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Letras – Languages – Letras | | Revista UniABC – v. 2, n. 2, 2011 - ISSN: 2177-5818 4. UMA LEITURA LINGUÍSTICO-LITERÁRIA DE Primeiro de Maio, de Mário de Andrade Profª. Ms. Diana Navas 1 ________________________________________________________________________________ Resumo O estudo propõe uma leitura do conto Primeiro de Maio, de Mário de Andrade. Partindo das concepções teóricas desenvolvidas por Bakhtin em Marxismo e Filosofia da Linguagem, almeja-se demonstrar como no conto em questão se materializa a imagem do trabalhador, considerando-se, para isso, a forma como ocorre a inclusão do seu discurso, ou seja, o discurso de outrem. Objetiva- se, ainda, apresentar que a transmissão de seu discurso está intimamente ligada a uma concepção de homem moderno, indivíduo em consonância com um tempo e espaço histórico e culturalmente situado. Palavras-chaves: Discurso; trabalhador; Primeiro de Maio; Mário de Andrade. Abstract The study proposes a reading of the short-story Primeiro de Maio, by Mario de Andrade. Using the theoretical concepts developed by Bakhtin in Marxism and the Philosophy of Language, it aims to show how the image of the worker is materialized in this short-story, considering, for this purpose, the way the inclusion of his discourse occurs, that is, the inclusion of the discourse of the other. It also aims to evidence that the transmission of his discourse is closely linked to a conception of modern man, an individual that is consonant with historical time and space, and culturally situated. Keywords: Discourse; worker; May First (Labor Day); Mário de Andrade. Resumen El estudio propone una lectura del cuento Primeiro de Maio, de Mario de Andrade. Partiendo de las concepciones teóricas desarrolladas por Bakhtin en Marxismo y Filosofía del Lenguaje, se desea demostrar cómo en el cuento en cuestión se materializa la imagen del trabajador, considerándose, para esto, la forma como acaece la inclusión de su discurso, o sea, el discurso de los otros. Se pretende, aún, mostrar que la transmisión de su discurso está íntimamente ligada a una 1 Professora Ms. Diana Navas é doutoranda em Literatura Portuguesa pela FFLCH-USP. É professora na UniABC nos cursos de Letras e de Pedagogia. [email protected]

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4. UMA LEITURA LINGUÍSTICO-LITERÁRIA DE Primeiro de Maio, de Mário de Andrade

Profª. Ms. Diana Navas1

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Resumo

O estudo propõe uma leitura do conto Primeiro de Maio, de Mário de Andrade. Partindo das concepções teóricas desenvolvidas por Bakhtin em Marxismo e Filosofia da Linguagem, almeja-se demonstrar como no conto em questão se materializa a imagem do trabalhador, considerando-se, para isso, a forma como ocorre a inclusão do seu discurso, ou seja, o discurso de outrem. Objetiva-se, ainda, apresentar que a transmissão de seu discurso está intimamente ligada a uma concepção de homem moderno, indivíduo em consonância com um tempo e espaço histórico e culturalmente situado.

Palavras-chaves: Discurso; trabalhador; Primeiro de Maio; Mário de Andrade.

Abstract

The study proposes a reading of the short-story Primeiro de Maio, by Mario de Andrade. Using the theoretical concepts developed by Bakhtin in Marxism and the Philosophy of Language, it aims to show how the image of the worker is materialized in this short-story, considering, for this purpose, the way the inclusion of his discourse occurs, that is, the inclusion of the discourse of the other. It also aims to evidence that the transmission of his discourse is closely linked to a conception of modern man, an individual that is consonant with historical time and space, and culturally situated.

Keywords: Discourse; worker; May First (Labor Day); Mário de Andrade.

Resumen

El estudio propone una lectura del cuento Primeiro de Maio, de Mario de Andrade. Partiendo de las concepciones teóricas desarrolladas por Bakhtin en Marxismo y Filosofía del Lenguaje, se desea demostrar cómo en el cuento en cuestión se materializa la imagen del trabajador, considerándose, para esto, la forma como acaece la inclusión de su discurso, o sea, el discurso de los otros. Se pretende, aún, mostrar que la transmisión de su discurso está íntimamente ligada a una

1 Professora Ms. Diana Navas é doutoranda em Literatura Portuguesa pela FFLCH-USP. É professora na UniABC nos cursos de Letras e de Pedagogia. [email protected]

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concepción de hombre moderno, individuo en consonancia con un tiempo y espacio histórico y culturalmente situado.

Palabras clave:

Discurso; trabajador; Primeiro de Maio; Mario de Andrade.

Para iniciarmos...

Crise do capitalismo, surgimento de democracias de massa, revoluções científicas, crença eufórica no progresso. Este era o panorama do início do século XX, contexto histórico em que viveu Mário de Andrade, um dos maiores expoentes do modernismo brasileiro.

Homem de seu tempo, o autor de Paulicéia Desvairada e de obras como Amar Verbo Intransitivo (1927) e Macunaíma – o herói sem nenhum caráter (1928), revelou por meio de sua vasta obra – toda ela importante para a consolidação das ideias modernistas –, sua paixão pela cidade de São Paulo e a crença na produção cultural como denunciadora da realidade, sem perder, evidentemente, suas características artísticas e estéticas.

Isso pode ser observado em Contos Novos, contos publicados postumamente em 1947. As nove tramas que compõem a obra evidenciam um projeto claro: olhar para o homem comum, anônimo, para sua realidade. Em cada um dos Contos Novos encontramos eventos nucleares que dão sentido à narrativa. Cada espaço, cada personagem, cada ação dá significado ao fato central, que pode até ser banal, mas tem densidade justamente por causa da potência de sua simbologia.

Dentre os contos presentes na obra encontra-se Primeiro de Maio, conto de temática social, mas de forte conteúdo introspectivo, no qual a personagem 35, trabalhador na Estação da Luz, passa a manhã toda e parte da tarde tentando festejar o Dia do Trabalho, vagando por uma São Paulo sitiada, oprimida pela força política do Estado.

É este conto, o corpus de que nos serviremos para apresentar São Paulo como imagem do trabalho. Partindo das concepções teóricas desenvolvidas por Bakhtin em Marxismo e Filosofia da Linguagem (especificamente em sua terceira parte – “Para uma história das formas da enunciação nas construções sintáticas”), almeja-se demonstrar como no conto em questão se materializa a imagem do trabalhador, considerando-se, para isso, a forma como ocorre a inclusão do seu discurso, ou seja, o discurso de outrem. Porém, mais do que identificar formas, deseja-se apresentar a funcionalidade dos vários modos de reproduzir ou citar o discurso de outrem, demonstrando como tal transmissão está intimamente ligada a uma concepção de homem moderno, indivíduo em consonância com um tempo e espaço histórico e culturalmente situado. Utilizaremos ainda, no estudo deste conto, uma análise feita por Ivone Daré Rebello em A

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caminho do encontro – Uma leitura de Contos Novos (1999), obra que reúne uma análise de todos os contos inseridos nesta coletânea.

