4 CRISES DA ATUALIDADE Direitos Humanos Clelia e Angela

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1 CRISES DA HIPERMODERNIDADE: DIREITOS HUMANOS E INSTABILIDADE SOCIAL ANGELA NATEL 1 - PUCPR CLÉLIA PERETTI 2 - [email protected] PUCPR Área e sub-área do Conhecimento: Desigualdades, diferenças e diálogos interculturais. Palavras-chave: Sociedade hipermoderna. Direitos Humanos. Crise. Fenomenologia teológica. RESUMO Numa comunidade hipermoderna dominada pela lógica do excesso, observam-se por todos os lados, crises existenciais que assumem diferentes formas. As crises de ser e não-ser, a opressão do medo e da ansiedade e as necessidades humanas acabam por delimitar as fronteiras entre as minorias e o resto do mundo, o que afeta diretamente a aplicação dos Direitos Humanos. Assumindo as descrições dessa sociedade segundo Lipovestsky e seguindo essa linha de raciocínio, encontramos na obra do sociólogo Zygmunt Bauman respostas que vêm de encontro às nossas necessidades porque esta se caracteriza pela extrema perspicácia na análise dos problemas sociais que perpassam a experiência cotidiana do homem contemporâneo na conjuntura valorativa que é denominada pelo autor como “Modernidade Líquida”. A esse respeito, também, as reflexões do teólogo Paul Johannes Tillich completam a argumentação com uma abordagem fenomenológica pertinente em sua obra “A Coragem do Ser” em que o autor analisa a angústia e a coragem do ser a partir da descrição dos elementos constitutivos de ser. INTRODUÇÃO Gilles Lipovetsky apresenta o contexto da hipermodernidade, uma visão paradoxal do nosso presente, demonstrando que não há apenas uma ascensão do materialismo e do cinismo, mas também um reinvestimento em 1 Angela Natel . Licenciada em Letras Português-Inglês pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná PUC/PR, Bacharel em Teologia pela Faculdade Fidelis e Mestranda do curso de Teologia da Pontifícia Universidade Católica do Paraná PUC/PR. Email: [email protected]. 2 Clélia Peretti . Doutora em Teologia pela Escola Superior de Teologia de São Leopoldo, RS. Membro da Academia Internacional de Teologia Prática (IAPT). Professora Adjunta do Programa de Pós-Graduação em Teologia PPGT/PUCPR. Email: [email protected].

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CRISES DA HIPERMODERNIDADE: DIREITOS HUMANOS E INSTABILIDADE SOCIAL

ANGELA NATEL

1 - PUCPR

CLÉLIA PERETTI2 - [email protected] – PUCPR

Área e sub-área do Conhecimento: Desigualdades, diferenças e

diálogos interculturais.

Palavras-chave: Sociedade hipermoderna. Direitos Humanos. Crise. Fenomenologia teológica.

RESUMO Numa comunidade hipermoderna dominada pela lógica do excesso, observam-se por todos os lados, crises existenciais que assumem diferentes formas. As crises de ser e não-ser, a opressão do medo e da ansiedade e as necessidades humanas acabam por delimitar as fronteiras entre as minorias e o resto do mundo, o que afeta diretamente a aplicação dos Direitos Humanos. Assumindo as descrições dessa sociedade segundo Lipovestsky e seguindo essa linha de raciocínio, encontramos na obra do sociólogo Zygmunt Bauman respostas que vêm de encontro às nossas necessidades porque esta se caracteriza pela extrema perspicácia na análise dos problemas sociais que perpassam a experiência cotidiana do homem contemporâneo na conjuntura valorativa que é denominada pelo autor como “Modernidade Líquida”. A esse respeito, também, as reflexões do teólogo Paul Johannes Tillich completam a argumentação com uma abordagem fenomenológica pertinente em sua obra “A Coragem do Ser” em que o autor analisa a angústia e a coragem do ser a partir da descrição dos elementos constitutivos de ser.

INTRODUÇÃO

Gilles Lipovetsky apresenta o contexto da hipermodernidade, uma visão paradoxal do nosso presente, demonstrando que não há apenas uma ascensão do materialismo e do cinismo, mas também um reinvestimento em

1 Angela Natel

. Licenciada em Letras Português-Inglês pela Pontifícia Universidade Católica

do Paraná – PUC/PR, Bacharel em Teologia pela Faculdade Fidelis e Mestranda do curso de Teologia da Pontifícia Universidade Católica do Paraná – PUC/PR. Email: [email protected]. 2 Clélia Perett i . Doutora em Teologia pela Escola Superior de Teologia de São

Leopoldo, RS. Membro da Academia Internacional de Teologia Prática (IAPT). Professora Adjunta do Programa de Pós-Graduação em Teologia PPGT/PUCPR. Email: [email protected].

