4 A QUERELA FUNDAMENTAL: POSSÍVEL NO MUNDO OU … · também co-sustentáveis com o antecedente”...
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4 A QUERELA FUNDAMENTAL: POSSÍVEL NO MUNDO OU MUNDOS POSSÍVEIS?
4.1. Um só mundo, incontáveis problemas: leis, causas e as esparrelas da co-sustentabilidade
Como pudemos perceber no primeiro capítulo, Goodman já antecipava os
problemas originados por sua análise antes mesmo de propor o critério de co-
sustentabilidade entre enunciados. Este fato é subjacente a um problema ainda
mais amplo. J. Weiner, em Counterfactual Conundrum (1979), nos permite
recordar que o principal obstáculo de Goodman está justamente em definir “quais
são os critérios gerais que tornam um enunciado verdadeiro relevante para um
contrafactual particular” (Weiner, 1979, p.499).
Afinal, Goodman constata em seu artigo, que mesmo quando as condições
relevantes são identificadas, ainda não temos um entendimento pleno de seu
funcionamento, nem bases seguras para decidir a inclusão ou expulsão dos
enunciados incompatíveis. As dificuldades se tornam patentes, especialmente no
caso da co-sustentabilidade, quando Goodman percebe que sua análise chega a
uma circularidade intransponível. Pois para determinar a verdade de um
contrafactual é necessário verificar se o conjunto S, que age em concurso com o
antecedente A, é compatível e co-sustentável com este antecedente. Ou seja, que a
verdade de A nos leve a S, mas que não exista um conjunto alternativo S’, que
seja igualmente compatível com A, e que nos leve a ¬ S; de tal sorte que (A → S)
∧ ¬ (A → ¬ S). Mas infelizmente, Goodman reconhece:
achamos-nos envolvidos num regresso infinito ou um círculo; pois co-sustentabilidade é definida em termos de contrafactuais, mas o significado de contrafactuais é definido em termos da co-sustentabilidade (Goodman, 1947, p.121) Para Goodman, a inferência envolvida em contrafactuais não seria
resguardada por um princípio lógico, mas por alguma lei natural, física ou causal
que possa produzir, suficientemente, a inferência. Para ilustrar essas dificuldades,
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basta recordar o primeiro dos problemas com o qual Goodman se defronta: o fato
de que dentre as possíveis sentenças verdadeiras de S está a negação ¬ A do
antecedente. Portanto, deve-se excluir enunciados logicamente incompatíveis com
o antecedente. Segundo Goodman, deveríamos ainda proceder de um modo que
nosso critério “não apenas admita o contrafactual verdadeiro... mas também que
exclua o condicional oposto” (Goodman, 1947, p.119). Mas como nota Weiner
(1979), mesmo tendo excluído “todos os enunciados logicamente incompatíveis
com o antecedente, o conseqüente, e a negação do conseqüente... Goodman nos
mostra que estes critérios não são restritivos o suficiente para nos dar os
enunciados relevantes.” (Weiner, 1979, p.500). Assim, todos os enunciados de S
que operam em conjunção com o antecedente “devem não apenas ser compatíveis
com o antecedente, conseqüente, e a negação do conseqüente, eles devem ser
também co-sustentáveis com o antecedente” (Weiner, 1979, p.500). O critério de
co-sustentabilidade (cotenability), como vemos, aponta que um enunciado B de S
é co-sustentável com o antecedente A, se e somente se não for o caso que, fosse A
verdadeiro, o enunciado B de S tornar-se-ia falso. Mas para melhor visualizar o
problema da co-sustentabilidade, devemos aprofundar nossa análise. Suponhamos
o seguinte contrafactual:
(1) Se fósforo F tivesse sido riscado (R), então F teria acendido (A); de
modo que (R → A)
Mas também temos o outro contrafactual
(2) Se fósforo F tivesse sido riscado (R), então fósforo F não estaria seco
(¬ S); de modo que (R → ¬S).
Como elucida D. Edgington (1995, p.248), supomos que (1) é um
contrafactual verdadeiro, enquanto (2) carece de qualquer plausibilidade. Mas
como a teoria de Goodman poderia explicar esse contraste? Em (1), inferimos que
F teria acendido (A) em razão de que F tivesse sido riscado (R), em conjunto com
algumas leis causais gerais (L) e condições relevantes (como F estava seco (S))
nos leva à conclusão F teria acendido (A), embora possamos igualmente afirmar
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que em (2), o antecedente fósforo F tivesse sido riscado (R) em concurso com as
mesmas leis causais gerais (L) e agora fatos como F não teria acendido (¬ A) nos
levaria à conclusão de que F não estaria seco (¬ S). Segundo o critério de
Goodman, (1) seria verdadeiro porque F estava seco (S) é co-sustentável com F
tivesse sido riscado (R); enquanto “(2) é falso porque, embora o fósforo não tenha
acendido [...¬ A...], isto não é co-sustentável com a assunção de que [o fósforo]
foi riscado” (Edgington, 1995, p.248), de modo que quando “o fósforo tivesse sido
riscado” é verdadeiro, “o fósforo não acenderia” torna-se falso.
Pois notemos que, se tivéssemos um conjunto P de sentenças verdadeiras,
ele incluiria, no primeiro caso, a condição relevante F estava seco (S), enquanto
no segundo caso, inclui a condição relevante F não está aceso, então, teremos que
(R ∧ L ∧ P... ∧ S) → A é logicamente equivalente a (R ∧ L ∧ P... ¬ A) → ¬ S.
Bennett alude a este problema, de forma bastante oportuna, de o “problema do
contrapositivo causal” (‘causal contrapositive problem’) (Bennett, 2003, p.310).
Como disse Wilfrid Sellars, referindo-se ao problema, “é neste ponto que
Goodman explode sua bomba” (Sellars, 1958, p.229) e é isso que o levou a adotar
o critério de co-sustentabilidade que é, em suma, circular. Pois Goodman quer que
não seja o caso que fósforo tivesse sido riscado implique fósforo não está seco (R
→ ¬ S), ou seja, ¬ (R → ¬ S); mas que seja inequivocamente o caso que (R →
A). Então, o critério de co-sustentabilidade excluirá (R → ¬ S), mas isso é
totalmente circular, pois o critério afasta (R → ¬ S) pelo fato de que (R → A), e o
critério aceita (R → A) porque proíbe (R → ¬ S).
