4 MISSÃO IMPOSSÍVEL -...

69
1 Contos do Cinema Apresentação Contos do Cinema surgiu de uma conversa entre amigos de música. Em meados dos anos 2000, nos intervalos dos ensaios dos nunca sucessos da banda nunca famosa, Os Gregory Hines precursora do gênero, mundialmente, desconhecido, o besteirock, eu e Rubens Mello trocávamos experiências sobre as labutas diárias para sustentar nossas famílias. Eu, jornalista, na época, chefe de reportagem da TV Cultura e Ruba, advogado aprovado pele exame da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) que abriu mão da carreira para se dedicar à vida de cartorário. A música era nosso hobby, válvula de escape de uma vida sempre atribulada. Ruba me contava as agruras de ter sido gerente da Multiplex durante três anos. Falava das celebridades que conheceu no Shopping Jardim Sul e das enrascadas em que se meteu para organizar os bastidores de uma empresa cujo mainstreaming é conduzir as pessoas à uma sala escura para terem uma experiência de sonho coletivo e as entupir de pipoca e refrigerante. Eu não tinha dimensão de como as pessoas lutavam, fisicamente, inclusive, por uma poltrona de cinema. Para as gerações mais novas, que hoje têm acesso on demand ao conteúdo audiovisual por meio de tablets, celulares e, ironicamente, até por aparelhos de TV, soam quase como fanatismo os contos que lerão a seguir. Mas foram criados por mim, baseados em fatos reais descritos por Rubens Mello. O gênero literário foi escolhido para manter a independência entre as histórias podem ser lidas em qualquer ordem e para tentar simular em livro, o movimento que o cinema oferece. Boa viagem.

Transcript of 4 MISSÃO IMPOSSÍVEL -...

Page 1: 4 MISSÃO IMPOSSÍVEL - static.recantodasletras.com.brstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/6134376.pdfaparelhos de TV, soam quase como fanatismo os contos que lerão a seguir ...

1

Contos do Cinema

Apresentação

Contos do Cinema surgiu de uma conversa entre amigos de

música. Em meados dos anos 2000, nos intervalos dos ensaios dos

nunca sucessos da banda nunca famosa, Os Gregory Hines ­

precursora do gênero, mundialmente, desconhecido, o besteirock, eu

e Rubens Mello trocávamos experiências sobre as labutas diárias para

sustentar nossas famílias. Eu, jornalista, na época, chefe de

reportagem da TV Cultura e Ruba, advogado aprovado pele exame da

OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) que abriu mão da carreira

para se dedicar à vida de cartorário.

A música era nosso hobby, válvula de escape de uma vida

sempre atribulada. Ruba me contava as agruras de ter sido gerente

da Multiplex durante três anos. Falava das celebridades que conheceu

no Shopping Jardim Sul e das enrascadas em que se meteu para

organizar os bastidores de uma empresa cujo mainstreaming é

conduzir as pessoas à uma sala escura para terem uma experiência

de sonho coletivo e as entupir de pipoca e refrigerante.

Eu não tinha dimensão de como as pessoas lutavam,

fisicamente, inclusive, por uma poltrona de cinema. Para as gerações

mais novas, que hoje têm acesso on demand ao conteúdo

audiovisual por meio de tablets, celulares e, ironicamente, até por

aparelhos de TV, soam quase como fanatismo os contos que lerão a

seguir. Mas foram criados por mim, baseados em fatos reais descritos

por Rubens Mello.

O gênero literário foi escolhido para manter a independência

entre as histórias ­ podem ser lidas em qualquer ordem ­ e para

tentar simular em livro, o movimento que o cinema oferece.

Boa viagem.

Page 2: 4 MISSÃO IMPOSSÍVEL - static.recantodasletras.com.brstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/6134376.pdfaparelhos de TV, soam quase como fanatismo os contos que lerão a seguir ...

2

Índice

1 – BATIZADO EM ECOS DO ALÉM

2 ­ MEU PRIMEIRO BLOCKBUSTER

3 ­ A ENTREVISTA COM O MULTIPLEX

4 ­ MISSÃO IMPOSSÍVEL

5 ­ AMEAÇAS TELEFÔNICAS

6­ O FILHO DO PUBLICITÁRIO BARRADO NO HOMEM­ARANHA

7 ­ QUANDO O GAY DO CARANDIRU NÃO PÔDE FUMAR

8 ­ EMBARCANDO CLANDESTINAMENTE SÍLVIO SANTOS PARA

ASSISTIR SHEREK, DUBLADO

9 ­ O JET LEE DO MULTIPLEX ANÁLIA FRANCO

10 ­ UMA PISTOLA 7.65 NA SALA DE CINEMA

11 ­ A LOIRA DO AXÉ

12 ­ DELEGADO ENCIUMADO

13 ­ MAR EM FÚRIA

14 ­ FAMOSOS EM CRISE

15 ­ O FIM DA PELÍCULA

16 ­ DE LOUCO E PENETRA TODO MUNDO TEM UM POUCO

Page 3: 4 MISSÃO IMPOSSÍVEL - static.recantodasletras.com.brstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/6134376.pdfaparelhos de TV, soam quase como fanatismo os contos que lerão a seguir ...

3

1 – BATIZADO EM ECOS DO ALÉM

Todos os quinhentos espectadores já haviam embarcados na

maior sala do Multiplex Jardim Anália Franco para assistir Ecos do

Além – protagonizado pelo astro Kevin Bacon.

Eu era o gerente do cinema. Pensava em tudo aquilo como um

aeroporto e gostava de ficar na ponte de embarque. Na entrada,

atrás dos porteiros que recolhem os ticket's, de canto, discreto. Dali

eu tinha certeza de que tudo estava sob controle. À esquerda, tinha

visão do grande corredor das salas de exibição e de esguelha, à

direita, a bilheteria com suas longas filas à frente.

Tudo funcionava bem. Já havia feito a contagem de estoque,

que batia com o relatório do sistema e estava conciliado com as

vendas. Também tinha fechado a escala de folga dos mais de

cinquenta funcionários, divididos entre bilheteria, portaria das salas,

bomboniere, projecionistas e técnicos de manutenção. Um staff que o

público só nota quanto tem algo para reclamar.

Você, leitor, já deve ter se queixado de alguma coisa com um

gerente de cinema. Seja da limpeza dos banheiros, do projetor que

pifou ou do filme que parou no meio.

A interrupção de uma exibição é mortal. Pega as pessoas

desprevenidas, entregues a um sonho coletivo, refesteladas nas

largas poltronas e equilibrando enormes pacotes de pipoca com copos

de refrigerantes de um litro.

Nas salas escuras, têm expectativas, choram, riem, tomam

sustos ao sabor de roteiros incríveis transformados em sequências de

imagens por diretores malucos do tipo de David Koepp que rodou Stir

Page 4: 4 MISSÃO IMPOSSÍVEL - static.recantodasletras.com.brstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/6134376.pdfaparelhos de TV, soam quase como fanatismo os contos que lerão a seguir ...

4

of Echoes, em 1999, titulo original do filme que foi minha prova de

fogo; meu teste de batismo como gerente da multinacional Multiplex.

­x­

Enquanto Tom Witzky, personagem representado por Bacon, se

movimentava na imensa tela branca a uma velocidade de 24

fotogramas por segundo, eu fui tomado de surpresa por gritos e

apupos.

O som abafado vinha de uma das salas de exibição.

Imediatamente, intuí que era da última sessão do sobrenatural Ecos

do Além.

Naquele dia, Tom Witzky não conseguiu completar a cena em

que é hipnotizado e consegue falar com os mortos. “Algumas portas

nunca deveriam ser abertas” era a chamada do filme. E, realmente, a

porta daquela sessão não deveria ter sido...

Chamei o projecionista pelo rádio.

Qrr. ­ Mané, você tá em QAP... Qrrrr. Só estática, nenhuma

resposta. As luzes estavam acesas. Corri para a sala de projeção e já

entrei reclamando:

Qrr. ­ Mané, por que você não responde...? Calei, quando vi

aquele macarrão de celulose. Percebi que levaria pelo menos uma

hora para desembaraçar o filme espalhado no chão e enrolá­lo de

novo no prato do sistema de exibição espanhol, que roda a película

na horizontal – à medida que é projetado, o filme é recolhido,

abaixo, num segundo prato e fica pronto para ser exibido

novamente. Daí o segredo dos intervalos da Multiplex terem só 15

minutos entre as sessões. Mas o sistema Multiplex faria pouco por

mim, agora. O problema era comunicar ao público que Tom Witzky

sumiu da tela, não passaria mais para o além como nas sessões

anteriores.

O sonho acabou.

Tente acalmar uma multidão desperta, repentinamente,

daquele transe que o cinema produz. Ninguém acorda de bom

Page 5: 4 MISSÃO IMPOSSÍVEL - static.recantodasletras.com.brstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/6134376.pdfaparelhos de TV, soam quase como fanatismo os contos que lerão a seguir ...

5

humor, pensei. O frio na barriga lembrou meus meses de estágio

no Rio de Janeiro, quando um colega foi agredido por quatro

lutadores de jiu jitsu que queriam pagar meia entrada com carteiras

de estudantes falsificadas.

A caminho da sala, chamei o segurança. Ele era meio gordo e

baixinho, lembrava o Barney Ruble, o fiel vizinho de Fred Flinstones,

do Cartoon.

Dentro da sala, quinhentas pessoas transtornadas. Algumas já

estavam de pé, xingando e jogando coisas na tela. Sem microfone ou

megafone – os cinemas ainda, hoje, são mal equipados para lidar

com a massa ­ eu gritei para a plateia ensandecida:

­ Um minuto da atenção dos senhores. Vocês deverão ir

embora, pois o filme não será mais exibido hoje.

O problema é que as pessoas em grupo ficam encorajadas a

fazer coisas que não fariam sozinhas. As pessoas protestaram,

queriam o dinheiro de volta. Fiquei em dúvida sobre como proceder.

Na tensão, não lembrei dos canhotos. Só sei que não quero confusão

na porta do cinema, decidi e...acabei tomando a pior decisão

possível.

­ Fiquem todos em seus lugares. Vou devolver o dinheiro dos

ingressos.

O que é que estou fazendo? Me perguntei. Não medi o risco de

levar dinheiro vivo para perto de uma turba enraivecida.

Antes que eu saísse atrás do dinheiro, uma loira de uns 18 anos

que estava na primeira fileira, levantou gritando.

­ Esta porcaria de cinema americano, multinacional, tem que

dar um jeito. É um absurdo. Onde já se viu, no meio do filme apaga

tudo? Como vou ficar sem ver o resto? Perguntou, avançando sobre

mim.

Jovem e forte soltou um cruzado na minha cara, digno do

Evander Hollyfield. Consegui desviar. Barney, o segurança, agarrou

os braços da moça que, ato contínuo, lhe mordeu o peito. Para

Page 6: 4 MISSÃO IMPOSSÍVEL - static.recantodasletras.com.brstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/6134376.pdfaparelhos de TV, soam quase como fanatismo os contos que lerão a seguir ...

6

piorar, foi aí, neste ponto, que o pai da moça se levantou gritando

para a sala cheia:

­ Acudam, acudam, estão matando minha filhinha! Coisa de

cinema. A platéia olhou estarrecida. Eu não tinha como evitar que as

pessoas, ao botarem atenção na cena que eu e Barney

protagonizávamos, pensassem que estivéssemos agredindo a moça,

quando na verdade, ao contrário, tentávamos nos defender da ira

compulsiva da fã de Kevin Bacon. Começaram as vaias. Barney soltou

a loira e eu modulei a voz pedindo calma.

­ Gente, por favor. Está tudo bem. Eu vou devolver o dinheiro,

disse.

Mais vaias. Não havia mais clima para conversa.

­ Fiquem todos aqui que já volto! Ordenei.

Saí, fui à gerência, peguei o tupperware com milhares de reais

e voltei. Nada mais “seguro” do que transportar dinheiro num

tupperware, ironizei. Aí entendi a dimensão da besteira que estava

fazendo. Mas era tarde demais para recuar. Parei debaixo do batente

da porta, instalei uma mesa e pedi que formassem uma fila. Fui

devolvendo o dinheiro à medida que as pessoas saíam. Quando foi a

vez da anti­imperialista, loira “Pitty Bull” pegar o reembolso, eu me

vinguei:

­ Você vá buscar os seus direitos, falei sem lhe retornar

dinheiro algum. Afinal, aquela ridícula decisão de ficar com uma

montanha de dinheiro vivo no meio da multidão tinha, em parte, a

ver com os desatinos daqueles tipos.

Deste episódio apreendi que em situações de tensão,

envolvendo um número grande de pessoas, uma decisão rápida

precisa ser tomada. Antes do desagrado coletivo crescer, é preciso

munir as pessoas de informações concisas e claras.

Nunca mais me apavorei. Aprendi a lidar com o calor das

ocorrências. O negócio era entrar na sala, dar o recado de que não

haveria mais filme e que se dirigissem à bilheteria com o canhoto

Page 7: 4 MISSÃO IMPOSSÍVEL - static.recantodasletras.com.brstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/6134376.pdfaparelhos de TV, soam quase como fanatismo os contos que lerão a seguir ...

7

para trocá­lo por outra sessão.

Agora eu pergunto, quem é que lembra de guardar o danado

do canhoto? Isto é realmente sobrenatural.

2 ­ MEU PRIMEIRO BLOCKBUSTER

O cinema estava fechado e a aglomeração se formava do lado

de fora. Como de hábito, fiquei no meu local preferido, antes de

balançar a cabeça autorizando a abertura do cinema. De pronto, um

dos bilheteiros destravou as enormes portas de vidro provocando um

estalo: trec! Este barulho sempre me angustia, registrei,

mentalmente. Mas o ruído aliviou a tensão daquela multidão de

aficionados que aguardava ansiosamente pela entrada.

Eram centenas de místicos apaixonados por Harry Potter e a

Pedra Filosofal que se puseram a disputar o primeiro lugar na frente

dos caixas. O empurra­empurra entre aqueles pré­adolescentes,

vestidos de casacos pretos como os personagens do longa, não era

um bom sinal. Mas nada poderia dar errado no meu primeiro

blockbuster. Eu não iria fracassar. Vai dar tudo certo! Me acalmei.

Afinal, o Multiplex foi feito para isto, pensei. As enormes salas e

corredores tinham a missão de atrair multidões para arrecadar

milhões ou bilhões de dólares como fez o filme Guerra nas Estrelas –

A Ameaça Fantasma, de George Lucas que faturou, U$ 1,026 bilhão e

deu nome para o que a Indústria Cinematográfica chama de

“arrasa­quarteirão ou blockbuster.

Para minha sorte, os verdadeiros vilões do cinema estavam

longe de ser como Voldemort, o algoz do pequeno Potter. A ameaça,

aqui, vinha dos espertinhos que compravam ingressos para filmes B,

ruins, que não tinham fila e embarcavam nas salsa dos concorridos

longas, clandestinamente. Como era o caso do filme do pequeno

bruxinho e seus fiéis amigos enfrentando o cão de três cabeças.

Page 8: 4 MISSÃO IMPOSSÍVEL - static.recantodasletras.com.brstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/6134376.pdfaparelhos de TV, soam quase como fanatismo os contos que lerão a seguir ...

8

­ Ingressos na mão! Gritou um dos bilheteiros, antes da fazer

a fila andar. A ordem era intimidar os oportunistas para que não

provocassem “overbooking”. Não na minha gerência, pensei. A

pressão sempre surtia efeito. Mas sempre sobravam uns

caras­de­pau...

­ Meu ingresso está com minha namorada, lá dentro, tentou o

dissimulado profissional. Eu mesmo me aproximei do malandro e

sussurrei­lhe ao ouvido:

– Sem ingresso, sem filme. Funcionou, o garoto inventou que

tinha que telefonar para a tia e saiu de fininho.

A ideia de amedrontar os penetras não era minha. Assim como

Harry Potter tinha Hermione e Rony, eu também tinha meus

parceiros inseparáveis, ponderei. Os conheci no Multiplex do

Shopping Jardim Sul, logo que cheguei do estágio no Rio de Janeiro.

Marco, Cláudia e Fabíola eram pessoas geniais e juntos

desenvolvemos várias técnicas para nos livrar dos fura­filas. Eles

trabalhavam com afinco e com apenas seis meses de contratação

foram promovidos.

No fundo, estava gostando do teste. Harry Potter não assustou.

A única ameaça vinha do baixo volume de vendas de refrigerantes e

pipoca. Um fracasso de bomboniere é encrenca na certa, intuí,

fazendo beicinho.

A última sessão ainda rolava, quando eu confirmei no visor da

calculadora o que mais temia: a estreia rendeu boa bilheteria, mas o

consumo per head, no jargão da casa, estava abaixo da média. E a

matriz, em Londres, não ficaria nada contente.

A magia dos bruxos do Multiplex é faturar alto com ingressos e

muito mais, mas muito mais, com milho de pipoca e refrigerantes.

Nunca me arrisquei a calcular quanto é a vertiginosa margem de

lucro deste pequeno prazer de mastigar e bebericar diante da tela.

