3855-11950-1-PB

11

Click here to load reader

description

trabalho escravo contemporâneo

Transcript of 3855-11950-1-PB

  • Leo, L. H. C. (2015). Trabalho escravo contemporneo: a construo social de um problema pblico no Norte...

    120

    TRABALHO ESCRAVO CONTEMPORNEO: A CONSTRUO SOCIAL DE UM PROBLEMA PBLICO NO NORTE FLUMINENSE

    TRABAJO ESCLAVO CONTEMPORNEO: LA CONSTRUCCIN SOCIAL DE UN PROBLEMA PBLICO EN NORTE FLUMINENSE

    CONTEMPORARY SLAVE LABOR: THE SOCIAL CONSTRUCTION OF A PUBLIC PROBLEM IN NORTHERN RIOS STATE

    Lus Henrique da Costa LeoUniversidade Federal de Mato Grosso, Cuiab/MT, Brasil

    RESUMO

    Este artigo analisa a construo social do problema do trabalho escravo, considerando seus sentidos e significados e as estratgias de erradicao no Norte Fluminense. Foi efetuada uma pesquisa qualitativa, referenciada pela Psicologia Social, especificamente pela concepo de Berger, Luckmann e Lenoir sobre a construo social da realidade. Foi feita uma ampla investigao bibliogrfica (jornais da regio, textos acadmicos e documentos institucionais) e realizadas entrevistas com atores sociais locais (trabalhadores, movimentos sociais, rgos pblicos). Para o tratamento dos dados, foi utilizada a Anlise Crtica do Discurso. Os resultados demonstraram as peculiaridades dos processos de enunciao, reconhecimento, legitimao e institucionalizao do problema na regio, mediante a reivindicao de trabalhadores, a formao e aes de um Comit Popular e a atuao do Estado na fiscalizao do problema.

    Palavras-chave: trabalho escravo; problema social; construo social; norte fluminense.

    RESUMEN

    En este artculo se analiza la construccin social del problema del trabajo esclavo, teniendose en cuenta sus sentidos y significados y las estrategias de erradicacin en el Norte Fluminense. Se realiz una investigacin cualitativa, referenciada por la Psicologa Social, especficamente por la concepcin de Berger, Luckmann y Lenoir sobre la construccin social de la realidad. Fue realizada una extensa bsqueda en la literatura (peridicos regionales, textos acadmicos y documentos institucionales) y se llevaron a cabo entrevistas con los actores sociales locales (trabajadores, movimientos sociales, organismos pblicos). Para el tratamiento de los datos se utiliz el Anlisis Crtico del Discurso. Los resultados demostraron las peculiaridades del proceso de expresin, reconocimiento, legitimacin e institucionalizacin del problema en la regin, mediante la reivindicacin de los trabajadores, la formacin y las acciones de un Comit Popular y el papel del Estado en la fiscalizacin del problema.

    Palabras-clave: mano de obra esclava; problema social; construccin social; norte del estado de Rio de Janeiro.

    ABSTRACT

    This paper examines the social construction of contemporary slave problem in Northern Rios state, considering its senses and meanings and eradication strategies. A qualitative research referenced by Social Psychology, specifically Berger, Luckmann and Lenoir concept about social construction of reality, was performed. An extensive literature search was made (regional newspapers, academic texts and institutional documents) and interviews with local social actors (workers, social movements, public agencies). To data treatment it was used Critical Discourse Analysis. The results demonstrated peculiarities in utterance, recognition, legitimization and institutionalization processes of the problem in that region, through workers claim, the formation and actions of a Popular Committee and State performance in monitoring the problem.

    Keywords: slave labor, social problem, social construction, northern Rio de Janeiro.

  • Psicologia & Sociedade, 27(1), 120-130.

    121

    Introduo

    As crises do capitalismo na dcada de 1970 e a emergncia do ps-fordismo foram acompanhadas por um abandono de uma poltica de pleno emprego. A cena contempornea passa a ser permeada pelo desemprego em massa durvel e pelo desmantelamento da proteo social e consequente aumento das situaes de excluso. Assim, surgem zonas, territrios e situaes sociais extremas onde coexistem a misria, a opresso e a superexplorao (Renault, 2008).

    Nesse contexto, as ocorrncias de trabalho escravo contemporneo ganham cada vez mais visibilidade. Trata-se de uma situao social bem presente nos processos de produo capitalistas, em diversas cadeias produtivas globais. Estima-se que haja em torno de 20,9 milhes de pessoas escravizadas no mundo atual (International Labor Organization, 2012). Tal fenmeno parte de um conjunto de situaes extremas que englobam o trfico de rgos e pessoas, explorao sexual, inclusive infantil, trabalho forado. Ele mobiliza aes de enfrentamento e combate dirigidas por uma heterogeneidade de atores, movimentos sociais e populares, organizaes no governamentais, instituies pblicas nacionais e organismos internacionais, como a Organizao Internacional do Trabalho (OIT), o movimento Free the Slaves, WalkFree e o Anti-Slavery International - movimento originalmente criado em 1839 como Anti-Slavery Society, que desde ento vem buscando a eliminao desse problema.

    As ocorrncias desse tipo de trabalho no Brasil so numerosas, como demonstra a quantidade de aes de libertao de rgos pblicos. Entre 1995 e 2012, em torno de 44 mil trabalhadores foram resgatados (Ministrio do Trabalho e Emprego, 2013).

    No pas existem grupos de pesquisa sobre a referida temtica, campanhas de erradicao e combate por meio de movimentos sociais (Pastoral da Terra, Pastoral do Migrante, Movimento dos Trabalhadores Sem Terra), e aes instituintes e institudas em rgos nos Poderes Executivo, Legislativo e Judicirio. Enquadram-se a as aes do Ministrio do Trabalho e Emprego constituio do Grupo Mvel de Fiscalizao, procedimentos de cadastramento de empresas na Lista Suja do Trabalho Escravo, entre outras. No Poder Legislativo, recentemente esteve em votao a proposta de Emenda Constitucional n. 438, chamada a PEC do trabalho escravo, que vinha sendo discutida desde 2001, na Cmara dos Deputados, tendo sido aprovada em 2012.

    Em outros cdigos jurdicos nacionais, o trabalho escravo considerado crime, sendo contemplado no artigo 149 do cdigo penal, alm de o Brasil ser signatrio das Convenes n. 29 e n. 105 da OIT, que probem o trabalho escravo. Recentemente, foi publicada a Portaria Interministerial n. 2 de 2011, a qual enuncia regras sobre o cadastro de empregadores que submeteram trabalhadores a condies anlogas de escravo. Existem tambm iniciativas conjuntas entre o Estado e a Sociedade Civil como o Pacto de Erradicao do Trabalho Escravo de 2003 e 2008, e as campanhas miditicas de erradicao.