Breves considerações teóricas

“O discurso citado é o discurso no discurso, a enunciação na enunciação, mas é ao mesmo tempo, um discurso sobre o discurso, uma enunciação sobre a enunciação” (BAKHTIN, 1997, p. 144).

Assim inicia-se o capítulo “O Discurso de Outrem”, capítulo no qual Bakhtin, em Marxismo e Filosofia da Linguagem, aborda as diferentes formas de apreensão do discurso alheio. Com tal afirmação, o autor demonstra que, diferentemente do que é predominantemente feito no estudo da inclusão do discurso de outrem, devemos considerar não apenas o conteúdo deste discurso, mas a forma de integração desse discurso citado ao contexto narrativo. Caso contrário, nem mesmo o seu conteúdo poderá ser profundamente assimilado.

O discurso citado é visto pelo falante como a enunciação de uma outra pessoa, completamente independente da origem, dotado de uma construção completa e situada fora do contexto narrativo. É a partir dessa existência autônoma que o discurso de outrem passa para o contexto narrativo, conservando o seu conteúdo e ao menos rudimentos da sua integridade linguística e da sua autonomia estrutural primitivas. A enunciação do narrador, tendo integrado na sua composição uma outra enunciação, elabora regras sintáticas, estilísticas e composicionais para assimilá-la parcialmente, para associá-la à sua própria unidade, embora conservando, pelo menos sob uma forma rudimentar, a autonomia primitiva do discurso de outrem, sem o que ele não poderia ser completamente apreendido. (BAKHTIN, 1997, p. 145)

Observa-se assim que, nas formas de transmissão do discurso de outrem, uma “relação ativa” de uma enunciação à outra pode ser evidenciada por meio de construções da língua e não no plano temático, ainda que o discurso alheio permaneça palpável, como um todo autossuficiente, mantendo um conteúdo semântico e uma estrutura relativamente estável.

Considerando o discurso direto ou indireto apenas como esquemas padronizados para citar o discurso de outrem, haja vista que “não exprimem de maneira direta e imediata as tendências e as formas da apreensão ativa e apreciativa da enunciação de outrem” (BAKHTIN, 1997, p. 147), estes esquemas, de acordo com Bakhtin, dão origem a variantes, as quais estão em consonância com as relações sociais estáveis dos falantes.

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Por meio da afirmação de que “toda a essência da apreensão apreciativa da enunciação de outrem tudo o que pode ser ideologicamente significativo tem sua expressão no discurso interior” (BAKHTIN, 1997, p. 147), Bakhtin explicita-nos que aquele que cita o discurso alheio é um ser cheio de palavras interiores, dotado de um “fundo perceptivo”, ou seja, de uma atividade mental. Consequentemente, esse seu discurso interior será juntado ao discurso proveniente do exterior, garantindo assim a apreensão, compreensão e apreciação do discurso alheio.

Neste processo, segundo o autor, estão presentes dois planos: o comentário efetivo e a réplica interior, elementos estes inseparáveis. Predominando ora um, ora outro, estes dois planos “exprimem-se e objetivam-se no contexto narrativo que engloba o discurso citado” (BAKHTIN, 1997, p. 148). Assim sendo, constata-se que discurso citado e discurso narrativo unem-se por relações dinâmicas, complexas e tensas, sendo estas essenciais para a compreensão do discurso citado.

Poderíamos agora apresentar uma breve caracterização dos esquemas de transmissão do discurso de outrem, bem como de suas principais variantes, porém, isto será feito ao longo da exposição, conforme identificarmos na análise do conto Primeiro de Maio as formas de discurso indireto, direto e indireto livre, empregados na transmissão do discurso citado. No entanto, não podemos nos esquecer de que a apreensão do discurso citado considerará não somente as particularidades dos fenômenos linguísticos, mas também o fim a que o contexto narrativo procura alcançar, haja vista que cada tipo de citação assume um papel distinto no interior do texto, e a escolha de um ou de outro, processada pelo narrador, pode revelar sua própria visão de mundo.

Uma possível leitura de Primeiro de Maio

Partindo-se do fato de que a imagem do trabalhador e do trabalho em São Paulo será analisada neste conto, a partir das concepções teóricas de Bakthin acerca do discurso de outrem, conforme afirmado anteriormente, torna-se necessário considerar inicialmente que Primeiro de Maio é um conto narrado em terceira pessoa. Trata-se de um narrador onisciente que tudo sabe de dentro e de fora da personagem, entretanto, apesar de tudo saber, esse narrador não se apropria da linguagem por meio da qual a personagem apreende o mundo – essa linguagem só poderá ser escrita com a representação da sua voz, no instante em que a personagem faz reflexões. Desta forma, é o narrador quem confere legitimidade e lugar ao pensamento da personagem, que não encontra voz no espaço público.

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Em Primeiro de Maio, desde o seu início, é possível identificar duas vozes: a do narrador, que inicialmente parece distante da personagem, mas que detém total conhecimento sobre ela; e a do personagem 35, que se insere em meio à do narrador2

.

No grande dia Primeiro de Maio, não eram bem seis horas e já o 35 pulara da cama, afobado. Estava bem disposto, até alegre, ele bem afirmara aos companheiros da Estação da Luz que queria celebrar e havia de celebrar. Os outros carregadores mais idosos meio que tinham caçoado do bobo, viesse trabalhar que era melhor, trabalho deles não tinha feriado. Mas o 35 retrucava com altivez que não carregava mala de ninguém, havia de celebrar o dia deles. (p. 47) (grifos meus)

Recorrendo ao uso do discurso indireto que analisa a expressão, o narrador cita o discurso de 35 e também dos outros trabalhadores; porém, isto não é feito de forma objetiva. Incluindo elementos afetivos e emocionais, o discurso citado permite-nos, não só pela sua temática, mas por sua forma, delinear traços da individualidade de 35, ou seja, construir uma possível imagem deste personagem.

Considerando que este discurso, portanto, não é citado de maneira racional, ou seja, isento de envolvimento emocional, é evidente que a voz deste narrador não é neutra. Exemplo disto é que a qualificação dada ao dia como sendo “grande”, provém não do personagem, mas do narrador, embora se evidencie que este não compartilha o mesmo desejo de celebração de 35.

Assim, apesar de aparentemente solidárias, as vozes do narrador e da personagem não se misturam. Observa-se que estas se distinguem quando o narrador, sutilmente, intervém para revelar suas distintas visões de mundo. É o que pode ser constatado quando, ao tomar banho, como se a água pudesse devolver sua dignidade, 35 contempla-se no pequeno espelho como um Narciso. Enquanto o narrador vê nele “músculos violentos (...), desenvolvidos desarmoniosamente nos braços, na peitaria, no cangote, pelo esforço quotidiano de carregar peso” (p. 43), 35 revela “um ar glorioso e estúpido”, agradando-se com aqueles “músculos intempestivos” (p. 43). Como pode ser observado, suas opiniões distinguem-se, assim como é distinto o léxico empregado por estes dois interlocutores, contribuindo, assim, para que os discursos não se confundam. É curioso também perceber que aqui temos a imagem física deste trabalhador, construída por meio da descrição – a imagem refletida no espelho é a imagem de um homem forte, robusto, no que se refere à aparência. O mesmo, no entanto, não ocorrerá no tocante à sua essência – fraca e fragmentada, como poderá ser visto posteriormente.

