3.9 - A VONTADE - Livro Do Piero Ferrucci

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Centro de Psicossntese de So Paulo

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A VONTADE

COMO CONTATAR O CULTIVAR A AUTONOMIA PESSOAL E A LIBERDADE.

Dizem que Rossini, o compositor de peras, era to indolente quanto brilhante. Das muitas anedotas que circulam a respeito de sua preguia, uma o retrata deitado na cama pela manh, enquanto compunha uma abertura. A cama estava maravilhosamente aconchegante e fazia muito frio para se levantar. Em certo ponto, contudo, um mao das pginas que ele tinha escrito caiu no cho e espalhou-se de tal forma que Rossini precisaria levantar-se e recolhe-las se quisesse continuar compondo. Mas que esforo teria sido para ele! Sem vontade de dar-se ao trabalho, Rossini simplesmente recomeou e escreveu uma abertura completamente nova, muito mais brilhante e vivaz do que a outra que havia escorregado de suas mos.

Esta anedota pode ser vista como a vitria da inspirao sobre o esforo bruto e autodisciplina sem imaginao. uma Vitria que, ao menos nos tempos recentes, parece completa, na medida em que os sentimentos, a espontaneidade e o seguir a corrente so os vencedores mximos nas linhas contemporneas de pensamento. Por outro lado, a disciplina e a vontade, que crescentemente vm sendo consideradas forma de intil tortura, constituem-se, aparentemente, em infelizes perdedoras nesta histria.

Essa mudana de atitude na histria, com relao vontade, comeou quando a cultura ocidental tornou-se mais consciente psicologicamente. O mecanismo de represso foi descoberto e as pessoas perceberam o imenso poder daquelas foras que ingenuamente vinham tentando dominar quando eles prprios que, de fato, eram dominados por elas. Viram que, no importa quanto a vontade se gabasse de ser capaz de controlar a vida, ela era freqentemente controlada por fatores dos quais no estava nem consciente. Sua liderana comeou a parecer duvidosa.

De comum acordo, pessoas esclarecidas, bem intencionadas, retiraram a vontade de seu trono de onipotncia e comearam a considera-la um intruso artificial, pomposo, que dizia a todos o que fazer. Finalmente, o pensamento dominante exilou a vontade para a Terra da ignomnia e insignificncia.

Foi um erro, porm, pois a vontade em sua verdadeira essncia pode explicar inmeras conquistas humanas, enquanto sua ausncia pode estar na raiz de uma srie de distrbios psicolgicos. Se compreendida em sua perspectiva adequada, a vontade , mais do que qualquer outro fator, a chave para a liberdade humana e poder pessoal.

De fato, a vontade pode ser vista como uma expresso do que Angyal chamou autonomia a capacidade de um organismo funcionar livremente de acordo com sua prpria natureza intrnseca, em vez de sob a compulso de foras externas. De fato, toda a evoluo pode ser vista em relao ao surgimento dessa liberdade.

Para comear, a passagem do reino vegetal para o reino animal marcada pela conquista da liberdade de movimento. Essa passagem evidente em certos tipos de medusas, as quais, durante parte de suas vidas, apiam-se em rochas e vivem como vegetais, para depois passar o resto do tempo como animais, movendo-se livremente.

Os organismos menos desenvolvidos no reino animal demonstram pouco mais que a capacidade para movimentar-se. No caso dos insetos, por exemplo, o comportamento completamente determinado por programaes rgidas e nenhuma escolha permitida por seus rudimentares sistemas nervosos. medida que nos elevamos na escala da evoluo, descobrimos que o crebro enriquecido por clulas associativas, capacitando os animais a perceberem melhor meio ambiente, atravs de mais de um sentido. Mas seu comportamento ainda exclusivamente regulado por programas fixos. Certas espcies de peixes, por exemplo, so programadas para mover-se em grupos, e esta tendncia to forte que os faz desistir de qualquer comida ou presa para cegamente seguir seu lder com o resto do grupo.

Somente quando o nvel das aves e mamferos alcanado na escala evolutiva, o comportamento cessa de ser completamente pr-ajustado, e algum espao deixado para a contingncia e variabilidade. O crebro destes animais tem uma habilidade seletiva e pode distinguir entre os estmulos que so significativos para a sobrevivncia e os que so puramente contingentes. Se os estmulos so reconhecidos como urgentes, o animal procede puramente de acordo com o programa. Mas, se no urgentes, o crtex elabora a resposta baseado tanto na tentativa e erro, quanto numa estratgia previamente aprendida.

