4-45-1-PB

download 4-45-1-PB

of 10

Transcript of 4-45-1-PB

  • 7/29/2019 4-45-1-PB

    1/10

    1

    Criptojudasmo no feminino. Uma anlise da Resistncia judaica na Bahia Quinhentista apartir das fontes da I Visitao do Santo Ofcio ao Brasil

    Angelo Adriano Faria de AssisDoutor em Histria pela UFF; Professor Adjunto UFV

    Resumo:

    Implantado em Portugal o monoplio catlico a partir de 1497, com o processo deexpulso/converso forada de judeus e mouros do reino, no tardariam a se agigantar osproblemas de intolerncia religiosa disfarada de problema social entre os cristos-velhos e osneoconversos. A instaurao do Santo Ofcio da Inquisio em Portugal, no ano de 1536, com ointuito de zelar pela pureza da f catlica, teria nos cristos-novos suas principais vtimas. Com aintensificao dos trabalhos inquisitoriais, muitos deixaram Portugal, tornando-se o trpicobraslico, regio do acar, principal produto da colnia naquele momento, dos destinospreferidos. Durante a primeira visitao inquisitorial s capitanias aucareiras do Nordeste(Bahia, Pernambuco, Paraba e Itamarac), entre 1591 e 1595, ganha destaque o nmero demulheres crists-novas acusadas de prticas judaizantes, sinalizando a intensa participaofeminina no processo de resistncia judaica, como propagadoras do judasmo secreto que setornara possvel para a divulgao e sobrevivncia das antigas tradies, adaptado o judasmo sdificuldades e perseguies que lhe foram impostas. Os processos contra a famlia Antunes, doRecncavo Baiano a matriarca Ana Rodrigues, primeira vtima da Inquisio no Brasilcondenada fogueira, mais suas filhas e netas , insistentemente delatada perante a Inquisio,mostram-se primordiais para esta anlise.

    Palavras-chave: Inquisio no Brasil, resistncia judaica, criptojudasmo feminino.

    Em incios da modernidade, a intolerncia religiosa metamorfosear-se-ia, em vriosespaos da Europa, em perseguio contra os judeus. Na Ibria, que, por conta dos oito sculos

    anteriores de bom convvio entre cristos, judeus e mouros, ficaria marcada como a terra das trs

    religies, o processo de monopolizao crist e consequente eliminao das demais religies dar-

    se-ia em dois momentos temporalmente prximos.

    Do lado espanhol, o processo de unificao do prprio Estado passava, em grande parte,

    pela unidade da f. Assim, em 1492, os reis catlicos completavam a campanha territorial com a

    reconquista de Granada, expulsando mouros e judeus dos limites espanhis. Muitos dos judeussados da Espanha aproveitariam a proximidade geogrfica e a extensa fronteira seca para

    entrarem em terras portuguesas. Proibidos de permanecer na Espanha, levas de judeus cruzaram a

    fronteira para se abrigar em Portugal, fazendo com que aumentasse de forma considervel a j

    significativa presena de judeus em seu territrio, que pode ser estimada, de acordo com alguns

    historiadores, em cerca de dez a quinze por cento do total da populao lusa embora estes

  • 7/29/2019 4-45-1-PB

    2/10

    2

    nmeros no possam ser considerados exatos. O que cabe salientar que, independentemente da

    exatido numrica, era marcante a presena de judeus em Portugal s vsperas da virada para o

    Quinhentos.

    Todavia, os interesses que ligavam as coroas ibricas e que passavam, naquele momento,

    pelo acordo de matrimnio do monarca portugus com a infanta espanhola consequentemente,

    pela questo sucessria do trono hispnico , dentre outras questes de relevncia, fariam com

    que a liberdade de crena que persistia em Portugal tivesse final similar ao que ocorrera do outro

    lado da fronteira poucos anos antes. Dessa forma, o acordo nupcial entre Dom Manuel I e a filha

    primognita dos reis de Espanha teria entre seus pontos o fim oficial da presena judaica em

    Portugal. A assinatura dos decretos de expulso dos judeus, em dezembro de 1496, culminaria,

    dez meses depois, com a converso forada dos seguidores da f de Israel ao catolicismo.

