3937 - ANPOF 2012. Brecht e a Utopia de Um Teatro Para Especialistas
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Brecht e a utopia de um teatro para especialistas
Patrick Pessoa (Doutor, UFF)
GT de Estética
Resumo para ANPOF 2012: "Na selva das cidades", encenada pela primeira vez em
1923, foi a terceira peça escrita por Bertolt Brecht. O dramaturgo não havia ainda
cunhado os seus conceitos de "teatro épico" e de "dramaturgia não-aristotélica", mas,
como pretendo mostrar, a reflexão sobre a vida em estado de modernidade que se
encontra nessa peça de juventude é fundamental para todos os desenvolvimentos
posteriores do "teatro brechtiano".
Palavras-Chave: Brecht, estética aplicada, Modernidade, teatro épico, teatro pós-
dramático
Uma questão de crítica
“A crítica de cinema está pelo menos vinte anos à frente da medicina
tradicional”, disse François Truffaut numa entrevista para o rádio em 1984. Diante da
incredulidade do entrevistador, ele explicou: “Quando lancei o meu segundo filme,
Atirem no pianista, um crítico escreveu que eu só podia ter um tumor no cérebro.
Apenas assim ele conseguia explicar o fato de que eu fora capaz de cometer um filme
tão ruim depois do sucesso de Os incompreendidos.” Poucas semanas depois, apesar das
palavras de incentivo do entrevistador, impressionado com o bom humor de um
Truffaut já bastante debilitado, o cineasta sucumbiria ao tumor no cérebro diagnosticado
pelo crítico desconhecido vinte anos antes daquela que seria sua última entrevista.
Um diagnóstico análogo foi dado a respeito de Na selva das cidades, terceira
peça escrita por Brecht, que sucedeu ao grande sucesso de Tambores na noite, peça que
lhe valera um ano antes da estreia da Selva o prêmio Kleist de melhor dramaturgo e o
reconhecimento como uma das grandes promessas do novo teatro alemão. Depois de
assistir à primeira montagem da Selva, em 1923, Alfred Kerr, um dos críticos mais
importantes da época e entusiasta da peça anterior, escreveu o seguinte: “Não me sinto
obrigado a escrever uma crítica de verdade sobre um troço desse tipo. Chega de
gentilezas: trata-se de uma porcaria (Kram) sem nenhum valor. Lixo (Bums) sem
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conteúdo.” Embora tenha sido relativizada por Herbert Ihering, o outro grande crítico da
época, que viu na Selva do jovem Brecht “uma das produções artísticas mais audaciosas
de seu tempo, sobretudo pelo poder de sugestão contido em sua linguagem anti-
naturalista”, o veredito de Kerr permaneceu a tônica dominante na recepção da peça até
nossos dias.
Na última montagem brasileira da Selva das cidades, por exemplo, que estreou
no Rio de Janeiro em 2011 sob a direção de Aderbal Freire-Filho, a crítica mais
poderosa da cidade, igualmente célebre por seu textocentrismo anti-brechtiano e por sua
idade provecta, que sem dúvida têm alguma relação, abriu o seu texto com as seguintes
palavras. Cito Barbara Heliodora:
Das primeiras peças de Bertolt Brecht, Na selva das cidades, escrita entre 1921 e 23,
pertence a um período de inquietação e destruição, anterior ao da disciplina conquistada
com o engajamento político. Tendo por tema um conflito sem motivo, logo no início
fica explícito que o público não deve tentar identificar as razões da confrontação e que
deve simplesmente fazer suas apostas e torcer, como em um evento esportivo; como até
mesmo no esporte há algum tipo de motivo para a busca da vitória, e o público está ali
para ver uma peça teatral, a postura pedida é virtualmente impossível, pois nada
provoca interesse ou partidarismo no conflito entre o mercador Shlink e o vendedor de
livros (sic) Garga. A gratuidade do conflito acabou por afetar a criação do texto, e o
intuito de escrever uma peça de duração normal (cerca de duas horas e meia) faz com
que Brecht tenha de recorrer, para esticar a obra, a vários pequenos enredos paralelos a
respeito da família de Garga, sua irmã, e alguns gângsteres da Chicago imaginária onde
a não ação tem lugar. (...) O problema com o texto é que ele não tem o que dizer ao
público, e duas horas e meia de diálogo gratuito não é o melhor de Brecht e nem chega a
envolver o público. (HELIODORA, 2012, p. 2)
Separados por um lapso de oitenta anos, Alfred Kerr e Barbara Heliodora
concordam com o fato de que o próprio texto de Brecht é um “lixo sem conteúdo”, que
“não tem o que dizer ao público”. Evidentemente, a partir de um juízo tão absoluto
sobre a má qualidade do texto, que para ambos os críticos seria o elemento mais
importante no teatro, nenhuma encenação teria como salvar esse jovem Brecht, estando
a priori condenada ao fracasso.