A propósito, com respeito a este artigo de 1958, Counterfactuals,
Dispositions, and the Causal Modalities, podemos afirmar que Wilfrid Sellars foi
o primeiro autor a conseguir destrinchar um pouco melhor este problema, embora
não o tenha feito de forma a resolvê-lo completamente. Sellars reconhecia que o
fósforo não poderia ser ao mesmo tempo riscado, estar seco... e não acender, ou
equivalentemente, não estar aceso, ser riscado... e não estar seco. Sellars se
concentrou em precisar uma assimetria causal entre os enunciados, de maneira a
romper “a simetria ao mover de estados [completos] a entradas de estados”
(Bennett, 2003, p.311), ou seja, que uma coisa era algo estar completamente – de
forma acabada - em um estado, outra coisa seria algo ingressar, ou se mover a
esse estado. Sellars diz explicitamente que “o enigma de Goodman sobre a co-
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sustentabilidade emerge da falha em apreciar a força da forma verbal de
contrafactuais nos discursos reais” (Sellars, 1958, p.230).
Sellars recorda que em uma nota de seu artigo (1947), Goodman reconhece
que é possível haver sentenças similares ao contrafactual Se fósforo F tivesse sido
riscado (R), então fósforo F não estaria seco (¬ S) que sejam, no entanto,
verdadeiras ou implicáveis por alguma razão muito específica. Sellars diz que
talvez Goodman tivesse em mente algo do tipo
Tom: * Se o fósforo F tivesse sido riscado, F teria ficado molhado (não
estaria seco)
Dick: Por que?
Tom: Bem, Harry está ali e ele tem uma fobia relacionada a fósforos.
Sempre que ele vê alguém riscando um fósforo ele coloca o fósforo
imediatamente na água. (Cf: Sellars, 1958, p.231)
É claro que, nesse diálogo, estamos aduzindo condições muito estranhas,
mas que de certa forma implicam o conseqüente. Então nesse caso, o critério de
co-sustentabilidade proibiria o contrafactual * de ser verdadeiro? Parece que não
haveria razões para tal, já que o contexto indica que em virtude da fobia de Harry,
e com condições tais que F não acendeu ∧ F estava bem feito ∧ Havia oxigênio o
suficiente ∧ F estava seco ∧ F ainda não foi riscado..., veremos que (Se) o fósforo
F tivesse sido riscado é verdadeiro, isso implica sem problemas que (então) F
teria ficado molhado é verdadeiro. O que nos sugere, conforme Sellars avança seu
argumento, que o problema deve estar na ação do contexto que permite a
inferência.
No caso anômalo de Goodman, a estranheza é suscitada na ação de uma “lei
geral legítima”, tal que é estranho que F não estaria seco resultasse, em virtude de
uma lei causal, da causa F tivesse sido riscado, já que não há nada próximo na
natureza que indique uma lei tal que sempre ao riscar um fósforo, o fósforo
começa a ficar molhado (que no caso de Harry, entendemos perfeitamente; no
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caso de uma lei causal geral, não faz sentido). Mas este problema fica mais claro
quando traduzimos, seguindo Sellars, os contrafactuais nos seguintes termos:
(i) Se F está seco, então Se F tivesse sido riscado, F acenderia
(ii) Se F não está aceso, então Se F tivesse sido riscado, então F não
estaria seco (estaria molhado)
Sellars acredita que esta tradução nos mostra que quando (i) é verdadeiro,
(ii) se torna obviamente falso, pela razão de que para (ii) ser verdadeiro, deveria
haver um estado-de-coisas que não existiria caso F fosse riscado, um estado-de-
coisas fisicamente impossível. Mas porque rejeitamos (ii)? Para Sellars,
rejeitamos (ii) pelo fato de que simplesmente “não é o caso que ao riscar fósforos
nós os causamos a se tornar molhados, em razão de não terem acendido” (Sellars,
1958, p.236).
Em Counterfactuals, Dispositions, and Capacities (1973), R. S. Woolhouse
(1973) retoma essas idéias, recordando que a estratégia de análise de Sellars está
justamente em não tratar condições relevantes de forma homogênea. Como vimos,
a análise de Sellars ilustra quatro tipos claramente distintos de condições que são
incluídas no conjunto S:
primeiro, um objeto de certo tipo, um fósforo; em segundo, uma ação, riscar um fósforo; em terceiro, o resultado desta ação, um fósforo se acende; e em quarto, as condições pelas quais tal ação a este objeto tem um determinado resultado, o fósforo está seco, há suficiente oxigênio presente, etc. (Woolhouse, 1973, p.558).
Nossa experiência com algo que poderíamos chamar de “a regra geral do
fósforo”, nos mostra simplesmente que “sempre que riscamos fósforos, e todas as
outras condições são satisfeitas, ele acende”, então a expressão ‘riscar fósforos
que não acendem’, com as condições relevantes correlatas satisfeitas, é algo que
simplesmente não existe em nosso mundo físico. Pois se temos uma lei universal
tal que
(∀x) (Rx ∧ Sx) ⊃ Ax (Sempre que x é riscado ∧ x está seco ∧ ..., x acende)
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Então isso impede, para Sellars, que tenhamos uma lei universal tal que
(∀x) Rx ⊃ ¬Sx (Sempre que x é riscado, x passa a não estar seco)
A solução de Sellars, no entanto, seria boa não fosse certa imprecisão de
como os enunciados estão sendo causalmente modalizados. Conforme observação
de Bennett (2003, p.312), Sellars quer dizer algo como:
É o caso que: (Riscado ∧ Seco) ⊃ ‘Começa’ a acender (e não ‘acende’)
Não é o caso, porém que: (Riscado ∧ Não aceso) ⊃ ‘Começa’ a ficar
molhado
A idéia de Sellars, portanto, é a de explicitar o direcionamento causal
relevante para o contrafactual, mas exige agora a necessidade de maiores
esclarecimentos sobre como algo pode ser causalmente modalizado, que tipo de
relação existe, na totalidade dos fatos, de algo que passa da potencialidade à
atualidade.
