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Diretoria José Flávio Sombra Saraiva (diretor-geral)Antônio Carlos LessaAntonio Jorge Ramalho da RochaLuiz Fernando Ligiéro

COLEÇÃO RELAÇÕES INTERNACIONAIS

Conselho Editorial Estevão Chaves de Rezende Martins (presidente)Amado Luiz CervoAndrew HurrelAntônio Augusto Cançado TrindadeAntônio Carlos LessaDenis RollandGladys LechiniHélio JaguaribeJosé Flávio Sombra SaraivaPaulo Fagundes VizentiniThomas Skidmore

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ESTEVÃO CHAVES DE REZENDE MARTINS (ORGANIZADOR)

Direitos desta edição reservados ao

Instituto Brasileiro de Relações Internacionais (IBRI)Universidade de BrasíliaCaixa postal 440070919-970 – Brasília, DFTelefax (61) 307 1655

[email protected]: www.ibri-rbpi.org.br

Impresso no Brasil 2003

Efetuado o Depósito Legal na Fundação Biblioteca Nacionalconforme Decreto n� 1.825, de 20.12.1907

R382 Relações internacionais : visões do Brasil e da AméricaLatina / Estevão Chaves de Rezende Martins [Org.] . –

Brasília : IBRI, 2003.480 p. ; 23cm. (Relações internacionais; 9)

ISBN 85-88270-11-0

1. Política internacional. 2. Relações internacionais.I. Martins, Estevão Chaves de Rezende. II. InstitutoBrasileiro de Relações Internacionais. III. Série.

CDD 341.19

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Apresentação ........................................................................................ 7

IntroduçãoO olhar crítico brasileiro e latino-americano ..................................... 11

Estevão de Rezende Martins,UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA

1. Um percurso acadêmico modelar: Amado Luiz Cervo e aafirmação da historiografia das relações internacionais no Brasil .... 17

José Flávio Sombra Saraiva,UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA

2. Globalización y Relaciones Internacionales: los desafíosdel Siglo XXI ................................................................................ 63

Mario A. Rapoport,UNIVERSIDAD DE BUENOS AIRES E CONICET, ARGENTINA

3. A política externa brasileira em transição:do desenvolvimentismo ao neoliberalismo ................................. 107

Paulo Gilberto Fagundes Vizentini,UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL

4. Brasil e Portugal: percepções e imagens ao longo do século XIX .... 107Lúcia Maria Bastos P. Neves eTania Maria Bessone T. da Cruz Ferreira,UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

5. O império do Brasil e as grandes potências ................................ 133Francisco Fernando Monteoliva Doratioto,UPIS E INSTITUTO RIO BRANCO, BRASÍLIA

6. As relações econômicas internacionais do Brasil na primeirafase da era republicana (1889-1945) ......................................... 153

Paulo Roberto de Almeida,MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES DO BRASIL

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7. É o Brasil um país sério? A história da mais longeva anedotada política exterior do Brasil. ...................................................... 187

Antônio Carlos Lessa,UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA

8. A instrumentalização das culturas estrangeiras no Estado Novo:entre o Brasil e os Estados Unidos, o espaço da França durantea Segunda Guerra Mundial ........................................................ 223

Denis Rolland,UNIVERSIDADE DE ESTRASBURGO III, FRANÇA

9. Parlamento, política externa e o golpe de 1964 ......................... 249Antonio José Barbosa,UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA E SENADO FEDERAL

10. Actores emergentes en la historia de las relacionesinternacionales latinoamericanas .............................................. 275

Edmundo A. Heredia,CONICET, ARGENTINA

11. Venturas y desventuras de la Argentina: los cambiosde paradigma de política exterior y su relación con losmodelos de inserción ................................................................ 287

Raúl Bernal-Meza,UNIVERSIDAD DEL CENTRO DE LA PROVÍNCIA DE BUENOS AIRES, ARGENTINA

12. Why was the 20th century warlike? ......................................... 319Frank R. Pfetsch,UNIVERSIDADE DE HEIDELBERG, ALEMANHA

13. De babuínos, homossexuais e um presidente – ou: o fracassoda política exterior do Zimbábue depois do fim da Guerra Fria ..... 341

Wolfgang Döpcke,UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA

14. China em tempos de mudança ................................................. 397Argemiro Procópio Filho,UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA

15. Bibliografia de Amado Luiz Cervo ........................................... 473

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Este livro faz parte da coleção Relações Internacionais, organizadaacademicamente pelo Instituto Brasileiro de Relações Internacionais(IBRI), com o apoio da Fundação Alexandre de Gusmão (Funag), sobo alto patrocínio da Petrobras. A coleção, constituída de dez títulos,lançados gradualmente, objetiva a formação das novas geraçõesbrasileiras na área, mas também atende à demanda crescente da opiniãopública nacional interessada nas novas conformações internacionais eávida por conhecer, de forma sistemática e organizada, os grandes temasque envolvem a construção de um novo ordenamento internacionalneste milênio.

Os estudos acerca das relações internacionais têm merecidoatenção especial por parte dos grandes editores, não apenas nos centrosculturais de tradição na área, como Paris, Londres ou Nova Iorque.Lançamentos de novos títulos e reedições de obras clássicas animam avida intelectual e política das universidades e editoras em muitas partesdo mundo. Livreiros de países latino-americanos, europeus e asiáticosexibem ao público leitor ampla escolha de novos títulos dedicados aosdesdobramentos mais recentes da vida internacional. Estudos de caso,investigações teóricas e extensas sínteses históricas são cada vez maisconsumidos por numerosas pessoas, ávidas pela compreensão domundo.