Talvez para não dar razão às queixas dos clientes, pensei. O fato é

que comunicar sobre a queda do lucro à Diretoria faria os monstros

Page 9: 4 MISSÃO IMPOSSÍVEL - static.recantodasletras.com.brstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/6134376.pdfaparelhos de TV, soam quase como fanatismo os contos que lerão a seguir ...

9

pularem da tela para me assombrar na vida real. Nunca esqueci o

quanto era assustadora a figura do gerente de varejo na matriz no

Rio de Janeiro ­ um baixinho com voz estridente e óculos de fundo de

garrafa que levou o gerente júnior, responsável pela bomboniere, à

beira de um ataque de nervos:

­ Você tem que aumentar o seu per­head! Tá me ouvido?

Aumentar o per­head! Por que não vendeu na sala 3? Por

que não leva um carrinho para dentro da sala antes da

sessão? Me dê explicações, Londres ficará insatisfeita,

precisamos de motivos!

Passei incólume pelo meu primeiro Blockbuster, mas tinha que

bolar uma magia que protegesse minha cabeça da sanha insaciável

dos feiticeiros da Matriz. Desde o início da minha jornada como

gerente de cinema aprendi a mesma lição que Harry Potter teve: só

os amigos salvam!

3 ­ A ENTREVISTA COM O MULTIPLEX

Estava só na sala. Minhas mãos suavam, enquanto tentava

disfarçar a ansiedade tamborilando na mesa de reunião. Sabia que

em algum momento alguém do Multiplex entraria por aquela porta

para a entrevista fatal de um processo de recrutamento que havia

começado há dois meses. Droga! Que demora, pensei. Comecei a

organizar os pensamentos sobre como tudo aquilo começou.

Devaneei num flashback do tempo de criança. Meu pai,

divorciado, nos dias de visita, aparecia na porta de casa e carregava

eu e meus irmãos para assistir o destemido Herbie de Se Meu Fusca

Falasse, Banzé no Oeste de Mel Brooks e, mais tarde, os filmes de

aventura de Indiana Jones. Droga! Preciso de me concentrar.

Page 10: 4 MISSÃO IMPOSSÍVEL - static.recantodasletras.com.brstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/6134376.pdfaparelhos de TV, soam quase como fanatismo os contos que lerão a seguir ...

10

Levantei­me e fui até a porta imaginando o que deveria estar

por trás. Esta demora só pode fazer parte do teste. Acho que querem

saber se mantenho a calma sob pressão. É melhor eu voltar a me

sentar, ponderei, imaginando que ali estivesse alguma câmera

escondida.

Casado, com um filho recém­nascido, eu precisava daquele

emprego. Dava aulas de hotelaria na Escola do SENAC de São José

dos Campos, em São Paulo, mas a grana não era boa. Para piorar,

estávamos de favor na casa da sogra no litoral norte paulista a 60

quilômetros do trabalho. Meu emprego anterior foi traumático. Chef

de cozinha de um hotel cinco estrelas em Jundiaí, interior paulista. ­

É, eu me formei em culinária e sei cozinhar muito bem! Mas esta aí

uma informação que não vai me ajudar em nada nesta entrevista,

anotei, mentalmente.

Como dizia, substitui um Chef de Cuisine gordo e beberrão que

levara o restaurante à beira a falência. Tive que reinventar o

cardápio e atuar como chief executive officer, um CEO sem dó, estilo

Donald Trump, para botar ordem no negócio. Com carta branca do

dono, um inglês presunçoso, demiti 90% do staff e captei eventos

com empresários e associações para recuperar a credibilidade do

restaurante que antes da minha chegada demorava mais 45 minutos

para servir um prato! Esta sim, era uma boa história para contar aos

meus entrevistadores! Alias, cadê eles? me perguntava, apertado

numa cadeira desconfortável de escritório. Não, não era uma boa

história, eu teria que explicar porque saí, apesar do sucesso.

Me lembrei claramente do dia em que minha paciência estourou

com o gringo do restaurante. Um pedido de demissão que demorou

três meses sem salário para amadurecer:

­ I´m quit! Foda­se! Arranquei o avental do meu corpo e o

joguei sobre a caixa registradora em que o inglês gigante e vermelho

de raiva contava a féria e vociferava em sua língua natal baixarias

que ofendiam a reputação dos brasileiros e da minha mãe. Ser

Page 11: 4 MISSÃO IMPOSSÍVEL - static.recantodasletras.com.brstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/6134376.pdfaparelhos de TV, soam quase como fanatismo os contos que lerão a seguir ...

11

fluente em inglês trazia algumas vantagens e reconhecer aqueles

xingamentos, foi uma delas, pensei.

O ruído da porta se abrindo me tirou do estado hipnótico. De

repente um, dois, três diretores do Multiplex ­ todos alinhados com

calça escura, camisa de manga curta branca e gravata azul ­

entraram na sala e tomaram assento à mesa em que estava. Diminui

de tamanho, tive a sensação de ter virado um anão na cabeceira da

mesa cercado por missionários mórmons. Pigarreei e tentei

demonstrar naturalidade diante da emboscada armada. Calma,

coração no pé, mentalizei.

­ Boa tarde, disse ao estender a mão e exibir o melhor sorriso

amarelo que a ocasião permitia.

­ Boa tarde, Sr. Mello, desculpe­nos fazê­lo esperar, mas

estávamos entrevistando outros candidatos, falou o mais alto deles,

um sujeito de óculos de aros pretos e corte reco parecido com

Michael Douglas em Um Dia de Fúria. ­ Meu nome é Armando, sou

Diretor de Recursos Humanos da empresa. Apontou os dois homens

que estavam com ele, e sem apresentar seus nomes, avançou direto

ao assunto. ­ Eles vão me auxiliar nesta entrevista. Vi em sua ficha

que estudou no SENAC e chefiou um restaurante de um hotel cinco

estrelas no interior de São Paulo...

O ímpeto daquele cara me assustava. Queria saber tudo,

número de pessoas que gerenciei, habilidade com estoque. Tentei me

comportar como mandam os manuais de entrevistas de candidatos a

emprego, mas estava achando que tinha perdido a batalha.

Balançava freneticamente a perna sob a mesa. Não conseguia

encaixar uma bola de simpatia. Os caras eram muito fechados e frios.

De repente, surgiu uma oportunidade:

­ O que você sabe sobre cinema? perguntou

Michael­Douglas­em­Um­Dia­de­Fúria.

­ Bem, minha primeira experiência foi numa locadora de vídeo.

Vocês se lembram do VHS, claro que sim. A locadora atendia a

Page 12: 4 MISSÃO IMPOSSÍVEL - static.recantodasletras.com.brstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/6134376.pdfaparelhos de TV, soam quase como fanatismo os contos que lerão a seguir ...

12

celebridades e a futuras celebridades. Sabem o Rick Martin? Na fase

Menudo, ele nos visitava com a namorada Mara Maravilha, a procura

de lançamentos como...

Caramba, tem coisas da pirataria­chic­dos­jardins que não

posso contar, pensei. Os caras são distribuidores da indústria

cinematográfica, não podem saber que os filmes eram todos piratas,

que os donos traziam boas cópias de Nova Iorque e no andar de cima

do casarão da Av. Nove de Julho, reproduziam cópias de cópias. Eram

filmes que ainda não estavam exibindo no Brasil. Enquanto evitava o

assunto, usava todo o meu charme de jovem surfista para entreter

meus entrevistadores.

­ Eram filmes fantásticos para uma seleta clientela, o ministro

Mário Andreazza alugava filmes de lá.

De repente a sala se silenciou, meu repertório de cases de boa

performance tinha chegado ao fim. Para descontrair o ambiente,

arrisquei expor meu suposto conhecimento sobre cinema.

­ O ruim é quando o projecionista não coloca a pegatina direito.

Os três me encararam de testa franzida, esperando que eu

desenvolvesse a história.

­ É, eu vi isto na semana retrasada, tomei um gole d’água

antes de continuar. ­ Estava assistindo o filme da vida de Jerry Lee

Lewis, aquele interpretado por Dennis Quaid, no meio de uma plateia

de fanáticos por rock and roll. E, apesar de ser um musical, o som

estava péssimo. Foi quando um cara se levantou e saiu gritando: “eu

já trabalhei com projeção, este cara da projeção é um mané, ele não

instalou a pegatina direito!” O cidadão foi enfurecido até a cabine e

minutos depois, o som ficou ótimo. Nunca tinha visto alguém ficar tão

bravo por causa de um filme.

Os diretores se entreolharam quase como adivinhando o que eu

presenciaria nos próximos três anos. E para minha surpresa

Michael­Douglas­em­Um­Dia­de­Fúria esboçou, finalmente, um

sorriso de soslaio. Os mórmons foram com a minha cara. Aí tive a

Page 13: 4 MISSÃO IMPOSSÍVEL - static.recantodasletras.com.brstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/6134376.pdfaparelhos de TV, soam quase como fanatismo os contos que lerão a seguir ...

13

certeza: fui contratado. Yes!!

Foi um alívio, pois pude me despedir deles sem ter que revelar

o segredo, que martelava dentro da cabeça, sobre meus bons ofícios

na pirataria­chic­dos­jardins, que já posso contar: um dia, policiais e

fiscais da receita quebraram a rotina com um mandado judicial de

busca e apreensão de cópias ilegais. Pedi que esperassem pelos

donos que já estavam a caminho. Assim que os patrões chegaram,

convidaram os policiais para um reunião no andar de cima. Enquanto

isso, eu e as meninas do atendimento fomos orientados a chamar

nossos amigos a vir “alugar” de graça, por tempo indeterminado,

todos os filmes que pudessem carregar. Quando os policiais desceram

da conversa, as prateleiras estavam vazias. Mais de 1200 títulos de

VHS circulam por aí até hoje, como troféus da resistência pirata.

4 ­ MISSÃO IMPOSSÍVEL

Consultei o relógio. Era perto das três da manhã e o espectro

de diminuição do per­head diário rondava minha mesa. A última

sessão acabou havia duas horas. Tinha que fechar tudo e ir para

casa, pois logo mais às 10hs da manhã estarei de volta, pensei.

Page 14: 4 MISSÃO IMPOSSÍVEL - static.recantodasletras.com.brstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/6134376.pdfaparelhos de TV, soam quase como fanatismo os contos que lerão a seguir ...

14

Enfiei as planilhas de venda na gaveta e me espreguicei, pronto

para sair. Só então me dei conta que aqueles escritórios do Multiplex

eram todos iguais: uma sala apertada com um conjunto de mesa e

cadeira de gerente, um cofre e um claviculário ­ que nome horrível

que se dá à essa caixa de guardar chaves, cogitei, durante a

lembrança de que eu não estava mais no cinema do Shopping Anália

Franco, perto da minha casa, onde trabalhei por mais de um ano.

Agora, gerenciava a menina dos olhos da Companhia: o Multiplex dos

milionários do Morumbi: Shopping Jardim Sul. ­ Frequentado pela

mimada nata da paulicéia, pensei em voz alta, enquanto vestia meu

casaco. A esta hora deve estar frio lá fora, estimei. Tranquei cofre,

gaveta e... toca o telefone:

­ Ring, ring, ring!. Droga, só pode ser encrenca, atendi

contrariado ao telefone.

­ Sim?

­ Alô, Rubens? Sabia que ainda encontraria você, sou eu, o

Sérgio ­ Como se eu não soubesse, só mesmo o diretor de operações

para ligar uma hora dessa.

­ Fala diretor, tudo bem? Pelo horário, deve ter uma boa notícia

para me dar, ironizei, lembrando que uma notícia que não pode

esperar o horário comercial, só pode ser uma notícia ruim.

­ Bem, vou direto ao assunto: depois que você saiu do Anália

Franco, o caixa da unidade passou a ter desfalques diários...

­ Impossível, interrompi. ­ As meninas que ficaram no meu

lugar são de confiança. Cláudia e Fabíola começaram estagiando

comigo aqui mesmo no Jardim Sul. Impossível! Frisei, quase gritando

com meu chefe.

­ É o seguinte, saio aqui do Rio de Janeiro no voo das 9h00.

Chegando ao aeroporto de Congonhas, lhe telefono. Tenho ordem

expressa do diretor geral para demitir toda a equipe de gerentes.

Você vai comigo, afinal você as conhece há mais tempo e pode me

ajudar a descobrir onde está o dinheiro.

Page 15: 4 MISSÃO IMPOSSÍVEL - static.recantodasletras.com.brstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/6134376.pdfaparelhos de TV, soam quase como fanatismo os contos que lerão a seguir ...

15

­ Mas, mas..

­ Te vejo, amanhã. Clic.

Apesar de cansado, aquele diálogo me roubou o sono. Tirei o

casaco, voltei à mesa e disquei para o Anália Franco. Tenho certeza

que ainda tem alguém lá.

­ Alô? Era a voz da Cláudia. Estava desanimada.

­ Oi Claudinha, sou eu, o Rubens.

­ Oi Rubinho, que bom que é você. Pensei que fosse o diretor

de operações de novo.

­ Ele me ligou, quer que vá com ele demitir todo mundo ai,

amanhã, cedo. Que aconteceu?

­ Não sabemos, só sei que toda a noite depois de conferir o

caixa da bomboniere e dos ingressos, eu mesma faço o lançamento

nas planilhas e tranco o dinheiro no cofre. E quando vamos recolher,

está faltando, Rubens. Não sei mais o que fazer, disse ela, já com voz

de choro.

­ Calma, Claudinha, amanhã eu vou com o mala e a gente

resolve tudo. Tá bem?

­ Mas a gente não tá roubando nada...

­ Eu sei, eu sei. Calma, vá para casa, descanse a gente se

encontra às 10hs da manhã.

Desisti de ir para casa. Vou dormir no sofá da recepção, decidi.

­x­

Logo pela manhã, na direção do meu próprio carro, tomei o

rumo do aeroporto. Não foi difícil encontrar na calçada do

desembarque de Congonhas o esbaforido diretor com cigarro a mão,

vestido à la mórmon, acenando para eu parar o carro.

­ Faala, Sérgio, como vai? Como foi seu voo? Perguntei com meu

sorriso simpatia, assim que ele embarcou no meu carro.

­ Tudo bem, Rubens.. Não é mesma coisa que viajar para o Nordeste,

praia, mas tudo bem. E ai? Já preparou as meninas? Indagou, ríspido.

Direto ao ponto!

Page 16: 4 MISSÃO IMPOSSÍVEL - static.recantodasletras.com.brstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/6134376.pdfaparelhos de TV, soam quase como fanatismo os contos que lerão a seguir ...

16

Já estava acostumado com o estilo

sem­tempo­a­perder­com­conversa­fiada dos executivos do

Multiplex. Para todos nós, missão dada é missão cumprida. Ainda

mais, quando a ordem vinha de Londres.

­ Sérgio, o seguinte, elas estão nos esperando. Mas não

acredito que tenham pegado dinheiro.

Não falamos mais nada o resto da viagem. Descemos do carro,

ainda calados.

­ Oi Rubens. Bom dia, Sérgio, nos cumprimentou Cláudia, ao

chegamos. Sérgio foi logo para cima, pedindo as planilhas. Se reuniu

com as duas meninas e deu um apertão, ameaçando que iriam para

delegacia e etc.. Deixei­os conversando e como Sherlock Holmes fui

para a sala de gerência. Eram todas iguais. Não havia câmera de

gravação no interior, mas na porta de entrada, sim. Assistindo as

imagens atentamente estava claro que apenas a Claudinha entrava

no recinto onde fica o cofre. Ali, ficavam valores razoáveis usados

sempre que se precisava de troco durante o expediente. Ainda bem

que o dinheiro grosso é levado, religiosamente, pelos homens da

transportadora de valores, pensei, enquanto me ajeitava na mesa de

gerente. Mas nem mesmo os guardas frequentavam a sala. Me pus a

verificar cada centímetro atrás de alguma explicação lógica, pois o

que a multinacional não queria aceitar é que as planilhas acusavam

as baixas. Ou elas eram muito burras por subtrair a grana que elas

registravam nas planilhas ou não tinham nada haver com aquilo,

raciocinei.

Sérgio queria um culpado, tivesse ele culpa, ou não. Para mim

era impossível que aquela moças contratadas comigo, com as quais

convivi um ano inteiro com a maior confiança, pudessem estar

passando a mão na grana do troco. Quando olhei para o teto, tive

uma luz. Pulei da cadeira e rapidamente chamei o diretor:

­ Sérgio, venha cá, dê uma olhada nisso! Disse, ao apontar

para a grelha de ventilação. Na hora me lembrei do filme Missão

Page 17: 4 MISSÃO IMPOSSÍVEL - static.recantodasletras.com.brstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/6134376.pdfaparelhos de TV, soam quase como fanatismo os contos que lerão a seguir ...

17

Impossível, estrelado por Tom Cruise.

­ Entraram pelo teto! Falei. Nas beiradas do respiradouro

estavam as marcas das mãozinhas sujas. Subi numa cadeira e abri a

grelha com cuidado. Lá estava a prova do crime: uma escada.

Preparadinha para o próximo embuste do malandro, pensei.

Fomos para segurança do Shopping e vimos as fitas de vídeo.