4.2. Contrafactuais, ambigüidade e contexto
Lewis, a partir do capítulo 3 de Counterfactuals, onde reexamina teorias
precedentes, critica o fato de que os teóricos das teses consequencialistas – ou
“metalingüísticas”, como prefere Lewis - enxertam nas condições de verdade e
assertibilidade dos ‘contrafactuais’ “entidades lingüísticas – argumentos e suas
premissas” (Lewis, 1973, p. 66). Lewis admite que consequencialistas, como
Goodman e Mackie, empenharam-se nos problemas certos, mas com os recursos
errados.
As primeiras teses se ocuparam da investigação a respeito das premissas
verdadeiramente adequadas para agir em concurso com o antecedente. Para
Lewis, sua teoria abrange exatamente o mesmo propósito; mas enquanto os
primeiros se utilizaram de cláusulas e restrições para expulsar os enunciados,
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Lewis se utiliza de um aparato semântico que diagnostica esses enunciados em
virtude de uma similaridade comparativa entre mundos. Ambos, no entanto, como
reconhece Lewis, querem simplesmente a mesma coisa: banir as diversas
maneiras em que o antecedente se comporta de forma indesejada.
Dessa forma, a análise de Lewis, paralelamente a de Goodman, determina a
verdade de um contrafactual ‘φ □→ ψ’ apenas quando ψ for verdadeiro em todos
os mundos-φ de determinada espécie. Segundo Lewis, a diferença é que os
consequencialistas estariam atrás de premissas que são adequadas para uso com o
antecedente; ele estaria atrás dos mundos-φ em que essas premissas se encontram.
Mas Lewis critica o fato de que a intuição de Goodman é incapaz de dirimir os
conflitos que surgem numa disputa das condições relevantes nos casos em que há
ambigüidade contextual das inferências. Afinal, duas pessoas poderiam deliberar
o contrafactual e sustentar seu antecedente utilizando-se de repertórios distintos de
condições relevantes, causas, ou até mesmo regularidades não-acidentais (leis
naturais).
Lewis nota, com razão, que o antecedente manifesto no contrafactual não
cobre, de maneira explícita, a totalidade dos antecedentes cogitados por cada
pessoa numa disputa. Eventualmente, alguém poderá assumir, equivocadamente,
que outras pessoas deliberem o contrafactual sob os mesmos pressupostos, ou
como diz Lewis, que outras pessoas “tenham em mente a mesma expansão do
antecedente” (Lewis, 1973, p.66). Em muitas ocasiões ocorrerá, portanto,
ambigüidade do contexto de suposição que cada um ergue para deliberar o
contrafactual. Lewis ilustra uma possível ambigüidade com o exemplo oferecido
por Quine1; o seguinte par de contrafactuais:
Se Júlio César estivesse no comando [na Coréia], ele teria usado a bomba
atômica
Se Júlio César estivesse no comando, ele teria usado catapultas
1 Os exemplos estão em Quine, W. V. O. Word and Object. Cambridge, Mass.: The MIT Press, 1960, p.222
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Segundo Lewis, em um dos contextos possíveis, erigimos circunstâncias tais
que resolvam a ambigüidade de modo que os mundos em que Júlio César está em
comando nas batalhas modernas são mais próximos ao mundo atual. Porém, a
ambigüidade é dirimida de modo diverso se pensarmos em termos inversos. Ora
daremos mais relevância às similaridades ou diferenças em virtude das aptidões
de Júlio César; ora daremos mais importância às circunstâncias enfrentadas por
generais em batalhas da Antiguidade. Para Lewis, a semântica de mundos
possíveis pode elucidar esta diferença e explicitar as condições em que cada
contrafactual se torna verdadeiro, ou falso. Ela esclareceria os contextos em que
cada suposição se sustenta, enquanto as teses consequencialistas seriam inócuas
em apreendê-las. Lewis toma a explicitação dos contextos como parte de uma
resolução que já viria embutida em seu sistema de esferas; por discriminar, de
antemão, similaridade comparativa entre mundos. Para Lewis, as teses
consequencialistas não possuem recursos semânticos para traçar adequadamente
estes contextos.
Não obstante, em uma alusão bastante lúcida a estes tipos de contrafactuais,
Nicholas Rescher (2007) propõe que haja casos em que podemos resolver esta
ambigüidade recorrendo a critérios distintos. Rescher alude ao critério de
economia informativa e à noção de restauração da consistência epistêmica. Ele
argumenta que muitas vezes o direcionamento das expressões pode ser
diretamente implicado pelo estoque de crenças, que interpreta as situações e
procura pelo caminho mais econômico de preservação dessa consistência
epistêmica. Esta tese vindica um tratamento bastante afeito especialmente às
idéias de Ramsey. Se temos, portanto, um contrafactual tal como
Se o ‘Cristo Redentor’ estivesse na ilha de Manhattan, então ele estaria no
Estado de Nova York
Temos o seguinte contexto de fatos
(1) O ‘Cristo Redentor’ fica de fato na cidade do Rio de Janeiro, Brasil
(2) O ‘Cristo Redentor’ não está na ilha de Manhattan
(3) Manhattan fica de fato no Estado de Nova York
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Segundo Rescher, quando incluímos a hipótese contrafactual aos nossos
fatos, podemos ajustá-lo de duas maneiras que implicam em mudanças distintas.
Podemos chegar ao contrafactual mais natural
Se o ‘Cristo Redentor’ estivesse na ilha de Manhattan, então não estaria no
Brasil, e sim no Estado de Nova York
Nesse primeiro caso nós abandonamos o fato (1) e tentamos restaurar
consistência ajustando o antecedente aos fatos (2) e (3). Mas notemos que também
poderíamos chegar ao contrafactual rival, mais anômalo
Se o ‘Cristo Redentor’ estivesse na ilha de Manhattan, então a ilha de
Manhattan estaria na cidade do Rio de Janeiro
Nesse segundo caso, abandonamos o fato (3) e tentamos restaurar
consistência em virtude de (1) e (2). De acordo com Rescher, propendemos a
julgar o contrafactual tendo por hipótese o primeiro cenário pelo simples fato de
que o deslocamento de uma estrutura individual (tal como o ‘Cristo Redentor’) é
informativamente mais econômico do que o deslocamento de uma ilha inteira, e
visto que nos inclinamos a preservar “aquelas alegações que são sistemicamente
mais informativas por serem mais gerais e de maior escopo – devemos manter a
ilha no lugar” (Rescher, 2007, p.142). Para estender as conclusões de Rescher,
caso seu ponto não tenha ficado claro, adicione a informação
(4) O Estado de Nova York fica nos Estados Unidos da América
imagine agora o contrafactual
Se o ‘Cristo Redentor’ estivesse na ilha de Manhattan, então os Estados
Unidos da América estaria no hemisfério Sul.