    Nesse quadro nacional, o Norte Fluminense (NF) tem sido palco da ocorrncia de tal tipo de trabalho, envolvendo, sobretudo, trabalhadores do setor cana-vieiro. Historicamente, esse ramo de produo no Bra-sil apresenta problemas relativos sade dos trabalha-dores e recorrentes situaes de acidentes de trabalho, mortes por exausto em canaviais e queimadas, preju-dicando a sade dos trabalhadores e da populao. No caso da regio NF, alm das mencionadas problemti-cas, o trabalho escravo uma situao tambm hist-rica e marcante nesse setor econmico desde a poca do escravismo (tendo sido uma das ltimas regies do Brasil a abolir a escravido), passando por relaes de subservincia entre populao e usineiros durante boa parte do sculo XX at a contemporaneidade, como atesta a quantidade de ocorrncias durante a primeira dcada do sculo XXI.

    Em 2003, 54 trabalhadores foram encontrados em condio anloga escravido em uma fazenda (Setbal, 2005). Em 2005, o nmero aumenta para 110 trabalhadores e, em 2008, alguns trabalhadores de uma usina que exigiam direitos trabalhistas foram presos em um galpo (Pyl, 2008).

    Em 2009, 12 trabalhadores foram internados no hospital de emergncia da cidade com infeco intestinal, devido pssima qualidade da gua para consumo oferecida por uma indstria (Pyl, 2009). Em 15 de maio, 150 trabalhadores foram encontrados em situao semelhante escravido; em 6 de junho, 324 trabalhadores e trabalhadoras, dos quais 5 eram crianas e adolescentes e, em 11 de novembro, 122 trabalhadores escravizados numa fazenda na Lagoa de Cima, arrendada por uma indstria (Reprter Brasil, 2010). Naquele mesmo ano, no final de setembro, uma cortadora de cana de 49 anos morreu carbonizada no canavial (TRT, 2012).

    Ocorre que a produo de conhecimentos sobre o problema do trabalho escravo na regio ainda escassa, especialmente no mbito da psicologia social, organizacional e do trabalho.

  • Leo, L. H. C. (2015). Trabalho escravo contemporneo: a construo social de um problema pblico no Norte...

    122

    Em nvel nacional, existem publicaes, grupos e linhas de pesquisa sobre o tema, mas pouca insero da psicologia nessa problemtica. Algumas contribuies podem ser encontradas em Gomes e Mllo (2008), que investigaram os discursos referentes ao trabalho escravo em fazendas no Par, sob a tica da Psicologia Social, e em Ferreira (2004), que aborda a sade mental, o trabalho escravo e o consumo de psicotrpicos por povos indgenas em So Paulo.

    Frente a essa situao social e escassez de pesquisas, o presente artigo aborda aspectos do trabalho escravo contemporneo sob os referenciais da Psicologia Social. Seu objetivo foi analisar a construo social do problema do trabalho escravo no Norte Fluminense, considerando os sentidos e significados de tal expresso, bem como as estratgias de mobilizao e resistncia implementadas na regio.

    Referencial terico e mtodo

    Essa pesquisa se referenciou em uma abordagem qualitativa, orientada pelos marcos tericos da Psicologia Social, de carter interdisciplinar, articulando saberes de reas do conhecimento como lingustica e sociologia do conhecimento (Peter Berger, Thomas Luckmann e Remi Lenoir) para tratar da construo social das realidades.

    Conforme Berger e Luckmann (2008) e Lenoir (1996), os problemas sociais so forjados pelos instrumentos que constroem a realidade social, no sendo possvel afirmar uma dada naturalidade, pois eles variam de acordo com o contexto, pocas e regies que o determinam como tal.

    A anlise da emergncia de um problema social demanda uma investigao sobre os agentes e estratgias em operao, as relaes, sentidos e noes dominantes e as prticas em torno de sua definio. necessrio verificar o processo de elaborao das categorias e aes em jogo que classificam certos fenmenos como problemticos. Ora, o que deve ser explicado justamente o fato de certa realidade ser considerada, em dado momento, digna de ateno da sociedade. No caso do trabalho escravo, quando e por quais razes foi tomado como um problema social na regio Norte Fluminense? Quais as questes em jogo que legitimam (e tambm resistem legitimao) da luta contra sua ocorrncia?

    Segundo Lenoir, o estudo do surgimento de um problema social um dos melhores reveladores do trabalho de construo social da realidade, porque condensa os aspectos deste processo, sendo imprescindvel examinar as etapas de construo e

    institucionalizao, pondo em cheque as definies socialmente admitidas do fenmeno em foco (Lenoir, 1996). Dois caminhos se apresentam para isso: o primeiro observar as diferenas entre os grupos sociais em relao ao tema; e o segundo recolocar tais diferenas no contexto um conjunto mais geral em que o fenmeno se d. Um problema social, portanto, no fruto de mau funcionamento da sociedade, como se fosse uma disfuno, patologia ou desorganizao. Ele pressupe um trabalho social de reconhecimento e legitimao.

    O processo de reconhecimento aquele que torna visvel uma situao fazendo-a digna de ateno e est ligado ao de um grupo social interessando em produzir uma nova categoria de percepo do mundo social para agir sobre ele (Leonir, 1996). Compreender o trabalho escravo no NF com este referencial nos levou a analisar a formao de grupos como o Comit Popular de Erradicao do Trabalho Escravo do Norte Fluminense que, dentre suas atribuies, pretende conscientizar a sociedade civil a respeito de tal problema e exigir solues.

    O processo de legitimao, por sua vez, trata da insero do tema nas preocupaes sociais e implica um trabalho de enunciao e formulao pblica, e as condies sociais dessa mobilizao constituem outro aspecto importante da anlise. Para que uma dada situao seja considerada problemtica, preciso envolvimento de agentes reconhecidos como competentes para examinar sua natureza e propor solues, bem como estar presente nos debates pblicos.

    Outra fase essencial do referido processo o reconhecimento pelas instncias do Estado. Uma vez reconhecido, o problema demanda solues coletivas, advindas em forma de leis e regulamentaes, equipamentos etc. Dois fatores so fundamentais nesta fase: a consagrao pelos membros das altas funes pblicas e o reconhecimento dos experts, que podem ser agentes do campo cientfico, por exemplo.

    Em sntese, o aparecimento de um problema social decorre de uma srie de fatores como as transformaes sociais que afetam a vida dos grupos e os mecanismos de evocao, imposio, legitimao e institucionalizao. Nesse processo de institucionalizao, os discursos sobre a situao problemtica se encontram nos enunciados erudito, poltico, moral e se materializam em instituies especficas.