    Expulsos, mas proibidos de sair, os judeus foram batizados fora, transformados em

    neoconversos ou cristos-novos, mas continuaram, na prtica, a serem vitimados pelos mesmospreconceitos e perseguies. Assim, pela fora e pela f catlica surgia o cristo-novo

    portugus, baptizado pela gua sagrada que, ao mesmo tempo que o salvava, acabaria por marc-

    lo, bem como a toda a sua descendncia (FRANCO &ASSUNO, 2004, p.26).

    Embora o decreto do monarca portugus tenha levado tentativa, por certo nmero destas

    famlias judias, de adaptao nova realidade, buscando abraar de forma sincera o catolicismo

    que lhes era imposto, no era de se estranhar que o processo de converso gerasse um leque de

    possibilidades distintas de adaptao ao decreto de extino que se colocara perante acomunidade judaica portuguesa. Como no poderia deixar de ser num processo realizado de

    maneira forosa e decretado por lei, muitos dos judeus que foram obrigados a abraar a doutrina

    crist para continuarem presentes e tentarem ser aceitos na sociedade que renegava suas

    tradies, considervel parcela dos antigos adeptos da religio hebraica buscou, dentro das

    condies e limites possveis, manter a herana religiosa, procurando formas de continuar fiel s

    crenas dos antepassados, mesmo que de forma limitada, improvisada e adaptada s parcas

    possibilidades ento vigentes.

    Mais uma vez no podemos nos remeter a nmeros exatos. Porm, certo que muitos dos

    antigos judeus agora cristos encontrariam formas, variadas em intensidade e contedo, de

    continuar ocultamente a comungar a f do corao: eram, por isso, chamados criptojudeus. No

    podemos, contudo, considerar criptojudeu como sinnimo de cristo-novo. Em livro

    clssico, Sonia Siqueira define a diferena:

  • 7/29/2019 4-45-1-PB

    3/10

    3

    Cristo-novo e criptojudeu no so sinnimos. O nascimento gera oprimeiro, a vontade o segundo. O cristo-novo esforava-se por ser igual aosdemais: tentava vencer as barreiras do meio e do seu ntimo e ajustar-se. Ocriptojudeu contentava-se em parecer igual aos demais. Reservava-se o direitode continuar sendo judeu, de permanecer, s vezes, heroicamente fiel a simesmo, religio herdada. Por isso tinha duas religies: uma externa, social,outra a religio da sua conscincia, interior, feita de prticas secretas. Odiava asociedade que o compelia a uma vida de simulaes que lhe tolhia a liberdadede crena, mas guardava certa atitude precavida, cnscio de ser o lado maisdbil. (SIQUEIRA, 1978, p.71)

    A presena do criptojudasmo no mundo portugus j ganhou leituras to variadas quanto

    dspares na historiografia luso-brasileira, as quais, no limite, percorrem desde a negao de sua

    existncia at a afirmao de que tal prtica era generalizada. Mais coerente, ao que nos parece,

    a posio de Ronaldo Vainfas, que aponta o fenmeno criptojudaico como variante no tempo e

    no espao, mais concebvel e consciente conforme nos mantemos prximos do perodo de

    liberdade religiosa em Portugal (VAINFAS, 1997). O fato que a busca desenfreada pela pureza

    religiosa acabaria por identificar no criptojudasmo a maior ameaa ao cristianismo portugus, da

    mesma forma que a justificativa principal para a instaurao do brao lusitano do Tribunal do

    Santo Ofcio da Inquisio, em 1536. Quatro anos aps, j em 1540, j ardiam as primeiras

    chamas dos autos de f promovidos pela Inquisio s margens do Tejo. O clima de constante

    vigilncia acabaria por agravar as relaes sociais, radicalizando as hostilidades entre cristos-

    velhos indivduos de sangue puro e os batizados em p vistos como de origemmaculada.

    Outra caracterstica marcante que se radicaliza com o estabelecimento da Inquisio e o

    aumento das perseguies aos criptojudaizantes em Portugal a tentativa, pelo grupo dos

    cristos-novos que continuavam a abraar a f dos antepassados, de moldar o judasmo

    tradicional cuja prtica estava interdita transformando-o num judasmo possvel, limitado s

    prticas e rituais menos denunciadores de sua existncia, adaptados nova e hostil realidade.

    Procurava-se, assim, driblar a ilegalidade e no desaparecer por completo. Neste novo quadro de

    excluso, a importncia da figura feminina seria tambm redesenhada.