É bastante claro que o contrafactual sistemicamente mais econômico irá
prevalecer sobre este último contrafactual. O importante a se notar é que a
intuição de Rescher procura favorecer contextos de maneira objetiva. Deslocar os
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Estados Unidos da América inteiro para o hemisfério Sul demandaria, em termos
epistêmicos, uma restauração de consistência muito mais violenta. Mas a solução
de Rescher pode parecer restritiva demais.
Ao abordar o contrafactual sobre Júlio César, por exemplo, Rescher defende
que a avaliação de um contrafactual não dependerá apenas das informações
disponíveis e relevantes, mas também da diferença entre os contextos
intencionados por cada questão. No caso suscitado por Lewis, a questão original
é, para Rescher, indecidível, de modo que o problema não poderia incidir sobre
qual dos dois contrafactuais respondem à questão inicial. O ponto é certamente
polêmico. Para o caso do ‘Cristo Redentor’, a opção de Rescher parece
extremamente viável; para o caso de Júlio Cesar, Lewis possivelmente diria que
explicitar o que é intencionado pelas questões é exatamente o que sua teoria já faz
e que nenhuma precedente procederia de forma satisfatória.
4.3. Mundos Possíveis: a nova miragem dos filósofos?
Bennet talvez seja quem melhor compreendeu as vicissitudes que levaram
ao desprestígio das teses consequencialistas e ao entusiasmo com relação às
semânticas de ‘mundos possíveis’. Em Counterfactuals and Temporal Direction
(1984), quase 40 anos após o artigo de Chisholm, Bennett argumenta que em
muitos aspectos ou ocasiões, ambas as posições encontraram meios para se
aproximarem e traduzirem os êxitos de cada uma em novos recursos para cada
teoria. Obviamente, não é sempre que isto é possível e, na maioria das vezes, a
utilização de um conceito como o de ‘mundo possível’ foi indispensável.
Especialmente, por exemplo, quando a análise privilegiava alguma relação de
similaridade que só pudesse ser depreendida recorrendo-se a mundos possíveis e
aparatos semânticos modais.
Mas mesmo reconhecendo que sua posição pudesse se provar equivocada
(ou simplesmente impossível), Bennett não consegue esconder, nessa época, sua
predileção pelas primeiras teses contrafactualistas, por uma razão muito simples.
Sua frase é intensamente emblemática: “Por preferir [...] uma compreensão real
[...] à uma verdade simplista, eu claramente preferiria dispensar a similaridade e
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me juntar a Goodman, Chisholm, Jackson, Pollock, Slote e outros” (Bennett,
1984, p.90).
A citação de Bennett é simbólica, pois ela reflete o que é sentido por um
extenso grupo de filósofos, incluindo muitos daqueles que se renderam às teorias
posteriores. ‘Mundos possíveis’, ‘similaridade entre mundos’, ‘realismo modal’,
etc. são recursos incríveis na elucidação de aspectos semânticos da linguagem.
Como afirma M. Pendlebury, para citar um exemplo, “uma abordagem de mundos
possíveis para semântica de condicionais é tecnicamente bastante conveniente e
útil” (Pendlebury, 1989, p.187).
Não obstante, é incrível o enorme apelo que exerceram em hipóteses
metafísicas. Talvez, supõe Stalnaker, pela força que a imagem suscitada por
Leibniz poderia causar em seus leitores. “Um infinito enxame de universos
completos, cada qual com sua própria tendência a existir, lutando por uma posição
que só poderia ser ocupada por um [único universo]...” (Stalnaker, 2003, p.25). E
Stalnaker prossegue, “achamos difícil poder levar estes mitos metafísicos mais a
sério do que outras histórias criacionistas menos abstratas, contadas por nossos
ancestrais primitivos” (Stalnaker, 2003, p.25).
O conceito de mundo vindicado por Stalnaker pode ser bem ilustrado pela
maneira com a qual o descreve em Possible Worlds, artigo originalmente
publicado em 19762, argumentando que sua noção de mundo não devém de uma
concepção metafísica forte de mundo, mas é derivada do papel que o conceito
pode exercer nas explicações de uma teoria de condicionais e, conseqüentemente,
dos contrafactuais. Destarte, a idéia de ‘mundo’, para Stalnaker, resguarda,
sobretudo um poder heurístico ou explicativo, para ilustrar as maneiras pelas quais
o mundo e seu ‘mobiliário’ poderiam ser, ou ter sido, diferentes. Embora em nada
desabone diretamente as concepções metafísicas mais fortes, a teoria de Stalnaker
simplesmente não pretende recrudescer suas obrigações metafísicas a ponto de
comprometer suas virtudes práticas.
De maneira muito distinta, embora a abordagem de Lewis acerca dos
contrafactuais seja muito mais robusta que a de Stalnaker, com relativa ampliação
2 Reimpresso em Stalnaker, R. C. Ways a World Might Be. Metaphysical and Anti-Metaphysical
Essays, Oxford University Press, 2003, p.25ss.