    Berger e Luckmann, em A construo social da realidade, chamam a ateno para a necessidade de ocupar-se com tudo aquilo que considerado

  • Psicologia & Sociedade, 27(1), 120-130.

    123

    conhecimento na sociedade (Berger & Luckmann, 2008, p. 29). Preconizam a importncia de buscar compreender a maneira pela qual o conhecimento cotidiano construdo, pois a adequada compreenso da realidade sui gneris da sociedade exige a investigao da maneira pela qual esta realidade construda (Berger & Luckmann, 2008, p. 34).

    Esse conhecimento emerge a partir de processos de objetivao e subjetivao que criam o senso comum. A apreenso da realidade se d como um todo ordenado e se constitui como um mundo intersubjetivo, um mundo compartilhado com outros seres humanos. Esse mundo da vida cotidiana estruturado espacialmente e temporalmente e tal estrutura coercitiva aos sujeitos. A compreenso dessa realidade implica a compreenso da linguagem, j que a vida cotidiana interpretada pelos humanos e dotada de sentido, formando um mundo coerente.

    Eleger um objeto para a anlise, portanto, demanda um trabalho de investigao acerca das representaes criadas sobre ele. No seria possvel analisar o objeto em si, mas a interpretao ou as representaes construdas sobre o fenmeno. Nesse sentido, faz-se necessrio realizar um trabalho de desnaturalizao e decomposio da realidade construda em torno de uma questo.

    Sob esse referencial, a presente pesquisa investigou o processo de construo social do problema do trabalho escravo no NF, colocando a prpria categoria trabalho escravo em anlise e buscando compreend-la luz dos processos sociais que agrega e dos grupos sociais e atores institucionais que ela mobiliza.

    Nos procedimentos de coleta e anlise de dados, foram utilizados instrumentos como: entrevistas individuais e coletivas, levantamento de documentos pblicos e textos acadmicos sobre o tema.

    No que tange coleta e anlise de material bibliogrfico, efetuou-se um amplo levantamento de publicaes acadmicas sobre as ocorrncias de trabalho escravo na regio e busca de documentos produzidos pelos atores sociais engajados no combate ao trabalho escravo, notcias veiculadas por jornais, atas, relatrios de interveno de rgos pblicos, entre outros.

    A busca por publicaes acadmicas foi realizada nas bibliotecas das universidades da cidade de Campos dos Goytacazes (UENF, UFF, IFF, entre outras) e tambm em bases de dados indexadas, como Scielo e Peridicos Capes, por meio das palavras-chave trabalho escravo e norte fluminense. As publicaes jornalsticas, atravs de pesquisa na

    Internet, nos sites dos jornais regionais e nacionais, da Prefeitura Municipal de Campos dos Goytacazes, entre outros. Outros documentos foram acessados mediante contatos com organizaes e movimentos sociais da regio.

    Foram includos na anlise materiais produzidos nos ltimos 10 anos, para permitir uma leitura da situao mais recente na regio, e a anlise de todos os documentos pblicos e dos textos buscou compreender algumas representaes acerca do trabalho escravo, das principais aes em torno do problema e das complexidades em jogo.

    Foi realizado tambm um total de quatro entrevistas (uma coletiva e trs individuais) semiestruturadas, de 60 minutos aproximadamente cada uma, com atores diretamente envolvidos com o processo de produo do setor canavieiro. O roteiro elaborado foi composto de questes abertas sobre as caractersticas do trabalho escravo na regio, sua emergncia, definio e significado, as prticas de combate, atores e entidades envolvidos na erradicao, entre outros.

    A entrevista coletiva envolveu cinco trabalhadores, dentre os quais dois haviam sido escravizados. Chegou-se a esses sujeitos da pesquisa pelo contato com lideranas do MST da regio e a entrevista transcorreu em um dos assentamentos.

    Foram realizadas tambm trs entrevistas individuais: duas com membros do Comit Popular de Erradicao do Trabalho Escravo (cuja composio ser apresentada nos resultados desta pesquisa) e uma terceira com um agente de rgo pblico da regio. Tais entrevistas ocorreram nos locais de trabalho de cada um desses sujeitos, em ambiente reservado.

    Em sntese, foram entrevistados oito sujeitos de diferentes grupos sociais da regio NF envolvidos no processo de construo social de um problema pblico do Estado do Rio de Janeiro, e todos assinaram o termo de consentimento livre e esclarecido autorizando a pesquisa e a publicao dos dados.

    Importante destacar que diversas dificuldades foram encontradas para estabelecer contato com o sindicato dos trabalhadores rurais e entidades ligadas aos produtores de cana-de-acar. Os dados bibliogrficos analisados na pesquisa, no entanto, apresentaram discursos e prticas dos referidos grupos quanto ao trabalho escravo e evidenciaram divergncias e controvrsias correntes na regio.

    Quanto aos procedimentos de anlise, ressalta-se que todo o material bibliogrfico e a transcrio das entrevistas foram lidos na ntegra e analisados conforme

  • Leo, L. H. C. (2015). Trabalho escravo contemporneo: a construo social de um problema pblico no Norte...

    124

    as seguintes categorias analticas: emergncia do problema do trabalho escravo na regio, sentidos da expresso trabalho escravo, avanos alcanados na luta pela erradicao, principais obstculos encontrados, a partir da Anlise Crtica do Discurso, que considera tanto o papel da linguagem e do discurso na constituio da realidade social, quanto o jogo de relaes de poder e resistncia presente na produo discursiva (Nogueira, 2008). Toda a pesquisa transcorreu no perodo de 2007 a 2013, sendo a coleta de dados realizada entre 2011 e 2012.

    Resultados e discusso

    Foram encontrados 48 documentos relativos ao trabalho escravo da regio NF e a anlise dessa bibliografia, bem como do material emprico, comprova que a maioria dos casos ocorre na cadeia produtiva na cana-de-acar e permite discutir a emergncia do trabalho escravo, seus sentidos e significados, as tenses nos processos de reconhecimento, legitimao e institucionalizao do problema na regio.

    Quando e por quais circunstncias, ento, o trabalho escravo foi eleito como uma situao digna da ateno, como um problema social, no Norte Fluminense?

    A emergncia do trabalho escravo contemporneo, como um problema pblico no NF, est relacionada a dois fatores principais: a mudana no perfil da mo-de-obra no setor canavieiro (utilizao de trabalho de migrantes) e a entrada em cena de um movimento articulador de pessoas, grupos sociais, instituies, sindicatos e movimentos sociais (o Comit Popular de Erradicao do Trabalho Escravo do Norte Fluminense).