    Desta forma, proibido oficialmente e perseguido pelos olhares atentos da Inquisio, o

    judasmo, outrora livre, deslocar-se-ia para a cozinha, redimensionando o valor das mulheres

    para a manuteno e divulgao da antiga f aos descendentes.

  • 7/29/2019 4-45-1-PB

    4/10

    No toa, a estruturao da Inquisio em Portugal e o aumento das perseguies

    significariam o aumento das migraes de cristos-novos para a Amrica portuguesa, que vivia o

    incio do apogeu aucareiro, e onde a Inquisio no havia ainda estendido os seus tentculos.

    frente desta economia aucareira em ascenso, uma considervel parcela de cristos-novos

    enobrecidos pelo dinheiro e transformados em donos de terra e respeitveis senhores de

    engenho.

    O Brasil era espao privilegiado para a resistncia criptojudaica, graas a uma relativa

    harmonia no convvio entre cristos-velhos e novos. Prova deste bom convvio a macia

    presena neoconversa em praticamente todos os espaos da economia. Havia cristos-novos nos

    mais diversos meios, chegando muitos deles a ocupar cargos e posies de importncia:

    ouvidores da Vara Eclesistica, mestres de latim e aritmtica, senhores de engenho, religiosos,

    profissionais letrados, mdicos, advogados, vereadores, juzes, escrives, meirinhos e

    almoxarifes, o que reflete o alto grau de miscibilidade na colnia se comparada s outras reas demigrao dos cristos-novos partidos de Portugal, como o Norte europeu, as geograficamente

    descontnuas ocupaes no Oriente e o Levante (NOVINSKY, 1972, p.58). Tambm o elevado

    nmero de casamentos que uniam cristos-velhos e neoconversos aponta para uma maior

    aceitao social destes enlaces e a diluio dos atritos no convvio entre os grupos na regio

    braslica.

    No judasmo tradicional religio letrada calcada na leitura e discusso dos livros

    sagrados , as mulheres ocupavam posies inferiores s dos homens, como locais secundriosno culto e papis pblicos limitados, recebendo apenas uma educao mnima, a ponto de se crer,

    no limite, que era melhor queimar as sagradas palavras daTordo que transmiti-las e ensin-las

    s mulheres. A proibio da prtica do judasmo no Mundo Portugus e a nova importncia dada

    educao no lar, contudo, levariam a uma transformao destes papis, transformando o

    judasmo numa espcie de religio domiciliar, fruto da impossibilidade de sua divulgao

    pblica, com nova nfase na divulgao oral dos ensinamentos, devido s dificuldades e perigos

    implicados na posse de textos hebraicos. Funes que antes eram exclusivas dos homens

    passariam responsabilidade das mes sinal da ocorrncia, no seio da religio mosaica, de um

    certoafrouxamento dos rigorismos como meio de garantir a sobrevivncia em ambiente hostil.

    Neste clima de intolerncia ao judasmo, as residncias passariam a ocupar importncia

    estratgica: seriam os lares locais de propagao da religio dos antepassados, atravs da

    memria ensinada e das prticas religiosas e cerimoniais. Impedida a livre crena, a cultura

  • 7/29/2019 4-45-1-PB

    5/10

    5

    domstica continuou, em parte, com aquelas prticas e celebraes de portas a dentro (SILVA,

    1995, p.121), embora essas prticas sofressem certo esvaziamento e modificaes conforme

    crescia a distncia do perodo de judasmo permitido, mudando de cor, intensidade e significados

    a cada nova gerao. A prpria teologia judaica, cada vez menos profundamente conhecida pelos

    cristos-novos, enfrentava as consequncias destas limitaes, agravadas pela inexistncia de

    rabinos para cumprirem o papel que lhes caberia numa situao de normalidade religiosa, como

    tambm pela proibio da circulao de livros ligados religio mosaica: impossibilitados da

    leitura sagrada, a Tor, muitos utilizavam a Bblia catlica, mas sempre renegando os textos do

