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R I O D E J A N E I R O • S Ã O PA U L OE D I T O R A R E C O R D

2010

Tradução de

S. Duarte

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“Como ele nem sequer pensou em deixar alguma

mensagem, foi considerado morto até que, oito me-

ses depois, a primeira carta chegou de Talcahuano.”

Typhoon, de Joseph Conrad

“o que temos de fazer neste mundo não é atingir o su-

cesso, e sim continuar a fracassar com bom humor.”

roberT Louis sTevenson, CompLeTe works voL. 26

refLeCTions and remarks on human Life, s. 4

“Talvez a prova de que o conceito de nacionalidade é

extremamamente aleatório seja o fato de que temos de

aprendê-lo antes de podermos reconhecê-lo como tal.”

a reading diary, de aLberTo mangueL

Epígrafe

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Nota do autor

Na verdade, Nostradamus terminou somente 942 quadras de um total

de mil, que representam sua intenção de cobrir dez séculos com cem

quadras cada. Faltam as outras cinquenta e oito, que até hoje não foram en-

contradas.

o testamento que utilizei no livro é o documento original deixa-

do por Nostradamus (em francês, como foi escrito, com minha tradução em

seguida). Concentrei-me especialmente no termo aditivo ao testamento, no

qual Nostradamus legou dois cofres secretos a sua filha mais velha, Madelei-

ne, determinando que “ninguém, a não ser ela própria, tem permissão para

olhar ou examinar o que está dentro dos cofres”. Tudo isso é de conhecimen-

to público.

As lendas, língua, costumes, nomes, hábitos e mitos ciganos des-

critos no livro são todos autênticos. Apenas combinei em um só grupo os

costumes de várias tribos, por conveniência da trama do romance.

Até hoje não se encontrou prova definitiva da existência do Corpus

Maleficus. o que não significa que não exista.

Mario Reading, 2009

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Para meu filho Lawrence, con todo mi cariño

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Agradecimentos

Redigir um livro como este e fazer as pesquisas necessárias pode ser uma

experiência solitária e desafiadora, e por isso o autor se sente ainda

mais agradecido quando alguma pessoa alheia a sua família mais íntima se

interessa pela obra. Meu agente literário, oli Munson, da Blake Friedmann,

entusiasmou-se pelo livro desde o início — desde a larva até a crisálida e daí

à borboleta completa. Tenho uma profunda dívida com ele, tanto pela ami-

zade quanto pelo apoio inabalável, e isso se estende a todo o pessoal da Blake

Friedmann por todas as realizações. Ravi Mirchandani, meu editor na Atlantic,

também foi dos primeiros a dar valor a meu livro, assim como Urban Hofstetter,

meu editor para o alemão na Blanvalet, que foi a primeira importante edi-

tora internacional a apoiá-lo. Sou imensamente grato a ambos. Também

agradeço ao semi-invisível grupo do departamento de vendas da Atlantic,

especialmente ao diretor-gerente Daniel Scott, cujo memorando pessoal elo-

giando o livro muito me estimulou. Igualmente, sou grato ao bouquiniste

anônimo da margem esquerda do rio Sena, que passou quase uma tarde in-

teira de verão compartilhando generosamente comigo seus conhecimentos

sobre os ciganos manouche. Finalmente, quero agradecer à British Library e

à Bibliothèque Nationale de France, simplesmente por existirem. Todos os

escritores, em toda parte, muito lhes devem.

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Prólogo

La Place de l’Étape, Orléans,

16 de junho de 1566

De Bale fez um sinal com a cabeça e o carrasco começou a acionar o

mecanismo da polia. o Chevalier de la Roche Allié vestia a armadura

completa e o aparelho se envergou e gemeu até que a roda dentada engatou

e o Chevalier foi erguido do chão. o carrasco havia advertido De Bale sobre

o excesso de peso e suas possíveis consequências, mas o conde não lhe deu

ouvidos.

— Conheço este homem desde minha infância, Maître. A família

dele é uma das mais antigas da França. Se quer morrer vestido com a arma-

dura, é direito seu.

o carrasco sabia que não adiantava discutir; quem argumentava

com De Bale acabava na câmara de tortura ou era escaldado com líquidos

ferventes. Ele tinha influência junto ao rei e era apoiado pela Igreja. Em ou-

tras palavras, o filho da mãe era intocável. Estava tão próximo da perfeição

terrestre quanto era possível a um mortal.

De Bale relanceou o olhar para o alto. Como seus crimes eram de

lesa-majestade, De la Roche Allié havia sido condenado a suspensão de quinze

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metros. o conde ficou conjeturando se os ligamentos do pescoço suportariam

a tensão tanto da corda quanto dos 42 quilos de placas de aço com que os es-

cudeiros o haviam vestido antes da execução. Se ele se partisse em dois antes

de ser sangrado e esquartejado, isso não seria bem-visto. Teria De la Roche

Allié pensado nessa possibilidade antes de fazer seu pedido? Teria planejado

tudo? De Bale achava que não. Era ingênuo — gente de estirpe antiga.

— Ele chegou aos quinze, senhor.

— Desça-o.

De Bale observou enquanto a armadura baixava em sua direção. o

homem estava morto. Era óbvio. A maioria das vítimas resistia e esperneava

naquele ponto. Sabiam o que estava por vir.

— o Chevalier está morto, senhor. o que quer que eu faça?

— Para começar, fale baixo. — De Bale olhou para os espectadores.

Aquela gente queria ver sangue. Sangue de huguenotes. Se não ficassem sa-

tisfeitos, iriam voltar-se contra ele e o carrasco e os linchariam. — Corte-o

assim mesmo.

— Perdão, senhor?

— Você me ouviu. Corte-o assim mesmo. E trate de fazer com que

ele estremeça, homem. Grite pelo nariz, se tiver de fazê-lo. Seja ventríloquo.

Exiba as entranhas dele. o povo tem de achar que o viu sofrer.

os dois jovens escudeiros vinham chegando para desafivelar a arma-

dura do Chevalier. Com um gesto, De Bale os fez parar.

— o Maître cuidará disso. Voltem para suas casas. os dois. Já cum-

priram o dever para com seu senhor. Ele agora é nosso.

os escudeiros recuaram, lívidos.

— Basta tirar o peitoral, o gorjal e o cinturão, Maître. Deixe as per-

neiras, grevas, elmo e luvas onde estão. os cavalos farão o resto.

o carrasco tratou de cuidar de sua tarefa.

— Estamos prontos, senhor.

De Bale fez um sinal e o carrasco fez a primeira incisão.

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Casa de Michel de Nostredame,

Salon-de-Provence,

17 de junho de 1566

— De Bale está vindo, meu senhor.— Sei disso.— Como pode saber? Não é possível. A notícia chegou por um pom-

bo-correio há apenas dez minutos.o mais velho dos dois encolheu os ombros e procurou uma posição

mais confortável no escabelo para a perna cheia de edemas. — onde é que ele está agora?— Está em orléans. Chegará daqui a três semanas.— Só três semanas?o lacaio se aproximou mais, torcendo as mãos. — Que vai fazer, meu senhor? o Corpus Maleficus está interrogando

todas as pessoas cujas famílias abraçavam antes a religião judaica. os marra-nos, os convertidos e também os ciganos, mouros e huguenotes. Qualquer pessoa que não seja católica pelo nascimento. Nem mesmo a rainha pode proteger o senhor aqui.

o mais velho fez um gesto de desprezo. — Isso já não tem importância. Estarei morto antes que o monstro

chegue.— Não, meu senhor, certamente não.— E você, Ficelle? Não seria bom para você estar longe daqui

quando o Corpus vier nos visitar?— Vou ficar a seu lado, meu senhor.o velho sorriu. — Você me servirá melhor fazendo o que vou pedir. Preciso que faça

uma viagem para mim. Uma viagem longa, cheia de obstáculos. Vai fazer o que peço?

o lacaio abaixou a cabeça. — Farei tudo o que me pedir.

o velho o observou durante alguns momentos, como se o estivesse

avaliando.

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— Se fracassar, Ficelle, as consequências serão ainda piores do que qualquer coisa que De Bale — ou o próprio demônio — seria capaz de causar. — Hesitou, com a mão sobre a perna grotescamente inchada. — Tive uma visão. Tão clara que é mais importante do que a obra à qual até agora dedi-quei a vida. Evitei a publicação de cinquenta e oito de minhas quadras por motivos que não confessarei, porque somente a mim se referem. Seis dentre elas têm um objetivo secreto; vou explicar a você como utilizá-las. Você não deve ser visto por ninguém. Ninguém deve suspeitar. As demais cinquenta e duas quadras terão de ser escondidas em um lugar específico que somente eu e você podemos saber. Eu as lacrei dentro desta cápsula de bambu. — o velho apalpou debaixo da cadeira em que estava sentado e retirou o tubo firme-mente fechado. — Você vai colocar esta cápsula onde vou dizer, exatamente da maneira que eu determinar. Não se ocupará de outra coisa. Vai cumprir minhas instruções ao pé da letra. Entendeu bem?

— Sim, meu senhor.o velho deixou-se cair na cadeira, exaurido pela intensidade do que

procurava comunicar.— Quando voltar para cá, depois de minha morte, irá visitar meu

amigo Palamède Marc, fiduciário de minha propriedade. Relate a ele sua missão e informe seu êxito. Ele então lhe dará uma quantia em dinheiro. Uma quantia que assegurará seu futuro e o de sua família durante muitas gerações. Está me entendendo bem?

— Sim, meu senhor. — Você confiará em minha opinião sobre este assunto e seguirá

minhas instruções ao pé da letra?— Sim, senhor, assim farei.— Nesse caso, você será abençoado, Ficelle. Por um povo que nun-

ca conhecerá e por uma história que nem eu nem você podemos sequer imaginar.

— Mas meu senhor conhece o futuro. o senhor é o maior vidente de todos os tempos. Até mesmo a rainha o homenageou. Toda a França conhece seu talento.

— Nada sei, Ficelle. Sou como este tubo de bambu. Condenado a transmitir coisas sem jamais entendê-las. Somente posso rezar para que venham outros, depois de mim, que saibam agir melhor.

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Quartier St-Denis, Paris

Hoje em dia

Achor Bale não sentia verdadeiro prazer em matar. Há muito tempo

isso já não o interessava. olhou o cigano quase com afeição, como se olha

para um vizinho de poltrona prestes a desembarcar num avião.

o homem tinha se atrasado, naturalmente. Bastava olhar para ele

para perceber que era um poço de vaidade. Bigode dos anos 1950, estilo

Zorro. Jaqueta de couro brilhante, comprada por 50 euros no mercado de

pulgas de Clignancourt. Meias escarlate transparentes. Camisa amarela, com

plumas tipo príncipe de Gales e enorme colarinho pontudo. Medalhão de ouro

falso, com a imagem de Santa Sara. o homem era um almofadinha de mau

gosto, que a gente de seu povo reconheceria com facilidade, assim como um

cachorro reconhece outro.

— Tem o manuscrito consigo?

— Acha que sou idiota?

ora, não era bem assim, pensou Bale. os idiotas raramente perce-

bem. A venalidade daquele homem saía pelos poros. Bale notou as pupilas

dilatadas, o brilho do suor na fisionomia atraente e de linhas claras. o tambo-

rilar dos dedos na mesa. os pés batendo no chão. Era um viciado em drogas,

sem dúvida. Coisa estranha para um cigano. Talvez por isso precisasse tanto

de dinheiro.

— Você é manouche ou rom? ou será gitano?

— Que lhe importa isso?