Um macaco, por exemplo, se no estiver numa situao ameaadora para sua sobrevivncia, far todo tipo de coisas imprevisveis brincar com pasta de dentes, pular no teclado do piano, e quase nos deixar malucos. Animais neste nvel podem escolher entre inumerveis estmulos exteriores. No entanto, tambm dependem deles e so limitados pelo meio ambiente.

Com os seres humanos, entramos num reino diferente. Do mesmo modo que os animais so mais livres que os vegetais, devido ao fato de poderem mover-se no mundo fsico, os humanos so mais livres porque podem mover-se no mundo das idias, planos e vises de variabilidade infinita e podem fazer isto, independentemente do meio ambiente. Nosso sistema nervoso nos capacita sermos os menos previsveis de todas as espcies, pois somos os menos dependentes de programas que nos definem o curso de ao passo a passo.(21)

verdade que, a qualquer momento, podemos nos encontrar seguindo presses externas: constrangimento social, propaganda, e assim por diante. Podemos cair nas trilhas batidas do hbito e agir com o piloto automtico. Mais raramente, podemos at funcionar inteiramente de acordo com mecanismos instintivos. Todavia e aqui reside a maior novidade podemos tambm inventar novos comportamentos e nos tornar uma causa inteligente. Podemos verdadeira e livremente escolher, assumindo total responsabilidade de autodeterminao. a esta aquisio evolutiva, muito ainda em desenvolvimento, que damos aqui o nome de vontade.

Algumas vezes, somos todos dramaticamente confrontados com situaes que nos convidam a utilizar a vontade. Se assim o fizermos, nossa voltagem psquica se eleva e podemos nos mover para uma liberdade maior. Mas, se no o fizemos, somos esmagados pelas circunstancias da vida. Uma mulher, com quem trabalhei certa vez, teve uma experincia com esta escolha: gostaria de contar sua histria, pois creio que demonstra o nascimento da vontade de um modo particularmente claro.

Abandonada pelo marido com uma criana pequena, Cinzia sentiu-se s e completamente vulnervel. Teve problemas no estmago e sua sade, em geral, foi seriamente minada por anos de ingesto de tranqilizantes em excesso. Sentia-se ameaada por multides e, todas as vezes que entrava numa loja de departamentos, era dominada pela ansiedade. O futuro parecia to assustador para ela que aos trinta e dois anos de idade j no mais queria viver.

Quando encontrei Cinzia, ela parecia plida e seus olhos revelavam uma sensibilidade idealstica que havia sido duramente ferida pelo contato com uma realidade rude demais para a sensibilidade e riqueza de seus sentimentos. Uma imagem borbulhando das profundezas de seu ser, mais do que claramente, descreve o que ela sentia:

Estou num tnel escuro. Suas paredes so negras e porosas e o teto baixo. No incio, o tnel parece completamente bloqueado mas, depois, vejo uma sada minha frente e o verde do lado de fora. Contudo, ningum espera por mim e isto me impede de sair do tnel. Eu me debato entre as paredes, com meus dez mil pensamentos de desespero.

(21) Esta descrio da evoluo da vontade segue o artigo Neuro-physiologie de la libert, de Jacqueline Renaud, Science et Vie, n.711, dez. 1976, p.18.

Uma outra frase ainda mais reveladora:A vontade no existe para mim. Estou sendo levada por esta cinzenta vida diria, com o pesar pelo que poderia ter sido. Por que tudo foi varrido para longe? Acredito que um negro destino tem sempre me perseguido.

O autodiagnstico de Cinzia estava correto: sua vontade inexistia. Ou, mais precisamente, ela ainda no a tinha descoberto. Como carecia da capacidade de determinar sua prpria vida, ela se sentia uma vtima de negro destino . No tendo jamais aprendido como usar sua autonomia, ela se sentia frgil e vulnervel. Criada para negar e desonrar seu poder pessoal, ela se sentia sem vida.

