu Figura 4. Pôster do filme

5

Agradecimentos

Na vida, nada se constroi sem a participação coletiva, por isso, agradeço à minha

esposa, Magnólia Suassuna, pela paciência e carinho dedicados a mim durante a

construção desta pesquisa e na cotidianidade de nossas vidas.

À minha orientadora, professora Geralda Medeiros, que guiou os meus passos, além

de me emprestar muito dos livros utilizados na dissertação. Sem ela, tudo seria mais

difícil.

Aos colegas e professores do mestrado pelos ensinamentos e contribuições que

foram decisivos na minha formação como pessoa e como pesquisador.

A Roberto, secretario do mestrado, pela paciência e atenção a que me atendeu e

atende a todos.

Ao amigo e professor Antônio de Brito que me orientou no ingresso a este mestrado,

e pela parceria nas discussões sobre esta pesquisa todas às sextas-feiras a

caminho do Sertão.

Ao poeta Jessier Quirino pela atenção, presteza e disposição a que me recebeu em

sua casa abrindo o seu baú de conhecimento sem a menor cerimônia.

Aos amigos e professores do Departamento de Comunicação Social da UEPB, Luiz

Custódio, Roberto Faustino, Fernando Firmino, Águeda Cabral, Robéria Nádia,

Goretti Sampaio, Gisele Sampaio, Orlando Ângelo, entre outros.

E, por fim, agradeço a todos que contribuíram de uma forma ou de outra na

construção desse saber.

Page 6: 343o do matuto na poesia de Jessier Quirino)pos-graduacao.uepb.edu.br/ppgli/download/dissertacoes... · Figura 3. Amacio Mazzaropi disfarçado de Jeca Tatu Figura 4. Pôster do filme

6

O matuto é inteligente e não precisa ser tratado

como aqueles caras de casamento matuto, com o

fundo-da-calça-rasgado e com os dentes da frente

pintados de carvão. O matuto não é um boneco

recortado em papelão: é um ser humano completo,

com 360 graus de mente, de alma, de imaginação e

de memória.

Bráulio Tavares

Page 7: 343o do matuto na poesia de Jessier Quirino)pos-graduacao.uepb.edu.br/ppgli/download/dissertacoes... · Figura 3. Amacio Mazzaropi disfarçado de Jeca Tatu Figura 4. Pôster do filme

7

RESUMO

O processo de colonização das terras brasileiras pela Coroa Portuguesa, ao passo

que povoava outros espaços, fazia surgir novos modos de vida social. Frutos do

caldeamento étnico, esses grupos marginalizados se estabelecem e criam suas

próprias formas de cultura e subsistência (Candido, 2003). No Nordeste brasileiro, o

matuto é o reflexo dessa expansão capitalista. Assim sendo, esta pesquisa faz uma

incursão pelas obras poéticas do paraibano Jessier Quirino, analisando as poesias

onde o autor cita o termo matuto para designar o personagem dos seus poemas. A

primeira inquietação foi situar o matuto como sendo um sujeito fruto de um processo

social o qual tem sua vida pautada muito em função dos valores constituídos no

espaço rural. A segunda foi isolar o termo matuto do termo caipira, observando que

são dois sujeitos diferentes. Entendemos que como o modo de vida do caipira e sua

representação imagética foram divulgadas pela Mídia através do discurso do Jeca

Tatu, de Monteiro Lobato, e dos filmes de Mazzaropi, fez com que houvesse uma

verticalização do conceito ao classificar os moradores da zona rural de caipiras. Por

outro lado, longe de uma visão essencialista, o matuto de hoje convive com signos

da modernidade, como por exemplo, a antena parabólica, transformando o seu

modo de vida numa cultura de fronteira entre o arcaico e moderno, entre o campo e

a cidade (Canclini, 1997). Assim, a poesia de Jessier Quirino cumpre a função de

servir como depositaria de uma etnografia dos valores, hábitos, expressões do

matuto.

Palavras-chave: Jessier Quirino, matuto, caipira, poesia

Page 8: 343o do matuto na poesia de Jessier Quirino)pos-graduacao.uepb.edu.br/ppgli/download/dissertacoes... · Figura 3. Amacio Mazzaropi disfarçado de Jeca Tatu Figura 4. Pôster do filme

8

RESUMEN

El proceso de colonización de tierras por la Corona portugués brasileño, mientras

que otras zonas pobladas, han creado nuevos modos de la vida social. Fruto de la

composición étnica de soldadura, estos grupos marginados se han establecido y

crear sus propias formas de la cultura y los medios de subsistencia (Candido, 2003).

En el Nordeste, el Matuto es un reflejo de la expansión capitalista. Por lo tanto, este

estudio hace una incursión por la paraibano de obras poéticas Jessier Quirino, el

examen de la poesía donde el autor cita el término Matuto para describir el carácter

de sus poemas. La primera preocupación fue la de situar Matuto como consecuencia

sujetos a un proceso social que ha guiado su vida en gran medida en función de los

valores establecidos en el campo. El segundo era para aislar el final del término

rústico Matuto, señalando que son dos temas diferentes. Creemos que la forma de

vida y de su representación de imágenes Caipira fueron puestos en libertad por los

medios de comunicación a través del discurso de Jeca Tatu de Monteiro Lobato, y

las películas de Mazzaropi, significa que existe una verticalización del concepto de

clasificar a los habitantes de la zona rural de Caipiras. Por otra parte, lejos de ver un

esencialista, la Matute de hoy viven con signos de la modernidad, como la cápsula,

de cambiar su forma de vida en una cultura de la frontera entre arcaicos y modernos,

entre el campo y la ciudad ( Canclini, 1997). Así, la poesía de Jessier Quirino cumple

la función de servir como un depósito para una etnografía de los valores, las

costumbres, las expresiones de Matuto.

Palabras clave: Jessier Quirino, Matuto, Caipira, la poesía

Page 9: 343o do matuto na poesia de Jessier Quirino)pos-graduacao.uepb.edu.br/ppgli/download/dissertacoes... · Figura 3. Amacio Mazzaropi disfarçado de Jeca Tatu Figura 4. Pôster do filme

9

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO................................................................................................................ 11

1. PRESSUPOSTOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS................................................... 15

1.1 Níveis de cultura....................................................................................................... 16

1.1.2 O homem é essencialmente um ser de cultura............................................... 17

1.1.3 Repensando a cultura comum......................................................................... 19

1.1.4 Do simbólico ao simbolismo............................................................................. 21

1.1.5 Popular, erudito e massivo............................................................................... 24

1.2 Oralidade e a renovação das culturas...................................................................... 27

1.2.1 Tipos de oralidades................................................................................................ 28

1.3 Carnavalização: considerações................................................................................ 29

1.3.1 Carnavalização na literatura segundo Bakhtin................................................. 33

1.4 Metodologia............................................................................................................... 36

1.4.1 Do Corpus Selecionado...................................................................................

39

2. DO MATUTO AO CAIPIRA: ENCONTROS E DESENCONTROS............................ 42

2.1 “Pru qui, pru li, pru culá”: seguindo as pegadas do matuto e do caipira................... 43

2.2 – “Ô de casa!” O espaço rural na formação do matuto............................................. 47

2.3 “O matuto no cinema”: Os Meios de Comunicação de Massa e suas influências.... 51

2.4 “Isso é cagado e cuspido paisagem de interior”: O que faz ser Matuto.................... 60

2.4.1 “Empurra a cancela Zé”: reconstruindo os laços matutais............................... 62

3. A REPRESENTAÇÃO DO MATUTO EM JESSIER QUIRINO ................................. 64

3.1 Seguindo as veredas quirinianas.............................................................................. 65

3.2 Análise do Corpus...................................................................................... 67

3.2.1 Fisionomia do espaço rural.............................................................................. 67

3.2.2 Representação do matuto............................................................................... 69

3.2.3 Carnavalização/humor..................................................................................... 79

3.2.4 Da voz para a escritura: a oralidade nos poemas quirinianos........................ 88

CONSIDERAÇÕES FINAIS........................................................................................... 93

REFERÊNCIAS.............................................................................................................. 97

Page 10: 343o do matuto na poesia de Jessier Quirino)pos-graduacao.uepb.edu.br/ppgli/download/dissertacoes... · Figura 3. Amacio Mazzaropi disfarçado de Jeca Tatu Figura 4. Pôster do filme

10

Lista de figuras

Figura 1. José Bento Renato Monteiro Lobato

Figura 2. Amácio Mazzaropi

Figura 3. Amacio Mazzaropi disfarçado de Jeca Tatu

Figura 4. Pôster do filme Jeca Tatu de Mazzaropi

Figura 5. Nachtergaele, interpreta o Quinzinho

Figura 6. Mazzaropi em um de seus filmes

Figura 7. Cena do filme Tapete Vermelho

Figura 8. Jessier Quirino durante apresentação

Figura 9. Jessier Quirino durante depoimento concedido a este pesquisador

Figura 10. Gráfico sugestivo da constituição de uma identidade matuta

Page 11: 343o do matuto na poesia de Jessier Quirino)pos-graduacao.uepb.edu.br/ppgli/download/dissertacoes... · Figura 3. Amacio Mazzaropi disfarçado de Jeca Tatu Figura 4. Pôster do filme

11

INTRODUÇÃO

O Nordeste brasileiro, da época dos filmes que exploravam a estética das

secas e da fome e, de alguns anos para cá, tem servido de palco para muitas

produções cinematográficas e televisivas do país. Na construção desses produtos

midiáticos, a imagem de um Nordeste seco, sendo representado pela caatinga do

Cariri e do Sertão, reforça o estereótipo da fome e da miséria que foi criado para

esta região. Nesse discurso, toda a imagem do Nordeste se forma de modo

uniforme, desprezando a Zona da Mata, o Brejo, o Litoral. Uma estética de uma

região sofrida é retratada em muitos casos.

No meio dessas produções, o homem nordestino é recriado a partir de dois

discursos. No primeiro, o sertanejo assume uma função mítica, de um herói que luta

contra as forças do seu habitat e sua cultura se torna fonte de inspiração e

curiosidade. É como se ela, a natureza, fosse a única responsável por sua condição

social. No segundo caso, esse homem é transformado em matuto. Desprovido de

conhecimento e distante dos processos educacionais, esse matuto é ridicularizado

no seu modo de falar, andar e de se vestir. Sua cultura, diferente da do sertanejo,

inexiste. A sua função é criar o lado cômico, sendo ele mesmo o risível.

Por outro lado, a produção literária nordestina, em boa medida, busca

desconstruir essa imagem do matuto e da região enquanto espaço da seca, da fome

e do sofrimento. Como se o Nordeste surgisse assim e dessa forma devesse

permanecer. Neste sentido, os poemas de Patativa do Assaré (1909-2002)

transformam a sua verve literária num discurso de cunho social, denunciando a falta

de políticas públicas como responsáveis pelo modo de vida do homem nordestino.

Assim como Patativa do Assaré, Jessier Quirino, natural de Campina Grande-

PB, tem sua obra poética voltada para a cultura popular nordestina, tendo como

principal personagem o matuto. É a partir do matuto que Jessier Quirino faz sua

incursão pelo interior nordestino, recriando o modo de vida do homem rural.

Formado em arquitetura, Quirino autodefine-se como “arquiteto por profissão, poeta

por vocação, matuto por convicção”. Nos últimos anos, ele tem conquistado espaço

em programas de emissoras locais e nacionais, como o Fantástico e o Jô Soares,

ambos da Rede Globo. Neste caso, observa-se a relação em entre a cultura popular

e os programas midiáticos, numa relação de ganho para a cultura popular. Seus

Page 12: 343o do matuto na poesia de Jessier Quirino)pos-graduacao.uepb.edu.br/ppgli/download/dissertacoes... · Figura 3. Amacio Mazzaropi disfarçado de Jeca Tatu Figura 4. Pôster do filme

12

recitais têm sido solicitados para vários estados brasileiros. Tudo isso tem

demonstrado a importância da sua obra para cultura popular nordestina, uma vez

que a mesma faz ressurgir um Nordeste onde o arcaico se mistura ao

contemporâneo através do olhar do matuto.

Nossa primeira inquietação foi tentar situar o matuto como sendo um sujeito

fruto de um processo social o qual tem sua vida pautada muito em função dos

valores constituídos no espaço rural. A segunda, verificar se ser matuto não é o

mesmo que ser caipira. Para tanto, tomamos como referência as obras de Candido

(2001), Magalhães (1970) e Távora (1902), assim como analisar a participação da

Mídia ao recriar o estereótipo do caipira a partir do discurso de Monteiro Lobato e

dos filmes de Mazzaropi.

Quanto aos poemas selecionados de Jessier Quirino, tomamos como

referência as obras poéticas escritas: Paisagem de interior (1996), Agruras da lata

d’água (1998), Prosa morena (2001) e Bandeira nordestina (2006). Do corpus

escolhido, foram selecionados 20 (vinte) poemas, levando-se em consideração

como critério classificatório as poesias onde Jessier Quirino cita o termo matuto para

designar o homem nordestino. Com esse recorte metodológico, objetivamos analisar

os poemas onde o próprio autor nomeia o homem nordestino como sendo matuto.

Com base na análise de conteúdo que, segundo BARDIN (1977), pode-se investigar

textos escritos, comunicações orais, visuais, gestuais reduzida a um texto ou

documento, estabelecemos a análise dos poemas. Realizamos, também, uma

entrevista com Jessier Quirino, a qual foi feita em sua residência, na cidade de

Itabaiana-PB, no dia 29 de outubro de 2008.

A partir daí, estabelecemos quatro categorias para análise: a primeira foi

buscar entender como a natureza é representada na poesia quiriniana; a segunda,

como o matuto é recriado nos poemas; a terceira foi verificar a carnavalização e o

humor como elementos constitutivos da poesia de Jessier Quirino; e, por fim, a

transcrição da voz para a escritura nos poemas quirinianos. A pesquisa, nesse

sentido, assume um viés investigatório que busca resultados qualitativos.

Definidos, então, os objetivos e a metodologia da pesquisa, dividimos o

estudo em três capítulos. No primeiro, intitulado “Pressupostos teórico-

metodológico”, fizemos uma discussão inicial sobre o termo cultura e suas várias

possibilidades de interpretações dadas na contemporaneidade. A proposta não tem

como caráter definir um novo conceito para cultura, mas entender como as várias

Page 13: 343o do matuto na poesia de Jessier Quirino)pos-graduacao.uepb.edu.br/ppgli/download/dissertacoes... · Figura 3. Amacio Mazzaropi disfarçado de Jeca Tatu Figura 4. Pôster do filme

13

ciências conceituam o termo. Nesse sentido, buscamos referências em Bosi (1992),

Canclini (1997), (Cuche (1999), Certeau (1995), Martín-Barbero (2001), Dominic

(1999), Eagleton (2005), Thompson (1995), Santaella (2003), Ortiz (1994), Zumthor

(1993), Hall (2004) entre outros. A revisão se fez necessária a partir dos rumos das

discussões sobre cultura e identidade cultural tomaram na pós-modernidade, ou

mesmo nas discussões sobre a noção de identificação cultural. Fizemos, também,

uma revisão sobre as especificidades dos termos cultura de massa, cultura erudita e

cultura popular e suas imbricações.

Num outro ponto do capítulo, se fez necessário uma discussão sobre a

oralidade e seus vários tipos e a renovação das culturas, uma vez que o Nordeste

brasileiro possui um vasto campo de investigação sobre a oralidade que está muito

presente nas culturas populares.

Por fim, à luz de Bakhtin (1993), discutimos o conceito de carnavalização e a

sua importância para os cultos populares como forma de questionar os poderes

instituídos. Nesse sentido, trouxemos o conceito de literatura carnavalizada proposto

pelo autor e de como se dá esse processo de transposição da linguagem

carnavalesca para a literatura carnavalizada.

No segundo capítulo, intitulado “Do matuto ao caipira: encontros e

desencontros”, fizemos uma investigação sobre os laços constitutivos do matuto e

do caipira, tendo como base a obra de Antonio Candido, Os parceiros do Rio

Bonito, O Nordeste brasileiro, de Agamenon Magalhães, O matuto, de Franklin

Távora, além de uma entrevista com Jessier Quirino. Uma questão que levantamos

é observar se a constituição da figura do matuto e do caipira estaria ligada também

ao olhar do outro, representando um discurso de uma classe hegemônica. Por outro

lado, observamos também se a Mídia não teria criado um estereótipo para o caipira,

vinculando esse discurso também para o matuto, através de uma representação

imagética do Jeca Tatu, criado por Monteiro Lobato.

A partir das discussões de Albuquerque Junior (1999), Hall (2000) e (2004),

Bauman (2003) e (2005), Ortiz (1994), Penna (1998) e (1992), entre outros,

buscamos entender o que faz ser matuto, hoje, uma vez que a sua representação

nos poemas de Jessier Quirino proporiam um outro tipo de matuto, onde o próprio

poeta se consideraria um, “por convicção”.

Neste caso, a identidade matuta que solicita Jessier Quirino seria, então, uma

representação ligada diretamente a valores simbólicos de reconhecimento, de

Page 14: 343o do matuto na poesia de Jessier Quirino)pos-graduacao.uepb.edu.br/ppgli/download/dissertacoes... · Figura 3. Amacio Mazzaropi disfarçado de Jeca Tatu Figura 4. Pôster do filme

14

pertencimento? Ou, pelo fato de ter nascido numa cidade do interior e ter contato

com o meio rural lhe possibilitaria ser matuto?

Por último, o III capítulo, “A representação do matuto na obra de Jessier

Quirino”, onde, à luz da análise de conteúdo, fizemos a leitura dos poemas nos quais

o autor cita o termo matuto para designar o homem nordestino, especificamente da

Paraíba.

A partir das leituras dos poemas, procedemos com a seleção do corpus a ser

analisado, sendo escolhidos 20 poemas e classificados a partir de quatro categorias:

fisionomia do espaço rural; representação do matuto; carnavalização e o humor

como características da representação do homem nordestino; e os traços de

oralidade na transcrição da voz para a escritura.

Em relação ao universo dos poemas rurais, Jessier propõe construir uma

imagem do Nordeste com o olhar de um flâneur, buscando dentro das brenhas

nordestinas, uma geografia física e humana, como um olhar de um “observador

participante” ao buscar revelar o modo de vida do matuto. No entanto, a poesia de

Jessier Quirino não teria o cunho social que tem a poética de Patativa do Assaré.

Porém, ele faria uso, através do humor, do lado cômico, de uma linguagem

carnavalizada para retratar o matuto. Uma característica dos poemas de Jessier

Quirino estaria em recuperar expressões da cultura popular que se encontram, em

muitos casos, esquecidas, uma vez que ao transpor para sua poesia esse

vocabulário, ele recuperaria uma parte da memória do homem nordestino.

Diante do exposto, sabemos das dificuldades a serem enfrentadas ao

trabalhar com uma poesia onde as possibilidades de interpretações são muitas, mas

pretendemos chegar ao fim da pesquisa com um resultado que sirva como fonte

para o entendimento da cultura popular nordestina a partir da representação do

matuto nos poemas de Jessier Quirino.

Page 15: 343o do matuto na poesia de Jessier Quirino)pos-graduacao.uepb.edu.br/ppgli/download/dissertacoes... · Figura 3. Amacio Mazzaropi disfarçado de Jeca Tatu Figura 4. Pôster do filme

15

CAPÍTULO I PRESSUPOSTOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS

Page 16: 343o do matuto na poesia de Jessier Quirino)pos-graduacao.uepb.edu.br/ppgli/download/dissertacoes... · Figura 3. Amacio Mazzaropi disfarçado de Jeca Tatu Figura 4. Pôster do filme

16

1.1 Níveis de cultura

Não temos nenhuma pretensão de propor novos conceitos para o termo cultura,

mas entendemos que, em nossa pesquisa, é extremamente importante passar por

uma revisão das discussões teóricas sobre as muitas definições que a palavra

cultura evoca, principalmente nos tempos atuais. Esses conceitos, ou tentativas de

conceituação, se bifurcam mais ainda, pois as sociedades (o ser humano) são

moventes e, na medida em que elas/eles se movem, o seu habitat se transforma, se

reinventa. No Brasil do século XX, houve quem buscasse uma cultura brasileira

definidora de todos os nossos traços culturais, definidora de uma “identidade

nacional” (Bosi, 1992). Observamos que, para algumas pessoas, ter cultura era

poder manter um distanciamento entre classes. Cultura era algo que se podia

aprender como forma de distanciamento entre a elite e as classes subalternas. “Para

a elite, a cultura é distância e distinção, demarcação e disciplina, exatamente o

contrário de um povo que se definiria por suas necessidades imediatas”, aponta

Martín-Bárbero (2001, p. 272) ao abordar a relação do indígena na América Latina

frente às mediações provocadas pelos meios de comunicação de massa. Há quem

pretenda grafar cultura com “C” maiúsculo para abarcar todas as possibilidades que

o conceito suscita. Cultura como um coletivo definidor de tudo o que o homem

configurou e reconfigurou para criar um ambiente favorável a ele. A cultura, então,

nasceria dessa necessidade que o homem tem de se adequar ao meio, criando

assim um conforto satisfatório.

Entendendo que as definições são numerosas, Santaella (2003, p. 30) diz que

“há consensos sobre o fato de que cultura é apreendida, que ela permite a

adaptação humana ao seu ambiente natural, que ela é grandemente variável e que

se manifesta em instituições, padrões de pensamento e objetos materiais”. Para a

autora, há dois sinônimos para cultura, o primeiro é “tradição” e o segundo é

“civilização”. Sinônimos esses que se diferenciaram em seus usos ao longo da

história da humanidade. Para Thompson (1995, p. 167), “o termo civilização foi,

inicialmente, usado na França e na Inglaterra no fim do século XVIII para descrever

um processo progressivo do desenvolvimento humano”. Para ele, civilização se

oporia à “barbárie e à selvageria”, como forma de refinamento. Cuche (1999) diz que

tanto cultura como civilização pertencem ao mesmo campo semântico e que o

Page 17: 343o do matuto na poesia de Jessier Quirino)pos-graduacao.uepb.edu.br/ppgli/download/dissertacoes... · Figura 3. Amacio Mazzaropi disfarçado de Jeca Tatu Figura 4. Pôster do filme

17

primeiro termo “evoca os progressos individuais” e o segundo, “os progressos

coletivos”.

Como sua homóloga “cultura” e pelas mesmas razões, “civilização” é um conceito unitário e só é usado então no singular. Ela se libera rapidamente, junto aos filósofos reformistas, de seu sentido original recente (a palavra aparece somente no século XVIII), que designa o afinamento dos costumes, e significa para eles o processo que arranca a humanidade da ignorância e da irracionalidade (CUCHE, 1999, p. 22).

Neste sentido, aponta Cuche (1999), “a civilização é então definida como um

processo de melhoria das instituições, da legislação, da educação” (p. 22). Portanto,

os fatores que definem uma nação como civilizada podem perfeitamente serem

aplicados às nações tidas como bárbaras dentro de uma lógica de evolução política,

“progressista”. A palavra cultura, para Santaella (2003) “derivou do crescimento

natural” e civilização derivou “de uma condição social real”. De acordo com Barnard

apud Santaella (2003, p. 35), para “escritores como Kant, Coleridge e Matthew

Arnold, a cultura representa essencialmente as condições morais do indivíduo,

enquanto a civilização significa as convenções da sociedade”. Assim sendo, cultura

e civilização se opõem, em certa medida, uma vez que a primeira estaria ligada a

valores espirituais e a segunda a valores materiais. Cultura estaria no campo das

relações orgânicas com a natureza, com o habitat; civilização buscaria a

transformação desse habitat, mesmo que isso provoque a sua reconfiguração.

1.1.2 O homem é essencialmente um ser de cultura

Mode as moda de hoje em dia Mode os modo de falar Mode os amuo dos besta Mode os presepe de lá Mode estrupiço dos tempos Mode eu não me amedronhar Mode os pi-bite das rua Mode as mutreta que há Mode as falta de um bom-dia Um boa noite, um olá Mode assalto, mode tiro [...] Não se anime mode eu ir Que eu não deixo esse lugar (Jessier Quirino).

A história da humanidade, estudada por diversas ciências, nos tem mostrado as

várias transformações ocorridas com o homem: desde a teoria evolucionista de

Page 18: 343o do matuto na poesia de Jessier Quirino)pos-graduacao.uepb.edu.br/ppgli/download/dissertacoes... · Figura 3. Amacio Mazzaropi disfarçado de Jeca Tatu Figura 4. Pôster do filme

18

Charles Darwin aos inscritos rupestres das sociedades pré-históricas estudadas pela

antropologia, arqueologia, paleontologia, entre outras. O que vemos é que o homem

se molda ao seu habitat, reconfigurando-o várias vezes. Tudo o que se apresenta,

não é natural a ele, nada é puramente natural ao homem, assinala Cuche (1999, p.

11), para ele, “mesmo as funções humanas que correspondem a necessidades

fisiológicas, como a fome, o sono, o desejo sexual, etc., são informados pela

cultura”. Costumes, religiões, crenças, alimentação, etc., em tudo isso “as

sociedades não dão exatamente as mesmas respostas a estas necessidades” (p.

11). A cultura seria, então, aquilo que no habitat é feito pelo próprio homem, e onde

as relações com esse habitat e o ambiente social se estabelecem. A posição de

Santaella nos ajuda na compreensão destas assertivas.

A definição também implica que a cultura é mais do que um fenômeno biológico. Ela inclui todos os elementos do legado humano maduro que foi adquirido através do seu grupo pela aprendizagem consciente, ou, num nível algo diferente, por processos de condicionamento – técnicas de várias espécies, sociais ou institucionais, crenças, modos padronizados de conduta (SANTAELLA, 2003, P. 31)

Com os deslocamentos desses grupos, deslocam-se as culturas. Tudo o que

o homem fez sob a óptica da cultura em um dado momento pode e será modificado

e retransmitido, pois toda cultura é movente. A cultura, sob esse ponto de vista, é

um processo permanente de construção/desconstrução/reconstrução. O que varia,

portanto, é a importância de cada fase, de acordo com as situações. Para Cuche

(1999), nenhuma cultura existe “em estado puro”, sem que jamais tenha passado

por qualquer influência, mesmo que seja mais simples possível. Nesse sentido,

Herder apud Thompson (1995, p. 169) “preferiu falar em culturas no plural,

chamando a atenção para as características particulares dos diferentes grupos,

nações e períodos”.