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de casos recalcitrantes de contrafactuais, as concepções de David Lewis
empossam um realismo extremo de mundos possíveis com implicações
dificilmente aceitáveis. Lewis não hesita inclusive em admitir suas
excentricidades. Ao abordar os fundamentos de sua teoria em Counterfactuals, em
especial, suas concepções sobre ‘mundos possíveis’, Lewis reconhece que “é
chegada a hora de encarar que [sua] análise se assenta em fundamentos suspeitos”
(Lewis, 1973, p.84). A posição de Lewis se mostra clara na seguinte passagem:
Acredito que existem outros mundos possíveis além do mundo em que habitamos. Se se quiser um argumento, é este. É indiscutivelmente verdadeiro que as coisas poderiam ter sido diferentes de inúmeras maneiras. Mas o que significa isto? A linguagem ordinária permite a paráfrase: há muitas maneiras como as coisas poderiam ter sido além das maneiras como são atualmente. A julgar pela sua forma, esta sentença é uma quantificação existencial. Ela diz que existem muitas entidades descritas de determinada forma, isto é, ‘maneiras como as coisas poderiam ter sido’’. Acredito que as coisas poderiam ter sido diferentes de diversas maneiras. Acredito ser admissível a paráfrase sobre aquilo em que acredito; tomando a paráfrase em sua real forma, acredito conseqüentemente na existência de entidades que poderiam ser chamadas de ‘maneiras como as coisas poderiam ter sido’. Prefiro chamá-las de ‘mundos possíveis’ (Lewis, 1973, p.84)
Com esta passagem, é possível observar que o argumento de Lewis em
favor de uma concepção realista de mundos possíveis é curiosamente focado em
nossa linguagem ordinária e nos usos lingüísticos que atribuem atualidade a
estados-de-coisas não atuais. Seu argumento parte do pressuposto de que nossas
intuições lingüísticas mais espontâneas, sobre estados fictícios, (ou
potencialidades) são reflexos de uma crença patente que temos da existência de
entidades como ‘mundos possíveis’.
Segundo Stalnaker (2003), Lewis se compromete a 4 teses principais: Em
primeiro lugar, mundos possíveis existem, de modo que o ‘mundo atual’ é tão real
quanto qualquer outro mundo possível; sendo equivalentes em realidade, mundos
possíveis são também objetos do mesmo tipo que o mundo atual, eles não diferem
em espécie, mas apenas em matéria contingente; em terceiro lugar, a análise
indexical do adjetivo ‘atual’ será, conseqüentemente, a análise correta. Por
último, mundos possíveis não podem ser reduzidos a instâncias mais básicas.
Essas teses se tornam manifestas especialmente quando investigamos a posição de
Lewis sobre a natureza do ‘mundo atual’ e sua relação com ‘mundos possíveis’.
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4.4. Um grão de areia no deserto: mundos possíveis e indexicalidade
Para Lewis, um ‘mundo atual’ é simplesmente uma realidade concreta
dispersa numa coleção infinita de ‘mundos possíveis’, e com os quais não
desponta qualquer maior prestígio. Nosso ‘mundo’, o ‘mundo’ outrora habitado
por Lewis, é como um grão de areia perdido em um infindável deserto de
‘mundos’. Estendendo a analogia, poderíamos dizer que para Lewis, embora cada
grão de areia tenha um formato único e irrepetível, não há nada essencial em um
grão particular de areia que o destaque de qualquer outro grão. Como vimos, para
Lewis mundos diferem em contingência, não em essência, isso inclui um mundo
atual frente a um mundo possível qualquer; mais que isso, a maneira como
designamos nosso mundo como atual, contraposto a qualquer outro possível,
reflete apenas uma atitude espontânea que temos (embora para Lewis seja
equivocada) em elevar o mundo que habitamos a uma condição privilegiada. Estas
idéias de Lewis atravessam toda sua obra, especialmente Anselm and Actuality
(1970) e Counterfactuals (1973).
Todos estes fatores contribuíram para uma interpretação indexical da noção
modal de ‘atualidade’, que tal como indexicais espaciais (como ‘lá’ e ‘aqui’) ou
temporais (como ‘hoje’ e ‘ontem’) dependem do contexto de uso. Desse modo,
assim quando alguém diz que no (seu) mundo atual a força gravitacional entre
dois corpos guarda uma proporção rígida com sua distância, esta pessoa estaria
dizendo, para um realista extremo como Lewis, algo como “está chovendo aqui”.
Em Anselm and Actuality, Lewis defende, por exemplo, que o termo “‘atual’ e
seus cognatos devem ser analisados como termos indexicais: termos cujas
referências variam, dependendo dos aspectos relevantes do contexto de
proferimento” (Lewis, 1970, pp.184-185).
Esta forma indexical de conceber ‘mundos’ se alastrou por toda comunidade
filosófica como uma pequena faísca num palheiro seco, tendo tanto conquistado
alguns defensores, quanto motivado duras críticas. P. Van Inwagen (1980)
reconhece, por exemplo, a originalidade que tais idéias ostentavam para diversas
questões ontológicas, como o estatuto ontológico de propriedades, para dar um
exemplo. A originalidade, no entanto, não proibiu a censura às idéias de Lewis.
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Um exemplo oferecido por Van Inwagen é o fato de que Lewis trata a noção de
mundo possível de forma ambígua. Em suas palavras, “Lewis não é consistente
quando toma mundos possíveis como maneiras como as coisas poderiam ter sido”
(van Inwagen, 1980, p.406), isso porque se a seguinte sentença, “x é uma maneira
como as coisas poderiam ter sido”, for tomada como uma sentença extensional
aberta, os objetos que a satisfazem deveriam ser abstratos; no entanto, Lewis não
toma a noção de mundo dessa forma abstrata. Como recorda Van Inwagen, isso
fica manifesto quando Lewis diz não acreditar “que outros mundos são
[simplesmente] conjuntos de sentenças” (Lewis, 1973, p.86).
Em todo caso, posições como a de Lewis eram freqüentemente defendidas
sob o argumento de que tais convicções metafísicas ofereciam importante
instrumento na elucidação de condicionais contrafactuais (e com alguma justiça o
fazem). Mas autores como Robert Adams (1974) e Stalnaker (1976) relutaram em
aceitar que essas idéias pudessem ser defendidas, em qualquer sentido possível de
defesa, já que traziam conseqüências indesejáveis.
Bennett alude, em seu livro (2003), a uma dessas críticas, primeiramente
apresentada por Robert Adams em Theories of Actuality (1974). A crítica é um
tanto curiosa, mas vale como argumento. Segundo este autor, nossa censura moral
em ‘atualizar’ atos cruéis e perversos (que podem ser livremente cogitados e
deliberados pelo intelecto) reflete a forte intuição que temos da absoluta
peculiaridade do ‘mundo atual’. Sobretudo, a ‘teoria indexical da atualidade do
mundo’ não consegue justificar a inadmissibilidade moral da ‘atualização destes
atos’, já que “ocorrerão em algum outro mundo possível de qualquer modo, caso
não ocorram neste mundo” (Adams, 1974, p.216).
Bennett estende o argumento de Adams para um cenário ainda mais
completo: imaginemos uma criança a ponto de ser assassinada por um criminoso.