A internacionalização das sociedades, a ampliação dos mercados,o impacto dos processos de integração regional e a economia políticada globalização são alguns dos fenômenos que despertam atençãocrescente. Mas há razões adicionais, como a crise de identidade dasnações acentuada pela realidade pós-bipolar e a fragmentação teóricada ciência política ligada aos estudos dos fenômenos internacionais,para explicar a animação editorial que se observa em torno do estudodas relações internacionais.

O interesse dos leitores brasileiros tem esbarrado, no entanto,em uma limitada reflexão própria acerca das relações internacionais.Preferiu-se traduzir novos manuais e adotar teorias da moda a enfrentar

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o desafio da compreensão e da explicação a partir de circunstânciasvividas. Foi-se buscar nos outros, equivocadamente, as razões daspróprias vicissitudes. Confundiu-se, algumas vezes, teoria comideologia. Absorveu-se e divulgou-se nas salas de aula grande quantidadede textos de qualidade discutível. Produzidos com o objetivo precípuode doutrinar os desavisados, levando-os a crer que as relações entre ospovos, Estados e culturas chegou a seu ápice com a liberalização dosmercados e com a economia política da globalização, esses textos nãorealizam o desafio intelectual de desvendar as entranhas das relaçõesinternacionais contemporâneas.

As contingências do Brasil exigiam, assim, uma coleçãoconcebida por estudiosos comprometidos com a renovação doconhecimento a partir de uma perspectiva própria acerca das relaçõesinternacionais, como aliás se procede em toda parte. No entanto, pormais objetiva que se pretenda que ela seja, todo esforço nessa área dereflexão está condicionado por motivações, informação, formação elegado cultural.

Por conseguinte, a coleção Relações Internacionais vem supriruma grande lacuna. Preocupado com a percepção inédita, por parte dasociedade brasileira, dos constrangimentos internacionais que impõemajustes de ordens diversas à formulação e implementação das políticaspúblicas, do ponto de vista econômico, social e de segurança, o InstitutoBrasileiro de Relações Internacionais (IBRI) resolveu utilizar suacondição de instituição decana nos estudos internacionalistas no Brasilpara, com seus parceiros, abrir a avenida da reflexão comprometidacom um olhar nacional sobre os grandes fenômenos da vida internacionalque envolvem a sociedade brasileira.

Estratégia comum alinha autores e livros. Em primeiro lugar,eles pretendem contribuir para a formação da crescente mão-de-obrabrasileira interessada em compreender os desafios internacionais etraduzi-los adequadamente para os atores sociais com interesses cujarealização sofrem impactos diretos ou indiretos do meio internacional.Em segundo lugar, os autores observam, com apreensão, o crescimentoexponencial da comunidade brasileira de estudantes dos cursos degraduação em Relações Internacionais a partir da década de 1990 e,

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como conseqüência, da necessidade de prover base sólida para odesenvolvimento dessas novas formações. Em terceiro lugar, preocupaa cada um dos autores da coleção o plano secundário a que a tarefa deprodução de livros paradidáticos foi relegada, no Brasil, diante do rápidosurgimento de um público consumidor, ávido por boa bibliografiaque cumpra os requisitos formais de apresentação do conteúdo mínimopreconizado pela Comissão de Especialistas de Ensino de RelaçõesInternacionais do Ministério da Educação.

José Flávio Sombra SaraivaOrganizador da Coleção Relações Internacionais

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O conhecimento do passadoalimenta virtualmente o movimento deaproximação e de desunião, porquetanto pode atuar para reproduzirimagens, mitos, estereótipos quantopara descaracterizá-los e apontara trilha das oportunidades deentendimento e colaboração entre aslideranças sociais e os povos ou, ainda,os riscos da irracionalidade.

Amado Luiz Cervo, 1998.1

O ano de 2001 foi um ano muitas vezes jubilar. A inauguraçãode um novo século representou um marco festivo que assinalou umainflexão simbólica do espaço privado e do espaço público. A cenainternacional foi testemunha de movimentos e de choques que marcama memória pública e privada de inúmeras sociedades, comunidades,pessoas. A rede multilateral de relações sociais e estatais torna-se cadavez mais complexa. Os aspectos políticos, tradicionais e longevos,receberam, ao longo da segunda metade do século XX, que viu surgire esvanecer o maniqueísmo da Guerra Fria, o aporte de densos eintrincados conjuntos de questões. Pelo menos as questões relativas àeconomia e ao comércio – e, adicionalmente, às finanças internacionais– e as relativas às culturas e às identidades se elevam no horizonte dareflexão. Temas inovadores, como o desenvolvimento sustentável e oequilíbrio das condições sociais e econômicas de uma vida humanadecente, ocupam pesquisadores, analistas, governantes, movimentossociais. O século XXI abriu-se sobre um cenário de excepcional

1 Cervo, Amado Luiz. In: Cervo, A. L. e M. Rapoport. História do Cone Sul. Brasília:EdUnb, Rio de Janeiro: Editora Revan, 198l, p. 78.

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complexidade, mesmo se a pressão das ameaças de conflito generalizado– hipoteca que pendeu décadas a fio sobre os atores políticosinternacionais – parece ter diminuído, apesar do triste e brutal episódiodo 11 de setembro. Em uma perspectiva global, as expectativas tendema mais esperança do que a desesperança. A reflexão sobre as razões e asdireções dessas expectativas abrange muitos aspectos. Alguns deles, dentreos mais relevantes, estão reunidos neste volume, em homenagem aAmado Luiz Cervo.