— Pelo bigode, eu diria que é manouche. Talvez descendente de

Django Reinhardt?

— Meu nome é Samana. Babel Samana.

— E seu nome cigano?

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— Isso é segredo.

— o meu é Bale. Não há segredo nisso.

os dedos do cigano tamborilaram mais rapidamente na mesa. Re-

lanceava o olhar para todos os lados, passando rapidamente pelos demais

fregueses, prestando atenção nas portas, avaliando as dimensões do teto.

— Quanto quer por ele?

Tinha de ir diretamente ao assunto. Era o que precisava fazer com

um homem desse tipo. Bale observou a língua do cigano surgir, umedecendo

a boca fina, artificialmente viril.

— Quero meio milhão de euros.

— Só isso?

Bale sentiu que uma profunda calma o invadia. Ótimo. o cigano

realmente tinha algo para vender. Não era apenas um embuste.

— Por tanto dinheiro, preciso ver o manuscrito antes de comprar.

Verificar sua viabilidade.

— E decorá-lo! Já ouvi falar dessas coisas. Pelo menos isso eu sei. Se

o conteúdo for publicado, não valerá nada. o valor está no sigilo.

— Você tem razão. Fico contente em vê-lo tomar essa posição.

— Há outro interessado. Não pense que você é o único peixe no

mar.

Bale fechou os olhos. Bem, teria de matar o cigano, afinal de con-

tas. Torturá-lo e matá-lo. Percebeu o palpitar denunciador, acima do olho

esquerdo.

— Podemos ir ver o manuscrito agora?

— Primeiro vou falar com o outro homem. Talvez vocês aumentem

os lances.

Bale encolheu os ombros.

— onde vai encontrá-lo?

— Não vou dizer.

— Então como vai fazer?

— Fique aqui. Vou sair e encontrar o outro homem. Vou ver se ele

está falando sério. Depois volto.

— E se ele não for sério? o preço diminui?

— Claro que não. Meio milhão.

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— Então ficarei aqui.

— Faça isso.

o cigano se ergueu de um salto. Sua respiração era ofegante e o suor

molhava a camisa no colarinho e no peito. Ao voltar-se, Bale notou a marca

da cadeira na jaqueta barata de couro.

— Se me seguir, eu perceberei. Não pense que não.

Bale tirou os óculos escuros e colocou-os na mesa. olhou para cima,

sorrindo. Há muito tempo percebera o efeito que seus olhos estranhos produ-

ziam em pessoas sensíveis. — Não vou seguir você.

o cigano abriu a boca, num esgar de surpresa, olhando horrorizado

para Bale. Ele tinha o ia chalou — o olho mau. A mãe de Babel o prevenira

contra essas pessoas. Quem as via, aqueles a quem elas fitavam com o olhar

do basilisco, estavam perdidos. Em algum ponto muito profundo de seu in-

consciente, Babel Samana reconheceu seu erro — percebeu que não devia

haver permitido que aquele homem entrasse em sua vida.

— Vai ficar aqui?

— Não se preocupe. Esperarei por você.

===

Logo que saiu do café, Babel começou a correr. Queria misturar-se

com os transeuntes. Esquecer tudo aquilo. Afinal, que podia querer? Nem

sequer tinha o manuscrito em seu poder, somente uma vaga ideia de onde

estava. Ao se deitarem em seu travesseiro quando ele era bebê a fim de resol-

ver qual seria seu destino, por que motivo os três ursitory tinham escolhido

as drogas para sua fraqueza? Por que não a bebida ou as mulheres? Agora o

Beng o possuíra e lhe enviara essa maldição monstruosa como castigo.

Reduziu o passo. Nem sinal do gadje. Teria sido sua imaginação?

Teria imaginado o poder maléfico daquele homem? o efeito daqueles olhos

terríveis? Talvez fosse uma alucinação. Não seria a primeira vez que isso acon-

tecia, resultado de drogas de má qualidade.

Verificou a hora em um parquímetro. Tudo bem. o outro homem

ainda estaria à sua espera. Talvez fosse mais benévolo.

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Do outro lado da rua, duas prostitutas começaram uma azeda dis-

cussão sobre seus respectivos convites. Era uma tarde de sábado. Dia de ca-

fetões em St-Denis. Babel viu-se refletido na vitrine de uma loja. Sorriu com

dificuldade para si mesmo. Se conseguisse fechar aquele trato talvez pudesse

arranjar algumas mulheres para si e também uma Mercedes. Compraria uma

Mercedes de cor creme com assentos de couro vermelho, lugar para as latas

de cerveja e ar-condicionado automático. Faria manicura em uma daquelas

lojas com moças de avental branco que nos fitam com olhos sonhadores do

outro lado da mesinha.

Chez Minette ficava a dois minutos a pé. o mínimo que poderia

fazer seria espreitar pela porta e avaliar o outro homem. Talvez enganá-lo,

pedindo um pagamento como sinal. Uma prova de interesse.

Depois, carregando um monte de dinheiro e presentes, poderia vol-

tar ao acampamento e aplacar a hexi de sua irmã.

2

Havia muito tempo Adam Sabir já achava que aquela pista não o le-

varia a lugar nenhum. Samana estava cinquenta minutos atrasado. Somente

seu fascínio pelo ambiente esquálido do café o mantinha ali. Enquanto obser-

vava, o barman começou a descer as persianas da entrada.

— Que é isso? Vai fechar?

— Fechar? Não. Quero que todos fiquem aqui dentro. Hoje é sába-

do. Todos os cafetães vão chegar de trem. Criam distúrbios nas ruas. Há três

semanas quebraram as vidraças da frente. Se quiser sair, pode usar a porta dos

fundos.

Sabir franziu a testa. Bem, sem dúvida era uma maneira nova de

conservar a clientela. Estendeu a mão e acabou de tomar a terceira xícara de

café. Já sentia a cafeína lhe acelerando o pulso. Dez minutos. Esperaria Sama-

na durante mais dez minutos. Depois, como ainda estivesse tecnicamente

em férias, iria ao cinema para assistir A noite da iguana, de John Huston.

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Passaria o resto da tarde com Ava Gardner e Deborah Kerr. Acrescentaria mais

um filme a seu livro, sem dúvida fadado ao fracasso, sobre as cem melhores

produções de todos os tempos.

— Une pression, s’il vous plaît. Rien ne presse.

o barman fez um gesto de entendimento e continuou a descer as

persianas. No último momento possível, uma figura ágil se esgueirou por

entre a fresta e endireitou-se, usando a mesa como apoio.

— Ho! Tu veux quoi, toi?

Babel não deu atenção ao barman e examinou o ambiente com o

olhar esgazeado. A camisa estava encharcada sob a jaqueta e o suor escorria

pelo queixo anguloso. Concentrou integralmente a atenção em uma mesa de

cada vez, apertando os olhos para proteger-se do clarão das luzes do interior

do bar.

Sabir ergueu um exemplar de seu livro sobre Nostradamus, como

haviam combinado, com sua foto bem à mostra. o cigano chegara, final-

mente. Era a hora da decepção.

— Aqui estou, monsieur Samana.Venha para cá.

Babel tropeçou numa cadeira, em sua ansiedade para aproximar-se de

Sabir. Recuperou o equilíbrio mancando, com o rosto voltado para a entrada

do bar. Por enquanto, porém, estava a salvo. Podia ver as persianas agora

completamente fechadas. Sentia-se protegido do gadje mentiroso, de olhos

enlouquecidos. o gadje que prometera não o seguir. o gadje que depois

acompanhara sua pista até o Chez Minette, sem sequer procurar esconder-se

na multidão. Mas Babel ainda tinha uma oportunidade.

Sabir se levantou, com uma expressão de surpresa no rosto.

— Que há? Você parece ter visto um fantasma. — Podia ser algo

parecido, pois a selvageria que percebera no olhar do cigano tinha se trans-

formado em uma máscara disforme de terror.

— o senhor é o escritor?

— Sou. Eu mesmo. No verso da quarta capa.

Babel estendeu a mão para uma mesa ao lado e pegou um copo de

cerveja vazio. Quebrou-o na superfície da mesa que estava entre os dois e fez

um corte na própria mão com um caco. Em seguida pegou a mão de Sabir

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com a manopla sangrenta. — Desculpe. — Antes que o outro pudesse reagir,

o cigano levou a mão do escritor até o copo quebrado.

— Meu Deus! Seu safado...

Sabir tentou desvencilhar-se, mas o cigano não o soltou e juntou a

mão dele à sua, até que ambas se misturaram com o sangue espumoso. Em

seguida levou a palma da mão de Sabir à testa, formando uma mancha.

— Agora escute! ouça o que vou dizer.

Sabir conseguiu livrar a mão do aperto do cigano. o barman emer-

giu por trás do balcão, brandindo um taco de bilhar serrado.

— Duas palavras. Lembre-se delas. Samois. Chris.

Babel recuou diante do barman que se aproximava, erguendo a pal-

ma da mão ensanguentada, como numa bênção.

— Samois. Chris. Vai se lembrar? — Atirou uma cadeira contra o

barman, aproveitando a confusão para reorientar-se em direção à porta dos

fundos. — Samois, Chris. — Apontou o dedo para Sabir, com os olhos enlou-

quecidos de medo. — Não esqueça.

3

Babel sabia que precisava escapar para salvar a própria vida. Nunca

tinha tido tanta certeza de alguma coisa, certeza tão completa. A dor na mão

latejava violentamente. Tinha os pulmões em fogo, cada inspiração rasga-

va-lhe as entranhas como se tivesse garras.

Bale o observava a cinquenta metros de distância. Tinha tempo. o

cigano não tinha para onde ir. Ninguém com quem pudesse falar. Bastaria

que a Sûreté o visse para metê-lo em uma camisa de força; a polícia não

era compreensiva com os ciganos em Paris, especialmente quando estavam

ensanguentados. Que tinha acontecido naquele bar? Com quem ele tinha

estado? Bem, em pouco tempo descobriria.

Viu a camionete Peugeot branca quase imediatamente. o motorista

pedia informações a um lavador de janelas. Este apontava na direção de St.

Denis, encolhendo os ombros com incompreensão gaulesa.

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Bale empurrou o motorista para o lado e entrou na cabine. o motor

ainda estava ligado. Engatou a primeira e acelerou, afastando-se sem se preo-

cupar em olhar pelo retrovisor.

===

Babel perdeu de vista o gadje. Voltou-se e olhou para trás, corren-

do em direção contrária. os transeuntes o evitavam, receosos de seu rosto

e mãos cobertos de sangue. o cigano ficou parado na rua, respirando com

dificuldade, como um cervo encurralado.

A camionete Peugeot branca subiu o meio-fio e chocou-se com a

perna direita de Babel, quebrando o osso. o cigano ricocheteou no capô do

veículo e caiu pesadamente no asfalto. Quase imediatamente sentiu que al-

guém o erguia, com mãos fortes agarrando o colarinho do casaco e os fundi-

lhos das calças. Uma porta se abriu e ele foi atirado na camionete. ouviu um

gemido agudo e terrível, percebendo tardiamente que vinha dele próprio.

Ergueu os olhos no momento em que o gadje o golpeou com as costas da mão

logo abaixo do queixo.

4

Quando acordou, sentia uma dor lancinante nas pernas e nos ombros.

Levantou a cabeça para olhar em volta, mas nada viu. Somente então percebeu

que tinha os olhos vendados e que estava amarrado, de pé, a uma estrutura de

metal da qual seu corpo pendia para a frente, com os braços e as pernas cru-

cificados, em um semicírculo involuntário, como se estivesse estendendo os

quadris para a frente em uma dança singularmente explícita. Estava nu.