É óbvio que qualquer um que esteja em condições de salvá-la (e que não
compartilhe das destituições morais do criminoso, é claro), irá ao menos tentar
ajudá-la. Contudo, em termos utilitaristas, mesmo que o socorro tenha sido bem-
sucedido, o ato em si não irá “reduzir a quantidade total de dor sofrida; [pois] a
dor que a criança poderia ter sofrido é sofrida por alguma criança em algum
mundo” (Bennett, 2003, p.154). Mas é claro que, adotar a semântica de mundos
possíveis para o problema dos contrafactuais não implica necessariamente em
adotar um enfoque de realismo extremo. De fato, há diversas maneiras de adotar o
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conceito de ‘mundo’ sem, no entanto, resvalar-se para compromissos metafísicos
fortes.
Gideon Rosen, por exemplo, em seu Modal Fictionalism (1990) sugere que
todos os enunciados sobre mundos possíveis sejam compreendidos de uma forma
elíptica, de modo que o vocabulário típico de mundos possíveis, tal como
‘antecedente A é verdadeiro no mundo β’ signifique algo como ‘De acordo com o
realismo modal extremo, ‘antecedente A é verdadeiro no mundo β’’. “Poderia
haver cisnes azuis...”, diz Rosen, “se e somente se houver [no sentido realista
extremo] um mundo W tal que, em W, existem cisnes azuis” (Rosen, 1990,
p.395).
Para Rosen, esta suposição contrafactual implica que haja [ou ‘existe’ num
sentido forte] um mundo possível (não-atual) em que cines azuis existem. O
problema subjacente a esta implicação é o fato de que a admissão da análise de
mundos possíveis acarretaria em um “compromisso em acreditar em outros
mundos possíveis” (Rosen, 1990, p.395). É exatamente a este compromisso que
Rosen pretende se furtar e, por isso, ele trata a análise de mundos possíveis de
maneira dissimulada. Rosen enfatiza este ponto inclusive, reconhecendo que “a
linguagem de mundos possíveis se tornou um instrumento quase indispensável.
Pois ela permite a articulação de perspectivas modais com a clareza e vivacidade
que não podem ser atingidas por outros meios” (Rosen, 1990, p.395).
4.5. O ‘pressuposto do limite’: incomensurabilidade entre mundos
As teorias que recorrem às semânticas de mundos possíveis se valem de
uma mesma premissa: para a análise se suceder, de forma a poder interpretar um
contrafactual como verdadeiro, é indispensável que o mundo possível mais
adequado - onde o antecedente é verdadeiro - (ou o conjunto de mundos mais
adequados) seja selecionável. Mas qual o significado de mundo mais adequado?
Para Stalnaker, o mundo mais adequado é aquele que exerce a menor
violência com relação ao mundo atual, de modo que se o conseqüente for
verdadeiro neste mundo mais adequado em que o antecedente se segue, então o
contrafactual é verdadeiro no mundo atual. Mas o que significa exercer a menor
violência?
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Como já vimos anteriormente, a existência de dificuldades intransponíveis
levou Lewis a rechaçar o modelo de Stalnaker por tolerar o chamado “pressuposto
do limite”, i.e., a suposição de que podemos identificar, sem equívoco, um único e
exclusivo mundo que seja o mais próximo do ‘mundo atual’. Na verdade, não é
muito claro o que Stalnaker quer dizer exatamente quando fala estritamente nestes
termos, “causar a menor violência”. Uma das possíveis acepções para “menor
violência possível” seria, obviamente, que fosse o mais semelhante ao mundo
atual, tanto quanto permitido. Mas em última análise, o que define este “tanto
quanto permitido”?
Podemos recordar o exemplo da linha, dado por Lewis. Se a seguinte linha
entre as aspas, “_______”, medisse mais que uma polegada... Qual será a linha
contrafactual mais próxima à linha factual “_______” (menor que uma polegada),
tal que seja ao mesmo tempo, maior que uma polegada? Aqui Lewis de certa
forma alude a uma relação incomensurável que é estabelecida entre mundo atual e
o mundo contrafactual mais próximo que contenha esta linha e onde o antecedente
é verdadeiro. Pois será impossível depreender o mundo mais próximo neste caso .
Em virtude deste fato, como vimos, Lewis inaugurou um conceito de
similaridade que prescindia de uma noção quantitativa, denominando-a
similaridade comparativa. Tal concepção o desobrigaria a determinar “o quão”
semelhante serão dois mundos, informando apenas que dois mundos são
semelhantes em vista de um terceiro mundo que funciona de base para auferir a
similaridade. Mas sua solução não esclarece totalmente o problema da
similaridade entre mundos e da maneira em que esta relação pode ser identificada
no mundo, ou ser concebível.
Kit Fine, em reputada análise crítica (1975) de Counterfactuals de Lewis,
ergue algumas objeções bastante contundentes. Um dos exemplos de Fine é que a
teoria de Lewis sanciona como verdadeiros alguns contrafactuais subjuntivos
patentemente falsos – ou no mínimo controversos. Conforme Fine, o contrafactual
‘Se Oswald não tivesse atirado em Kennedy, então alguém o teria feito’ será
provavelmente verdadeiro para a teoria de Lewis, já que a suposição de que outra
pessoa teria atirado em Kennedy (de qualquer maneira) será menos divergente dos
fatos de nosso mundo do que a suposição de que ninguém atirou em Kennedy.
Estes exemplos foram instrutivos porque mostraram que a teoria de Lewis permite
que, para qualquer contrafactual que contenha uma grande divergência em relação
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ao ‘mundo atual’, mesmo quando o contrafactual pareça verdadeiro ou mais
provável, podemos sempre substituir esta mudança por outra que trouxesse um
impacto cujas conseqüências fossem mais similares ao nosso mundo.
Outro exemplo instigante, de Fine, é quando consideramos um contrafactual
tal como ‘Se Nixon tivesse apertado o botão, teria havido um holocausto nuclear’
e o imaginamos como verdadeiro ou bastante provável. O problema é que,
segundo a análise de Lewis, este contrafactual será falso, pois se supomos que
nunca haverá um holocausto nuclear, então em relação a qualquer mundo onde o
antecedente e o conseqüente são ambos verdadeiros – portanto, que a ação de
Nixon engendrou o holocausto nuclear - haverá um mundo mais próximo do
‘atual’ onde o antecedente é verdadeiro, porém o conseqüente é falso – i.e., que a
ação de Nixon não engendrou o holocausto nuclear -, já que a não manifestação
do holocausto nuclear, por uma intervenção miraculosa qualquer, é menos
divergente do ‘mundo atual’.