A situao de Cinzia nos traz considerao um princpio geral: sempre que a vontade de um individuo ignorada, suprimida ou violada, de um modo consistente e continuo ou se natimorta ou at inexistente surgem dor e doena. E, devido ao fato de que a vontade a faculdade mais prxima de nosso self, quando violada, o ferimento vai at a essncia.

REVISO DA VONTADE

Leve em considerao sua prpria vontade.

Freqentemente, ela :

Levada pela vontade das outras pessoas?

Subjugada pelos seus sentimentos, tais como depresso, raiva ou medo?

Paralisada pela inrcia?

Embalada pelo hbito at dormir?

Desintegrada por distraes?

Corroda por dvidas?

Voc geralmente faz o que quer, das profundezas de seu ser, por que assim o quer, ou porque algum outro fator prevalece?

Considere por algum tempo os aspectos principais de sua vida e seus mais importantes relacionamentos. Depois, escreva suas respostas com detalhes.

A VONTADE NA VIDA DIRIA

A despeito dos obstculos, a descoberta da vontade uma experincia bastante elementar. Se quisermos facilitar o processo, possvel comear do modo mais simples: podemos descobrir ou intensificar nossa vontade atravs do uso. Cada momento nos oferece essa oportunidade; se olharmos deste modo, a vida se torna um laboratrio para experimentao e desenvolvimento da vontade. Aqui esto algumas das maneiras - e centenas de outras podero ser inventadas de ativ-la nas diversas situaes da vida diria:

Faa alguma coisa que voc nunca fez antes.

Desempenhe um ato de coragem.

Trace um plano e, ento, siga-o.

Continue o que voc estiver fazendo por mais cinco minutos mesmo se estiver cansado, inquieto, ou sinta-se atrado por outra coisa.

Faa algo de modo extremamente vagaroso.

Diga no quando for correto dizer no, embora fosse mais fcil dizer sim.

Faa o que lhe parea a coisa mais importante a ser feita.

Ao encarar uma pequena opo, escolha sem hesitar.

Aja de modo contrrio a todas as expectativas. Comporte-se de modo independente quanto ao que as pessoas possam pensar ou falar.

Deixe de falar algo que esteja tentando a dizer.

Adie uma ao que teria preferido iniciar j.

Comece, imediatamente, uma ao que teria preferido adiar.

Faa o mesmo exerccio de psicossntese todos os dias durante um ms, mesmo que parea intil.

Elimine algo suprfluo de sua vida.

Quebre um hbito.

Execute algo que o faa sentir-se inseguro.

Realize uma ao com total ateno e intensidade, como se fosse a ltima na vida.

Qualquer ao pode ser transformada num exerccio de vontade, desde que no seja feita a partir do hbito ou experimentada como um dever. Um processo em cadeia assim acionado: uma vez que tenhamos descoberto nossa vontade, ela nos capacita a desempenhar atos de vontade subseqentes. Deste modo, ampliamos nosso reservatrio de vontade e, portanto, nos tornamos capazes de desenvolve-la ainda mais. Comeamos a criar um crculo virtuoso: vontade gera vontade.

No imagine, entretanto, que as coisas sempre corram to suavemente. Podemos comear a fazer esses exerccios mas esquecer deles no dia seguinte; no terceiro dia, podem parecer inteis; e ainda um outro dia depois, podemos gostar deles novamente e querer comear tudo de novo. Ou, levados por um sbito entusiasmo, podemos realizar um grande nmero de atos de vontade, a fim de acumular quanta energia conseguirmos, para descobrir mais tarde que criamos um tipo de indigesto da vontade. Um de meus clientes, em certo ponto do processo, comentou: Agora, todas as vezes que tento fazer atos de vontade, simplesmente no consigo. Algo em mim se rebela contra eles. Era um sinal de que ela havia feito demais e necessitava de uma pausa.

Os atos de vontade, certamente, devem ser executados sem cedermos tentao de faze-los demais, de uma vez s. Precisamos ter em mente que o progresso linear contnuo em todos os campos uma conquista relativamente rara. Portanto, precisamos abordar atos de vontade com um esprito esportivo, como se estivssemos treinando para entrar em forma.