Bale deu-lhe outro puxão no pênis.

— Bem, você está finalmente prestando atenção? Ótimo. Escute,

Samana. Você precisa ficar sabendo duas coisas. Primeiro: sem dúvida vai

morrer; não poderá escapar com uma boa conversa nem me comprar dan-

do informações. Segundo: a forma de sua morte depende exclusivamente de

você. Se eu ficar satisfeito, cortarei sua garganta. Você não sentirá nada. Do

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jeito que vou fazer, em menos de um minuto você sangrará até morrer. Se

não ficar contente, farei você sofrer muito, muito mais do que está sofrendo

agora. Para mostrar que pretendo matar você, e você não pode escapar da po-

sição em que está, vou cortar fora seu pênis. Depois cauterizarei a ferida com

um ferro em brasa para que você não morra sangrando antes do tempo.

— Não! Não faça isso! Direi tudo o que quiser saber. Qualquer coisa.

Bale ficou parado, com a faca encostada na pele esticada do membro

viril de Babel.

— Qualquer coisa? Seu pênis em troca da informação que desejo?

— Bale encolheu os ombros. — Não estou entendendo. Você sabe que nunca

mais vai usar seu pênis. Já deixei isso muito claro. Para que quer ficar com

ele? Não me diga que ainda acha que tem alguma esperança?

Um fio de saliva escorreu pelo canto da boca do cigano.

— Que quer que eu diga?

— Primeiro, o nome do café.

— Chez Minette.

— Muito bem. Está certo. Eu mesmo vi você entrar lá. Com quem

esteve?

— Com um norte-americano. Um escritor. Adam Sabir.

— Por quê?

— Para vender o manuscrito. Eu precisava de dinheiro.

— Mostrou o manuscrito a ele?

Babael riu um riso entrecortado.

— Eu nem sequer o tenho. Nunca o vi. Nem sei se ele existe.

— ora, ora. — Bale soltou o pênis de Babel e começou a acariciar-lhe

o rosto. — Você é um bonitão. As mulheres gostam de você. A maior fraqueza

de um homem é a vaidade. — A faca fez um zigue-zague pelo lado direito

do rosto do cigano. — Agora não está tão bonito. De um lado, ainda vai. Do

outro, é um desastre. Veja, posso enfiar o dedo neste buraco.

Babel começou a gritar.

— Pare, ou marcarei o outro lado.

o cigano ficou calado. o ar passava pelo buraco no rosto.

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— Você anunciou o manuscrito. Dois interessados responderam.

Um fui eu. o outro foi Sabir. o que é que você queria nos vender por meio

milhão de euros? Um pouco de ar?

— Eu estava mentindo. Sei onde pode encontrá-lo. Eu o levarei lá.

— E onde fica esse lugar?

— Está escrito.

— Recite para mim.

Babel sacudiu negativamente a cabeça.

— Não posso.

— Vire o rosto do outro lado

— Não! Não! Não posso! Não sei ler...

— Então como sabe que está escrito?

— Me disseram.

— Quem possui esse documento? onde pode ser encontrado? —

Bale virou a cabeça para um lado. — Alguém de sua família está com ele? ou

outra pessoa? — Fez uma pausa e continuou: — Claro, naturalmente. Posso

ler em seu rosto. É alguém da família, não é? Quero saber quem é. E onde está.

— Agarrou o pênis de Babel. — Diga-me o nome.

o cigano deixou cair a cabeça. Sangue e saliva saíam pelo buraco

aberto pela faca de Bale. Que tinha feito? o que seu terror e confusão o

tinham obrigado a revelar? Agora o gadje iria encontrar Yola e também a

torturaria. os pais, já mortos, o amaldiçoariam por não haver protegido

a irmã. Seu nome ficaria conspurcado — mahrimé. Seria enterrado em uma

cova sem marca. Tudo porque sua vaidade fora mais forte do que o medo

da morte.

Será que Sabir entendera as duas palavras que ele tinha dito no bar?

Seu instinto a respeito daquele homem estaria correto?

Sabia que tinha chegado ao fim do caminho. Toda uma vida cons-

truindo castelos no ar significava que havia entendido muito bem suas próprias

fraquezas. Mais trinta segundos e sua alma seria destinada ao inferno. Somente

tinha uma possibilidade de fazer o que pretendia. Uma única chance.

Com todo o peso da cabeça, Babel levantou o queixo, girando-o para

a esquerda o máximo possível e em seguida o deixou cair para baixo, num

desesperado movimento em semicírculo para a direita.

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22Mario Reading

Bale deu um passo involuntário para trás e, estendendo a mão, agar-

rou um chumaço de cabelos do cigano. A cabeça descaiu, como se tivesse se

soltado das amarras.

— ora! — exclamou Bale, deixando-a pendente. — Impossível.

Deu alguns passos para trás, contemplou o cadáver por alguns se-

gundos e em seguida aproximou-se novamente. Estendeu a mão e cortou a

orelha do cigano com a faca. Depois tirou a venda e separou as pálpebras do

homem com o polegar. os olhos estavam baços, sem vida.

Limpou a lâmina na venda e afastou-se, sacudindo a cabeça.

5

o capitão Joris Calque, da Polícia Nacional, passou sob o nariz o

cigarro ainda apagado e em seguida, com relutância, colocou-o de volta na

cigarreira de metal, guardando-a no bolso do paletó.

— Pelo menos este cadáver está bem fresco. Acho surpreendente que

o sangue não esteja ainda escorrendo da orelha.

Calque apertou o tórax de Babel com o polegar, retirou-o e aproxi-

mou a cabeça para verificar possíveis mudanças de cor.

— Quase não há lividez. Este homem morreu há menos de uma

hora. Como chegamos aqui tão depressa, Macron?

— Foi uma camionete roubada, capitão. Está estacionada lá fora. o

proprietário denunciou o roubo e um pandore de patrulha a avistou quarenta

minutos depois. Gostaria que todos os crimes de rua fossem fáceis assim de

descobrir.

Calque retirou as luvas de proteção.

— Não entendo. Nosso assassino rapta esse cigano na rua, diante

dos passantes, em uma camionete roubada. Depois vem diretamente para cá,

amarra o cigano numa armação de cama que havia convenientemente pre-

gado na parede antes do fato, tortura-o um pouco, quebra-lhe o pescoço e

depois deixa a camionete estacionada na rua como um cartaz. Isso faz sentido

para você?

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23A s 5 2 p R o f e c i A s p e R d i d A s d e N o s t R A d A M u s

— Também temos a diferença do sangue.

— Que quer dizer com isso?

— Aqui. Na mão da vítima. Estes cortes são anteriores aos demais

ferimentos. E há sangue alheio misturado com o da própria vítima. Aparece

claramente no espectrômetro portátil.

— Então, não satisfeito com a pista deixada na camionete, nosso

assassino ainda deixa um rastro de sangue. — Calque encolheu os ombros.

— Esse homem ou é um idiota ou é um gênio.

6

A farmacêutica terminou de enfaixar a mão de Sabir.

— Deve ter sido um vidro barato; o senhor teve sorte de não precisar

de pontos. É pianista, por acaso?

— Não. Sou escritor.

— ora, então não precisa de habilidades especiais.

Sabir deu uma risada.

— Tem razão. Escrevi um livro sobre Nostradamus e agora redijo

críticas de cinema para uma cadeia de jornais regionais. Isso é praticamente

tudo. No total, uma vida desperdiçada.

A farmacêutica levou a mão à boca.

— Desculpe. Não foi isso o que quis dizer. É claro que os escritores

são gente muito capaz. Eu estava pensando em habilidade manual, do tipo em

que é necessário usar os dedos.

— Não se preocupe — disse Sabir, levantando-se e ajeitando o pa-

letó. — Nós, escribas, estamos acostumados a receber insultos. Sem dúvida

estamos na parte mais baixa da escala. Isto é, a menos que consigamos pro-

duzir best sellers ou que nos tornemos celebridades, e nesse caso subimos

para o topo como num passe de mágica. Depois, quando não somos capazes

de manter o padrão, despencamos de novo para baixo. É uma profissão emo-

cionante, não acha? — o sorriso largo disfarçou a amargura. — Quanto lhe

devo?

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24Mario Reading

— Cinquenta euros. Isto é, se o senhor puder pagar tanto.

— Ah, touché! — Sabir tirou a carteira do bolso e procurou o di-

nheiro. Ainda procurava compreender o que o cigano fizera. Por que motivo

atacaria um homem completamente desconhecido? Alguém a quem preten-

dia vender uma coisa de valor? Aquilo não fazia sentido. Alguma coisa, no

entanto, o impedia de ir à polícia, apesar do incentivo do barman e de três

ou quatro fregueses que tinham presenciado o ataque. Devia haver algo mais

naquilo tudo. E quem, ou o quê, seriam Samois e Chris? Samir entregou o

dinheiro à farmacêutica.

— A palavra Samois significa alguma coisa para a senhora?

— Samois? — repetiu ela, balançando a cabeça. — Quer dizer, sem

ser o lugar?

— Lugar? Que lugar?

— Samois-sur-Seine. Fica a uns sessenta quilômetros a sudeste. Logo

acima de Fontainebleau. o pessoal do jazz conhece bem. os ciganos cele-

bram um festival lá todos os anos, em homenagem a Django Reinhardt. o

senhor sabe, o violonista manouche.

— Manouche?

— É um dos grupos ciganos, ligado aos sin. Vêm da Alemanha e do

norte da França. Todo mundo sabe disso.

Sabir fez uma reverência exagerada.

— A senhora se esquece, madame, que eu não sou todo mundo.

Sou apenas um escritor.

7

Bale não gostava de garçons de bar. Eram uma espécie vulgar, que

vivia das fraquezas alheias. Mesmo assim, estava preparado para fazer conces-

sões a fim de obter informações. Guardou no bolso a carteira de identidade

que roubara.

— Então o cigano o atacou com um caco de vidro?

— Foi. Nunca vi coisa igual. Entrou, molhado de suor, e avançou

diretamente para o americano. Quebrou um copo e feriu a mão.

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25A s 5 2 p R o f e c i A s p e R d i d A s d e N o s t R A d A M u s

— A mão do americano?

— Não. Isso é o que foi mais estranho. o cigano feriu sua própria

mão. Só depois é que atacou o americano.

— Com o caco de vidro?

— Não. Pegou a mão dele e fez o mesmo que tinha feito com a pró-

pria. Depois puxou-lhe a mão e encostou-a na testa. Havia sangue por toda

parte.

— Só isso?

— Só.

— Não disse nada?

— Bem, ficou gritando o tempo todo: “Lembre-se destas palavras.

Lembre-se delas.”

— Que palavras?

— Bem, agora o senhor me pegou. Parecia Sam, moi e Chris. Talvez

fossem irmãos?

Bale reprimiu um sorriso de triunfo, balançando a cabeça com ar

sério.

— Isso mesmo. Irmãos.

8

o barman ergueu os braços num gesto melodramático.

— Mas acabei de falar com um de seus detetives. Contei tudo o que

sabia. Vocês querem que eu também troque suas fraldas?

— Como era o outro detetive?

— Era parecido com vocês — disse o barman, encolhendo os om-

bros. — o senhor sabe.

o capitão Calque olhou por cima do ombro para o tenente Macron.

— Parecido com ele?

— Não. Nem um pouco.

— Parecido comigo, então?

— Também não.

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26Mario Reading

Calque deu um suspiro.