    A partir de 2002, comea a acontecer o fenmeno de contratao de trabalhadores de outras regies do Brasil, principalmente do Vale do Jequitinhonha, em Minas Gerais, e de Alagoas, Bahia, Maranho, Piau e Pernambuco.

    Esses trabalhadores so submetidos a condies de produo e reproduo muito precrias, como exemplifica o caso ocorrido em 2002, que resultou em morte de trabalhador ocasionada por disputas de lugares para dormir e comer, decorrente das condies inadequadas dos alojamentos e da alimentao oferecidas por uma usina (Abreu, 2008). E com a chegada dos trabalhadores do estado de Minas Gerais, em 2003, a situao ganha maior visibilidade.

    Foi em 2003, quando da chegada dos migrantes do Vale do Jequitinhonha, depois descobrimos que j havia migrantes de Alagoas. Mas o primeiro contato

    foi com os mineiros que vieram trabalhar para uma das usinas da regio...que inaugura uma prtica de fazer alojamentos para trazer trabalhadores de fora, o que no era uma caracterstica da nossa regio. (Entrevistado X)

    Os migrantes chegam regio em busca de oportunidades para aumentar a renda familiar, comprar mercadorias e bens de consumo, com perspectivas de melhorias de vida. So agenciados por gatos, aliciadores e representantes de usinas, em suas regies de origem. Quando chegam ao NF, ficam isolados em alojamentos nos canaviais ou casebres em distritos rurais, trabalham em torno de 12 horas seguidas e acabam produzindo mais que os trabalhadores locais. Eles so submetidos a condies subumanas de vida (Abreu, 2007, p. 168) e seu isolamento favorece a desarticulao com movimentos sociais dificultando a reivindicao de direitos.

    O fato relevante que o primeiro grupo social a trazer a categoria trabalho escravo contemporneo para o NF foi um coletivo de trabalhadores migrantes no corte de cana-de-acar ao denunciar: A gente est escravo aqui. Trabalhadores migrantes foram a uma delegacia de polcia em Campos e algumas entidades da sociedade civil acompanharam o caso.

    A eles falaram: a gente est escravo, porque a gente no pode voltar para casa. A gente quer voltar para casa, porque a gente est enganado. A gente veio para c pra ganhar 1.200 e a gente est ganhando 300, 400, no ganha nem um salrio, desconto, nossa roupa de cama est h trs meses sem trocar, a comida est podre, est azeda. A foram verbalizando vrias condies que so hoje caracterizadas como trabalho, em alguns momentos, escravo, em alguns momentos, degradante. (Entrevistado X)

    Meses aps esse caso, trabalhadores denunciam a ocorrncia de um aprisionamento por dvida e o cerceamento da liberdade. Juntamente com movimentos sociais, eles comeam a se articular e buscam auxlio de rgos federais para criar estratgias de enfrentamento da situao. Uma intensa mobilizao gerada desencadeando uma ao contundente, conforme relato a seguir.

    Existia esse grupo se juntando e a a gente consegue um Trio Eltrico gigante, vai pra frente da Usina e a gente para a Usina por dois dias. No entra nenhum caminho de cana. ...Foi um grande evento e veio uma equipe do Ministrio do Trabalho, no era o Ministrio Pblico, ainda no tinha em Campos. Depois eles conseguiram falar com o MP, veio um procurador tambm e a comearam as negociaes, que no foram nada fceis. At que conseguiu que eles fossem indenizados com todos os direitos, tinha trabalhador doente, tinha trabalhador com suspeita

  • Psicologia & Sociedade, 27(1), 120-130.

    125

    de tuberculose, tinha trabalhador que estava com problema de coluna srio, e ficava no alojamento e sem receber, sem nada, e a foi uma grande vitria. ... Em 2003 isso. (Entrevistado X)

    Foi um movimento muito grande. ... A gente estava defendendo os mineiros, que eles estavam escravizando os mineiros, os mineiros comendo comida estragada...estavam dormindo em lugares aonde passavam ratos, inseto e tudo, e os mineiros chamaram a gente para ir l ajudar. (Entrevistado J)

    Foi a partir de 2002/2003 tambm que o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra e alguns rgos governamentais iniciam processos de enfrentamento dos muitos casos denunciados na regio, culminando na formao do Comit Popular de Erradicao do Trabalho Escravo do Norte Fluminense, em 2003.

    Foi o primeiro caso de trabalho escravo. No sabamos como que mexia com isso, mas a sociedade organizada, e a juntamos todo mundo e ns procuramos entender. Ento isso foi uma coisa que foi o primeiro trabalho que foi feito. Que foi o ano que nasceu o Comit de Trabalho Escravo. (Entrevistado J)

    Diante dos casos que aumentavam, ocorre o I Seminrio sobre o trabalho escravo e degradante no Norte Fluminense, com a participao de 400 pessoas. No final do seminrio, as organizaes, entidades e trabalhadores se organizaram formalmente e criaram o Comit. Desde ento, suas principais frentes de atuao tm sido as denncias de trabalho escravo, degradante e infantil, formao e capacitao de trabalhadores, assessoria jurdica, e informao/divulgao de direitos e legislao.

    O Comit vai dando organicidade e visibilidade ao problema social do trabalho escravo e diversas instituies passam a comp-lo. Antes de sua formao j existiram aes para organizar e formar trabalhadores locais, por meio de trabalho de grupo com mulheres cortadoras de cana e educao de jovens e adultos. Todavia, a partir do Comit, diversas entidades juntam-se e fortalecem as aes na busca da legitimidade luta pela erradicao do problema.

    Esse grupo social foi imprescindvel para retirar a situao da invisibilidade, traz-la ao debate pblico e contribuir no reconhecimento social e institucionalizao do problema. Afinal, o Comit procura articular entidades e realiza diversos atos pblicos contra o trabalho escravo e a impunidade, como, por exemplo, a organizao do grito dos excludos.

    Nesse processo de emergncia e reconhecimento social da categoria trabalho escravo na cena pblica do NF, a interface entre a universidade e os movimentos sociais foi fundamental. Os seminrios temticos sobre o trabalho escravo realizados na Universidade Federal Fluminense exemplificam o papel da academia para a conformao de um problema social, como apontam Lenoir (1996) e Berger e Luckmann (2008).

    A, em setembro, a gente faz o primeiro seminrio, porque a gente precisava estudar o assunto. Ento a gente traz os maiores ban-ban-bans do Brasil, na rea, pra falar. Tanto do Estado como de pesquisadores. O 1, 2 e 3 a gente estudou muito ... e a a coisa foi caminhando. (Entrevistado X)

    De 2003 a 2013 foram realizados sete seminrios de intensas discusses articulando o saber acadmico e os saberes dos trabalhadores, problematizando as situaes em nvel local e nacional e difundindo-as na cena pblica do NF.