No caso de Cinzia, este processo levou diversos meses. Ela veio ver-me pela primeira vez durante os dias mais escuros do inverno. Com a chegada da primavera, no entanto, ela manifestou os primeiros botes de determinao, apesar de suas novas tendncias estarem ainda interligadas com as antigas. Ela escreveu:

Eu quero aprender a viver s, serenamente, sem esperanas absurdas, sem me torturar por causa dos erros que j cometi e sem pensar a respeito de um futuro que me angustia, a respeito de meu terrivelmente enfastiante emprego, ou a respeito de envelhecer sem um companheiro.

A primavera est perto; quantos perfumes, quantos sentimentos, quantos desejos! Quero mergulhar no sol e sentir seu calor, convidando-me a viver. Ser que ainda h esperana? Eu no tenho muita esperana em meu potencial. De fato, no tenho nenhuma.

Nestas poucas contraditrias linhas, j podemos ver o surgimento de uma clara determinao Eu quero aprender a viver s acompanhada pelos altos e baixos caractersticos da vida emocional. Cinzia continuou a trabalhar sobre si mesma, em meio a suas recorrentes dificuldades, at que um dia, uma outra mudana ocorreu. Naquela poca, ela escreveu em seu dirio:

Eu quero amar. Quero estar disponvel para os outros. Quero sair desta solido opressiva. E, mais que tudo, quero ser uma pessoa.

Assisti evoluo de Cinzia nesse perodo, durante o qual ela veio ver-me regularmente. Eu sabia que uma profunda descoberta da vontade estava sua frente, mas no sabia quando ou como ela de fato a alcanaria. Finalmente, conseguiu:

Trabalhei muito nos exerccios de vontade, pois havia um perodo no qual eu no conseguia levantar-me. Tentei de todas as maneiras soltar minha vontade. E a vontade veio nem sei como. Um dia, senti-me capaz de fazer tudo que queria. Percebi que estava jogando fora minha vida. Eu no estava vivendo, estava destruindo a mim mesma.

Ento, entrou em cena a vontade de viver. No era a vontade de viver porque eu tinha uma famlia, mas a vontade de viver por minha prpria causa, para mostrar a mim mesma que eu era uma pessoa que, encarando a vida, tinha toda a possibilidade de viver sem me matar.

A ltima vez que vi Cinzia, ela contou-me que ainda se sentia solitria ocasionalmente, mas isto no a impedia de fazer planos para uma nova vida, tal como deixar seu emprego e encontrar alguma atividade na qual pudesse ajudar outras pessoas. Queria treinar enfermagem. Mostrou-me fotos do filho, que, em conseqncia da atmosfera de rejeio no lar, costumava mostrar-se sem vida, sem querer brincar com outras crianas. Agora, ele parecia mais forte e feliz.

Neste ponto, porm, pode surgir uma dvida: Est tudo muito bem, mas a soma de dureza associada ao exerccio da vontade me faz pensar se eu no ficaria rgida demais. Quero viver sem me esforar tanto, sem a imposio constante de controles. Assim sendo, qualquer conversa sobre fora de vontade levanta minhas suspeitas.

A questo aqui que experimentao da vontade genuna no deve ser confundida com a fora de vontade vitoriana. O fato de muitas pessoas terem chamado de vontade o que de fato era auto-restrio no deveria nos provocar a tentao de jogar fora a criana da verdadeira vontade com a gua do banho da auto negao vitoriana.

Podemos esclarecer esse mal-entendido assim que percebemos que a verdadeira funo da vontade direcionar, no impor. Um exemplo poder auxiliar a ilustrao deste fato bsico. Suponhamos que voc esteja num barco a remo no meio de um lago e queria retornar margem. Para tanto, ter de valer-se de duas funes: primeiro, deve decidir em qual direo manobrar o barco e manter a direo; segundo, deve utilizar sua prpria energia muscular para remar o barco.

Suponha agora, que, em vez de estar lidando com um barco a remo, voc esteja dirigindo um barco a vela numa brisa amena. O que voc necessita desta vez habilidade para manobrar leme e vela, de modo a obter vantagem da inter-relao das energias naturais. Nenhum esforo muscular de sua parte requerido para mover o barco. Sua nica funo escolher e manter a direo na qual quer velejar uma tarefa muito mais fcil e relaxante do que a de suprir a fora propulsora, como antes. No barco a vela voc no o agente: um meta-agente. Isto significa que voc permite que o vento, a vela, as ondas e as correntes interajam entre si. Tudo que tem a fazer , com habilidade, regular esta interao sem diretamente participar dela, como teria feito no barco a remo.