A desconstrução das opiniões de Alfred Kerr e Barbara Heliodora poderia
começar por algumas questões de princípio, como por exemplo: não devemos afirmar a
diferença entre o crítico e o juiz, pois que o primeiro trabalha no sentido de
potencializar, de dar acabamento às obras que analisa, tornando-se em certo sentido seu
co-autor, ao passo que o segundo toma a obra como um produto pronto e acabado, do
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qual só se pode dizer se é bom ou ruim a partir de um cânone qualquer? Será que o
elemento mais importante em um espetáculo teatral é mesmo o texto? Qual deve ser o
ponto de partida de uma verdadeira crítica teatral: o texto, tomado em abstrato, ou uma
montagem específica, que a seu modo sempre reinventa o texto do qual parte, mesmo e
sobretudo quando se trata de um clássico?
Uma desconstrução que partisse de tais questões de princípio exigiria um tempo
maior do que o agora disponível e, além disso, não faria justiça ao incômodo pessoal
que motivou a minha fala aqui hoje: tendo trabalhado na tradução e na adaptação para a
cena do texto de Na selva das cidades para a montagem carioca dirigida por Aderbal
Freire-Filho, fiquei muito mal impressionado com o fato de que todos os críticos
profissionais que escreveram sobre a nossa montagem não chegaram sequer a
vislumbrar a riqueza e a complexidade do texto do jovem Brecht.
Neste sentido, no meu embate de hoje com Kerr e sobretudo com Barbara
Heliodora, mas também com Macksen Luiz e Lionel Fischer, que escreveram críticas
elogiosas mas não menos problemáticas da nossa montagem, vou aceitar a arma que
eles escolheram – uma análise textocêntrica da peça. A partir da colagem de alguns
fragmentos do texto da peça, pretendo mostrar que Na selva das cidades contém em
germe não apenas alguns dos princípios mais importantes do teatro épico que Brecht só
viria a sistematizar muito tempo depois, mas também uma formulação bastante fecunda
do problema da liberdade, central para um dramaturgo obcecado pela desnaturalização
dos processos cênicos e sociais.
O espectador ideal como “espectador que faz apostas”
“Os senhores estão em Chicago, no ano de 1912. Vão assistir a uma inexplicável
luta entre dois homens e testemunhar a decadência de uma família, que veio do campo
para a selva da grande cidade. Não quebrem a cabeça para descobrir os motivos dessa
luta, apenas façam suas apostas. Avaliem imparcialmente o estilo de cada adversário e
dirijam o seu interesse para o round final.” (BRECHT, 2011, p. 1)
Eis o prólogo de Na selva das cidades, que, no texto original, não é atribuído a
qualquer dos personagens da peça. É o próprio autor quem toma a palavra. Embora
tenha sido escrita entre 1921 e 1923, portanto muito antes de Brecht começar a teorizar
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sobre o conceito de um “teatro épico” e de uma “dramaturgia não aristotélica”, o
procedimento que abre a sua peça mais obscura claramente quebra a quarta parede do
drama tradicional, instaurando não apenas uma voz narrativa distinta e talvez mesmo
superior às interações dramáticas entre os personagens, mas igualmente exigindo um
novo tipo de espectador: um espectador que deve se comportar como quem assiste a
uma luta e, embora desconhecendo os seus motivos, sente-se capaz de apostar em um ou
outro dos oponentes.
O “espectador capaz de apostar” tem como modelo os espectadores das lutas de
boxe que, a essa altura da vida, segundo relato de seu biógrafo Frederic Ewen, Brecht
frequenta assiduamente (EWEN, 1991, p. 100). Para serem capazes de apostar, é preciso
que esses espectadores se sintam aptos a participar do espetáculo da luta a partir de uma
posição que não é apenas a daquele que se envolve afetivamente com os lutadores e
com a massa de torcedores a seu redor, mas sobretudo a daquele que, por já ter visto
muitas outras lutas e lutadores, têm critérios para “avaliar imparcialmente o estilo de
cada adversário” e para tomar um partido que, no final das contas, se apoia numa
compreensão especializada do espetáculo. O “espectador capaz de apostar” é, portanto,
o “espectador-especialista” que Brecht sonhava criar para o seu teatro, que consegue
criticar e fruir ao mesmo tempo, que sabe “avaliar imparcialmente”, mas não hesita em
tomar partido.