Este narrador ocupará diferentes ângulos, ora distanciando-se, ora aproximando-se de 35, deslocando o olhar junto com ele. Tal aproximação pode ser aqui observada:

2 As citações do conto Primeiro de Maio serão feitas tendo como referência a edição publicada pela editora Klick em 1997. Somente os números das páginas correspondentes serão citados.

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Ia devagar porque estava matutando. Era a esperança dum turumbamba macota, em que ele desse uns socos formidáveis nas fuças dos polícias. Não teria raiva especial dos polícias, era apenas a ressonância vaga daquele dia. (p. 43) (grifos meus)

Tal aproximação é feita a partir do uso do discurso indireto livre, no qual se observa um deslocamento da voz do narrador à dramatização da mente da personagem, sem intermediação. Do ponto de vista gramatical, o discurso é do narrador, porém, como pode ser evidenciado, do ponto de vista do significado ele pertence à personagem. Transmitindo desta forma o discurso citado, cria-se um efeito de caminho entre a subjetividade e a objetividade, uma fusão, mas não uma confusão dos discursos. O narrador solidariza-se com a personagem, mas deixa evidente que não pertence à sua classe, indicando-nos, portanto, o ponto de vista de que a história nos é contada.

A ação que comanda o desenvolvimento da intriga, conforme afirma Rebello, é a de caminhar em busca da realização de um desejo: encontrar, no corpo da cidade, o espaço legítimo da celebração do Dia do Trabalhador. Este será também o caminho percorrido pelo narrador que está com a personagem desde o momento em que ela desperta.

Desde o início, o caminhar da personagem aponta para sua ambiguidade – ao mesmo tempo em que é movido pelo desejo de celebração, é também movido pela alienação, imposta pelo trabalho. Isso não escapa ao narrador, que retrata a personagem acordando, provavelmente, no mesmo horário em que este desperta para trabalhar. Além disso, enquanto seus companheiros veem o Primeiro de Maio como um feriado, 35 vê neste dia um motivo para celebrar.

Dividido entre a luta (razão originária do Dia do Trabalho) e a festa (o que a celebração do dia havia se tornado), 35 revela uma consciência cindida, “que pensa a si mesmo e à sua classe, ora segundo a lógica dominante, reproduzindo a ideologia no signo ‘celebração’, ora segundo a lógica do dominado, que prepara na fantasia à práxis da luta” (REBELLO, 1999, p. 66).

35 caminha. Neste caminhar verifica-se um processo de busca. 35 busca os seus iguais. Mesmo não sendo operário, o personagem caminha para encontrar o “outro”, um outro com o qual possa identificar-se. É graças à existência dos jornais que lê, que sabe da existência desse outro:

Com seus 20 anos fáceis, o 35 sabia, mais da leitura dos jornais que de experiência, que o proletário era uma classe oprimida. E os jornais tinham anunciado que se esperava grandes “motins” do Primeiro de Maio, em Paris, em Cuba, no Chile, em Madri. (p. 43)

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Constata-se que o discurso do jornal também é citado. No entanto, este é mantido entre aspas, o que pode conduzir-nos a duas possíveis interpretações: 35 desconhece o vocábulo “motins”, daí não conseguir substituí-lo, apenas repeti-lo; ou ainda, transmitido integralmente, o discurso citado mantém a autenticidade daquele que o reproduziu.

35 parece também desconhecer o contexto histórico em que se insere. São Paulo, já palco de levantes e greves operárias, é agora tomado por forças repressivas da ditadura, as quais só serão posteriormente vistas e sentidas pela personagem.

A ação de preparar-se para sair às ruas vai, aos poucos, se tencionando. Neste dia da “festa do descanso”, 35 se barbeia pensando no internacionalismo operário, mesmo que não saiba onde estão situadas as cidades cujos nomes lê no jornal. Prepara-se, portanto, para a festa, mas pensando na luta.

O 35 apressou a navalha de puro amor. Era em Madri, no Chile que ele não tinha bem lembrança se ficava na América mesmo, era a gente dele. Uma piedade, um beijo lhe saía do corpo todo, feito proteção sadia de macho, ia parar em terras não sabidas, mas era a gente dele, defender, combater, vencer... (p. 43-44)

Como pode ser constatado, 35 identifica-se com os outros trabalhadores. Aliás, 35, indivíduo sem nome, apenas um número (número que nos remete à Intentona Comunista) e portador de uma identidade que lhe é conferida apenas pelo seu local de trabalho, representa toda uma classe. Uma classe que parece desorganizada e sem orientação política definida, fato este que o deixa sem rumo. Afinal, na época em que está inserido, o Primeiro de Maio era realmente uma comemoração política.

Comunismo?... Sim, talvez fosse isso. Mas o 35 não sabia bem direito, ficava atormentado com os jornais que falavam tanta coisa, faziam tamanha mistura de Rússia só sublime, ou só horrenda, e o 35 infantil estava por demais machucado pela experiência pra não desconfiar, o 35 desconfiava. (p. 44)

Homem moderno, bombardeado constantemente por um fluxo de notícias, de informações, 35 é atordoado com as informações contraditórias dos diferentes jornais a que tem acesso. Exemplo disso é que lê os jornais da esquerda e da direita. (“Rússia só sublime, ou só horrenda”). Diante de tantas informações, 35 acaba sendo cegado e ensurdecido - não conseguindo articular suas opiniões, fica preso diante das informações veiculadas pela mídia, constatando-se, portanto, que no mundo em que está inserido não há comunicação verdadeira.

Vestido com sua melhor roupa, que apresenta as cores da bandeira do Brasil, 35 recorda os tempos escolares, tempos estes distintos de sua realidade de trabalhador. Apesar dos anos já

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passados, 35 pratica o velho ensinamento lógico do nacionalismo – canta alegremente trechos do hino nacional. Isso é evidenciado graças ao uso do discurso indireto livre: “E o 35 moveu um hausto forte, querendo bem o seu imenso Brasil, imenso colosso gigante, foi andando depressa, assobiando (p. 44)” (grifos meus).

Interessante é observar que, aparentemente, a imagem que se concretiza é a do homem “completo”, e não a imagem do homem moderno – indivíduo cindido, não mais uno, centro convergente de conflitos. Tal unidade, no entanto, é colocada em xeque. Pensamento e ação, imagem e consciência, aparência e essência, público e privado, tornam-se o dilema que move a ação. A ambiguidade de 35 é claramente revelada: “Mas parou de supetão e se orientou assustado. O caminho não era aquele, aquele era o caminho do trabalho” (p. 44).

Enquanto a consciência o leva a procurar espaços de celebração (ou luta, na sua imaginação), seus pés o conduzem ao local de trabalho. Carregador de malas para as levas de imigrantes que chegam à Estação da Luz, 35, conforme afirma Rebello (1990), não reconhece que os músculos de que se agrada é a concretização, a materialização daquilo que a ideologia forjou – um corpo robusto, preparado para o trabalho árduo e uma mente incapaz de reconhecer sua própria alienação e, portanto, incapaz de rebelar-se contra isto. Não poderíamos ver aqui a própria imagem do Abaporu?