A vontade verdadeira como um meta-agente ou, como Alice e Elmer Green a chamara, (22) uma meta fora que pode direcionar o jogo dos diversos elementos da personalidade a partir de uma posio independente, sem misturar-se ou identificar-se com qualquer uma delas. Contudo, nem sempre percebemos que isto possvel.

A maneira com que habitualmente lidamos conosco assemelha-se ao ato de remar um barco a vela enquanto o vento est soprando. Batalhamos sem necessidade, determinados a agir como agentes, mesmo quando nenhum esforo requerido de ns. Desperdiamos muita energia por no decidir simplesmente o que fazer, mas tambm por nos esforar aplicando a fora de vontade comum. Poderamos, no entanto, conseguir exatamente o mesmo resultado sem esforo e com muito menor desgaste de energia.

Certa vez, quando o maestro Herbert von Karajan treinava seus alunos, fez uma distino entre o fazer trabalhoso e a direo sem esforo de uma maneira maravilhosamente clara.

Ele relembrou os dias quando, ainda criana, tomava aulas de equitao. Na noite que antecedeu seu primeiro salto ele perdeu o sono de preocupao: Como poderei suspender esta coisa enorme no ar e sobre a cerca?, pensei comigo mesmo. Ento, percebi que ningum suspende o cavalo. Voc o coloca na direo correta e ele eleva-se por si mesmo. A orquestra far a mesma coisa. (23)(22) Elmer e Alicre Green, Beyond Biofeedback, San Francisco. Delacorte Press, 1977. p.58.

(23) Time Magazine, Karajan: a new life, 29. nov. 76.No me interpretem mal aqui. A utilizao da vontade poder algumas vezes envolver esforo e luta. Poder ir contra nossas atitudes e hbitos arraigados. Poder ser uma vontade que rompe barreiras, que supera o medo, que compele at mesmo as coisas improvveis a acontecerem. E ainda assim poder ser uma vontade saudvel, imune severa careta da fora de vontade e diferente dela na natureza. O que faz a diferena a identificao apenas com a deciso e no com a ao e o esforo. Para isto acontecer, a vontade precisa jorrar a partir da real essncia de ns mesmos, sem estar contaminada ou desviada por outras foras. Isto, porm, raramente ocorre. Considere, por exemplo, as seguintes pessoas:

Um homem de cinqenta anos de idade tende a ter perodos de depresso. Quando vm, ele perde toda confiana em si mesmo, sente-se fisicamente fraco e no mais aprecia a vida.

Seus amigos dizem-lhe para reagir contra sua depresso fortalecendo a vontade. Mas ele descobre que quanto mais faz isto, pior se torna sua condio.

Um homem de negcios estabeleceu uma meta muito ambiciosa para si mesmo em sua empresa. Trabalha alm do horrio, nega-se qualquer tipo de diverso e priva-se do relacionamento alimentador com sua famlia. Sacrifica-se no altar da conquista.

Uma mulher foi abandonada a si mesma desde menininha. Aprendeu que, para sobreviver, tinha de ser dura e exibe um escudo de obstinao, fora e negao. Somente mais tarde ela se torna consciente de que tem tentado excessivamente e com esforo demasiado, que tem vivido num constante estado de reao s emergncias e que, na essncia de sua dureza, est o medo.

Se, de fato, essas pessoas tm grande intensidade vontade, so tambm controladas por um sentimento ou desejo seja ele rebelio contra dor, ambio ou medo. Seus atos volitivos no nascem do self e, por isso, suas vontades tornam-se esforos absurdos, forcas cegas. Em cada caso, a vontade no um meta-agente, mas somente um agente no mesmo nvel de outros inumerveis agentes psicolgicos.

A melhor maneira para contrabalanarmos o perigo do esforo demasiado relembrar que s podemos querer verdadeiramente a partir do centro de nosso ser, o self. Todas as outras formas de querer so monstros psicolgicos: a vontade capturada e distorcida por um sentimento, uma subpersonalidade e assim por diante.