Nunca pensei que, pelo fato de empregar algumas expressões figurativas tais como meninice, infância, maturidade e velhice de nossas espécies, cuja cadeia de termos foi aplicada, e somente poderia sê-lo, apenas a algumas poucas nações, isso se constituísse numa indicação de um caminho através do qual a história da cultura, sem falar na filosofia da história da humanidade como um todo, pudesse ser retraçada com segurança. Existe acaso algum povo sobre a face da terra que seja totalmente sem cultura? E como seria restrito o esquema da Providência se todos os indivíduos da espécie humana fossem formado por aquilo que nós chamamos de cultura, cujo nome mais apropriado seria amiúde fraqueza refinada (HERDER apud THOMPSON, 1995, p.169).

Page 19: 343o do matuto na poesia de Jessier Quirino)pos-graduacao.uepb.edu.br/ppgli/download/dissertacoes... · Figura 3. Amacio Mazzaropi disfarçado de Jeca Tatu Figura 4. Pôster do filme

19

Para Herder, não existe uma sociedade onde a aplicação da palavra cultura

possa designar as várias fases de um povo, de uma nação em épocas distintas. Se

assim houvesse, seria um equívoco, pois “nada é mais vago que o próprio termo”. A

cultura em si é simbólica, pois são os símbolos que constituem uma nação, um

grupo e fazem com que os povos sejam únicos em cada período da sua história.

Para Thompson (1995, p. 176), cultura é o padrão de significados incorporados nas

formas simbólicas, que inclui ações, manifestações verbais e objetos significativos

de vários tipos, em virtude dos quais os indivíduos se comunicam entre si e

partilham suas experiências, concepções e crenças.

1.1.3 Repensando a cultura comum

Se por um lado a cultura serve como sustentáculo para as dificuldades

enfrentadas no dia-a-dia, por outro, ela funciona como forma de distanciamento, de

separação/distinção entre os grupos. Esta última posição, por vezes é tão forte que,

em certa medida, pessoas tidas como cultas são aquelas que dominam outras

línguas, escutam músicas eruditas, etc., lêem clássicos em sua língua mãe. Para

Barreto (1997), a cultura empregada nesse sentido “é dominante e suspeita, um

privilégio de poucos”. A posição de Barreto se confirma ao analisarmos o

posicionamento de T. S. Eliot quando propõe uma cultura comum, a qual não é

vivenciada de maneira igualitária, mas sim em “níveis diferentes de consciência”.

Estudando o posicionamendo de Eliot, Eagleton diz que:

Na sociedade ideal de Eliot, então, todas as classes sociais vão partilhar a mesma cultura, mas a tarefa da elite será promover um desenvolvimento maior da cultura em sua complexidade orgânica: cultura em um nível mais consciente, mas ainda a mesma cultura (EAGLETON, 2005, p. 166-7).

Para Eliot, os níveis de culturas superiores não têm mais cultura do que os

níveis inferiores, a diferença está em “graus de autoconsciência”. O que ele propõe é

uma cultura mais “consciente e especializada”. Essa posição de Eliot divide a cultura

em dois corpos, o primeiro seria os “das obras artísticas e intelectuais”, o qual seria

de domínio só das elites, o outro atuaria no “sentido antropológico”, pertencente às

classes comuns, dos trabalhadores. Isto, para Barreto (1997), é uma ironia, pois a

cultura, “porta da verdade”, se transformou numa “mentira de sustentação da

Page 20: 343o do matuto na poesia de Jessier Quirino)pos-graduacao.uepb.edu.br/ppgli/download/dissertacoes... · Figura 3. Amacio Mazzaropi disfarçado de Jeca Tatu Figura 4. Pôster do filme

20

vontade de grupos predominantes sobre o desenvolvimento mental do geral” (p. 77):

Esta apresentação estereotipada é forma de preceituar a cultura como algo seletivo e próprio às elites, em oposição ao comportamento vivencial das massas de homens, mulheres e crianças, trabalhadores nos serviços do campo e da indústria das cidades, em permanente modificar de hábitos, procedimentos e costumes (BARRETO, 1997, p. 77).

A cultura comum para Eliot, o motivo da cultura, seria como uma espécie de

ciclo, cada classe nutrindo umas as outras, onde os níveis de cultura se

alimentariam mutuamente. Para Eagleton (2005, p. 162), “o povo e a intelligentsia

não constituem culturas diferentes. A mesma cultura é vivida inconsciente pelo povo

e auto-reflexivamente compatível com uma cultura hierárquica”, com que nos

deparamos com Jessier Quirino.

Raymond Williams, citado por Eagleton (2005, p. 168), diz que:

Uma cultura, enquanto está sendo vivida, é sempre em parte desconhecida, em parte irrealizada. A construção de uma comunidade é sempre uma exploração, pois a consciência não pode preceder a criação, e não existe nenhuma fórmula para uma experiência desconhecida. Uma boa comunidade, uma cultura viva, irá, por causa disso, não apenas dar espaço para, mas encorajar ativamente, todo e qualquer um possa contribuir para o avanço em consciência que é a necessidade comum... Precisamos considerar com toda a atenção qualquer afeto, qualquer valor, pois não conhecemos o futuro, pode ser que jamais estejamos certos do que pode enriquecê-lo.

A idéia de cultura comum de Eliot encontra, assim, uma diferença básica na

concepção de Raymond Williams. Para Williams, uma cultura comum envolve a

construção participativa de todos esses significados, com a participação efetiva de

todos os seus membros. A participação coletiva, sem níveis de distinção, daria mote

a cultura comum de Williams. Para ele, a construção cultural onde uma minoria

produz o que os outros devem consumir se aplicaria mais a idéia de uma “cultura em

comum”. Eagleton (2005, p. 169) destaca, então, que uma “cultura comum é aquela

que é continuamente refeita e redefinida pela prática coletiva de seus membros, e

não aquela na qual valores criados pelos poucos são depois assumidos e vividos

passivamente pelos muitos”.

Eagleton (2005) entende a concepção de Williams de uma cultura comum

como importantíssima para o entendimento das discussões entre “cultura como

Page 21: 343o do matuto na poesia de Jessier Quirino)pos-graduacao.uepb.edu.br/ppgli/download/dissertacoes... · Figura 3. Amacio Mazzaropi disfarçado de Jeca Tatu Figura 4. Pôster do filme

21

hibridez e cultura como identidade” por parte dos pluralistas e comunitaristas,

lançando novas possibilidades de entendimentos.

A cultura não é unicamente aquilo de que vivemos. Ela também é, em grande medida, aquilo para o que vivemos. Afeto, relacionamento, memória, parentesco, lugar, comunidade, satisfação emocional, prazer intelectual, um sentido de significado último: tudo isso está mais próximo, para a maioria de nós, do que cartas de direitos humanos ou tratados de comércio (EAGLETON, 2005, p. 184).

Para Williams, o que mais importa não é a condição política cultural, mas a

política da cultura. “A política é a condição da qual a cultura é o produto”. Tanto

Williams quanto Eliot, salienta Eagleton, dão ênfase às pluralidades culturais e as

desigualdades de qualquer cultura real.

1.1.4 Do simbólico ao simbolismo

Um olhar atento para o passado pode ser revelador de muitos acontecimentos

que até então estavam adormecidos. Assim, ao olhar os fatos e os processos

culturais mediados pelas ações simbólicas das várias sociedades, podemos

encontrar situações de investigações científicas. Esses processos simbólicos estão

diretamente ligados a processos de desenvolvimentos culturais, quando o homem

modifica o meio no sentido de buscar melhoria para si e para os seus pares. O

sistema de navegação foi importantíssimo para a divulgação e incorporação de

novas formas simbólicas nas sociedades do “velho” e do “novo mundo”. No Brasil,

por exemplo, o uso de carrancas na proa das navegações do Rio São Francisco

serviu, e ainda continua a servir, como forma de afugentar os maus espíritos. Mas,

outras pessoas usam-nas como adornos no pescoço, dentro de casa, ou

simplesmente possuem-nas como obras de arte, dando outros significados. Isto é o

que Thompson (1995) chama de especificidade referencial, para ele, isso acontece

devido ao seu uso ou em situações específicas. Especificidade referencial, diz o

pesquisador, “significa o fato de que, em uma dada ocasião de uso, uma figura ou

expressão particular refere-se a um específico objeto ou objetos, indivíduo ou

indivíduos, situação ou situações” (THOMPSON, 1995, p. 190).

Depois das grandes navegações, que deram início aos processos de

globalização, as Revoluções Industriais trouxeram máquinas e incrementos

tecnológicos para os processos comunicacionais e, mais recentemente, as

Page 22: 343o do matuto na poesia de Jessier Quirino)pos-graduacao.uepb.edu.br/ppgli/download/dissertacoes... · Figura 3. Amacio Mazzaropi disfarçado de Jeca Tatu Figura 4. Pôster do filme

22

revoluções tecnológicas mediadas pelos aparatos de conversação impulsionaram de

forma irreversível os processos culturais de todo o mundo. É o que Thompson

(1995) define como midiação da cultura moderna em sua obra Ideologia e cultura

moderna: Teoria social critica na era dos meios de comunicação de massa. Para

ele, isso tudo passa pela produção midiática, isto é “as maneiras como as formas

simbólicas, nas sociedades modernas, tornaram-se crescentemente mediadas pelos

mecanismos e instituições da comunicação de massa” (p. 104).

A análise de Thompson está centrada nas discussões propostas pela

chamada Escola de Frankfurt e a possível influência dos produtos midiáticos nas

sociedades. Para os pesquisadores frankfurtinianos, a influência da mídia nos

processos culturais tiraria o poder de reflexão e pensar crítico das pessoas ao passo

que diminuiria o valor estético das obras de arte ao produzi-las em regime industrial.

Assim, salienta Thompson (1995, p. 105), "Horkheimer e Adorno apresentaram uma

das primeiras teorias sistemáticas da midiação da cultura moderna e tentaram trazer

à luz as implicações desse processo para a análise da ideologia nas sociedades

modernas". A partir das discussões da Escola de Frankfurt, os conceitos sobre

cultura assumem um novo olhar. Se antes a divisão era entre cultura erudita e

cultura popular, agora entra em cena as discussões sobre a cultura de massa, com

toda a ambigüidade que o termo massa sugere. A cultura de massa, ou para as

massas, seria aquela que se apropriara das culturas eruditas e populares

transformando-as em regime de produção em série, diminuindo o seu valor estético

com o intuito de servir apenas para o consumo breve, fútil, imediato.

Para abarcar toda a produção propiciada pelos produtos midiáticos e pela era

da reprodução dos signos, Thompson apresenta a concepção estrutural de cultura,

ao reformular as concepções descritivas e simbólicas de cultura. Na concepção

estrutural, o autor propõe o entendimento dos fenômenos culturais como “formas

simbólicas em contextos estruturados” e, portanto, “a análise cultural pode ser

pensada como o estudo da constituição significativa e da contextualização das

formas simbólicas” (THOMPSON, 1995, p.166). Reformulando a concepção

simbólica proposta por Geertz que, segundo Thompson, apresenta certa debilidade

ao não dar suficiente atenção as mediações criadas nas quais os “símbolos e as

ações simbólicas estão sempre inseridas” (p. 166). Geertz defende o conceito de

cultura a partir do olhar semiótico, onde o homem estaria sempre amarrado a teias

de significações tecidas por ele mesmo.

Page 23: 343o do matuto na poesia de Jessier Quirino)pos-graduacao.uepb.edu.br/ppgli/download/dissertacoes... · Figura 3. Amacio Mazzaropi disfarçado de Jeca Tatu Figura 4. Pôster do filme

23

Acreditando, como Max Weber, que o homem é um animal suspenso em teias de significações que ele mesmo teceu, entendo a cultura sendo essas teias, e sua análise, portanto, como sendo não uma ciência experimental em busca de leis, mas uma ciência interpretativa em busca de significados (GEERTZ, 1989, p.15).

A partir desta concepção de Geertz sobre a interpretação das culturas, que

segundo Thompson apresenta a mais significativa apropriação do conceito de

cultura surgida na literatura antropológica, ele propõe a formulação da concepção

simbólica de cultura. Para ele, nessa concepção, a “cultura é o padrão de

significados incorporados nas formas simbólicas, que inclui ações, manifestações

verbais e objetos significativos de vários tipos, em virtude dos quais os indivíduos se

comunicam entre si e partilham suas experiências, concepções e crenças”

(THOMPSON, 1995, p.176). Assim sendo, o estabelecimento de um objeto como

forma simbólica, leva em consideração a relação entre produtor-receptor-produtor. É

preciso que esse objeto seja produzido de forma intencional e percebida como tal

por parte do(s) receptor(es). As formas simbólicas seriam, portanto, “expressões de

um sujeito para um sujeito (ou sujeitos)”, de acordo com Thompson. No entanto, o

pesquisador ressalta que o significado intencionado por um sujeito-produtor de uma

forma simbólica não seria, evidentemente, “idêntico aquilo que o sujeito-produtor

tenciona ou quer dizer” ao ser interpretado por outro sujeito1 a partir da sua

experiência de vida. Portanto, uma forma simbólica pode ter significados diferentes

ao ser interpretada em culturas diferentes. Santaella (2003) corrobora com

Thompson e salienta que os “artefatos ou objetos criados pelo homem”, assim como

a sua própria fala, têm significados e que sem o reconhecimento deles, esses

elementos culturais seriam incompreensíveis, assim sendo “as culturas costumam

ser chamadas de sistemas simbólicos” (p. 46). A interpretação das culturas sob esse

ponto de vista possibilita ao pesquisador, assim como aos participantes desses

sistemas simbólicos, uma melhor compreensão da realidade que os cerca, das

práticas e ações de um indivíduo, grupo ou nação.

1 Para Jonathan Culler em sua obra “Teoria Literária: uma introdução”, ao discutir a constituição do “sentido de um obra” ele salienta que “O sentido de uma obra não é o que o autor tinha em mente em algum momento, tampouco é simplesmente uma propriedade do texto ou a experiência de um leitor. O sentido é uma noção inescapável porque não é algo simples ou simplesmente determinado. É simultaneamente uma experiência de um sujeito e uma propriedade de um texto. É tanto aquilo que compreendemos como o que, no texto, tentamos compreender. Portanto, “O sentido é impreciso... o sentido é determinado pelo contexto (o sentido está preso ao contexto)... o contexto é ilimitado” (p. 70). A constituição de uma forma simbólica proposta por Thompson pode ser entendida também a partir dessa concepção de interpretação de um texto proposta por Culler.

Page 24: 343o do matuto na poesia de Jessier Quirino)pos-graduacao.uepb.edu.br/ppgli/download/dissertacoes... · Figura 3. Amacio Mazzaropi disfarçado de Jeca Tatu Figura 4. Pôster do filme

24

1.1.5 Popular, erudito e massivo

As três frentes onde se travam as batalhas conceituais sobre o termo cultura

são pontuadas por dois pontos primordiais para qualquer povo: aquilo que foi

apreendido do seu passado, que permanece, e aquilo que se inventa, que aponta

para as transformações futuras. Nessas duas latências estão os conflitos das

evoluções culturais. Como manter aquilo que define uma cultura popular se ela está

constantemente em modificação, se configurando e reconfigurando a todo instante.

E aquilo que não se modifica integralmente, assume status de folclore, parte

integrante dos cultos populares. A cultura erudita tem como defesa a arte feita

pensada, elaborada de forma racional e, portanto, consegue se manter intacta. Já a

cultura de massa provoca mediações entre os símbolos pertencentes ao popular e

ao erudito ao passo que os desterritorializa. As encenações do popular passam a

ser mediadas pela indústria do turismo. E, nessa lógica, mais vale a pura e simples

apresentação da folia de reis do que o seu significado para os festeiros e

participantes. Nesse sentido, lembra Dominic (1999, p. 20), “na modernidade, a

discussão sobre cultura popular adquire importância por estar relacionada com o

conceito de cultura de massa, que se desenvolve, particularmente, a partir dos anos

1920 e 1930”. A cultura de massa, diz Macdonald, citado por Dominic (1999), é

essencialmente uma cultura democrática, pois “nega terminantemente preconceitos

contra qualquer coisa ou qualquer pessoa” (p.32). A “democrática” cultura de massa

abre espaço para novas leituras, uma vez que ela nos ensina sobre a importância do

diálogo entre as culturas. No entanto, é preciso observar que, apesar dessa

democracia da cultura de massa, ela termina por influenciar as culturas populares.

Discutimos, então, a possibilidade de interpretação, assimilação e uso dos produtos

da indústria cultural por parte das sociedades de forma consciente. Assim sendo,

concordamos com Montiel quando diz:

O diálogo entre as culturas não nos impede, necessariamente, de manter nossas raízes e não implica romper com nossa própria cultura e com a dos nossos antepassados, com suas tradições e seus valores. Deve-se entender que, do mesmo modo que eles se adaptaram às circunstâncias do mundo que os rodeava, nós também devermos abrir-nos às culturas de hoje. Somente através de um intercâmbio fluido teremos a possibilidade de encontrar novas soluções para as nossas diferenças culturais (MONTIEL, 2003, p. 41).

Page 25: 343o do matuto na poesia de Jessier Quirino)pos-graduacao.uepb.edu.br/ppgli/download/dissertacoes... · Figura 3. Amacio Mazzaropi disfarçado de Jeca Tatu Figura 4. Pôster do filme

25

A relação do popular com o erudito e com massivo se dá no cruzamento que

Canclini (1997) vai chamar de fronteiriço. Numa relação de perdas e ganhos, onde

as culturas se modificam ao contato com as outras. A poética de Jessier Quirino, de

cunho popular nordestino, também reflete essas relações de influências, como

podemos observar no poema Secas de março (QUIRINO, 2001, pp. 89-91), uma

paródia do poema Águas de março de Tom Jobim:

É pau, é pedra é o fim do caminho É um metro é uma légua é um pobre burrinho É um caco de vida é vida é o sol É a dor é a morte vindo com o arrebol É galho de jurema é um pé de poeira Cai já, bambeia é do boi a caveira É pé de macambira invadindo a cocheira É vaqueiro morrendo é a reza brejeira [...] É o canto agourento aquela acauã É o vôo da asa-branca no sol da manhã É a seca de março torrando o sertão É promessa de vida, é a nova eleição É doutor deputado é doutor coroné É um pão, uma feira, um remédio no pé É um poço, uma pipa, um cantor uma fã É a troca e o troco depois de amanhã É a seca de março torrando o sertão É a promessa devida da outra eleição .......................................................................... É pau é pedra é o fim do caminho.

A partir de uma música erudita, difundida pela mídia, Jessier Quirino

reconstrói o discurso das secas que tanto afligem o Nordeste brasileiro, ao passo

que cobra uma saída para essa situação.

Bosi (1992), Canclini (1997) e Martín-Barbero (2001) colocam muito bem a

questão das inter-relações entre as culturas. Para os pesquisadores, podemos

encontrar as relações do popular no erudito, do erudito no massivo, e vice-versa. No

caso do Nordeste brasileiro, a presença de culturas ibéricas com africanas e

indígenas representam uma grandeza de bens simbólicos construídos a partir desse

contato. No entanto, corroboramos com Bosi (1992, p. 11) ao ressaltar que “nem a

cultura popular tradicional nem a cultura erudita moderna constroem-se a partir de

um regime de produção em série com linhas de montagem e horários regulados

mecanicamente”. Assim, temos a grande crítica à cultura de massa e, por outro lado,

temos uma gama infinita de circulação de bens simbólicos propiciados pela

industrialização de massa. Assim sendo, convém citar Canclini (1997) ao dizer que

Page 26: 343o do matuto na poesia de Jessier Quirino)pos-graduacao.uepb.edu.br/ppgli/download/dissertacoes... · Figura 3. Amacio Mazzaropi disfarçado de Jeca Tatu Figura 4. Pôster do filme

26

“o culto tradicional não é apagado pela industrialização dos bens simbólicos” (p. 21),

pelo contrário os processos de modernização podem até diminuir os significados do

culto e do popular dentro do mercado simbólico, porém não os elimina de vez.

Temos uma circulação maior de publicações impressas e online e um retorno às

origens de símbolos propiciados pela Internet.

Pesquisar sobre folclore, cultos, receitas tradicionais, obras de arte nunca foi

tão fácil. Vivemos então, uma sociedade projetada para atender a um número cada

vez maior de massas. Por isso, falar de massivo para Martín-Barbero (1991) é o

mesmo que falar do “sistema de educação, das formas de representação e

participação política, a organização das práticas religiosas, os modelos de consumo

e os de uso de espaço” (p. 321).

Para nosso estudo, agora, focamos a atenção para as discussões sobre a

cultura popular. De acordo com Zumthor (1993, p. 118), “a idéia de cultura popular é

só uma comodidade que permite o enquadramento dos fatos”. Para ele, a distinção

entre a palavra erudito e popular está revelada em “tendências” estabelecidas no

seio de uma “cultura comum”.

Na verdade, o que a palavra erudito designa é uma tendência, no seio de uma cultura comum, à satisfação de necessidades isoladas da globalidade vivida, à instauração de condutas autônomas, exprimíveis numa linguagem consciente de seus fins e móvel em relação a elas. Popular, tendência a alto grau de funcionalidade das formas, no interior dos costumes ancorados na experiência cotidiana, com desígnios coletivos e em linguagem relativamente cristalizada. (ZUMTHOR, 1993, p. 119)

Zumthor dedicou muitos dos seus estudos à cultura oral. Para ele, o oral não

significaria apenas popular, assim como o escrito não representaria só erudito. Mas

adiante, retomaremos esse ponto ao discutirmos sobre a oralidade.

Para Dominic (1999), a idéia de cultura popular sempre existiu, e lembra a da

política do pão e circo empregada pelo império romano. Segundo ele, é nos estudos

de Peter Burker que podemos encontrar uma definição mais convincente. “Burker

sugere que a idéia de cultura popular está assinalada às primeiras formas de

consciência nacional no final do século XVIII, que consistiu em uma tentativa dos

intelectuais em erigir a cultura popular em cultura nacional” (DOMINIC, 1999, p. 20).

Numa concepção mais recente, Raymond Williams coloca a questão da cultura

popular como aquela “feita pelo próprio povo” e que em certa medida será

equiparada com a cultura folk ao ser deslocada para o passado. O fato é que “a

Page 27: 343o do matuto na poesia de Jessier Quirino)pos-graduacao.uepb.edu.br/ppgli/download/dissertacoes... · Figura 3. Amacio Mazzaropi disfarçado de Jeca Tatu Figura 4. Pôster do filme

27

cultura popular é heterogênea” (Ortiz, 1994), e que, portanto, o correto seria

falarmos em “culturas populares”. O pensamento de Ortiz se completa com o de

Certeau (1995) ao definir a cultura popular como “a cultura comum das pessoas

comuns, isto é, uma cultura que se fabrica no cotidiano, nas atividades ao mesmo

tempo banais e renovadas a cada dia”. Para Certeau, a dificuldade em se definir

com clareza a noção de cultura popular se deve a polissemia semântica que cada

um dos termos sugere.

Diante do percurso traçado sobre a cultura, nos defrontamos com diversas

possibilidades de conceitos onde, cada um se apóia em determinados pressupostos.

Pesquisar sobre cultura é como tentar segurar o ar que inspiramos. E a dificuldade

aumenta cada vez que chegamos mais próximos do(s) seu(s) conceito(s) e de suas

múltiplas variações entre popular, erudito, massivo, folk, etc.

1.2 Oralidade e a renovação das culturas

É através da oralidade que muitas culturas se mantêm vivas entre seus

participantes e ao olhar do pesquisador. Nos discursos orais, encontramos uma

porta para a preservação de valores, crenças, idiomas, linguagens, gestos

(ZUMTHOR, 1997) e expressões culturais de um grupo. No dizer de Knapp2, a

oralidade seria, portanto, “a forma de preservar a cultura de um povo”. Zumthor em

sua obra A letra e a voz ressalta que a oralidade não passa de uma “abstração” e

que somente a voz seria “concreta”. Ao escutarmos essa voz, poderíamos “tocar as

coisas” (Zumthor, 1993), ao passo que, ao transcrevermos essa voz para a escrita,

tiraríamos dela boa parte da carga simbólica. Assim, ressalta o pesquisador, “a

oralidade não se reduz a ação da voz”, pelo contrário, “a oralidade implica tudo o

que, em nós, se endereça ao outro: seja um gesto mudo, um olhar (Zumthor, 1993,

p. 203).

Pretti (2004) concorda com Zumthor ao discutir o que ele chama de “situação

de interação”. Nesse sentido, para Pretti, a questão também pode ser pontuada

pelas emoções do receptor, já que na língua escrita não há como prevê-las e, nem

2 KNAPP, Cristina Löff. A oralidade nos contos Africanos de Lourenço do RosárioDisponível em <http://www2.uel.br/revistas/boitata/n%C3%BAmero-3-2007/Artigo%20Claudia%20Knappok.pdf> acessado em 5/08/2008.

Page 28: 343o do matuto na poesia de Jessier Quirino)pos-graduacao.uepb.edu.br/ppgli/download/dissertacoes... · Figura 3. Amacio Mazzaropi disfarçado de Jeca Tatu Figura 4. Pôster do filme

28

mesmo, adivinhar quem vai ler o texto. “Além disso, pensamos para escrever, temos

oportunidade de refazer nosso texto, corrigi-lo, reelaborá-lo, o que não ocorre com a

fala” (PRETTI, 2004, p.18).