Não foi difícil descobrir que o culpado não era o mordomo e sim o

funcionário da manutenção! O danado sabia do sistema lusitano da

Companhia que obriga os gerentes a guardar as chaves do cofre no

claviculário dentro própria sala da gerência. Ele tirava a grade, descia

a escada, pegava a chave, abria o cofre, surrupiava a grana do troco

e se mandava. Fácil como mamão com açúcar, imaginei.

O rapaz da manutenção foi levado para a delegacia e as

meninas receberam promoção como prêmio: Cláudia de sênior para

gerente geral, e Fabíola “subiu” de gerente jr. para sênior. Como

qualquer outro longa hollywoodiano, este caso teve um final feliz.

5 ­ AMEAÇAS TELEFÔNICAS

Naquela imensa tela da sala Multiplex, a atriz Drew Blythe

Barrymore, loura, no alto do seus 22 anos de idade, interpreta Casey

Becker em Scream ­ no Brasil, intitulado Pânico ­ o primeiro longa da

série. Sozinha em casa, numa pacata cidade da Califórnia, Casey

recebe um telefonema.

Page 18: 4 MISSÃO IMPOSSÍVEL - static.recantodasletras.com.brstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/6134376.pdfaparelhos de TV, soam quase como fanatismo os contos que lerão a seguir ...

18

Ring, ring. Ela atende

­ Não pense em desligar o telefone, disse a voz ameaçadora do

outro lado da linha..

­ O que você quer?

­ Conversar

­ Então ligue para outra pessoa, disse Casey desligando o

telefone. Clic.

Ring, ring, ring.

­ Escute aqui, seu idiota...

­ Escute você, sua vadia. Se desligar o telefone na minha cara

de novo eu vou abrir te como um peixe, entendeu?

.... Casey fica muda, em pânico.

­ YEhhhh!!, comemora a voz ameaçadora.

­ Isto é alguma piada? Pergunta Casey, assustada.

­ Na verdade é um jogo... Você pode suportar isto?.. Loirinha,

... sussurrou

A menção a cor do seu cabelo deixou­a transtornada, com a

certeza de que estava sendo observada. Cosey sai correndo para

trancar a porta de casa.. Olha para fora...

­ Você pode me ver? desafia a voz ameaçadora.

­ Escuta, em dois segundos eu vou chamar a polícia, tá?

­ Eles nunca chegariam a tempo. Estamos no meio do nada...

­ O que você quer? Clama, chorando

­ Quero ver como você é por dentro...

Assustada, desliga o aparelho.

­ Ding­dong. Toca a campainha.

­ Ahhh!!. Ela pula de susto. ­ Quem está ai? Grita, tremendo de

medo.

Ninguém aparece à porta.

­ Quem está ai? Quem está ai? Insiste, desesperada.

­ Eu vou chamar a polícia. Corre para o telefone, quando....

­ Ring, ring. Toca o telefone, novamente, e ela grita

Page 19: 4 MISSÃO IMPOSSÍVEL - static.recantodasletras.com.brstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/6134376.pdfaparelhos de TV, soam quase como fanatismo os contos que lerão a seguir ...

19

­ Aaaai! Atende, chorando.

­ Você nunca devia perguntar quem está ai? Você não gosta de

filme de terror? É um desejo de morte. Bem que você poderia sair e

investigar um barulho estranho ou algo assim.

­ Escuta, diz em prantos. ­ Você já se divertiu é melhor você ir

embora senão

­ Se não, o quê? Interrompe a voz ­ .

­ Senão meu namorado vai chegar e quebrar a sua cara...

E no clímax da sequência cai a energia no Shopping Jardim Sul.

Eu e o Paulo, gerente júnior, estávamos fazendo o inventário do

estoque, quando o súbito apagão me alertou que era o fim da

tranquilidade. Batata!

Qrrrr, soou a estática do rádio, antes da pergunta: ­ Rubens, tá

em QAP? Chamou o bilheteiro pelo rádio.

­ Q A P, respondi, já a caminho e preparado para resolver

algum furdúncio.

Qrrrr.. ­ Tem um cliente aqui.... Qrrr... Antes que ele

terminasse de falar, eu já vislumbrava a confusão, diante da

bilheteria. Duas dondocas e um adolescente protestando pela

interrupção do filme que estavam assistindo.

Como costume, me aproximei do trio com o melhor

sorriso­desarma­conflito e tentei me apresentar. Antes que

terminasse meu nome, a moça vestida num tubinho rosa choque de

alça virou­se para mim e ­ sempre desconfiei do humor de uma

mulher vestida de rosa choque ­ disparou:

­ Ah! Você que é o gerente? E emendou, sem dar pausa

alguma: ­ Olha aqui seu gerentizinho incompetente de merda. Como

você consegue interromper a sessão no meio do filme?

­ Desculpe­nos pelo incômodo, mas é uma falta de energia em

todo o Shopping, respondi.

Ela partiu para cima de mim

­ Não me venha com desculpas. Cadê o gerador? Isto aqui é

Page 20: 4 MISSÃO IMPOSSÍVEL - static.recantodasletras.com.brstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/6134376.pdfaparelhos de TV, soam quase como fanatismo os contos que lerão a seguir ...

20

um Brasil, mesmo. Você não sabe como é difícil eu arrumar tempo

para sair com meus filhos que sequer moram aqui. Vieram dos

Estados Unidos para passar só essa semana comigo e vocês deste

cinema patético...

­ Mas minha senhora, nós podemos devolver seus ingressos,

falei.

­ Eu não quero esmolas. Enfia esses ingressos! Você sabe com

quem está falando? Disse, a mulher com o dedo em riste. Pronto,

esse você­sabe­com­quem­está­falando era uma prévia de

carteirada, pensei. Agora ela vai me falar que é parente, esposa ou

amante de alguém do Multiplex.

­ Senhora, aqui, tratamos todos com o mesmo respeito. Aceite

estes ingressos como cortesia e esse vale­pipoca como um pedido de

desculp... Mas insolente, ela bateu em minha mão como um

“cata­deixa”. Derrubou os ticket's no chão. Deu as costas, chamou

seus filhos e saiu em empertigada.

­ Vamos embora daqui. Você vai se arrepender, ela gritou para

mim, sem se virar.

Nos primeiros dias de profissão, isso me deixaria constrangido.

Mas agora estou escolado. Ótimo. Já vai tarde, pensei. Sorri para o

gerente júnior e o bilheteiro que acompanharam o episódio feito

estátuas.

­ Que louca, hein, Rubens, me falou Paulo. ­ Será que ela

conhece alguém da direção? Ele desconfiou em voz alta.

­ Eu duvido, respondi. ­ Se conhecesse já teria falado e aqui no

Morumbi é assim mesmo: tá cheio de alguém que conhece alguém.

Ao falar isto, escutei os sons dos aparelhos reagindo com a volta da

eletricidade.

­ Vamos lá pessoal! Ordenei. ­ A energia voltou, quero tudo

mundo nos lugares, vamos retomar a rotina.

Já estava anoitecendo. A falta de energia, no final, durara o

tempo de uma sessão. Eu e o gerente júnior retomamos a contagem

Page 21: 4 MISSÃO IMPOSSÍVEL - static.recantodasletras.com.brstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/6134376.pdfaparelhos de TV, soam quase como fanatismo os contos que lerão a seguir ...

21

do estoque. Completamente absortos, quando de repente:

Ring, ring. Tocou o telefone na sala da gerência.

­ Júnior ­ atende para mim, por favor, pedi, enquanto fechava a

última linha do estoque.

­ Alô, pois não, disse Júnior ao telefone. ­ O gerente está

ocupado agora, pode falar comigo.

Não sabia quem estava do outro lado da linha, mas pela feição

de espanto que a cara dele tomou, a coisa era feia.

Precavido, coloquei o telefone no viva­voz

­ ... e você seu gerentezinho de merda, você respeite minha

esposa, disse a voz do outro lado da linha.

­ Mas... senhor, redarguiu Júnior, não ofendemos sua esposa,

pelo contrário...

­ Escuta aqui, seu merda, me deixa falar com o gerente...Eu

sou o Dr. Van Den Berg, neurologista do Albert Einstein e exijo uma

retratação do gerente.

­ Senhor...ele está ocupado.. disse, Júnior, colocando os olhos

sobre mim.

­ Senhor, não, Doutor.. Eu exijo respeito. Você não sabe o risco

que está correndo. Eu sei onde você trabalha. Eu sei que você pode

ser atropelado e não receber atendimento a tempo nos hospitais da

região.. Reze para não precisar da emergência do Hospital Albert

Einstein no meu plantão. Esta me ouvindo? A sua vida pode ficar

curta demais, entendeu? Você me entendeu?

Dito isto, Júnior estava atônito, sem ação, olhando para mim.

Eu, simplesmente, desliguei o telefone.

Clic

­ Tranquilo Pablo, tranquilo, brinquei em espanhol para acalmá­lo. ­

Não vai acontecer nada disso.

Continuamos nosso serviço e nos calamos, por mais de uma

hora. O silêncio me ajudava a avaliar se as ameaças eram críveis,

pois restava uma dúvida que não saía da minha cabeça: como esse

Page 22: 4 MISSÃO IMPOSSÍVEL - static.recantodasletras.com.brstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/6134376.pdfaparelhos de TV, soam quase como fanatismo os contos que lerão a seguir ...

22

tal doutor Van Den Berg conseguiu o telefone da gerência, se não

divulgamos o número para ninguém? Até hoje, eu não saberia dizer.

Considerando que a folha corrida de ameaças em cinemas é

gigante e que sempre tem um louco fora da tela, querendo imitar a

ficção, me coloquei a pensar se o casal Berg teria sido influenciado

pelo filme Pânico ­ que estava em cartaz ­ para perpetrar aquela

ameaça. Acho que é por isso que se exige idade mínima para

determinados longas. Algumas pessoas são plenamente

sugestionáveis pelos filmes, pensei, seguido de arrepios e calafrios na

espinha. O melhor é deixar para lá.

­ Que tal uma pizza? Perguntei ao meu fiel escudeiro Júnior.

­ Só se for agora, respondeu ele.

Enquanto saboreávamos uma pizza de marguerita, riamos e

imitávamos a vozinha da mulher de tubinho rosa choque ­ como ficou

conhecida entre nós.

­x­

Meses antes, naquele mesmo bairro, o cinema do Shopping

Morumbi foi palco do triste episódio conhecido como o do “Atirador do

Cinema” ou o “Atirador do Shopping”. O então estudante de

medicina, Mateus da Costa Meira, com 24 anos de idade, foi para

frente da tela e disparou a esmo tiros de submetralhadora durante a

sessão do filme Clube da Luta: três pessoas morreram e quatro

ficaram feridas. O “atirador” foi condenado a mais de 120 anos de

prisão. Os advogados alegaram que o cliente foi influenciado pelo

vídeo game de tiro Duke Nukem ­ tão esquizofrênico quanto o

personagem de Edward Norton, Jack, que contracena com Brad Pitt,

Tyler, em Clube da Luta.

Page 23: 4 MISSÃO IMPOSSÍVEL - static.recantodasletras.com.brstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/6134376.pdfaparelhos de TV, soam quase como fanatismo os contos que lerão a seguir ...

23

6­ O FILHO DO PUBLICITÁRIO BARRADO NO HOMEM­ARANHA

Sempre gostei dos posteres de filmes e aquele que dois

funcionários desenrolavam para afixar no painel do corredor principal

era, especialmente, um dos mais cobiçados pelos colecionadores de

cartazes de cinema. A figura do Spider­Man, o herói mais popular dos

quadrinhos da Marvel, paira grudado no vidro de um prédio ­

inspirado no Word Trade Center ­ com Manhattan abaixo dele. Um

frio na barriga, para quem tem medo de altura, pensei. Aprovei o

painel e voltei à minha sala, com uma sensação estranha.

Alguma coisa me incomodava no quadro e eu não sabia o que

era. Só me dei conta quando, sentado à mesa, reli a circular da

diretoria sobre os inúmeros aborrecimentos que os Multiplex estavam

tendo por causa da classificação da censura, especialmente, às

crianças. Os juízes não estavam permitindo quebra­galhos. Se a

classificação era para maiores de 14 anos, les petit não entravam

nem acompanhados dos pais. A atriz Alessandra Negrini e a sobrinha

de 10 anos já haviam sido barradas na porta de um Multiplex do Rio

de Janeiro e o Homem Aranha ­ herói das crianças de qualquer idade

­ estava proibido para menores de 12 anos.

­x­

Os dias de estreia ainda me davam frio na barriga. Mas, nas

duas últimas semanas, as crianças estavam sendo barradas a pencas.

O Júnior me ajudava na contenção dos pais inconformados:

­ Mas como pode? Meu filho compra gibi do Homem Aranha nas

bancas. Assiste na televisão. Tem a coleção inteira, por que não pode

assistir? Queria saber a mãe, enquanto eu e o pequeno Júnior nos

escudávamos na lei parar barrar a garotada.

Page 24: 4 MISSÃO IMPOSSÍVEL - static.recantodasletras.com.brstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/6134376.pdfaparelhos de TV, soam quase como fanatismo os contos que lerão a seguir ...

24

Ninguém entendia a classificação etária. Havia uma censura

disfarçada. Um resquício da Ditadura esquecido em algum escaninho

do ministério da Justiça, pensei.

Eu nem havia nascido, quando o Homem­Aranha ganhou seu

primeiro quadrinho. Desde da sua primeira aparição, em 1962, o nerd

órfão Peter Parker é idolatrado pelas crianças e adultos de todo o

mundo, justamente, pela habilidade do super­herói viajar pela cidade

pendurado em teias na luta contra a vilania. Mas, aqui no Brasil,

algum burocrata que visionou o filme achou que as crianças

pudessem ficar tentadas a se jogar dos altos dos prédios penduradas

em teias de aranha caseiras. A censura não sabia como a criançada

iria reagir. Os adultos já tiveram medo real da projeção, lembrei da

história do cinema.

Em 1896, quando os irmãos Lumière fizeram a primeira

exibição pública comercial do filme ­ de sessenta segundos ­

L'Arrivée d'un train à La Ciotat (A chegada de um trem em La Ciotat)

as pessoas saíram correndo para fugir da locomotiva que se

aproximava da tela. Curioso, me divertia sozinho com meus

pensamentos, quando fui interrompido por um cliente.

­ Você é o gerente? Grudou na minha fuça um pai careca,

magro, muito bravo, suando. Encostou ao pé do ouvido e falou:

­ Gerente é o seguinte, hoje é o dia d’eu sair com meu filho.

Sou separado, ô meu! O menino está frustrado por sua causa...

­ Eu sei, sinto muito, mas não posso fazer nada, respondi,

impávido, tentando passar a maior frieza possível. Cada qual com

seus problemas, encarnei o personagem gerente durão.

­ Eu vou quebrar a tua cara, reagiu o pai careca..

­ Quer quebrar, é?! Aqui mesmo no Cinema? Na frente do seu

filho? E continuei ­ Então é o seguinte, me espera depois das cinco e

meia no estacionamento. É quando largo daqui, hoje. Lógico que não

contava que ele fosse, porque eu não iria também.

A discussão foi interrompida pelo rádio.

Page 25: 4 MISSÃO IMPOSSÍVEL - static.recantodasletras.com.brstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/6134376.pdfaparelhos de TV, soam quase como fanatismo os contos que lerão a seguir ...

25

Qrrr ­ Rubens, telefone pra você, falou o gerente Sênior,

Roberto, a quem eu havia passado a tarefa de conferir as planilhas.

No caminho para a sala da gerência, pensava se iria precisar

reforçar a segurança para aqueles dias do spider­man.

A regra de ouro da casa de não envolver a polícia havia sido

quebrada várias vezes. Mas talvez fosse inevitável a presença de

policiais para que a classificação etária fosse respeitada. Atendi ao

telefone.

­ Rubens, me chamou do outro lado da linha a voz

incorruptível do diretor­geral. ­ Rubens é o seguinte, antes da

primeira sessão do Homem­Aranha você vai passar um convidado

VIP: o publicitário Nizan Guanaes, que vai com o filho, menor de 12

assistir Homem Aranha. Você vai passar os dois. Entendeu?

A Lei! Ora a Lei. Era o paradoxo Multiplex. Nenhuma sessão

era proibida para os diretores e seus convidados.

Apesar da própria diretoria ter circulado um comunicado

ameaçando demitir o funcionário que infringisse a lei, não era

incomum a diretoria abrir exceções para espectadores renomados, o

problema era, no caso, o seu acompanhante explosivo: o filho menor

de 12 anos.

­ Mas não vai dar certo, diretor. A porta do cinema já tem uma

fila gigante, as pessoas vão vê­los chegar, adverti.

­ Eu confio em você, Rubens, para resolver este problema. Clic.

Bem, nunca seria chamado de vilão por levar uma criança para

assistir um filme, ironizei. Vamos lá, pensei, tentando arquitetar

como eles entrariam na sala. Ocasionalmente, ingressava os famosos

pela saída, pela porta dos fundos.

Mas hoje o cinema está tomado e o clima, tenso, anotei

mentalmente. Teria que ser pela porta por onde entra o staff, atrás

dos caixas. Na frente de todo mundo. Aquela porta dava acesso ao

corredor central. Se chegassem no horário, daria certo.