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certos valores tradicionais, se opondo aos valores individualistas cada vez mais presentes e fortes. Em virtude das catástrofes presenciadas pelo século XX, tanto o passado quanto o futuro acabaram desacreditados, surgindo a tendência de supervalorizar o presente, o hoje. A partir desta contextualização, busca-se o desenvolvimento da teoria da Modernidade Líquida de Zygmunt Bauman, na qual se encontra embasamento suficiente a fim de comprovar-se a violação dos Direitos Humanos nesse tipo de sociedade. Para tanto, uma base fenomenológica de Paul Johannes Tillich pode ajudar a formular respostas às crises da hipermodernidade. Materiais e Métodos A presente pesquisa objetiva identificar as principais crises da atualidade, ora denominada pós-modernidade, ora identificada como hipermodernidade (segundo Lipovetsky), caracterizada por sua instabilidade plástica, já não mais “líquida” como Bauman postulara anteriormente. Ao permitir que essas crises venham à tona, será possível perceber a gravidade com a qual os Direitos Humanos vêm sendo violados à medida em que se propõe, apoiados na fenomenologia de Paul Tillich, alternativas para a vivência nesta plasticidade social.

A sociedade hipermoderna seria a sociedade da hipervalorização das sensações íntimas, do hipernarcisismo, onde os paradoxos da modernidade se exibem às claras. Está muito presente a dicotomia responsável-irresponsável:

“Os indivíduos hipermodernos são ao mesmo tempo mais informados e mais desestruturados, mais adultos e mais instáveis, menos ideológicos e mais tributários das modas, mais abertos e mais influenciáveis, mais críticos e mais superficiais, mais céticos e menos profundos” (LIPOVETSKY, 2004, p. 28).

O indivíduo hipermoderno se encontra inquieto, corroído pela ansiedade, não mais gozando o presente como se não houvesse amanhã, e sim se cuidando no presente para chegar bem ao amanhã. Ou seja, podem-se tudo, mas o indivíduo faz apenas o que não apresenta perigo.

“A era do hiperconsumo e da hipermodernidade assinalou o declínio das grandes estruturas tradicionais de sentido e a recuperação destas pela lógica da moda e do consumo” (LIPOVETSKY, 2004, p. 29).

A lógica da moda passa a se impor e superar os discursos ideológicos. Esses discursos não mais limitam ou impõem resistência, bem como as antigas restrições culturais e estruturais, à lógica do consumo, o que permite que a vida social e individual se organize em torno dela. Essa hipermodernidade chegou permitindo que o domínio do consumo se estendesse ao máximo, com todas as tecnologias de transmissão de informação existentes. Assim, os indivíduos se encontram livres, capazes de

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exercer o livre arbítrio, de informar-se, de escolherem os seus próprios sistemas ideológicos; no entanto esses sistemas ideológico-espirituais de restrição continuam presentes, porém não mais se valendo da imposição, mas sim da argumentação, sendo também endossados pela opinião pública. A diferença é que hoje há liberdade de escolha.

Na fase da liquidez, as mega-empresas desfrutam de toda a liberdade para realizarem manobras econômicas que tornam o Estado um mero espectador, dominado e sem poder de reação. A promessa do livre comércio e o desenvolvimento econômico como profícuo, a diminuição das desigualdades sociais tem se mostrado uma falácia, o que se apresenta é um aumento dos bens dos mais ricos e uma degradação drástica das condições de vida dos mais pobres. Este novo mundo proposto é o da fome, pobreza e miséria absoluta, onde 800 milhões de pessoas estão em condições de subnutrição e 4 bilhões de pessoas vivendo na miséria (BAUMAN, 1999, p. 81). Bauman fala que o que se propaga é a ideia de que pobreza é sinônimo de fome, mas existem outras questões da pobreza que ficam encobertas: péssimas condições de vida, analfabetismo, famílias destruídas, etc. Todas as tentativas de mudança encontram barreiras e sua eficiência é momentânea, pois este sofrimento da sociedade humana tem como precedente amarras que são facilmente retraçadas e mutáveis pela globalização e pelo sistema de produção capitalista, uma séria violão aos Direitos Humanos.