    Novo Testamento. Como j se adiantou, a transmisso oral dos ensinamentos ganhou novo

    alento. Impedidos em suas preferncias doutrinrias, e procurando driblar as desconfianas da

    sociedade, os criptojudeus viam-se obrigados a abandonar certas cerimnias marcantes da sua

    profisso de f em favor de prticas menos conhecidas ou delatoras de sua real entrega religiosa:

    assim, trocam-se roupas e acessrios judaicos pelas vestimentas crists; as circuncises pelas

    oraes e viglias domiciliares; as rezas pblicas na lngua dos antepassados pela orao interior,

    em segredo; a guarda pblica de certas datas e festas como o Ano Novo ou o Pentecostes pelos

    jejuns; os jejuns principais por outros menos conhecidos fora da comunidade judaica. Com o

    mesmo intuito, celebraes que no judasmo tradicional ocupavam posio de menor destaque

    passavam, por serem menos acusadoras, a tema central da resistncia marrana, como foi o caso

    do Jejum de Ester rainha judia que escondia suas origens ao prprio marido, vivendo, como

    os criptojudeus, da dissimulao , tornando-se a Orao de Ester a prece marrana porexcelncia. bastante significativo o fato de ser uma mulher a herona dos cristos-novos, e o

    exemplo de Ester se repetiria constantemente devido s necessidades impostas aos criptojudeus.

    O judasmo de portas a dentro mostrar-se-ia, nos mais nfimos detalhes, influenciado pela

    figura da mulher (POLIAKOV, 1996, p.198-199).

    Anita Novinsky complementa: proibida a sinagoga, a escola, o estudo, sem autoridades

    religiosas, sem mestres, sem livros, o peso da casa foi grande. A casa foi o lugar do culto, a casa

    tornou-se o prprio Templo. No Brasil Colonial, como em Portugal, somente em casa os homens

    podiam ser judeus. Eram cristos para o mundo e judeus em casa. Isso teria sido impossvel sem

    a participao da mulher (NOVINSKY, 1995, p.549-555). No difcil supor o peso destas

    mulheres na manuteno da f agora proibida. Um judasmo feminino, de cozinha local de

    destaque nas casas judaicas, onde as mulheres, beira do fogo, cozinhavam os alimentos e

    contavam histrias de seu povo e tradies para os filhos, ensinando-lhes a lngua dos

  • 7/29/2019 4-45-1-PB

    6/10

    6

    antepassados, as canes e oraes, o preparo dos alimentos, as histrias e ensinamentos do livro

    sagrado. E, sobretudo, a necessidade de saber ocultar a antiga f e fingir dedicao ao

    cristianismo. Aqui como l, o ncleo familiar tornou-se locusprivilegiado para a irradiao da lei

    mosaica, iando as mulheres ao statusde grandes responsveis por sua reproduo. O judasmo

    de cozinha tornou-se o smbolo da resistncia ao catolicismo opressor e grande responsvel pela

    manuteno da cultura e tradies da antiga f proibida por decreto em fins do sculo XV. Lar-

    sinagoga-escola: espao multifuncional onde a mulher exerceria conjuntamente as tarefas de

    provedora, me, educadora, catequista e rabi. Sustentculos da religio proibida, as mulheres

    crists-novas apresentaram no Brasil uma resistncia passiva e deliberada ao catolicismo. Foram

    proslitas, recebiam e transmitiam as mensagens orais e influenciavam as geraes mais novas

    (NOVINSKY, 1995, p.?), cientes da necessidade de encobrir seus verdadeiros objetivos.

    Transmitindo os ritos religiosos ao pratic-los nas residncias, realizavam o rabinato diminuto,

    feminino e oral que se tornara possvel e que, embora contrariasse o cdice mosaico, garantiu-lhe

    a sobrevivncia. Conforme lembra Elias Lipiner, dizia-se poca das mulheres neoconversas

    que, devotas e rezadeiras, iam nos domingos e dias santos ouvir missa, procurando evitar,

    perante a sociedade, as desconfianas sobre sua real entrega ao catolicismo, mas nos sbados

    vestiam seus melhores vestidos (LIPINER, 1969, p.46), preparando-se para o sagrado dia de

    descanso dos judeus, em que a famlia estaria reunida para celebrar os costumes de seus

    antepassados.

    A nova importncia destinada mulher neoconversa no passaria em branco para aInquisio, e desmascarar a fonte de disseminao da heresia judaica, reprimindo exemplarmente

    os seus responsveis, era fundamental para a funo didtica desempenhada pelo Santo Ofcio.