35 é apenas um “número no esfacelamento da subjetividade que é própria às relações capitalistas” (REBELLO, 1999, p. 67). É por isso que o narrador dele se aproxima, buscando o instante em que o 35 se transforme em sujeito durante o processo de buscar o que deseja.

É no afã de mostrar esse indivíduo tornando-se sujeito que o uso do discurso indireto livre é de grande importância e recorrência. Por meio dele o narrador, em alguns instantes, “desaparece”, cedendo espaço ao personagem, ao fluxo de sua consciência. É por meio desta forma de citação do discurso que constatamos que o discurso de 35 é hesitante e bastante subjetivo, marcado pelo uso das reticências, exclamações ou mesmo interrogações, pontuação essa de ordem emotiva que desempenha papel importante também na captação do ritmo quebrado, próprio da linguagem oral representada no conto.

O primeiro lugar a que se dirige é à Estação da Luz, lugar em que é levado pela força do hábito: “Chegou lá, gesticulou o bom-dia festivo, mas não gostou porque os outros riram deles, bestas.” (p. 44) (grifos meus).

Diante da ironia dos colegas de trabalho, 35 procura então aonde ir. Perambula por São Paulo que nos é descrita por meio da sua apreensão. A imagem da cidade que nos é dada pelo personagem é a de um espaço desconhecido e vazio. 35 tenta entender e atribuir sentido a essa imagem:

Só que em seguida não encontrou nada na cidade, tudo fechado por causa do grande dia Primeiro de Maio. Pouca gente na rua. Deviam de estar almoçando, pra chegar cedo ao maravilhoso jogo de futebol escolhido pra celebrar o grande dia. Tinha mas era muito polícia, polícia em qualquer esquina, em qualquer porta cerrada de bar de

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café, nas joalherias, quem pensava em roubar! nos bancos, nas casas de loteria. O 35 teve raiva dos polícias outra vez. (p. 44-45) (grifos meus)

É ainda o uso do discurso indireto livre que nos permite constatar a visão de mundo da

personagem 35. O uso dos adjetivos, bem como da grafia de “primeiro de maio” em letra maiúscula, possibilita-nos verificar a importância deste dia para aquele trabalhador.

A personagem não encontra identificação, e “como não encontrasse mesmo um conhecido, comprou o jornal pra saber” (p. 45). Aliás, não encontra nada do que queria encontrar: companheiros, festa, luta. O que vê é uma cidade vazia de gente e cheia de marcas de repressão.

35 vai então ao Jardim da Luz, espaço próximo ao seu local de trabalho, o qual é novamente atravessado pela personagem.

Ao atravessar a estação achou de novo a companheirada trabalhando. Aquilo deu um mal-estar profundo nele, espécie não sabia bem, de arrependimento, talvez irritação dos companheiros, não sabia. Nem quereria nunca decidir o que estava sentindo já... Mas disfarçou bem, passando sem parar, se dando por afobado, virando pra trás com o braço ameaçador, “Vocês vão ver!...” Mas um riso aqui, outro riso acolá, uma frase longe, os carregadores companheiros, era tão amigo deles, estavam caçoando. O 35 se sentiu bobo, impossível recusar, envilecido. Odiou os camaradas. (p. 45) (grifos meus)

A inserção do discurso citado dá-se, neste fragmento, por meio da utilização não só do discurso indireto livre, mas também por meio do discurso direto esvaziado. De acordo com Bakhtin, neste último tipo de discurso “o peso semântico das palavras citadas pelo herói diminuem, em virtude de o contexto narrativo ser construído de tal forma que a caracterização do herói feita pelo autor, lançar espessas sombras sobre o discurso direto” (1997, p. 167). O que diz 35 é anulado por sua caracterização anterior. Revelado como um indivíduo cindido, incapaz de identificar até mesmo o que sente, é evidente que 35 não é capaz de agir, ou seja, sua ameaça é vazia. Além disso, é interessante observar como o discurso direto, ao conservar a carga subjetiva da personagem, é marcado pela oralidade que, no conto em questão, é bastante viva para a época. O vocabulário, a sintaxe, o ritmo da fala brasileira tornam-se nele matéria-prima incorporada e trabalhada nos enunciados da personagem e do narrador.

No Jardim da Luz, 35 procura um banco escondido, no qual quer se esconder.

Andou mais depressa, entrou no jardim em frente, o primeiro banco era a salvação, sentou-se. Mas dali algum companheiro podia divisar ele e caçoar mais, teve raiva. Foi lá no fundo do jardim, campear banco escondido. (p. 45)

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Ele, no entanto, não está sozinho. É acompanhado pelo narrador que observa a formação da consciência de 35 – apreendendo os fatos exteriores e sua rearticulação com o mundo interior, o narrador apresenta-se agora muito próximo ao personagem, o que se concretiza, novamente, pela recorrência ao discurso indireto livre, que é agora mesclado ao discurso direto que cita o discurso dos jornais:

Abriu o jornal. Havia logo um artigo muito bonito, bem pequeno, falando na nobreza do trabalho, nos operários que eram também os “operários da nação”, é isso mesmo. O 35 se orgulhou todo comovido. Se pedissem pra ele matar, ele matava, roubava, trabalhava grátis, tomado dum sublime desejo de fraternidade, todos os seres juntos, todos bons... Depois vinham as notícias. Se esperavam “grandes motins” em Paris, deu uma raiva tal no 35. E ele ficou todo fremente, quase sem respirar, desejando “motins” (devia ser turumbamba) na sua desmesurada força física, ah, as fuças de algum... polícia? polícia. Pelo menos os safados dos polícias. (p. 46) (grifos meus)

É a recorrência a este tipo de discurso que concretiza o pensamento ambíguo de 35: ao mesmo tempo em que alienadamente se identifica com os “operários da nação” noticiados pelos jornais que lê, deseja os motins (“devia ser turumbamba”) que o uniam a seus pares de classe. É interessante observar que o local escolhido por 35 para suas reflexões seja o Jardim da Luz. Na literatura, o jardim é o símbolo do inconsciente, espaço em que o indivíduo mergulha no seu interior e tem a possibilidade de conhecendo-se, transformar-se. Além disso, trata-se do Jardim da Luz, ou seja, o espaço ideal para a iluminação de suas ideias, o espaço possível para que comece a assumir seu papel de sujeito.

Observa-se, também, que 35 não conhece a palavra “motim”, mas “por demais machucado pela experiência”, associa, apreende-a aos poucos e mantém o seu “turumbamba”. O personagem parece não identificar seus antagonistas na classe dominante e no patronato, mas sabe que a polícia atua para defender uma ordem que não é a sua, uma ordem que coíbe os desejos, separando os corpos, ali mesmo no Jardim da Luz.