Foi nesse mesmo ano de 2001 que Amado Luiz Cervocompletou seu sexagésimo aniversário. Seus muitos amigos, colegas ediscípulos fazem questão de assinalar essa efeméride. Para celebrar adata jubilar, desejou, pois esse círculo de pessoas reunir, neste livro,um conjunto de ensaios sobre o eixo que segue a longa carreira deAmado Luiz Cervo: a história das relações internacionais. Atenderamao convite do organizador deste volume pesquisadores deste campo,cujos percursos cruzam o de Amado Luiz Cervo, dele hauremimportante inspiração e com ele privam de cordial relação de amizade.Inúmeros outros se associam a esta homenagem, em espírito, no afetoe na lembrança, cuja enumeração não cabe em tão pouco espaço.

Na Universidade de Brasília há mais de um quarto de século, oProfessor Amado – como é amavelmente conhecido – pesquisa, inovae forma pesquisadores no campo de estudo da História das RelaçõesInternacionais. Formado no rigor metódico da grande linhagem doshistoriadores franceses do século XX, Amado Cervo encarna a figurado profissional de ciência animado pela busca da qualidade, da solidez,da consistência e do controle do conhecimento e de sua prática. Esseperfil acadêmico é emoldurado pelo trato e pela fidalguia de umcavalheirismo que o enobrece e distingue. Essa distinção sempre se fazacompanhar por uma modéstia e uma singeleza que amenizam aexigência, constantemente lembrada a todos, de manter elevado o nívelcientífico e alerta a vigilância sobre a excelência do argumento.

O ponto de partida desse itinerário está em Estrasburgo, naFrança. A França dos anos 60 formou o pesquisador e deu-lhe o títulode Doutor. O encanto da Alsácia certamente não é estranho à firmezado profissional nem à suavidade da pessoa. O retorno ao Brasil, em

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1970, o fez instalar-se na terra natal. A Universidade de Passo Fundorecebe o novo doutor, fornecendo-lhe o quadro institucional para apesquisa e o ensino em História do Brasil, História Contemporânea,História Econômica e Teoria da História. Em 1976 vem o convitepara integrar o recém-criado programa de pós-graduação em Históriada Universidade de Brasília. A história desse programa e a carreiraacadêmica de Amado Luiz Cervo passam a estar intimamente ligadas,a partir desse momento.

A história da política exterior do Brasil e a das relaçõesinternacionais integram doravante seu projeto científico profissional.Dessa rica combinação surgem os trabalhos, publicados ao longo dequase trinta anos, cujo rol constitui a última parte deste livro e queservirão assim de guia ao estudioso contemporâneo da História dasRelações Internacionais. A reflexão crítica de Amado Luiz Cervoprojetou no espaço historiográfico mundial o olhar crítico brasileiro elatino-americano. Esse olhar dirige-se para a política exterior brasileirae para a história de sua formulação e de sua execução. Dirige-se tambémpara a inserção da rede de relações e de políticas internacionais no espaçolatino-americano, notadamente no cone sul da América Latina. Dirige-se, enfim, à comparação e à crítica internacional, no debate com asescolas francesa e norte-americana, notadamente.

A densidade e o alcance desse itinerário é sistematicamenteanalisado e apresentado pela primeira contribuição deste volume, daautoria de José Flávio Sombra Saraiva (capítulo 1). O estabelecimentoda historiografia das Relações Internacionais no Brasil e a irradiação dahistoriografia brasileira das Relações Internacionais, mediante AmadoLuiz Cervo, têm no ensaio de Saraiva uma exposição que honra omestre e que é de particular utilidade para o estudante e o pesquisador.O ensaio seguinte, oferecido por Mario Rapoport, um dos maiseminentes historiadores argentinos das Relações Internacionais, versasobre uma questão abrangente, submetida a fina crítica sistemática: aagenda das relações internacionais no século XXI, no marco daglobalização econômica (capítulo 2). Esses dois textos delimitam ocampo epistêmico e empírico que a historiografia brasileira e latino-americana lavrou, cultiva e faz frutificar.

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Segue o capítulo (3) de Paulo Vizentini, que trata da evoluçãohistórica das etapas mestras da política externa brasileira no processode redemocratização, a contar de 1985, e de consolidação da práticademocrática republicana desde então. A política exterior bi e multilateraldos governos de José Sarney a Fernando Henrique Cardoso é didáticae criticamente exposta e debatida. Esse terceiro texto traz, para o leitoravisado, o fio condutor da análise crítica que a perspectiva históricacomparativa coloca à disposição da consideração politológica.

O século XIX, para a afirmação da brasilidade, é decisivo.Contra o pano de fundo da consolidação da personalidade internacionaldo Brasil, após a independência, dois capítulos projetam uma luzesclarecedora. Lúcia Pereira das Neves e Tânia Bessone apresentam ojogo de imagens e reflexos em que ex-metrópole, Portugal, e novelimpério, Brasil, se vêem e se distorcem (capítulo 4). Para além do espaçoluso-brasileiro, Francisco Doratioto aponta a posição relativa do impériobrasileiro no sistema internacional, tanto sob o ponto de vista políticoquanto desde a perspectiva econômica e comercial (capítulo 5). Aimportância crescente da política externa em questões de economia,finanças e comércio fica largamente demonstrada no minucioso estudode Paulo Roberto de Almeida sobre as relações econômicas do Brasilna República Velha e no período getulista (capítulo 6).