Ocorre que, em Na selva das cidades, além de afirmar que sua peça exige um
outro tipo de espectador, o autor-narrador dá instruções precisas sobre como deve se
portar o seu “espectador ideal”. Em primeiro lugar, este deve dar menos importância às
motivações psicológicas dos lutadores do que ao seu estilo, ao seu gestus, àquilo que,
em vez de individualizá-los, converte-os em tipos. Já nesta peça dita de juventude,
portanto, encontramos aquele Brecht que mais tarde seria louvado por Adorno, um
Brecht que “desconfia da individuação estética como de uma ideologia. [...] No palco
brechtiano, os seres humanos encolhem-se até se transformarem em [...] meras funções
de processos sociais, que, mediatamente, sem suspeitar disso, eles já são no mundo
empírico.” (ADORNO, 1991, p. 62) Sob esta ótica, seria fundamental compreender que
tipos ou funções de processos sociais são personificados pelos protagonistas da peça,
Garga e Shlink.
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Em segundo lugar, ainda de acordo com o prólogo da peça que contém os
princípios para sua criticabilidade, o espectador-especialista deve ter a paciência de
esperar e dirigir o seu interesse para o round final, não afirmando precocemente que a
peça é incompreensível – como fizeram tantos críticos profissionais! – apenas porque a
compreensão de cada episódio depende da visão panorâmica do todo que só se
descortina efetivamente ao final. Se a interpretação, como a coruja de Minerva, só
decola à noite, a posteriori, sendo essencialmente nachträglich, uma interpretação de Na
selva das cidades fiel à letra do texto deve proceder de trás para frente, começando por
responder à seguinte pergunta: quem ganhou a luta, o tipo Garga ou o tipo Shlink? E
qual teria sido o preço dessa vitória?
Capitalismo X Idealismo: Shlink contra Garga
Seguindo as indicações do “prólogo ao espectador” de Na selva das cidades,
cumpre esclarecer quem são Shlink e Garga, os lutadores nesta “luta de boxe
metafísica” (BRECHT, 2011, p. 26), como o próprio Shlink a caracteriza no round final.
A peça é dividida em dez episódios, ou rounds, e a luta começa quando Shlink, um rico
negociante de madeiras, invade a biblioteca de empréstimo em que Garga trabalha
disposto a comprar a sua opinião. Tendo em vista que esta liberdade abstrata e subjetiva
era a única liberdade que Garga ainda podia se dar o luxo de possuir, ele responde com
altivez: “Eu posso vender para o senhor as opiniões de Jensen ou de Arthur Rimbaud,
mas a minha opinião não está à venda.” (BRECHT, 2011, p. 1) À medida que Shlink
aumenta a oferta pela opinião de Garga e este permanece obstinado na afirmação de sua
própria autonomia, instaura-se o confronto que tornará compreensíveis todos os
ulteriores desdobramentos da luta e, consequentemente, da peça.
Garga, como aprendemos desde os primeiro diálogos, é um jovem tão letrado
quanto miserável, fanático por Arthur Rimbaud, que veio do campo para a selva da
grande cidade com a família e que, para sustentá-la, precisa vender a sua força de
trabalho. Enquanto ele pode sonhar que efetivamente possui uma liberdade análoga à
descrita pelos poetas, mesmo que só a possua no estreito espaço de sua subjetividade,
enquanto ele pode sonhar em partir para um lugar livre do mal-estar da civilização,
como o Tahiti ou a África rimbaudiana, sua situação é suportável. Até porque, além do
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sonho da liberdade, como arrimo de família a recompensa simbólica de “amar o
próximo”, junto com o uísque, o cigarro e as mulheres, o reconforta.
Com relação a Shlink, ele mesmo nos conta sua história em um breve monólogo:
Veja bem: o meu corpo é surdo, nada atravessa minha pele. No seu estado natural, a
pele humana é fina demais para este mundo, então as pessoas tratam de engrossá-la.