Havia uma repulsa da opinião pública em relação à essa

Page 26: 4 MISSÃO IMPOSSÍVEL - static.recantodasletras.com.brstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/6134376.pdfaparelhos de TV, soam quase como fanatismo os contos que lerão a seguir ...

26

proibição. As críticas estavam em todos os jornais. O ministro da

justiça, na época, Miguel Reale Jr, recebia apelos com fotografias de

crianças fantasiadas de Homem­Aranha. A situação beirava o ridículo.

Não seria nada fácil enfrentar a segunda semana de contenção

daquela multidão fanática por um dos mais queridos heróis da

Marvel.

Bem, não havia tempo para digressões. Sai da pequena

gerência direto para encontrar Júnior que, na entrada do hall,

acompanhava tudo e me mantinha informado sobre o trabalho dos

encarregados das bilheterias, portaria e bomboniere.

­ Junior, vão entrar dois VIP’s ai pela lateral. Falei, medindo a

reação dele.

­ Eles vão demorar? Olha aí fora, isto aqui já está lotado de

gente. E daqui a uma hora, quando começarmos a vender os

ingressos, vai estar um inferno. Ele me falou, olhando com cara de

que farejou problemas.

­ É sabichão, eu espero que não.

­x­

A visão profética de Júnior se realizara. Estavam ali, diante dos

meus olhos, perto de duas mil pessoas. A maioria, em frente a

bateria de caixas, disputava os ingressos para as próximas sessões.

Uma fila de quinhentas pessoas já estava formada na parede

que dá acesso à portaria. Eram o donos dos tickets da primeira

sessão que começaria em meia hora. Mais dez minutos e seriam os

primeiros passageiros a embarcar nos efeitos especiais da luta do

Spiderman contra o Duende Verde. É sensacional. Eu mesmo traria

meu filho para assisitir, se ele não fosse um bebê, sorri amarelo, no

mesmo instante em que percebo a figura do Nizan vindo de fora da

sala, do lado das escadas rolantes. Chegava meio esbaforido de mãos

dadas com o filho. Me antecipei à entrada deles, com discrição,

Page 27: 4 MISSÃO IMPOSSÍVEL - static.recantodasletras.com.brstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/6134376.pdfaparelhos de TV, soam quase como fanatismo os contos que lerão a seguir ...

27

avancei por trás dos caixas deixando que eles me vissem. Os

cumprimentei com a cabeça. Eles me viram!

­ Venham por aqui, disse. Abrindo um pequeno portãozinho na

lateral dos caixas. Pedi que me seguissem por trás das bilheterias,

até a porta por onde recolhemos o troco. Deu certo! Ninguém os

notou, comemorei. Atravessamos uma sala e saímos no meio

corredor principal. Agora é só levá­los para a sala. Mas...mas ... não!

Que porra é essa? Quase falei em voz alta, exaltado, quando olho

para trás e vejo que Nizan não me seguia mais: deixou­se apanhar

pela pipoca.

Maldita bomboniere com balcões abertos para os dois lados!

Pensei. Os dois ficaram completamente expostos para a multidão de

pessoas que, do lado de fora, esperavam sua vez para comprar

pipoca e refrigerante.

Naqueles meses de 2002, Nizan era notícia. O publicitário fazia

a campanha de Serra contra Lula. As pessoas do outro lado da

bomboniere o reconheceram e tentavam supor a idade do seu guri.

Não deu outra, os apupos chamaram a atenção das primeiras

pessoas da fila. Curiosas para saber o que se passava, inclinaram

seus corpos sobre as correntes e nos flagraram no imenso corredor

vazio: fomos pegos. Droga!

Você já enfrentou os donos dos primeiros lugares da fila?

Aqueles que chegam duas horas antes do cinema abrir? E que

passam o tempo dedurando os penetras? Desmoraliza a firma,

pensei, perplexo com o cenário que ebulia com explosões dos

humores da massa.

O porteiro, quando meu viu, começou a recolher os ingressos.

Irritadas, as pessoas entraram no corredor em direção à sala de

exibição. Antes que chegassem até nós, conduzi Nizan e seu filho e

os acomodei nas poltronas. Agíamos como fugitivos sob vaias que

começaram tímidas, mas logo se transformaram em protestos

públicos indignados em alto e bom som.

Page 28: 4 MISSÃO IMPOSSÍVEL - static.recantodasletras.com.brstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/6134376.pdfaparelhos de TV, soam quase como fanatismo os contos que lerão a seguir ...

28

­ Olha lá, você viu o Nizan com o filho dele? Apontou uma

mulher.

­ Eu duvido que aquele garoto tenha doze anos, completou o

namorado.

­ Ei! Gerente de merda! Você pediu documento para o menino?

Gritou um homem que não pude ver quem foi.

Voltei depressa para o hall das bilheterias, onde o clima estava

incendiário.

­ Vamos invadir esta droga de cinema! Gritavam. As vozes

vinham das enormes filas. Corri para minha sala e retornei o

telefonema do diretor­geral.

­ Diretor é o Rubens, o negócio é o seguinte, o VIP que senhor

convidou... A situação ficou confusa. Os viram entrando na sala.

Querem invadir o cinema.

­ Rubens.... a voz emudeceu do outro lado da linha.

­ A polícia vai ter que ser envolvida. Vai ficar pior a situação... a

imprensa.. Enfim, vai ser ruim para a imagem Multiplex. Ops...

Palavras que nenhum diretor geral quer ver vinculada ao seu

currículo.

­ Bem, Rubens, se a situação está assim tão fora de controle

como você diz, faça o que tenha que fazer. Clic.

Com carta branca, não tive outra opção senão a corrigir meu

pecado original. Voltei à sala, onde já estavam instalados pai, filho e

pipocas gigantes e lhes falei:

­ Nizan, desculpe, mas vocês vão ter que sair. Aqui não é

mais seguro, falei. Enquanto os convencia, gritos ameaçadores

penetravam a sala pela porta que ainda estava aberta recebendo os

espectadores da primeira sessão.

­ Olha aí os protegidos do governo! Disse alguém. Nizan

escutou, mas não se abateu.

­ Vamos, eu conheço isso. Só vai piorar, insisti, olhando firme

para o publicitário.

Page 29: 4 MISSÃO IMPOSSÍVEL - static.recantodasletras.com.brstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/6134376.pdfaparelhos de TV, soam quase como fanatismo os contos que lerão a seguir ...

29

­ Que nada! Me deixa aqui. Enquanto Nizan retrucava, os

primeiros da fila, não me perdoaram:

­ Como que é? Gerente filho da puta, esses aí são os seus

protegidos? Xiii!. Caiu o nível. É nesta hora que o gerente de cinema

se sente juiz de futebol, pensei.

­ Nizan, ordenei. ­ Você e seu filho de dez anos não podem

mais ficar na sala, sinto muito.

­ Você está se metendo com a pessoa errada. Você não sabe

com quem esta falando. Eu escutei novamente a frase clichê, desta

vez, emitida por uma das maiores celebridades da criação

publicitária.

Ele saiu reclamando, sob vaias e aplausos de quinhentas

pessoas. Eu me recolhi à minha sala, completamente, extenuado

como Peter Parker depois da sua primeira surra.

­X­

Uma semana depois, o secretário nacional de Justiça, João

Benedicto de Azevedo Marques, declarou que “o Homem­Aranha é

um personagem do imaginário das crianças, um herói do bem que

luta contra o mal. Razão pela qual não há porque proibir a sua

exibição para menores de 12 anos", classificando o filme como livre

para todas as idades, a partir daquela data.

Foi uma alegria para os cofres da distribuidora Columbia Picture

­ que nos Estados Unidos já tinha batido recorde de faturamento o

Spider­Man. O longa entrou para história como a primeira produção

do cinema a arrecadar mais de 100 milhões de dólares no final de

semana de estreia.

Page 30: 4 MISSÃO IMPOSSÍVEL - static.recantodasletras.com.brstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/6134376.pdfaparelhos de TV, soam quase como fanatismo os contos que lerão a seguir ...

30

7 ­ QUANDO O GAY DO CARANDIRU NÃO PÔDE FUMAR

A Columbia Picture não economizou dinheiro na pré­estreia de

Carandiru, filme dirigido pelo argentino, naturalizado brasileiro,

Hector Babenco, que, em 2003, já era consagrado pelo premiado

longa Pixote.

Baseado no best­seller Estação Carandiru do Doutor Dráuzio

Varella, o filme era sucesso certo. O médico testemunhou os horrores

da Casa de Detenção paulista, nos anos 90, quando dava plantão

na enfermaria, cuidando dos presos com HIV.

Exatos 11 anos após o massacre dos “111 presos indefesos” ­

como Caetano Veloso eternizou na canção Haiti ­ recebi a circular da

direção que todas as nove salas da menina­dos­olhos do Multiplex, do

Shopping Jardim Sul, estavam reservadas para 2 mil convidados.

Nove e mais dois igual a onze. Droga. Odeio numerologia, pensei.

­x­

Era segunda feira, dia de folga de 11 pessoas do staff,

principalmente dos bilheteiros que tinham trabalhado no final de

semana. Tudo bem, me confortei, já que não haveria venda de

bilhetes. Era um evento para convidados. Um pequeno desfrute do

glamour da indústria cinematográfica, pensei.

Todos chegavam ao cinema exibiam seus convites como

troféus. Entre eles, políticos, juízes e promotores de justiça reluziam

de felicidade por estarem ali, entre atores, técnicos e produtores do

filme.

Mas para mim, gerente de cinema, todo cuidado é pouco.

Page 31: 4 MISSÃO IMPOSSÍVEL - static.recantodasletras.com.brstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/6134376.pdfaparelhos de TV, soam quase como fanatismo os contos que lerão a seguir ...

31

Qualquer menção negativa sobre o evento num grande jornal paulista

seria fatal. Posso dizer bye­bye ao emprego, pensei.

Felizmente, nestes momentos, a equipe ficava focada. Éramos

os heróis da noite. Unidos como Brad Pitt, George Clooney, Matt

Damon e os outros em Onze homens e um segredo, nós tínhamos um

plano que não poderia dar errado: garantir a projeção em todas as

salas ao mesmo tempo, anotei na mente.

A operação seria controlada do começo ao fim. Era uma boa

adrenalina. Trouxe projecionistas de outras unidades do Multiplex.

Todos os gerentes trabalhariam em jornada dupla. A última sessão

do dia aberta ao público acabou às 20hs.

Eram 20h30. Comecei a fazer meu circuito de checagem: como

previsto, o hall já estava lotado de convidados. Todos prontos para

atacar a bomboniere. Sempre esta maldita bomboniere! Acreditem,

não existe, em nenhum cinema Multiplex ou no concorrente

Cinemark, lojinha de doces e pipocas que dê conta de servir a duas

mil pessoas, simultaneamente.

A rotina de atender ao cliente, fazer o troco, estourar pipoca,

repor embalagens, baldes, copos e xarope de refrigerantes toma

tempo. Nas melhores performances chegamos a vender para

setecentas pessoas por hora, às vezes, para mil ­ num mutirão de

funcionários que ficaram aturdidos pela minha expertise de chef em

“mise en place”.

Se a venda para milhares é difícil, a distribuição gratuita é mais

complicada ainda. Para evitar chilique de VIP’s, começamos cedo

estocando pipoca em pequenos sacos e enchendo copos de plásticos

com refrigerantes que, agora, estavam sendo distribuídos à medida

que as pessoas embarcavam nas salas.

Aliás, esse cheiro da pipoca com manteiga me enjoa, pensei,

enquanto me afastava em direção à salas de projeção. Atravessei

com discrição aquela multidão que se esforçava em aparentar

modéstia. Mas eu sabia que ali estavam centenas de figurantes e

Page 32: 4 MISSÃO IMPOSSÍVEL - static.recantodasletras.com.brstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/6134376.pdfaparelhos de TV, soam quase como fanatismo os contos que lerão a seguir ...

32

atores. Alguns deles imortalizados no poster de divulgação do filme

em que aparecem submissos e nus, sentados no pátio da Casa de

Detenção. Um retrato fiel do massacre, quando foi transmitido, ao

vivo, pelas emissoras de TV, lembrei ao olhar o cartaz afixado no

painel do corredor central.

O filme era um marco do cinema nacional. Demorou três anos

para ser rodado e usou oito mil intérpretes. Ainda bem que não

vieram todos, respirei aliviado. Não teria como atendê­los, brinquei

comigo mesmo.

As filas já estavam organizadas por sala. Na principal,

entrariam os figurões do filme. Lá, haverá discursos, distribuição de

brindes e estarão todos aqueles que emprestaram o nome para o

letreiro final, dos créditos, estimei ao começar a rotina de checagem.

Pelo rádio chamei o projecionista.

Qrr. ­ Mané esta em QAP? Qrr.

Qrr. ­ Positivo. Estamos prontos aqui em todas as salas, se

antecipou Mané, para me tranquilizar. Qrr

Qrr. ­ Ótimo, Mané, às 21hs vamos começar todas as

projeções simultaneamente. Você vai supervisionar as salas. A boa

notícia é que se der tudo certo, vocês vão sair mais cedo, hoje.

Normalmente, saíam depois da meia­noite. Mas hoje era dia de gala.

Faltavam quinze minutos para as 9h da noite. A tensão subia. A

maioria dos convidados já estava aconchegada nas salas. Mas muitos

ainda esperavam impacientes no corredor e no saguão, apreensivos,

a chegada das estrelas do filme. Enquanto seguia para as salas de

projeção, vi de longe, a executiva da distribuidora, perfeita num

tubinho preto, numa roda de amigas.

­ Ele prometeu que vinha, falava a executiva da Columbia

Picture às amigas. Deduzi que falavam sobre a possível vinda do

Babenco. Pensei em cumprimentá­la, mas eu não tinha tempo.

Vou começar às 21hs em ponto, memorizei. A menos que

alguém da distribuidora ou da UCI peça para eu segurar. A gigante

Page 33: 4 MISSÃO IMPOSSÍVEL - static.recantodasletras.com.brstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/6134376.pdfaparelhos de TV, soam quase como fanatismo os contos que lerão a seguir ...

33

Columbia Pictures bancava tudo aquilo, analisei, enquanto tomava o

caminho da ala que liga todas as salas de projeção e que pouca gente

conhece. É um corredor que passa sobre as portas de entrada e

ninguém o percebe. Quase um caminho secreto entre as “casamatas”

com seu respectivo projetor de filmes, carregado e pronto para ser

disparado.

Sempre atrasa, calculei. Os discursos dos diretores e

produtores e brindes, às vezes, se estendem além do previsto. Mas

duvido que Babenco venha, apostei comigo mesmo.

Estava combinado que a Ângela me daria “o vai”, o sinal, para

iniciar a exibição simultânea. Eu frisei que toleraria, no máximo, 15

min de atraso. A experiência já havia me ensinado que após 20 min

de demora, as pessoas ficam impacientes demais para esperar dentro

das salas e começam a perturbar os corredores. Não quero confusão.

Eram nove horas em ponto. Neste momento, o rádio chama.

Qrr. ­ Rubens, tá na escuta? Qrr. Perguntou a executiva da

Columbia Pictures.

Qrr. ­ Sim, respondi, emendando a questão: ­ São 9hs,

podemos começar? Qrr.

Qrr. ­ Não. Eu te chamei, justamente, para isso. Me dê mais

dez minutos, por favor. Qrr. Ela pediu.

Qrr. ­ Tudo bem querida, mas às 9h15, eu começo. Qrr

Qrr. ­ Sei, mas...espera ai... acho que é ele quem está

chegando.. espera que já te chamo. Qrr. Falou a executiva desligando

o rádio.

Não sabia ao certo quem chegava e, também, não tinha tempo.

Percorri o corredor das salas de exibição e desejei boa sorte a todos

que estavam de prontidão para disparar os projetores.

Passavam quinze minutos das nove. Estava na hora. E ainda

nada do “ vai” da Ângela.

Pela abertura da sala de projeção, onde me encontrava, tinha

uma visão parcial plateia. Ouvia os aplausos e sabia que os

Page 34: 4 MISSÃO IMPOSSÍVEL - static.recantodasletras.com.brstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/6134376.pdfaparelhos de TV, soam quase como fanatismo os contos que lerão a seguir ...

34

produtores do filme estavam agitados, fora de seus assentos. Droga,

o que é que ta segurando? Pensei em voz alta.

Decidi chamar a executiva pelo rádio.

Qrr...­ Hei, Columbia, brinquei ao chamá­la. ­ Está na escuta?...

Qrr.

Silêncio... Nenhuma resposta. Em vez da voz dela, surge pela

rádio a voz do Osvaldo, o segurança:

Qrr...­ Rubens está em Q A P?... qrr.

Qrr...­ Agora não dá pra falar Osvaldo, estou ocupado...qrr

Voltei a chamar a executiva pelo rádio:

Qrr ­ Columbia, está na escuta?..qrr. Insisti.

Qrr ­ Columbia, eu vou apagar as luzes e começar a rodar o

filme... qrr.

Falei sem ter certeza se ela me ouvia. Nada, só estática: qrrrr.

Eram 9h16. Chega de esperar, decidi.