Os três capítulos subseqüentes ilustram temas que ocupamconstantemente a reflexão sobre as relações internacionais do Brasil.A política brasileira para com a França – e inversamente – é abordadapor Antônio Carlos Lessa a propósito da assim chamada “guerra dalagosta”, episódio representativo da rivalidade comercial, da diplomacianegociadora e de seus desdobramentos, nos anos 60 (capítulo 7). Aindaa França e seu esforço dantesco por manter uma posição relevante noespaço latino-americano, em especial no Brasil, no período em tornoda Segunda Guerra Mundial, é o tema analisado por Denis Rolland,na ótica da troca de guarda na hegemonia entre potências européias eos Estados Unidos (capítulo 8). O papel do Congresso Nacionalbrasileiro na formulação da política externa – tema caro a Amado Cervo– é analisado por Antônio José Barbosa no período que antecede oGolpe de 1964 (capítulo 9).

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Os dois capítulos seguintes ilustram outra abordagemespecialmente cultivada e apreciada pelo Professor Amado: a reflexão apartir da América Latina e sobre ela. Assim, no capítulo 10, EdmundoHeredia sistematiza o estado da arte quanto ao processo de interaçãointernacional latino-americano. Raúl Bernal-Meza detém-se no segundomaior ator político do Cone Sul, a Argentina, e analisa a questãoda inserção internacional platina sob o ângulo da política exterior(capítulo 11). Os três últimos capítulos submetem à análise trêstemas fundamentais para a compreensão histórica e política doséculo XX: Frank Pfetsch debruça-se sobre o século sanguinário, oséculo dos conflitos, sobre o século dos anjos da morte (capítulo 12).Wolfgang Döpcke toma o Zimbábue do período pós-Guerra Fria pararefletir sobre os impasses e as contradições da África pós-colonial(capítulo 13). Enfim, em um ensaio detido, Argemiro Procópio aproximao leitor de um mundo que ainda resta amplamente enigmáticoconquanto promissor: a China em transformação do século XXI.

Este volume é encerrado com a bibliografia completa de AmadoLuiz Cervo. Os ensaios que os autores dedicaram em sua homenageme o valioso espectro bibliográfico dos trabalhos do Professor Amadooferecem, assim, ao leitor – ao estudioso da História das RelaçõesInternacionais – um vetor de reflexão e uma referência de qualidade.Por certo não se cobre tudo o que o campo da História das RelaçõesInternacionais propicia. O olhar crítico sobre o mundo, a visão dacena internacional desde o Brasil e a América Latina, a começar por suainserção regional e internacional própria – traços marcantes de atuaçãode Amado Luiz Cervo, é o que este volume busca espelhar, colocando-se à disposição do leitor esclarecido e interessado.

Um grande amigo de Amado Cervo, precocemente ceifadopela enfermidade, René Girault, dirigiu um grande projeto de estudossobre a identidade e a consciência européias no século XX, cujosresultados foram publicados em 1994. É de Girault que são tomadasas palavras com que se encerra esta introdução. Essa visão da Europaem transformação no seio do processo de integração européia elencarequisitos e questões que também se põem ao historiador latino-americano voltado para a emergência da região como ator internacional.

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É bem na linhagem dos grandes, como Pierre Renouvin, Jean-BaptisteDuroselle e René Girault, que se encontra predicados adequados àqualidade pessoal e profissional de Amado Cervo.

Pede-se amiúde à História de explicar o presente, e porvezes mesmo de antecipar o futuro. É certo que o passadofundamente o presente. ... Os historiadores manejampreferentemente o conceito de longa duração. Contudo, oacontecimento, datado, único, base de suas pesquisas, os obrigaa levar em conta, em primeiro lugar, o tempo curto; mas elessabem muito bem que este só alcança seu verdadeiro significadoquando situado no tempo longo. ... Na verdade, as mudançasnas mentalidades coletivas são lentas quanto se trata de conceitostão fundamentais como o reconhecimento de sua identidade noseio de grandes grupos humanos, para além de sua pequenapátria. ... [A] investigação do passado pode auxiliar a compreensãodo presente e a estimativa de futuro. ... .2

Brasília, outubro de 2002

Estevão Chaves de Rezende MartinsUniversidade de Brasília

Humboldt fellow

2 Girault, René. Introdução a R. Girault (org.). Identité et conscience européennes au XXe siècle.Paris: Hachette, 1994, p. 14-15.

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José Flávio Sombra Saraiva*

A elaboração de um argumento acerca da trajetória de umcientista ou de um campo disciplinar impõe certas cautelas. Deve-sebuscar o distanciamento devido, sob pena de cair na apologética ou nacrítica mordaz. O problema se agrava quando o objeto em observaçãoé um colega, um interlocutor intelectual privilegiado, há pelo menosvinte anos. E mais complexa se torna a operação quando o campodisciplinar é tão familiar, entranhando-se nas difusas linhas que apenassuperficialmente dividem os debates que já se entabularam daquelesque estão por vir.

O desafio, neste caso, é alvissareiro. Acompanhar o percursointelectual de Amado Luiz Cervo é acreditar na possibilidade criadorada atividade científica no mundo contemporâneo. O misto deresponsabilidade e honra com que o texto está elaborado se faz notarna maneira como está dividido. Na primeira parte, apresenta-se adimensão da vocação que faz de Cervo um cientista brasileiro das ciênciashumanas respeitado em seu meio. Na segunda, acompanha-se a geratrizdo encanto pelos assuntos internacionais, seus estudos incipientes nahistória das relações internacionais. Na terceira, avalia-se seu papel naimplantação e no desenvolvimento dos estudos internacionais no Brasil,a argumentar que foi essencial à afirmação epistemológica da área. Naúltima parte, discute-se sua descoberta latino-americana e seus impactosrecentes.