— Parecia com George Clooney? ou com Woody Allen? Johnny

Halliday? ou talvez estivesse usando uma peruca?

— Não, não. Não usava peruca.

— o que mais você disse a esse homem invisível?

— ora, não precisa ser sarcástico. Estou cumprindo meu dever de

cidadão. Procurei proteger o americano...

— Com o quê?

— Bem... com meu taco de bilhar.

— onde guarda essa arma ofensiva?

— onde a guardo? onde acha que é? Atrás do bar, naturalmente.

Estamos em St.-Denis, não no Sacré-Coeur.

— Mostre.

— Veja, não agredi ninguém com ele. Somente o agitei diante do

cigano.

— E ele respondeu a essa saudação?

— Ah, merde. — o barman abriu um maço de Gitanes com o fura-

dor de gelo do bar. — Imagino que o senhor vai me prender por fumar em

lugar público, não? Vocês são todos iguais — completou, soltando uma bafo-

rada por cima do balcão.

Calque pegou um dos cigarros do barman. Bateu a ponta do cigarro

no maço e depois o passou lentamente sob o nariz.

— Não vai acender?

— Não.

— Putain. Não me diga que deixou de fumar.

— Tenho um problema cardíaco. Cada cigarro significa um dia de

vida a menos.

— Mas vale a pena.

Calque suspirou.

— Tem razão. Dê-me o fogo.

o barman ofereceu a ponta acesa de seu próprio cigarro.

— Agora me lembrei de uma coisa sobre o outro detetive.

— De que se lembrou?

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27A s 5 2 p R o f e c i A s p e R d i d A s d e N o s t R A d A M u s

— Havia uma coisa estranha nele. Muito estranha.

— E o que era?

— Bem, o senhor não vai acreditar.

Calque franziu a testa.

— Experimente.

o barman encolheu os ombros.

— Ele não tinha o branco dos olhos.

9

— o nome dele é Sabir. S-A-B-I-R. Adam Sabir. É americano. Não,

não tenho mais informações para vocês agora. Pesquise em seu computador.

Deve ser suficiente, acredite.

Achor Bale pousou o telefone, permitindo-se um breve sorriso. Isso

serviria para identificar Sabir. Quando a polícia francesa acabasse de interro-

gá-lo, Bale já estaria longe. o caos era sempre uma boa ideia. Caos e anarquia.

Quando estimuladas, as forças da lei e da ordem hesitavam.

A polícia e os funcionários públicos são treinados para pensar de

maneira linear, em termos de normas e regulamentos. Em termos de infor-

mática, o hiper era o oposto do linear. Bale se orgulhava de sua capacidade de

pensar de maneira hiper — saltando obstáculos e investigando onde achava

necessário. Sempre faria o que quisesse fazer, no momento em que quisesse.

Estendeu a mão, pegando um mapa da França e abrindo-o diante

de si.

10

Adam Sabir descobriu pela primeira vez o interesse que a Sûreté

tinha por ele ao ligar a televisão no apartamento alugado na Île St.-Louis e ver

seu próprio rosto, inteiro, fitando-o na tela de plasma.

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28Mario Reading

Por ser escritor e às vezes jornalista, precisava estar em dia com as

notícias. Ali estavam as histórias. As ideias surgiam delas. As condições do

mundo se refletiam no estado do mercado, e isso fazia parte de suas preo-

cupações. Nos anos recentes ele passara a viver de forma muito confortável,

graças a um best seller pouco convencional intitulado A vida íntima de Nos-

tradamus. No conteúdo praticamente nada havia de original, mas o título

fora um golpe genial. Agora precisava desesperadamente publicar uma conti-

nuação, caso contrário a mina de ouro secaria, seu estilo de vida desaparece-

ria e o interesse do público acabaria.

o anúncio de Samana num jornalzinho de pouca circulação, dois

dias antes, havia atraído sua atenção por ser incoerente e completamente

inesperado:

Preciso de dinheiro. Tenho uma coisa para vender. os versos

perdidos de Notre Dame [sic]. Tudo por escrito. Venda em dinheiro

ao primeiro interessado. Genuíno.

Sabir tinha dado uma risada ao ler o anúncio, obviamente ditado

por um analfabeto. Mas como poderia um analfabeto saber das quadras per-

didas de Nostradamus?

Era sabido que o vidente do século XVI havia escrito mil quadras

em verso, publicadas em vida e prevendo, com exatidão quase sobrenatural,

o desenrolar de acontecimentos futuros. Menos conhecido, no entanto, era o

fato de que cinquenta e oito dessas quadras haviam sido retiradas no último

momento, para que nunca fossem levadas ao público. Quem pudesse en-

contrar esses versos se tornaria instantaneamente milionário, pois as vendas

potenciais seriam estratosféricas.

Sabir tinha certeza de que seu editor não hesitaria em adiantar-lhe

qualquer quantia que ele pedisse para assegurar a publicação. o relato do acha-

do por si só bastaria para render centenas de milhares de dólares em direitos de

entrevistas de imprensa e garantiria manchetes em todo o mundo. Imagine-se

o que poderiam pagar as pessoas, em nossa época incerta, para poder ler as

quadras e compreender suas revelações? As possibilidades eram infinitas.

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29A s 5 2 p R o f e c i A s p e R d i d A s d e N o s t R A d A M u s

Até os acontecimentos daquele dia, Sabir cultivara alegremente a fan-

tasia de que seu manuscrito ficaria trancado em uma fortaleza literária equi-

valente ao Forte Knox, como tinha ocorrido com os livros de Harry Potter, e

somente fosse revelado às multidões impacientes no dia da publicação. Como já

estava em Paris, nada o impedia de verificar o anúncio. Nada tinha a perder.

Devido à tortura brutal e ao assassinato de um homem desco-

nhecido, a polícia procura o escritor norte-americano Adam Sabir,

a fim de interrogá-lo sobre o crime. Acredita-se que Sabir esteja em

Paris, mas aconselha-se cautela, pois pode ser perigoso. o crime é

tão grave que a Polícia Nacional considera prioritária a identifi-

cação do criminoso, o qual, pelo que se imagina, poderá estar se

preparando para atacar novamente.

— oh, meu Deus! — De pé no centro da sala, Sabir olhava o televisor

como se ele de repente fosse se soltar e caminhar em sua direção. Uma antiga

foto sua, usada para publicidade, tomava toda a superfície da tela, exageran-

do sua fisionomia de tal forma que ele próprio quase acreditou que se tratava

de um criminoso procurado pela polícia.

Em seguida apareceu uma máscara mortuária de Samana, com o le-

treiro “Sabe quem é este homem?”, mostrando a orelha e a maçã do rosto

dilaceradas e os olhos devidamente abertos, como se estivesse julgando os

milhões de telespectadores confortavelmente instalados em seus sofás, co-

mendo batatas fritas, momentaneamente reconfortados por ver que o rosto

apresentado na tela era o de outra pessoa e não o deles próprios.

— Não é possível. Ele está banhado em meu sangue.

Sabir deixou-se cair sentado em uma cadeira, de boca aberta, com

o latejar da mão estranhamente repetindo o ritmo da música eletrônica que

acompanhava as últimas manchetes do noticiário vespertino.

11

Precisou de dez frenéticos minutos para recolher seus pertences

— passaporte, dinheiro, mapas, roupas e cartões de crédito. No último mo-

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30Mario Reading

mento ainda vasculhou a escrivaninha em busca de algo que por acaso ti-

vesse esquecido.

o apartamento tinha sido emprestado por seu agente inglês, John Tone,

que na ocasião passava férias no Caribe. o carro também pertencia ao agente e,

portanto, não era suscetível de identificação — anonimato que pelo menos de-

veria ser suficiente até que pudesse sair de Paris e ter tempo para pensar.

Meteu às pressas no bolso a carteira de motorista em nome de Tone

e alguns euros que encontrou em um estojo de filme. A carteira não tinha

foto e poderia ser-lhe útil. Levou também uma conta de luz e os documentos

do carro.

Se a polícia o detivesse ele simplesmente mostraria ignorância —

estava começando uma viagem de pesquisa a St.-Rémy-de-Provence, lugar

de nascimento de Nostradamus. Não tinha ouvido o rádio nem assistido à

televisão. Não sabia que estava sendo procurado pela polícia.

Se tivesse sorte, poderia chegar até a fronteira da Suíça e passar sem

problemas. Nem sempre verificavam os passaportes e a Suíça ainda não era

membro da União Europeia. Se conseguisse chegar à embaixada dos Estados

Unidos em Berna, estaria a salvo. Caso os suíços o extraditassem, seria para os

Estados Unidos e não para a França.

Sabir tinha ouvido de seus colegas algumas histórias sobre a polícia

francesa. Se fosse agarrado, estaria perdido. Era provável que se passassem

meses, e até mesmo anos, para que o caso percorresse o pesadelo burocrático

do sistema judiciário francês.

Parou no primeiro caixa automático que encontrou, deixando o

motor funcionando. Tinha de arriscar e pegar algum dinheiro. Meteu o pri-

meiro cartão na abertura e começou a rezar. Até ali, tudo bem. Tentaria mil

euros. Assim, caso o segundo cartão falhasse, ainda poderia pagar os pedágios

com dinheiro, sem deixar rastros, e conseguir algo para comer.

Do outro lado da rua, um jovem com capuz na cabeça o observava.

Meu Deus, não era hora de ser assaltado, ainda mais com as chaves no Audi

novo em folha, com o motor ligado.

Pôs o dinheiro no bolso e tentou o segundo cartão. o rapaz estava

se aproximando, olhando-o daquela maneira especial dos jovens criminosos.

Cinquenta metros. Trinta. Sabir apertou os botões dos números.

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31A s 5 2 p R o f e c i A s p e R d i d A s d e N o s t R A d A M u s

A máquina não devolveu o cartão. Já estava sendo seguido.

Sabir correu para o carro. o jovem tinha começado a correr e estava

a cinco metros de distância. Sabir se atirou para dentro do veículo e somente

então se lembrou de que era um carro inglês, com a direção do lado direito.

Saltou por cima do câmbio e perdeu alguns preciosos instantes procurando a

chave de bloqueio.

A mão do jovem agarrou a porta.

Sabir puxou a alavanca da mudança automática para marcha à ré e

o carro saltou para trás, desequilibrando o rapaz por um instante. Continuou

recuando pela rua, com um pé no assento do passageiro e a mão livre na

alavanca de marcha.

Ironicamente, viu-se pensando não no assaltante — para ele, a pri-

meira experiência desse tipo — e sim no fato de que, por haver sido obrigado

a deixar para trás o cartão, a polícia teria agora suas impressões digitais e o

local onde ele se encontrava exatamente às 10h42 da noite, numa noite clara

e cheia de estrelas de sábado, na zona central de Paris.

12

Vinte minutos depois, já fora de Paris e a cinco minutos da encruzi-

lhada para Evry, Sabir viu um cartaz na estrada: Fontainebleau ficava a trinta

quilômetros e a somente dez de Samois, rio abaixo. Assim dissera a farmacêu-

tica. Tinham até mesmo conversado brevemente sobre Henrique II, Catarina

de Médici e Napoleão, que aparentemente se despedira de sua Velha Guarda

naquele lugar, antes de seguir para o exílio em Elba. Era melhor desprezar a

autoestrada e seguir para Samois.

Haveria dispositivos de reconhecimento de placas de carros na au-

toestrada? Ele já tinha ouvido falar nisso. E se já tivessem descoberto que

ele se hospedara no apartamento de Tone? Não demoraria muito para que

desconfiassem que saíra no Audi do amigo. Se fosse assim, estaria perdido.