Esse método seria irrepreensível, se fosse possível interromper o embrutecimento. Um
pedaço de couro curtido, por exemplo, fica sempre da mesma espessura, mas a pele
continua a engrossar, fica mais grossa, cada vez mais grossa. (...) No primeiro estágio, a
gente ainda consegue sentir as quinas das mesas. Depois, e isso já não é nada agradável,
a mesa vira de borracha, mal dá pra sentir. Mas no estágio da pele grossa, a gente já não
sente nem borracha, nem mesa, nem nada. Eu tenho esta doença desde a minha
juventude, peguei nos barcos a remo do Jangtsekiang. O Jangtse atormentava os barcos.
E os barcos nos atormentavam. De vez em quando um homem passava pelo banco dos
remadores e chutava nossas caras. De noite, já estávamos cansados demais para proteger
o rosto. Mas o homem, esse não se cansava nunca. Nós, os remadores, também
tínhamos quem atormentar: um gato. Morreu afogado quando tentamos ensinar ele a
nadar. De nada adiantou ter protegido o nosso corpo dos ratos. Ali todo mundo tinha
essa doença. (BRECHT, 2011, p. 12)
O capitalista Shlink, self made man que chegou à opulência depois de tornar a
sua pele grossa o suficiente para se adequar a um sistema que transforma tudo em
mercadoria, ao deparar com um jovem idealista como Garga, que ainda tem a pele tão
fina em um mundo que teoricamente não comporta mais esse tipo de humanidade,
precisará provar que nada nem ninguém podem escapar à sedução do dinheiro – se
houvesse uma alternativa ao percurso existencial de Shlink, ao percurso existencial de
uma classe como a sua, ele deixaria de poder ser pensado como natural, e o capitalismo
não poderia mais ser afirmado como uma consequência lógica da natureza humana. Por
isso, a oferta de Shlink, que começou em cinco dólares, subirá até ele dar todo o seu
negócio de madeira a Garga, na esperança de submetê-lo à sedução do capital e provar
seu ponto de vista.
Quanto maior se torna a oferta, maior é a obstinação de Garga em recusá-la, ao
preço inclusive do sacrifício da própria família: ele prefere que sua namorada e sua irmã
acabem prostituídas pelas injunções de Shlink, e que seus pais passem fome, do que
renunciar à única coisa que ainda poderia dar um sentido à sua vida em meio à selva das
cidades: a liberdade. Se Shlink é o tipo que faz todas as concessões para vencer, sendo
este o seu estilo de luta, Garga é o tipo que não faz concessão alguma. Ele prefere
inclusive sacrificar a sua liberdade objetiva, indo para a prisão no lugar de Shlink, do
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que renunciar à sua liberdade subjetiva, que se julgava capaz de preservar mesmo no
cárcere.
O último round
No último round da peça, depois que Garga sai da prisão e, através de um
estratagema, transforma Shlink em inimigo público número um, atrás do qual se
movimentam hordas de linchadores, os dois oponentes se encontram sozinhos à beira do
Lago Michigan, para o confronto, ou, talvez, para o encontro final.
Neste momento, contra todas as leituras dos críticos que veem uma absoluta
ausência de sentido em Na selva das cidades, que, na melhor das hipóteses, permitiria
que ela fosse pensada como um exemplar do teatro do absurdo, fica bastante claro o
processo dialético instaurado pela peça: se, por um lado, a visão de mundo de Garga
acaba de fato contaminada pela de Shlink, a de Shlink igualmente é contaminada pela
de Garga.
Shlink, sonhando talvez com a África mítica dos poemas de Rimbaud recitados
por Garga ao longo da peça, afirma:
Você finalmente entendeu que nós somos companheiros. Companheiros numa empresa
metafísica! A nossa relação foi breve, mas durante algum tempo dominou tudo. Esse
tempo passou depressa. A escala da vida não é a mesma escala da memória. O fim não é
a meta, o último episódio não é mais importante do que outro qualquer. (...) O ser
humano é tão infinitamente só que até mesmo a inimizade é inalcançável. O
entendimento não é possível nem com os animais. (...) Eu observei os animais. O amor,
o calor dos corpos que se unem: é nossa única graça nas trevas! Mas são só os órgãos
sexuais que se unem, mesmo essa união não transpõe o abismo aberto pela linguagem.