    Em sntese, a partir de 2003 que o trabalho escravo passa a ser problematizado e se torna uma categoria-chave para a organizao de grupos como o Comit, responsvel pelo desencadeamento de aes em prol do reconhecimento, legitimao e institucionalizao desse problema social. Mas a que contedo a expresso trabalho escravo faz meno? Que realidades e situaes do NF so nomeadas como tal?

    A nomeao e a categorizao do problema social

    A literatura em geral, tanto no contexto brasileiro quanto internacional, trata o trabalho escravo contemporneo como uma negao de direitos humanos, trabalhistas e previdencirios, sendo crime. Faz meno s ms condies de trabalho e de reproduo (pssima qualidade de gua, alojamentos precrios, ambientes sem higienizao etc.), ou aponta mecanismos de aprisionamento por dvidas, por meio de descontos abusivos nos salrios, exemplificados nas coaes para a compra de mercadorias superfaturadas em estabelecimentos dos contratantes.

    Em linhas gerais, no tecido social do NF, o que caracteriza um trabalhador como escravo, diferenciando-o de outras relaes de trabalho, seria a situao de endividamento, cerceamento (estar preso por dvida), receber ameaas, inclusive as psquicas, alm das ms condies de trabalho ou no pagamento de salrio e direitos previdencirios.

    As representaes, sentidos e significados que circulam sobre a rubrica trabalho escravo no NF se referem, predominantemente, s ms condies de

  • Leo, L. H. C. (2015). Trabalho escravo contemporneo: a construo social de um problema pblico no Norte...

    126

    trabalho, s fragilidades em relao aos vnculos empregatcios e ao endividamento de trabalhadores.

    Uma anlise mais minuciosa permite afirmar que existem quatro blocos de sentido para a expresso trabalho escravo no NF: (a) ms condies, endividamento e cerceamento da liberdade entre os migrantes; (b) a situao de clandestinidade dos trabalhadores locais (ausncia de carteira de trabalho assinada); (c) relaes de subservincia entre fazendeiros e seus empregados (trabalho ininterrupto e sem cobertura de direitos); (d) e as variadas formas de violncia contra trabalhadores em fazendas.

    As expresses mais utilizadas para fazer meno ao fenmeno, no conjunto das entrevistas e documentos analisados, so subemprego, condies sub-humanas, situaes anlogas escravido, super-explorao jornada exaustiva, condio anloga escravido e trabalho escravo.

    A expresso mais recorrente condio anloga escravido e o contedo a ela associado remete s ms condies de trabalho e sade ligadas aos processos e organizaes de trabalho no setor canavieiro.

    O trabalho no setor canavieiro se caracteriza por ser temporrio, sazonal e exige muito esforo, exposio a riscos de animais peonhentos, radiao solar, falta de reposio de lquidos e condies inadequadas de alimentao. Alm dessas conhecidas condies de trabalho, o fenmeno do trabalho escravo na regio NF envolve jornadas exaustivas (em alguns casos de 12/14 horas), negao de informaes aos trabalhadores quanto ao preo da tonelada da cana cortada, ameaas de demisso, humilhaes frequentes, alimentos e gua em pssimas condies, precrias condies de alojamentos.

    O baixo reconhecimento social e a vulnerabilidade das condies de tal atividade geram repercusses psicossociais, como a vergonha de ser um cortador de cana. Para muitos trabalhadores, ser cortador de cana ser sempre sujo. Entre os migrantes, alm de toda a repercusso psicossocial de estar longe dos parentes e amigos, surgem sentimentos de fracasso e revolta principalmente quando percebem que as promessas recebidas no sero cumpridas. Sentem-se assim envergonhados de voltar para casa e reencontrar a famlia.

    Os trabalhadores escravos vivenciam ameaas constantes, coeres e controle que criam um imagin-rio de medo muito grande entre eles. Quando aciden-tados, por exemplo, ficam em silncio. Esse silncio contribui para tornar o acidente de trabalho uma condi-o natural e culpabilizante. Desenvolvem suas ativi-dades em silncio e isolamento, pois so proibidos de

    conversar ou se distrair para produzirem mais (Abreu, 2008). A fadiga, mal-estar, doenas cardiovasculares, hipertenso, doenas do nervo so frequentemente reportadas nos discursos. Toda essa situao pode ser lida como um sofrimento decorrente de experimentar uma injustia. Uma situao de sofrimento social, de acordo com Emmanuel Renault (2008).

    Tais precrias condies fazem surgir um discurso de negao de direitos. Assim, atreladas noo de trabalho escravo esto categorias de desumanizao. Expresses como os trabalhadores no eram tratados como gente (Abreu, 2007, p. 167), situaes que vo contra a dignidade humana, isso no trabalho de gente, mas de bicho, so bem presentes. Ou seja, existe um cenrio de falta de cobertura de direitos trabalhistas e previdencirios que coloca os trabalhadores na posio de no cidados, relegando-os a condies de misria.

    Essas condies de trabalho e sade seriam to precrias (degradao do corpo, riscos, precrias condies de vida e todas as questes psicossociais, etc.), que os mencionados trabalhadores teriam vida til inferior do perodo da escravido (Silva, 2010).

    Em sntese, essa categoria trabalho escravo no NF faz referncia s ms condies de trabalho e explorao extrema, tanto dos migrantes, quanto dos trabalhadores locais dos bairros pobres da cidade e daqueles residentes nas fazendas e rea rural da regio.

    Tal expresso chama a ateno, faz um apelo social de sensibilizao da sociedade quanto existncia de relaes que submetem o outro a condies menos humanas, abaixo do limiar da dignidade e dos direitos de cidadania. Desperta o imaginrio popular para situaes humilhantes, degradantes e absurdas de um perodo em que seres humanos eram cerceados em sua liberdade, presos a correntes e em senzalas, em uma relao de subservincia ao senhor e dono. A comparao ao escravismo (trabalho anlogo escravido) simboliza uma realidade de explorao extrema, com peso para mobilizar a sociedade e o Estado na construo de estruturas institucionais a fim de combater essas situaes.

    Vale ressaltar que os sentidos atribudos expresso no NF diferem de outros encontrados no Brasil em que o trabalho escravo emerge como situaes de cativeiro, algumas at similares aos campos de concentrao devido coao armada e proibio de deslocamento dos trabalhadores (Gomes & Mllo, 2008). As situaes do NF so mltiplas e os significados atribudos expressam uma posio poltica e social dos agentes que produzem os discursos e, por isso, suscitam tambm dissidncias.

  • Psicologia & Sociedade, 27(1), 120-130.