Bastaria mandar alguns carros da polícia à estação do pedágio para fisgá-lo

como um peixe.

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32Mario Reading

Se conseguisse receber as quadras dessa pessoa chamada Chris,

pelo menos poderia convencer a polícia de que era um escritor sério e

não um assassino louco. E por que motivo a morte do cigano teria algo a

ver com os versos de Nostradamus? Provavelmente tinha sido apenas uma

discussão sobre dinheiro ou mulher e ele, Sabir, simplesmente surgira no

meio da história. Pensando assim, tudo tomava um aspecto bastante mais

benevolente.

Fosse como fosse, tinha um álibi. A farmacêutica sem dúvida o re-

conheceria. Tinha contado a ela sobre o comportamento do cigano. Simples-

mente não fazia sentido imaginar que ele o tivesse torturado com a mão ma-

chucada como estava. A polícia entenderia isso, certamente. ou iriam pensar

que tinha seguido o cigano e se vingado dele depois da briga no bar?

Sabir balançou a cabeça. Uma coisa era certa: precisava descansar. Se

continuasse daquele jeito, acabaria tendo alucinações.

Esforçando-se por parar de pensar e começar a agir, saiu da estrada,

entrando em uma trilha no bosque, a apenas dois quilômetros da pequena

vila de Samois.

13

— Ele escapou da rede.

— Que quer dizer com isso? Como sabe?

Calque franziu a testa. Macron sem dúvida estava progredindo, mas

como era possível esperar que um marselhês de dois metros de altura tivesse

imaginação?

— Verificamos todos os hotéis, hospedarias e agências de locação.

Quando ele chegou aqui, não tinha motivo para ocultar seu nome. Não sa-

bia que ia matar o cigano. É um americano filho de francesa, lembre-se. Fala

nossa língua perfeitamente, pelo menos é o que afirma em seu website. ou

foi para a casa de algum amigo, ou está escondido. Acho que está mesmo es-

condido. Na minha experiência, é raro que um amigo se disponha a hospedar

um torturador.

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33A s 5 2 p R o f e c i A s p e R d i d A s d e N o s t R A d A M u s

— E o homem que telefonou fazendo-se passar por ele?

— Se encontrarmos Sabir, nós o encontraremos também.

— Então vamos vigiar Samois? Procurar essa pessoa chamada Chris?

Calque sorriu.

— Vamos dar um doce para a criança.

14

A primeira coisa que Sabir viu foi um cão de caça que havia se des-

garrado da matilha no dia anterior, cruzando o caminho diante de si. Abaixo,

cortado pelas árvores, o rio Sena brilhava ao sol da manhã.

Desceu do carro e esticou as pernas. Cinco horas de sono. Nada mal,

levando em conta as circunstâncias. Na noite anterior ele se sentira nervoso

e agitado, mas agora estava mais calmo, menos cheio de pânico com aquela

trapalhada. Tinha sido prudente ao sair da autoestrada e tomar o caminho

para Samois, e mais ainda ao entrar no bosque para dormir. Talvez a polícia

francesa não o achasse assim tão facilmente. Mesmo assim, não valia a pena

correr riscos desnecessários.

Cinquenta metros adiante, com as janelas do carro abertas, viu fu-

maça de lenha e sentiu o cheiro inconfundível de toucinho assado. Inicial-

mente sentiu-se tentado a deixar aquilo de lado e prosseguir em seu caminho,

mas a fome prevaleceu. Acontecesse o que acontecesse, precisava comer. Por

que não ali? Não havia máquinas fotográficas nem policiais.

Em um instante convenceu-se de que seria perfeitamente sensato

oferecer dinheiro por uma refeição, diretamente a quem estava cozinhando.

os desconhecidos no acampamento poderiam até mesmo indicar-lhe como

chegar a Chris.

Saindo do carro, Sabir entrou no bosque a pé, guiado pelo olfato. Já

sentia o estômago adiantando-se na direção de onde vinha o cheiro de tou-

cinho. Talvez, num acampamento no bosque, aquelas pessoas não tivessem

sabido das últimas notícias pela TV ou pelos jornais.

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Ficou parado por algum tempo na beira da clareira, observando. Era

um acampamento de ciganos. Muito bem. Por sorte, tinha chegado ali. De-

veria ter imaginado que ninguém estaria normalmente fazendo piquenique

numa floresta do norte da França no início de maio. A época de acampar era

agosto; em outras ocasiões os franceses ficariam num hotel com a família,

jantando confortavelmente.

Uma das mulheres o viu e alertou o marido. Um bando de crianças

correu na direção dele e depois parou, rindo. Dois outros homens abandona-

ram o que estavam fazendo e avançaram para ele. Sabir ergueu a mão, numa

saudação.

A mão foi violentamente puxada por alguém atrás dele, que lhe do-

brou o braço por trás das costas. Sentiu-se forçado a ajoelhar-se.

Imediatamente antes de perder os sentidos, notou a antena de tele-

visão em um dos furgões.

15

— Você tem direito, Yola. Faça o que tem de ser feito.

A mulher estava de pé diante dele. Um homem mais velho colocou

uma faca nas mãos dela e impeliu-a para adiante. Sabir tentou dizer alguma

coisa mas percebeu que estava amordaçado.

— É isso mesmo. Corte os bagos dele. Não, primeiro os olhos.

Da porta de um dos furgões um coro de mulheres idosas a estimu-

lava. Sabir olhou em volta. Além da mulher que empunhava a faca, estava

completamente cercado por homens. Tentou mover os braços, mas estavam

firmemente amarrados atrás das costas. os tornozelos também tinham sido

amarrados e uma almofada fora colocada entre seus joelhos.

Um dos homens o endireitou e puxou-lhe as calças com violência

para abaixo dos quadris.

— Pronto. Agora você já pode ver o alvo.

— Levante a bunda dele, quando estiver cortando. — As velhas se

acotovelavam para ver melhor.

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35A s 5 2 p R o f e c i A s p e R d i d A s d e N o s t R A d A M u s

A mulher se aproximou mais, apontando a faca.

Sabir começou a sacudir a cabeça, numa tentativa infrutífera de li-

vrar-se da mordaça.

— Vamos. Corte. Lembre-se do que ele fez com Babel.

De dentro da boca tapada Sabir tratou de emitir algum som, de olhos

fitos na mulher, como se pudesse de alguma forma forçá-la a não fazer o que

pretendia.

outro homem agarrou os testículos de Sabir, puxando-os para a

frente, com apenas uma fina membrana para ser cortada. Bastaria um golpe

da faca.

Sabir observava a mulher. Sabia instintivamente que ela era sua úni-

ca chance. Se perdesse a concentração e afastasse os olhos, estaria perdido.

Sem compreender inteiramente o motivo, piscou um olho para ela.

A piscadela teve o efeito de um tapa. Ela estendeu a mão e arrancou

a fita adesiva que o amordaçava.

— Por que fez aquilo? Por que mutilou meu irmão? Que motivo

tinha para isso?

Sabir inspirou profundamente por entre os lábios inchados.

— Chris. Chris. Ele me disse que procurasse Chris.

A mulher deu um passo para trás. o homem que lhe segurava os

testículos largou-os e curvou-se para ele, com a cabeça inclinada para o lado,

como um cão perdigueiro.

— Que foi que você disse?

— Seu irmão quebrou um copo. Cortou a mão com os cacos, e de-

pois a minha. Depois juntou nossas mãos e encostou a palma da minha mão

na testa. Em seguida me disse que viesse a Samois e procurasse Chris. Quem

o matou não fui eu, mas agora sei que ele estava sendo seguido. Por favor,

acredite em mim. Se não fosse assim, por que motivo eu viria aqui?

— Mas a polícia está procurando você. Nós vimos na televisão. Re-

conhecemos seu rosto.

— Meu sangue estava na mão dele.

o homem empurrou Sabir para um lado. Por um instante o escritor

achou que ia cortar-lhe a garganta. Em seguida sentiu que ele desfazia as ata-

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36Mario Reading

duras da mão e examinava os cortes. ouviu-os falando entre si numa língua

que não entendia.

— Levante-se. Vista as calças.

As cordas que o amarravam estavam sendo cortadas.

Um deles o segurou.

— Diga. Quem é Chris?

— Um de vocês, imagino.

Alguns dos homens mais velhos riram.

o homem que empunhava a faca piscou para ele, numa repetição

inconsciente da piscadela que salvara os testículos de Sabir, dois breves mi-

nutos antes.

— Não se preocupe. Você já vai conhecê-lo. Com ou sem os colhões,

como preferir.

16

Pelo menos estão me dando de comer, pensou Sabir. Sem dúvida é

mais difícil matar alguém a quem se oferece uma refeição.

Sorveu a última colherada do guisado e estendeu as mãos amarradas

para pegar a xícara de café.

— A carne estava gostosa.

A velha concordou com a cabeça. Enxugou as mãos nas saias am-

plas, mas Sabir notou que ela não tinha comido.

— Limpo. Sim, bem limpo.

— Limpo?

— os espinhos. os porcos-espinhos são animais muito limpos. Não

são mahrimé, como os cães — completou, cuspindo por cima do ombro.

— Ah, vocês comem cachorros? — Sabir já estranhava a ideia de

comer porco-espinho. Sentiu o início de uma náusea.

— Não, não — disse ela, rindo às gargalhadas e fazendo um sinal

para uma das amigas. — Cachorro! o gadje pensa que comemos cachorro.

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37A s 5 2 p R o f e c i A s p e R d i d A s d e N o s t R A d A M u s

Um homem entrou correndo na clareira e foi imediatamente ro-

deado pelas crianças. Falou com algumas delas e logo se afastou para alertar os

companheiros.

Sabir observou com atenção, vendo caixas e outros objetos sendo

guardados sob os furgões e dentro deles. Dois homens interromperam a tarefa

e se aproximaram dele.

— Que é isso? Que está acontecendo?

Ambos o ergueram juntos, de pernas abertas, levando-o em direção

a uma caixa de madeira.

— Meu Deus, vocês não vão me colocar aí dentro? Tenho claustrofo-

bia. É verdade! Não me sinto bem em lugares apertados. Por favor, ponham-

me em um dos furgões.

os homens o largaram dentro da caixa. Um deles tirou do bolso um

lenço sujo e meteu-o na boca de Sabir. Em seguida os dois empurraram-lhe a

cabeça para baixo e tamparam a caixa.

17

o capitão Calque observou o grupo mesclado que tinha diante de si.

Sabia que aquela gente ia lhe dar problemas. Tinha certeza disso. os ciganos

nunca davam informações à polícia, mesmo quando um de seus companhei-

ros era a vítima de um crime, como naquele caso. Sempre queriam fazer jus-

tiça pelas próprias mãos.

Fez um gesto para Macron. Este mostrou a foto de Sabir.

— Algum de vocês viu este homem?

Nada. Nem um sinal de reconhecimento.

— Alguém sabe quem ele é?

— É um assassino.

Calque fechou os olhos. Pelo menos alguém tinha falado com ele,

tinha feito um comentário que lhe era dirigido.

— Não necessariamente. Quanto mais investigamos, mais nos

convencemos de que pode ter havido outra pessoa envolvida nesse crime.

Alguém que ainda não conseguimos identificar.

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38Mario Reading

— Quando vocês vão liberar o corpo de meu irmão para podermos

enterrá-lo?

os homens abriram alas para uma jovem, que surgira por trás do

grupo compacto de mulheres e crianças e se encaminhava para a frente.

— Seu irmão?

— Babel Samana.