    Na documentao produzida pelo tribunal portugus durante a primeira visitao ao Brasil, que

    percorreria as capitanias aucareiras do Nordeste braslico entre 1591 e 1595, encontram-se

    diversos indcios deste judasmo limitado porm possvel vivenciado na colnia, mormente

    ligado a ritos, prtica da esnoga, cultos funerrios, interdies alimentares, formas de benzer

    heterodoxas, negaes religio dominante em seus smbolos e dogmas, situaes em que,

    indiscutivelmente, a importncia das mulheres salta aos olhos. Dentre as inmeras e variadas

    acusaes sobre prticas judaizantes, riqussimo o desfile de relatos sobre mulheres que

    insistiam em manter fidelidade ao judasmo, praticando-o nos momentos de privacidade, embora

    publicamente, imbudas dos temores que oprimiam os simpatizantes de Israel, dissimulassem,

    declarando-se verdadeiras crists. No foram poucas as denncias a retratarem a dubiedade

  • 7/29/2019 4-45-1-PB

    7/10

    7

    vivida pelas crists-novas na colnia, no s externamente a suportarem o peso das fronteiras

    sociais , mas tambm nas suas prprias crenas e comportamento, a confundirem muitas vezes a

    tradio crist com os ensinamentos judaicos, divididas entre a f imposta e a do corao,

    desconhecendo ambas em seus detalhes, praticando-as de forma igualmente equivocada.

    Um dos mais estarrecedores casos de mulheres acusadas de prticas judaizantes na

    documentao referente s visitaes inquisitoriais ao Brasil, sem dvida, seria aquele que

    envolveria representantes de vriasde Ana Roiz, moradora em Matoim, no Recncavo Baiano.

    A crist-nova Ana Roiz ou Rodrigues viera do reino com Heitor Antunes, seu marido,

    senhor de engenho e cavaleiro da casa del-rei, que se orgulhava de sua descendncia direta dos

    Macabeus - clebre famlia de sacerdotes e militares judeus do sculo II a. C., cuja epopeia

    narrada no Antigo Testamento. Segundo diziam, o cavaleiro macabeu possua sinagoga em

    suas terras no Recncavo da Bahia havia cerca de trinta anos. Teve sete filhos, para os quais

    conseguira genros de sangue puro. Eram conhecidos como a gente de Matoim. Morto omarido, Ana Rodrigues o enterrara segundo a tradio, em terra virgem, pranteando-o pelo modo

    judaico. Esperava o momento de poder se juntar novamente ao esposo, tambm de acordo com a

    f que seguia: testemunhas afirmavam que guardava as joias de quando se casou para se enterrar

    com elas quando morrer1. A presena da Inquisio acabaria com a tranquilidade da famlia,

    seguidamente acusada de criptojudasmo e de desrespeito f catlica. Dentre os Antunes, seria

    Ana a denunciada com maior gravidade e insistncia. Prevendo as trgicas consequncias da

    visita do Tribunal, alguns membros do cl aproveitariam o perodo da graa para confessar oserros, adiantando-se avalanche de acusadores, procurando, assim, mostrar boa vontade com o

    Santo Ofcio e amenizar as culpas que lhes eram imputadas.

    Judaizante ao extremo e de idade bastante avanada, Ana era conhecida pelas blasfmias

    que pronunciava. O parentesco bblico de que outrora se orgulhava o marido era agora smbolo

    do escrnio pblico de que era vtima ao lado das filhas, chamadas pejorativamente de

    Macabeias. Suas histrias geravam escndalo. No batismo de uma bisneta, teria Ana afirmado:

    olhai que negro batismo! Quando de um dos partos de suas filhas, clamando-se por Nossa

    Senhora, dissera, no me faleis nisso que no no posso dizer2! Uma parenta crist-velha

    contaria sobre a octogenria matriarca que, adoecida certa vez, suas filhas lhe mostravam um

    1 [Antonio Dias, da Companhia de Jesus] contra Anna Roiz, Anrique Mendez, Phelipe de Guillem, em16/08/1591. Primeira Visitao do Santo Officio s partes do Brasil pelo licenciado Heitor Furtado de Mendonacapello fidalgo del Rey nosso senhor e do seu desembargo, deputado do Santo Officio. Denunciaes da Bahia1591-593. So Paulo: Paulo Prado, 1925, p. 337-338.2 [Antonio da Fonseca] contra Ana Roiz e Ferno Cabral, em 06/08/1591. Idem, p. 275-276.