Preocupado com a transcrição da voz para a escritura, Zumthor apresenta o

que ele chama de “índices de oralidade”, entendido como:

[...] tudo o que, no interior de um texto, informa-nos sobre a intervenção da voz humana em sua publicação – quer dizer, na manutenção pela qual o texto passou, uma ou mais vezes, de um estado virtual à atualidade e existiu na memória de certo número de indivíduos. O índice adquire valor de prova indiscutível quando consiste numa conotação musical, duplicando as frases do texto manuscrito (ZUMTHOR, 1993, p.35)

Os índices de oralidade variam de acordo com cada texto. Em alguns, a

repetição, o uso de formas coloquiais, gírias, entre outros, podem revelar esse

índices. Tudo vai depender do texto a ser analisado e em que cultura ele foi

produzido, o que será patenteado nos textos de Jessier Quirino.

1.2.1 Tipos de oralidades

Houve quem julgasse, no seu entender, que a escrita estaria ligada a tudo o

que é culto e a oralidade estaria ligada ao inculto. Entendemos que o diálogo entre a

oralidade e a escritura é mais que um fato, ele é extremamente necessário. Ambos

se alimentam. Constroem-se e reconstroem-se. Pensar a oralidade de modo

negativo (ZUMTHOR, 1993) seria inútil. Para Zumthor, o que há, na verdade, são

níveis de oralidade. O autor apresenta três tipos de oralidades, ambas

correspondentes a três tipos de culturas. A oralidade primária, pura, não tem contato

com a escritura, estaria distante de qualquer cultura impregnada por símbolos. A

oralidade mista ocorre quando o controle da escritura permanece “externo, parcial e

atrasado”. Já a oralidade segunda: “quando se recompõe com base na escritura

num meio onde esta tende a esgotar os valores da voz no uso e no imaginário”

(ZUMTHOR, 1993, p.18). A oralidade segunda, por conseguinte, necessitaria de

uma cultura letrada. Para ele, os tipos de oralidade variam de acordo com as

épocas, as regiões e as classes sociais, assim como os indivíduos que as praticam.

Para W. Ong (1998), há uma distinção entre a oralidade primária e a oralidade

secundária, levando-se em conta não só o desenvolvimento de uma linguagem

Page 29: 343o do matuto na poesia de Jessier Quirino)pos-graduacao.uepb.edu.br/ppgli/download/dissertacoes... · Figura 3. Amacio Mazzaropi disfarçado de Jeca Tatu Figura 4. Pôster do filme

29

escrita, com suas normas dentro de um universo, culto ou não, mas é preciso levar

em consideração as formas de veiculação de informações através da imprensa

escrita (na oralidade primária). Já na oralidade secundária, a participação das altas

tecnologias da comunicação como o rádio, a televisão e novos meios eletrônicos,

para funcionarem necessitariam da escrita e da imprensa. Para Zumthor (1997,

p.37), haveria uma oralidade mecanicamente mediatizada, mas que não diferiria da

antiga, a não ser por algumas de suas modalidades. Também para ele:

Resulta que, neste final do século XX, nossa oralidade não possui mais o mesmo regime dos nossos antepassados. Viviam eles no grande silêncio milenar, em que a voz ressoava como sobre uma matéria: o mundo visível em sua volta repetia-lhes o eco. Estamos submersos em ruídos que não podemos colher, e a nossa voz tem dificuldades em conquistar seu espaço acústico; mas basta-nos um equipamento ao alcance de todos os bolsos, para recuperá-la e transportá-la em uma valise (ZUMTHOR, 1997, p.28).

É evidente que, mais incisivamente, da segunda metade do século XX para

cá, a voz tem sido transportada de lugar para outro numa velocidade mais rápida

que a da luz. Seria, então, a liberdade das “limitações espaciais” (ZUMTHOR, 1997)

surgidas a partir do gravador, da câmera de televisão, das ondas do rádio e, hoje, do

celular e da Internet. São vozes que possuem um traço comum dentro desse

processo mediatizado. Elas (as vozes), aponta Zumthor (1997, p. 29) “são

despersonalizadas pela sua reiterabilidade, que lhes confere, ao mesmo tempo, uma

vocação comunitária”. A mobilidade alcançada pela voz eliminaria a presença física

do produtor ao passo que o apagaria, ficando fixo somente o eco da sua voz.

Noutros dispositivos, um vulto em movimento ou simplesmente estático.

1.3 Carnavalização: considerações

O nosso ponto para a interpretação do conceito de carnavalização na

literatura é o proposto por Mikhail Bakhtin em sua obra A cultura popular na Idade

Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. Negar qualquer ordem

estabelecida ao passo que propõe a criação de um novo universo simbólico, com

imagens que contrariam qualquer hierarquia, assim é a característica do mundo

carnavalizado. A ordem do universo carnavalesco é a desordem. Para Bakhtin

(1993, p. 2), “as imagens de Rabelais se distinguem por uma espécie de caráter

Page 30: 343o do matuto na poesia de Jessier Quirino)pos-graduacao.uepb.edu.br/ppgli/download/dissertacoes... · Figura 3. Amacio Mazzaropi disfarçado de Jeca Tatu Figura 4. Pôster do filme

30

não-oficial, indestrutível e categórico, de tal modo que não há dogmatismo,

autoridade [...]”. O princípio do carnaval enquanto festa primitiva está em celebrar o

início de um novo ano ou o renascimento da natureza e tem sua principal

característica na libertação dos laços simbólicos presos pelas convenções e

restrições estabelecidas dentro das sociedades no que se refere a vida cotidiana, a

participação dessas pessoas. “O carnaval põe em relevo o desvirtuamento da

cultura oficial”, assinala Miranda (2001, p. 121). As sociedades se modernizam ao

passo em que se criam e fortalecem suas instituições. Assim sendo, as instituições

religiosas que, em todas as nações assumem um papel muito forte no que diz

respeito às práticas e os modos de vida das pessoas, terminam por fazerem parte

de todo o processo que constitui o carnaval, ao lado, evidentemente, do Estado.

Essas duas instituições, a Igreja e o Estado, formam os principais motivos de

gozação pelos participantes do Carnaval na Idade Média. O riso torna-se, portanto,

elemento chave na carnavalização.

O mundo infinito das formas e manifestações do riso opunha-se à cultura oficial, ao tom sério, religioso e feudal da época. Dentro da sua diversidade, essas formas e manifestações – as festas públicas carnavalescas, os ritos e cultos cômicos especiais, os bufões e tolos, gigantes, anões e monstros, palhaços de diversos estilos e categorias, a literatura paródica, vasta e multiforme, etc. – possuem uma unidade de estilo e constituem partes e parcelas da cultura cômica popular, principalmente da cultura carnavalesca, una e indivisível (BAKHTIN, 203, p. 3-4).

A cultura popular da Idade Média, de acordo com Bakhtin (1993), dentro das

suas várias manifestações, estaria divida em três categorias, englobando “as formas

dos ritos e espetáculos”, as “obras cômicas verbais” e as “diversas formas e gêneros

do vocabulário familiar e grosseiro”. Há, portanto, para o autor, um elemento

fundamental que pertence e une essas três categorias, neste caso, o “aspecto

cômico do mundo”.

Todos esses ritos e espetáculos organizados à maneira cômica apresentam uma diferença notável, uma diferença de princípio, poderíamos dizer, em relação às formas do culto e às cerimônias oficiais sérias da Igreja ou do Estado Feudal. Ofereciam uma visão do mundo, do homem e das relações humanas totalmente diferentes, deliberadamente não-oficial, exterior à Igreja e ao Estado (BAKHTIN, 203, p. 4).

É nesse universo de inversão de valores que a cultura popular cria um mundo

ao revés, onde tudo é permitido, seja através de gestos, falas, comportamentos. A

Page 31: 343o do matuto na poesia de Jessier Quirino)pos-graduacao.uepb.edu.br/ppgli/download/dissertacoes... · Figura 3. Amacio Mazzaropi disfarçado de Jeca Tatu Figura 4. Pôster do filme

31

ordem seria, então, quebrar qualquer convenção estabelecida. Cada personagem

constrói seu próprio mundo, rindo e tornado-se risível, ao passo que se torna parte

do objeto caricaturado e caricaturante. Assim, “durante o carnaval é a própria vida

que representa e interpreta uma outra forma livre de sua realização” (BAKHTIN,

1993, p.7) constituindo a segunda vida do povo propiciada somente a partir do riso

das formas, ritos e espetáculos cômicos. A criação do mundo ao revés se apresenta,

em muitos casos, na obra de Jessier Quirino quando, por exemplo, ele diz:

Já vi majó de saiote Levando isporro dum cabo Vi pade de cara branca Fantasiado de diabo Vi vitalina feliz Que só não deu por um triz Mas inda isquentô o rabo (QUIRINO, 1996, p. 76).

Assim, a poesia quiriniana recria um mundo carnavalizado, as avessas, pois,

no carnaval, os foliões não participam passivamente das suas celebrações, eles

simplesmente vivem a vida, livres, participam em conjunto pois, a festa é de todos e

para todos, sendo regido apenas pela lei que conduz a liberdade, dos prazeres

carnais, físicos, biológicos. Nele, se misturam o sagrado e o profano, o feio e o belo,

riso e comédia, vida e morte, as necessidades fisiológicas se tornam públicas, sem

pudor, tudo é permitido, mas mesmo assim essa liberdade é finita, tem uma hora

para começar e para terminar. De fato, sim, mas para os foliões, pouco importa, o

que vale, na verdade, é a transgressão de um estado e de uma cultura oficial, a

criação de um “reino utópico da universalidade, liberdade, igualdade e abundância”

(BAKHTIN, 1993, p.7). Para Bakhtin, o carnaval se contrapõe diretamente a festa

oficial e ao triunfo da verdade pré-fabricada, que servia apenas para consolidar e

fortificar o Estado feudal.

A festa carnavalesca é o momento da total inversão do regime dominante: a liberação, ainda que provisória, a abolição das hierarquias, regras e tabus, o congraçamento pagão. Desejos oníricos de um lugar outro e de um tempo outro, de uma utopia e de uma ucronia (MIRANDA, 1997, p. 129).

Para Miranda (1997), essa inversão de sentido do carnaval para com a vida

oficial se dá pelo fato da cultura popular quebrar as “distinções” criadas por essa

cultura oficial como forma de separação das pessoas com todas suas “insígnias,

títulos, discursos e pompas” (MIRANDA, 1997, p. 129), que serviam pura e

Page 32: 343o do matuto na poesia de Jessier Quirino)pos-graduacao.uepb.edu.br/ppgli/download/dissertacoes... · Figura 3. Amacio Mazzaropi disfarçado de Jeca Tatu Figura 4. Pôster do filme

32

simplesmente como marcas intencionais das desigualdades. O antropólogo Roberto

DaMatta (1986, p. 71) diz que o carnaval é “uma ocasião em que a vida diária deixa

de ser operativa e, por causa disso, um momento extraordinário é inventado [...] o

carnaval cria uma situação em que certas coisas são possíveis e outras devem ser

evitadas”. Assim sendo, para o antropólogo, a “liberdade” que dá condição ao

carnaval tem suas regras, e, portanto, o “triste e o trágico” estariam fora dessa

manifestação.

Sabemos que o carnaval é definido como “liberdade” e como possibilidade de viver uma ausência fantasiosa e utópica de miséria, trabalho, obrigações, pecado e deveres. Numa palavra, trata-se de um momento onde se pode deixar de viver a vida como fardo e castigo. É, no fundo, a oportunidade de fazer tudo ao contrário: viver e ter uma experiência do mundo como excesso — mas agora como excesso de prazer, de riqueza (ou de “luxo”, como se fala no Rio de Janeiro), de alegria e de riso; de prazer sensual que fica — finalmente — ao alcance de todos. A “catástrofe” que o carnaval brasileiro possibilita é a da distribuição teórica do prazer sensual para todos (DAMATTA, 1986, p. 73).

O carnaval provocaria “catástrofe” no momento em que propõe uma

mobilidade às sociedades, criando uma nova ordem, uma “reviravolta positiva,

esperada, planificada” (DAMATTA, 1986, p 73) e necessária, principalmente, para o

nosso mundo social, marcado por protocolos. Essa seria, então, a mobilidade das

hierarquias sociais, das trocas de posições, de lugares. “O carnaval é a possibilidade

utópica de mudar de lugar, de trocar de posição na estrutura social. De realmente

inverter o mundo em direção à alegria, à abundância, à liberdade e, sobretudo, à

igualdade de todos perante a sociedade”, assim sendo, profere o antropólogo. Por

outro lado, o problema é que essa inversão só tem a finalidade de mostrar o seu

justo e exato oposto. De fato, as inversões, as mobilidades, as transgressões, as

recriações propiciadas no carnaval pelos foliões se tornam apenas parte da festa,

não interferem no pós-carnaval, no pós-evento. A igualdade que é comum a todos,

sem distinção de classe, se esvai com o fim do carnaval. Por outro lado, essa

manifestação, através da sua linguagem influencia a literatura, o cinema, as artes e

cria um novo espaço, o da carnavalização.

Page 33: 343o do matuto na poesia de Jessier Quirino)pos-graduacao.uepb.edu.br/ppgli/download/dissertacoes... · Figura 3. Amacio Mazzaropi disfarçado de Jeca Tatu Figura 4. Pôster do filme

33

1.3.1 Carnavalização na literatura segundo Bakhtin

Se os participantes da cultura popular se tornam livres durante o carnaval

para, através de um mundo às avessas, se contraporem a cultura oficial e

desconstruírem todas as hierarquias instituídas, é através da literatura carnavalizada

que essa inversão se tornará imortalizada, uma vez que não se extinguirá com a

pura celebração da festa. A literatura carnavalizada atravessa os tempos, rompe as

barreiras da Idade Média, aponta a “consciência” do Renascimento (Bakhtin, 1993) e

chega até nós como fonte de interpretação das mudanças culturais de todos esses

séculos.

A transposição da linguagem carnavalesca, com seus inúmeros símbolos,

seja para a literatura ou para as artes, dar-se-á o nome de carnavalização. Bakhtin

(1981), em seus estudos acerca o discurso nas obras Dostoievski, aponta a sátira

menipéia e o diálogo socrático dentre as linguagens literárias portadoras da visão

carnavalesca do mundo. Entretanto, esse mesmo autor destaca outras

características necessárias para a transposição e entendimento dessa linguagem

carnavalizada e que “apenas a cultura cômica popular” (Bakhtin, 1993) poderia

representar esse papel, através de um mundo carnavalizado. Portanto, o carnaval

da Idade Média e do Renascimento, para ele,

(...) liberava a consciência do domínio da concepção oficial, permitia lançar um olhar novo sobre o mundo; um olhar destituído de medo, de piedade, perfeitamente crítico, mas ao mesmo tempo positivo e não niilista, pois descobria o princípio material e generoso do mundo, o devir e a mudança, a força invencível e o triunfo eterno do novo, a imortalidade do povo (BAKHTIN, 1993, P239).

Neste sentido, convém citarmos um trecho de um poema de Jessier Quirino

propondo uma leitura para o carnaval:

É aí que a tampa avôa Pro de baxo do pulêro Criado dá na patroa Que o rico vira lixêro Pro baxo da fantasia Todo mundo é nos trêis dia O que não é no ano intêro (QUIRINO, 1996, p. 76)

Bakhtin coloca como ponto central para o surgimento do mundo carnavalizado

a quebra das concepções criadas nos séculos do mundo gótico. O Renascimento

Page 34: 343o do matuto na poesia de Jessier Quirino)pos-graduacao.uepb.edu.br/ppgli/download/dissertacoes... · Figura 3. Amacio Mazzaropi disfarçado de Jeca Tatu Figura 4. Pôster do filme

34

surge como fonte de renovação dessas concepções, libertando a consciência, ao

passo que reorienta uma nova concepção do mundo e da literatura. Neste sentido,

profere Bakhtin (1993, p. 239): “É isso que nós entendemos como carnavalização do

mundo, isto é, a libertação total da seriedade gótica, a fim de abrir o caminho a uma

seriedade nova, livre e lúcida”. A carnavalização da literatura é portadora de uma

linguagem onde o elemento cômico estará sempre presente, como podemos

detectar em Jessier Quirino. Assim sendo, Sant’Anna (1997, p. 94) reforça o

conceito ao definir a carnavalização como sendo “uma forma de estudar os textos

literários e mesmo a cultura de um povo, procurando os efeitos cômicos e

parodísticos que mostram como a comédia pode revelar alguns traços do

inconsciente social”.

Uma vez que a sátira menipéia, conhecida também como gênero cômico-

fantástico, e o diálogo socrático são portadores da linguagem carnavalizada da

literatura, é preciso que elenquemos algumas características que abrem caminho

para o entendimento da carnavalização, de acordo com Bakhtin (1981). Assim

sendo, Bakhtin destaca como a primeira característica da linguagem da literatura

carnavalizada a presença constante do riso, do elemento cômico. Neste sentido, o

autor reforça a importância do riso ambivalente, portador de um discurso polifônico.

Minois (2003, p.166), acrescenta que “o riso carnavalesco é ao mesmo tempo

paródia, pela máscara, pelo disfarce, pela inversão”. Minois prossegue destacando

que o riso carnavalesco na Idade Média tinha a função de servir como força de

“coesão social”, distanciando-se da idéia de revolta. O elemento cômico seria obtido,

então, a partir da paródia e da sátira, ao explorá-los através de recursos retóricos.

Para o autor, a literatura carnavalizada, em tese, não teria nenhum

compromisso com a história nem com a tradição, possibilitando a criação de um

universo de liberdades pautadas pelo engenho filosófico, através de fatos

imaginários. A literatura carnavalizada ao explorar “as aventuras da idéia e da

verdade através do mundo” cria situações onde a fantasia se nutre da ironia,

levando o leitor a refletir sobre um ponto “filosófico-ideológico”, estaria criando a sua

principal característica. Um outro elemento da literatura carnavalizada seria obtido

ao se empregar o uso do diálogo filosófico, do simbolismo elevado e do fantástico

aventuroso. Um enredo que provoque aventuras em grandes estradas, em bordéis,

tabernas, nos covis de ladrões, em feiras e prisões, etc. possibilitaria diálogos entre

Page 35: 343o do matuto na poesia de Jessier Quirino)pos-graduacao.uepb.edu.br/ppgli/download/dissertacoes... · Figura 3. Amacio Mazzaropi disfarçado de Jeca Tatu Figura 4. Pôster do filme

35

um mundo fantástico carregado de simbolismo mítico-religioso com o “naturalismo

de submundo extremado”.

Se o carnaval propõe diversas formas de (re)interpretações do mundo oficial,

a literatura carnavalizada busca essa confrontação ao sugerir, através da síncrise,

os prós e contras de um mesmo assunto cotidiano. Assim, é possível a criação,

dentro de uma mesma obra, de um resultado sincrético. Bakhtin considera também

como característica dessa literatura, a estruturação dos planos simbólicos que

inquietaram o homem na Idade Média: o céu, a terra e o inferno. Para ele, esses três

planos foram essenciais para a construção dos mistérios e a idealização cênica da

Idade Média.

Bakhtin destaca a junção de duas características como sendo essenciais para

a criação da visão carnavalizada da literatura. O jogo de oximoros, com a quebra da

etiqueta proposta pelas regras de “bom-tom”, faz surgir novas categorias artísticas,

como os escândalos e as extravagâncias, abrindo espaço para a respeitabilidade

das ações humanas.

A literatura carnavalizada, assim como o carnaval, está extremamente

preocupada com as questões sociais, com os problemas políticos contemporâneos.

A poética de Jessier Quirino assume essa característica, em muitos casos, como

podemos observar no poema Recado de fim de ano:

Papai Noel de Brasília Se conseguir distinguir Por aí pelo Planalto Um cabra do peito alto Com fuça de javali Falando em honestidade Em água pro Cariri Pregando coragem!... Luta! Avise pro fela da puta Que o roubo dele taqui (QUIRINO, 2001, p. 108)

Procedendo assim, a literatura carnavalizada inaugura, de certa forma, o

gênero jornalístico da antiguidade. Para Bakhtin, esse gênero jornalístico,

possibilitaria um espaço onde os poderes instituídos, as correntes filosóficas,

religiosas, as imagens dos homens ilustres, vivos e mortos se descortinariam

abrindo espaço para uma nova interpretação do mundo.

Page 36: 343o do matuto na poesia de Jessier Quirino)pos-graduacao.uepb.edu.br/ppgli/download/dissertacoes... · Figura 3. Amacio Mazzaropi disfarçado de Jeca Tatu Figura 4. Pôster do filme

36

1.4 Metodologia

Propomos, em nosso estudo, pesquisar a representação do matuto e da

cultura popular nordestina a partir da obra de Jessier Quirino, arquiteto e poeta

paraibano. Na nossa pesquisa, entendemos que se faz necessário o entendimento

da obra “A cultura popular na Idade Média o no Renascimento: o contexto de

François Rabelais”, de Bakhtin (1993). Quirino utiliza do elemento cômico para

recriar um universo carnavalizado em alguns dos seus poemas. Para Melo (1996),

Jessier Quirino faz uma opção clara pelo humorismo em sua obra, mas sempre

preocupado em documentar a memória do homem rural. E completa:

Não sei se, já prevendo uma profunda transformação do mundo rural, em virtude da força homogeinizadora dos meios de comunicação e das novas tecnologias, Jessier Quirino, desde seu primeiro livro, vem fazendo uma etnografia poética dos valores, hábitos, utensílios e linguagens do agreste e do sertão nordestino. (MELO, 1996, p.?)

Bakhtin, ao estudar a obra de Rabelais3, observou que o mesmo usou das

tradições e do imaginário da cultura popular que herdara do espírito medieval, da

estrutura das gestas, do modo peculiar e da riqueza vocabular para abordar alguns

dos problemas mais decadentes do seu tempo, como a relação com a igreja, a

administração da justiça, entre outros. Jessier, em sua época, também propõe um

olhar para a cultura popular nordestina, tendo como referencial o matuto. Nessa

perspectiva, é importante o entendimento da construção da figura do matuto na

poesia de Jessier, pois, é a partir dele (do matuto), que o autor percorre, através da

transcrição da oralidade, do linguajar e dos costumes nordestinos, sua trajetória de

mapeamento da cultura popular nordestina e da relação do homem do campo com o

homem urbano, com a política, com a religião e consigo mesmo.

Assim, ao nos debruçarmos sobre a região Nordeste, entendemos que o

pesquisador deve investigar o mundo em que o homem nordestino vive e o próprio

homem (CHIZZOTTI, 2001). A sua relação com o espaço natural é, na maioria das

vezes, constituinte de múltiplas identidades, quais sejam: sertanejo, brejeiro,

curimatauzeiro, carririzeiro, agresteiro, entre outras; ou mesmo seus estigmas

3 Tomamos aqui como referência os volumes o Gigante Gargantua e Pantagruel, de François Rabelais.

Page 37: 343o do matuto na poesia de Jessier Quirino)pos-graduacao.uepb.edu.br/ppgli/download/dissertacoes... · Figura 3. Amacio Mazzaropi disfarçado de Jeca Tatu Figura 4. Pôster do filme

37

constituídos pelos processos midiáticos: matutos, caipiras, roceiros, retirantes,

flagelados, etc. Mas, no fundo, nordestinos, pois brasileiros. Albuquerque Júnior

(1999) salienta que a região Nordeste está fundada numa espacialidade histórica.

Neste sentido, para o pesquisador dar conta de toda essa complexidade num

processo investigatório, Chizzotti (2001) aponta a reflexão sobre o que foi observado

e o exercício da observação como etapas necessárias para uma boa pesquisa.

Para ele, na pesquisa:

[...] o investigador recorre à observação e à reflexão que faz sobre os problemas que enfrenta, e à experiência passada e atual dos homens na solução destes problemas, a fim de munir-se dos instrumentos mais adequados à sua ação e intervir no seu mundo para construí-lo adequado à sua vida (CHIZZOTI, 2001, p. 11).

Assim sendo, optamos por uma pesquisa qualitativa uma vez que nesse tipo

de investigação há uma aproximação muito grande entre o mundo real e o homem;

uma interdependência viva entre o sujeito e o objeto (CHIZZOTI, 2001), criando

processos de hibridação entre o espaço físico e a subjetividade do sujeito.

Compreendemos que em situações de conflito as culturas populares tendem a se

fortalecerem ainda mais, quer seja pelos processos evolutivos das sociedades

globalizadas, quer seja pelas mudanças climáticas que atingem o homem e sua

condição com o meio ambiente. Em suma, o habitar do homem nordestino num dado

espaço físico constitui a criação de uma região. Seguindo esse pensar,

sentimentalmente essa mesma região habita esse homem com uma carga simbólica

imensurável de memórias, margeando-o pelas lembranças do passado e pelas

(in)certezas do futuro. Assim, concordamos com Moreira (2002, p. 11) ao dizer que

“fazer pesquisa científica não é um trabalho solto e descontraído, é um trabalho

metódico, que deve caminhar dentro de certos preceitos e obedecer a certas regras

para que seja considerado de boa qualidade”, afim de que, no nosso caso, os

resultados obtidos contribuam para os estudos a cerca da cultura popular nordestina

e, principalmente do matuto paraibano.

Os dados obtidos durante uma pesquisa qualitativa estão sujeitos a uma

análise de conteúdo a partir do confronto entre os materiais coletados

empiricamente e o quadro das referências bibliográficas do pesquisador. Assim

sendo, Chizzoti (2001, p. 85) mostra que a pesquisa qualitativa privilegia algumas

técnicas que coadjuvam a descoberta de fenômenos latentes, tais como a

Page 38: 343o do matuto na poesia de Jessier Quirino)pos-graduacao.uepb.edu.br/ppgli/download/dissertacoes... · Figura 3. Amacio Mazzaropi disfarçado de Jeca Tatu Figura 4. Pôster do filme

38

observação participante, história de relatos de vida, análise de conteúdo, entrevista

não-diretiva, etc. Neste caso, a Análise de Conteúdo enquanto “um conjunto de

técnicas de análise das comunicações” (BARDIN, 1977) se aplica como método para

análise dos dados qualitativamente da nossa investigação.

Atualmente, aponta Bardin (1977, p. 42), a análise de conteúdo compreende

Um conjunto de técnicas de análise das comunicações visando obter, por procedimentos, sistemáticos e objetivos de descrição do conteúdo das mensagens, indicadores (quantitativos ou não) que permitam a inferência de conhecimentos relativos às condições de produção/recepção (variáveis inferidas) destas mensagens.