O texto busca a cautela, mas seu autor não se furta ao fato deque lhe é grata a idéia de discutir a obra de um mestre que tanto vem

* Mestre em Relações Internacionais pelo Colégio do México e PhD pela Universidade deBirmingham, Inglaterra, é professor de História das Relações Internacionais da Universidadede Brasília. É diretor-geral do Instituto Brasileiro de Relações Internacionais (IBRI)

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fazendo, a partir da Universidade de Brasília, para afirmar um campoque ganha relevo na mesma proporção em que a internacionalizaçãodas sociedades é fato notório da história contemporânea.

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Há poucos exemplos tão vivos da idéia de “ciência comovocação” como aquela encarnada por Amado Luiz Cervo. Pareceriaaté, na imaginação, que Max Weber criara um tipo ideal a partir de umser específico que lhe fora posterior ao tempo vivido e alheio ao seulugar de reflexão. No clássico texto de quase novente anos atrás, Webersituou o tema de maneira original, a distinguir a política da ciência, abusca da verdade como possibilidade do conhecer daquela verdade queemana da ética da responsabilidade.

Cervo traduz o tipo ideal weberiano da razão científica. A buscapela verdade científica, ao longo de sua trajetória acadêmica, não oimpediu de ser político, no sentido lato, mas não foi no mundo daarte do convencimento que o professor deixou sua marca. Seu esforçocotidiano – no magistério, tanto na graduação quanto na pós-graduação,na orientação de dissertações e teses de doutorado, na consolidação doprograma de história das relações internacionais na Universidade deBrasília e, sobretudo, na pesquisa científica – foi o da opção pedagógica,pela crítica aberta e metódica dos textos. A redação apurada do argumentoé outra marca indelével dos artigos e livros que escreveu. Buscou, emoutras palavras, tanto o espaço científico quanto o prioritário.

A quase ojeriza à política como vocação o levou a declaraçõesarriscadas, anticorporativistas, corajosas, como aquelas que viria expressarno memorial preparado para se apresentar ao concurso para professortitular de História das Relações Internacionais no Departamento deHistória da Universidade de Brasília há exatamente uma década:

A Universidade de Brasília ofereceu-me um ambienteadequado para desenvolver meus estudos na linha de minhaprópria formação. O entusiasmo com que abracei a oportunidademanteve-se vivo até o presente, apesar de tantos percalços que

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todo docente dessa instituição enfrentou nesse tempo. Por opçãopessoal, procurei manter-me afastado de dois desvios de função– desvios em meu entendimento pessoal: a tentação da atividadepolítica ou classista e a corrida atrás de cargos burocráticos.1

Essa atitude não lhe custou caro. Muito ao contrário, permitiucerta imunidade diante das convulsões do tempo curto, aquele o qualtanto criticou, em favor de um tempo mais alargado, histórico porexcelência. Insistiu sempre na idéia de que o tempo traz alívio, distensãopara o momento, trégua para o pensamento. É ele mesmo que adianta:“Sem essa dimensão do tempo nossa ciência estaria desprovida de umavariável de controle, nossa ação desprovida daquele espírito desportivo,humorístico ou irônico, que evita enfartos no mínimo.”2

O humor irônico, que jamais transbordaria em arrogância ouexibicionismo, é uma das marcas de Amado Cervo. Testemunhas somosmuitos, que assistimos suas aulas na graduação e na pós-graduação, dafala mansa e do estilo contido, da delicadeza no dedilhar dos pontos,da construção elegante do argumento, da pontualidade respeitosa, dacrítica medida apresentada sem aspereza.

A crítica à irracionalidade da burocracia universitária e dasintermináveis e freqüentemente estéreis reuniões – que segundo Cervotrouxeram mais aborrecimentos que compensações profissionais – nãoo impediu de assumir duas funções institucionais essenciais: a decoordenador do programa de pós-graduação em História por váriasvezes e a própria chefia do Departamento de História da Universidadede Brasília entre 1996 e 1997. Em ambos os papéis, trouxe tranqüilidadeaos que estivemos sob sua coordenação.

O traço marcante em sua vocação acadêmica vem sendo, semdúvida, a ênfase ao trabalho prático de pesquisa. Seu ceticismo emrelação ao teoricismo o levaria a tratar, mesmo que de forma simpática,

1 Cervo, Amado Luiz. Memorial apresentado ao concurso para professor titular de História dasRelações Internacionais no Departamento de História da Universidade de Brasília. Brasília: 1992,separata, p. 8.2 Cervo, Amado Luiz. Discurso na cerimônia de Colação de Grau do curso de graduação(bacharelado) em Relações Internacionais da Universidade de Brasília. Brasília: agosto de1992, p. 4.

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o jogo teórico como um divertimento. Daí seu apego aos problemasdo método, mais do que ao desfile interminável de teoriasmetodológicas. Sua obra original nessa área viria a ser lançada já em1973, no contexto da introdução no Brasil, nos mais diversos cursos,da disciplina “Metodologia Científica” como matéria obrigatória dociclo básico das universidades.