  • 7/29/2019 4-45-1-PB

    8/10

    8

    crucifixo e que ela o no queria ver, dizendo: tirai-o l, recebendo o auxlio de um filho para

    livrar-se da incmoda presena. O receio de ter a crena proibida desvendada e da rejeio social

    da decorrente levaria uma de suas filhas a retrucar: me, no nos desonreis porque somos

    casadas com homens cristos velhos e nobres. Quando em lucidez, tentava, assim como as

    filhas, manter as aparncias, sendo devotas de Nossa Senhora e fazendo romarias, indo s

    igrejas, dando esmolas e fazendo outras boas obras de boas crists3.

    Apesar do esforo dissimulatrio, aos olhos populares sua residncia era transformada em

    verdadeiro templo judaico, onde ensinava as tradies da antiga lei aos filhos. No foram poucas

    as denncias a retratarem minuciosamente os costumes da matriarca e de sua famlia, como as

    prticas e interdies alimentares, as bnos e o luto ao modo judaico, as oraes com guaias, o

    respeito aos jejuns e dias santos para os hebreus cerimnias que, pelo exemplo vivo da velha

    macabeia, eram transmitidas aos descendentes.

    A velha senhora seria acusada de prticas judaicas por todos os lados, somando uma dasmaiores colees de denncias da primeira visitao. Com mais veemncia, seria delatada por

    guardar o dia sagrado dos judeus; no comer certos tipos de alimento; jurar pelo mundo que tem

    a alma do marido e guardar-lhe luto ao modo dos judeus; lanar a gua de casa fora em caso de

    falecimento; fazer jejuns e oraes judaicas, movimentando o corpo maneira dos judeus;

    recusar um crucifixo quando doente e benzer filhos e netos escorregando-lhes a mo pelo rosto.

    Outros parentes prximos da anci principalmente filhos e netos confessariam ou seriam

    acusados de algumas destas prticas, embora em nenhum caso tenha-se repetido o mesmonmero de acusaes que pesavam sobre a matriarca da famlia. O envolvimento de filhos,

    cunhados, netos e sobrinhos nas acusaes de judasmo permite-nos vislumbrar o grau de

    complexidade do fenmeno criptojudaico entre os Antunes. Este se manifestava atravs da

    preservao de vrias tradies do judasmo de portas a dentro, reproduzidas no ambiente

    domstico e transmitidas s novas geraes, ainda que com uma espcie de filtragem na

    recepo. Algumas destas prticas eram paulatinamente abandonadas pelos descendentes, na

    tentativa de ocultar a f proibida (sem contar o prprio processo de aculturao a que os cristos-

    novos estavam submetidos).

    Ciente das crticas sociais ao seu comportamento e temendo as presumveis denncias de

    seus desregramentos ao inquisidor, a matriarca dos Antunes compareceria ao Tribunal para

    confessar algumas de suas prticas de judasmo, mas para tudo apresentando desculpas,

    3 [Pero de Aguiar dAltero] contra Ana Rodrigues, crist-nova de Matoim, em 30/07/1591. Idem, p. 250-251.

  • 7/29/2019 4-45-1-PB

    9/10

    9

    afirmando desconhecer-lhes a hertica origem: no comia carne de arraia e cao fresco por

    fazer-lhe mal ao estmago, mas, antes da doena, comia; ao morrer-lhe um filho lanara fora a

    gua dos potes, ficando os primeiros oito dias sem comer carne, porque isso lhe fora ensinado

    por uma comadre crist-velha; jurava pelo mundo que tem a alma de meu pai, ou de meu

    marido, ou de meu filho, mas sem entender ser juramento de judeus. Estarrecido, o visitador

    parecia no aceitar as explicaes, alertando-a de que est mui forte a presuno contra ela, que

    judia e vive na lei de Moiss, posto no ser possvel fazer todas as ditas cerimnias de judeus,

    to conhecidas e sabidas, sem lhes conhecer a origem, e que por isso fica claro que ela judia e

    que as fez como judia4. Desmascarada, a velha senhora seria presa e enviada numa jaula ao

    Tribunal de Lisboa, enquanto seus genros cristos-velhos e fidalgos tentavam em vo provar sua

    inocncia. Era sua primeira morte uma morte social, pblica, apontada como suspeita pela

    Inquisio e como herege pela sociedade. Idosa e doente, morreria no crcere sua segunda

    morte, esta, fsica, debilitada pelo esforo da viagem, pela presso psicolgica, pela fragilidadedo corpo cansado e humilhado , o que no a livraria da continuidade do processo movido pela