Calque fez um sinal para Macron, que começou a escrever vigorosa-

mente em um pequeno caderno de notas preto.

— E seu nome?

— Yola. Yola Samana.

— E seus pais?

— Já morreram.

— Tem outros parentes?

Yola encolheu os ombros, mostrando com um gesto o mar de rostos

à sua volta.

— Todos?

Ela concordou com a cabeça.

— Então, o que ele estava fazendo em Paris?

Ela encolheu novamente os ombros.

— Alguém sabe?

os ombros de todo o grupo se encolheram.

Por um instante Calque sentiu vontade de rir, mas o fato de que

provavelmente seria linchado se o fizesse o impediu de manifestar emoção.

— Então alguém pode me dizer alguma coisa sobre Samana? Quem

ele foi procurar, além daquele homem chamado Sabir, naturalmente? E qual

foi o motivo da ida dele a St-Denis?

Silêncio.

Calque esperou. Trinta anos de experiência o haviam ensinado

quando devia insistir e quando não.

— Quando vocês vão entregá-lo a nós?

Calque deu um falso suspiro.

— Não sei exatamente. Podemos precisar fazer mais alguns testes

periciais.

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39A s 5 2 p R o f e c i A s p e R d i d A s d e N o s t R A d A M u s

A jovem se voltou para um dos ciganos mais idosos.

— Precisamos enterrá-lo dentro de três dias.

o cigano encarou Calque.

— Vai entregar o corpo?

— Já disse que não. Por enquanto, não.

— Então pode nos dar um pouco dos cabelos dele?

— o quê?

— Se nos der alguns cabelos, podemos enterrá-los, junto com algu-

mas coisas que pertenceram a ele. Isso tem de ser feito dentro de três dias.

Depois, pode fazer o que quiser com o cadáver.

— Isso não pode ser verdade.

— Vai fazer o que pedimos?

— Dar a vocês alguns cabelos?

— Sim.

Calque era capaz de sentir os olhos de Macron fixos em sua nuca.

— Está bem. Posso dar-lhes um pouco dos cabelos dele. Mande

um de vocês a este endereço... — Calque entregou um cartão ao cigano. —

Amanhã. Então poderão identificá-lo formalmente e cortar-lhe os cabelos

ao mesmo tempo.

— Eu vou — disse a irmã de Samana.

— Muito bem. — Calque ficou de pé no centro da clareira, sem saber

o que fazer. Aquele lugar era completamente desconhecido para ele e para

seu entendimento do que seria um grupo normal, como se estivesse em uma

floresta tropical discutindo ética com índios de tribos da América.

— Se aquele americano, Sabir, entrar em contato com vocês, avisem-

me. Meu telefone está no cartão.

olhou em volta do grupo.

— Então, está combinado.

18

Sabir estava quase delirando quando o tiraram da caixa de madeira.

Mais tarde, ao tentar reviver as emoções que sentira ao ser colocado à força na

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40Mario Reading

caixa, percebeu que sua mente as bloqueara completamente. Presumiu que

fosse uma forma de autoproteção.

Não havia mentido ao dizer que sofria de claustrofobia. Muitos anos

antes, quando criança, tinha sido vítima de uma brincadeira de mau gosto

de alguns colegas de colégio, que o trancaram na mala do carro de um dos

professores. Naquela ocasião ele também perdera os sentidos. Três horas de-

pois, o professor o encontrara, semimorto. o fato causou grande celeuma e

foi noticiado em todos os jornais locais.

Sabir sempre afirmou não se lembrar de quem tinham sido os auto-

res da brincadeira, mas vingara-se quase dez anos depois. Ao tornar-se jorna-

lista, passou a ser capaz de fazer insinuações devastadoras, e utilizou ao má-

ximo essa capacidade. A vingança, no entanto, não o curou da claustrofobia;

ao contrário, esta piorara nos anos recentes.

Sentia-se nauseado naquele momento; a mão latejava e ele pen-

sou que havia contraído uma infecção durante a noite. As feridas reabri-

ram e, como não havia como limpá-las antes de refazer as ataduras, presu-

miu que tivessem atraído algumas bactérias em algum momento e que o

encarceramento na caixa agravara o problema. A cabeça pendeu para trás

e ele tentou erguer a mão, sem conseguir; na verdade, todo o corpo lhe

parecia fora de controle. Sentiu-se carregado a um lugar onde havia som-

bra e em seguida degraus acima até um cômodo onde a luz que passava

por vidraças coloridas lhe iluminava o rosto. Sua última lembrança foi a

de um par de olhos castanho-escuros que o fitavam de forma penetrante,

como se a pessoa em questão pretendesse mergulhar nas profundezas de

sua alma.

===

Acordou com uma dor de cabeça alucinante. o ar era abafado e ele

tinha dificuldade para respirar, como se três quartos de seus pulmões tives-

sem se enchido de espuma enquanto dormia. olhou para a mão. o curativo

tinha sido refeito. Procurou erguê-la, mas conseguiu apenas um tremor insig-

nificante e teve de deixá-la cair desconsoladamente na cama.

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41A s 5 2 p R o f e c i A s p e R d i d A s d e N o s t R A d A M u s

Percebeu que estava dentro de uma van. A luz do dia se filtrava pelo

vidro colorido a seu lado. Tentou levantar a cabeça para ver além da vidraça

mas o esforço foi demasiado. Deixou-se cair novamente no travesseiro. Nun-

ca antes havia sentido tanta falta de controle de seu próprio corpo; era como

se seus membros tivessem se separado dele e não houvesse maneira de recu-

perá-los.

Bem. Pelo menos não estava morto, nem em um hospital da polícia.

Era preciso ter pensamento positivo.

===

Ao acordar novamente, já era noite. Pouco antes de abrir os olhos,

percebeu que havia alguém a seu lado. Fingiu dormir e deixou a cabeça vol-

tar-se para um lado. Entreabrindo as pálpebras tentou identificar a pessoa

sentada junto a si, no escuro, sem que ela percebesse, pois tinha certeza de

que se tratava de uma mulher. Havia um forte odor de patchuli ou de alguma

outra essência mais difícil de identificar, mas que lembrava vagamente o de

massa de farinha de trigo. Talvez a pessoa estivesse fazendo pão.

Abriu mais um pouco os olhos. A irmã de Samana estava sentada

em uma cadeira ao lado da cama, curvada para a frente, como se estivesse

rezando. Em seu colo, porém, havia o brilho de uma faca.

— Estava pensando se devia matar você.

Sabir engoliu em seco. Procurou manter-se calmo, mas ainda tinha

dificuldade para inspirar e respirava ofegantemente, desconfortavelmente,

como uma mulher em trabalho de parto.

— Vai me matar, então? É melhor andar depressa. É claro que não

posso me defender, como quando vocês me amarraram e iam me castrar.

Você não corre risco. Nem consigo levantar a mão.

— Assim como meu irmão.

— Não matei seu irmão. Quantas vezes tenho de repetir isso? Estive

com ele uma só vez. Ele me atacou. Só Deus sabe o motivo. Depois me disse

que viesse aqui.

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42Mario Reading

— Por que piscou o olho para mim daquele jeito?

— Era a única forma que eu tinha para mostrar minha inocência.

— Mas aquilo me deu raiva. Quase matei você ali.

— Eu tive de arriscar. Não havia outra maneira.

Ela ficou sentada, pensando.

— Foi você quem fez o curativo em minha mão?

— Fui.

— É uma maneira estranha de tratar alguém que você quer matar.

— Eu não disse que queria matar você. Só disse que estava pensando

nisso.

— E que iria fazer comigo? Com meu cadáver?

— os homens esquartejariam você, como um porco. Depois o

cremariam.

Houve um silêncio desagradável. Sabir começou a imaginar como

teria chegado àquela situação. E por que motivo?

— Há quanto tempo estou aqui?

— Três dias.

— Meu Deus. — Estendeu o braço e levantou a mão ferida com a

outra. — Que foi que aconteceu comigo? Qual é o problema ainda?

— Gangrena. Tratei de você com ervas e cataplasma de caulim. A

infecção tinha atingido seus pulmões. Mas você vai ficar bom.

— Tem certeza? — Sabir percebeu imediatamente que ela não havia

entendido o sarcasmo.

— Falei com a farmacêutica.

— Quem?

— A mulher que tratou de seu ferimento. Vi nos jornais o lugar

onde ela trabalha. Fui a Paris para pegar um pouco dos cabelos de meu irmão.

Agora vamos enterrá-lo.

— Que foi que a mulher contou?

— Que você disse a verdade.

— Então, quem você acha que matou seu irmão?

— Você, ou outro homem.

— Ainda acha que fui eu?

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43A s 5 2 p R o f e c i A s p e R d i d A s d e N o s t R A d A M u s

— Talvez o outro homem. Mas você estava envolvido.

— Então por que não me mata logo e acaba com isso? E depois me

esquarteja como um leitão?

— Não tenha tanta pressa — disse ela, guardando a faca na roupa.

— Você vai ver.

19

Mais tarde, ainda na mesma noite, Sabir foi ajudado a sair da van

e levado para a clareira. os homens tinham preparado uma maca onde ele

foi colocado e transportado para o interior do bosque, seguindo uma trilha

iluminada pelo luar.

A irmã de Samana caminhava a seu lado, como se ele lhe pertences-

se ou tivesse interesse especial em sua presença.

Provavelmente tem, pensou Sabir. Estando eu aqui ela não precisa

pensar.

Um esquilo atravessou a trilha à frente deles e as mulheres começa-

ram a falar animadamente entre si.

— Que estão dizendo?

— Um esquilo é bom presságio.

— E um mau, o que é?

Ela o olhou por um instante e chegou à conclusão de que ele não

tivera a intenção de ser arrogante.

— Uma coruja — respondeu, abaixando a voz. — Uma cobra. o pior

é um rato.

— Por quê? — Sabir percebeu que também abaixara a voz.

— São mahrimé. Bichos sujos. É melhor não os mencionar.

— Ah, bem.

Nessa altura já tinham chegado a outra clareira, adornada com flo-

res e velas.

— Então vamos enterrar seu irmão?

— Vamos.

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44Mario Reading

— Mas vocês não têm o cadáver dele. Só os cabelos?

— Shhh. Não falamos mais nele. Nem repetimos seu nome.

— o quê?

— os membros mais próximos da família não falam de seus mortos.

Só outras pessoas fazem isso. Durante todo o mês o nome dele não vai ser

mencionado entre nós.

Um homem idoso se aproximou de Yola e entregou-lhe uma bande-

ja onde havia um maço de notas, um pente, um lenço, um pequeno espelho,

utensílios de barbear, uma faca, um baralho e uma seringa. outro homem

trouxe comida, embrulhada em papel encerado. Mais outro trouxe vinho,

água e grãos de café.

Dois ciganos cavaram um pequeno buraco próximo a um carvalho.

Yola foi três vezes até o lugar, colocando cada coisa cuidadosamente, uma

sobre a outra. Algumas crianças a seguiram e espalharam grãos de milho na

pilha. Em seguida os homens encheram a cova de terra.

Naquele instante as mulheres começaram a emitir gemidos. os ca-

belos da nuca de Sabir se arrepiaram, atavicamente.

Yola deixou-se cair de joelhos diante do túmulo do irmão e come-

çou a bater no peito com o punho cheio de terra. Algumas das mulheres perto

dela entraram em transe convulso, revirando os olhos para o alto.

Quatro homens entraram na clareira, carregando juntos uma pedra

grande, que foi colocada sobre o túmulo. outros trouxeram as roupas e mais

pertences dele, que foram postos sobre a pedra e queimados.

os gemidos e lamentos das mulheres aumentaram de intensidade.