Ao abordar a concepção da disciplina no seu livro intituladoMetodologia Científica, ao lado de Pedro Alcino Bervian,3 Cervodesenvolve concepção própria da disciplina, embevecida por orientaçãoe conteúdo programático originais ao Brasil. Distinguiu ele o chamado“enfoque crítico” do outro, “prático”, tendendo os filósofos ao primeiroe os “cientistas”, como ele sempre preferiu ser identificado, ao segundo.Mais tarde, viria frustar sua tentativa de ver triunfar o olhar práticosobre o crítico, especialmente depois de 1976, quando assumiu seuposto na Universidade de Brasília. No diálogo com os filósofos destainstituição, como Estevão Chaves de Rezende Martins e NelsonGomes, percebeu que era possível a compatibilização dos dois olhares.Fez-se mais flexível na sua proposta de um olhar mais prático sobre ametodologia científica.

No entanto, jamais viria abandonar o objetivo de atingir asmentalidades dos jovens ingressos na universidade e despertar-lhes oespírito científico com a aprendizagem do método, que aplicariamdesde o início de seus estudos de pesquisa bibliográficas, de campo oude laboratório. O manual foi um sucesso editorial, alcançando váriasreedições ainda nas décadas de 1970, 1980 e 1990, atingindo, até hoje,a marca de mais de 300 mil exemplares vendidos, além de uma versãoao espanhol.

O sentido pedagógico defendido por Cervo era claro em seuprimeiro livro e apenas expôs, já de maneira pouco tímida, aquilo quese tornaria traço indelével em sua trajetória intelectual: o gosto pelodisciplinar da mente estudantil e pela orientação prática dos trabalhosa serem preparados, deixando para mais tarde a crítica das ciências,

3 Cervo, Amado Luiz & Bervian, Pedro Alcino. Metodologia Científica. São Paulo: McGraw-Hill, 1973.

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mesmo porque, para ele, o aluno que chegava à universidade não temacerca do método noção alguma sobre a qual desenvolver sua crítica.Idéia combatida por vários de seus interlocutores intelectuais, a começardos filósofos da Universidade de Brasília (todos seus amigos pessoais),viria Cervo, mais tarde, ter mais paciência com a idéia de que odesenvolvimento da crítica poderia, e talvez deveria, vir com odesenvolvimento prático do método.

Mas nada retira o traço que permanece até os dias de hoje,especialmente nas teses de doutorado recentemente orientadas porCervo. Há uma nítida propensão em apoiar o trabalho prático depesquisa, mesmo que emerso na crítica historiográfica e no balançobibliográfico dos objetos tratados, ao invés de sobrevalorizar a teoria.

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Para entender o cientista e sua forma de pensar, seus métodos,virtudes e constrangimentos, o melhor caminho é o do próprio tempo,como ele mesmo sugere. Percorrer esse caminho é encontrar as raízesdo gosto pelo internacionalismo e o nascedouro do que viria ser amatriz de uma escola brasileira de História das Relações Internacionais.

O ano de 1964 levaria o jovem gaúcho, de matriz italiana, ainterromper seu curso de Filosofia em Viamão para o encontro comseu destino internacionalista. O destino era a Universidade deEstrasburgo, na França, atendendo mais ao desejo de uma formaçãode alto nível na Europa do que a qualquer desdobramento de fatosque abalavam a vida política do país naquele ano. Cervo não fugia denada, apenas busca um outro mundo, retornando à Europa de seusantepassados.

Em Estrasburgo, onde completou sua vida universitária dagraduação e da pós-graduação, morou de 1964 a 1970. Encantou-sepela extraordinária Biblioteca Nacional da Universidade, com seuestatuto de “biblioteca nacional”, conferida pelas mesmas leis de suacongênere em Paris. O fundo americanista da portentosa bibliotecacontinha mais de um milhão de títulos de volumes, deixando o jovembrasileiro motivado em suas pesquisas de mestrado e doutorado.

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A perspectiva de articular a oportunidade de estudos na Europa à raizamericana o levaria a desenvolver o interesse de vincular os dois mundos,internacionalizando-lhes em seus objetos de estudo. Norteava-se,naquele momento, um objetivo no campo das relações internacionaisque jamais abandonaria e que perseguiria sua formação, dos anos 60ao presente.

O estudo das relações internacionais passou a ser seu lugar deafirmação intelectual. Sabia Cervo que a Universidade de Estrasburgonão podia igualar-se aos então centros europeus mais avançados naárea de história das relações internacionais, tais como o Institut PierreRenouvin, da Universidade Sorbonne, ou o Institut Universitaire desHautes Etudes Internationales de Genebra, ou mesmo o grupo deespecialistas que se concentrava em torno da London School ofEconomics and Political Sciences e do British Committee on theTheory of International Relations. Em Estrasburgo, no entanto,estavam alguns historiadores devotados a tais estudos. E aquela regiãoda França era vocacionada ao internacionalismo, pois continha o caráterde cruzamento cultural entre dois países centrais na Europa continental,além de abrigar o Parlamento Europeu.

Viria a ser orientado em seus trabalhos por Geoge Livet,historiador modernista europeu de grande reputação, preocupado comos temas da paz e da guerra entre as nações na época do Renascimentoe da expansão marítimo-comercial européia dos séculos XV e XVI.A dissertação de mestrado foi o primeiro ensaio no campo das relaçõesinternacionais, sob a orientação de Livet. L’Europe et les Incas; contributionà l’histoire comparée des techniques pôs a questão das relações internacionaissob o ponto de vista do estágio diferenciado da técnica. Buscava Cervo,em sua dissertação de mestrado, as raízes da dominação e da dependência,mas a encontrá-las em trabalho prático, demonstrativo e sem teoricismoestéril ou ideológico. Já demonstrava o jovem historiador sua vontadeem articular uma macroistória a uma história concreta, objetiva, dedemonstração prática possível.