    Inquisio e de ser condenada ao brao secular e relaxada em efgie, tendo sua memria

    amaldioada e os ossos desenterrados, queimados e feitos em p em detestao de to grande

    crime uma terceira morte, que no respeitava nem o que restava de seu esqueleto. Para evitar

    que seu exemplo fosse repetido, um quadro feito pelos pintores que trabalhavam para a

    Inquisio, retratando-a entre labaredas e seres demonacos quarta morte!!! , ficaria exposto

    na igreja de Matoim, onde morara, a mando do Santo Ofcio. Alm da matriarca macabeia, outrosfamiliares sofreriam acusaes, e alguns deles seriam processados pela Inquisio: Heitor

    Antunes, seu falecido marido; Beatriz, Violante e Leonor, suas filhas, e a neta, Ana Alcoforado.

    Sua condenao traria, afora as complicaes sociais para os membros da famlia,

    estigmatizados como judaizantes e/ou coniventes e acobertadores de prticas criptojudaicas, um

    outro agravante para seus descendentes: os bens em nome da velha senhora seriam confiscados

    pela Inquisio, o que levaria os seus genros anos depois, em 1600, a apresentarem,

    pessoalmente, diversas peties em Lisboa para reviso da pena, novamente alegando idade

    avanada e insanidade da velha matriarca, com o objetivo no s de limpar o nome da famlia,

    mas tambm de recuperar os bens tomados pelos inquisidores e assim poder dar continuidade aos

    negcios do cl na Bahia. Como define Elias Lipiner, a jurisdio do Tribunal da f no se

    4 Confisso de Ana Rodrigues, crist-nova, na graa, em 1o de fevereiro de 1592. Santo Ofcio da Inquisio deLisboa: Confisses da Bahia (organizao Ronaldo VAINFAS). So Paulo: Companhia das Letras, 1997, p. 281-286.

  • 7/29/2019 4-45-1-PB

    10/10

    10

    extinguia com as labaredas da fogueira em que eram sacrificadas suas vtimas. No parava em

    quem fora por ele condenado, mas estendia-se aos descendentes vivos para serem diretamente

    atingidos, proibindo-se-lhes o exerccio de ofcios pblicos e certas profisses liberais, e

    expondo-os, particularmente, malevolncia pblica (LIPINER, 1969, p.137).

    Quase trinta anos aps Ana ter sido presa pelo primeiro visitador do Brasil, j durante a

    segunda visitao inquisitorial, iniciada em 1618, ouvir-se-iam ainda ecos do desregrado

    comportamento dos Antunes, novamente apontados ao visitador como grupo judaizante. As

    histrias sobre Ana Rodrigues e seus descendentes ainda permaneciam vivas na memria e eram

    repetidas, ocasionando o tal roubo da imagem que ficava na porta da igreja de Matoim e

    representava a velha Macabeia queimando no inferno. Esta foi uma tentativa desesperada de

    preservar-lhe a memria e livrar os seus familiares da gigantesca infmia que lhes pesava sobre

    os ombros5.

    Inegavelmente, Ana Rodrigues foi destes baluartes da resistncia judaica na colnia,representante das mais agudas do criptojudasmo braslico no sculo XVI. Apesar do desejo da

    Inquisio, no seria a nica, embora as histrias dessas mulheres no nos sejam sempre

    conhecidas. Como a velha matriarca de Matoim, tantas outras viveriam ambiguamente, divididas

    entre o catolicismo que repudiavam e o judasmo que no podiam seguir abertamente, praticando

    ora um, ora outro, dependendo das necessidades do momento. Mrtir da religio proibida, Ana

    sofreria presses, ofensas, calnias e discriminaes por lutar pelo resgate e continuidade da

    identidade de seu povo. Quatro mortes, pelo menos, a tentarem apagar sua existncia. Mas ela foiredimida pela Histria, pela anlise do prprio processo inquisitorial que ordenava seu silncio. E

    foi vitoriosa, por fim, por conseguir, dentro do que era possvel, repassar a antiga tradio aos

    filhos e manter vivos os ideais da f que se esmerara em compartilhar com os familiares.

    5 Sobre o envolvimento de membros da famlia Antunes com a Inquisio, ver ainda: ASSIS, Angelo A. F. AInquisio no Brasil e a Farsa pelo Avesso: O caso de Baltasar Coelho, tratante e falso familiar do Santo Ofcio, e dapriso de Nuno Fernandes, revel e descendente dos Macabeus do Recncavo (ASSIS et al., 2007, p.?).