Pois estava escrito em cima do jornal: em São Paulo a Polícia proibira comícios na rua e passeatas, embora se falasse vagamente em motins de tarde, no Largo da Sé. Mas a polícia já tomara todas as providências, até metralhadoras, estavam em cima do jornal, nos arranha-céus, escondidas, o 35 sentiu um frio. O sol brilhante queimava, banco na sombra? Mas não tinha, que a Prefeitura, pra evitar safadez dos namorados, punha os bancos só bem no sol. E ainda por cima era aquela imensidade de guardas e polícias vigiando que nem bem a gente punha a mão no pescocinho dela, trilo. (p. 46) (grifos meus)

A fusão do discurso indireto que analisa o conteúdo ao referir-se à notícia do jornal, seguido do discurso indireto livre, permite-nos observar a notícia e a forma pela qual esta é

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assimilada pela personagem. 35 logo associa: se a função da polícia é coibir, logo deve-se desconfiar daquilo que ela permite.

Mas a Polícia permitiria a grande reunião proletária, com discurso do ilustre Secretário do Trabalho, no magnífico pátio interno do Palácio das Indústrias, lugar fechado! A sensação foi claramente péssima. Não era medo, mas por que a gente havia de ficar encurralado assim! é! É pra eles depois poderem cair em cima da gente, (palavrão)! Não vou! não sou besta! (p. 46) (grifos meus)

35 recusa-se, inicialmente, a aceitar o permitido. Valendo-se novamente do discurso indireto livre, constata-se que o seu discurso, no entanto, não é totalmente livre. O narrador omite os palavrões por este proferido, o que pode ser interpretado como a falta de total liberdade de expressão dos trabalhadores que, ao terem seus enunciados suprimidos, não atacam a uma ordem estabelecida. É interessante observar que, apesar de sua revolta, seu enunciado não é dirigido como forma de manifestação, haja vista que ele é interior. É ainda neste espaço que a personagem reconhece que lá é um dia de luta. Vale observar que o calor incômodo que sente é a primeira fagulha da iluminação de suas ideias, de sua tomada de consciência.

Quer dizer: vou sim! desaforo! (palavrão), socos, uma visão tumultuária, rolando no chão, se machucava mas não fazia mal, saíam todos enfurecidos do Palácio das Indústrias, pegavam fogo no Palácio das Indústrias, não! a indústria é a gente, “operários da nação” pegavam fogo na igreja de São Bento mais próxima que era tão linda por “drento”, mas pra que pegar fogo em nada! (O 35 chegara até a primeira comunhão em menino...), é melhor a gente não pegar fogo em nada (...) (p. 46-47) (grifos meus)

Neste devaneio, em que se acentua a ideia de luta e dilui-se a de celebração, 35 quer incendiar algo, entretanto, não sabe o que: o Palácio das Indústrias, a igreja de São Bento. No entanto, logo desiste destes; afinal, nesses lugares ele confusamente se reconhece. O discurso citado conserva a forte carga emotiva do discurso proferido. O narrador, por meio de seu próprio discurso, não seria capaz de tal subjetividade, daí ceder espaço à voz de 35. Nota-se ainda que, neste trecho, como em muitos outros da narrativa, o narrador acentua a palavra “drento”, colocada sempre entre aspas. Constata-se assim, novamente, que é o interior desta personagem que está sendo focado, bem como parece ser este o espaço que precisa ser transformado. 35 opta, então, pelo Palácio do Governo, imaginando o confronto agora em um espaço político.

(...) vamos no Palácio do Governo, exigimos tudo do Governo, vamos com o general da Região Militar, deve ser gaúcho, gaúcho só dá é farda, pegamos fogo no palácio

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dele. Pronto. Isso o 35 consentiu, não porque o tingisse o menor separatismo (e o aprendido no grupo escolar?) mas nutria sempre uma espécie de despeito por São Paulo ter perdido na revolução de 32. Sensação aliás quase de esporte, questão de Palestra-Coríntians, cabeça inchada, porque não vê que ele havia de se matar por causa de uma besta revolução diz-que democrática, vão “eles”!... Se fosse o Primeiro de Maio, pelo menos... O 35 percebeu que se regava todo por “drento” dum espírito generoso de sacrifício. (p. 47)

O discurso indireto livre é também aqui predominante. Por meio dele, 35 expressa sua revolta e utiliza-se de um léxico que não se funde ao do narrador. Este até cita por meio do discurso indireto, registrado por aspas, as palavras pertencentes à personagem – materializado como um indivíduo deficiente de cultura acadêmica, fruto de uma educação ineficaz, precária. Isto pode ser novamente evidenciado quando se constata que 35 deseja atacar o Governo não porque identifica aí a Ditadura, mas porque “torce” pelos paulistas. O narrador deixa claro, portanto, que o trabalhador em questão – que não podemos nos esquecer, é um representante de toda uma classe – não sabe a história da ditadura, não conhece o significado da Revolução de 32, nem a do Estado Novo. Assim sendo, este se torna um registro da crença de Mário de Andrade na arte como forma de contestação e desejo de transformação.

É o jornal que está em suas mãos que o livra de entregar-se à luta em nome de seus iguais, ou de se isolar em fantasias com a “moça do apartamento”.

Salvou-se lendo com pressa, ôh! os deputados trabalhistas chegavam às nove horas, e o jornal convidavam (sic) o povo para ir na Estação do Norte (a estação rival, desapontou) pra receber os grandes homens. Se levantou mandado, procurou o relógio da torre da Estação da Luz, ora! não dava mais tempo! quem sabe se dá! (p. 47)

Novamente o narrador faz questão de demonstrar que o seu discurso não se funde ao de sua personagem – o narrador reconhece o erro de concordância cometido por 35 e sinaliza-o. A carga de subjetividade é também fortemente visível, bastando-nos atentar para as seguidas exclamações.

Ao invés de dirigir-se ao Palácio das Indústrias, em que teme confronto com as forças do Estado, a personagem dirige-se à Estação do Norte, onde estariam os deputados trabalhistas, os “grandes homens”. Este se revela um caminho difícil. Absolto em seus pensamentos, os quais são transmitidos recorrendo-se ao uso do discurso indireto livre que garante a subjetividade, 35 teme ter perdido a hora, quer ver o homem de que todos acham graça porque enuncia sempre um mesmo discurso (“vós, burgueses”); ao mesmo tempo, tem raiva deste homem, sem saber o porquê. Almeja ter perdido a hora. Chega. Mas ao chegar, avista o que não desejava: pouca gente, automóveis oficiais.

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Chegou tarde. Quase nada tarde, eram apenas nove e quinze. Pois não havia mais nada, não tinha aquela multidão que ele esperava, parecia tudo normal. Conhecia alguns carregadores dali também e foi perguntar. Não, não tinham reparado nada, decerto foi aquele grupinho que parou na porta da Estação, tirando fotografia. Aí outro carregador conferiu que eram os deputados sim, porque eles tinham tomado aqueles dois sublimes automóveis oficiais. Nada feito. (p. 48) (grifos meus)

O discurso citado dos trabalhadores e de 35, por meio do discurso indireto livre, revelam-se discursos da negação. Repletos de vocábulos que apontam para a negação, estes enunciados possivelmente revelam a privação de liberdade a que estão submetidos. Isto, no entanto, ainda não é completamente conhecido por 35.