A resposta de Lewis a Fine veio apenas em 1979, ao publicar
Counterfactual Dependence and Time’s Arrow. Seu argumento se segue de forma
bastante engenhosa, mas pouco convincente. Lewis primeiramente admite que
existam tais mundos onde Nixon aperta o botão, num instante t, mas não deflagra
o holocasuto nuclear. A tarefa recai, portanto, em reconhecer qual desses vários
mundos será menos divergente do mundo w0, o mundo em que Nixon aperta o
botão no instante t.
Existirá segundo Lewis, uma primeira classe de mundos w1, que são
exatamente iguais a w0 até pouco antes do momento t (o momento em que Nixon
aperta o botão). Ambos se assemelham em todos os aspectos possíveis. Contudo,
pouco antes de t, w0 e w1 começam a se divergir, as leis determinísticas de w0
passam a ser violadas em w1 dando lugar a um milagre. Essa intervenção faz com
que Nixon aperte o botão e, desde este ponto, os mundos w0 e w1 se divergem para
sempre.
No segundo caso, temos os mundos w2, onde não existem intervenções
miraculosas. As leis determinísticas de w0 são integralmente respeitadas, ou seja,
as leis determinísticas de w0 e w2 coincidem perfeitamente. Como Nixon aperta o
botão em w2 e as leis deste mundo são as mesmas de w0, então Lewis conclui que
tais mundos serão integralmente divergentes, pois tendo as mesmas leis, eles ou
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bem seriam semelhantes em todos os aspectos, ou bem em nenhum. Para Lewis,
os mundos w2 serão mais divergentes de w0 do que w1.
Uma terceira classe de mundos w3 reúne os mundos que começam da
mesma forma que w1, i.e., pouco antes de t, w3 e w0 são totalmente semelhantes.
Então, pouco antes de t, ocorre uma intervenção miraculosa fazendo com que
Nixon aperte o botão. Mas pouco após t, ocorre outra intervenção miraculosa, de
modo que todos os vestígios são apagados, o circuito elétrico é interrompido, etc.
Dessa forma,o holocausto nuclear não ocorre e todas as leis de w3 voltam a
funcionar da mesma forma. Porém, apesar do conseqüente não ter se seguido, o
mundo w3 é tal que Nixon sabe que apertou o botão, embora nada tenha ocorrido.
Segundo Lewis, as similaridades entre w0 e w3 não durariam, e de fato, a
tendência é que se divergissem mais e mais. Na verdade, Lewis ilustra os mundos
w3 apenas para argumentar que qualquer proximidade em matéria dos fatos (como
há entre w0 e w3) será sempre melhor, para sua relação de similaridade, do que o
milagre mais insignificante.
Lewis ainda prossegue com uma quarta classe de mundos w4, que começam
exatamente como w1 e w3, sendo perfeitamente semelhantes a w0 até pouco antes
do instante t. Há uma intervenção miraculosa e tudo se segue da mesma forma que
em w3. Nixon aperta o botão em t, mas logo após começa uma sucessão de
intervenções miraculosas capazes de apagar todos os vestígios possíveis, de forma
que tudo é restaurado a funcionar da mesma maneira que funcionariam caso nada
tivesse ocorrido. Os circuitos são restaurados, as digitais são apagadas, o suor de
Nixon volta ao seu dedo e todas as memórias de Nixon se apagam. Para Lewis, w4
nos mostra que tal cadeia de intervenções miraculosas para restaurar uma
convergência perfeita entre w0 e w4 não vale o esforço. Qualquer mínima
similaridade de fatos será melhor, em termos de semelhança, do que a profusão de
milagres ocorrida em w4. Dessa forma, conforme Lewis, a análise correta deve
eleger o mundo w1 como o mais semelhante a w0. Ele inclusive elabora um
sistema de critérios para avaliar as prioridades de divergência ou similaridade
entre mundos. São eles:
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(1) Evitar grandes violações de leis.
(2) Maximizar a região espaço-temporal em que há perfeita
equivalência de fatos particulares.
(3) Evitar qualquer violação mínima de leis.
(4) É irrelevante assegurar similaridade mais próxima entre fatos
particulares.
Rescher (2007), nota que as concepções metafísicas de Lewis admitem ou
aceitam, tacitamente, a doutrina de que o espaço físico possa ser rearranjado sem
demais conseqüências. Os argumentos anteriores de Lewis expõem, de certa
forma, essa admissão. Este pressuposto engendra, no entanto, uma infinidade de
dificuldades. Nosso exemplo adiante será ilustrativo. Imaginemos que estamos
caminhando em uma praia, vemos uma pedra repousando sobre a areia e
elaboramos um contrafactual como:
Se esta pedra P estivesse em qualquer outro lugar ao invés da areia desta
praia, o grão de areia debaixo desta pedra estaria sendo iluminado pelo
sol.
A questão é que poderíamos imaginar infinitos mundos possíveis que
causariam, das formas mais diversas, a menor violência possível. Afinal, se esta
pedra está num determinado lugar ao invés de outro, o que é que estaria agora em
seu lugar? Alguma ‘porção de ar’? Qual ‘porção de ar’? Aquela porção que estava
onde agora está supostamente a pedra? Mas então teríamos infinitos mundos
possíveis totalmente distintos que causam (todos) a menor violência possível.
Observe que não usamos o expediente das intervenções miraculosas; a questão
simplesmente é: onde devemos “colocar” a pedra?
Rescher (2007) alude exatamente a este tipo de problema, ao defender que
“qualquer mudança hipotética na composição física do real desencadeia uma vasta
sucessão de mudanças físicas tanto na constituição física do real quanto nas leis
da natureza.” (Rescher, 2007, p.84). Ou ainda, quando deslocamos qualquer
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matéria de sua localização, “de que maneira arrumamos um espaço para ela ficar?
E de que maneira arrumamos algum espaço para a matéria que foi desalojada?”
(Rescher, 2007, p.84).