A análise de conteúdo se aplica à interpretação de textos escritos,

comunicações orais, visuais, gestuais, reduzida a um texto ou documento

(CHIZZOTI, 2001) buscando uma compreensão crítica dessas comunicações ou dos

seus conteúdos explícitos ou implícitos, do dito e do não dito.

Bardin (1977) divide em três fases a técnica de análise de conteúdo, a saber:

1) Pré-análise; 2) Exploração do material; 3) Tratamento dos resultados, a inferência e a interpretação;

A primeira fase é a da organização, onde são estabelecidos vários critérios,

entre eles: leitura flutuante, escolha dos documentos a serem analisados, definição

das hipóteses e objetivos, elaboração de indicadores que fundamentem a

interpretação do material coletado. Na segunda fase, os dados da pré-análise são

codificados a partir das unidades de registro e de contexto. A terceira fase é onde se

faz a categorização, consistindo numa operação de classificação dos elementos com

suas semelhanças ou diferenciação, seguido por um “reagrupamento segundo o

gênero (analogia), com os critérios previamente definidos” (BARDIN, 1977).

Eis por que nos propomos a trabalhar com a análise de conteúdo,

aproximando os subtemas da poética de Jessier Quirino, no ensejo de elencar as

categorias pertinentes à obra quiriniana, para proceder a análise. Ao mesmo tempo,

utilizaremos ilustrações, incluindo filmes, para destacar o tema do matuto e, assim,

auxiliado por uma literatura específica, procuraremos trazer à tona, a caracterização

do matuto na obra de Jessier Quirino. Trabalharemos com fragmentos dos poemas,

ao mesmo tempo em que pediremos o auxílio aos depoimentos colhidos do autor

para condução da nossa pesquisa.

Page 39: 343o do matuto na poesia de Jessier Quirino)pos-graduacao.uepb.edu.br/ppgli/download/dissertacoes... · Figura 3. Amacio Mazzaropi disfarçado de Jeca Tatu Figura 4. Pôster do filme

39

1.4.1 Do Corpus selecionado

Em nossa pesquisa, tomamos como referência as obras poéticas escritas de

Jessier Quirino Paisagem de interior (1996), Agruras da lata d’água (1998), Prosa

morena (2001) e Bandeira nordestina (2006), ficando de fora “O Chapéu Mau e o

Lobinho Vermelho” (infantil), “Política de Pé de Muro” e “A Folha de Boldo: Notícias

de Cachaceiros”, por entendermos que não abordam a temática a ser pesquisada,

além dos CD’s, uma vez que essas poesias já fazem parte dos livros impressos.

Das obras escolhidas (ver tabela abaixo), foram selecionados 20 (vinte)

poemas, levando-se em consideração como critério classificatório as poesias onde

Jessier Quirino cita o termo matuto para designar o homem nordestino que tem seus

valores constituídos a partir do espaço rural. Para Jessier4, o matuto pode ser tanto

o sertanejo quanto o pescador do litoral, uma vez que eles tenham os seus valores

constituídos na vivência do espaço rural.

Com esse recorte metodológico, objetivamos analisar os poemas onde o

próprio autor nomeia o homem nordestino como sendo matuto. Esse recorte deixa

de fora algumas poesias, mas acreditamos que um total de 20 poemas seja

suficiente para os resultados do estudo.

4 Depoimento concedido em 29/09/08

Page 40: 343o do matuto na poesia de Jessier Quirino)pos-graduacao.uepb.edu.br/ppgli/download/dissertacoes... · Figura 3. Amacio Mazzaropi disfarçado de Jeca Tatu Figura 4. Pôster do filme

40

LIVROS POEMAS TOTAL

Prosa morena (2001)

• Zé Qualquer e Chica Boa • Uma paixão pra Santinha • Caderneta de matuto • O matuto que bem-dizer suicidou-se • Sabatina feita com um matuto presidente de

banco de feira

5

Paisagem de Interior

(1996)

• Acontecença matuta I “Quando o nordestino

do Sul recebe notícias do Nordeste” • Acontecença matuta II “A resposta” • Sou doutô da merdicina • Matuto em lua-de-mé • Matuto no carnaval • Banheiro de matuto • I Love you – matutado • Matuto na fofocage • Quê vê matuto humilhado é tá doente das

parte

9

Agruras da lata d’água

(1998)

• Qualquer coisa a ver com roçado • Caderneta de matuto • Presente de grego • Quê vê matuto humilhado é tá doente das

parte (2ª edição revista e ampliada) • Caderneta de matuto

5

Bandeira nordestina

(2006)

• Endereço de matuto

1

Total 20

Relação do corpus a ser analisado

Page 41: 343o do matuto na poesia de Jessier Quirino)pos-graduacao.uepb.edu.br/ppgli/download/dissertacoes... · Figura 3. Amacio Mazzaropi disfarçado de Jeca Tatu Figura 4. Pôster do filme

41

Com base na análise de conteúdo (BARDIN, 1977), estabelecemos a análise

dos poemas a partir de quatro categorias, definidas a partir do objetivo geral e dos

específicos da pesquisa.

CATEGORIAS

FISIONOMIA DO ESPAÇO RURAL (Como a natureza é representada na poesia quiriniana)

REPRESENTAÇÃO DO MATUTO (Como o homem nordestino é caracterizado nos poemas)

CARNAVALIZAÇÃO/HUMOR (A literatura carnavalizada e o humor constituindo o matuto)

TRAÇOS DE ORALIDADE (Como a linguagem oral é recriada nos poemas)

Com o conjunto de técnicas da análise de conteúdo, podemos investigar

textos escritos, comunicações orais, visuais, gestuais reduzida a um texto ou

documento (BARDIN, 1977), (CHIZZOTI, 2001) buscando uma compreensão crítica

dessas comunicações ou dos seus conteúdos explícitos ou implícitos, do dito e do

não dito, seja através de resultados quantitativos ou qualitativos.

Page 42: 343o do matuto na poesia de Jessier Quirino)pos-graduacao.uepb.edu.br/ppgli/download/dissertacoes... · Figura 3. Amacio Mazzaropi disfarçado de Jeca Tatu Figura 4. Pôster do filme

42

CAPÍTULO II DO MATUTO AO CAIPIRA:

ENCONTROS E DESENCONTROS

Page 43: 343o do matuto na poesia de Jessier Quirino)pos-graduacao.uepb.edu.br/ppgli/download/dissertacoes... · Figura 3. Amacio Mazzaropi disfarçado de Jeca Tatu Figura 4. Pôster do filme

43

2.1 “Pru qui, pru li, pru culá”: seguindo as pegadas do matuto e do caipira

O processo de colonização do Brasil provocou cicatrizes profundas na história

social e cultural do país, as quais, para serem entendidas, foram necessários quatro

séculos se passarem. Foi preciso um distanciamento histórico-temporal para que

antropólogos, sociológicos e pesquisadores de outras áreas do conhecimento,

pudessem entender todo esse processo de hibridação racial e cultural, formado

através do branco, do índio, do negro e, mais recente, do imigrante. Referindo a

cultura brasileira, Alfredo Bosi (1992) diz que já houve um tempo em que se julgasse

haver, e, portanto, era necessário encontrar uma matriz portadora de uma identidade

nacional. O problema, ressalta Bosi, é propor isto numa sociedade caracterizada

pelo traço da mestiçagem racial e toda a carga simbólica que ela carregava. Já

Albuquerque Júnior no seu livro A invenção do Nordeste e outras artes (1999), diz

que Gilberto Freire apontava para uma sociedade brasileira caracterizada “não só

pela miscigenação racial, mas também pela miscigenação cultural” fruto de sua

formação. Para ele, “calcar a nacionalidade brasileira numa raça pura era

impossível, já que não a possuíamos” (p. 95). Até mesmo os portugueses eram fruto

de um processo de mestiçagem.

Já a divisão política, através das regiões que hoje compõem o mapa político

do Brasil, só foi definida a partir do século XX, a exemplo da região Nordeste. O

surgimento da região Nordeste não veio por acaso, como destaca Albuquerque

Júnior (1999), mas é fruto de muitas práticas e inúmeros discursos

nordestinizadores, seja através da literatura, das artes, da comida, do povo e das

características próprias desse habitat, que, mais tarde foram reagrupados através de

um discurso político do Movimento Regionalista iniciado em 1924.

A necessidade de reterritorialização leva a um exaustivo levantamento da natureza, bem como da história econômica e social da área, ao lado de todo um esforço de elaboração de uma memória social, cultural e artística que pudesse servir de base para sua instituição como região (ALBUQUERQUE JUNIOR, 1999, p.67)

A denominação de parte dos estados que compunham a região Norte para

Nordeste foi utilizado pela primeira vez em 1919 para designar a área de atuação da

Page 44: 343o do matuto na poesia de Jessier Quirino)pos-graduacao.uepb.edu.br/ppgli/download/dissertacoes... · Figura 3. Amacio Mazzaropi disfarçado de Jeca Tatu Figura 4. Pôster do filme

44

Inspetoria Federal de Obras Contra as Secas (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 1999). A

criação da região estaria, portanto, ligada diretamente a questões climáticas,

relacionadas com a seca e a falta d’água. É importante frisar que o discurso do

Nordeste enquanto região seca se contrapõe às faixas de Litoral, Zona da Mata e

Brejo que fazem parte dessa mesma região. Mais que um discurso político contra a

seca, é preciso entender que havia toda uma questão humana, uma vez que a

região foi portadora de dois grandes fenômenos da história recente do país: o

coronelismo, criado a partir do engenho, e o cangaço, que se entranhou nos sertões

nordestinos num misto de revolta social e banditismo. Esse processo de formação

do Nordeste brasileiro, assim como nas demais regiões, foi marcado pela construção

de duas sociedades: urbana e rural.

O Brasil, ao longo de sua história dentro da expansão capitalista, saiu de uma

sociedade com base na economia rural e passou a ter a sua matriz econômica nas

cidades. Os recursos e investimentos tendem a migrarem para os grandes centros

urbanos e, nesse processo, a sociedade rural subdivide-se, entre a casa grande e o

trabalhador braçal, dando origem a uma classe social distante cada vez mais da

educação, da saúde e de bens de consumo. Dentro dessa classe, outras nascem: o

caipira e o matuto, por exemplo. Este último, aqui, entendido por nós como sendo

diferente do caipira, embora vivendo sob as mesmas condições sociais, mas

portador de identidades diferentes, relacionadas à formação social e cultural, ou não

formatadas pelos processos de criação literárias e midiáticos. A mudança da

economia rural para a industrial/urbana, através da revolução burguesa acentuou

ainda mais as questões sociais e raciais no País. O que, para Ianni (1996),

transformou todos em trabalhadores, mas não em cidadãos, sejam eles do meio

rural ou urbano.

A nossa base para o entendimento da cultura caipira está centrada nos

estudos de Candido5 (2001). Para ele, o caipira é fruto do processo de expansão

paulista entre os séculos XVI e XVIII, resultando não apenas na conquista de novas

terras para a Coroa portuguesa, mas na criação e “definição de certos tipos de

cultura e vida social”, o que estaria diretamente ligado ao cruzamento do português

com o Índio, dentro de um processo de mobilidade, tanto por parte das “bandeiras e

entradas” quanto pelo surgimento de uma cultura rústica nômade. Candido deixa

5 A nossa referência é a obra Os Parceiros do Rio Bonito, de Antonio Candido.

Page 45: 343o do matuto na poesia de Jessier Quirino)pos-graduacao.uepb.edu.br/ppgli/download/dissertacoes... · Figura 3. Amacio Mazzaropi disfarçado de Jeca Tatu Figura 4. Pôster do filme

45

claro que não se trata de uma raça, de um tipo racial, mas de um modo de vida

social.

No caso brasileiro, rústico se traduz praticamente por caboclo no uso dos estudiosos, tendo provavelmente sido Emilio Willems o primeiro a utilizar de modo coerente a expressão cultura cabocla; e com efeito aquele termo exprime as modalidades étnicas e culturais do referido contato português com o novo meio. Entretanto, o termo caboclo é utilizado apenas no primeiro sentido, designando o mestiço próximo ou remoto de branco e índio, que em São Paulo forma talvez a maioria da população tradicional. Para designar os aspectos culturais, usa-se aqui caipira, que tem a vantagem de não ser ambíguo (exprimindo desde sempre um modo-de-ser, um tipo de vida, nunca um tipo racial) e a desvantagem de restringir-se quase apenas, pelo uso inveterado, a área de influência histórica paulista. Como neste estudo não saímos dela, o inconveniente se atenua (CANDIDO, 2001, p. 28).

Candido evidencia que o estudo centrado apenas num tipo de comunidade

tendo como base a influência das bandeiras no estado de São Paulo tem toda uma

implicação, uma vez que o mesmo acentua que Cornélio Pires6 já sinalizava em

seus livros para vários tipos de caipiras: “caipira branco”, “caipira caboclo”, “caipira

preto” e “caipira mulato”. No entanto,

Não cabe assinalar aqui o seu sentido histórico, nem traçar o seu panorama geral. Basta assinalar que em certas porções do grande território devassado pelas bandeiras e entradas – as características inicias do vicentino se desdobraram numa variedade subcultural do tronco português, que se pode chamar de “cultura caipira” (CANDIDO, 2001, p. 45).

O pesquisador propõe seu estudo a partir de um corpus, de um grupo

definido, embora sua pesquisa rompa com os espaços desse grupo. A obra Os

Parceiros do Rio Bonito serve para iluminar os estudos a cerca das populações

rurais marginalizadas, caipiras, matutas.

Para Jackson (2002), Antonio Candido ao estudar o caipira a partir de sua

formação histórica reforça a necessidade de se pesquisar os “grupos marginalizados

da colonização” os quais ficaram de fora das grandes “interpretações de nossa

6 Cornélio Pires, Conversas ao pé do fogo. Pires foi escritor, jornalista e folclorista paulista, escreveu o primeiro livro de versos em 1910. Alguns anos mais tarde começou a promover conferências sobre o folclore caipira e sertanejo, divulgando a arte do interior e trazendo interesse acadêmico para a área. Escreveu mais livros de versos e contos, alguns dos quais foram adaptados para o cinema. Na década de 20 viajou pelo Brasil filmando imagens para o documentário "Brasil Pitoresco". Fundou um selo independente para gravar a "Série Caipira Cornélio Pires", com participações de artistas caipiras cantando e contando anedotas. Inaugurou com isso o mercado para a música sertaneja. Com dezenas de livros, almanaques e revistas publicados, foi um dos maiores divulgadores do folclore paulista. Disponível em: <http://cliquemusic.uol.com.br/artistas/cornelio-pires.asp>, acessado em 04/092008.

Page 46: 343o do matuto na poesia de Jessier Quirino)pos-graduacao.uepb.edu.br/ppgli/download/dissertacoes... · Figura 3. Amacio Mazzaropi disfarçado de Jeca Tatu Figura 4. Pôster do filme

46

formação histórica até então” (p.52). Neste sentido, nossa pesquisa assume

importância ao analisar a constituição do matuto a partir da poesia de Jessier

Quirino, ao retomar as discussões sobre esses grupos marginalizados do processo

de colonização do Nordeste brasileiro.

Uma questão que levantamos ao estudarmos esses grupos é observar que a

constituição sociológica dos mesmos pode estar diretamente ligada ao olhar do

outro. Mais especificamente, num jogo de poder entre classes, onde o discurso das

elites dominantes terminaria por dar nomes, na maioria das vezes, pejorativamente,

aos grupos sociais. Neste caso, a nomenclatura “matuto” estaria ligada a um

discurso urbano em relação ao rural, não como forma de revelar de fato os seus

traços culturais, mas, pelo contrário, como forma de diferenciação para se evidenciar

as imposições de poder. Numa outra ponta, o discurso de membros da sociedade

rural, especificamente, os poetas populares, como Patativa do Assaré ou aqueles

que trafegam nessa vertente como Quirino e Cascudo7, buscam um caminho oposto,

juntando os cacos dessa fragmentação e reconstituindo um ser dotado de “360

graus de mente, de alma, de imaginação e de memória” como diz Tavares (1998).

Um processo igual ao do reconhecimento do Nordeste enquanto região a partir dos

seus valores culturais, sociais e ambientais.

“Do homem forte dos sertões não se pode esperar mais do que a resistência

heróica que há quatro séculos, porfiadamente mantém sem tréguas, nem

desfalecimentos, dorso nu, cavando a terra, tendo uma só esperança, é Deus”,

assinala Magalhães (1970, p. 60) na obra O Nordeste brasileiro ao se referir ao

sertanejo. É nesse espaço de “caldeamento étnico”, da lida com a terra, das

variações climáticas e da falta de políticas eficazes que, segundo Magalhães,

produzir-se-á um tipo selecionado, que será o “brasileiro”. O discurso do autor passa

pelo processo de adaptação ao meio natural por um povo, onde o mesmo, podendo

ser “superior” ou “inferior”, teria as mesmas condições de sobrevivência. Para ele, há

a possibilidade de um tipo “inferior” se adaptar melhor às condições adversas,

tornando-se “superior”, uma vez que o habitat “reflete-se nesse homem, imprime-lhe

os seus aspectos, talha-lhe a forma, forma-lhe o espírito” (p. 76). O pensamento de 7 Câmara Cascudo, em suas pesquisas, sempre esteve voltado para relatar os episódios da vida do homem sertanejo, das cantorias, dos aboios, das danças e do folclore popular nordestino. "Queria saber a história de todas as cousas do campo e da cidade. Convivência dos humildes, sábios, analfabetos, sabedores dos segredos do Mar das Estrelas, dos morros silenciosos. Assombrações. Mistérios. Jamais abandonei o caminho que leva ao encantamento do passado. Pesquisas. Indagações. Confidências que hoje não têm preço", diz o pesquisador. Disponível em: < http://educacao.uol.com.br/biografias/ult1789u289.jhtm> acessado em 8/12/2008

Page 47: 343o do matuto na poesia de Jessier Quirino)pos-graduacao.uepb.edu.br/ppgli/download/dissertacoes... · Figura 3. Amacio Mazzaropi disfarçado de Jeca Tatu Figura 4. Pôster do filme

47

Magalhães revela uma inclinação em sua pesquisa de enxergar o índio e o negro

como raças que, ao cruzarem com o português enfraqueceria esse caldeamento.

Ou, como diz Candido (2003, p. 29), as sociedades se caracterizam, antes de mais

nada, pela natureza das necessidades de seus grupos, e os recursos de que

dispõem para satisfazê-los. Assim, entre as relações de poder, fora e dentro da

sociedade rural, e com todas as influências climáticas, nasce um grupo social

caracterizado pelo modo de vida adotado, tendo como valores o espírito talhado

nesse meio e a força de sobrevivência.

2.2 – “Ô de casa!” O espaço rural na formação do matuto

Euclides da Cunha em Os Sertões diz que o isolamento social do Litoral e do

interior fez nascer dois “Brasis” diferentes, justificando o “desenvolvimento étnico

das populações mestiças sertanejas” (JACKSON, 2002, p. 81), através de um

processo colonizador fundado entre o senhor de engenho e o escravo, entre o

coronel e o sertanejo. Antonio Candido em Os parceiros do Rio Bonito diz que da

expansão paulista nascia um novo modo de vida social, pautado em traços culturais

indígenas e portugueses, onde o pesquisador aponta para a existência de uma

cultura caipira. No Nordeste brasileiro, a influência dos elementos da colonização da

região se refletem entre o colono e o negro, através da cultura da cana-de-açúcar, e

entre o português e o índio durante a conquista do interior nordestino.

Nessa conjuntura, Magalhães (1970) ressalta o nascimento de dois tipos

sociais que ficariam muito conhecidos na região Nordeste: o “matuto” e o “sertanejo”.

Em nosso estudo, a obra O Nordeste brasileiro, de Agamenon Magalhães, torna-se

necessária para o entendimento da representação desses grupos sociais nos

tempos atuais. Para o autor, o sertanejo não poderia surgir, senão, do habitat

nordestino, principalmente da mesorregião que ele chama de Sertão. Já o matuto

tem a sua formação na Zona da Mata e Brejo. O pesquisador aponta que o processo

de caldeamento étnico que formou o mestiço da mata, criado no ambiente rural, se

diferiria daquele formado no Sertão, num espaço pastoril. Neste sentido, o autor

descreve os traços físicos e psicológicos do matuto e do sertanejo:

O homem das praias e do agreste se confundem até certo ponto: é baixo moreno de olhos e cabelos pretos, cabeça e nariz as vezes, ligeiramente

Page 48: 343o do matuto na poesia de Jessier Quirino)pos-graduacao.uepb.edu.br/ppgli/download/dissertacoes... · Figura 3. Amacio Mazzaropi disfarçado de Jeca Tatu Figura 4. Pôster do filme

48

achatados, ombros largos, andar vagaroso, gestos lentos, voz arrastada. O sertanejo de linhas mais corretas é alto, menos moreno, de cabelos castanhos, às vezes arruivados, olhos pardos e não raros azuis, seco de carne, mas musculoso de uma sobriedade e coragem admiráveis. (MAGALHÃES, 1970, p. 27)

Magalhães propõe uma divisão bastante clara da região Nordeste: o Litoral,

com suas matas exuberantes, solos férteis e rios que deságuam no oceano; e o

Sertão das caatingas e dos tabuleiros, impendido o desenvolvimento agrícola. Mas é

neste espaço que nasce o sertanejo. O Sertão, diz ele, é:

o vasto campo da criação, a zona pastoril caracterizada. Nessa natureza híspida, fora do contato da civilização do litoral, sem vias de comunicação, nem meios fáceis de transporte, segregados nas condições físicas mais hostis, se diferenciou um tipo étnico vigoroso. É o sertanejo, o homem heróico, flagelado pelas fatalidades climatéricas e sociais, que nos longínquos rincões adustos, obscuro e grande, resiste à natureza ingrata, retemperando as energias da raça histórica em formação (MAGALHÃES, 1970, p. 81).

Já o Litoral é o espaço civilizado e civilizador. Portanto, o espaço da bonança,

do acesso à educação, à comunicação, ao transporte, favorecendo ao homem

litorâneo um desenvolvimento econômico, humano e social. Condição justamente

oposta à enfrentada pelo homem sertanejo, o qual ainda encontra a hostilidade da

natureza para justificar o seu flagelo. O Litoral é a região que “desde os tempos

coloniais se fixou o negro e colono, na cultura da cana”, assinala Magalhães. É

nesse contexto entre o senhor de engenho e os seus escravos negros e os índios

domados que uma população se caldeou e, desse amalgama de duas castas

originou-se um tipo diferenciado, “um tipo rural característico. Surgiu o matuto” (p.

79).

Sobre esse matuto com o seu modo de vida social e cultural, Magalhães

discorda de quem o caracteriza de “preguiçoso e descuidado” afirmando que a

ausência de uma organização operária, de condições de higiene e de instrução o

colocou numa situação social precária. Para ele,

...quem percorre a zona agrícola do nordeste, onde fumegam as chaminés das grandes usinas de açúcar e silvam as locomotivas que arrastam a cana do “eito” verifica o trabalho de elaboração e progresso do “matuto”. É ele o mecânico que nas oficinas das fábricas forja o ferro, carpina a madeira, dirige as locomotivas e lavra a terra. Os pregoeiros sinistros da incapacidade do mestiço veriam, então, a transformação imprevista do “indolente”, que se espreguiçava no derrengue sensual dos “sambas”, no “matuto” erigindo sobre os destroços dos “bangüês” as potentes máquinas das usinas modernas (MAGALHÃES, 1970, p. 79-0).

Page 49: 343o do matuto na poesia de Jessier Quirino)pos-graduacao.uepb.edu.br/ppgli/download/dissertacoes... · Figura 3. Amacio Mazzaropi disfarçado de Jeca Tatu Figura 4. Pôster do filme

49

Passados 120 anos que a Lei Áurea libertou os escravos e aqueles frutos do

caldeamento étnico de que fala Magalhães (1970), seria muito difícil encontrar um

matuto nas mesmas condições que o estudo do autor aborda ou mesmo do caipira

estudado por Candido (2003). No caso do Nordeste, observamos que há uma

hibridação entre os valores do homem rural, não havendo como separar o homem

que nasceu e lida com a terra no Sertão com o homem que vivencia as mesmas

condições no Brejo, podendo, este, ter a vantagem da água com uma certa

abundância. Portanto, o matuto será entendido por nós como fruto de um processo

social pautado também pelas condições ambientais, de contato com a terra, muito

mais do que pela variação étnica, seja através do colono com o escravo, seja

através do colono com o indígena. O mesmo entendimento é adotado por Jessier

Quirino em suas poesias ao falar do matuto:

Quando eu falo no matuto não é, necessariamente, o sertanejo, ou que seja o homem do campo. A nossa poesia, é uma poesia que ela trafega basicamente nos valores do campo. Mas esse matuto... pode haver um entrelaço entre o homem do campo e um pescador, por exemplo. Ele, na beira da praia, não é necessariamente um homem do campo, é um homem do litoral, mas que tem a natureza... a natureza que as pessoas do interior têm (Depoimento concedido em 29/09/2008).

Jessier Quirino classifica o matuto muito em função das suas condições

sociais e dos “valores do campo”, os quais podem perfeitamente ser encontrados em

pessoas que moram em cidades. Estes valores estão ligados ao modo de vida

dessas pessoas do meio rural, são constituídos no dia-a-dia das suas relações, do

contato com o antigo e com o novo, a exemplo do acesso a uma habitação nova, a

educação, aos meios de comunicação, como a literatura de cordel, com o rádio e,

mais recente, com a antena parabólica e com o DVD. A “natureza de pessoas do

interior” a que Jessier Quirino se refere estaria ligada a um modo de sobrevivência.

Assim sendo, entendemos que a necessidade de sobrevivência é inerente a

qualquer ser humano, independente do espaço que ele habita, seja rural ou urbano,

assim, gírias, vestimentas, alimentação, fazem parte de grupos rurais e urbanos

como forma de adaptação ao espaço de vivência/sobreviência.