Averigua-se, porém, que 35 já não é mais o mesmo. Conforme afirma Rebello (1999), a personagem vê a si mesmo, desdobrado pelos olhos dos outros. Percebe-se como “um moço bem vestidinho, decerto à procura de emprego por aí, olhando a rua” (p. 48). A alegria das seis horas foi substituída por um sentimento a que ele não sabe dar nome. O narrador sabe, e sabe também que o 35 não consegue chamá-lo de outra coisa a não ser “fome”. A personagem não encontra um nome para o que sente porque até então não tinha tomado consciência de sua situação. Este sentimento novo – o de alienação – de que ainda não detém total conhecimento é tratado apenas por fome. O narrador, ao dar voz a essa personagem não quer, no entanto, identificar-se com sua alienação:

Havia por dentro, “drento” dele um desabalar neblinoso de ilusões, de entusiasmos e uns raios fortes de remorso. Estava tão desagradável, quase infeliz... Mas como perceber tudo isso se ele precisava não perceber!... O 35 percebeu que era fome. (p. 48)

35 agora começa a se transformar. O princípio de tal mudança está presente no texto, materializado pela imagem do seu sapato:

Foi correndo, estava celebrando, raspou distraído o sapato lindo na beira de tijolo do canteiro (palavrão), parou botando um pouco de guspe no raspão, depois engraxo, tomou o bonde pra cidade, mas dando uma voltinha, pra não passar pelos companheiros da Estação. (p. 47) (grifos meus)

Os sapatos, símbolo da essência humana, foram raspados, isto é, sua essência foi atingida. Seus calçados já não são os mesmos, precisarão ser engraxados. O mesmo acontecerá com 35.

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Tentando satisfazer a fome que acreditava sentir, 35 caminha. Graças à leitura do jornal “já sabe que há uma comemoração oficial, a que ele resiste; já sabe que a cidade não está vazia por acaso; já sabe que o desejo de juntar com outros, iguais a ele, trouxe-lhe desamparo. Em casa, seu corpo humilhado não consegue o prazer de saborear a esplêndida macarronada” (REBELLO, 1999, p. 70).

E quando a mãe lhe pôs aquela esplêndida macarronada celebrante sobre a mesa, o 35 foi pra se queixar “Estou sem fome, mãe”. Mas a voz lhe morreu na garganta. (p. 49)

Em um dos raros momentos em que 35 tem seu discurso exatamente representado como proferido, morre-lhe a voz. Isso parece natural – afinal, ao trabalhador não cabe a reclamação. Ao reclamar é preciso que sua voz seja sufocada.

Antes disso, porém, em sua caminhada até a casa, na qual 35 faz um “esforço penoso para achar interesse no dia” (p. 48), a personagem passa por seus colegas de trabalho. É então possível a nós leitores, graças à descrição, uma visão dos trabalhadores. Trata-se da imagem de trabalhadores felizes, desconhecedores de sua alienação, sutilmente distintos de 35 por este já ter tido um primeiro contato com tal sentimento. Vale a pena constatar que, ao “ironizarem” as prostitutas, os trabalhadores desconhecem a si próprios também como vítimas de um sistema.

Os companheiros estavam trabalhando, de vez em quando um carrego, o mais eram conversas divertidas, mulheres de passagem, comentadas, piadas grossas com as mulatas do jardim, mas só as bem limpas mais caras, que ele ganhava bem, todos simpatizavam logo com ele (...). (p. 48)

Às treze horas, 35 sai novamente em busca de gente, em busca de um outro. É no Palácio das Indústrias que encontra uma multidão. A cidade está ocupada, porém só no espaço em que se é permitido:

Por sinal que o parque já se mexia bem agitado. Dezenas de operários, se via, eram operários endomingados, vagueavam, por ali, indecisos, ar de quem não quer. Então nas proximidades do palácio, os grupos se apinhavam, conversando baixo, com melancolia de conspiração. Polícia por todo lado. O 35 topou com o 486, grilo quase amigo, que policiava na Estação da Luz. O 486 achara jeito de não trabalhar aquele dia porque se pensava anarquista, mas no fundo era covarde. Conversaram um pouco de entusiasmo semostradeiro, um pouco de primeiro de maio, um pouco de “motim”. O 486 era muito valentão de boca, o 35 pensou. Pararam bem na frente do Palácio das Indústrias que fagulhava de gente nas

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sacas, se via que não eram operários, decerto os deputados trabalhistas, havia até moças, se via que eram distintas, olhando para o lado do parque onde eles estavam. (p. 49) (grifos meus)

Reprimidos, os trabalhadores não detém o direito ao discurso; a voz baixa revela-se o índice da opressão a que estão submetidos em uma cidade totalmente sitiada. É neste trecho que 35, pela primeira vez, demonstra seu desinteresse, ou melhor, sua frustração com o primeiro de maio, grafado agora com letra minúscula. A questão da essência e da aparência é também evidenciada, desta vez, pela própria personagem: o que o 486 diz, não corresponde ao que aparentemente é.

Foi uma nova sensação tão desagradável que ele deu de andar quase fugindo, polícias, centenas de polícias, moderou o passo como quem passeia. Nas ruas que davam pro parque tinha cavalaria aos grupos, cinco, seis escondidos na esquina, querendo a descrição de não ostentar força e ostentando. Os grilos ainda não faziam mal, são uns (palavrão)! O palácio dava ideia duma fortaleza enfeitada, entrar lá dentro, eu!... O 486 então, exaltadíssimo, descrevia coisas piores, massacres horrendos de “proletários” lá dentro, descrevia tudo com a visibilidade dos medrosos, o pátio fechado, dez mil proletários no pátio e os polícias lá em cima nas janelas, fazendo pontaria na maciota.(p. 50)

A opressão transfere-se até mesmo para o modo de caminhar da personagem – diante dos policiais o indivíduo apenas passeia, caminha lentamente. Constata-se ainda que a personagem 486 vai incluindo ao seu discurso palavras de outrem, ou seja, o vocábulo “proletário” dos jornais constitui agora parte de seu discurso.

Nesses trechos, clímax da narrativa, elementos do olhar são captados e organizados pela consciência.

Pela primeira vez em seu percurso, o 35 não está só; encontrou o 486, um companheiro, encontrou gente. E aprendeu que todos lhe são estranhos. Apreendeu que a realidade está no escondido: das esquinas (são “polícias”, a instituição instalando-se sobre as pessoas); dos trajes (são “operários endomingados”, e não companheiros); do discurso cujo sentido é o oposto do que aparenta (a fala da polícia que manda entrar pra efetuar o trancamento). A realidade da sonhada celebração não é mais que “melancolia de conspiração”, desejo impotente, fraturado pelos tempos históricos. A única forma pela qual uma efetiva celebração poderia se dar, a luta, está interditada. Não há vínculo entre pensamento e ação, nem entre o eu e o outro, ou entre o corpo do indivíduo e o corpo social. (REBELLO, 1999, p. 71)

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É válido notar que 35 sente realmente medo diante do discurso daqueles que sabe não se tratar de operários.