A tese doutoral (Service de Dieu et Service de sa Majesté: lajustification espagnole de la conquête de l’Amérique), por sua vez, seguiuo curso da anterior, mas a incorporar a combinação dos fatores políticos

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e religiosos como os motores da conquista espanhola da América.Demonstrava Cervo, bem a seu estilo de boa pesquisa empírica, que asdeterminações materiais, individuais e coletivas, agiam na origem daexpansão européia, mas não eram variáveis explicativas únicas doprocesso.

Insurgia-se o jovem historiador contra os velhos manuais econtra o marxismo vulgar que já se espraiava pela historiografia brasileiranos anos 60 e 70. Buscava Cervo, seguindo as linhas de Pierre Renouvin,pai da historiografia francesa das relações internacionais, o multifatorial,as múltiplas causas e o jogo das forças diversas que atuavam na base dofenômeno internacional. Fugia das prisões das determinações unilateraispara a explicação histórica. Nesse sentido, beneficiava-se da evoluçãodos estudos das relações internacionais da França e do peso da Écoledes Annales sobre a primeira geração de historiadores das relaçõesinternacionais franceses.

Defendia Cervo, precocemente, a idéia de um “contato entrecivilizações” da Europa e da América, em detrimento de uma merahistória de dominação colonial da metrópole sobre a colônia. Ganhavaforça em sua explicação a cultura, a mentalidade, a evolução técnica.Passava a lidar o brasileiro com as categorias que marcavam oaprendizado da História das Relações Internacionais na França, emespecial o esquema analítico dual de articulação de um sistema decausalidade com um outro, de finalidades, que operaria na base domovimento e da onda vital nas relações internacionais. Essa dualidadeficara explícita tanto na obra clássica organizada por Renouvin quantono texto primoroso do seu discípulo Jean-Baptiste Duroselle.4

Cervo bebeu, com ninguém jamais havia bebido no Brasil,das águas cristalinas da historiografia francesa das relações internacionais.Seria, assim, pioneiro, na disseminação dessa tradição, nas universidadesbrasileiras.

4 Renouvin, Pierre (org.). Histoire des relations internationales. Paris: Hachette, 1994. Duroselle,Jean-Baptiste. Tout empire périra. Une vision théorique des relations internationales. Paris:Publications de la Sorbonne, 1981.

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Criava-se, em 1976, o mestrado em História na Universidadede Brasília, com uma de suas áreas de atuação voltada para o estudo dapolítica exterior do Brasil. No mesmo contexto, instaurava-se no Brasilo primeiro experimento de estudos acadêmicos de relaçõesinternacionais fora da chancelaria: a licenciatura em RelaçõesInternacionais. Eram duas iniciativas que lançariam a Universidade deBrasília à condição de pioneira na implantação, desenvolvimento econsolidação dos estudos internacionais no Brasil.

Depois de um justo interregno em terras gaúchas entre os anos70 e 76, no qual atuou na Universidade de Passo Fundo, Cervo aceitouo convite formulado pelo primeiro coordenador do nascente programade pós-graduação da Universidade de Brasília, Corcino Medeiros dosSantos, para vir atuar no programa infante. Sem hesitação, no mês deagosto daquele ano, estava Cervo ocupando, em regime de dedicaçãoexclusiva, o magistério na instituição que o abriga até hoje. Docasamento entre a oportunidade e o interesse, entre as possibilidadesabertas por uma área nova de conhecimento no Brasil e a experiênciaacadêmica européia acumulada por Cervo, deu-se o nascimento datradição brasileira dos estudos de História das Relações Internacionais.

A idéia anterior não inibe a hipótese de que tenham existidohistoriadores que, por caminhos distintos, tenham-se destacadoindividualmente ou em outras instituições brasileiras, no sentido dodesenvolvimento do estudo da História das Relações Internacionais.Daquela geração emergem nomes como os de Gerson Moura, MonizBandeira ou Ricardo Seitenfus, mas nenhum deles criou grupo depesquisa, de base institucional sólida localizada em um grande centrode pesquisa nacional, a desenvolver o campo da História das RelaçõesInternacionais em novas bases epistemológicas.

Cervo, ao contrário, encontrou ambiente favorável e mostroucapacidade de operar a brecha criada em Brasília. Ao iniciar suasatividades didáticas na Universidade de Brasília, uma constatação préviacondicionaria seu trabalho: a existência de rica e abundante literatura

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sobre a história diplomática do Brasil e a inexistência, ao mesmo tempo,de qualquer síntese atualizada sobre o assunto. Seu primeiro gesto foio de formar equipe, bem ao estilo que perpassa sua forma de trabalhar,no sentido de empreender uma nova versão da história da políticaexterior do Brasil (agora não mais uma história diplomática) queprescrutasse o significado histórico do setor externo para o processode desenvolvimento nacional, à luz das categorias conceituais emetodológicas que presidiam à pesquisa em história das relaçõesinternacionais.