E ainda assim os seres humanos se unem, para gerar outros seres que possam ampará-
los na sua desoladora solidão. E, olhos nos olhos, as gerações se encaram friamente. Se
enchessem um navio com corpos humanos, até ele quase arrebentar, ia haver nele uma
tal solidão, que todos iam congelar. Está escutando, Garga? É assim, o isolamento é tão
imenso que nem a luta existe. A floresta! É dela que vêm os homens. Peludos, com
dentes de macaco, bons animais que sabiam viver. Tudo era tão fácil. Eles simplesmente
se estraçalhavam uns aos outros. Eu ainda vejo claramente como eles, com os corpos
tremendo, se olhavam no branco do olho e cravavam os dentes no pescoço do
adversário, e rolavam pela terra. Aquele que derramava todo seu sangue no meio das
raízes era o vencido. Aquele que esmagava os arbustos e tudo o mais sob seus pés, o
vencedor! Está escutando, Garga?! (BRECHT, 2011, p. 26)
Ao que Garga retruca:
Shlink, já faz tempo demais que te escuto. Mas agora, olhando teu rosto, percebi que o
teu blábláblá apenas me irrita e que a tua voz me dá náusea. Qual é a distância até Nova
York? Por que estou aqui sentado perdendo meu tempo? (...) Nova York. (rindo
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ironicamente, ele recita Rimbaud) ‘Eu vou até lá e vou voltar com os membros de ferro,
a pele escura, a fúria nos olhos. Olhando o meu rosto, vão pensar que sou de uma raça
forte. Eu vou trazer ouro, vou ser preguiçoso e violento. As mulheres gostam de cuidar
dos doentes selvagens, que voltam dos países quentes. Eu vou nadar, caçar, pisar a
grama e, acima de tudo, fumar. Vou beber licores quentes como metal fervendo. Vou
mergulhar na vida e estarei salvo.’ – Quanta besteira! Tantas palavras em um planeta
que nem sequer é o centro do universo! O senhor vai estar coberto de cal há muito
tempo – porque os velhos têm que dar o lugar para os mais moços, Shlink – e eu ainda
vou estar escolhendo o que me diverte! (BRECHT, 2011, p. 27)
Nessa curiosa inversão da liberdade abstrata (ou subjetiva) de Garga em amargo
reconhecimento de sua não liberdade objetiva (ou social), que o faz escarnecer de
Rimbaud no final da peça, Shlink acaba por perder o oponente que fazia da luta sua
única razão não pragmática para seguir vivendo. O suicídio é sua última palavra. Garga
sobrevive e é inegavelmente o vencedor do combate. Mas, como diria Adorno na
Dialética do esclarecimento, o preço de sua vitória, de sua sobrevivência, é justamente
aquilo que poderia fazer a vida valer a pena. No final do combate, sua pele está “dura
como uma pedra de âmbar, dentro da qual se podem ver cadáveres de pequenos
animais.” (BRECHT, 2011, p. 26)
Se, por um lado, esse final idealista nos permite compreender por que, no final
da vida, Brecht condena esta peça de juventude como um “blábláblá entre dois literatos”
(BRECHT, 1967, p. 276), afirmando que àquela altura ainda não era capaz de ver o
confronto que verdadeiramente interessava, a luta de classes, por outro lado o modo
como ele descreve o mal-estar na civilização – fruto da não-liberdade, da reificação e da
incomunicabilidade – continua a estimular a imaginação dos dramaturgos
contemporâneos e, especialmente, dos pós-dramáticos que, como o jovem Garga, ainda
sonham em suas peças com a criação de paraísos perdidos pré- ou pós-civilizados, feitos
não apenas de som e fúrias, mas de sangue e saliva, animalidade e silêncio.
Quanto aos críticos que citei anteriormente, talvez seja preciso que eles
aprendam a arte de afinar a própria pele, por mais que ela lhes custe a perda do poder
social que detêm. Um poder que, a meu ver, está na hora de pesquisadores como nós
usurparmos, por mais que isso acabe por nos custar a renúncia a esta verdadeira
carapaça que é um discurso excessivamente academicista.
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Referências bibliográficas
ADORNO, T. (1991) “Engagement”. In: Notas de literatura. Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro.
BRECHT, B. (2011). Na selva das cidades. Tradução de Aderbal-Freire Filho e Patrick
Pessoa voltada para a encenação do espetáculo realizado no CCBB-RJ.
________. (1967). “Revendo minhas primeiras peças”. In: Teatro dialético. Tradução
de Luiz Carlos Maciel. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.
EWEN, F. (1991). Bertolt Brecht: sua vida, sua arte, seu tempo. São Paulo: Globo.
HELIODORA, B. (2011) “Um Brecht gratuito”. In: Jornal O Globo (06.09.2011).
LEHMANN, H-T. (2007). Teatro pós-dramático. São Paulo: Cosac Naify.