Mas foi só quando aqueles três homens bem-vestidos, se via que não eram operários, se dirigindo aos grupos vagueantes, falaram pra eles em voz alta: “Podem entrar! não tenham vergonha! podem entrar!” com voz de mandando assim na gente... O 35 sentiu medo franco. Entrar ele! Fez como os outros operários: era impossível assim soltos, desobedecer aos três homens bem-vestidos, com voz mandando, se via que não eram operários. Foram todos obedecendo, se aproximando das escadarias, mas o maior número longe da vista dos três homens, torcia caminho, iam se espalhar pelas outras alamedas do parque, mais longe. (p.50) (grifos meus)

É 35 quem cita o discurso da autoridade, valendo-se, para isso, do discurso direto. O uso desta forma de transmissão do discurso citado justifica-se: o discurso oficial deve ser integralmente repetido, preservado, respeitado – este não se deve alterar. Averigua-se ainda que, a individualidade é apontada como razão para a ausência de manifestação contrária a situação que vivem – “soltos”, ou seja, separados, isolados, torna-se impossível uma mudança de condições dos trabalhadores enquanto classe.

Observa-se ainda que o signo “celebração”, tantas vezes presentes na consciência de 35, desaparece da mente e do texto:

Esses movimentos coletivos de recusa, acordaram a covardia do 35. Não era medo, que ele se sentia fortíssimo, era pânico. Era um puxar unânime, uma fraternidade, era carícia dolorosa por todos aqueles companheiros fortes tão fracos que estavam ali também pra... pra celebrar? pra... O 35 não sabia mais pra quê. (p. 50) (grifos meus)

O contraste entre essência e aparência é aqui marcante. Não apenas 35, mas toda sua classe era aparentemente forte, mas interiormente fraca. Conforme já mencionado, ao corpo robusto contrapõe-se uma consciência incapaz de assumir-se como sujeito.

Sua caminhada continua, porém, destituída de alegria. Inicialmente, “tão lindo” e “bem vestidinho”, 35 percebe-se agora “ridiculamente vestido”:

Mas o palácio era grandioso por demais com as torres e as esculturas, mas aquela porção de gente bem-vestida nas escadas enxergando ele (teve a intuição violenta de que estava ridiculamente vestido) (...) (p.50)

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Nota-se que a visão que ele acredita ser a do outro a seu respeito, torna-se realmente sua visão de si próprio. Seu desejo de celebrar com os companheiros também se desfaz. Depara-se com a desconfiança e a impossibilidade, elementos estes imagetizados por meio de sua própria linguagem, linguagem esta de pensamentos reticentes e vazios:

(...) mas o enclausuramento na casa fechada, sem espaço de liberdade, sem ruas abertas pra avançar, pra correr dos cavalarias, pra brigar... E os polícias na maciota, encarapitados nas janelas, dormindo na pontaria, teve ódio do 486, idiota medroso! (p. 50-51)

A personagem pensa em sacrificar-se, em entrar sem medo no Palácio, porém não o faz. Tal atitude, uma vez mais, caracteriza o herói moderno – herói que não mais faz. Mergulhado em sua interioridade, perdido dentro de si, este indivíduo já não mais age, apenas diz, ou ainda, silencia-se.

De repente o 35 pensou que ele era moço, precisava se sacrificar: se fizesse um modo bem visível de entrar sem medo no palácio, todos haviam de seguir o exemplo dele. Pensou, não fez. (p. 51)

Partindo-se de uma leitura inserida no contexto getulista da época, pode-se dizer que 35 não é o herói que move massas, mas sim, um homem que nada pode fazer em relação à práxis política degradada, resumida no ato de caminhar. Além disso, o caminhar sem rumo representa a situação dos proletários diante da ditadura.

35 sente piedade, amor, fraternidade, isto é, desejo de comunhão, porém, o que vive é a solidão. Não é casual o fato de a palavra de que se apossa o narrador, neste momento, ser aquela que nos remete ao mito: “Era uma sarça ardente, mas era sentimento só. Um sentimento profundíssimo, queimando, maravilhoso, mas desamparado, mas desamparado” (p. 51). Assim como Deus, manifesto na “sarça ardente”, ordena a Moisés que liberte os judeus do jugo egípcio, 35 sente que precisa libertar sua classe, mas, está sozinho.

Um dos raros discursos diretos precedido por verbos elocutivos e marcado por pontuação pertence a um dos integrantes da cavalaria: “- Aqui ninguém não fica não! a festa é lá dentro, me’rmão! no parque ninguém não pára não!” (p. 51). Trata-se de um discurso marcado pela negação (presença do ‘não’ e do ‘ninguém’), apontando novamente para a repressão dos trabalhadores, os quais acabam se dispersando:

Cabeças-chatas... E os grupos deram de andar outra vez, de cá pra lá, riscando no parque vasto, com vontade, com medo, falando baixinho, mastigando incerteza. Deu

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um ódio tal no 35, um desespero tamanho, passava um bonde, correu, tomou o bonde sem se despedir do 486, com ódio do 486, com ódio do primeiro de maio, quase com ódio de viver. (p. 51)

Vale a pena observar que estes trabalhadores caminham sem rumo, ou seja, não têm objetivo, não sabem aonde chegar. É, ainda, o discurso da autoridade que parece impedir a organização, a reunião dos trabalhadores e uma possível reivindicação de uma classe.

A alegria inicial da personagem transforma-se em ódio, ódio não só dos policiais, mas também de 486 – seu companheiro. Ao sentir ódio deste, é como se 35 sentisse ódio de sua classe – uma classe sem coragem, sem rumo, detentora de uma fala apenas interior, entretanto, observa-se que 486 é um reflexo de 35. Assim, sem saber, 35 sente ódio de si próprio. Verifica-se, no entanto, que o signo “fome” já não lhe serve. 35 parece compreender que somente agindo eliminará sua angústia:

Não é que sentisse fome, porém o 35 carecia de arranjar uma ocupação senão arrebentava. E ficou parado assim, mais de uma hora, mais de duas horas, no Largo da Sé, diz-que olhando a multidão. (p. 51)

Apesar de tal reconhecimento, o herói nada faz, confirmando novamente sua condição de homem moderno. Na sé, coração da cidade, a multidão que vê já não mais o remete ao desejo de luta e de festa. Não mais acredita no que vê. Percebe que a verdade já não está mais visível. Caminha, mas agora com um novo olhar, detentor de “uma paz sem cor por dentro”: “Reconheceu que não almoçara quase nada, era fome, e principiou enxergando o mundo outra vez” (p. 51-52).

O narrador assume aqui o discurso quase que predominantemente e, em igualdade com 35, ironiza a lógica dos dominadores que foi apreendida pelo carregador de malas: “Os cafés, já sabe, tinham fechado, com o pretexto magnânimo de dar feriado aos seus “proletários” também” (p. 52).