Com a individualização radicalizada, todas as formas de sociabilidade que sugerem dependência mútua passam a ser vistas com desconfiança. As relações interpessoais, segundo Bauman, suspiram um saudosismo descaracterizado do pré-conceito do termo, ele não se dá pelas interrelações, mas por uma busca da eficácia de mútua vigilância, de saber quem é você no limitado universo de sua vizinhança, ressalta-se homogênea, criando-se uma situação dúbia pois, ao mesmo tempo em que se investe em proteção, adicionando formas de expurgar esses novos vilões, há o enclausuramento, cada vez mais reducionista, de seus investidores em uma realidade-cela. Com a modernidade líquida, o indivíduo se torna único ou assume o dever de ser único. Essa mutabilidade de relações também promove o desprendimento, no sentido afetivo e de posse eterna dos bens lucrativos, bastando dizer que hoje devem sim ser de favorável retorno financeiro, mas já tendo noção que são altamente perecíveis e, decorrente a isto, devem ser rapidamente rotacionados.

Na modernidade líquida pode-se identificar a centralidade do consumo, um meio por onde opera uma objetivação e instrumentalização das relações sociais. O consumo se torna uma fonte principal de satisfação. Mas, além de fonte de satisfação, o consumo se torna o meio por onde os indivíduos se constroem como sujeitos. A essência do ser não é mais intrínseca. É por isso que até o espaço público têm-se tornado lugar de problemas privados.

A busca do prazer imediato também se tornou muito importante. As pessoas passaram a não esperar mais, a não se preocupar com as

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sociedades futuras, e sim com o seu próprio prazer e o próprio futuro. A palavra-chave dessa sociedade veio a ser velocidade, principalmente com os avanços tecnológicos da mídia e informática, grandes veiculadoras de informação.

Não só a vida privada das pessoas, mas também a vida econômica se reformulou segundo esses princípios, o que, claro, não deixou de ter conseqüências, pois ao se valorizarem os resultados imediatos, o desempenho a curto prazo, ocorrem, por vezes, reduções maciças de quadros de funcionários, o emprego precário, ameaça de desemprego. Houve, num momento, certa despreocupação com o futuro, porém, o que se vive agora é a insegurança com este. Esta insegurança invade os espíritos. Não se fala em construir mundos perfeitos, mas há a preocupação com a segurança, em manter o que está aí.

A racionalidade não exclui da vida social a necessidade de uma religião, apenas faz diminuir a ascendência dela sobre a vida social. Por outro lado, ele também recria exigências de religiosidade e de enraizamento numa crença, à medida que o universo hipermoderno se constitui de maneira insegura, caótica e atomizada, carecendo de uma unidade de sentido. Essa remobilização da memória não pode ser separada de um novo modo de identificação coletiva, que hoje está mais para um objeto de apropriação dos indivíduos, que se dá de maneira reflexiva, reivindicativa e individual. Essa reivindicação de uma identidade não se encerra no âmbito meramente consumista e competitivo da hipermodernidade, mas se faz aí presente a necessidade de reconhecimento pelo que se é pela diferença comunitária e histórica. É uma ampliação do ideal de respeito, de um desejo de hiper-reconhecimento, que não deixa de ter ligação com a sociedade do bem-estar individualista de massa. Todas essas referências buscadas nas tradições e nas religiões são as que podem servir para a construção de identidades e a realização pessoal dos indivíduos.

De acordo com Zygmunt Bauman, em Comunidade,

“minoria étnica é uma rubrica sob a qual se escondem ou são escondidas entidades sociais de tipos diferentes, e o que as faz diferentes raramente é explicitado” (BAUMAN, 2003, p. 83).

Em contraposição ao prefixo „des’ (que costumava indicar a noção do afastamento da norma) surge o termo „redundância’ que sugere permanência e aponta para a regularidade da condição. Na sociedade hipermoderna: Ser “redundante” significa ser extranumerário, desnecessário, sem uso. Não há uma razão auto-evidente para sua existência nem qualquer justificativa óbvia para a reivindicação de seus direitos. “Redundância” compartilha o espaço semântico de “rejeitos”, “dejetos”, “restos”, “lixo” – com refugo. As pessoas declaradas redundantes são um problema financeiro, necessitam ser providas (alimentadas, calçadas e abrigadas) pelo Estado. Isso gera conflitos, sendo que outros grupos não simpatizam com essa situação.