Ao buscar justificar o que seja o instinto de sobrevivência, Quirino diz que:

Page 50: 343o do matuto na poesia de Jessier Quirino)pos-graduacao.uepb.edu.br/ppgli/download/dissertacoes... · Figura 3. Amacio Mazzaropi disfarçado de Jeca Tatu Figura 4. Pôster do filme

50

é o que faz com que ele (o matuto) se sobressaia, se destaque, apesar do ofuscamento de fatores climáticos, de condições sociais, de formação, de limitações intelectuais. Tudo isso eles conseguem desviar através desse instinto de sobrevivência (Depoimento concedido em 29/09/2008).

O pensamento de Jessier Quirino parece estar em consonância com a cultura

caipira de Os parceiros do Rio Bonito, uma vez que Candido (2003) fala de uma

“forma de sociabilidade e de subsistência” as quais estariam ligadas a sobrevivência

dos seus membros e a “coesão dos bairros”, através de “soluções mínimas” de

alimentação e moradia (p.103) e de sociabilidade.

As dificuldades impostas ao matuto, seja pela falta de políticas de inclusão

social, de acesso aos bens de consumo, da educação, além das variações

climáticas, no caso do sertanejo e, hoje, até mesmo os das regiões de clima mais

úmido que têm sofrido com as alterações climáticas, como é o caso do Brejo e da

Zona da Mata, tudo isso tem feito com que esse matuto adquira uma outra forma de

sobrevivência que, segundo Jessier Quirino, seria a esperteza. Mas onde residiria

essa esperteza e qual a sua finalidade? Entendemos que essa força pode estar

ligada ao humor e ao riso ambivalente (Bakhtin, 1993), criado ante as limitações

intelectuais impostas por uma norma culta, e a possibilidade de adaptação ao meio.

O seu objetivo é minimizar as diferenças sociais e intelectuais.

Em depoimento, Jessier Quirino diz que essa esperteza

vem de um traquejo, vem de um mote, vem de um pulo do gato, daquela coisa de dar nó em pingo d’água. E eu digo que o matuto dá nó em éter. Então, é esse instinto de sobrevivência que faz com que ele se sobressaia, se destaque apesar do ofuscamento de fatores climáticos, de condições sociais, de formação, de limitações intelectuais (Depoimento concedido em 29/09/2008).

Os valores culturais do matuto são constituídos no espaço rural e são

alterados quando novas culturas chegam a esse espaço, assim como aconteceu

com a expansão capitalista alterando os modos de produção da farinha de

mandioca, da rapadura e da aguardente de cana-de-açúcar. Atualmente, a televisão

tem contribuído de forma consistente para uma hibridação desses valores, para a

cultura popular. Neste sentido, afirma Jessier Quirino:

Aqui no Nordeste, nesses rincões mais distantes é onde se encontram alguns elementos que ainda podem ser resgatados. Infelizmente, hoje, a antena parabólica tá conseguindo destruir alguma coisa desse tipo. Porque, nos rincões mais longínquos tem uma antena dessas. Então, cada antena numa casinha dessas tá tirando o quê, tá tirando uma cadeira da calçada, tá tirando

Page 51: 343o do matuto na poesia de Jessier Quirino)pos-graduacao.uepb.edu.br/ppgli/download/dissertacoes... · Figura 3. Amacio Mazzaropi disfarçado de Jeca Tatu Figura 4. Pôster do filme

51

uma conversa, uma oralidade, uma literatura oral por conta de uma formação que tá vindo via satélite (Depoimento concedido em 29/09/2008).

Para Jessier Quirino, as limitações do matuto fazem com que eles sejam

guardiões de determinadas tradições e valores que a modernidade está acabando.

O trator da modernidade impõe novos modos de vida, de cultura, de hábitos, de

trabalho, novos modos de lidar com a natureza, novos bens de consumo e o

abandono de certas tradições. O caipira ao se deparar com essas mudanças,

destaca Candido (2003), teve três reações frente ao processo de modernização e

urbanização da sociedade brasileira. A primeira reação adaptativa frente a esse

processo foi “a aceitação dos traços impostos e propostos”; a segunda, a aceitação

apenas dos traços impostos; e a terceira, a rejeição de ambos.

O homem rústico vive uma aventura freqüentemente dramática, em que os padrões mínimos tradicionalmente estabelecidos se tornam padrões de miséria, pois agora são confrontados aos que a civilização pode, teoricamente, proporcionar (CANDIDO, 2003, p. 279).

Um ponto importante a se frisar é que, nesse processo, os velhos objetos e

instrumentos são jogados fora, desprezados. No entanto, os novos não se tornam

acessíveis. Tanto os valores materiais quanto os imateriais são substituídos em

prejuízo a cultura rural. Evidentemente não nos posicionamos enquanto

conservadores e que o homem do campo não tenha acesso aos bens de consumo e

a outras culturas. Não é um posicionamento xenófobo, mas nos questionamos

quanto a força homogeneizadora dessas mudanças.

O Caipira, assim como o Matuto, sofreu impactos profundos com os

processos modernizadores das cidades. Os processos de hibridização, como afirma

Canclini (1996), transformou todas as culturas em “culturas de fronteiras”, num

movimento de interconexões entre o campo e a cidade, onde todas as artes “se

desenvolvem em relação com outras artes”. A cultura matuta, neste sentido, perde a

relação de exclusividade com o seu espaço, mas é recompensada com

conhecimento e comunicação. Uma relação de poder. Um jogo de perde e ganha, no

qual, a mídia assume o papel de porta-voz de um discurso hegemônico, em sua

maioria.

Page 52: 343o do matuto na poesia de Jessier Quirino)pos-graduacao.uepb.edu.br/ppgli/download/dissertacoes... · Figura 3. Amacio Mazzaropi disfarçado de Jeca Tatu Figura 4. Pôster do filme

52

2.3 – “O matuto no cinema”: Os Meios de Comunicação de Massa e suas

influências

E o matuto, rapaz... Anafalbeto de pai e mãe... e parteira E sai do sertão pra capital pra assistir um filme estrangeiro legendado quando ele volta pro sertão, mas ele num conta o filme todinho? - má rapai eu fui lá na capitá rapai eu assisti um filme altamente internacioná pense num filme internacioná! e tem uma coisa: um filme mafioso... um fime mafioso... Ói, tinha dois atista: tinha o atista que sofria e o atista que salvava. [...] Amarraro o atista com imbira, butaro o caba sentado a força numa cadera ai chego o bandido, butô o dedo na cara do atista e disse: num sei que lá, num sei que lá, num sei que lá, num sei que lá, num sei que lá. Tá pensano que atista teve medo rapaiz? O atista amarrado com imbira rapai, teve que ouvi tudinho, mas muito do tranquili, olhô pa cara do bandido assim e disse: num sei que lá, num sei que lá, num sei que lá o quê mermão??? [...]

(O Matuto no cinema) Jessier Quirino

Por muito tempo, o distanciamento do homem rural em relação à dinâmica

vivida pelo homem urbano marcou de forma profunda a sua formação, o seu hábito.

Por um lado, fez com que essa população criasse uma forma independente de se

comunicar, de se alimentar, de brincar, de se relacionar com os animais e com a

natureza como um todo. Esses valores, hoje, são estudados no mundo inteiro, a

exemplo dos estudos de Paul Zumthor (1993) na obra “A letra e a voz” sobre a

oralidade da cultura popular. No Brasil, a obra de Ariano Suassuna retrata um

Nordeste Medieval, onde o sertanejo é o cavaleiro, o herói das suas histórias. O

Brasil nasce no fim da Idade Média e início do Renascimento e, devido a sua

colonização, ele se encontra em muitos aspectos com o período medieval8 da

“Península Ibérica” (ALBUQUERQUE JUNIOR, 1999).

8 É importante salientar que Sônia Lúcia Ramalho de Farias, em sua obra “O Sertão de José Lins do Rego e Ariano Suassuna: Espaço Regional, Messianismo e Cangaço”, refuta a tese de um Nordeste medieval.

Page 53: 343o do matuto na poesia de Jessier Quirino)pos-graduacao.uepb.edu.br/ppgli/download/dissertacoes... · Figura 3. Amacio Mazzaropi disfarçado de Jeca Tatu Figura 4. Pôster do filme

53

Mas a relação muda quando esse sertanejo começa a ter acesso aos

produtos da urbanidade, principalmente ao jornal, ao rádio, a televisão, ao cinema e,

hoje, à Internet. O nosso ponto de investigação é também sobre a influência dessas

mídias na construção imagética dessas pessoas, tanto pela Mídia quanto pela

literatura. Uma vez que todas as esferas sociais sentem-se atraídas por novos

produtos, assim sendo, esses grupos sentem-se atraídos a consumirem os produtos

midiáticos, como forma de se equiparar às classes hegemônicas. Na outra ponta,

essas pessoas, estereotipadas muitas vezes, se transformam em personagem de

enredos literários (Monteiro Lobato), de filmes (Mazzaropi), da literatura popular. Há

uma recriação ou até mesmo uma criação imagética desses grupos marginalizados,

como é o caso do caipira, que, através de Monteiro Lobato (figura 1), ganha um

estereótipo capaz de ridicularizar e dar cor a todas as pessoas do interior do País.

Não só as da zona rural, mas até mesmo as que moram em pequenas cidades.

Monteiro Lobato publica no jornal “O Estado de S. Paulo”, em 1914, uma série

de artigos que depois virariam contos no seu livro Urupês, publicado em 1918. No

Figura 1. José Bento Renato Monteiro Lobato

Page 54: 343o do matuto na poesia de Jessier Quirino)pos-graduacao.uepb.edu.br/ppgli/download/dissertacoes... · Figura 3. Amacio Mazzaropi disfarçado de Jeca Tatu Figura 4. Pôster do filme

54

artigo “Velha Praga9”, Monteiro Lobato critica o modo de vida nômade do caipira

paulista, chamando-o pela primeira vez de Jeca Tatu:

[...] como nem sequer uma laranjeira ele plantou, nada mais lembra a passagem por ali do Manoel Peroba, do Chico Marimbondo, do Jéca Tatú ou outros sons ignaros, de dolorosa memória para a natureza circunvizinha10

Nesse mesmo artigo, Monteiro Lobato diz que o “caboclo é uma qualidade

negativa” e elenca as características do caipira que mais tarde constituiriam o seu

estereótipo: com o seu cachorro, o seu pilão, a picapau (espécie de espingarda), e o

isqueiro... Encoscorado numa rotina de pedra, recua para não adaptar-se... ele e a

sarcopta fêmea, esta com um filhote no útero, outro ao peito, outro de sete anos à

ourela da saia – este já de pitinho na boca e faca à cinta [...]. Para Antonio Candido

(2003), a posição de Monteiro Lobato em relação ao caboclo era odiosa. Com o fim

das bandeiras e entradas, um novo tipo social surgia no interior paulista e Monteiro

Lobato, proprietário de fazendas em Taubaté, estava decepcionado com a forma

como aquelas pessoas lidavam com as terras. “A posição de Monteiro Lobato em

relação ao caboclo, tanto quanto me lembro, ou é de franco desprezo pelo seu

atraso, que não permite ao fazendeiro tocar a lavoura de maneira progressista; ou

então, é de franca piada”, revela Candido em entrevista a Jackson (2002, p. 143).

A partir da estereotipação proposta por Monteiro Lobato, o cinema brasileiro

ganha com Amácio Mazzaropi (figura 2), ator, diretor, e produtor de filmes, uma

estética que dá vida a essa forma desconfigurada do caipira como Jeca Tatu (figura

3). Neste sentido, a formação imagética negativa do caipira que temos hoje está

diretamente ligada a forma como foi construída pelo discurso de Monteiro Lobato e

dos filmes de Mazzaropi. Mas, mais especificamente pela grande força que o cinema

teve no Brasil na segunda metade do século XX a partir dos filmes de Mazzaropi.

9 Lobato, Monteiro. Velha Praga. Disponível em: < http://www.cptec.inpe.br/queimadas/material3os/mlobato.htm>. Acessado em 06/10/2008 10 idem.

Page 55: 343o do matuto na poesia de Jessier Quirino)pos-graduacao.uepb.edu.br/ppgli/download/dissertacoes... · Figura 3. Amacio Mazzaropi disfarçado de Jeca Tatu Figura 4. Pôster do filme

55

Na figura 2, Amácio Mazzaropi, descendente de imigrantes italianos pousa

para fotografia, nela, uma imagem totalmente diferente da criada por ele para

personificar o caipira como podemos observar nas figuras 3 e 4. O discurso dos

filmes de Mazzaropi ajudou a construir uma imagem do caipira que influenciou muito

as produções que tratam do homem do interior da região Nordeste, dos estados de

São Paulo e Minas Gerais. Em 2006, a Europa Filmes distribuiu o filme Tapete

Vermelho, uma comédia produzida por Luiz Alberto Pereira e protagonizada por

Matheus Nachtergaele. No filme, Nachtergaele vive o personagem Quinzinho que

tem a promessa de levar o seu filho para assistir a um filme de Mazzaropi na cidade

Figura 3. Amacio Mazzaropi disfarçado de Jeca Tatu Figura 4. Pôster do filme Jeca Tatu de Mazzaropi

Figura 2. Amácio Mazzaropi

Page 56: 343o do matuto na poesia de Jessier Quirino)pos-graduacao.uepb.edu.br/ppgli/download/dissertacoes... · Figura 3. Amacio Mazzaropi disfarçado de Jeca Tatu Figura 4. Pôster do filme

56

grande (figuras 5 e 7). A recriação do Caipira em Tapete Vermelho assume as

mesmas características do Jeca Tatu dos filmes de Mazzaropi (figura 7), apesar de

Quinzinho não utilizar, propositadamente, remendos em suas roupas, mas a

linguagens os gestos e a postura corporal repetem a mesma estética.

Se o cinema de Mazzaropi e a literatura de Monteiro Lobato ajudaram a

construir um estereótipo do caipira, o mesmo não se dá em relação ao matuto. O

nosso questionamento é de que o matuto não é retratado de forma imagética por

essa Mídia, pois não há uma estereotipação criada para ele. Existe, sim, uma

criação imagética, mas se aplica especificamente à fala. É uma distorção que é

Figura 5. Nachtergaele, interpreta o Quinzinho Figura 6. Mazzaropi (à direita) em um de seus filmes

Figura 7. Cena do filme Tapete Vermelho: destaque para as faces das personagens em relação ao homem da cidade

Page 57: 343o do matuto na poesia de Jessier Quirino)pos-graduacao.uepb.edu.br/ppgli/download/dissertacoes... · Figura 3. Amacio Mazzaropi disfarçado de Jeca Tatu Figura 4. Pôster do filme

57

aplicada a todos os nordestinos, tanto da cidade quanto do interior, havendo uma

variação maior da fala quando se trata dos baianos, por exemplo.

Para Jessier Quirino, a televisão contribui para uma deformação do matuto ao

propor o estereótipo do caipira como equivalente a todas as pessoas que moram no

interior do País e, principalmente, por forçar um “suposto erro” lingüístico:

Como bem disse Bráulio Tavares, a respeito de um livro meu, ele diz que o matuto precisa ser tratado com dignidade. Não precisa você botar um carvão no dente, não precisa você botar uma calça remendada, você não precisa fazer com que ele force demasiadamente o suposto erro (Depoimento concedido em 29/09/08).

Na sua poesia, apesar de o autor falar em um suposto erro em busca de um

“realismo campeiro” ao retratar o matuto, observa-se que na realidade ele se utiliza

da “oralidade mista” (Zumthor, 1993). Uma oralidade na qual houve o contato com a

escrita, mas essa influência permaneceu distante, atrasada, externa e parcial.

Invertendo o ponto de vista, dir-se-ia que a oralidade mista procede da existência de uma cultura “escrita” (no sentido de “possuidora de uma escritura”); e a oralidade segunda, de uma cultura “letrada” (na qual toda expressão é marcada mais ou menos pela presença da escrita) (ZUMTHOR, 1993, p.18).

Assim comenta Jessier Quirino: Eu gosto de forçar o suposto erro, mas encontro o lado hilariante da palavra... em busca de uma fraseologia campeira. Mas não de forma de denegrir. Por exemplo, se eu disser de cócoras e eu acho que esse de cócoras é muito explicado pra quem quer dizer que o cabra tava de coca. E se eu disser que o cabra deu uma topada cachorra da mulesta é melhor do que eu dizer que o cabra deu uma topada cachorra da moléstia. Que, aí, se eu disser moléstia ele não deu topada nenhuma, foi um ligeiro escorregão (Depoimento concedido em 29/09/08).

De acordo com Jessier Quirino, há ainda livros em que há uma deformação

na escrita de forma proposital. “Existem encenações televisivas que a gente vê que

chega um caipira....então, esse tipo de deformação eu acho que é uma coisa que

não dá nenhum ganho, muito pelo contrário, a gente perde com isso”, afirma Jessier

Quirino. Em outros, é o discurso da falta de políticas de inclusão social para esses

grupos marginalizados que a Mídia termina reproduzindo. A cultura brasileira, com

toda a sua multiplicidade de manifestações, acaba sendo recriada pelos meios

formadores de opinião de forma igualitária, eliminando as suas variações lingüísticas

Page 58: 343o do matuto na poesia de Jessier Quirino)pos-graduacao.uepb.edu.br/ppgli/download/dissertacoes... · Figura 3. Amacio Mazzaropi disfarçado de Jeca Tatu Figura 4. Pôster do filme

58

e culturais através da uniformização da fala dos apresentadores e repórteres dos

telejornais. Ou, então, busca-se uma ridicularização através de personagens do

cinema e da telenovela.

Questionado se a sua poesia reforça um discurso estereotipado do matuto,

Jessier Quirino discorda e diz que, se isso acontece, é apenas com relação ao grau

de instrução do matuto não saber escrever ou falar errado, de acordo com a norma

culta.

A ridicularização que pode ser atribuída é a escrita, ou seja, a partir do momento que o cara escreve errado, ou o causo do camarada que diz assim: você vai bordar nessas 12 cuecas o nome Tenente Coronel Pedro Justiniano Martinho de Oliveira, 2º Batalhão.... - E eu vou bordar isso em doze cuecas? Não, você só precisa bordar numa, nas outras, você escreve id, id, id. Então, isso é um causo que mostra as limitações de saber dessa pessoa. Mas essa coisa engraçada, o próprio homem do campo ele faz isso, ele ri dele mesmo (Depoimento concedido em 29/09/08).

Observamos que a literatura e a mídia, especialmente as que trabalham com

a imagem, seja ela em movimento ou estático, tem construído, ou ajudado a

construir, vários tipos sociais, reforçando um discurso dominador sobre as classes

subalternas. Num outro ponto, essas classes subalternas mostram que têm um

poder de observação e sobrevivência dentro do espaço do outro muito maior do que

Figura 8. Jessier Quirino durante apresentação

Page 59: 343o do matuto na poesia de Jessier Quirino)pos-graduacao.uepb.edu.br/ppgli/download/dissertacoes... · Figura 3. Amacio Mazzaropi disfarçado de Jeca Tatu Figura 4. Pôster do filme

59

as classes hegemônicas imaginam (Canclini, 1997). Neste sentido, a poesia de

Jessier Quirino assume, em boa medida, o discurso positivo para o matuto ao

buscar recriá-lo de forma não estereotipada, ou ao menos tentado. Do ponto de vista

imagético, Jessier Quirino não constrói uma imagem visual definidora do matuto

(figuras 8 e 9) durante as suas apresentações. Entretanto, a deformação fica por

conta de gestos feitos ou de entonações na fala, características de uma performance

como linguagem eficaz para uma comunicação poética (ZUMTHOR, 2000). Porém, a

sua performance mostra uma recriação muito diferente da proposta por Monteiro

Lobato e Mazzarapi com o Jeca Tatu. É importante destacar que, ao não se

caracterizar com uma vestimenta que seja “própria ou peculiar do matuto”, Jessier

Quirino pode distanciar-se do objeto da performance, mas por outro lado não vincula

o matuto ao um estereótipo figurinista.

Figura 9. Jessier Quirino durante depoimento concedido a este pesquisador

Page 60: 343o do matuto na poesia de Jessier Quirino)pos-graduacao.uepb.edu.br/ppgli/download/dissertacoes... · Figura 3. Amacio Mazzaropi disfarçado de Jeca Tatu Figura 4. Pôster do filme

60

2.4 “Isso é cagado e cuspido paisagem de interior”: O que faz ser Matuto

Arquiteto por profissão, poeta por vocação, matuto por convicção. Jessier Quirino

O Nordeste é uma região “definida” (ALBUQUERQUE JUNIOR, 1999) muito

em função dos seus traços regionalistas e, nela, vários grupos sociais foram criados.

Entre eles, o nordestino, caracterizando aqueles que nascem sob as delimitações

geográficas e políticas, matrizes necessárias para a constituição da mesma região;

sertanejo; brejeiro; caririzeiro; entre outros, a depender das mesorregiões que

compõem o clima dos nove estados do Nordeste, definidoras das múltiplas

identidades sob o manto do “que faz ser nordestino” (PENNA, 1992).

Na epígrafe acima, Jessier Quirino, natural de Campina Grande, mas há 25

anos morando em Itabaiana, região Agreste do estado da Paraíba, autodefine-se

como portador de três identidades: arquiteto, poeta e matuto. A primeira está ligada

a um processo de formação institucional; a segunda, possuidora de uma habilidade

natural (sic); a terceira, constituída a partir de uma noção de pertencimento,

ancorada numa memória simbólica ligada a uma identidade maior, que é a de ser

nordestino.

Fatores sociais e naturais: Educação, bens de consumo,

alimentação, chuva, secas, etc

Espaço rural: Sertão, caatinga, brejo, cariri, etc,

contato com a terra e sua defesa

Valores atribuídos:

Estereótipos, atrasados, linguagem, etc

Valores constituídos: Relação com a terra, cultura,

simplicidade, poder de observação, etc

Nordeste: Matriz de várias identidades

Matuto: Fruto da relação com o habitat, com os meios

sociais e estereótipos a ele atribuídos

Jessier Quirino:

Requerente de uma identidade social Figura 10. Gráfico sugestivo da constituição de uma identidade matuta

Page 61: 343o do matuto na poesia de Jessier Quirino)pos-graduacao.uepb.edu.br/ppgli/download/dissertacoes... · Figura 3. Amacio Mazzaropi disfarçado de Jeca Tatu Figura 4. Pôster do filme

61

Jessier Quirino requer uma identidade onde os seus valores estão ligados a

um modo de vida social e que tem a sua formação atribuída a partir de um discurso

hegemônico das elites dominantes. Um discurso endossado e estereotipado, hoje,

pela Mídia. Entretanto, esse grupo marginalizado sente-se livre para criar novas

formas de adaptação ao meio social a eles imposto, além dos fatores climáticos

adversos. Atualmente, pessoas que tiveram contato com moradores da zona rural ou

mesmo que têm a origem nesse espaço, muito embora tenham construído uma vida

acadêmica nos grandes centros, defendem a bandeira de ser matuto. Cada vez mais

professores universitários, médicos, advogados, entre outros, navegam pelo espaço

da poesia e da literatura popular defendendo uma “identidade rural”. O que se

percebe é que há uma procura por uma forma existencial muito ligada a valores

constituídos a partir de uma memória social. O ser humano, assinala Sidekum

(2003), é especificado pela própria natureza, que o constitui, ainda que com ele

totalmente não coincida (p. 243).

Nos últimos anos, com a expansão do capitalismo favorecendo a locomoção

das pessoas, seja através do avião, do ônibus e de outros transportes, e da

popularização dos meios de comunicação como a TV e a Internet, vários estudos

sobre a identidade cultural e seu(s) conceito(s) foram travados. Mas o que todos

concordam é que não há uma identidade “integral, originária e unificada” (HALL,

2000), ou seja, é um “conceito totalmente contestado” (BAUMAN, 2005), o que há é

uma “pluralidade de identidades” (ORTIZ, 1994). Se não há um consenso sobre uma

definição de “identidade”, Hall (2000) salienta que as discussões sobre o conceito de

“identificação” também não foram amplamente debatido. Para ele,

Na linguagem do senso comum, a identificação é construída a partir do reconhecimento de alguma origem comum, ou de características que são partilhadas com outros grupos ou pessoas, ou ainda a partir de um mesmo ideal (HALL, 2000, p. 106).

A identificação argumenta Hall, assim como a identidade, não pode ser

totalmente fechada, sempre haverá a possibilidade de “ganhá-la ou perdê-la”, é um

processo de articulação. Já ao defender o uso do termo “identidade”, Hall comenta

que a sua utilização é para

[...] significar o poder de encontro, o ponto de sutura, entre, por um lado, os discursos e as práticas que tentam nos interpelar, nos falar ou nos convocar para que assumamos nossos lugares como os sujeitos sociais de discursos particulares e, por outro lado, os processos que produzem subjetividades,

Page 62: 343o do matuto na poesia de Jessier Quirino)pos-graduacao.uepb.edu.br/ppgli/download/dissertacoes... · Figura 3. Amacio Mazzaropi disfarçado de Jeca Tatu Figura 4. Pôster do filme

62

que nos constroem como sujeitos aos quais se pode falar (HALL, 2000, p. 112).

A busca de uma identidade social relacionada ao homem do campo, ao

matuto, por pessoas de outras camadas sociais, num processo de pertencimento a

um determinado modo de vida, está ligada a uma memória simbólica em que essas

pessoas sentem a necessidade de preservá-la, recuperá-la ou até mesmo de recriá-

la. O que pode acarretar na formação de uma identidade distante da sua realização.

2.4.1 “Empurra a cancela Zé”: reconstruindo os laços matutais

Franklin Távora11 (1842-1888) com a publicação de “O Cabeleira” (1876) dá

início ao romantismo de caráter regionalista no Nordeste brasileiro, opondo-se ao

Sul e ao Sudeste, como saída para se alcançar uma literatura de alma nacional. Em

1878 o escritor publica o romance “O Matuto”, antecedendo as pesquisas de

Agamenon Magalhães feitas em 1921 e de Antonio Candido na década de 1950. A

importância da obra de Távora (1902) se concentra em retratar a vida das pessoas

da zona rural pernambucana ao mostrar o seu modo de vida e sua relação para o

desenvolvimento da região Nordeste. Na obra, Távora diz que os matutos estão

divididos em diversas espécies, sendo as mais comuns as dos “lavradores e

almocreves” (p. 7). Neste sentido, as diferentes espécies de matutos estariam

ligadas a uma divisão de bens dentro de um mesmo modo de vida social, onde o

lavrador dispunha de alguns bens, “a saber, escravos, cavalos, terras” (p.7), os

quais dividiam as tarefas de plantio e produção da cana nos engenhos, recebendo

como troca parte dos produtos. Já o almocreve, possuiria apenas a sua própria força

e um “cavalo para condução de cargas, por ajustado frete” (p. 7) no transporte de

mercadorias.