­ Mané, pode apagar as luzes e começar o filme, ordenei e em

seguida desci.

Qrr... ­ Rubens, chamou, novamente, Osvaldo. ­ Você precisa

vir ao Q T H, aqui no Hall. Tem um Q S O em andamento. Qrr.

Qrr. ­ Osvaldo, espera um pouco. Faz um Q T X, falei e me

pus a andar para o Hall.

Conversar por rádio gera dois problemas óbvios de

comunicação. Primeiro, a dificuldade de ouvir com clareza o que diz

seu interlocutor, em meio ao ambiente sonoro, prejudicado pelas

vozes e ruídos de estática e, segundo, o entendimento deste ridículo

código dos Q´s que foi inventado pela marinha britânica no começo

do século passado, justamente para suplantar as dificuldades

radiofônicas, mas que, na boca dos funcionários das empresas

particulares de segurança, viraram uma sopa de letras ­ com uma

vaga proximidade do código Q original. De todo modo, o que Osvaldo

me falou é que eu deveria ir ao local (Q T H) porque havia uma

ocorrência (Q S O) e eu pedi um tempo (Q T X). Mas meu problema

Page 35: 4 MISSÃO IMPOSSÍVEL - static.recantodasletras.com.brstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/6134376.pdfaparelhos de TV, soam quase como fanatismo os contos que lerão a seguir ...

35

era saber porque a Columbia não falava comigo. Quando desço ao

corredor principal, a encontro esbaforida correndo ao meu encontro.

­ Rubens, você começou? Ele chegou, mas sumiu?

Antes que pudesse falar com ela. Osvaldo insistiu pelo rádio e

foi terminativo:

Qrr ­ Rubens, você precisa vir ao Q T H. É urgente... qrrr... o

cara que é o gay ... filme... qrr... ta aqui fumando... qrr.... quer

apagar...qrr.

Com o som do rádio entrecortado pela estática, não consegui

entender nada do que o segurança me falava, ainda mais com a

Columbia buzinando que alguém tinha sumido.

­ Rubens, ele não está na sala, você tinha que esperar para

começar a sessão, disse a executiva.

­ Querida, eu te avisei que começaria às 9h15 e agora já é

tarde: começou. Não tenho culpa que o Babenco desapareceu.

­ Não, não. O Babenco nem veio. É o Rodrigo Santoro. Ele

chegou, deveria estar na sala, mas sumiu.

Agora fazia sentido o que Osvaldo tentava me dizer...

Gay...filme? Putz.. Entendi e sai apressado para encontrar o

segurança, deixando a executiva da Columbia falando sozinha.

Os seguranças, geralmente, são aculturados em termos de

filmes. Não poderia cobrar que soubessem o nome dos atores. Mas

assim que cheguei ao canto do Hall, avistei Osvaldo, constrangido,

tentando convencer Rodrigo Santoro de que não era permitido fumar

no cinema. Rapidamente me apresentei:

­ Santoro, como vai? Sou o gerente do cinema, disse,

piscando para Osvaldo, numa linguagem em que, mutuamente, nos

entendíamos e que significava: deixa comigo que resolvo.

­ Que bom que você veio, disse Santoro, afetado. ­ Estou

tentando explicar para seu funcionário que vou dar apenas uns

tragos....é um absurdo...

­ Santoro é o seguinte, o interrompi, secamente.

Page 36: 4 MISSÃO IMPOSSÍVEL - static.recantodasletras.com.brstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/6134376.pdfaparelhos de TV, soam quase como fanatismo os contos que lerão a seguir ...

36

­ A executiva da Columbia Pictures, que fez um bom acordo

para te trazer à pré estreia, está descabelada atrás de você. E o

segurança tem razão: aqui você não pode fumar. E você estrela do

filme, no papel do travesti, Lady Di, não vai fazer esta grosseria com

o público que te aguarda.

Compelido pelos argumentos, um doce Santoro apagou o

cigarro e foi serelepe ao encontro da executiva que vinha correndo

atrás de mim.

Não falei para ele que o filme já havia começado e que, agora,

na escuridão, dificilmente, alguém o veria entrando na sala.

Mas no final da sessão poderia voltar a ser incensado pelos fãs.

Isto se aguentasse os 140 minutos restantes sem fumar, pensei.

8­ EMBARCANDO CLANDESTINAMENTE SÍLVIO SANTOS PARA

ASSISTIR SHEREK, DUBLADO

Eu acompanhava Júnior fazendo a sangria do caixa. Na

verdade, esperava ele vir com o malote em minha direção.

Enquanto ele recolhia o dinheiro, imitava Sílvio Santos:

­ A­á­i, agoragoragora, quem quer dinheiiiro, Lombardi?!

­ Está cada vez mais parecido com ele, disse para Júnior.

­ Eu não quero me parecer nada com ele, neste momento,

falou, à medida que nos colocávamos a caminho do sala da gerência.

­ Ah, sei. Acredito, Júnior, que não gostaria de ter a fama e o

dinheiro dele: o mais famoso apresentador de TV do Brasil.

­ Não, Rubão, é sério, circula uma história de sequestro da filha

dele. Meu irmão é office boy na redação da TV Cultura. Vazou da

polícia. Toda a imprensa já sabe, só não pode divulgar.

­ Sério, Júnior? Que horrível! Comentei, enquanto abria o cofre

para guardar o dinheiro.

Page 37: 4 MISSÃO IMPOSSÍVEL - static.recantodasletras.com.brstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/6134376.pdfaparelhos de TV, soam quase como fanatismo os contos que lerão a seguir ...

37

­ A bilheteria está forte, disse Júnior, ao ver os maços de

cédulas.

­ Esse Shrek vai arrecadar bem, falei enquanto confrontava os

pacotes de dinheiro com o venda. ­ Aposto com você que vai ser um

sucesso. Eu vim com meu filho e ele achou muito engraçado

aparecerem, no mesmo desenho, Cinderela, Branca de Neve,

Princesa, Dragão, Burro e um ogro verde com a voz do Bussunda, o

humorista do Casseta e Planeta. Achei que ficou muito legal essa

dublagem. Não tão boa quanto sua imitação do Sílvio Santos,

brinquei, enquanto Júnior saía da sala.

Tranquei o dinheiro e fechei a porta do cofre. Desabei o corpo

na cadeira e temia relaxar e pegar no sono, naquele fim de tarde. De

repente soa o telefone:

­ ring, ring, ring

­ Alô, é do Cinema do Jardim Sul, Sr Rubens...?

­ Sim, pois não.

Aquela voz era do Sílvio Santos! Esse Júnior, pensei, se ele

acha que vai passar este trote em mim está muito enganado. Paguei

para ver e dei corda para o interlocutor da outro lado da linha.

­ Fala ai seu Sílvio! disse, meio insolente

­ Reconheceu minha voz, né verdade? Arrái, não tem mesmo

como disfarçar, ih ihh...

­ Ô ô Júnior..... quando ameacei interromper, a voz foi por

demais inquestionável.

­ Arrái, querido, é por isso mesmo que eu preciso contar com

sua discrição. Todo mundo me conhece, não é mesmo? E imagina

você, eu não consigo assistir a um filme em paz, não é verdade? Ih

Íhh..

Minha última porção de dúvida se esvaiu, quando o próprio

Júnior em pessoa entrou na sala e acenou que queria falar comigo.

Pedi que esperasse e dei de costas para ele, enquanto seguia

ouvindo o dono do SBT. De repente, quase fui traído pela memória ao

Page 38: 4 MISSÃO IMPOSSÍVEL - static.recantodasletras.com.brstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/6134376.pdfaparelhos de TV, soam quase como fanatismo os contos que lerão a seguir ...

38

lembrar da história do sequestro, mas permaneci firme.

­ Senhor Sílvio, por favor, o que posso fazer pelo senhor?

Perguntei.

­ Aái Rubens, não precisa me chamar de senhor. Eu

estou te procurando por indicação do seu diretor de Marketing,

o Aloísio, sabe? Acontece o seguinte, eu gostaria de assistir a

este desenho do ogro, o Shrek. O dublado, ouviu? Mas gostaria

que você me preparasse um acesso discreto, longe do assédio

do público. Você sabe como é? Eu não consigo andar no meio

das pessoas sem ser interrompido.

­ Eu entendo. Quando o senhor, digo, quando você quer vir?

Perguntei.

­ Bem, para ser franco, eu já estou a caminho. Se você

providenciar meu acesso, estarei aí em vinte minutos.

­ Fique tranquilo, seo Sílvio. Vou preparar seu embarque, afirmei.

­ Obrigado, obrigado, Rubens.

Clic.

Desliguei o telefone, peguei o Rádio e passei instruções ao meu

pessoal e expliquei aos seguranças do Shopping que uma celebridade

chegaria logo. Eles estavam acostumados. Afinal estávamos na joia

do Multiplex: o Jardim Sul.

­x­

Cerca de trinta minutos depois, quase no início da sessão

dublada, o rádio chama.

Qrrr ­ Rubens? ..

Qrr... Fala quem chamou, respondi..

Qrr... Acho que sua celebridade chegou...

Qrr. Ok. Obrigado.

Corri até o estacionamento, para recebê­lo. Lá estava ele,

saindo do seu Lincoln verde. Para minha surpresa, o mestre da

comunicação dirigia ele próprio seu veículo. No chauffeur, pensei. Ele

se aproxima de mim, radiante, com o magnetismo exibido em slow

Page 39: 4 MISSÃO IMPOSSÍVEL - static.recantodasletras.com.brstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/6134376.pdfaparelhos de TV, soam quase como fanatismo os contos que lerão a seguir ...

39

motion de cenas de filmes românticos.

­ Rubens? Ele perguntou ao se apresentar.

­ Sim, por aqui seo Sílvio, disse apontando o caminho.

As poucas pessoas que nos viram ficaram atônitas,

hipnotizadas pela experiência de ver em carne e osso alguém com

quem compartilham seus domingos.

Entrou pela saída da sala, o conduzi ainda no escuro a uma das

cadeiras do fundo e providenciei pipoca e refrigerante. Pronto. Ele

estava instalado, e eu, seguro. Passou clandestino as duas horas na

sala e saiu, no final, após todo mundo.

­x­

No dia seguinte, contava para o Júnior sobre a quase gafe que

cometi ao atender o verdadeiro Sílvio Santos, pensando ser um trote.

­ Júnior, cheguei a pensar que fosse você querendo passar

um trote.

­ A­á­i.. agoragoragora, brincou ele, repetindo um dos

mais famosos bordões do apresentador e reproduzido por 10

em cada 10 imitadores.

­ Será mesmo verdade, a história do sequestro? Perguntei. ­

Ele tinha mesmo uma expressão pesada.. apesar do sorriso largo.

ring, ring

­ Alô, Multiplex, Rubens, pois não.

­ Alô, seu Rubens é Daniela da bilheteria. Tem um senhor aqui

que insiste em vê­lo.

­ Estou indo.

Clic

Chego ao saguão e dou de cara com um funcionário do Sílvio

Santos que me entrega um vinho e um cartão de agradecimento

manuscrito de punho próprio pelo dono do segundo maior grupo de

televisão do país. Cartão que guardo até hoje como um pequeno

troféu, pela minha trajetória como gerente de cinema.

­X­

Page 40: 4 MISSÃO IMPOSSÍVEL - static.recantodasletras.com.brstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/6134376.pdfaparelhos de TV, soam quase como fanatismo os contos que lerão a seguir ...

40

Semanas depois, todos nós acompanhamos pelos canais de

televisão, a libertação da filha de Sílvio Santos. E, logo em seguida, a

prisão do sequestrador que dias depois foi morto num episódio tão

estranho como roteiro de filme. Até hoje me pergunto porque a

urgência de Sílvio Santos dele em entrar naquela sala escura para

assistir Shrek dublado em plena crise familiar. Para relaxar, né

mesmo? Ih íhh. Aái.

9 ­ O JET LEE DO MULTIPLEX ANÁLIA FRANCO

A arquitetura do Shopping Anália Franco é de se admirar,

mesmo. Fitava atônito olhando aquele átrio de vidros climatizados,

por onde a luz iluminava todo o interior de prédio, refletindo­se nas

colunas metalizadas. Bonito, pensei enquanto me dirigia para dentro

da sala de cinema.

No caminho fui abordado pela Fabíola, gerente júnior do

Multiplex Anália Franco.

­ Rubens, as costureiras já chegaram faz uma hora, estão na

sala seis, me avisou.

­ Ah é? Que bom, vou pra lá.

­ Vou com você, decidiu Fabíola.

­ Tudo bem! Depois eu passo na gerência.

Fabíola era uma garota aplicada. E se vestia como tal, tipo:

calça apertada, cabelo preso, camisa social de mangas arregaças e

óculos de aro preto. Ainda nova, já havia feito intercâmbio na Disney

e tinha uma ávida curiosidade por tudo que envolvia cinema.

­ Você já viu colocarem a tela, alguma vez? Perguntou.

­ Não, nunca vi.

Aquele era o sétimo empreendimento da Multiplex em São

Page 41: 4 MISSÃO IMPOSSÍVEL - static.recantodasletras.com.brstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/6134376.pdfaparelhos de TV, soam quase como fanatismo os contos que lerão a seguir ...

41

Paulo. Feito num shopping de alto padrão para os novos ricos de um

antigo bairro dormitório da Zona Leste, da capital paulista.

­ O que você está achando do cinema? Gosta de como esta

ficando? Perguntei.

­ Rubens, é coisa de primeiro mundo, ta di­vi­no, frisou Fabíola.

­ Como na Flórida, não é? Brinquei.

Quando entramos na sala, as costureiras já haviam prendido

um terço da tela. Eram três, uma das mulheres estava firme sobre

uma escada de abrir.

­ Tudo bem? Sou o Rubens, me apresentei.

­ Tudo bem, me responderam sem tirar os olhos das

habilidosas agulhas. Elas costuravam o tecido com ele em pé, para

ficar esticado, lisinho. A enorme faixa de tecido branco saía de uma

caixa de papelão. Me aproximei e cheguei a tocar naquele pano alvo,

acetinado, fruto de um banho químico especial para refletir melhor a

luz.

­ Não toque, por favor, disse a mulher que estava trepada na

escada, me fuzilando com os olhos.

­ Ops! Desculpe é que é um branco impressionante.

­ Este tecido não pode ser limpo, por isso não pode ser tocado.

Ela falou num tom como se fosse um mantra. De fato, rastros de

limpeza ficam aparentes quando se projeta o filme. Como não queria

ser suspeito de macular aquele candura, me afastei rapidamente,

avisando­as que a primeira sessão começaria dali a oito horas.

­ Será que dá tempo de esticar as telas de todas salas?

Perguntei.

­ Humpf! Desdenhou a mais velha delas.

De volta ao corredor, Cláudia, meu braço direito, me adiantou

que tudo estava bem na bomboniere.

­ Você sabe, né, Rubens, que hoje vem a matriz em peso para

a inauguração?! A diretoria todinha estará aqui. Talvez até o

presidente do grupo, disse Cláudia.

Page 42: 4 MISSÃO IMPOSSÍVEL - static.recantodasletras.com.brstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/6134376.pdfaparelhos de TV, soam quase como fanatismo os contos que lerão a seguir ...

42

­ Duvido. De Londres, deve vir só o diretor de marketing, Mr.

Taylor, acompanhado dos seus convidados; os distribuidores dos

grandes estúdios.

­ Pode ser, mas de todo modo, vem o pessoal do Rio de

Janeiro.

Os diretores do Rio aproveitam para transformar essas inaugurações

em baladas. Business. Hoje é apenas uma prévia, um piloto. O Day

Family, como dizem, é uma pré­inauguração aos funcionários e seus

parentes. Amanhã é que seria a abertura ao público.

­X­

Sete horas da noite. As famílias não paravam de chegar.

Desfilando umas após outras.

­ Rubens, esta é minha irmã e minha mãe, me apresentou

Maria, a gracinha da bomboniere. A mãe até que não é mal, pensei.

Sejam bem­vindos, respondi e me pus a caminho da minha

sala.

No Family Day é tudo de graça ­ pipoca, refrigerante e sessão ­

para os funcionários que ganham salário mínimo e ralam 40 horas

semanais. Mas ali, todos eles estavam orgulhosos de apresentar o

Multiplex para seus parentes. O clima está bom.

Na minha sala, chequei o material e vi se tudo estava de acordo

com o manual de operações da Cia. Eu não queria vacilar com o

diretor geral da empresa aqui.

­x­

O diretor geral Paulo chegou do Rio, exatamente, uma hora

antes dos projetores entrarem em ação. Me reconheceu ao entrar

sem cerimônia em minha sala. Puxava um carrinho de viagem e uma

pasta 007.

Page 43: 4 MISSÃO IMPOSSÍVEL - static.recantodasletras.com.brstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/6134376.pdfaparelhos de TV, soam quase como fanatismo os contos que lerão a seguir ...

43

­ Rubens, tá tudo bem? Como ficaram as telas? Paulo

perguntou, largando o corpo sobre a poltrona. Era um cara legal,

meio empreendedor e self­made man. Já tinha produzido shows de

rock.

­ Você não quer ir ver com seus próprios olhos?

Saímos da sala.

­ Quer um refrigerante? Ofereci.