    127

    Tenses e controvrsias no reconhecimento do problema social

    No tecido social da regio emergem diversas controvrsias decorrentes dos diferentes sentidos produzidos pelos grupos sociais locais, alguns dos quais tendem, inclusive, a descaracterizar a nomenclatura trabalho escravo.

    Aps variadas denncias de organizaes da sociedade civil sobre a ocorrncia de trabalho escravo, representantes dos rgos pblicos e grupos de produtores afirmaram no haver trabalho escravo, mas apenas problemas trabalhistas e informalidade.

    Entre os grupos produtores de cana, por exemplo, existem claras reaes quanto existncia desse problema social na regio. Em seus enunciados, a expresso trabalho escravo substituda por informalidade e tal grupo afirma publicamente o compromisso do setor contra a referida questo no corte de cana. Foi verificada ainda uma tendncia discursiva de imputar aos trabalhadores a responsabilidade pela ocorrncia desse fato, j que, conforme alguns discursos, haveria uma cultura de aceitao da informalidade entre cortadores de cana.

    Essas diferentes concepes demonstram as tenses constantes para o reconhecimento do trabalho escravo na regio. Ao mesmo tempo que, em 2003, o Ministrio do Trabalho e Emprego (MTE) comprova a ocorrncia de tal tipo de trabalho na regio, incluindo uma usina na lista suja do trabalho escravo, grupos sociais pressionaram esse rgo pblico para que no fossem declaradas tais situaes de escravido no NF. As controvrsias demonstram os diferentes atores sociais que afirmam a presena de trabalho escravo moderno e outros grupos sociais que o negam. Essas tenses decorrem de interesses, concepes e prticas divergentes entre os grupos sociais em dado contexto e caracterizam o processo de reconhecimento pblico de um problema social (Berger & Luckmann, 2008; Lenoir, 1996).

    As diferenas das ocorrncias de trabalho escravo em cada regio do Brasil tambm suscitam debates em torno da legitimidade do problema na regio NF, visto que o fenmeno no idntico ao que se encontra em outros lugares do Brasil.

    Vira e mexe vem um procurador que, por exemplo, tem diferena da regio do Mato Grosso. Ele quer encontrar aqui as condies de l. ... A gente teve brigas homricas com os procuradores do trabalho principalmente. O Ministrio do Trabalho no. Os procuradores, porque trocam muito. Ento eles vm com a viso de l... a gente teve muita briga... e ainda

    dentro de uma viso do trabalho escravo porque o cara vem com a viso que est no norte do Brasil. A gente vai politizando. Enquanto tem energia, a gente vai tentando discutir, refletir e conversar. (Entrevistado X)

    Muitas dessas lutas decorrem do fenmeno das relaes de trabalho entre fazendeiros e seus trabalhadores, baseadas em benesses e troca de favores, bem presentes no NF. Diversos casos desses caracterizam um cerceamento simblico, pois os trabalhadores moram nas terras do patro e vivem 24 horas a servio deles. Vigiam o patrimnio patronal, realizam horas- extras, trabalham em servios gerais sem funo definida como reparar uma cerca, desatolar um animal cado em um buraco, recebendo em troca bondades e presentes, como uma vaca para produzir leite ou at mesmo a prpria moradia.

    Esses cerceamentos simblicos e relaes de dominao ficam de fora da noo de trabalho escravo contemporneo conforme acepo legal e jurdica. Tais relaes de trabalho regidas pelas amizades entre fazendeiros-patres e seus empregados no so consideradas por todos os atores como situaes de trabalho escravo.

    Di para gente, mas a gente v como as pessoas, durante muito tempo, tentaram deslegitimar o trabalho da gente, querendo dizer que tudo era trabalho escravo. Inclusive, quem estuda trabalho escravo, e gente tambm, dos movimentos que lutam contra o trabalho escravo. Primeira coisa: pediram para gente tirar degradante, a gente tirou, porque era Comit Popular de Erradicao de Trabalho Escravo e Degradante. Depois a gente retira. Por qu? Foi uma deciso poltica porque o trabalho escravo ele tem um peso maior. (Entrevistado X)

    Mesmo que a categoria do trabalho escravo tenha um grande peso de mobilizao social, como dito anteriormente, paralelamente, ela cria um problema, pois existem outros elementos que no esto contemplados nessa nomenclatura. Essa espcie de servido (relao entre fazendeiros e empregados), em geral, no interpretada como trabalho escravo por rgos pblicos. As relaes de apadrinhamento acabam no se enquadrando nas ocorrncias e assim contribuem para manter trabalhadores em situaes de vulnerabilidade.

    Os atores interessados na defesa dos direitos dos trabalhadores continuam problematizando tal situao, tentando levar a questo para outros mbitos, alm do NF, na tentativa de fortalecer os debates para legitimar outras situaes locais como trabalho escravo.

  • Leo, L. H. C. (2015). Trabalho escravo contemporneo: a construo social de um problema pblico no Norte...

    128

    A institucionalizao do problema social na regio NF

    Esses embates mostram o quanto a categoria trabalho escravo passou a ser problematizada na cena pblica do NF. A mdia, as instituies acadmicas, rgos do Estado (Ministrio Pblico do Trabalho, Ministrio do Trabalho e Emprego, a Polcia) passaram a dar ateno ao problema. Isso notrio pela quantidade de aes de enfrentamento geradas na regio.

    As atuaes de erradicao do problema demonstram a intensa mobilizao de atores institucionais e movimentos sociais e populares que contribuiu para fazer o trabalho escravo ser considerado um problema social digno da ateno e das respostas do Estado e da Sociedade Civil no NF. Passaram a existir prticas e aes de enfrentamento em diversos nveis: legislativo, judicirio, atuaes do Ministrio Pblico do Trabalho, em conjunto com os movimentos sociais.

    Essas aes locais no ocorrem de modo isolado, mas fazem parte de aes nacionais que tm sido criadas como compromissos nacionais para melhorar as condies de trabalho na cana-de-acar e os pactos de erradicao do trabalho escravo, entre outros.

    A partir das lutas de 2003, porm, vrios alojamentos fecharam e diversos casos de trabalho escravo foram descobertos, de modo que a tendncia para os prximos anos de diminuio, frente s intensas aes de combate. O Ministrio Pblico do Trabalho, por exemplo, passou a agir no NF, criou uma secretaria e atua em conjunto com o Ministrio do Trabalho e Emprego, que, por sua vez, passou a fazer mais fiscalizaes. Em decorrncia, aumentaram os nmeros de carteiras assinadas dos trabalhadores da cana e foram estabelecidos planos, estratgias e aes de fiscalizao do trabalho escravo.