11 Natural de Baturité-CE, Franklin Távora muda-se para Recife com a família em 1844. Ingressa na Faculdade de Direito do Recife, formando-se em 1863; convive com Tobias Barreto e Sílvio Romero, compartilhando das idéias filosóficas da Escola de Recife. Intérprete de um regionalismo que se vinha exprimindo ideologicamente desde o início do século, defendeu o que chamava uma literatura do Norte, em oposição a uma literatura do Sul, considerada cheia de estrangeirismos e antinacionalismo. Disponível em: < http://www.caminhosdoromance.iel.unicamp.br/estudos/abralic/franklin_tavora.doc> e <http://www.biblio.com.br/defaultz.asp?link=http://www.biblio.com.br/conteudo/FranklinTavora/FranklinTavora.htm >

Page 63: 343o do matuto na poesia de Jessier Quirino)pos-graduacao.uepb.edu.br/ppgli/download/dissertacoes... · Figura 3. Amacio Mazzaropi disfarçado de Jeca Tatu Figura 4. Pôster do filme

63

A literatura de Franklin Távora revelava como as pessoas da época travam os

matutos, como podemos perceber na passagem abaixo:

Quantas vezes, ao ver-vos descalços, mal vestidos e mal passados, não senti apertar-se-me o coração com pena de vós?! Esta pena redobrava sempre que, passando pela frente dos vossos casebres, eu descobria ai por mobília um banco tosco, uma caixa grosseira, um pote de água suspenso entre os braços de uma forquilha enterrada no canto da salinha, e por leito de dormida para vós e vossos filhinhos uma esteira ou um girau de varas! Então eu compreendia a razão por que em nossos encontros nos caminhos éreis vós os primeiros que tiráveis o vosso chapéu e me salváveis com mostras de profunda humildade, sem saberdes sequer quem eu era. É que vós tínheis sempre presente no entendimento a consciência da vossa pobreza e consequentemente vossa fraqueza. Esta consciência, este aguilhão intimo, que nunca se embota, vos dava uma falsa idéia de superioridade de minha parte sobre vós. Pobres criaturas sois vós, ó matutos, mais dignos de compaixão e amparo do que do riso mofador de que vos fazem alvo os que na ignorância, na simplicidade e na miséria alheia acham assumpto para desenfado e divertimento próprio! Pobres sois vós dobradamente: porque recebestes de vossos pais (TÁVORA, 1902, p.7-8).

Na descrição do matuto por Távora, o olhar da ignorância, do outro, deveria

ser transformado em respeito do que propriamente em escárnio. O trecho revela

ainda a forma pela qual foi constituído o matuto, que na voz de Jessier Quirino12 é

chamado de “natureza do humilde, do sofredor” e que, para ele, “todas as pessoas

que têm essa simplicidade na alma” são eleitas como matutas independente de

onde estejam. O pensamento de Jessier Quirino se completa com o de Penna

(1998) ao discutir as possibilidades de uma pessoa ter múltiplas identidades a partir

de fontes distintas, como local de nascimento, classe social, profissional, uma vez

que “como uma construção simbólica, a identidade não é decorrência automática da

materialidade” (p. 93).

Neste caso, a identidade matuta de que fala Jessier Quirino seria, pois, uma

representação ligada diretamente a valores simbólicos de reconhecimento, de

pertencimento, distante de processos de miscigenação racial. Observamos que a

figura do matuto, na contemporaneidade, toma outra direção, mesmo retomando a

sua significação ligada a um “modo de vida social” (CANDIDO, 2003) e não a um

“caldeamento étnico”, a um “tipo étnico” (MAGALHÃES, 1970), muito embora esses

processos de miscigenação cultural contribuam para a formação de uma cultura com

base na realidade rural.

12 Depoimento concedido em 29/092008 na sua casa em Itabaiana-PB a este pesquisador .

Page 64: 343o do matuto na poesia de Jessier Quirino)pos-graduacao.uepb.edu.br/ppgli/download/dissertacoes... · Figura 3. Amacio Mazzaropi disfarçado de Jeca Tatu Figura 4. Pôster do filme

64

CAPÍTULO III A REPRESENTAÇÃO DO

MATUTO EM JESSIER QUIRINO

Page 65: 343o do matuto na poesia de Jessier Quirino)pos-graduacao.uepb.edu.br/ppgli/download/dissertacoes... · Figura 3. Amacio Mazzaropi disfarçado de Jeca Tatu Figura 4. Pôster do filme

65

A REPRESENTAÇÃO DO MATUTO NA OBRA DO

POETA PARAIBANO JESSIER QUIRINO

O Nordeste brasileiro é uma região que abriga várias sub-regiões, onde cada

um dos nove estados tem suas especificidades geográficas, sociais, políticas,

econômicas e culturais (embora esta última abarque quase todas as especificidades

citadas). Pensar a formação de um tipo social pautado em valores campestres e

estereótipos a ele atribuídos como formador de uma cultura homogênea nos estados

nordestinos é improvável. O matuto paraibano talvez não se assemelhe, por

exemplo, ao matuto de outros estados Nordestinos, uma vez que a sua formação

social e o seu modo de vida cultural estaria ligado as condições encontradas por ele

apenas no seu habitat. Caso contrário, todas as pessoas que tenham uma relação

direta de sobrevivência com o espaço rural teriam comportamentos iguais, e a

literatura mostra que não (CANDIDO, 2003), (MAGALHÃES, 1970), (TÁVORA,

1902), etc.

3.1.2 Seguindo as veredas quirinianas

Para se fazer qualquer investigação sobre poesia, é preciso se posicionar

num determinado ponto. Neste sentido, a poesia de Jessier Quirino será enquadrada

aqui por nós como sendo uma poesia matuta, sabendo-se que com isso incorremos

na adoção de um rótulo que distancia as criações artísticas mais do que as aproxima

enquanto linguagem humana. Outrossim, talvez, devêssemos chamá-la de poesia

regional nordestina. Uma questão é colocada por Tavares (1998) ao se referir à

poesia matuta, quando diz: “tenho feito restrições ao uso do ‘poema matuto’ quando

ele me parece deformar desnecessariamente o modo de falar das pessoas”

(TAVARES, 1998, p. 10). Para o autor, o problema não está necessariamente no

modo de falar das pessoas ou com a língua culta, mas sim com a poesia que

representa o matuto como sendo um “débil mental” ou “idiota simplório”.

Observamos, ainda, que a poesia pode ser classificada em “erudita” e

“popular”. Esta última subdivida em: poesia oral, imbuída de um forte teor narrativo;

Page 66: 343o do matuto na poesia de Jessier Quirino)pos-graduacao.uepb.edu.br/ppgli/download/dissertacoes... · Figura 3. Amacio Mazzaropi disfarçado de Jeca Tatu Figura 4. Pôster do filme

66

poesia matuta, representativa de valores da zona rural; e poesia de cordel,

formada pela métrica e a embalagem, sendo possuidora de traços de oralidade e

ligada as classes populares e em boa medida do Nordeste brasileiro.

Entendemos que a poesia de Jessier Quirino permeia a poesia oral, a matuta

e a de cordel, devido a sua vivência com o universo rural e interiorano. O próprio

autor demonstra isso ao descrever a sua vida nos tempos de infância e

adolescência:

Emburaquei nas tripas do continente nordestino ainda menino, quando ouvia os bemóis das cantorias que a Rádio Borborema “violava” antes da Ave-Maria, bem na hora que os meninos chegavam da escola de Dona Bazinha. Tempo do medo de injeção na bunda aplicada por Dona Bilinha, dos banhos de açude de Seu Euclides, das pescas de guaru no canal de Chico Quirino (...) Tempo em que o papel pautado da prova cheirava a sabonete Lifebouy, Eucalol e as colônias Royal Briar e Cashmere Bouquet, que vinha da vitrine de imbúia, cercada de tamboretes de aroeira da venda de Seu Nilo. Tempo do som de Zé Américo anunciando o jogo Treze e Campinense (...) Das brincadeiras com Ciço Galinha, Pedo da Baixa, Paulo Mocó, Lulu, Bebé, Mala Véia, Aurelinho, Bilingo e Doutor. Tempo em que se assistia aos filmes de Maciste e Ivanhoé e descia a ladeira da Lapa montado num pirulito com os bolsos cheios de gibi e com os peitos cheios de razão.(...) O privilégio de ter sido criança no interior do Nordeste e de ser devoto da sabedoria e da simplicidade do matuto sertanejo, fez com que eu me tornasse um prestador de atenção das coisas do mato. Admirador dos mestres Catulo, Patativa, Zé da Luz, Renato Caldas, entre outros, e amante da redondura do forró, do coco e do arrastapé, birita que me acompanha desde os tempos em que afinei os ouvidos musicais no forró de Zé Lagoa. Mergulhei mais fundo nos mares da matutice, num longo período em que o Sertão de Jericó, Catolé do Rocha, Brejo do Cruz e mundo abaixo, me hospedou com fartura, “sorridão” e calor. Conheci: do arrubação ao peido de carretilha, do requifite do pavão ao coice do preá, do róseo do muçambê ao mosqueiro preto da cozinha, muita reza, causos e mal-assombros cheios de nordestinismos (QUIRINO, 1996, p. 8-10)

O olhar de observador participante de Jessier Quirino redescobre o modo de

vida do matuto e descortina um universo de palavras, gestos, e sua relação com a

natureza que ora castiga e ora alimenta o homem nordestino. Tudo isso sendo

observado desde a sua adolescência.

Page 67: 343o do matuto na poesia de Jessier Quirino)pos-graduacao.uepb.edu.br/ppgli/download/dissertacoes... · Figura 3. Amacio Mazzaropi disfarçado de Jeca Tatu Figura 4. Pôster do filme

67

3.1 ANÁLISE DO CORPUS

3.2.1 Fisionomia do espaço rural

A poesia de Jessier Quirino pode ser classificada como uma poesia rural, o

que não impede o autor de transitar por outras temáticas, buscando o espaço

urbano como matriz para uma outra produção. Quanto ao universo dos poemas

rurais, Quirino se posiciona como um flâneur dentro das brenhas nordestinas, a

observar uma geografia física e humana, com o olhar de um “observador

participante” revelando o modo de vida de um grupo social dentro do espaço rural.

[...] Sem o conforto se quer Com suas latas furadas E a cacimba tão distante [...] De taipa e barro é seu ninho (QUIRINO, 2001, p. 15).

Jessier Quirino no poema Zé Qualquer e Xica Boa (QUIRINO, 2001, pp. 15-

18) ao descrever o modo de vida do matuto ressalta duas situações muito

recorrentes da zona rural nordestina: a falta d’água, que muitas vezes transforma em

flagelo a vida dessas pessoas, e a condição social e de moradia dos mesmos. Assim

sendo, a voz poética enfoca a relação estabelecida entre o homem e a natureza,

entre o mínimo vital e o mínimo social (CANDIDO, 2003).

DEPRESSA Visitar depressinha Sevirinim Puxa-Tripa Deixou de herança Um pé de fruta-pão e um rádio... (QUIRINO, 2001, p. 53 - grifo nosso)

A relação do homem nordestino com a terra, especialmente na zona rural, é

quase visceral. Há um apego muito forte à natureza ao ponto de haver uma relação

sagrada entre um homem e um animal, geralmente criado para servir de alimento e

que, na hora de sacrificá-lo, é como se perdessem alguém da família. No poema

Caderneta de matuto (QUIRINO, 2001, p. 53), Jessier Quirino enfoca essa relação

sagrada ao passar a uma árvore frutífera o estatuo de única propriedade. Neste

caso, um dos poucos bens que o homem rural tem, além da terra.

Page 68: 343o do matuto na poesia de Jessier Quirino)pos-graduacao.uepb.edu.br/ppgli/download/dissertacoes... · Figura 3. Amacio Mazzaropi disfarçado de Jeca Tatu Figura 4. Pôster do filme

68

Foi seca batendo palma Na porta do milharal E o cumpade de arranco Fugindo pra capital Deixando um quintal rachado Com lençóis enferrujados Rangendo pelo varal (QUIRINO, 2001, p. 63).

Para quem sofre o drama das secas nordestinas, só há duas alternativas:

ficar ou partir para as cidades. Nas duas situações, as condições são idênticas.

Magalhães (1970, p. 85), referindo-se ao sertanejo, diz que ele trava uma batalha de

“sol a sol, sem cessar, contra a natureza”, uma vez que o clima nordestino e as

dificuldades enfrentadas é que formam esse matuto.

Essa luta se dá em duas frentes: contra as intempéries da natureza física ou

da natureza das civilizações urbanas. De fato, uma das maiores dificuldades do

homem rural nordestino é a falta d’água, aliada também ao descaso da falta de

políticas públicas. Situação retratada no cancioneiro popular nordestino através de

Luiz Gonzaga, Patativa do Assaré, Catulo da Paixão Cearense, entre outros.

Senador – Agora vamos falar de Nordeste. Como é verdadeiramente o quadro da seca no Nordeste? Matuto – Olhe: De bicho de cabelo, só quem escapa é escova, de bicho de fôlego, só quem escapa é fole, e animal de quatro pé, só escapa tamborete. (QUIRINO, 2001, p. 80 - grifo do autor)

A voz poética revela um quadro da secas nordestinas desolador. Por falta

d’água, muda-se o homem, morrem os animais, definha a vegetação. Nada escapa

à força da natureza. Em boa medida, essa é a natureza física e geográfica que

permeia a parte semi-árida da região Nordeste e molda o habitante desse espaço.

SABER: Porque imbuias e sucupiras

Estão morrendo de madeirite (QUIRINO, 1998, p. 157).

No fragmento acima, o poema Caderneta de matuto II (QUIRINO, 1998, p.

157) mostra a preocupação do homem rural com o desmatamento e a transformação

dessas árvores em madeira prensada para a construção civil. Muito embora, esse

mesmo homem também contribua para o desmatamento.

A poética de Jessier Quirino não revela só as secas nordestinas. Não é só

uma estética do sofrimento. Ela muda, assim como muda a própria natureza e o

homem rural com a chegada da invernada. E se chove, o homem rural, moldado

Page 69: 343o do matuto na poesia de Jessier Quirino)pos-graduacao.uepb.edu.br/ppgli/download/dissertacoes... · Figura 3. Amacio Mazzaropi disfarçado de Jeca Tatu Figura 4. Pôster do filme

69

pela geografia, tem a abundância de alimentos provindos da natureza. É laranja,

maga, limão, jaca, caju, é gado e pasto, tudo em fartura.

Da ribanceira pra baixo É sítio Caga-Chapéu (...) Vê gado e capim-mimoso Em estado de baixio Em estado de balaio Laranja, manga e limão Pé de jaca jaquejando E caju de vez em quando Cajuindo pelo chão (QUIRINO, 2006, p. 33).

O espaço rural modifica o modo de vida desse grupo social de acordo com as

estações do ano, inverno ou verão. A natureza propicia a esse grupo a obtenção do

mínimo vital de alimentação e social (CANDIDO, 2003), criando condições de

sobrevivência, adaptação e permanência no local.

3.2.2 Representação do matuto

Zumthor (1993) diz que a voz poética assume a função de transmissora da

memória de um grupo, revelando os hábitos dessa comunidade. A poética de

Jessier Quirino assume essa função de reavivamento da memória rural nordestina,

principalmente após a morte de Patativa do Assaré, haja vista o poder de aceitação

e penetrabilidade dos seus poemas na mídia nacional.

No poema Zé Qualquer e Chica Boa (QUIRINO, 2001, pp.15-18), a voz

poética chama para si a função de descrever o modo de vida do matuto. Uma

espécie de manifesto em defesa do modo de vida e do caráter do matuto.

Empurra a cancela Zé Abre o curral da verdade Pra mostrar pra mocidade Como é que vive um Zé (...) Um Zé arame farpante Feito de gente e de fé. (QUIRINO, 2001, p. 15).

Page 70: 343o do matuto na poesia de Jessier Quirino)pos-graduacao.uepb.edu.br/ppgli/download/dissertacoes... · Figura 3. Amacio Mazzaropi disfarçado de Jeca Tatu Figura 4. Pôster do filme

70

A verdade que busca essa voz poética, decerto, não é a mesma que as

outras pessoas têm do matuto. É uma verdade que não esconde as condições

sociais, mas revela uma força maior, seja ancorada na bravura, seja ancorada na

religião e no sagrado.

O Zé que se aprisiona Aos cacos velhos da enxada Que nasce herdeiro do nada E qualquer lado é seu caminho Medalhas, são seus espinhos Quedas de bois são batalhas Seus braços, duas cangalhas [...] Peitando graveto torto Um dos três vai sair morto Ou ele, a besta ou o boi... (p.15).

O matuto, na concepção de Jessier Quirino, ao se deparar diante o processo

de modernização das sociedades e das fortes secas, se refugia no seu modo de

vida cultural, tornando-se um defensor dos seus valores morais e culturais. O

espaço rural retratado no poema é o sertão, um lugar de contrastes variados, onde a

força física emana de corpos em que a massa muscular se faz ausente. Para

Magalhães (1970), do morador dos sertões “não se pode esperar mais do que o seu

poder de resistência heróica”.

Entretanto, para Quirino, a sua grandeza está no valor moral do seu caráter,

como podemos observar:

O Zé que assim se conduz Nas brenhas deste sertão O Zé Ninguém, Zé Qualquer Mas o Qualquer desse Zé Não é qualquer qualquer não. É um Qualquer niquelado Acabestrado num Zé Não é Zé pra qualquer nome Nem Qualquer pra qualquer Zé... (p. 16)

Mas quem seria esse Zé:

Sois argumento de foice Sois riacho correntoso Tu sois carquejo espinhoso Sois calo de coronel Sois cor de barro a granel Sois couro bom que não mofa

Page 71: 343o do matuto na poesia de Jessier Quirino)pos-graduacao.uepb.edu.br/ppgli/download/dissertacoes... · Figura 3. Amacio Mazzaropi disfarçado de Jeca Tatu Figura 4. Pôster do filme

71

Sois um doutor sem farofa Sem soqueira de anel. Sois umbuzeiro de estrada Sois ninho de carcará Sois folha seca, sois galho Sois fulô de se cheirar Sois fruto doce e azedo Sois raiz que logo cedo Quer terra pra se enfiar. No inverno sois caçote Espelho de céu no chão Chorrochochó de biqueira Espuma de cachoeira Sois lodo, sois timbungão Sois nuvem quebrando a barra Violino de cigarra Afinando a chiação. Sois bafo de cuscuzeira Sois caldo de milho quente Sois a canjica do milho Sois milho pessoalmente Tu sois forte no batente Tu sois como milho assado Se não for bem mastigado Sai inteirinho da gente (p. 16-7).

Percebemos que a preocupação da voz poética está em relacionar o matuto à

própria natureza. O matuto, no poema acima, é o próprio reflexo do seu habitat.

Mas, neste caso, é importante observarmos que o matuto é visto com olhar positivo,

uma vez que sua imagem está relacionada ao inverno, à floração, ao alimento, aos

animais, e ao caráter íntegro, mesmo distante dos processos educacionais. Jessier

Quirino, neste caso, retrata os valores e hábitos do matuto com a preocupação de

enaltecer o modo de vida dessas pessoas. Para Melo apud Quirino (1998), tudo isso

feito com uma “extraordinária capacidade de observação, de observador

participante”.

Sois um Zé Qualquer do mato Provador de amargor Tu sois urro, sois maciço Devoto do padre Ciço Sois matuto rezador O Zé Qualquer em pessoa Marido de Chica Boa O teu verdadeiro amor (p. 17)

Page 72: 343o do matuto na poesia de Jessier Quirino)pos-graduacao.uepb.edu.br/ppgli/download/dissertacoes... · Figura 3. Amacio Mazzaropi disfarçado de Jeca Tatu Figura 4. Pôster do filme

72

O sagrado e a religião também fazem parte do universo mítico do matuto. Há

uma espécie de busca por explicações que fogem à sua compreensão. Por outro

lado, o sagrado e a religião funcionam como balizadores das desigualdades

enfrentadas no dia-a-dia. “Não há povo, por mais primitivo que seja, em que não se

veja a religião”, afirma Malinowski apud Silva (2004, p. 55). Quanto mais distante

dos processos que formam as sociedades modernas, mais próximos do sagrado e

da religião os homens se encontram. De certa forma, quando não há explicação

para fatos naturais ou catástrofes, o apelo ao sagrado ou a religião cumpre uma

função de dar respostas a determinados fatos.

No poema Sabatina feita com um matuto presidente de banco de feira

(QUIRINO, 2001, pp. 79-81) são colocados, lado a lado, um matuto e um senador. O

embate entre o letrado e iletrado. Neste caso, ao invés do matuto questionar ao

senador, o senador é quem faz as perguntas. Desse modo, o poema sugere numa

relação de superioridade e de conhecimento da situação econômica e política do

país por parte do matuto presidente de banco de feira, como podemos observar:

Senador – Senhor Pedim de Mané Lingüiça, sendo um presidente de banco de feira, como o senhor vê a situação econômica do Brasil, hoje? Matuto – Ahh!... O Brasil tá se acabando ligerim feito sabão em mão de lavadeira. (...) Senador – Mas o governo não promete ajustes para resolver o problema da crise, não promete? Matuto – É... só que ovelha prometida não diminui rebanho, né? (p. 79)

A voz poética mostra um matuto conhecedor, não apenas da lida na terra e da

venda de produtos numa feira livre, mas uma pessoa que, a seu modo, encontra

respostas para questionamentos alheios a sua vida diária.

Senador - O senhor é sempre assim, de poucas palavras? Matuto – Palavra de homem é um tiro. Falar sem cuidar é atirar sem apontar (p. 81).

Se a palavra, para o matuto, tem força e não pode ser usada

indiscriminadamente, uma vez que ela se configura em promessa, o discurso do

político não. Ele é carregado de promessas que, na maioria das vezes, não são

cumpridas. Neste ponto, Jessier Quirino recria no matuto as qualidades que

deveriam ter os políticos.

Page 73: 343o do matuto na poesia de Jessier Quirino)pos-graduacao.uepb.edu.br/ppgli/download/dissertacoes... · Figura 3. Amacio Mazzaropi disfarçado de Jeca Tatu Figura 4. Pôster do filme

73

Senador – Como homem do povo, que recado o Sr. tem para os governantes? (p. 81) Matuto – Meu recado é uma verdade: a gente nunca se esquece de quem se esquece da gente (p. 81).

A poesia de Jessier Quirino não tem o cunho social que tem a poética de

Patativa do Assaré. Porém, o matuto, tanto em Jessier quanto em Patativa, é um

sujeito consciente do seu papel enquanto cidadão e que sabe onde estão as causas

e as soluções para os seus problemas. Esse discurso é empregado porque o matuto

tem consciência dos seus valores e que eles são talhados no espaço rural, no

espaço da sua convivência. A sua identificação com o espaço rural é que dá

condição para que ele se posicione nesse sentido.

A perda dessa identificação, ou melhor, a reconfiguração/desenraizamento

dessa identidade se dá quando esse matuto é convidado a migrar, geralmente para

o Sul (São Paulo ou Rio de Janeiro, sendo chamado por boa parte dos Nordestinos

de Sul ao invés de Sudeste) em busca de uma melhor condição de vida. De acordo

com Penna (1998, p. 108), essa “migração acarreta mudanças no modo de vida, no

nível do trabalho, da inserção comunitária”. No poema Acontecença matuta I:

quando o nordestino do Sul recebe notícias do Nordeste (QUIRINO, 1996, pp.

24-28), a voz poética caracteriza dois tipos de nordestinos: o do Sul e o do Nordeste.

Neste caso, Penna (1998) diz que o processo de migração cria situações de

“(re)construção de referenciais de vida”. A identidade social do matuto enquanto

nordestino recebe a influência desse processo de migração do espaço rural para o

urbano.

Distante das tecnologias modernas de comunicação, o recurso utilizado por

boa parte dos moradores de zonas rurais para se comunicarem com os parentes

que moram fora ainda é a carta. Muito embora, o uso de celulares nas comunidades

rurais já seja uma realidade. Porém, a cobertura do serviço de telefonia móvel ainda

não é realidade em todo o território nacional.

Cumpade Migué dos Cocho Cumpade véi sem pantim Quem te escreve é Zé de Nuca O teu cumpade Zezim Pedindo logo licença Pra falá das contecença Dizer tim-tim por tim-tim (p. 24)

Page 74: 343o do matuto na poesia de Jessier Quirino)pos-graduacao.uepb.edu.br/ppgli/download/dissertacoes... · Figura 3. Amacio Mazzaropi disfarçado de Jeca Tatu Figura 4. Pôster do filme

74

No poema em questão, o recebimento de notícias da sua comunidade de

origem contribui para fortalecer e estreitar os laços identitários.

Quem morreu foi Istribábo As bruáca tão de luto [...] Prendêro Ciço Mofado Robando Zabé do doce [...] As duença da cornura Quaje mata Zé Nenêu [...] Chegô também uns Doutô Mode enganar as doença [...] Os bruguelo de Minarva Desaprendeu todo ensino... (p. 24-7)

De fato, são notícias os relatos comunicados por carta. Fruto de uma

observação cuidadosa, o matuto consegue relatar toda a estrutura social da sua

comunidade, onde estão envolvidos os casos de morte, roubo, relações

extraconjugais, saúde e violência, além da lida diária, como mostra a passagem

abaixo.

[...] Minha jumenta Frodite Deu-me um coice no grotão Qu’eu lhe digo meu cumpade Já não guento nem metade Duma panha de feijão (p. 27).