­ Aceito uma água.

Pegamos algo para beber e fomos vistoriar as telas de

magníficas dimensões e qualidade.

­ São excelentes as costureiras que mandou, Paulo, elogiei.

­ Eu sei, elas estão conosco desde o começo. E o Family Day,

tudo em ordem?

­ Tudo em ordem. O xarope de refrigerante chegou.. Tá tudo

certo.

­ X­

O Family Day foi um sucesso. Me despedi dos diretores que

combinavam chegar até o bar do Shopping.

­ Vai lá pessoal. Eu preciso deixar a casa em ordem.

Aproveitem, disse ao apertar a mão do diretor geral. Invejava

os caras que iam beber, mas o cinema tinha que estar pronto

para a inauguração pública.

­x­

Ring, ring.

Tocou cedo o telefone em casa.

­ Alô Rubens, acho melhor você vir correndo pra cá. Era a

Page 44: 4 MISSÃO IMPOSSÍVEL - static.recantodasletras.com.brstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/6134376.pdfaparelhos de TV, soam quase como fanatismo os contos que lerão a seguir ...

44

Fabíola. ­ Você não vai acreditar. Os caras quebraram a porta da sua

sala.

­ Como é que é? Saltei da cama e enquanto vestia a roupa,

tentava descobrir o que tinha acontecido.

­ Os caras, como assim, Fabíola?

­O Paulo, o Sérgio. Os caras chutaram a porta até quebrar.

­x­

O batente havia sido arrancado e a porta ainda estava

pendurada por uma das dobradiças. Um dos diretores quebrou o pé.

A câmera de segurança gravou os três executivos da empresa se

revezando em voadoras contra a porta da gerência. Tudo para

recuperar a bagagem do diretor geral que ficara presa dentro da sala.

Na minha mesa havia um bilhete manuscrito:

Rubens, não quisemos te incomodar de madrugada.

Ainda hoje, mando um pessoal para consertar a porta.

Os rapazes acharam que era fácil como nos filmes de Jet

Li, mas se machucaram. Sérgio teve que ir engessar o pé.

Abraço

P.

Realmente, na tela super branca é tudo mais fácil. Mas na vida

real, você quebra a cara, pensei, enquanto me sentava à mesa e

disparava um telefonema para a faxina vir arrumar aquela bagunça.

Ficamos eu e as meninas em silêncio. Ninguém tocou no

assunto a respeito das normas obrigatórias do manual de operações

da empresa. Um dos artigos é bem expressivo: “mantenha trancada

a sala de gerência”. Mas considerando os chutes e pontapés dos

executivos, bem que podiam acrescentar mais um: verifique sempre

se os diretores não estão esquecendo nenhum pertence na sala antes

de sair.

Page 45: 4 MISSÃO IMPOSSÍVEL - static.recantodasletras.com.brstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/6134376.pdfaparelhos de TV, soam quase como fanatismo os contos que lerão a seguir ...

45

10 ­ UMA PISTOLA 7.65 NA SALA DE CINEMA

Entrei às pressas na sala que ainda estava escura, dei de cara

com a última cena do filme A Cilada: uma foto preto e branca

congelada na tela, com o letreiro THE END sobre Marie Matiko de

braços dados com Wesley Snipes que segura um guarda­chuva para

proteger o casal de um temporal, enquanto seguem para o final feliz

a caminho de um restaurante num vilarejo da França. Eu

acompanhava uma mulher rotunda e baixinha da faxina que queria

me mostrar o que encontrou entre as cadeiras do cinema. Era comum

as pessoas esquecerem de tudo, até mesmo camisinhas usadas. Mas

aquela senhorinha com cara de evangélica, não me chamaria para

mostrar isto, estimei.

O som da chuva da última cena se transformou num rap que

vinha das caixas de som, enquanto subiam os créditos. Snipes era o

agente secreto Neil Shaw numa inverossímil trama que o coloca como

bode expiratório de uma história de espionagem sino­americana

cheia de clichês, tipo 007. Mas a ação é muito boa. Snipes estava no

auge da força física e simulava boas lutas.

A sala estava vazia, as luzes foram acesas e eu olhei para o vão

entre as poltronas e ela estava lá: uma arma dentro de um coldre

envolto numa pochete preta. Eu não era bom conhecedor de armas,

mas sabia que se tratava de uma pistola automática de uso restrito.

Um civil não pode carregar esta arma, pensei. O que fazer? A

sessão já teria reinício. Tinha pouco tempo para pensar.

Recolhi a arma pela pochete, evitando deixar minhas digitais

Page 46: 4 MISSÃO IMPOSSÍVEL - static.recantodasletras.com.brstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/6134376.pdfaparelhos de TV, soam quase como fanatismo os contos que lerão a seguir ...

46

naquilo que não tinha a menor idéia de onde teria vindo ou onde teria

sido usada. Quem trabalha em cinema, sempre fica desconfiado de

tudo.

­ Pode deixar Dona Maria, eu vou levar para a minha sala. Não

tem perigo, falei para tentar acalmá­la.

­ Tive medo dela disparar sozinha, se desculpou Dona Maria.

Recolhi o objeto junto ao corpo evitando os olhares das pessoas

que andavam pelo corredor a procura de suas salas. Em cinco

minutos seria liberada a próxima sessão do A Cilada.

Pelo peso, o pente estaria carregado de balas. Quem é o tipo de

gente que traz uma pistola automática e um, dois, três..contei...três

talões de cheque para dentro de uma sala de cinema? Perguntei a

mim mesmo.

Enfiei a pochete na gaveta e liguei para a segurança do

Shopping.

­ Alô, quem é o líder do turno? Perguntei mostrando uma falsa

familiaridade com a empresa privada de segurança.

­ É o líder quem ta falando. O Sampaio, pode falar.

­ Aqui é o Rubens, do Multiplex, tudo bem Sampaio? Ocorre o

seguinte: nós encontramos uma pistola automática dentro da sala e

eu, realmente, não sei o que fazer.

­ A que horas foi a ocorrência, senhor?

­ Foi agora mesmo. Acabamos de encontrar.

­ Segura ai, que vou até o QTH. Ok?

­ Ok, obrigado.

Desliguei o telefone. Avaliava se fiz certo em chamar a

segurança e não a própria polícia, mas a política da casa pedia

discrição. Sem polícia. O rádio chamou.

...Qrr ­ Rubens, QAP?

­ Fala, Júnior. qrr...

­ Vem para portaria, urgente. qrrr...

Sai para o corredor e de longe, escutava os gritos de um

Page 47: 4 MISSÃO IMPOSSÍVEL - static.recantodasletras.com.brstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/6134376.pdfaparelhos de TV, soam quase como fanatismo os contos que lerão a seguir ...

47

homem. As pessoas olhavam todas na mesma direção evitando

revelar o constrangimento latente com os brados de um... ­ agora

sim, o via por trás dos vidros ­ um tipo rambo, 92 quilos, jaqueta de

couro preta e calças apertadas.

­ O negócio é o seguinte, eu vou entrar para procurar minha

pochete. Eu estava na sala 6, gritava o homem, enquanto tentava

forçar a entrada pelo porteiro, em meio a outros clientes que

estavam com o ingresso na mão esperando que ele desobstruísse a

passagem.

Pensei em chamá­lo para minha sala e entregar­lhe a pochete,

mas se fosse uma cena de um assalto? Eu sozinho com ele na sala,

seria presa fácil.

Enquanto media mentalmente qual a abordagem correta,

chegaram junto comigo dois seguranças do Shopping em seus

uniformes pretos..

­ Calma, meu senhor, falei firme, olhando dentro dos olhos do

Rambo. ­ Encontramos uma pochete. O senhor sabe falar o que

tinha..nela?... Quando ele sentiu nossa aproximação teve uma reação

automática.

­ O que é isto aqui? disse dando um salto para trás quase

assumindo uma posição de guarda e evitando ficar cercado por três

homens. ­ Que bom que achou, eu só quero minhas coisas e vou

embora, falou olhando para mim.

Devolvo a arma pro cara? Pensava em como lidar com a

situação, quando ela saiu do controle.

­ O senhor tem documentos? Perguntou­lhe Sampaio, líder da

segurança que foi imediatamente rechaçado por Rambo:

­ Você é da polícia para me medir documentos? Disse com dedo

em riste.

­ Ah, você quer que chame a polícia, então tá bom,

contra­atacou Sampaio em ato contínuo chamando a Base da Polícia

Militar pelo Rádio.

Page 48: 4 MISSÃO IMPOSSÍVEL - static.recantodasletras.com.brstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/6134376.pdfaparelhos de TV, soam quase como fanatismo os contos que lerão a seguir ...

48

Qrr ­ Copom... QSO em andamento no Multiplex do Shopping

Jardim Sul, suspeito quer invadir cinema..

Ai, ai, ai. Pronto, lá se foi minha discrição.

O tipo rambônico empurrou Sampaio que falava ao Rádio. O

segundo segurança interveio. O Rambo se esquivou e só não bateu

uma cara contra a outra por que não quis.

­ Calma! Todos, calma. Eu pedi. ­ Meu amigo o negócio é o

seguinte. O que tinha na pochete? Perguntei

­ Você não viu? Você não falou que achou? Então você já viu.

Ta querendo me sacanear?

­Não é nada disso. Se vou ter que entregar aquilo sobre o que

estamos falando, eu preciso ter certeza de que estou fazendo a coisa

certa.

­ O lance é o seguinte, ele se aproximou de mim e falou bem

baixo ao pé do ouvido. Eu tenho minha arma, lá. Meus talões de

cheque. Eu tive que soltar a pochete por causa da poltrona. Disse,

quase se desculpando.

Estávamos perto de nos entender, quando chegaram dois

policiais militares.

­ Pois não, qual o QSO? Perguntou o tenente olhando para o

Sampaio.

­ Tenente, o negócio é o seguinte, suspeito ai está armado,

respondeu Sampaio apontando para o Rambo.

O tenente balançou a cabeça para o Rambo. ­ O senhor quem

é? Tem documentos?

­ Tenente, sou detetive particular, todos os meus pertences

foram esquecidos na sala dos cinema, inclusive meus documentos,

falou disparando um olhar de ódio para mim.

­ Tenente, sou o Rubens, gerente do cinema, disse me

apresentando. Por que não vamos todos para minha sala, conversar

Page 49: 4 MISSÃO IMPOSSÍVEL - static.recantodasletras.com.brstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/6134376.pdfaparelhos de TV, soam quase como fanatismo os contos que lerão a seguir ...

49

com calma, enquanto pego os pertences que encontramos?

Consegui tirar aquela confusão dos olhares dos curiosos. O

Jardim Sul é frequentado por todo o tipo de celebridades e gente que

gosta de fazer uma fofoca em jornal. Caminhamos em silêncio para

minha sala. Eu ia à frente, ladeado pelo tenente, seguido pelo

Rambo, com o Sampaio na sua cola e os demais no final do cortejo.

Abri a porta da pequena sala e pedi que entrassem. Seguiram

meu gesto, o Tenente, Rambo e o, Sampaio. Pedi licença aos demais

e fechei a porta atrás de mim. Me esgueirei entre os homens que

estavam de pé naquele cubículo e pedi que sentassem. Sampaio

escolheu a poltrona, Rambo, a cadeira em frente à mesa e o Tenente

preferiu ficar de pé. Me acomodei em minha cadeira, abri a gaveta do

meio, retirei o pacote e o coloquei sobre a mesa. Lá estava ela, a

pistola. Achava que era uma 7.65, mas não tinha certeza, só sei que

era automática. Sem alma, como dizem.

­ Esta foi a pochete que encontramos, disse olhando para o

Tenente que de pronto perguntou ao Rambo.

­ O senhor tem porte de arma?

­ Permisso? Perguntou Rambo ao tenente indo com a mão em

direção à pochete.

­ Pega só os documentos, disse o tenente. Com a mão no seu

próprio revólver e com o coldre já aberto.

Ai, ai, ai, gelei.

Como profissional, usando a ponta dos dedos de uma única

mão, Rambo desliza o zíper da pochete e retira e entrega uma

carteira de detetive.

­ Tenente, meu nome é Zilmar Nascimento, eu estava em

trabalho para um cliente aqui no cinema que não posso revelar, por

segredo profissional. Mas o senhor pode checar minhas credenciais,

neste telefone.

­ Eu não vou ligar para ninguém, mas o senhor terá direito a

um telefonema na delegacia.

Page 50: 4 MISSÃO IMPOSSÍVEL - static.recantodasletras.com.brstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/6134376.pdfaparelhos de TV, soam quase como fanatismo os contos que lerão a seguir ...

50

­ Delegacia pra quê, interferi. ­ Tenente, eu não poderei sair

daqui para ir a uma delegacia a esta hora. Porque não fazemos o

seguinte? Eu devolvo os pertences do senhor Zilmar que vai embora

para seu escritório e nós esquecemos tudo isto. Que tal, hein? Afinal

foi tudo um mal entendido. O detetive estava na sala do filme A

Cilada e acabou armando uma cilada para ele mesmo. Não é senhor

Zilmar? Falei provocando risos amarelos.

­ Mas detetive, o senhor tem porte para uma pistola automática

de uso restrito? Quis saber o tenente.

­ Tenente, o senhor sabe como é, não é? Eu já fui da casa,

quero dizer, não da polícia militar, mas da civil. Para esta aí, eu tenho

que fazer andar uma papelada, mas eu tenho porte...

­ Viram só? Interrompi. ­ Está tudo certo, disse para aliviar a

carga sobre o detetive que não tinha autorização para carregar

aquela pistola e que poderia me arrastar para a delegacia. ­ Olha só

Tenente, o senhor não quer vir com a família assistir A Cilada. Tenho

quatro ingressos aqui, para o senhor e seu colega virem com as

esposas. Disse, estendendo as mãos. Tome também esta cortesia de

pipoca e refrigerante. Sampaio ficou olhando, meio chateado.

­ Tenho também quatro para você Sampaio. Tome, também,

pipoca e refrigerante.

Pronto. Ficaram todos satisfeitos. O Zilmar Rambo se livrou da

prisão. O tenente ficou satisfeito em não ter que ir fazer um flagrante

na delegacia contra um detetive que deve conhecer uma porção de

advogados aqui do Morumbi. E, é claro...as cortesias demovem

homens frios. Sempre funcionam.

Sampaio também gostou. Depois que me despedi de todos, ele

ficou na porta da sala esticando os ingressos na minha frente e falou:

­ É isto ai senhor Rubens, precisou de mim é só chamar.

­ Valeu, Sampaio, disse dispensando­lhe com um tapinha nas

costas e finalmente respirando aliviado daquela cena que poderia ter

virado um tiroteio dentro da minúscula sala. Muito próximo da

Page 51: 4 MISSÃO IMPOSSÍVEL - static.recantodasletras.com.brstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/6134376.pdfaparelhos de TV, soam quase como fanatismo os contos que lerão a seguir ...

51

sequência da troca de tiros do bendito A Cilada.

Mas como digo sempre. Na tela, os agentes mortos sempre

voltam nos próximos filmes, a gente, não. Que trocadilho horrível,

este, pensei.

11 ­ A LOIRA DO AXÉ

Era uma tarde de quarta feira. Havia acabado de cruzar o

corredor central e entrar em minha sala. Estava lendo o livro de

ocorrências quando o rádio me chamou.

Qrr ­. Rubens, venha à bilheteria. Tem um QRU em andamento.

Ai, ai, ai. Automaticamente lembrei que “QUE ­ ERRE ­ U” é o

pior dos códigos de rádio. Significa ocorrência urgente em

andamento. Droga, lá se vai a tranquilidade.

A caminho da bilheteria, vi um grupo de três pessoas se

desentendendo. Júnior tentava apaziguá­los, mas eles queriam falar

somente com o gerente. Humpf, praguejei, como se eu tivesse os

poderes do Super Man.

Havia um senhor de porte distinto, adornado por um terno bem

cortado, azul. Deveria ter uns 50 anos de idade, pensei. À frente

dele, havia uma loira oxigenada com um corpão ajustado numa

apertada calça jeans. Tipo aquelas que derrubam as instituições.

Meu Deus, suspirei.

Quando me aproximei, ela tentava acalmar seu parceiro:

­ Calma, querido. Repetia ela para um negro jovem, vestido com

roupa da moda.

Demorei para entender o que se passava.

­ Esse cara aí ­ gritava ­ roubou minha carteira que acabei de

comprar, disse apontando para o senhor.

­ Não, ele está enganado, disse o distinto, me dirigindo o olhar

enquanto me juntava ao grupo.

Page 52: 4 MISSÃO IMPOSSÍVEL - static.recantodasletras.com.brstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/6134376.pdfaparelhos de TV, soam quase como fanatismo os contos que lerão a seguir ...

52

­ Calma, senhores, por favor, pedi. ­ O que houve?

­ É algum mal entendido, estava atrás dele na fila e ele me acusa

de ter furtado a carteira dele.

Hum... Furtado. Aquele palavra contava muita coisa sobre o

fino senhor. Quem sabe a diferença entre furtar e roubar, com

certeza trabalho com o Direito.

­ O Senhor é...?

­ Eu sou juiz da Vara Criminal de Santo Amaro.