No Brasil atual podemos ver nitidamente esse trabalho feito pelo governo Federal através dos muitos planos de bolsas. (família, educação

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saúde...) e alguns outros na tentativa de inserção do jovem: na educação, na área social e também na profissional. Diante desses projetos ainda estamos em uma situação líquida, pois não conseguimos manter nossa forma estável (vida) por muito tempo. E embora o governo tenha dado esse passo para tentar minimizar a situação da diferença social, tudo isso não tem passado de medidas paliativas e políticas.

Acredita-se que na obra de Paul Johannes Tillich é possível encontrar a instrumentalidade necessária para nos ajudar a desenvolver ações no sentido de restauração dos Direitos Humanos em meio à sociedade hipermoderna. Tendo em vista esses pressupostos, nos resta a questão de interpretar a experiência religiosa da sociedade hipermoderna numa visão teológica na perspectiva de Paul Tillich e relacioná-la à existência humana, para mostrar que a experiência religiosa pode contribuir no exercício dos Direitos Humanos, numa existência autêntica e consequentemente numa vida melhor.

Resultados e Discussão

A sociedade hipermoderna, por si só, é capaz de explicar tanto a responsabilidade quanto a irresponsabilidade; no entanto, o futuro da mesma depende do triunfo da ética da responsabilidade sobre os comportamentos irresponsáveis.

Para Lipovetsky, a tomada de responsabilidade coletiva é “a pedra angular do futuro de nossas democracias” (2004, p. 46), bem como as atitudes conscientes, mas essa tomada de responsabilidade tem que partir antes do âmbito individual, onde cabe a cada um se conscientizar e assumir a autonomia legada pela modernidade.

Alain Peyrefitte, afirma que o único recurso capaz de transformar um deserto (modernidade) na terra de Canaã é a confiança mútua das pessoas e a crença de todos no futuro que compartilharão. Tudo o mais que possamos querer dizer sobre a condição melhor para o ser ficará sendo um esforço compreensível, mas infelizmente fútil e ineficaz, pois nossas vidas estão nas mãos de pessoas que pensam e nos mantém líquidos. (Bauman,2001, p.152)

Tillich promove, em sua obra A Coragem do Ser, a fenomenologia do poder e da justiça, pois esses estariam ligados ao fenômeno do amor. Os mesmos problemas e confusões na análise do amor estão em relação com o poder e com a justiça, por isso todos eles devem ser levados a uma análise ontológica do tipo fenomenológica.

Assim, à medida em que o homem no dias de hoje, vive em um contexto onde “nada no mundo se destina a permanecer muito menos para sempre”, a experiência religiosa pode guiá-lo a dois caminhos: libertação ou alienação. A experiência religiosa é um processo que por vezes pode desintegrar as pessoas. Entende-se por desintegração a decomposição daquilo que é equilíbrio no ser humano. Ou seja, tudo o que ele faz e é se torna num numa falta de sentido, o que é sólido na estrutura existencial humana se desconstrói na insignificação. Vivenciar uma religião de forma

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coerente pode ser um processo integrador, dando sentido à existência e recuperando a dignidade humana.

Conclusões

Acredita-se que os seres humanos ocupam um lugar especial na criação, bem como que estes possuem “um valor intrínseco”, isto é, “dignidade”, o que os torna valiosos “acima de tudo”. Essa é a base dos Direitos Humanos. A partir da descrição da sociedade hipermoderna tratada por Gilles Lipovetsky e por Zygmunt Bauman, observou-se que esses direitos são claramente subtraídos nas vivências do ser humano hipermoderno. É por isso que uma intervenção fenomenológica de Paul Tillich é imprescindível no resgate desses direitos, que hoje parecem tão obsoletos.

A essência humana, sua manifestação como ser criativo e pensante é o ponto de partida para a criação de ações de valorização da vida, de sustentabilidade, igualdade social, respeito e cidadania. Referências Bibliográficas BAUMAN, Z. Comunidade: A busca por segurança no mundo atual. Rio de Janeiro: Editora Jorge Zahar, 2003. BAUMAN, Z. Modernidade e Ambivalência. 1. ed. Rio de Janeiro: Editora Jorge Zahar, 1999. BAUMAN, Z. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Editora Jorge Zahar 2001.

LIPOVETSKY, G.; CHARLES, S. Os Tempos Hipermodernos. 1.ed. São Paulo: Barcarolla, 2004.

TILLICH, P. A coragem de ser. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra S.A. 1972.