    Nesse contexto, aumentaram tambm as atuaes de auditores fiscais, vindos de outros lugares do Brasil para aes do Grupo Mvel. No ano de 2009, inclusive, a fiscalizao foi to intensa, que o Rio de Janeiro foi considerado o campeo nacional de trabalho escravo. Tal informao aponta para duas realidades: a gravidade da situao na regio e as intensas intervenes realizadas. Da discursos afirmarem a possibilidade da erradicao do problema no NF.

    A partir das fiscalizaes e atuaes constantes que os diversos rgos pblicos tm feito nos ltimos anos, pode-se dizer que o trabalho escravo no mais uma realidade no norte fluminense no cultivo da cana-de-acar. ... algo superado na regio. (Entrevistado H)

    No que tocante aos sindicatos dos trabalhadores, de certa forma, eles vm atuando de modo enfraquecido em virtude do contexto poltico local, da falta de registro profissional de muitos trabalhadores rurais e da quantidade de trabalhadores migrantes sem vinculaes sindicais. O sindicato dos trabalhadores rurais (o mais antigo do Brasil) est frgil na defesa dos direitos dos trabalhadores na regio (Abreu, 2008).

    Importante destacar que as palavras utilizadas para descrever as intervenes no problema simbolizam luta, por exemplo, combate e, principalmente, erradicao. A palavra mais presente no NF erradicao. Tal palavra possui vinculaes com o campo da sade pblica, e, no entanto, o aparato da sade pblica local ainda no incorporou essa temtica em sua agenda. Ou seja, a construo social do problema do trabalho escravo no mobilizou o campo da sade pblica.

    Berger e Luckmann (2008) e Lenoir (1996) assinalam que os modos de nomear um fenmeno podem levar ao seu reconhecimento por atores do Estado materializando-o em determinadas instituies. Essa institucionalizao, no NF, concretizou-se em setores como o do Trabalho e Emprego e o Ministrio Pblico. Ora, as condies de trabalho e vida dos trabalhadores na cana-de-acar so objetos histricos de estudo e interveno tambm do campo da sade pblica. curioso notar que, quando tal realidade nomeada como trabalho escravo, como no NF, ela no mobiliza contundentemente os atores desse campo, apesar de existirem instncias na regio, como o Centro de Referncia em Sade do Trabalhador, com grande potencial de interveno que abririam novas possibilidades de erradicao do problema.

    Essa categoria, tratada como crime na legislao, mobiliza atores do Estado de carter mais repressivo. Alm dos setores citados, na regio existem articulaes entre as polcias para fiscalizar o trajeto dos caminhes que circulam com cana queimada, por exemplo, alm das aes da Polcia Federal.

    Avanos no sentido do combate ao problema podem ser claramente observados. Uma importante estratgia conseguida foi a interveno na cadeia produtiva do etanol tanto a jusante quanto a montante. Ao a partir do produto final e da matria-prima.

    A exposio dos casos de trabalho escravo na mdia, na academia e o reconhecimento pblico por atores do Estado levaram um importante grupo produ-tor de combustvel no Brasil a no comprar o lcool produzido por uma usina da regio que empregou tra-

  • Psicologia & Sociedade, 27(1), 120-130.

    129

    balho escravo. Essa ao a partir da cadeia produtiva foi um avano para o combate ao problema.

    A interveno na produo da matria-prima tambm foi outra importante conquista. Trata-se da responsabilizao das usinas pelas condies de trabalho dos cortadores de cana dentro das terras de pequenos produtores. Muitos problemas de trabalho escravo ocorrem nas relaes entre pequenos proprietrios de terra e seus empregados na safra. A fiscalizao das relaes de trabalho entre esses grupos mais difcil. A responsabilizao da empresa pela origem da cana que est comprando foi uma estratgia adotada. Assim, a usina, mesmo sem ter relao direta com os cortadores, passou a ter responsabilidades por suas condies de trabalho.

    Algumas situaes, contudo, ainda persistem, como o sistema de pagamento por produo, que fonte de graves problemas como acidentes de trabalho, dada a intensificao do corte, superexplorao e o trabalho exaustivo que induz.

    A falta de organizao dos trabalhadores para alm dos sindicatos, integrando suas comunidades e os trabalhadores migrantes, tambm permanece. Isso um problema para as aes de interveno, na medida em que o trabalho escravo deve tambm ser reconhecido pelos prprios trabalhadores. Afinal, toda libertao depende da conscincia de servido (Marcuse, 1973, p. 28).

    Atualmente, o Rio de Janeiro conta com a Comisso Estadual de Erradicao do Trabalho Escravo (Coetrae-RJ) na Secretaria de Assistncia Social e Direitos Humanos, demonstrando claramente o lugar que a categoria trabalho escravo passou a ocupar na cena pblica do estado, comprovando a institucionalizao desse problema social.

    Consideraes finais

    O presente artigo analisou o processo de construo social do problema do trabalho escravo contemporneo destacando as especificidades do NF. Os principais impulsionadores para trazer tona a situao do trabalho escravo como problema social na referida regio foram os prprios trabalhadores por meio de denncias e articulaes com movimentos sociais que culminaram na criao do Comit Popular de Erradicao do Trabalho Escravo. Esse Comit teve o papel de levar o problema social a ser discutido cientificamente, a partir de seminrios, e de tecer uma rede de sindicatos, universidades e agentes da sociedade civil na luta pela sua erradicao. Tal articulao gerou intensas atuaes de rgos do

    Estado para o enfrentamento da problemtica e aes contundentes de combate no setor canavieiro.

    O problema do trabalho escravo no NF, portanto, veio tona inicialmente atravs da reivindicao de um grupo de trabalhadores e chega ao reconhecimento do Estado, que passa a destinar recursos financeiros e humanos especializados para enfrentar a situao, institucionalizando o combate a esse problema.

    Se, por um lado, a expresso trabalho escravo se mostrou uma categoria de peso capaz de atrair estruturas e aes estatais para a regio, por outro, paradoxalmente suscitou conflitos para o reconhecimento de situaes locais peculiares e precrias, alm de no ter mobilizado setores do Estado, como a Sade Pblica.

    Da mesma forma, as muitas aes em torno do trabalho escravo se caracterizam como intervenes policiais, repressivas e judiciais, deixando escapar a ateno integral s pessoas envolvidas, para alm das prticas de libertao. O que libertar essas pessoas? Faz-las voltar para a sua regio de origem em situao de pobreza (no caso dos migrantes)? Garantir-lhes pagamento do INSS ou a carteira assinada? Tais prticas de libertao no necessariamente implicam a ateno s razes de seu deslocamento e a aceitao do trabalho em condies precrias, alm de toda a gama de situaes psicossociais a vergonha, a humilhao, o medo, o sofrimento decorrente do trabalho na cana.