O narrador continua a caminhar com 35, observando-o de fora, mas com ele se identificando, haja vista que o narrador, assim como a personagem, busca o encontro com o outro. Assim sendo, “são iguais, sendo diversos” (REBELLO, 1999, p. 73).

Depois de comer, sente-se revigorado e tem prazer no ato de desalienar-se, unindo novamente pés e mentes ao caminhar para o que ele denomina “seu domínio”.

E o 35 inerme, passivo, tão criança, tão já experiente da vida, não cultivou vaidade mais: foi se dirigindo num passo arrastado para a Estação da Luz, pra os companheiros deles, que esse era o domínio dele. (p. 52)

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É neste domínio, na Estação da Luz, espaço de trabalho, que se dá uma comunhão possível e uma possível caminhada em direção à concretização de seu desejo. 35 aproxima-se então de 22, propondo-se a ajudá-lo a dividir o trabalho, mas sem dividir o “galho”. É este o único momento em que 35 detém o discurso direto, marcado pela pontuação:

O 22 era velhote. Ficou na beira da calçada com aquelas quatro malas pesadíssimas, preparou a correia, mas coçou a cabeça. - Deixe que te ajudo, chegou o 35.

Apesar de distintos – um jovem e o outro velho, um detentor da experiência de sua

caminhada e o outro ainda preso à plataforma, estes indivíduos parecem equivaler-se; identificam-se, mesmo 22 vendo em 35 inicialmente um rival. Basta subtrair o número 5 do número 3 e teremos 2. Não seria 2 o outro algarismo que compõem 22, isto é, sua metade. Ou melhor, não seria 22 o duplo de 35?

“A leitura que Primeiro de Maio dá à História faz pressupor que a celebração só é possível na experiência e na solidariedade de classe, e seu lugar é o espaço do trabalho, três vezes negado, mas finalmente aceito por 35” (REBELLO, 1999, p. 74).

Pode-se afirmar que o conto termina de uma forma alegre. Os dois sujeitos caminham, agora juntos, no espaço do trabalho e para fora do texto, talvez dentro da História, demonstrando-se assim que se pode responder à repressão com a solidariedade entre os iguais. “O solitário 35 se tornou outro, solidário” (REBELLO, 1999, p. 74).

Vale averiguar que o termo “cabeça-chata” está presente durante todo o conto no discurso citado de 35, para referir-se, normalmente, aos policiais. Esta significação pode remeter-nos, inicialmente, aos indivíduos nordestinos. No entanto, no final do conto, este termo é utilizado para descrever o próprio 35: “Mais cabeça chata, o 35 imaginou com muita aceitação” (p. 52). Esta significação aponta para um novo tema: sua cabeça é agora “pressionada”, “achatada”, não só pelo peso das malas que carrega, mas pelo peso de um conhecimento a que teve acesso: o conhecimento de sua alienação.

E o narrador? O narrador, que até então caminhara com 35, fica parado. Ao final, sua voz distancia-se, dizendo que não pode contar: “Mas o 35 deu soco só de pândega no velhote, que estremeceu socado e cambaleou três passos. Caíram na risada os dois. Foram andando” (p. 53).

De acordo com Rebello (1999), foi ele quem contou não apenas os desejos conflitantes da personagem, sua transformação e solidariedade. Mais do que isso, este narrador espelhou-se na personagem. Também solidário este narrador despertara antes das seis da manhã para amorosamente aproximar-se de um outro com quem desejou identificação. Esse narrador, que pode contar e mostrar a transformação da personagem, não pode, porém, transformar a História real dos homens.

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Algumas considerações finais

Primeiro de Maio é um conto que nos revela a busca do encontro com o outro. Para concretizar tal intento, o narrador utiliza-se de uma técnica narrativa em que a onisciência neutra cede lugar à multisseletividade e ao perspectivismo. Em outras palavras, trata-se de uma narrativa em que a voz do narrador perde seus contornos nítidos, fundindo-se, (mas não se confundindo), com a voz da personagem para que possa proferir a voz desse outro. Isso é feito por meio da recorrência ao discurso indireto livre, forma essa de transmissão do discurso de outrem que garante a personagem espaço para expressar-se. Diminuindo a distância entre o narrador e o mundo narrado, esta forma de discurso, ao preservar a subjetividade, permite-nos construir a imagem de seu enunciador. E afinal, qual seria essa imagem?

Retrato de um indivíduo inserido em um mundo constituído por fragmentos, a personagem de Primeiro de Maio é um reflexo do homem moderno, ser cuja unidade constitui apenas uma mera falácia. Trata-se de um homem que busca sua identidade no outro, mas que não a encontra porque o outro é como ele, um ser sem contornos definidos, ou melhor, o outro é o próprio eu.

Visto predominantemente em seu momento de pré e pós-ação, 35 não constitui aquele que age, mas aquele que pensa e sente. Por meio de seus curtos monólogos interiores, esta personagem não constitui o herói que move massas, que age. Ao contrário, trata-se não da personagem que faz, mas daquela que fala. Assim sendo, podemos afirmar que o conto torna-se não mais um relato, mas uma espécie de cena interior, tornando-se assim evidente a prioridade conferida à enunciação e à rarefação do enunciado.

Considerando que, conforme afirma Bakhtin, a forma de transmissão do discurso de outrem está em consonância com o momento histórico-cultural em que se dá tal transmissão, a escolha dessa forma de discurso é passível de justificativa. Ao representar o homem moderno, indivíduo ciente de sua incompletude e despedaçamento, a escolha do discurso indireto livre parece ser inevitável. Em um contexto em que não há espaço para o diálogo, um contexto de forte tendência à introspecção, à individualidade e a uma constante solidão, o discurso indireto livre revela-se capaz de retratar a carga subjetiva daquele que o produz, revelando seus conteúdos mais interiores, muitas vezes desconhecidos pela própria personagem. Partindo-se do fato de que desde a modernidade o que se evidencia é a valorização do que o ser pensa de si e do mundo, o discurso indireto livre surge como uma ferramenta, uma possível resposta dada pelo homem ao momento histórico e cultural em que está inserido.

Por meio de um conto que retrata uma experiência de imensidade interior embora incoerente, haja vista que apesar de voltada para o outro é solitária, porque impotente, fechada em si mesma, Mário de Andrade revela o nascimento de um novo homem e de um novo tempo. Utilizando-se da literatura que é uma forma de conhecimento marcado não pela detenção de

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verdades absolutas, mas pela constante busca do saber, este autor nos convida a refletir, a reconhecermo-nos nesse novo homem, a caminhar em busca do que ainda nos falta, em busca de algo capaz de preencher os seres lacunares que somos.

Referências bibliográficas

ANDRADE, Mário de. Primeiro de Maio. In: ______ Contos Novos. São Paulo: Klick, 1997.

BAKHTIN, Mikhail. A personagem e seu enfoque pelo autor na obra de Dostoiévski. In: _____. Problemas da poética de Dostoiévski. 2 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002.

BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e Filosofia da Linguagem. 8. ed. São Paulo: Hucitec, 1997. 8ed.

RABELLO, Ivone Daré. A caminho do encontro – Uma leitura de Contos novos. São Paulo: Ateliê Editorial, 1999.