Pois suponhamos um ‘mundo φ’ em que P, no momento t1, repousa na
coordenada (X1°, X2°) (latitude/longitude). Suponha agora, em momento posterior
a t1, que a pedra foi deslocada para a coordenada (Y1°, Y2°) e ela agora repousa
logo após o limite mais próximo da praia, de modo que no instante t2, a ‘porção de
ar’ χ - que se encontrava, no instante t1, no espaço onde agora se encontra P – foi
deslocada da coordenada (Y1°, Y2°) para (X1°, X2°). Este seria o deslocamento
mais intuitivo, inclusive respeitando o critério (2) de Lewis: “maximizar a região
espaço-temporal em que há perfeita equivalência de fatos particulares.”
Observe que no instante t2, o sol ilumina grãos de areia na coordenada (X1°,
X2°) (de onde a pedra foi deslocada); já os grãos de areia que estavam em (Y1°,
Y2°) pararam de ser iluminados, pois a pedra está no local. Pois bem, imaginemos
agora um segundo ‘mundo ϕ’ onde a coordenada (Y1°, Y2°) é trocada, para todos
os efeitos, pela coordenada (Z1°, Z2°) que está definitivamente fora das
demarcações da praia.
O antecedente é bastante claro: “Se esta pedra P estivesse em qualquer
outro lugar ao invés da areia da praia...” Mas importaria se a pedra fosse parar,
por exemplo, no fundo do mar (suponha)? O ponto é interessante para o exemplo.
Para onde irá a água que agora é ocupada pela pedra? Ela some ou ocupa de
alguma forma o lugar ocupado pela pedra (incluindo todas as infrações físicas que
isso poderia implicar)? Esse estado-de-coisas é mais ou menos violento do que se
a água salgada inicialmente em (Z1°, Z2°) estivesse agora diluída num rio
qualquer?
Poderíamos defender, por exemplo, que para causar a menor violência
possível, e maximizar a região espaço-temporal em que há equivalência de fatos
particulares, a porção d’água deveria estar em algum lugar. Se o critério de
semelhança for o de “causar a menor violência possível na posição espaço-tempo”
então aquela porção d’água deveria supostamente estar no lugar onde a pedra
estava, pois se a colocássemos em qualquer outro lugar, estaríamos ocupando
espaço de uma segunda matéria e a equivalência entre fatos particulares seria
menor; mas quais seriam as implicações disso?
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Afinal, no segundo mundo a única diferença é que trocamos as coordenadas,
e sob um critério de posição espaço-tempo, a porção d’água estabelecida de
alguma forma naquele espaço da pedra causou o menor impacto na soma de
objetos que existem no universo. É claro, reconhecemos que tais pontos são
polêmicos e contestações não faltariam. Os exemplos são realmente extravagantes
e esse é exatamente o intuito.
Continuando, podemos questionar se o contrafactual mudaria de valor de
verdade dependendo de onde colocássemos a pedra. Caso a pedra fosse parar no
fundo de um pântano, cheio de lama. Será que poderíamos supor agora que o
pedaço de lama que estava no lugar onde agora está a pedra, tem que
necessariamente estar no lugar antes ocupado pela pedra? Não é isso que o critério
(2) de Lewis defende? Imaginemos que sim, o pedaço de lama foi parar no espaço
ocupado pela pedra, pois estamos utilizando o critério de menor violência na
trama ‘espaço-tempo’, o contrafactual seria agora falso? O conseqüente “o grão
de areia debaixo desta pedra estaria sendo iluminado pelo sol” se seguiria ou não
neste mundo? Talvez a teoria de Lewis nos licenciasse a dizer que este mundo não
seria membro do conjunto de mundos mais próximos. Mas em virtude de quê? Só
se fosse em razão do contrafactual agora ser falso por uma ocasião puramente
circunstancial.
Como podemos lembrar, Goodman, ao enfrentar as conseqüências de sua
teoria, tem intuição clara de que ela depende, em última instância, do que
compreendemos a respeito do ‘mundo atual’. Isso fica evidente, por exemplo,
quando ele impede que enunciados faticamente incompatíveis sejam convocados a
agir com o antecedente. Isso não resulta de nenhuma restrição lógica, mas de
aspectos puramente factuais. O próprio critério de co-sustentabilidade alude a uma
restrição deste tipo. O antecedente não pode admitir um enunciado do conjunto S
que se torne falso quando o antecedente é verdadeiro, i.e., que se torne falso em
virtude das contingências fáticas do mundo. O destino da pedra de nosso exemplo
parece aludir a uma questão parecida.
Ao menos num nível metafísico, são questões que nos parecem pertinentes:
importa para onde foi a matéria que em nosso mundo está no mesmo lugar onde a
pedra se encontra no mundo possível mais próximo? Se isso importa, a seleção do
mundo mais próximo depende disso? Tais vicissitudes influem na similaridade
comparativa entre mundos? Esses aspectos circunstanciais podem afetar a
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verdade ou falsidade do contrafactual? E afinal, se tais contingências não fossem
relevantes: podemos ou devemos simplesmente sumir com a pedra do Universo?
Quais as implicações físicas de tal acontecimento? Será que temos noções
suficientemente claras sobre essas implicações? É admissível extinção de matéria?
Que tipos de leis físicas do nosso mundo o teórico está disposto a infringir?
Tais exemplos ou questionamentos não depõem necessariamente contra os
sistemas de Lewis e Stalnaker, i.e., seus modelos semânticos podem permanecer
intactos mesmo sob tais enigmas (se é que são enigmas autênticos, nossa intenção
foi apenas a de suscitá-los). As imagens apenas nos sugerem que os fundamentos
metafísicos das teorias que se ancoram em mundos possíveis podem abranger tais
problemas.
Especialmente para abordagens realistas de mundos possíveis, como a de
Lewis, tais contendas possuem certamente efeitos notáveis. Ora, mundos possíveis
não são entidades que podemos manipular impunemente; eles devem possuir um
caráter absolutamente determinado. “Um mundo não é apenas um tipo qualquer
de estado-de-coisas, mas deve incorporar um estado-de-coisas-integral ‘saturado’
ou ‘maximal’.” (Rescher, 2007, p.195). Portanto, o ônus dessas justificativas
recairá sobre os teóricos de mundos possíveis.