    Essas aes de combate, apesar dos avanos para a erradicao dos casos no NF, no contemplam particularidades regionais. A categoria trabalho escravo abrange situaes distintas: as ms condies de trabalho, a escravido por dvida, a negao de direitos e as relaes de subservincia entre fazendeiros e seus apadrinhados. Neste ltimo caso, os relacionamentos envolvem troca de favores e benefcios que geram condies de aprisionamento, violncia e explorao do trabalho em termos de jornadas ininterruptas, horas-extras e desvio de funo (na medida em que o empregado serve conforme as necessidades do patro).

    Essas situaes so mais difceis de serem resolvidas por fiscalizao pontual e repressiva dos rgos do governo. Afinal, a organizao da vida dos trabalhadores gira em torno da fazenda e muitas vezes o patro serviu como fonte de auxlio em situaes nas quais o Estado no fora capaz de resolver, criando, assim, senso de gratido e um vnculo simblico e robusto do empregado com seu patro. Novas pesquisas que abordem tais relaes de servido poderiam contribuir para explicitar mais

  • Leo, L. H. C. (2015). Trabalho escravo contemporneo: a construo social de um problema pblico no Norte...

    130

    especificamente as questes em jogo nesse tipo de relao de trabalho.

    Em sntese, os discursos e prticas aqui analisados demonstram as nuances da construo social do problema do trabalho escravo no NF. Elas revelam as peculiaridades na invocao, nomeao, legitimao, reconhecimento e institucionalizao do trabalho escravo como problema para a cena pblica da regio. Esse processo evidencia ainda que as aes institucionalizadas abrangem algumas situaes enquanto encobrem outras.

    Referncias

    Abreu, C. C. (2007). Migrao: dos descaminhos do agronegcio sucroalcooleiro organizao dos cortadores de cana. In J. R. Novais & F. J. C. Alves (Orgs.), Migrantes: trabalho e trabalhadores no complexo agroindustrial canavieiro (pp. 159-190). So Carlos, SP: Eduscar.

    Abreu, C. C. (2008). Movimento social e trabalho escravo contemporneo: uma experincia de resistncia no Estado do Rio de Janeiro. In G. C. Cerqueira, R. R. Figueira, A. A. Prado, & C. M. L. Costa (Orgs.), Trabalho escravo contemporneo no Brasil: contribuies para sua anlise e denncia (pp. 98-115). Rio de Janeiro: Editora UFRJ.

    Berger, P. & Luckman, T. (2008). A construo social da realidade. Petrpolis, RJ: Vozes.

    Ferreira, M. K. L. (2004). Atrao fatal: trabalho escravo e uso de psicotrpicos por povos indgenas de So Paulo. In A. Leibing (Org.), Tecnologias do corpo: uma antropologia das medicinas no Brasil (pp. 81-112). Rio de Janeiro: NAU.

    Gomes, G. S. L. & Mllo, R. P. (2008). Sentidos sobre trabalho escravo que circulam entre profissionais empenhados em erradicar essa prtica no Par. PsiCo, 39(4), 431-440.

    International Labor Organization. (2012). Global estimate of forced labour. Executive summary. Acesso em 03 de fevereiro, 2013, em http://www.ilo.org/wcmsp5/groups/public/---ed_norm/---declaration/documents/publication/wcms_181953.pdf

    Lenoir, R. (2006). Objeto sociolgico e problema social. In D. Merlli et al. (Orgs.), Iniciao prtica sociolgica (pp. 59-106). Petrpolis, RJ: Vozes.

    Marcuse, H. (1973). A ideologia da sociedade industrial. O homem unidimensional. Rio de Janeiro: Zahar.

    Ministrio do Trabalho e Emprego. (2013). Quadro geral das operaes de fiscalizao para erradicao do trabalho escravo SIT/SRTE 1995 a 2012. Acesso em 29 de junho,

    2013, em http://portal.mte.gov.br/data/files/8A7C812D3DCADFC3013EE7228E9E6B75/Quadro%201995%20X%202012.%20Internet.%20Atualizado%2027.05.2013.pdf

    Nogueira, C. (2008). Anlises do discurso: diferentes concepes na prtica de pesquisa em psicologia social. Psicologia: Teoria e Pesquisa, 24(2), 235-242.

    Pyl, B. (2008). Trabalhador ferido em usina que j fez parte da lista suja. Acesso em 07 de junho, 2010, em http://www.reporterbrasil.org.br/exibe.php?id=1430

    Pyl, B. (2009). Grupo Jos Pessoa envolvido em 3 caso de trabalho escravo. Acesso em 07 de junho, 2010, em http://www.reporterbrasil.org.br/exibe.php?id=1602

    Reprter Brasil. (2010). O Brasil dos agrocombustveis: impactos das lavouras sobre a terra, o meio e a sociedade - Cana 2009. Acesso em 16 de outubro, 2014, em http://reporterbrasil.org.br/documentos/o_brasil_dos_agrocombustiveis_v6.pdf

    Renault, E. (2008). Souffrance Sociales. Philosophie, psychologie et politique. Paris: Editions la Dcouverte.

    Setbal, M. O. (2005). Novos sentidos de pobreza e refuncionalizao da servido: uma anlise da permanncia do trabalho degradante e escravo na agroindstria canavieira de Campos - RJ - no sculo XXI. Dissertao de Mestrado, Programa de Ps-graduao em Servio Social, Universidade Estadual do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ.

    Silva, M. R. (2010). Trabalho anlogo ao de escravo rural no Brasil do sculo XXI: novos contornos de um antigo problema. Dissertao de Mestrado, Programa de Mestrado Direito Agrrio, Universidade Federal de Gois, Gois, GO.

    Tribunal Regional do Trabalho - TRT. (2012). Famlia de trabalhadora rural carbonizada receber indenizao. Acesso em 16 de outubro, 2014, em http://www.trt1.jus.br/web/guest/destaque-completo?nID=916064

    Submisso em: 06/12/2013

    Reviso em: 23/05/2014

    Aceite em: 11/09/2014

    Lus Henrique da Costa Leo professor Adjunto I de Sade Coletiva da Universidade Federal de Mato Grosso.

    Ps-Graduado em Sade do Trabalhador e Ecologia Humana pelo CESTEH/Fiocruz. Mestre em Sade,

    Trabalho e Ambiente pela Escola Nacional de Sade Pblica - ENSP/Fiocruz e Doutor em Sade Pblica

    pela Escola Nacional de Sade Pblica ENSP/Fiocruz. Endereo: Avenida Fernando Corra, n 2367, Boa

    Esperana, Cuiab-MT. CEP 78060-900. E-mail: [email protected]