Quando brota do centro, a vontade pode expressar-se de muitas maneiras diferentes e ser considerada como uma constelao de eventos interiores, em vez de uma nica e ntida manifestao psicolgica. Algumas vezes, percebemos a vontade num evento instantneo, rpido como um raio de luz, como num caso de um ato de coragem espontneo ou de uma deciso sbita da qual no podemos voltar atrs. Outras vezes, podemos vivenciar a vontade como um fluxo firme de fora, por exemplo, quando concentramos nossa ateno em alguns assuntos, indiferentes as distraes exteriores, ou quando nos aplicamos resolutamente em algum projeto qeu queremos levar adiante, apesar das dificuldades envolvidas. Em certos momentos, a vontade consiste em fazer o que necessita ser feito, com um fim em si mesma, sem qualquer promessa de recompensa futura, sem qualquer estmulo hedonstico, ou ameaa, ou sentimento de culpa. s vezes, a vontade pode mostrar-nos que a vida tambm uma batalha a ser empreendida sem compromissos, enquanto em outras ocasies constitui o fator que energicamente projeta uma ponte entre as pessoas uma ponte atravs da qual o caloroso fluxo da comunicao humana consegue passar. Outras vezes, a vontade expressa-se quando almejamos uma meta com tenso no fragmentada, e no somos tocados pelas ambivalncias e flutuaes que, atuando nas regies de penumbra da mente, to freqentemente conseguem minar subrepticiamente at mesmo a mais forte determinao.

A vontade pode ser claramente percebida numa pessoa como Amundsen, que preencheu sua determinao de tornar-se um explorador polar a despeito dos obstculos aparentemente insuperveis, a despeito do ridculo, do perigo e das privaes fsicas. Mas, a vontade est igualmente presente em algum como Emile Zola, que produziu um total de cinqenta e oito livros escrevendo quatro pginas por dia, sem jamais pular um dia sequer.

Para esclarecer melhor esses pontos, pode ser til olharmos outro exemplo. Mrio um arquiteto e professor universitrio. A histria de sua busca pela vontade comeou quando, aos 41 anos de idade, viu que as coisas tinham comeado a declinar para ele. Tinha acabado de se recuperar de um ataque agudo de colite ulcerativa, coincidente com o nascimento de seu primeiro beb: Eu era o pai enfermo de um beb recm-nascido, e isto me enchia de angstia. Alm disso, seu vero tinha sido catastrfico. Mrio tinha ido Sardenha, em seu barco, passar as frias de vero, junto com trs amigos. Porm, tudo conspirou para tornar suas frias difceis. Toda a viagem de Mrio, de fato, foi um exemplo de falta de vontade. Havia escolhido seus amigos aleatoriamente, e suas escolhas revelaram-se inadequadas. Havia uma continua fuga s responsabilidades entre os quatro e grande parte do dilogo a bordo era feito de desagradveis trocas: Por que voc no encheu o reservatrio de gua potvel?, Eu pensei que voc fosse cuidar disso!. Todos estavam despreparados. Um dos viajantes tinha vindo sem o bote salva-vidas obrigatrio e havia comprado um, no ltimo momento, mas que era grande demais para se acomodar adequadamente no barco e ficou no meio do caminho de todos a viagem inteira. Era um barco de confuso , onde ningum conseguia encontrar o que procurava, onde o espao era pobremente utilizado e havia ou excesso ou falta de tudo.

At mesmo o incio da viagem tinha sido catico. Partimos de um modo totalmente inconsciente, admitiu Mrio. Em vez de esperar at o amanhecer, para comear descansados e refrescados, impulsivamente decidiram sair noite, aps uma lauta refeio. s trs da madrugada acharam-se no meio do mar, completamente sonolentos, e sem combustvel suficiente que haviam esquecido de conferir antes de partir. Foi um jeito de fazer o mnimo com o mximo de esforo, diz Mrio em retrospectiva. Agi como se fosse totalmente livre de todos os laos, sem responsabilidade. Desse modo, a viagem inteira foi, para mim, um retorno infncia; mas, uma infncia repleta de enganos e inexperincias.

Se uma viagem de barco pode ser um modelo em pequena escala de estilo de vida de algum, este foi o caso de Mrio. Quando voltou a me ver, no outono seguinte, um dos traos principais que notei nele foi falta de vontade. Ele estava incerto de seus propsitos na vida. Comearia alguma coisa mas no terminaria. Excessivamente desencorajado por pequenas adversidades, ele adiava compromissos, hesitava em tomar iniciativa e permitia que colegas e at mesmo amigos passassem por cima dele. Os modelos que se relacionava facilmente com ele eram Charlie Brown e Woody Allen.