Num outro poema, Acontecença matuta II: a resposta (QUIRINO, 1996, pp.

29-32), o matuto que migrou para São Paulo relata suas experiências, também

através de carta. Importante observamos que os fatores que levam o homem rural a

abandonar a sua terra e migrar para outros centros deve ser visto como um

processo de resistência. Assim sendo, concordamos com Penna (1998, p. 104) ao

enfatizar que essa resistência é uma forma de combater a exploração e a

dominação, assim como as adversidades da natureza e a falta de perspectiva de

vida em sua terra natal.

Page 75: 343o do matuto na poesia de Jessier Quirino)pos-graduacao.uepb.edu.br/ppgli/download/dissertacoes... · Figura 3. Amacio Mazzaropi disfarçado de Jeca Tatu Figura 4. Pôster do filme

75

Por outro lado, em muitos casos, a condição desse matuto não se altera com

o processo migratório. A sua condição social permanece como antes da migração:

Por aqui tá um sufoco Nós veve de pouco a pouco Mode ladrão e puliça [...] Nós só pensa em apurar Os dinheiro das passage Pra mode nós ir simbora... (QUIRINO, 1996, p. 29)

Mesmo com toda a situação de arrependimento, o que se observa é que a

busca pelo “sonho e a felicidade” (PENNA, 1998) foram tentadas, numa procura por

uma vida melhor.

O apego aos valores fundidos no espaço rural faz com que o matuto, nesse

poema, reflita sobre o seu modo de vida, recriando imageticamente esse espaço

rural ao transitar pelo espaço urbano.

[...] Tou inté vendo visage Visei um pé de pereiro Em prena via São João [...] Vi catrevage de feira Chapéu de couro e gibão Aqui não tem um sibiti Um bigode, um curió [...] Nem calango, nem mocó [...] Nem roupa de gasimira Nem tem cobra de cipó Nem caçuá, nem chocalho Nem urupema ou pilão [...] Um marimbondo cabôco Que chegue pra ferruá Não tem galinha pedrez Lambedô de magará [...] É uma vida cruenta Sertanejo não agüenta Pode me acreditá... (QUIRINO, 1996, p. 29-1)

Page 76: 343o do matuto na poesia de Jessier Quirino)pos-graduacao.uepb.edu.br/ppgli/download/dissertacoes... · Figura 3. Amacio Mazzaropi disfarçado de Jeca Tatu Figura 4. Pôster do filme

76

Em certa medida, a voz poética recria essa memória dos valores

estabelecidos no espaço rural como forma de reavivar o modo de vida do matuto ao

passo em que compara uma realidade a outra. A recriação do matuto se dá pelo

apego aos valores campestres entre o homem e a natureza. Relação que o espaço

urbano impossibilita ao matuto, em boa medida.

Os processos migratórios geralmente conduzem os nordestinos, de um modo

geral, para zonas periféricas dos grandes centros, expondo-os a situações de

violência e miséria, como mostra o poema abaixo.

Zé Fuxico ispragatou-se De baixo dum caminhão Coió escapou fedendo Dos tiro do esquadrão [...] Tou vivendo de biscái Até quando inda não sei Sei que não posso vivê Pro riba desse aperrêi [...] Se tiver boi assinado Fiquei aí por esses lado E segure Maria Rosa. (p. 32)

A poesia de Jessier Quirino retrata um tipo social que sofre com as condições

climáticas de sua origem e com as situações encontradas no processo de migração

para os centros urbanos. Desarraigado do seu entorno, a alternativa é voltar para o

espaço rural e reconstruir os laços de pertencimento. Para Albuquerque Junior

(1999, p. 312), “a região Nordeste se construiu como um dos principais momentos

de recusa da modernidade no país”. Assim, os processos migratórios do homem

rural nordestino representados no poema de Jessier Quirino confronta o espaço

urbano/violento com o espaço rural/sobreviência.

Nesse mesmo campo da recusa de uma nova sociedade, a representação do

matuto na poética de Jessier Quirino se consolida como uma batalha contra os

processos de modernização da sociedade urbana e a influência dessa sociedade na

zonal rural, no seu modo de vida. Assim sendo, as batalhas enfrentadas no dia-a-dia

do matuto nas cidades grandes não é só uma luta pela sobrevivência através da

aquisição de bens materiais e de consumo, mas é uma luta pela conservação de

seus valores e a apropriação de outros. Evidentemente que isso pode aparecer uma

Page 77: 343o do matuto na poesia de Jessier Quirino)pos-graduacao.uepb.edu.br/ppgli/download/dissertacoes... · Figura 3. Amacio Mazzaropi disfarçado de Jeca Tatu Figura 4. Pôster do filme

77

forma essencialista de se enxergar o matuto e o seu modo de vida cultural. Na

prática, o matuto quer sim ter sua parabólica, minimizar as distâncias entre o espaço

rural e o urbano.

Entretanto, esse matuto está ligado a terra, aos seus valores e isso tem um

valor muito maior para ele, como podemos observar no trecho abaixo:

Indagorinha eu passava Lá pulas Praça da Sé Foi me dando uma friage Não pude ficar em pé Vi um pé de umburana Um juá, um marmeleiro Avistei um boiadeiro Muntado num pangaré Tou sofrendo má de banzo Um sofridão amuado Eu não troco dez São Paulo Por um trecho de roçado Já acabei minhas posse Vai ver o que é bom pra tosse Se tu vier pr’esses lado. (p. 30)

O poder de adaptação e superação dos problemas encontrados no dia-a-dia

faz do matuto um especialista em resolver problemas cotidianos. Ele encontra na

natureza uma farmácia a céu aberto para curar enfermidades de vizinhos e

parentes. Assim como a prática na lida com o gado o transforma em veterinário,

aplicando injeções, castrando animais de pequeno porte como porcos e galos. No

poema Sou doutô da merdicina (QUIRINO, 1996, pp .40-42), o poeta retrata um

matuto conhecedor das “necessidas” e dos “Brasis” real e o oficial.

Cumpade eu não sou formado No istudo das farcudade Mas nos Brasis que eu ando Basis das necessidades De tanto vê sufrimento Já fiz muito tratamento Já sou doutô de verdade. (p. 40)

O matuto quiriniano tem um espírito medievo. O apego aos valores

campestres o transforma num observador dos hábitos, costumes, crenças,

linguagens e no modo de vida. Mas, dentro dessa natureza, está inserido o próprio

Page 78: 343o do matuto na poesia de Jessier Quirino)pos-graduacao.uepb.edu.br/ppgli/download/dissertacoes... · Figura 3. Amacio Mazzaropi disfarçado de Jeca Tatu Figura 4. Pôster do filme

78

matuto, com suas várias facetas e papéis, como podemos observar no poema No

terreiro da fazenda (QUIRINO, 1996, pp. 98-100):

Caboca varrendo pra lá e pra cá Com laço de fita no mêi do cangote [...] Matuto conversa miolo de pote Grudado num rádio da R C A [...]) Menino buchudo chupando um manga Com o bucho breado que chega a brilhá [...] Matuto leiteiro chêi de nove hora Encosta o jumento pra se apiá [...] Didi e Mimosa de Maria Pombo Ajeita o cabelo, no pega-rapaz A Nêga Marica de Chico Tomás Catando piolo em Têca e Tequinha O aleijadinho de Dona Zefinha Balança o pezinho tangido pra trás [...] E vem do roçado Seu Zinho Pachola Trazendo um balaio sem se ajudá [...] Vem Maria Pombo trazendo um cajá Com uma de cana pro Véio Pachola (p. 98-0).

O terreiro nas casas da zonal rural é a grande sala da casa. Tudo acontece

em sua volta. É o espaço das trocas de experiências, das cantigas e brincadeiras de

roda, dos encontros, das conversas, das paqueras e das traquinagens de meninos.

O terreiro é a grande praça da cidade rural onde o matuto recebe os seus

compadres, onde tudo acontece à volta.

Já no poema Caderneta de Matuto II (QUIRINO, 1998, p. 157), a voz

poética, numa referência a contribuição de Luiz Gonzaga para a cultura nordestina,

revela um matuto consciente do seu papel de representante da sua região ao

comparar a sua visão da região com a visão do “Rei do Baião”.

SABER quanto tem de Luiz No xotezinho que’u fiz (p. 157

Page 79: 343o do matuto na poesia de Jessier Quirino)pos-graduacao.uepb.edu.br/ppgli/download/dissertacoes... · Figura 3. Amacio Mazzaropi disfarçado de Jeca Tatu Figura 4. Pôster do filme

79

Quirino recria um matuto defensor da sua cultura, por conseguinte, também da cultura brasileira:

Levar o gibão em Mané do Couro Saber se essa porra é Made in Brazil. (p. 157)

O espaço geográfico onde mora esse matuto é a zona rural, caracterizada

pela distância em relação à cidade.

Daqui até lá em casa? No Sítio Caga-Chapéu? Dá um bocado de légua Mas não é leguinha besta, nem légua de beiço não. É légua macha, abafada Dessas légua macriada, medida a rabo de cão.

Ao recriar o espaço da vivência do matuto numa zona rural e distante do

espaço urbano, Jessier Quirino propõe, com isto, evidenciar a dificuldade que essas

pessoas têm para ter acesso aos produtos da modernização urbana, assim como

tudo para ele é distante. Evidentemente, isto não é uma posição de relatividade do

ângulo de quem enxerga do espaço rural para o urbano ou vice-versa. É uma

questão de distanciamento de políticas de inclusão social e econômica. A vida do

matuto se acentua cada vez mais pelo contraste entre os mínimos vitais de

alimentação e social encontrado por ele e as possibilidades que a modernização

propicia aos citadinos.

3.2.3 Carnavalização/humor

Bergson (1983) chama a atenção para o fato de que só há comicidade para

os fatos humanos, fora disso, na natureza em geral, não há o elemento cômico, por

mais feia ou trágica que se apresenta a cena. Por outro lado, o cômico tem uma

característica fundamental que é a de estar sempre ligado ao feio, ao trágico, ao

riso. O belo, ao contrário, não produz o cômico. O humor, portanto, se acentua como

característica do homem nordestino, sendo aproveitado pelo matuto como forma de

revelar, ao mesmo tempo em que brinca com a sua condição social.

Em seus poemas, Jessier Quirino usa esse lado cômico do matuto, através da

sua linguagem e do modo de ver a vida, para criar uma poesia com elementos

carnavalizantes. Para San’Anna (1997, p. 94) pesquisar na “cultura de um povo,

Page 80: 343o do matuto na poesia de Jessier Quirino)pos-graduacao.uepb.edu.br/ppgli/download/dissertacoes... · Figura 3. Amacio Mazzaropi disfarçado de Jeca Tatu Figura 4. Pôster do filme

80

procurando os efeitos cômicos e parodísticos que mostram como a comédia pode

revelar alguns traços do inconsciente social” é uma forma de se encontrar uma

literatura carnavalizada.

No poema Caderneta de matuto (QUIRINO, 2001, pp. 53-55), a voz poética,

através da linguagem do homem do rural, recria o lado cômico a partir da dor do

outro.

RANZINZA Carregar Ciça-Ranzinza Pro doutor hemorroidista Ou pruma receitadeira Que venda casca de pau - Tá com um fanizim No olho da promessa. (p. 53)

E mais:

DESGOSTO Zezinho Vacinador Sofreu um ramo... Tá c’uma tronxura de boca Que não assopra uma vela. Dizem que tá com um lado esquecido... ...Eu só tomara que não seja Do lado da peixeira Que me comprou e xexou. (p. 55)

Num outro poema, ao recriar um mundo fantástico, a voz poética satiriza com

o matuto que fabrica gamelas e, por isso recebe a alcunha de Gamela, porém ao

prosperar nos negócios, muda o nome para Escudella e viaja para um reino africano.

Ao mudar de nome, o matuto é vitimado pela sonoridade de sua própria alcunha ao

anunciar-se no reinado.

Chega o matuto na corte Se apresenta sem demora: - Diga que é o ESCUDELLA! Que chegou aqui agora! (....) Da foiçada do mordomo Virou finado na hora Que, apontando Escudella, Dedurou-lhe sem demora: - Sua Alteza, este baixinho Disse todo engraçadinho Ser o EX-CU da senhora. (QUIRINO, 2001, p. 65)

Page 81: 343o do matuto na poesia de Jessier Quirino)pos-graduacao.uepb.edu.br/ppgli/download/dissertacoes... · Figura 3. Amacio Mazzaropi disfarçado de Jeca Tatu Figura 4. Pôster do filme

81

O dado importante do lado cômico da cultura popular nordestina é que o

matuto, além do humor que usa para mostrar as situações vivenciadas e

imaginadas, ele se torna parte também do lado risível. Assim, ao narrar os fatos do

dia-a-dia, ele consegue provocar o riso, como podemos observar: “Corina foi pruma

festa/ mais Miró, Pituca e eu/ Mode um copo de bebida/ Amostrou a perseguida/

Pituca, pimba, comeu.../” (QUIRINO, 1996, p. 25). Para o matuto, o riso cumpre uma

função que ora representa um momento de alegria, de triunfo maldoso, de simpatia

ou de orgulho (MINOIS, 2003). Tudo isso, escondido por trás da ironia, do humor, do

grotesco. Para Minois (2003, p. 16), “é isso que faz sua riqueza e fascinação ou, às

vezes, seu caráter inquietante” de ser o próprio riso.

No poema Matuto no carnaval (QUIRINO, 1996, pp. 75-78), quirino faz uma

comparação do carnaval com as festas da zona rural, em especial o forró. Vejamos:

Existe uma brincadeira Qu’eu não gosto de brincá É pulá qui nem macaco Nos dia de carnavá. É brincadeira suada Cum sujêra e vexação C’us povo bebo e muiado Vivendo de mangação Pulando in riba dos carro Os chofé só dando isparro Entrando nas contramão É festejo deferente Dos forró lá dos terrêro C’us casá forinfunfando Cada cá cum seu parcêro Fulia é que nem macumba Toca mais de mil zabumba Não se ôve um sanfonêro. É nessa tamborilada Que os besta vira tarado Que madame vira quenga Que urso vira viado Que o mais pacato se zanga Que generá faz muganga Qu’é permitido pecado. É premitido zuêra É premitido pulá Zoná, caí na gandáia É premitido muiá

Page 82: 343o do matuto na poesia de Jessier Quirino)pos-graduacao.uepb.edu.br/ppgli/download/dissertacoes... · Figura 3. Amacio Mazzaropi disfarçado de Jeca Tatu Figura 4. Pôster do filme

82

Fumá, cherá e bebê É premitido perdê O proibido é achá. É aí que a tampa avôa Pro de baxo do pulêro Criado dá na patrôa Que rico vira lixêro Pro baxo da fantasia Todo mundo é nos trêis dia O que não é no ano intero Já vi majó de saiote Levando isporro dum cabo Vi pade de cara branca Fantasiado de diabo Vi vitalina feliz Que só não deu por um triz Mas inda isquentô o rabo. Vi coxa, vi peito, bunda Vi fême toda pelada Patroa chique sambando No broco das empregada Home mijando na rua Nem as baiguia abutua E os povo não dize nada. Vi nêga de incarnado Usando peruca lôra Paiaço de ambulança Laúça dando bilôra Os povo se istraçaiando Só pruque passô tocando. Um frevo – um tá de bassôra. Vi crente cherá peufumo C’ua cara chêa de pó Fresco levando dedada Galinha de palito Noiva ingolindo liança Vi delegado de trança Avô sarrando c’avó. É nessa xirimbambada Que acabei de contá Que adispois de nove mês Mais pra perto do Natá In quaje toda famia Nasce um fí da fulia Cum esse tá carnavá (QUIRINO, 1996, pp. 75-78).

No poema, a recriação do mundo as avessas do carnaval se apresenta ao

matuto como uma quebra dos valores culturais e morais. O carnaval é visto por ele

como uma inversão do seu modo de vida, ao passo que denuncia as questões

sociais e os problemas morais e políticos contemporâneos. “O matuto no carnaval”

Page 83: 343o do matuto na poesia de Jessier Quirino)pos-graduacao.uepb.edu.br/ppgli/download/dissertacoes... · Figura 3. Amacio Mazzaropi disfarçado de Jeca Tatu Figura 4. Pôster do filme

83

é a recriação poética/literária do conceito de carnavalização proposto por Bakhtin na

obra A cultura popular na Idade Média: o contexto de François Rabelais.

O carnaval, para Bakhtin (1993, p. 241), “é a festa que, libertando de todo

utilitarismo, de toda finalidade prática, fornece o meio de entrar temporariamente

num universo utópico”, onde a cultura popular pode debochar do poder instituído

sem o risco da punição. A desforra do carnaval, para o matuto, é a quebra dos

valores constituídos por ele no espaço rural. Bakhtin argumenta que onde o aspecto

livre e popular do carnaval se conservou certos elementos carnavalescos

permaneceram nas culturas e folguedos populares.

Por outro lado,

Nos lugares onde o carnaval, no sentido estrito do termo, floresceu e se tornou o centro que reagrupou todas as formas de folguedos públicos e populares, ele provocou, de certa forma, o enfraquecimento de todas as outras festas, retirando-lhes quase todos os elementos de licença e utopia popular. As outras festas empalidecem ao lado do carnaval; sua significação popular diminui... (BAKHTIN, 1993, p. 191)

Neste caso, o carnaval reflete-se numa manifestação urbana em oposição a

cultura popular do meio rural, quando a voz poética diz: “É festejo deferente/ Dos

forró lá dos terrêro.../ Toca mais de mil zabumba/ Não se ôve um sanfonêro.../ Pro

baxo da fantasia/ Todo mundo é nos trêis dia/ O que não é no ano intêro/”.

Outra característica da linguagem carnavalizada na literatura é o uso de

imagens do baixo material e corporal e obscenidades ambivalentes (BAKHTIN,

1993). Em seus poemas, Jessier Quirino recorre a essas imagens para criar o lado

cômico, pois, sem esse recurso o lado cômico não se materializaria.

Vejamos:

- Você que cagô pra fora, Pruque não cagô pra dentro? - Ou nasceu c’a bunda torta Ou tem o cu fora do centro (QUIRINO, 1996, p. 97).

E mais:

Se o caba é arrochado Nos tempêro da paixão Disfôia logo o facão Pro riba da namorada

Page 84: 343o do matuto na poesia de Jessier Quirino)pos-graduacao.uepb.edu.br/ppgli/download/dissertacoes... · Figura 3. Amacio Mazzaropi disfarçado de Jeca Tatu Figura 4. Pôster do filme

84

Mete a fuça na parada É pamonha na canjicada (QUIRINO, 1996, p. 124)

A carnavalização, em boa parte dos poemas de Jessier Quirino fica por conta

das imagens do baixo corporal e das obscenidades. No entanto, isso não se traduz

em recurso estilístico para dar um ar de regional a sua poesia. A linguagem do baixo

corporal utilizada é captada da própria fala do matuto, utilizada no seu dia-a-dia. Um

exemplo dessa transposição da linguagem popular para a poesia são os poemas

Qué vê matuto humilhado é tá doente das parte (QUIRINO, 1996, pp. 135-138) e

Qué vê matuto humilhado é tá doente das parte (2ª edição revista e ampliada)

(QUIRINO, 1996, pp. 152-156) onde o poeta usa do vocabulário pitoresco popular

para contar a história de uma cirurgia de hemorróida.

Vejamos, então:

No tronco do ser humano Nos finá mais derradêro Tem uma rosquinha enfezada Que quando tá inframada Incomoda o côipo intêro. Se tussí se faz presente Se chorá se faz também O caba não pode nada Cum nada se entretem Eu lhe digo meu cumpade Não deseje essa maldade Pra rosca de seu ninguém. Não sei o nome da cuja Desta cuja, eu tiro o já O que resta é quase nada Bote o nada na parada Quero vê tu agüentá. Eu lhe digo meu cumpade Que é grande humilhação Um caba do meu quilate Aduecido das parte Fazê uma operação. Não suportando mais dô O meu ato derradêro Foi procurar um doutô Do “bocá do arenguêro". De Bocá do Arenguêro Fejoêro, Fiofó Bufante, Frescó e Lôrto Apito, Brote e Bozó.

Page 85: 343o do matuto na poesia de Jessier Quirino)pos-graduacao.uepb.edu.br/ppgli/download/dissertacoes... · Figura 3. Amacio Mazzaropi disfarçado de Jeca Tatu Figura 4. Pôster do filme

85

De Furico, Fedegôso Piscante, Pelado e Bóga Fosquete, Frinfra e Sedém Zuêro, Ficha e Vintém De Ás de Copa e de Fóba. De Oiti, Ôi de Porco Ané de Couro e Caguêro De Gira-Sol e Goiaba Roseta, Rosa, Rabada Bôto, Zero e Mialhêro. De Nó dos Fundo e Buzéco De Sonoro e Pregueado Rabichol, Furo e Argola Ané de Ouro e de Sola Boca de Véia e Zangado. Um doutô de Aro Treze De Peidante e Zé de Bóga Que não aperte o danado Nem deixe com muita folga. Um doutô piscialista Em Bocá da Tarraqueta Doutô de Quinca e Dentrol Zebesquete e Carrapeta. Doutô de Rosca, Rosquinha Tareco, Frasco e Obrom Ceguinho, Butico e Zero Tripa Gaitêra e Fon-Fon. Mialhêro e Mucumbuco Buraco, Brôa e Boguêro For Ever, Cruaca, Urna Gritadô, Frande e Fuêro. Cano-de-Escape e Pretinho Rodinha, X.P.T.O. Zerinho, Subiadô Tripa Oca e Fiofó. Um doutô de Helidório Ou de Boca de Caçapa Que não seja inimigo Também não seja meu chapa. Tratador de Canto Escuro De Boréu ou de Cheiroso De Formiróide e Alvado De Parreco e de Manhoso. De Chambica e Cibazol Apolônio e Fobilário Bilé, Briôco e Roxim Fresado, Anilha e Cagário Vaso Preto, Zé Careta Olho Cego e Espoleta Fuzil, Fioto e Fuário.

Page 86: 343o do matuto na poesia de Jessier Quirino)pos-graduacao.uepb.edu.br/ppgli/download/dissertacoes... · Figura 3. Amacio Mazzaropi disfarçado de Jeca Tatu Figura 4. Pôster do filme

86

Não é doutô de ovário É Doutô de Oriol De Cá-pra-nós e Bostoque De Futrico e de Ilhó. De Culiseu e Caneco Roscofe, Forno e Botão De Disco, de Farinheiro De Joli, Fundo e Fundão De Quo-Vadis e Fichinha Que não venha com gracinha E que não tenha dedão. Um doutô de Zé de Quinca Canal 2 e Cagadô Buzina, Vesúvio e Cego Federá e Sim-sinhô Fagulhêro e Zé Zoada Rosquete, Fim de Regada... ...Eu só queria um doutor. O doutô se preparou-se Parecia Galileu Aprumou um telescópio Quem viu estrela fui eu Ele disse arribe as perna – Tenha calma, sonho meu A partir daquela hora Perante Nossa Senhora Não sei o que sucedeu. C’as força da humildade Já me sinto mais milhó Me desejo um anus novo Cheio de verso e forró Pros cumpade, com franqueza Desejo grande riqueza: Saúde no fiofó. (QUIRINO, 1996, pp. 152-156)

Para Tavares (1996), uma característica importante dos poemas de Jessier

Quirino está em recuperar expressões da cultura popular que se encontram, em

muitos casos, esquecidas. Ao recuperar esse vocabulário, o humor é obtido através

de uma história contada e não simplesmente pela mera transposição dessa

linguagem. Em alguns poemas, destaca Tavares (1996, p. 10) “o acúmulo de

palavras pitorescas se sobrepõe de tal modo aos outros aspectos que o poema

acaba não sendo propriamente um poema, e sim um glossário metrificado e rimado”.

Em outros poemas, o matuto, distante dos grandes acontecimentos dos

centros urbanos, utiliza-se da imaginação para criar histórias míticas, onde as

aventuras da idéia são concebidas a partir do humor, da paródia, da sátira e da

Page 87: 343o do matuto na poesia de Jessier Quirino)pos-graduacao.uepb.edu.br/ppgli/download/dissertacoes... · Figura 3. Amacio Mazzaropi disfarçado de Jeca Tatu Figura 4. Pôster do filme

87

ironia narradas em suas aventuras fantásticas. E, nesse jogo, a carnavalização

funciona como ferramenta para revelar o seu engenho e o seu conhecimento de

mundo, mesmo estando à margem até mesmo daquilo que ele descreve com sendo

bem próximo do seu habitar. Um exemplo dessa verve é o poema Presente de

grego (QUIRINO, 1998, pp. 110-111) onde o matuto, numa alusão a “expressão

cavalo de tróia”, usa do jogo da ironia para criar uma carnavalização a partir do

estrangeirismo que foi incorporado, não só a sua cultura, mas a cultura nacional

como um todo. Neste caso, o poema assume as características mítico-fantásticas

como forma de se materializar.

Vejamos:

Eu pedi a um matudo distrangeiro Um galego espichado e alemão Nascido na Holandria ou no Japão Um presente bonito e caceteiro O galego me deu um candeeiro Desse que só se encontra no sertão... Me mostrando pro dito visitante Procurei os terém mais importado Uma vaca holandesa do meu lado Periquito daquele australiano Sanduíche parrudo americano Um pastor alemão acorrentado Canivete suíço amolado Um balai de melão bem japonês Nos meus um cachorro pequinês Num calor africano azuretado Tinha canário belga na gaiola Na cabeça um chapéu panamá Um gato siamês a procurar Zunido d’abelha italiana No meu pé a sandália havaiana Um negócio da China no lugar Tinha um cavalo árabe a pular E uma jumenta russa relinchando Saí dum banho turco me enxugando Pr’uma gripe espanhola não pegar (...) E eu olhando o presente do galego O presente era presente de grego Eu queria era uma zebra africana Candeeiro foi pra veneziana E danou-se a soltar o seu fumego. Eu mostrei minha classe pro galego Pois aqui ninguém gringa como eu gringo Puxei conversa de domingo Ciclopédia Britânica se perdia De orgia romana eu entendia

Page 88: 343o do matuto na poesia de Jessier Quirino)pos-graduacao.uepb.edu.br/ppgli/download/dissertacoes... · Figura 3. Amacio Mazzaropi disfarçado de Jeca Tatu Figura 4. Pôster do filme

88

Camisinha de vênus me surgiu Me lembrei logo ali do pau Brasil Misturei com sarog havaiano Impurrei futebol Americano E o galego fez: puta que pariu! (QUIRINO, 1998, pp. 110-111).