Pronto, sempre pode piorar, pensei. Um caso envolvendo um juiz no

meu cinema não é nada bom.

­ E como o senhor deve saber, continuou o juiz, posso dar voz de

prisão, agora mesmo, por crimes contra a honra: calúnia,

difamação e injúria.

Enquanto conversava, Júnior me fazia todos os sinais possíveis

para chamar minha atenção. Na primeira oportunidade, ele cochichou

ao meu ouvido:

­ Rubens, essa é a dançarina de Axé Blond e o namorado é o

pagodeiro Thiaguinho.

Se há uma “falha” na minha vida de gerente de cinema, chef,

surfista e guitarrista nas horas vagas é a de que não entendo nada de

pagode e axé. Simplesmente, não registro os famosos da época.

Como sempre, procurei a discrição. Me dirigi ao cantor e falei:

­ Esse senhor que você está acusando é um Juiz Criminal. ­

Precisa ter muita certeza do que está falando, senão ele pode

te levar preso daqui.

Meus argumentos amoleceram a indignação do rapaz. Que não

tinha muita convicção de onde estava sua carteira. Uns ingressos e

pipocas de cortesia terminaram por encerrar o assunto. Ótimo. Voltei

à minha sala sem ter certeza se escrevia, ou não, aquela ocorrência

no livro.

­x­

No domingo seguinte, enquanto zapeava os canais de TV, vi a

Page 53: 4 MISSÃO IMPOSSÍVEL - static.recantodasletras.com.brstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/6134376.pdfaparelhos de TV, soam quase como fanatismo os contos que lerão a seguir ...

53

loira e o pagodeiro num programa de auditório. Eles falavam sobre

gafes e confessavam à apresentadora que naquela mesma semana

tinham cometido uma no Shopping Jardim Sul.

­ Estávamos tão excitados que esquecemos a carteira na

mesma loja onde a compramos.

Realmente, a excitação é sempre uma boa desculpa ao lado

daquela loira, sorri.

12 ­ DELEGADO ENCIUMADO

Já havia algumas semanas que o Multiplex não emplacava um

Blockbuster. A criatividade dos grandes estúdios de Hollywood no

final na virada do milênio estava fadigada. As salas não lotavam

mais. O grande sucesso de 99 ­ À espera de um milagre teve seu

momento, mas era longo e desgastante. Por isso, era um sábado com

pouco movimento.

Nada causava uma comoção. Exceto, por certos expectadores.

Acho que por ser uma sala de sonho coletivo, o cinema sempre atraí

os mais estranhos seres. “É um para raio de loucos”, pensei, quando

fui procurado por um delegado de polícia.

­ Pois não? Perguntei ao sujeito que com aquele paletó amassado

parecia que ter saído do antigo seriado Columbo.

­ Olha só, me falou exibindo sua insígnia. Eu preciso revistar

todas as salas do cinema.

­ Mas por quê? O senhor tem algum mandado?

Ele se aproximou de mim e com um sorriso pérfido e um hálito

de cigarro sussurrou ao meu ouvido:

Page 54: 4 MISSÃO IMPOSSÍVEL - static.recantodasletras.com.brstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/6134376.pdfaparelhos de TV, soam quase como fanatismo os contos que lerão a seguir ...

54

­ Eu estou seguindo minha mulher. Sabe como é? Eu sei que ela

está em alguma dessas salas.

O problema é que aquele cara parecia ter saído da tela do filme

Vício Frenético (Bad Lieutenant, 1992).

Ele lembrava mesmo com o ator Harry Keitel ­ em uma de suas

melhores interpretações no cinema, na qual faz um policial corrupto,

viciado em drogas e em apostas. Um filme polêmico em que o

protagonista, em busca do perdão, caça dois homens que estupraram

uma freira, mesmo depois de perdoados por ela.

Assim como no filme dirigido por Abel Ferrara, o delegado não

se constrangia em mostrar que estava armado. Pelo contrário,

gostava de ostentar seu 38.

­ Eu sinto muito, mas isso é contra as regras do cinema, falei. ­

Não posso permitir que entre armado nas salas.

­ Eu sou quero ter certeza de que ela não está aqui, insistiu.

Naqueles dias um japonês tinha acabado de cometer umas das

mais trágicas chacinas numa sala de cinema em São Paulo. O

problema é e se ela estivesse e ainda acompanhada de outro cara?

Por um momento devaneei com o treinamento dado pela

assessora de imprensa da Cia. que nos orientou em caso de haver

mortos ou feridos caídos no cinema, limpar o sangue o mais rápido

possível e remover os corpos da vista das pessoas.

­ Como ela está vestida? Perguntei, enquanto esperava uma

saída para situação.

­ Ela está com uma calça de oncinha, camisa amarela e uma

colar de pedras verdes.

Esta descrição extravagante caiu com uma luva. Chamei o

Júnior e perguntei.

­ Júnior, você viu entrar uma mulher de calça de oncinha,

camisa amarela e colar de pedras verdes? Perguntei, chacoalhando

a cabeça negativamente e piscando, discretamente.

Page 55: 4 MISSÃO IMPOSSÍVEL - static.recantodasletras.com.brstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/6134376.pdfaparelhos de TV, soam quase como fanatismo os contos que lerão a seguir ...

55

­ Não, com certeza, não. As salas estão todas vazias. Se visse

uma mulher vestida de perua, assim, não esqueceria.

A sinceridade do Júnior constrangeu o delegado. Ninguém gosta

que falem mal da própria mulher, ainda mais naquelas circunstâncias.

Ele deixou para lá. Lhe ofereci café e uns convites assistir À

Espera de Um Milagre.

­ Venha com sua esposa assistir este filme. Pode mudar a sua

vida.

Ele pegou o ingressos, me olhou com desconfiança e partiu

sorrateiro, do mesmo jeito que chegou.

Eu me virei para o Júnior e falei:

­ Júnior, me diga a verdade, a perua está ou não em alguma

sala.

­ Está. ­ Está assistindo À Espera de um Milagre, mas com este

figurino e este marido, só um milagre mesmo.

Assim era meu fiel escudeiro, o Gerente Júnior do Jardim Sul.

Afiado.

13 ­ MAR EM FÚRIA

Ah, como era bom pisar naquela areia e pegar aquelas ondas

de Ubatuba, litoral norte paulista. Eu, mulher, filho e amigos

agregados esperávamos o réveillon na praia. Depois daquele

massacrante ano no comando do Anália Franco, desfrutava das

primeiras férias remuneradas do Multiplex.

Page 56: 4 MISSÃO IMPOSSÍVEL - static.recantodasletras.com.brstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/6134376.pdfaparelhos de TV, soam quase como fanatismo os contos que lerão a seguir ...

56

Tudo isso passava na minha cabeça enquanto remava atrás da

onda. Vou pegar, deu certo! Pulei na prancha e deslizei. Opa, vou

ganhar esse tubo. ­ Uú, gritei de alegria. Aproveitei a sorte e deslisei

até a praia. Fui correndo contar para Fabi e Bruno que estavam

tomando sol na areia.

­ E aí? Viram o tubo que eu peguei? Perguntei deixando a

prancha no chão.

­ Rubens, seu celular tocou, falou Fabi, sem tirar os olhos da

revista e sem uma palavra de incentivo ao meu Surf Style.

Peguei o telefone e pelo visor tive um mau presságio. O diretor

tinha ligado.

­ Fabi, o Paulo ligou. Acha que ligo de volta?

Pra que fui perguntar, o olhar fulminante dela não deixou dúvidas:

­ Oi Paulo, tudo bem? É o Rubens, fala aí, vi sua chamada.

­ Fala Rubens! Tá boa a praia?

Estava boa até aquele momento, pensei.

­ Tá tudo bem aqui. E aí, está precisando de alguma coisa?

­ Rubens, o seguinte. Nós gostamos muito do seu trabalho no

cinema Anália Franco e queremos te chamar para um desafio bem

melhor. Você vai gostar. Temos planos para você crescer junto com a

empresa . Nós queremos que você assuma Multiplex Jardim Sul.

...Blá, blá, blá...

Enquanto o diretor da Multiplex me prometia o céu, eu

devaneava olhando o mar. Na hora me lembrei das promessas de Al

Pacino a Andy Garcia em O Poderoso Chefão.

Aquilo era demais! Uú!! Gritava mentalmente. O Jardim Sul é

o diamante dos Multiplex. Suas salas eram frequentadas por

celebridades da TV: Justus, Eliana, Ellen Roche, Chico Pinheiro,

Marcos Mion, Paulo Gorgulho entre outros. Eu quero estar nessa,

conclui.

­ Eu topo, respondi, sem saber o que me esperava.

Page 57: 4 MISSÃO IMPOSSÍVEL - static.recantodasletras.com.brstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/6134376.pdfaparelhos de TV, soam quase como fanatismo os contos que lerão a seguir ...

57

­X­

Três semanas depois, estendendo a mão, eu me apresentei ao

Roberto, gerente sênior do Jardim Sul.

­ Olá, muito prazer, eu sou o Rubens que veio do Anália Franco.

O novo gerente geral.

Por um momento, pensei que ele reuniria a equipe e me levaria

para conhecer os projetores e as salas famosas pelas poltronas

enormes. Não, nada disso. Ele foi direto ao ponto:

­ Oi. Seja bem vindo, Rubens. Aqui temos problemas de

fornecimento de energia elétrica, disse, enquanto me guiava até a

caixa de luz. ­ Aqui os disjuntores desarmam todo o tempo. Já

chegamos a ter 10 quedas num só dia.

­ Mas você já acionou os técnicos da elétrica, certo? Falei,

querendo

impor algum respeito sobre o assunto.

­ Está tudo bem com nossa instalação. Aqui é o final da linha de

eletricidade no bairro. A Eletropaulo não consegue garantir a carga de

energia que o Shopping precisa. Esse é o problema, me falou

enquanto abria a porta da sala da Gerência.

­ Pode entrar que agora é sua, falou, estendo a mão para se

despedir.

Pronto! Um desafio bem melhor pra quem?! Agora eu entendi

a oferta do Paulo. Onde eu estava com a cabeça quando aceitei?

Acho que após assistir Mar em Fúria, me empolguei com a

coragem do George Clooney e seus fiéis pescadores da embarcação

Andréa Gail. Mas aquelas cenas sensacionais do mar revolto foram

gravados numa piscina e trabalhadas graficamente. Já, no meu caso,

teria que lidar com um mar de duas mil pessoas revoltadas em suas

confortáveis poltronas, cada vez que acabasse a luz caísse, pensei,

soltando meu pesado corpo na cadeira do gerente.

Page 58: 4 MISSÃO IMPOSSÍVEL - static.recantodasletras.com.brstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/6134376.pdfaparelhos de TV, soam quase como fanatismo os contos que lerão a seguir ...

58

14 ­ FAMOSOS EM CRISE

Um pequeno empurra­empurra começou entre as adolescentes

que formavam as filas diante da bilheteria. Olhei e vi que não era

nada demais. Sempre acontecia de um grupo de fãs cercar uma

celebridade atrás de autógrafos, beijos, telefone e etc...

Quem estava no centro da roda avançando em minha direção

era o apresentador Marcos Mion. Pela expressão dele não era coisa

boa.

Ainda bem que aprendi a fazer leitura corporal, pensei.

O famoso da MTV avançava tenso, sem notar as garotas a sua

volta. Quando se aproximou de mim eu já estava preparado para

qualquer reclamação que ele faria.

­ O Senhor é o gerente?

Eu apenas assenti balançando a cabeça.

­ Ótimo. Dá para explicar como é possível uma fila desse

tamanho num sábado a noite?

­ Sinto muito, Senhor, mas cinema de qualidade com bons

filmes têm fila aos sábados à noite, respondi,

educadamente.

A abordagem do sujeito define tudo. Tivesse chegado na

simpatia, ele até ganharia um ingresso de cortesia, pensei, enquanto

ele deu de costas pisando forte pra fora do cinema.

­X­

Conferia o dinheiro em minha sala, quando o rádio chamou.

Qrrr ­ Rubens está na escuta? Qrrr

Qrrr ­ Q A P, Barney, respondi. Qrrr

­ O Chico Pinheiro da Globo está aqui e quer falar com

você.

Chico Pinheiro! A que devo a honra? Pensei.

Page 59: 4 MISSÃO IMPOSSÍVEL - static.recantodasletras.com.brstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/6134376.pdfaparelhos de TV, soam quase como fanatismo os contos que lerão a seguir ...

59

Qrrr ­ Qual é o Q T H? Quis saber, já me pondo a caminho.

Qrrr ­ Aqui no banheiro masculino do corredor central.

Droga, o que poderia querer com o gerente de cinema um dos

jornalistas que mais admiro? Praguejei enquanto cruzava o corredor.

Entrei no banheiro e o encontrei todo empertigado ao lado da

pia.

Ele dispensou apresentação e como se fosse íntimo, disparou:

­ O senhor acha que é razoável essa pia molhada, com

essa água toda espalhada sobre ela?

Claro que não é agradável encontrar uma pia molhada. Mas

havia terminado a minutos a sessão do filme Alguém tem que Ceder.

Um romance no qual Jack Nickolson faz um personagem com

Transtorno Obsessivo Compulsivo que não pisa no preto do

quadriculado e tem inúmeras outras manias. Pavor de água sobre a

pia era uma delas, com certeza

­ O senhor queira aceitar nossas desculpas. Mas o movimento

aumenta muito, quando acaba a sessão. O faxineiro já está a

caminho.

­ Está bem, obrigado, disse ele, se despedindo com a sensação

de dever cumprido.

Os jornalistas tem essa mania, pensei. De serem os defensores

das boas causas, como encontrar uma pisa seca no banheiro do

cinema.

O faxineiro entrou com o carrinho de limpeza na mesma

abertura de porta que Chico Pinheiro saiu. Quase se trombaram.

Salvador estava no cronograma, chegou depois da sessão para

limpar a bagunça que a multidão masculina sempre deixa. Se tivesse

apurado os fatos, o jornalista saberia que os cinemas não tem um

toalheiro contratado exclusivamente para secar pias. Ainda mais

quando há um erro de projeto e as pias servem de aparadores da

água que cai das mãos de quem usa os secadores. Nos cinemas de

Londres, a água escorre direitinho pelo ralo. Isso dá matéria no

Page 60: 4 MISSÃO IMPOSSÍVEL - static.recantodasletras.com.brstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/6134376.pdfaparelhos de TV, soam quase como fanatismo os contos que lerão a seguir ...

60

jornal, pensei.

15 ­ O FIM DA PELÍCULA

Ring, ring. O telefone chamou na minha mesa. Eu ainda tinha

sobressalto sempre que ele tocava. Olhei para o relógio. Era um

pouco depois das sete da manhã.

­ Alô, Rubens, Jardim Sul. Pois não?

­ Rubens, sou eu o Paulo. Está tudo pronto para hoje? Vamos aí,

assistir a final da Copa com vocês. Era o diretor.

­ Podem vir. Será um prazer, respondi simulando segurança, já

que

era impossível ter certeza de como seria a primeira exibição digital

numa sala da UCI Multiplex.

Aproveitei para ir conferir como funcionava aquele projetor sem

película. Entrei na sala e encontrei o projecionista desolado por ser

um simples coadjuvante naquela história. Ao me ver, ele foi logo

antecipando a operação.

­ Oi, Rubens, está tudo certo aqui, disse Alexandre, atropelando

os

dois técnicos enviados pela matriz ­ que eram, de fato, os

responsáveis pela operação.

Um deles veio de Londres. Mark tinha o nariz de bruxo e rosto

vermelho como caranguejo, pensei. O segundo era o Rafael, um

profissional enviado pela fabricante das câmeras e do sistema de

imagens em alta definição. O Full HD, High Definition, ainda era

novidade no Brasil e uma estreia no cinema.

­ How are you doing? Quis saber de Mark se estava bem e me

apresentei. ­ I’m, Rubens, general manager of this cinema.

­ Hi! Nice to meet you. Se apresentou Mark, abrindo um sorriso

branco, naquele rosto vermelho.

Alexandre, novamente, roubou a cena:

Page 61: 4 MISSÃO IMPOSSÍVEL - static.recantodasletras.com.brstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/6134376.pdfaparelhos de TV, soam quase como fanatismo os contos que lerão a seguir ...

61

­ Olha aqui seo Rubens, ele disse, apontando para um conjunto

de monitores de TV que foram instalados atrás do projetor. ­ Daqui a

gente vai conferir se o sinal do jogo está chegando direito na

parabólica da Unidade Móvel que está ali fora, no estacionamento do

Shopping. Não é isso Rafael? Perguntou Alê ao técnico do fabricante.

Rafael tinha firmeza na voz e começou a me explicar.

­ Sim, os monitores vão mostrar o sinal que está chegando do

Estádio de Yokohama do Japão. São oito câmeras HD

transmitindo para todo o mundo. O sinal vai passar por três

satélites até chegar aqui no Brasil.

­ Mas só a imagem? E a narração da partida? Eu quis saber,

temendo alguma confusão, já que não é comum assistir a uma final

de Copa do Mundo numa sala escura de cinema, calculei em silêncio.