Quando falta a vontade, o espao psicolgico que ela deveria ocupar assumido pela angstia, depresso, ressentimento e confuso; e isto era o que havia acontecido com Mrio. Grande parte de nosso trabalho, juntos, foi devotado descoberta da vontade e de seus diversos aspectos e a auxiliar Mrio a deliberar quais metas verdadeiramente queria alcanar em sua vida.

O aspecto central do trabalho com a vontade consiste, precisamente, em estar consciente do que queremos e de como o realizaremos. No como Mrio, ou como os deprimidos de cinqenta anos, o homem de negcios ou a mulher que encontramos antes, ns agimos a partir da clareza do self ao invs do impulso, do desejo ou da compulso. Perguntamos a ns mesmos qual a nossa principal meta no momento. Decidimos alcan-la. Deliberamos sobre como faze-lo da maneira mais efetiva possvel. Buscamos e descobrimos o que poder nos facilitar esta tarefa. Podemos, ento, resolutamente mergulhar na ao consciente, encarando obstculos no nosso caminho com firmeza e inteligncia. Ao mesmo tempo, podemos ser flexveis o suficiente para mudar nossos planos, se for necessrio, sem ficarmos srios demais em relao a elas, de modo que possamos ainda nos divertir e desfrutar do que estamos fazendo. A vontade consciente a chave.

No vero seguinte, Mrio decidiu fazer novamente uma viagem martima. Desta vez, eu queria que fosse to perfeita e bela quanto uma sonata, diz ele. E, mais tarde, ela se revelou um modelo geral do que a vida deveria ser para mim.Primeiro veio a preparao em todos os seus detalhes: conferir as costuras das velas, lubrificar o maquinrio, cuidando de tudo que garantisse eficincia e segurana. Em seguida, veio a deciso sobre aonde ir e onde parar durante o percurso. Mrio resolveu seguir a costa sul da Itlia e, depois, rumar para as Ilhas Gregas. Nesse ano, a escolha das pessoas para a viagem no foi aleatria. Mrio convidou amigos com esprito esportivo e boa vontade - homens que combinavam bem entre si e que no sofriam de enjo em alto-mar. Veio ento, a eliminao de tudo que fosse suprfluo no barco; no se precisava muito para uma viagem como esta e, quanto mais leve o barco, mais rpido ele segue. A eliminao, como qualquer forma de escolha, um ato de vontade.

Mrio colocou grande dose de energia e de empenho nessa aventura, um grau de comprometimento que raramente ele vivenciara antes em sua vida:

A beleza da viagem veio da alegria de ver as previses se tornarem realidade. Eu escrevia metodicamente no dirio o horrio em que partamos e a hora em que parvamos, quando usvamos a vela e quando usvamos o motor, e assim por diante. Desse modo, gradativamente, tornei-me capaz de prever em qual momento tal ilha apareceria em nosso campo de viso. E a ilha regularmente aparecia.

A viagem toda foi como uma flecha que alcana a meta do modo correto e no momento preciso. Foi um microcosmo do que a vida pode ser, tantos eram os elementos envolvidos: viver com outras pessoas, sobrevivncia, segurana, planejamento, desfrute, alcanar a meta almejada.

Assagioli fala a respeito de sete grupos de qualidade disponveis pela vontade em ao: energia, comando, direcionamento, determinao, persistncia, coragem e organizao. Em sua jornada, Mrio expressou cada uma destas qualidades. De fato, a viagem tornou-se um smbolo de sua nova atitude perante a vida. Mais tarde, Mrio decidiu que seu propsito principal era expressar seu talento no mundo acadmico. Assim sendo, deu prioridade a uma srie de objetivos que poderiam auxilia-lo ao longo desse caminho, tais como escrever artigos, publicar um livro didtico, fazer um curso de especializao em interpretao de fotografias areas, explorar novos campos e afirmar-se mais na sua profisso. Sem negar a alegria do inesperado, Mrio fez sua vida como a viagem s Ilhas Gregas harmoniosa e plena de propsito.

Cap. 6, pg. 79 a 92, do livro O quer podemos vir a ser, Piero Ferrucci, Ed. Totalidade

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