O matuto surreal da poesia quiriniana demonstra todo o seu conhecimento,

pois, no seu espaço, “ninguém gringa” como eu ele “gringa”, diz o matuto. A utopia

social é, neste caso, uma característica da literatura carnavalizada, pois, de acordo

com Bakhtin (1981) ela é necessária e inseparável de todos os outros elementos

desse gênero, uma vez que a utopia faz parte do imaginário popular.

O uso de elementos que constituem alguns dos seus poemas como fazendo

parte de uma estética carnavalizada da literatura faz com que Jessier Quirino recrie

o universo do matuto muito próximo da sua realidade. O próprio homem nordestino

se utiliza do humor, da ironia, sátira, da paródia para, no seu dia-a-dia, descrever as

cenas do seu cotidiano, rir da sua própria situação. Por outro lado, a literatura

carnavalizada tem como preocupação denunciar a situação desse matuto, ao passo

que revela o sujeito conhecedor do seu entorno e do mundo exterior.

3.2.4 Da voz para a escritura: a oralidade nos poemas quirinianos

Uma das características da poesia matuta é a recriação do universo rural.

Mas, a recriação desse espaço deve levar em consideração os aspectos naturais e

humanos. Um depende do outro. Não há homem sem a natureza. E natureza que

não seja reinterpretada, recriada, modificada pelo homem. Antes mesmo de ser

materializada em textos escritos, essa natureza é transportada pela fala do homem

através da oralidade. E, nesse ponto, a cultura popular toma a dianteira e se

posiciona como depositaria do habitat do homem rural através da oralidade.

As poesias selecionadas de Jessier Quirino para esse estudo demonstram

que em todos os poemas estão presentes índices de oralidade da cultura popular

nordestina. Neste caso, chamamos a atenção para o fato de que, em boa medida, a

transcrição da voz para a escritura nos poemas se dá através de um vocabulário

pitoresco do Nordeste onde muitas das palavras e expressões estão sendo

esquecidas. Ao transpor para sua poesia esse vocabulário, Jessier Quirino faz uma

Page 89: 343o do matuto na poesia de Jessier Quirino)pos-graduacao.uepb.edu.br/ppgli/download/dissertacoes... · Figura 3. Amacio Mazzaropi disfarçado de Jeca Tatu Figura 4. Pôster do filme

89

etnografia da linguagem, dos hábitos, da cultura do matuto. A sua poesia se servirá

como documento da memória do homem nordestino.

A transcrição da voz para a escritura nos poemas de Jessier Quirino se dá em

dois contexto. No primeiro, o matuto é representado com uma linguagem própria do

meio rural, mas sem a exploração dos vícios de linguagem, da deformação da sua

fala, onde erros gramaticais aparecem muitos sutis, como é o caso do poema Uma

paixão pra Santinha:

No apolegar das tetas Nos chamego penerado Nas misturação das perna Nos cafuné do molengado Nos beijo mastigadinho Nos açoite de carinho Nós era bem escolado (QUIRINO, 2001, p. 36).

Um outro exemplo é o poema Zé Qualquer e Chica Boa:

Sois argumento de foice Sois riacho correntoso Tu sois carquejo espinhoso Sois calo de coronel Sois cor de barro a granel Sois couro bom que não mofa Sois um doutor sem farofa Sem soqueira de anel (...) No inverno sois caçote Espelho de céu no chão Chorrochochó de biqueira Espuma de cachoeira Sois lodo, sois timbungão Sois nuvem quebrando a barra Violino de cigarra Afinando a chiação (QUIRINO, 2001, p. 16).

No segundo contexto, na transcrição da voz para a escritura nos poemas

quirinianos, o matuto é representando como um sujeito que ficou à margem de uma

formação culta. A voz poética recria a fala do matuto tal qual é pronunciada. Neste

caso, Tavares (1998) diz que um dos problemas da poesia matuta é quando ela

deforma “desnecessariamente o modo de falar dessas pessoas”.

Vejamos como se dá a transcrição dessa voz para a escritura.

Baxada dos Ri dos Boi Doze do mês de Santana

Page 90: 343o do matuto na poesia de Jessier Quirino)pos-graduacao.uepb.edu.br/ppgli/download/dissertacoes... · Figura 3. Amacio Mazzaropi disfarçado de Jeca Tatu Figura 4. Pôster do filme

90

Sexta-feira quaje sábo Do ano que nos engana Cumpade Migué dos Choco Cumpade véi sem pantim Quem te escreve é Zé de Nuca O teu cumpade Zezim Pedindo logo licença Pra falá das contecença Dizer tim-tim por tim-tim... (...) A bixiguenta da Lôla Laigô de mão Zé Pinote Que morreu dum trupição Cu’s quengo cheim de mote... (QUIRINO, 1996, pp. 24-28) Meu cumpade Zé de Nuca Recebi suas nutiça E já li, já dei risada Já espalhei pra mundiça... (...) Visei um pé de pereiro Em prena via São João Uma moita de mufombo Vi três jumento fujão Vi catrevage de feira Chapéu de couro e gibão Indagorinha eu passava Lá pulas praça da Sé Foi me dando uma friage Não pude ficar de pé... (Ibid, pp. 29-31).

Percebemos que Jessier Quirino, em boa medida, não propõe uma

deformação proposital da fala do matuto. Na escritura, ele usa do erro real e

freqüente na fala cotidiana desse homem rural, onde os processos educacionais se

fizeram distantes.

Entre o discurso oral e o escrito e suas inter-relações, Zumthor (1993) diz que

há três tipos de oralidades, ambas correspondentes a três tipos de cultura. A

oralidade primária não mantém nenhum tipo de contato com a escritura; a oralidade

mista é aquela que o controle da escritura se mantém externo, sem muita influência;

e a oralidade segunda, a qual necessita da cultura letrada. Nos poemas quirinianos,

o matuto é construído num universo da oralidade mista.

Uma das marcas da oralidade mista é o desprendimento às normas da

linguagem culta. Ao transpor para os seus poemas essa linguagem, Jessier Quirino

Page 91: 343o do matuto na poesia de Jessier Quirino)pos-graduacao.uepb.edu.br/ppgli/download/dissertacoes... · Figura 3. Amacio Mazzaropi disfarçado de Jeca Tatu Figura 4. Pôster do filme

91

consegue retratar a maneira autêntica com que o matuto se expressa, além de suas

peculiaridades.

Em nosso estudo, não temos a intenção de nos debruçarmos sobre o léxico13

nos poemas quirinianos, mas compreendemos a função que ele representa para a

constituição da poesia matuta. Ao transpor para a escritura os índices de oralidade

da fala do matuto, Jessier Quirino consegue fazer com que seus poemas

representem de forma muito mais clara o universo do homem rural, dando um sabor

pitoresco ao seus poemas.

Jessier Quirino utiliza da criação de regionalismos para recriar uma realidade

lingüística do homem rural nordestino, assim como explora o lado lexical através de

neologismo, uma marca muito forte da sua poesia. Para Oliveira (2006, p. 28), “o

léxico não se renova apenas de neologismos, formado de palavras inéditas, mas

também na mudança de significado, através da metaforização e metonimização”.

Com esses recursos, Jessier Quirino consegue com que seus poemas assumam

outros contextos situacionais da vida desse personagem, o matuto.

Vejamos como isso se dá nos poemas Banheiro de matuto, Sou doutô da

merdicina e endereço de matuto:

Mas será um impussive Que’u sou assim tão frechado! Diz o matuto tinhoso As vezes inté má-criado - Entrei esse abafadiço Mode fazer um serviço Saí todo serviçado (QUIRINO, 1996, p. 97) Cumpade eu não sou formado No istudo das farcudade... (...) Curei froxidão dos neuvo Que é morrê cum peido dentro Arfação, andaço e bolo E má de instatalamento... (IBIDEM, p. 40-41) (...) É ladeira enladeirada Se o cabra sobre fumando Cai cinza dentro do zói... (QUIRINO, 2006, p. 33)

13 Sobre o léxico na poesia de Jessier Quirino, ver a dissertação de mestrado de OLIVEIRA, Maria de Fátima. Um olhar léxico-semântico sobre o Vocabulário regional em Agruras da lata d’água de Jessier Quirino. João Pessoa, 2006. p. 105. Dissertação (Mestrado em Letras). Centro de ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal da Paraíba.

Page 92: 343o do matuto na poesia de Jessier Quirino)pos-graduacao.uepb.edu.br/ppgli/download/dissertacoes... · Figura 3. Amacio Mazzaropi disfarçado de Jeca Tatu Figura 4. Pôster do filme

92

Na obra de Jessier Quirino, os índices de oralidade variam de acordo com

cada poema. Em alguns, a repetição, o uso de formas coloquiais, gírias, arcaísmos,

entre outros, podem revelar os índices que fazem parte do repertório do matuto.

Com isso, Jessier Quirino ao usar da linguagem do matuto para dar uma

contextualização aos seus poemas, consegue recriar o modo de vida do matuto

paraibano.

Page 93: 343o do matuto na poesia de Jessier Quirino)pos-graduacao.uepb.edu.br/ppgli/download/dissertacoes... · Figura 3. Amacio Mazzaropi disfarçado de Jeca Tatu Figura 4. Pôster do filme

93

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As possibilidades de se investigar a obra de Jessier Quirino são muitas,

principalmente quando relacionadas às discussões literárias. Por isso, entendemos

que há nos poemas quirinianos um vasto campo para apreciação da cena regional

nordestina, tendo como mote principal o olhar da cultura popular sendo visto pelo

próprio homem, o matuto.

A poética de Jessier Quirino é considerada como sendo matuta, uma vez que

a linguagem recriada e o espaço onde transita sua temática tem como característica

o universo rural. Uma outra característica de Jessier Quirino é o poder de

interpretação dos seus versos, através da sua performance, contribuindo para um

ganho de sentido e uma relação imagética entre aquilo que ele diz no texto escrito e

aquilo que representa no palco.

No entanto, não foram apenas os livros e o poder de interpretação de Jessier

Quirino que nos motivaram a conduzir esta pesquisa, mas o fato dele recriar o

matuto como principal personagem do seu discurso literário, além da carga

simbólica conduzidas nos poemas. É importante observar que durante suas

apresentações, Jessier Quirino se transforma num o matuto por convicção, como se

autodefine. Porém, entendemos que uma pesquisa sobre a performance do poeta

por si só já seria suficiente para uma oportunidade futura, ficando este estudo

restrito apenas a alguns aspectos do texto escrito.

Um grande desafio para esta pesquisa foi propor uma diferença entre o

matuto e o caipira. Um distanciamento que fosse além de uma leitura semântica.

Entendemos que a forma como o modo de vida do caipira e sua representação

imagética foram divulgadas pela Mídia através do discurso do Jeca Tatu, de

Monteiro Lobato, e dos filmes de Mazzaropi, fez com que houvesse uma

verticalização do conceito onde todas as pessoas que tenha sua vida pautada nos

valores constituídos no espaço rural seriam classificadas como caipiras. Neste caso,

o matuto seria o mesmo que o caipira.

Page 94: 343o do matuto na poesia de Jessier Quirino)pos-graduacao.uepb.edu.br/ppgli/download/dissertacoes... · Figura 3. Amacio Mazzaropi disfarçado de Jeca Tatu Figura 4. Pôster do filme

94

Dos trabalhos que retratam a temática caipira, toma grande importância a

obra de Antonio Candido, Os parceiros do Rio Bonito. Mas, em se tratando do

matuto, não havia até então um trabalho que abordasse o tema, que definisse o

matuto e localizasse-o dentro de um espaço definido, o que para nós, se tornava um

desafio e ao mesmo tempo nos instigava.

Durante as discussões nas aulas do mestrado e as leituras sobre a temática

matuta, tomamos conhecimento da obra O Nordeste brasileiro, de Agamenon

Magalhães. Em seu estudo, Magalhães descreve o matuto como um tipo social que

surgira do cruzamento de duas castas, a do senhor de engenho com o a dos

escravos na região da Zona da Mata nordestina. Para Magalhães, o matuto não

seria preguiçoso, uma vez que ele, além da lida com a terra nos engenhos, era

quem consertava as máquinas, forjava o ferro e dirigia as locomotivas, conduzindo o

progresso da região. Neste sentido, a pesquisa a ponta que ser matuto não é

mesmo que ser caipira. O modo de vida social e cultural dessas duas classes são

diferentes, assim como o processo de caldeamento étnico que as formara.

Elucidado, então, essa inquietação, como encontrar um matuto que esteja nas

mesmas condições em que observara Magalhães (1970) e Távora (1902)?

Impossível. A cultura é movente. As pessoas são moventes. Tudo se transforma. Se

reconfigura. Foi preciso, então, localizar esse matuto sob o aspecto simbólico que

retratasse o seu modo de vida, sua cultura, sua condição social. Para tanto,

recorremos a interpretação de Jessier Quirino, quando diz que o matuto não é

necessariamente o homem do campo ou o sertanejo, pode ser até o mesmo o

citadino. O matuto na visão de Jessier é aquele sujeito em que as limitações

causadas por falta de políticas sociais fez com que ele seja guardião de valores e

tradições que a modernidade está acabando.

Longe de uma visão essencialista, o matuto de hoje convive com signos da

modernidade, como por exemplo, a antena parabólica, transformando o seu modo

de vida numa cultura de fronteira entre o arcaico e moderno, entre o campo e a

cidade, como diria Nestor Garcia Canclini. Assim, a poesia de Jessier Quirino

cumpre a função de servir como depositaria de uma etnografia dos valores, hábitos,

expressões e tradições do matuto.

Apesar de Jessier Quirino falar de uma alma matutês que, para ele, pode ser

encontrada num pescador ou num sertanejo, os seus poemas revelam um matuto

Page 95: 343o do matuto na poesia de Jessier Quirino)pos-graduacao.uepb.edu.br/ppgli/download/dissertacoes... · Figura 3. Amacio Mazzaropi disfarçado de Jeca Tatu Figura 4. Pôster do filme

95

que vive no espaço rural. A relação com a terra, o caráter e a lida diária são os

critérios que conduzem os seus valores morais e culturais, mesmo quando ele é

obrigado a migrar para as cidades.

O espaço físico onde vive esse matuto é, em boa medida, o Sertão.

Posicionado com o olhar de um flâneur, Jessier Quirino mostra a vida sofrida do

matuto. Um sofrimento causado seja pela falta d’água ou pelas condições de

moradia e a distância que se encontram das cidades. Já a fisionomia do espaço

rural também é vista, em muitos poemas, como um lugar da fartura de alimentos e

água. O discurso se mostra como defensor da permanência do matuto no espaço

rural, uma vez que os processos de migração levariam essas pessoas a viverem em

condições bem piores de adaptação. Longe da sua cultura, esse matuto vive o

dilema de reconstruir um novo modo de vida. Mas, encontrando em seu espaço rural

água e condição de moradia, esse matuto é capaz de recriar um espaço digno para

sua convivência e permanência.

Outra característica da poética quiriniana é recriar esse matuto através de

uma literatura carnavalizada, explorando o lado cômico do homem nordestino. Há,

uma tendência do matuto, diante das dificuldades enfrentadas, transformar a sua

dor, o lamento e até os acontecimentos do dia-a-dia em humor. Pegando esse

princípio, Jessier Quirino explora esse veio para recriar um matuto que compensa as

dificuldades intelectuais através do humor. Isso é o que ele vai chamar de espírito de

sobrevivência. Esse espírito de sobrevivência faz com que esse sujeito se destaque

apesar do ofuscamento de fatores climáticos, de condições sociais, de formação e

de limitação intelectual.

Recriado sob essas condições, Jessier Quirino consegue fazer com que o

matuto não seja tido como um sujeito preguiçoso e desprovido de sabedoria. Através

do discurso quiriniano, o matuto é representado de forma a valorizar a sua cultura e

o seu modo de vida, onde os valores morais conduzem o caráter desse homem

rural. Percebemos que há uma preocupação em desmistificar uma estereotipação

criada para o homem nordestino através da mídia e difundido na figura do Jeca Tatu

criado de Monteiro Lobato e que ganhou vida com os filmes de Amácio Mazzaropi.

Apesar de não ter feito parte da nossa pesquisa, é importante destacar que

nos recitais, Jessier Quirino não recria, através do vestuário, uma caricatura para o

matuto, como acontece com relação ao caipira: dente pintado de preto, camisa

Page 96: 343o do matuto na poesia de Jessier Quirino)pos-graduacao.uepb.edu.br/ppgli/download/dissertacoes... · Figura 3. Amacio Mazzaropi disfarçado de Jeca Tatu Figura 4. Pôster do filme

96

quadriculada e rasgada, chapéu de palha e talo de capim na boca. Sua performance

leva em consideração apenas a sua voz. Entretanto, é uma voz que traz consigo

uma carga simbólica muito forte.

Page 97: 343o do matuto na poesia de Jessier Quirino)pos-graduacao.uepb.edu.br/ppgli/download/dissertacoes... · Figura 3. Amacio Mazzaropi disfarçado de Jeca Tatu Figura 4. Pôster do filme

97

REFERÊNCIAS

ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. A Invenção do Nordeste e outras

artes. Prefácio de Margareth Rago. Recife: FJN, Ed. Massangana; São Paulo:

Cortez, 1999.

BAKHTIN, Mikhail. A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento: o

contexto de François Rabelais, trad.: Yara Frateschi, 2ª. ed., São Paulo: HUCITEC;

Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1993.

BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. 4ª ed., trad. Michel Lahud e

Yara Frateschi Vieira. São Paulo: HUCITEC, 1988.

BAKHTIN, Mikhail. Problemas da poética de Dostoievski. Rio de Janeiro: Forense

Universitária, 1981.

BARDIN, L. Análise de Conteúdo. Lisboa, Portugal: Edições 70, 1977.

BARRETO, Luiz Antonio. Um novo entendimento do folclore e outras

abordagens culturais. 2. ed. Sociedade Editorial de Sergipe: Sergipe, 1997.

BAUMAN, Zygmunt. Comunidade: a busca por segurança no mundo atual. trad.

Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003.

BAUMAN, Zygmunt. Identidade: entrevista a Benedito Vecchi. trad. Carlos Alberto

Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005.

BERGSON, Henri. O riso: ensaio sobre a significação do cômico. 2. Ed. Rio de

Janeiro: Zahar, 1983.

BOSI, Alfredo. O ser e o tempo da poesia. São Paulo: Cultrix, 1990

BOSI, Alfredo. Plural, mas não caótico. In: BOSI, Alfredo. Cultura brasileira: temas

e situações. 2. ed. São Paulo: Ática, 1992.

Page 98: 343o do matuto na poesia de Jessier Quirino)pos-graduacao.uepb.edu.br/ppgli/download/dissertacoes... · Figura 3. Amacio Mazzaropi disfarçado de Jeca Tatu Figura 4. Pôster do filme

98

BHABHA, Homi K. O local da cultura. trad. Myriam Ávila, Eliana Lourenço de Lima

Reis, Gláucia Renate Gonçalves. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1998.

CANCLINI, Néstor García. Culturas Híbridas: estratégias para entrar e sair da

modernidade . Tradução de Ana Regina Lessa e Heloísa Pezza Cintrão. São Paulo:

EDUSP, 1997.

CANDIDO, Antonio. Os parceiros do Rio Bonito: estudo sobre o caipira paulista e

a transformação dos seus meios de vida. São Paulo: Duas cidades; Ed. 34, 2001.

CERTEAU, Michel. A cultura no plural. trad. Enid Abre Dobránszky. Campinas, SP:

Papirus, 1995.

CHIZZOTI, Antonio. Pesquisa em Ciências Humanas e sociais. 5. ed. São Paulo:

Cortez, 2001.

CUCHE, Deys. A noção de cultura nas ciências sociais. trad. Viviane Ribeiro.

Bauru: EDUSC, 1999.

DAMATTA, Roberto. Carnavais, malandros e heróis. Rio de Janeiro: Rocco, 1986.

DOMINIC,Strinati. Cultura popular: uma introdução. trad. Carlos Szlac. 1. ed. São

Paulo: Hedra, 1999.

EAGLETON, Terry. A idéia de cultura. Tradução de Sandra Castello Branco. São

Paulo: Editora UNESP, 2005

GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Zahar, 1973.

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Trad. Tomaz da Silva.

Guaracira Lopes Louro – 9. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2004.

Page 99: 343o do matuto na poesia de Jessier Quirino)pos-graduacao.uepb.edu.br/ppgli/download/dissertacoes... · Figura 3. Amacio Mazzaropi disfarçado de Jeca Tatu Figura 4. Pôster do filme

99

HALL, Stuart. Quem precisa de identidade? In: SILVA, Tomaz Tadeu da (org).

Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis, RJ: Vozes,

2000.

IANNI, Octávio. A idéia de Brasil moderno. Brasiliense: São Paulo, 1996.

JACKSON, Luiz Carlos. Os parceiros do Rio Bonito e a sociologia de Antonio

Candido. Belo Horizonte: Ed. UFMG; São Paulo: FAPESP, 2002.

MAGALHÃES, Agamenon. O nordeste brasileiro. Secretaria de Educação e

Cultura. Departamento de Cultura. Governo de Pernambuco. Recife, 1970.

MARTIN-BARBERO, Jesus. Dos meios às mediações: comunicação, cultura e

hegemonia. Rio: Editora da UFRJ, 2001..

MELO, Alberto da cunha. Jessier, em voz alta. In: QUIRINO, Jessier. Paisagem de

interior. Recife: Bagaço, 1996.

MINOIS, George. História do riso e do escárnio. Trad. Maria Elena O. Ortiz

Assumpção. São Paulo: Editora UNESP, 2003.

MIRANDA, Dilma. Carnavalização e multidentidade cultural: Antropologia e

tropicalismo. Tempo Social; Rev. Sociológica, USP, S. Paulo, 9(2): 125-154, outubro

de 1997.

MONTIEL, Edgar. A nova ordem simbólica: a diversidade cultural na era da

globalização. In: SIDEKUM, Antônio (org). Alteridade e multiculturalismo. Ijuí: ed.

Unijuí, 2003

MOREIRA, Daniel A. Introdução à Pesquisa Científica. São Paulo: ?, 2002.

OLIVEIRA, Maria de Fátima. Um olhar léxico-semântico sobre o Vocabulário

regional em Agruras da lata d’água de Jessier Quirino. Dissertação (Mestrado

Page 100: 343o do matuto na poesia de Jessier Quirino)pos-graduacao.uepb.edu.br/ppgli/download/dissertacoes... · Figura 3. Amacio Mazzaropi disfarçado de Jeca Tatu Figura 4. Pôster do filme

100

em Letras). Centro de ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal da

Paraíba.

ORTIZ, Renato. Cultura brasileira e identidade nacional. 4. ed. São Paulo:

Brasiliense, 1994.

PENNA, Maura. O que faz ser nordestino: identidades sociais, interesses e o

“escândalo” Erudina. São Paulo: Cortez, 1992.

PENNA, Maura. Relatos de migrantes: questionando as noções de perda de

identidade e desenraizamento. In: SIGNORINI, Inês (org). Língua(gem) e identidade:

elementos para uma discussão no campo aplicado. Mercado das Letras; São Paulo:

Fapesqp, 1998. p. 89-112.

PRETI, Dino. Estudos de língua oral e escrita. Rio de Janeiro: Lucerna, 2004.

PRETI, Dino. Oralidade, literatura, mídia e ensino. São Paulo: Cortez, 2001.

QUIRINO, Jessier. Agruras da lata d’água. Recife: Bagaço, 1998.

QUIRINO, Jessier. Bandeira nordestina. Recife: Bagaço, 2006.

QUIRINO, Jessier. Entrevista concedida a Arão de Azevêdo Souza. Itabaiana. 29

de outubro de 2008.

QUIRINO, Jessier. Paisagem de interior. Recife: Bagaço, 1996.

QUIRINO, Jessier. Prosa morena. Recife: Bagaço, 2001.

SANT’ANA, Affonso Romano de. Paródia, Paráfrase & Cia. 4ª Ed. São Paulo: Ática,

1991.

SANTAELLA, Lúcia. Cultura e artes do pós-humano: da cultura da mídia à

cibercultura. São Paulo: Paulus, 2003.

Page 101: 343o do matuto na poesia de Jessier Quirino)pos-graduacao.uepb.edu.br/ppgli/download/dissertacoes... · Figura 3. Amacio Mazzaropi disfarçado de Jeca Tatu Figura 4. Pôster do filme

101

SIDEKUM, Antônio. Alteridade e interculturalidade. In: SIDEKUM, Antônio.

Alteridade e multiculturalismo. Ijuí: Ed. Unijuí, 2003. p. 233-295

SILVA, Eli Brandão. O símbolo na metáfora: fronteira entre o literário e o teológico.

In: SILVA, Antonio de Pádua Dias da (org). Literatura e estudos culturais. João

Pessoa: Editora Universitária/UFPB, 2004.

TAVARES, Bráulio. Mestre Jessier. In: QUIRINO, Jessier. Paisagem de interior.

Recife: Bagaço, 1996.02.

TÁVORA, Franklin. O matuto: crônica pernambucana. Rio de Janeiro: Garnier,

1902.

THOMPSON. J. B. Ideologia e cultura moderna: Teoria social crítica na era dos

meios de comunicação de massa. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 1995.

ZUMTHOR, Paul. A Letra e a Voz: A literatura medieval; tradução Amálio Pinheiro,

Jussara Pires Ferreira. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

ZUMTHOR, Paul. Introdução à Poesia Oral. São Paulo, Ed. Hucitec. Educ, 1997.

ZUMTHOR, Paul. Performance, recepção, leitura. Tradução de Jerusa Pires

Ferreira e Suely Fenerich. São Paulo: EDUC, 2000.