Alguns dos homens sorviam bebidas alcoólicas em pequenos frascos de vidro.

Yola tinha rasgado a blusa e riscava o peito e a barriga com a terra e o vinho

das libações fúnebres.

Sabir sentiu-se miraculosamente desligado das realidades do século

XXI. A cena que se desenrolava na clareira assumira todos os aspectos de uma

bacanal demente e a luz das velas e fogueiras iluminava a parte de baixo das

árvores, refletindo os rostos em transe, como num quadro de Ensor.

o homem que havia agarrado os testículos de Sabir para serem

decepados com a faca aproximou-se e ofereceu-lhe bebida em uma tigela de

cerâmica.

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45A s 5 2 p R o f e c i A s p e R d i d A s d e N o s t R A d A M u s

— Beba. Isso é para afastar os mulés.

— Mulés?

o homem encolheu os ombros.

— Estão todos em volta da clareira. São os maus espíritos. Querem

entrar. Querem pegar — ele hesitou. — Você sabe.

Sabir engoliu a bebida, sentindo o calor do álcool queimar-lhe a

garganta. Sem saber por quê, viu-se concordando.

— Sei.

20

Achor Bale observava a cerimônia fúnebre do lugar seguro que en-

contrara, por trás de uma pequena moita. Vestia roupa de camuflagem bas-

tante gasta, boné militar de legionário com um pano quadriculado na nuca.

Mesmo a um metro de distância não era possível distingui-lo da vegetação à

sua volta.

Pela primeira vez em três dias teve certeza a respeito da moça. Ante-

riormente não tinha podido aproximar-se suficientemente do acampamento

principal para poder verificar com exatidão. Não tinha sido capaz de identifi-

cá-la satisfatoriamente, mesmo quando ela saíra do acampamento. Agora, no

entanto, a moça se revelara claramente, por meio de seu comportamento na

cerimônia fúnebre pela alma imortal do irmão.

A mente de Bale voltou ao quarto onde Samana tinha morrido. Du-

rante todos os muitos anos de experiência tanto fora quanto dentro da Legião

Estrangeira, ele nunca tinha visto ninguém realizar a aparentemente impos-

sível façanha de suicidar-se estando completamente imobilizado. Aquele an-

tigo truque de engolir a própria língua apresentava insuperáveis dificuldades

físicas e nenhum homem, sabia tanto quanto ele, seria capaz de morrer sim-

plesmente por um ato de vontade. Mas usar a gravidade daquele jeito, e com

absoluta certeza? Era preciso muita coragem. Nesse caso, por que motivo ele

o teria feito? A quem Samana estaria protegendo?

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46Mario Reading

Focalizou novamente o binóculo com visor noturno no rosto da

moça. Seria a esposa? Não. Achou que não. Irmã? Era provável. Mas seria im-

possível afirmar com aquela luz e com as contorções na fisionomia dela.

Voltou o binóculo para Sabir. Ali estava um homem que sabia como

fazer-se indispensável. Inicialmente, ao ter certeza da presença dele no acam-

pamento, Bale se sentiu tentado a dar um de seus traiçoeiros telefonemas à

polícia. Assim o retiraria permanentemente do cenário sem recorrer à vio-

lência desnecessária. Mas o norte-americano estava tão alheio a sua pre-

sença, e portanto tão fácil de ser seguido, que aquilo parecia ser quase um

desperdício.

Sabia que a moça daria muito mais trabalho. Pertencia a uma socie-

dade específica e estreitamente unida, que não se aventurava facilmente para

o exterior. Porém, estando ligada a Sabir, cheio de boas intenções, tudo se

tornaria intrinsecamente mais simples.

Portanto, ele observaria e esperaria. Seu momento chegaria, como

sempre.

21

— Você é capaz de caminhar?

— Sim, creio que consigo.

— Então venha comigo.

Sabir deixou que a irmã de Samana o ajudasse a levantar-se. Notou

que, embora ela não se preocupasse quando o tocava com as mãos, fazia

questão de evitar contato com as roupas dele.

— Por que está fazendo isso?

— Fazendo o quê?

— Afastando-se de mim quando eu tropeço, como se tivesse medo

de que seja algum doente.

— Não quero poluir você.

— Poluir-me?

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47A s 5 2 p R o f e c i A s p e R d i d A s d e N o s t R A d A M u s

Ela concordou com a cabeça.

— As mulheres ciganas não tocam em homens que não sejam seus

maridos, irmãos ou filhos.

— Mas por que isso?

— Porque há épocas em que somos mahrimé. Até que eu venha a ser

mãe — e também em certos dias do mês —, estou poluída. Eu emporcalharia

você.

Sacudindo a cabeça, Sabir se deixou orientar até a entrada da van.

— É por isso que você sempre caminha atrás de mim?

Ela assentiu.

Naquela altura, Sabir se sentia quase agradecido pelas perversas e

misteriosas atenções que recebia no acampamento, pois não apenas tinha

sido ocultado à polícia francesa e tratado de uma afecção que poderia tê-lo

matado de septicemia, mas além disso os ciganos também haviam revolu-

cionado suas ideias sobre comportamento sensato e racional. Todo mundo

precisava passar algum tempo num acampamento de ciganos, pensou Sabir

sarcasticamente, para livrar-se da autossatisfação burguesa.

Por conseguinte, resignara-se a somente ficar sabendo o que eles

desejassem, quando e onde considerassem necessário informá-lo. Apoiando-

se na tosca balaustrada de madeira do lado de fora do veículo, percebeu que

aquele momento havia chegado.

===

Yola indicou a Sabir que deveria acompanhá-la até um grupo de ho-

mens sentados em tamboretes próximo à periferia do acampamento. À fren-

te do grupo havia um homem extraordinariamente gordo, de cabeça muito

grande, bigode abundante, dentes da frente capeados de ouro e um anel em

cada dedo, acomodado em uma cadeira muito maior do que as demais. Vestia

um terno amplo, tipo jaquetão, de estilo tradicional, com a visível diferença

de que ostentava uma série de listras roxas e verdes na trama do tecido e la-

pelas de largura dupla.

— Quem diabo é este?

— o Bulibasha. É o nosso líder. Hoje ele será o Kristinori.

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48Mario Reading

— Yola, pelo amor de Deus...

Ela parou, ainda atrás dele e um pouco à direita.

— Quer saber se é o Chris que você procurava? o que meu irmão

mencionou? Pois é isso.

— o quê? Ele é Chris? o homem gordo? o chefe?

— Não. Realizamos um Kriss quando é preciso resolver alguma coi-

sa muito importante. Há um aviso e todos comparecem, vindos de muitos

quilômetros de distância. Alguém é eleito Kristinori, ou juiz do Kriss. Nos

casos importantes, quem assume essa função é o Bulibasha. Há também dois

outros juízes — um para o acusador e outro para o acusado, escolhidos dentre

os phuro e os phuro-dai. os idosos.

— E esse é um caso importante?

— Importante? Para você é de vida ou morte.

22

Sabir se viu guiado, com certa polidez formal, a um banco colocado

no chão, diante e abaixo do Bulibasha. Yola sentou-se no chão atrás dele,

com as pernas cruzadas sob o corpo. o norte-americano presumiu que ela

tinha ocupado aquele lugar a fim de traduzir para ele o que ocorreria, pois era

a única mulher na assembleia.

As demais mulheres e crianças estavam reunidas atrás e à direita do

Bulibasha, na posição que Yola sempre tomava em relação a ele. Sabir notou

também que as mulheres usavam suas melhores roupas e que as mais velhas e

casadas tinham lenços de cabeça e enorme quantidade de joias de ouro. Coisa

pouco comum, estavam maquiadas com muito rímel em volta dos olhos, e

os cabelos, sob os lenços, não estavam soltos, e sim penteados em tranças

e cachos complexos. Algumas tinham henna nas mãos e algumas das avós

fumavam.

o Bulibasha ergueu uma das mãos, pedindo silêncio, mas todos con-

tinuaram a falar. Parecia que o debate a respeito de Sabir já se iniciara.

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49A s 5 2 p R o f e c i A s p e R d i d A s d e N o s t R A d A M u s

Com um gesto impaciente, o Bulibasha mandou que o homem que

ameaçara cortar os testículos de Sabir se adiantasse.

— Esse é meu primo. Vai falar contra você.

— oh.

— Ele gosta de você. Não é uma coisa pessoal, mas tem de fazê-lo

em nome da família.

— Imagino que me cortará em pedaços como um porco se o resul-

tado for contra mim...

Sabir procurou fingir que gracejava, mas a voz falhou no meio da

frase, mostrando sua preocupação.

— Sim, eles matarão você.

— E se der certo?

— Que quer dizer com isso?

— Que acontece se o resultado for a meu favor? — Nessa altura, Sa-

bir já estava transpirando bastante.

— Nesse caso, você passará a ser meu irmão. Ficará responsável por

mim. Por minha virgindade e por meu casamento. Tomará o lugar de meu

irmão em tudo.

— Não entendo.

Yola deu um suspiro de impaciência, abaixando a voz até um leve

murmúrio.

— A única razão pela qual você está vivo até agora é que meu irmão

fez de você seu phral. Irmão de sangue dele. Também foi ele quem disse a

você que viesse aqui procurar um Kriss. Foi o que você fez. Portanto, nós so-

mente podemos cumprir o último desejo dele. Um homem que pede alguma

coisa ao morrer tem direito a consegui-la. Meu irmão sabia que ia morrer

quando fez aquilo com você.

— Como é possível que você saiba disso?

— Ele odiava os payos, os franceses, mais do que detestava os

gadjes. Nunca teria pedido a um deles que se tornasse seu irmão, a não ser

nas circunstâncias mais extremas.

— Mas eu não sou payo. Bem, minha mãe é francesa e meu pai é

norte-americano e eu nasci e cresci nos Estados Unidos.

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50Mario Reading

— Mas você fala francês perfeitamente. Meu irmão deve ter julgado

você por isso.

Sabir balançou a cabeça, confuso.

o primo de Yola falava agora para o grupo. Mesmo conhecendo per-

feitamente a língua francesa, Sabir dificilmente conseguia entender.

— Que língua é essa?

— Sinto.

— Ótimo, por favor, pode me informar o que ele está dizendo?

— Que você matou meu irmão. Que veio nos procurar a fim de

roubar algo que pertence a nossa família. Que é um homem mau e que Deus

lhe deu essa enfermidade recente para mostrar que você não está dizendo a

verdade sobre o que aconteceu com Babel. Também disse que por sua causa a

polícia veio até nós e que você é discípulo do demônio.

— E você disse que ele gosta de mim?

Yola concordou com a cabeça.

— Alexi acha que você está dizendo a verdade. Ele olhou em seus

olhos quando você pensou que ia morrer e viu sua alma. Achou que era bran-

ca, e não negra.

— Então por que está dizendo essas coisas a meu respeito?

— Você devia estar contente. Ele está exagerando muito. Muitos de

nós achamos que você não matou meu irmão. Esperam que o Bulibasha se

zangue com o que está sendo dito e decida que você é inocente.

— E você, acha que matei seu irmão?

— Somente vou saber quando o Bulibasha pronunciar o verecdito.

23

Sabir procurou alhear-se ao que estava acontecendo diante de si,

mas era impossível. Alexi, o primo de Yola, realizava um desempenho ma-

gistral em arte dramática. Se era algum aliado secreto, Sabir achou que valia

mais a pena jantar com o diabo e acabar com aquilo.