­ Fique tranquilo, sorriu Rafael, a partida terá a narração do

Galvão Bueno. Na verdade, temos um acordo com a TV Globo

que também vai receber o mesmo sinal HD. Uma produtora de

alto nível está cuidando da distribuição do sinal de satélite para

as salas da UCI, tanto aqui, em São Paulo, quanto para o

Multiplex do Rio de Janeiro, me explicou.

Alexandre não perdeu a deixa:

­ Já pensou chefe, a voz do Galvão Bueno em surround:

Rrrrronaldo! Rrrrroonaldo! Rrrrrrrubens! Brincou ele.

­ I need to know what is the risk of this operation, eu quis saber

do Vermelhão os perigos desta operação que me respondeu em

inglês empolado:

­ There are two risk, drop the satellite signal or the projector

fails, but is The World Cup Football... There is no problem.

Alexandre repetiu em português claro:

­ Cair o sinal do satélite ou o projetor falhar. Ou seja nada que

a gente esteja acostumado a resolver, constatou.

­ Na verdade, Rubens, explicou Rafael, a transmissão do sinal, via

satélite, de um evento deste porte, sempre tem um caminho

Page 62: 4 MISSÃO IMPOSSÍVEL - static.recantodasletras.com.brstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/6134376.pdfaparelhos de TV, soam quase como fanatismo os contos que lerão a seguir ...

62

reserva, se o principal pifar. Apontando para o equipamento em

que oscilava um gráfico eletrônico, ele completou:

­ Aqui a gente verifica a qualidade do áudio e aqui a do

vídeo. É difícil dar problema na recepção. Já o projetor

não pode sofrer superaquecimento. 50 graus

centígrados, ela desliga automaticamente.

Pronto, quem procura acha. Agora eu tinha um problema com

que me preocupar. Apesar daquele frio matinal, o ar condicionado

central não estava aquela beleza. E aquela sala não tinha sequer um

termômetro. Se a sala ficasse lotada poderia sim, superaquecer o

ambiente.

Esperava quatrocentos convidados. Gente do cinema, mas também

o pessoal da inovadora indústria do Full High Definition. A imagem

em movimento, que era uma sequência de fotogramas que

registravam a luz da realidade em nitrato de prata, estava sendo

substituída por bits. Um ponto chamado pixel. Milhões deles na tela

TV plana formam uma imagem que foi capturada em vídeo e, aqui,

ironicamente exibida numa tela de pano.

­ Alê, vem comigo. Saí da sala e fui direto encontrar Júnior na

bateria atrás dos caixas. No caminho chamei o chefe da segurança.

Qrrr. ­ Oswaldo, na escuta. Qrr

Qrr. ­ Q A P, chefe.

­ Se encontra comigo atrás dos caixas, agora. ­ Manoel, vai na

minha frente e chama tudo mundo. Reunião Geral. Me lembrei

de um termômetro em minha sala. ­ Eu vou em seguida.

Entrei na sala e da última gaveta da minha mesa, saquei o

termômetro. Um presente de amigo secreto que nunca pensei que

usaria. Mas era uma lembrança muito especial. O termômetro era

porque ela me achava frio, lembrei.

Ato contínuo segui para o encontro. Estavam todos com cara

de interrogação. Fui direto ao ponto.

­ Pessoal, não pode pode ter superlotação na sala do jogo da

Page 63: 4 MISSÃO IMPOSSÍVEL - static.recantodasletras.com.brstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/6134376.pdfaparelhos de TV, soam quase como fanatismo os contos que lerão a seguir ...

63

Seleção. Meu Deus, seria possível que estivesse mesmo

falando isso.

Todos me olhavam com cara de incrédulos. Impedir que

houvesse penetras na sala, significa que eles também não poderiam

abandonar seus postos de trabalho para ver a final entre Brasil e

Alemanha. Continuei com a ordem.

­ Como vocês sabem, o Ar Condicionado não está funcionando

bem. A aglomeração excessiva pode superaquecer o ambiente.

Não queremos que o novo projetor apague, queremos?

Roberto e Júnior se entreolharam decepcionados. Captei um fio de

frustração do rosto do Osvaldo, chefe da segurança, que

imediatamente pousou o olhar de sobrou­para­você em cima do seu

ajudante. O pessoal da bomboniere quase chorou.

­ Pessoal é o seguinte, eu sei que todos vocês querem ver o

jogo. Mas a sala tem somente quatrocentos lugares.

O discurso não estava colando. A multidão que chegava ao cinema,

naquele momento, era para ver o final da Copa do Mundo. A sala

estaria lotada até a tampa, com certeza!

­ Bem, Osvaldo você organiza seu pessoal para que não entrem

penetras. Só convidados, frisei.

­ Alê você vai ficar na sala de projeção com este termômetro. Se

ele passar de 40 graus você me avisa.

­ Roberto e Júnior, venham comigo. Os puxei de lado.

­ Vocês precisam ter calma, vai dar tudo certo. Vocês vão ver,

falei, dando uma piscadinha, sabendo que eles dariam um jeito

de assistir a partida.

Mal deu tempo de conversar com os dois. Fui abordado por

Paulo e demais diretores da UCI. Todos vestiam verde e amarelo. Os

filhos deles traziam cornetas, confetes e serpentinas. Seria mesmo

uma festa.

­X­

Page 64: 4 MISSÃO IMPOSSÍVEL - static.recantodasletras.com.brstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/6134376.pdfaparelhos de TV, soam quase como fanatismo os contos que lerão a seguir ...

64

Como eu previa, o sala estava tomada. A porta mal parava

fechada. Tinha gente de pé em todo o canto. Subi para a sala de

projeção. Ela estava lotada. Os técnicos trouxeram seus chefes e

eles, levaram seus investidores. Mal tinha lugar para mim.

­ Alê, como está temperatura? Ele pegou o termômetro que

estava em cima do apoio do projetor e indicou a temperatura para

mim:

­ Vinte e oito graus.

Não estava a temperatura ideal, mas longe de qualquer risco.

“Bem meus amigos da Rede Globo”. Começou a partida. Agora

era torcer pelo Brasil.

O primeiro tempo foi só de tensão, controlada. Era uma final de

Copa do Mundo num lugar escuro, numa sala fechada, sem mesa,

sem cerveja. Quase claustrofóbico, pensei.

Tanto assim que no intervalo todos saíram da sala. Os

corredores ficaram tomadas por centenas de pessoas. Falavam em

voz alta. Queriam explodir de alegria, mas estavam contidas.

No segundo tempo, tudo tenso novamente. Eu mal conseguia

me movimentar dentro da sala de projeção. Lá em baixo, eu via a

sala de cinema repleta de gente: a cabeleira, os lojistas, os

vendedores, os seguranças. Todo o pessoal do shopping estava

presente.

Agora sim, estava como uma torcida de estádio. Algumas

pessoas ainda conseguiam assistir o jogo sentadas. A maioria já se

levantava, gritava e xingava a cada lance.

Aos 21 minutos, Ronaldo brilha num lance individual. Rouba a

bola na intermediária, toca para Rivaldo que chuta uma bomba contra

o melhor goleiro da competição: Oliver Kahn tentou encaixar o chute,

mas a bola escapou e o rebote caiu de presente no pé de Ronaldo

que só fez empurrar a redonda para o Gol!

­ Goooooollll.

Page 65: 4 MISSÃO IMPOSSÍVEL - static.recantodasletras.com.brstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/6134376.pdfaparelhos de TV, soam quase como fanatismo os contos que lerão a seguir ...

65

O cinema explode de euforia. Todos pulam e se confraternizam.

Eu abraço Júnior, que cumprimenta Roberto, que comemora com

Manoel, que levanta Mark de alegria. Por um momento, quase

entraram na frente do projetor.

A partir dai, esquecemos de tudo. A partida ficou eletrizante.

Todos estavam hipnotizados na voz de Galvão Bueno:

“...ele cortou pro meio. Lá vem Kléberson. Rivaldo saiu.

Ronaldinho, pé direito, bateu. É gooooooool. Goooooooooooool.

Brasil. Éeeeeeeeeeeee do Brasiiiiiiiill. Rrrrrrroooooonaldinho!!!

Número nove. Aos 33 minutos...”

Foi o maior congraçamento da história do Multiplex. Queria

perguntar ao Alexandre sobre a temperatura do ambiente, mas não

tinha mais importância. O Brasil era pentacampeão mundial. Procurei

pelo termômetro que estava no chão, esmagado. Pisoteado pela

frenética multidão. Jazia o presente que ganhei por ser frio, recordei.

16 ­ DE LOUCO E PENETRA TODO MUNDO TEM UM POUCO

Meu domingo não estava nada bom. Mal me aguentava de pé

atrás da portaria. Júnior passou por mim e não poupou comentários:

­ Que cara, hein!? Pelo visto, o treinamento foi muito bom

no Rio de Janeiro!

Eu e o gerente sênior acabávamos de voltar de um treinamento

intensivo no Rio.

­ Não enche, ô Júnior. Guarde seus comentários quando for

“gente grande”, provoquei, me referindo à regra que só o

gerente geral e sênior frequentam esse treinamento.

Estava de ressaca, confessei a mim mesmo. Não pudemos

evitar um happy hour em solidariedade ao gerente do Multiplex de

Salvador. Inácio ficou um fim de semana detido, supostamente, por

Page 66: 4 MISSÃO IMPOSSÍVEL - static.recantodasletras.com.brstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/6134376.pdfaparelhos de TV, soam quase como fanatismo os contos que lerão a seguir ...

66

desacato, ao negar ingressos de cortesia a um investigador de

polícia. Realmente, o risco de ser gerente é bem maior que o ganho,

pensei.

De repente, vi um início de bate­boca na frente da bomboniere.

Um casal discutia com a atendente. Rapidamente, me aproximei. Um

sujeito bem gordo, como o Faustão antes da cirurgia do estômago,

interpelava a moça.

­ Mas o buquê desta Coca­Cola está horrível, esbravejava o

rotundo.

­ Pois não, interrompi, me apresentando. Sou o gerente.

Em que posso ajudá­los.

­ O senhor é o gerente? Pois fique sabendo que nunca senti

um buquê tão horrível de Coca­Cola.

Nunca tinha ouvido alguém reclamar do aroma da Coca­Cola.

­ Troca para mim, intimou o obeso, esticando o braço com

o copo pela metade em minha direção.

Não sei se foi efeito do meu cansaço, mas aquele gesto me

insultou.

­ O sistema não permite troca, afirmei.

De repente, minha pose foi interrompida pela brutalidade do

copo lançado contra mim. Passou a ressaca na hora. Me esquivei e o

copo de papel se espatifou contra a máquina de refrigerante.

Centenas de pessoas que estavam no saguão do cinema ficaram, por

uns segundo, em silêncio.

Olhei estarrecido para o cara corpulento e pelancudo. Ele deu

as costas e, em passos pesados, tomou o rumo da saída, puxando a

namorada, visivelmente, constrangida pelo braço.

Pedi que chamassem o pessoal da faxina, para limpar a

bomboniere, enquanto me esgueirava por entre a multidão.

O cinema estava lotado. Era a segunda semana do Gladiator,

com Russel Crowe e direção de Ridley Scott. O mesmo diretor do

épico Blade Runner com Harrison Ford. Os quinhentos ingressos da

Page 67: 4 MISSÃO IMPOSSÍVEL - static.recantodasletras.com.brstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/6134376.pdfaparelhos de TV, soam quase como fanatismo os contos que lerão a seguir ...

67

próxima sessão estavam praticamente esgotados.

­ Rubens, veio até mim Júnior, esbaforido. Eu me recompunha da

“copada” de coca­cola.

­ Tá tudo bem, Júnior, já passou.

­ Não é nada disso, Rubens. Tem um casal na fila dando

problema de meia­entrada. Os dois querem falar com você.

Que domingo eterno! Pensei.

Resolvi aplicar uma das técnicas que nós gerentes

desenvolvemos ao longo do tempo.

­ Fale pra virem até aqui, Júnior, pedi, enquanto conferia se a

roupa não tinha sido atingida por refrigerante.

Geralmente, as pessoas se abalam quando são convidadas a

deixar o lugar na fila. Além disso, retirá­las do meio da multidão, era

um jeito de prevenir que uma simples reclamação virasse um

discurso exaltado contra as multinacionais da indústria do cinema,

lembrei. Se bem que a companhia tinha ódio da meia­entrada. A

ordem da matriz era dificultar o meio ingresso para o dinheiro não ir

pelo ralo. Money goes down the drain, se queixavam os gringos.

De longe, observava Júnior convencendo a garota a abandonar

o primeiro lugar da fila para se dirigir até onde eu estava, próximo

dos porteiros que recolhiam os ingressos.

Partiram em minha direção. A garota morena de bata branca e

cabelos soltos puxava a mão do namorado insosso de óculos com

cara de interrogação. Atrás vinha Júnior, isolando o casal da

multidão.

­ Pois não, disse ao recebê­los.

A menina estava inflamada. Ergueu perto da minha cara, quase

atingindo meus olhos, sua carteirinha de estudante de inglês.

­ Olha aqui, senhor gerente, me explica porque raios não aceitam

minha carteira de estudante. É a última vez que vou perguntar:

Por que não aceitam minha carteirinha de estudante?

Xí!! Cursos de inglês, francês, alemão, etc. Nas reuniões da

Page 68: 4 MISSÃO IMPOSSÍVEL - static.recantodasletras.com.brstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/6134376.pdfaparelhos de TV, soam quase como fanatismo os contos que lerão a seguir ...

68

empresa a questão era pacífica: qualquer curso que não fossem os

regulares: básico, médio, superior ou de pós graduação não seriam

aceitos para meia entrada. Tinha que haver um critério, concordei

mentalmente com a matriz, senão vinha gente até com carteirinha de

curso crochê.

­ Eu sinto muito, mas a compra de meia­entrada é apenas para

alunos de cursos regulares como...

Mal completei a frase, ela pulou o cordão de isolamento, deixou

o namorado para trás, ganhou o corredor central e entrou,

justamente, na sessão do Gladiator, a mais concorrida do domingo.

Eu, Júnior e os seguranças disparamos atrás dela. Na perseguição,

ela derrubou as pipocas de um casal que recém ingressava na sala.

Entramos todos correndo e demos de frente com o auditório de

quinhentos lugares totalmente tomado. As luzes principais já

estavam apagadas. A sessão começaria a rodar em poucos minutos.

Droga, ela se agachou atrás das poltronas, mas em qual fileira?

Perguntei a mim mesmo.

O velho truque da agachadinha. Mesmo sem tempo para

distrações, fui tomado por uma recordação inevitável. Em segundos,

revi um filminho do meu passado, em que, eu mesmo, antes de

aceitar a função sadomasoquista de gerente de cinema, dei minhas

agachadinhas para assistir filme de graça.

Eu e Marião, meu parceiro de banda de música, queríamos

assistir o longa metragem que Clint Eastwood dirigiu sobre a biografia

do saxofonista Charlie Parker. Bird estava sendo exibido na boca do

lixo em São Paulo, num cinema de uma antiga e decadente galeria da

Rua Augusta, centro da cidade. O plano era entrarmos de fininho no

final do filme infantil Ursinhos Carinhosos e ficarmos escondidos até

começar sessão de Bird. Bastou a moça da portaria abandonar o

posto, por segundos, que invadimos a sala. Atrás das grossas

cortinas da entrada, demos de cara com dezenas de crianças que

explodiram de rir, quando viram que nossos corpos, atrapalhados em

Page 69: 4 MISSÃO IMPOSSÍVEL - static.recantodasletras.com.brstatic.recantodasletras.com.br/arquivos/6134376.pdfaparelhos de TV, soam quase como fanatismo os contos que lerão a seguir ...

69

busca de esconderijo, refletiam a cor rosa choque dos Teddy Bears.

Rapidamente, nos esgueiramos detrás das últimas poltronas e

ficamos agachadinhos, tentando conter nossas próprias gargalhadas.

­ Rubens! E agora? Perguntou Júnior, me tirando do transe.

Tomado por uma tensão como Crowe contra os leões do

Coliseu, estimei que não haveria tempo de passar um pente fino em

todas as fileiras: droga, iria atrasar o início da sessão, praguejei.

Mas, espera um pouco! Tive uma ideia e me dirigi à plateia em voz

alta:

­ Um momento de sua atenção, senhores. Sou o gerente

deste cinema. Obrigado por terem vindo. Para que não

tenhamos atraso na próxima sessão, vou precisar da

ajuda de todos. Uma jovem entrou nesta sala sem

autorização e ao menos que ela saia, não poderemos dar

início ao filme.

Prontamente, as pessoas que a viram passaram a denunciá­la.

­ Ela está aqui, gritou uma mulher de meia idade.

­ Ei. Saia já daí, falou um playboy corpulento, se

levantando e indo até onde ela estava.

Aos poucos, a multidão foi tomada por um senso de justiceiros,

além da conta. Comecei a temer pela integridade da garota, que

assustada se revelou atrás da última fileira e saiu da sala sob vaias e

risadas.

É impressionante fácil manipular uma multidão, pensei, agora

aliviado com o desfecho e tentando compreender o que as pessoas

são capazes de fazer para assistir a um bom filme. Ai que dor de

cabeça, voltou a ressaca.