De joelhos diante da assembleia, Alexi chorava e arrancava os cabe-

los. o rosto e o corpo estavam cobertos de terra e a camisa se rasgara, revelan-

do três colares de ouro e um crucifixo.

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Sabir olhou o rosto do Bulibasha, procurando sinais de impaciência

com a encenação de Alexis, mas ao que tudo indicava ele parecia acreditar

no que ouvia. Uma das crianças pequenas, que Sabir imaginou fosse uma das

filhas do Bulibasha, tinha subido ao amplo colo dele e saltava de excitação.

— E eu, posso dizer alguma coisa?

— Não.

— Que quer dizer com isso?

— outra pessoa falará por você.

— Quem, pelo amor de Deus? Todo mundo aqui parece querer que

eu morra.

— Eu. Vou falar em seu nome.

— Por que você faria isso?

— Já disse. Foi o último desejo de meu irmão.

Sabir percebeu que Yola não queria revelar mais.

— Que está acontecendo agora?

— o Bulibasha está perguntando se a família de meu irmão se con-

tentaria em receber ouro em troca da vida dele.

— E o que é que eles responderam?

— Que não. Querem degolar você.

Sabir começou a imaginar possibilidades de escapar. Como todos

estavam concentrados em Alexi, pelo menos poderia ter uns cinco metros

de vantagem antes que o pegassem na orla do acampamento. Ação, e não

reação; não era assim que os soldados eram treinados para reagir a uma em-

boscada?

Alexi levantou-se, sacudiu o corpo e passou por perto de Sabir, sor-

rindo.

— Ele parece achar que fez um bom trabalho.

— Não brinque. o Bulibasha está falando com os outros juízes. Pe-

dindo a opinião deles. Nesse ponto é importante saber como está pensando.

Yola se levantou.

— Agora, vou falar por você.

— Vai fazer aquela pantomima toda de bater no peito?

— Não sei o que vou fazer. Na hora, saberei.

Sabir curvou a cabeça sobre os joelhos. Uma parte dele ainda se re-

cusava a acreditar que alguém estivesse levando aquilo a sério. Seria alguma

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52Mario Reading

imensa brincadeira feita a respeito dele por uma conspiração de leitores in-

satisfeitos?

Levantou a cabeça ao ouvir a voz de Yola. A moça estava vestida

com uma blusa verde de seda, abotoada de um lado, e a pesada saia de algo-

dão chegava aos tornozelos, sustentada por várias anáguas. Não usava joias,

por ser solteira, e os cabelos descobertos estavam arrumados em cachos que

tapavam as orelhas, com fitas coloridas amarrando o chignon na parte de

trás. Sabir sentiu uma estranha emoção ao observá-la, como se realmente

tivesse algum parentesco com ela e que a intensidade dessa revelação fosse de

certa forma relevante, de uma forma incompreensível para ele.

A moça se voltou, apontando para Sabir. Depois mostrou a própria

mão. Estava perguntando alguma coisa ao Bulibasha, e este respondia.

Sabir olhou os dois grupos que se aglomeravam em volta. As mu-

lheres prestavam completa atenção às palavras do Bulibasha, mas alguns dos

homens do grupo de Alexi o observavam fixamente, embora aparentemente

sem rancor, como se fosse uma charada que tivessem de decifrar contra suas

vontades, algo curioso que lhes tivesse sido imposto e que fossem obrigados

a incorporar a qualquer que fosse a equação que orientava suas vidas.

Dois dos homens ajudaram o Bulibasha a erguer-se. Um deles lhe

entregou uma garrafa, da qual ele bebeu, espalhando em seguida o líquido

em um arco diante de si.

Yola voltou para junto de Sabir e ajudou-o a levantar-se.

— Não me diga que já é a hora do veredicto.

Ela não lhe deu atenção, mantendo-se de pé, um pouco para trás

dele, olhando para o Bulibasha.

— Você. Payo. Você diz que não matou Babel?

— É verdade.

— Mesmo assim, a polícia está procurando por você. Como é possí-

vel que estejam enganados?

— Eles encontraram meu sangue em Babel, por motivos que já ex-

pliquei. o homem que o torturou e matou deve ter falado à polícia sobre

mim, pois Babel sabia meu nome. Sou inocente de qualquer crime contra ele

ou a família dele.

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o Bulibasha se voltou para Alexi.

— Você acha que este homem matou seu primo?

— Sim, até que outro confesse o crime. Mate-o e a dívida de sangue

estará paga.

— Mas Yola agora não tem irmão. o pai e a mãe dela já morreram.

Ela diz que este homem é o phral de Babel. Que tomará o lugar dele. Ela é

solteira. É importante que tenha um irmão para protegê-la. Para assegurar

que ninguém a desonre.

— Isso é verdade.

— Todos concordam em cumprir a decisão do Kristinori?

Houve uma manifestação afirmativa comum em todo o acampa-

mento.

— Neste caso, deixaremos que a faca decida esta vendetta.

24

— Meu Deus. Eles querem que eu lute com alguém?

— Não.

— Então, que diabo querem?

— o Bulibasha foi muito prudente. Resolveu que a faca decidirá o

caso. Uma tábua vai ser preparada. Você colocará sobre ela a mão que matou

Babel. Alexi representará minha família. Ele tomará uma faca e a atirará contra

sua mão. Se a lâmina, ou qualquer outra parte da faca, atingir sua mão, signifi-

cará que o Del o considera culpado. Nesse caso, você será morto. Se a faca não

acertar em você, significa que é inocente, e passará a ser meu irmão.

— o Del?

— Esse é o nome que usamos para Deus.

===

De pé junto ao Bulibasha, Sabir ficou olhando dois homens erguerem

a tábua que iria decidir entre sua vida e sua morte. Não era possível que fosse

uma farsa. Ninguém em seu juízo perfeito acreditaria. Não no século XXI.

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54Mario Reading

Yola entregou-lhe um copo de chá de ervas.

— Para que isso?

— Para lhe dar coragem.

— De que é feito?

— É segredo.

Sabir sorveu o chá.

— Escute. Esse homem, Alexi. Seu primo. Ele sabe atirar facas?

— Claro, é capaz de acertar qualquer coisa em que mire. Atira muito

bem.

— Meu Deus, Yola. Que está querendo fazer comigo? Quer que eu

morra?

— Não estou querendo fazer nada. o Del decidirá sobre sua culpa.

Se você for inocente, ele atrapalhará a mira de Alexi e você estará livre. E aí

se tornará meu irmão.

— E você realmente acha que eles me matarão se a faca acertar em

minha mão?

— Sem dúvida, eles o matarão. Tem de ser assim. o Bulibasha nunca

permitiria que você fosse solto se um Kriss decidir que você é culpado. Isso

seria contra nossos costumes — nosso código mageripen. Seria um escânda-

lo. o nome dele ficaria mahrimé e ele teria de comparecer ao Baro-Sero para

explicar-se.

— Baro-Sero?

— o chefe de todos os ciganos.

— E onde ele mora?

— Na Polônia, creio. ou talvez na Romênia.

— oh, meu Deus.

— Que acontece se ele errar minha mão e acertar em mim?

Sabir ficou diante da tábua. Dois ciganos lhe amarraram a mão com

uma fina tira de couro, que passava por dois orifícios na madeira, acima e

abaixo do pulso.

— Isso significa que o Del tirou de nós a decisão e ele próprio cas-

tigou você.

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— Eu sabia — disse Sabir, sacudindo a cabeça. — Pelo menos posso

ficar de lado?

— Não. Você tem de permanecer de pé, como um homem. Deve

fingir que não dá atenção ao que está acontecendo. Se for inocente, nada tem

a temer. os ciganos gostam de homens que se comportam como homens.

— Isso é realmente muito estimulante.

— Não diga isso. ouça o que vou dizer. É importante. — Yola se

colocou diante dele, olhando-o nos olhos. — Se sobreviver a isso, passará a

ser meu irmão. Adotarei seu nome até que tome o de meu marido. Você re-

ceberá um kirvo e uma kirvi dentre os idosos, que serão seus padrinhos, e se

tornará um de nós. Se se comportar como um payo, ninguém o respeitará e

eu nunca encontrarei marido. Nunca serei mãe. o que você fizer agora, como

se comportará, mostrará a minha família como você me tratará. Mostrará se

os ursitory permitiram a meu irmão escolher com sabedoria ou leviandade.

===

Alexi levou a garrafa aos lábios de Sabir e em seguida terminou de

beber.

— Gosto de você, payo. Espero que a faca erre o alvo. Realmente

desejo isso.

Achor Bale sorriu. Estava deitado em uma trincheira de areia que

havia escavado, numa elevação a cerca de quinze metros da clareira. Uma

moita espessa escondia a trincheira das crianças que brincavam e Bale se co-

brira com uma manta camuflada com folhagens, ramos e outros gravetos

menores.

Ajustou o zoom eletrônico do binóculo e focalizou o rosto de Sabir,

que estava rígido de medo. Se sobrevivesse, aquele medo ajudaria Bale na bus-

ca do manuscrito. Poderia utilizar o temor dele. Seria possível manipulá-lo.

Por outro lado, a moça constituiria um problema. Vinha de uma cul-

tura definida, de costumes estabelecidos, como o irmão. Haveria parâmetros,

limites que ela não ultrapassaria. Morreria mas não revelaria coisas que con-

siderava mais importantes do que sua própria vida. Teria de abordá-la de ou-

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tras formas. Por meio da virgindade dela, por meio de seu desejo de ser mãe.

Bale sabia que os ciganos manouche definiam as mulheres exclusivamente

por sua capacidade de ter filhos. Se isso lhe fosse negado, a mulher não teria

apoio, não teria sentido. Isso era uma coisa que ele guardaria na mente.

o primo dela agora se afastava de Sabir, com a faca na mão. Bale

ajustou novamente o binóculo. Não era uma faca própria para um atirador.

Isso era ruim. Era difícil calcular o peso. Não haveria equilíbrio, e a trajetória

seria incerta.

Dez metros. Quinze. Bale soprou entre os lábios apertados. A distân-

cia era uma loucura. Seria difícil para ele acertar um alvo claramente visível

a essa distância. Mas talvez o cigano fosse melhor do que ele imaginava. o

homem tinha um sorriso no rosto, como se tivesse confiança em sua com-

petência.

Bale virou o binóculo de novo para Sabir. Bem, pelo menos o nor-

te-americano se comportava bem, para variar. Estava de pé, aprumado, de

frente para o atirador da faca. A moça se colocou a um lado, fitando-o. Todos

o observavam.

Bale viu o cigano armar o gesto para atirar a faca. Era pesada. Seria

preciso certa força para atirá-la daquela distância.

Alexi curvou-se para a frente, lançando-a num longo arco na dire-

ção de Sabir. Todos prenderam a respiração. Bale abriu a boca, concentrado,

deixando a língua para fora.

A faca se enterrou na tábua logo acima da mão de Sabir. Teria toca-

do? A lâmina era curva. Não poderia ter entrado muito fundo.

o Bulibasha e alguns de seus assistentes caminharam vagarosamen-

te em direção à tábua a fim de verificar a posição da faca. Todos os ciganos

se aproximaram dele. Matariam Sabir imediatamente? Seria uma tarefa para

toda a comunidade?

o Bulibasha arrancou a faca. Agitou-a três vezes em volta da cabeça

e em seguida aproximou-a do braço dele, cortando as tiras de couro. Depois

atirou a faca para longe, com ar de desprezo.

— Que rapaz de sorte — murmurou Bale. — Rapaz de muita, muita

sorte.

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