No entender de Cervo, nova síntese se fazia necessária, sob ocontrole dos novos métodos e da definitiva superação da velha históriadiplomática do Brasil. Havia também uma razão de ordem prática,associada ao fato de que os formadores de opinião e os formuladoresde política externa no Brasil dispunham apenas de manuais arcaicos,escritos nos anos 50, ao estilo tratadístico e jurisdicista então em voga.Preocupava a Cervo a inexistência de textos que também pudessemser compulsados pelo grande público. Daí a política de pesquisaerudita, nos arquivos diplomáticos, parlamentares e jornalísticos,complementados por fontes econômicas e culturais, que levaram àprodução de duas obras essenciais.

A primeira obra resultante dessas preocupações, extremamenteinovadora, é O parlamento brasileiro e as relações exteriores (1826-1889),5

que envolveu a participação de uma série de pesquisadores jovens, atémesmo daqueles que cursavam graduação e pós-graduação nosdepartamentos de História e de Relações Internacionais, no levantamentodas fontes parlamentares. A publicação do livro foi essencial ao lançamentode um primeiro produto acadêmico maduro do programa de pós-graduação em História das Relações Internacionais da Universidade deBrasília, ao reforçar uma linha menos diplomática e mais societária naabordagem dos fenômenos internacionais no tempo. Isso inspirou umasérie de dissertações de mestrado que seriam produzidas, sob a orientação

5 Cervo, Amado. O Parlamento brasileiro e as relações exteriores (1826-1889). Brasília: Editorada Universidade de Brasília, 1981.

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de Cervo, ao final da década de 1970, ao longo dos anos 80 e iníciosda década passada.6

Logo na introdução de O parlamento, Cervo dizia a que vinhae dava o próprio sentido da sua obra ao longo das décadas seguintes:

Há que se considerar problemas de ordem metodológica.A escassez de elementos teóricos, junto à História e à CiênciaPolítica, com que fundamentar a interpretação, força-nos aproceder de modo mais empírico, no ordenamento dos dados.Perde-se em unificação do conhecimento, mas ganha-se talvezem objetividade, na medida em que se afasta o risco de conclusõesinfundadas e apressadas. Evitar-se-á, por outro lado, a reconstruçãofatual da História das Relações Exteriores do Brasil, embora sejaela tanto indutora como tributária das teorias desenvolvidas noParlamento e, por essa razão, indispensável à compreensão dasmesmas.7

A segunda obra resultante desse esforço apenas seria lançadauma década depois, após um intenso trabalho em parceria com oprofessor paulista Clodoaldo Bueno, envolvendo uma extraordináriaequipe de colegas e estudantes do programa de pós-graduação emHistória das Relações Internacionais da Universidade de Brasília. Depoisde um texto de bolso publicado em 1986, também em parceria comClodoaldo Bueno,8 era lançado em 1992 o manual até hoje essencialao estudo da evolução política externa brasileira: História da política

6 Ver, por exemplo, as dissertações de mestrado em História das Relações Internacionais daUnB, orientadas por Cervo e defendidas naquela década, com aprovação. São a saber, as deMaria de Fátima Piazza (1978), Isa Miriam Bitencourt de Almeida Poupard (1979), JoséRubens Acevedo (1981), Laura Lúcia da Costa Braga (1983), Elizabeth Guerra de Paula(1984), Marilene de Lourdes Pafume (1985), Fábio Lafaiete Dantas (1986), Cristina AngelaRetta Sivolella (1986), Carmen Lícia Palazzo de Almeida (1986), Tomás de Aquino SilveiraBoaventura (1986), Élida Maria Loureiro Lino (1987), Manoel Martins Pereira (1988),Antonio José Barbosa (1989), Rubens Camara de Carvalho Filho (1990), Francisco HeitorLeão da Rocha (1990).7 Cervo, Amado Luiz. O parlamento ..., op. cit., introdução.8 Cervo, Amado Luiz & Bueno, Clodoaldo. A política externa brasileira (1982-1985). SãoPaulo: Ática, 1986.

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exterior do Brasil,9 em 432 páginas, com reedição ampliada e atualizada,lançada em 2002.10

É a História da política exterior do Brasil que lança, definitivamente,Amado Cervo no coração da historiografia brasileira, ao ter ele encerradoa hegemonia dos velhos manuais, como os de Pandiá Calógeras, Delgadode Carvalho e Hélio Viana, que haviam cumprido missão histórica,mas cujo ciclo já estava saturado diante das inovações metodológicasprovocadas pela irrupção da moderna História das Relações Internacionais.

Cinco paradigmas históricos foram identificados na Históriada política exterior do Brasil, correspondendo cada um deles à umaperiodização, com a qual se procurou inserir a conjuntura nas estruturashistóricas e articular micro e macroistória para se obter uma interpretaçãocategorial e sistemática da evolução da política exterior do Brasil nosdois últimos séculos. Assim foram apresentados por Cervo e Bueno:(a) o das concessões sem barganha da época da independência(1808-1828), pelo qual se sacrificou o interesse nacional sob múltiplosaspectos, com efeitos nefastos sobre a formação nacional até meadosda década de 1840; (b) o da leitura complexa do interesse nacional,aliado à determinação de preservar o exercício soberano da vontadenacional (1844-1889); (c) a diplomacia da agroexportação e dos grandesalinhamentos com que a República, que subordinaria o serviço dadiplomacia aos interesses do segmento interno socialmente hegemônico,particularmente plantadores e exportadores de café (1889-1930); (d) omodelo de política exterior do nacional-desenvolvimentismo queacoplou, finalmente, a face externa da política às demandas do modernodesenvolvimento, dos anos 30 à década de 1980; (e) a dança dos trêsparadigmas disponíveis simultaneamente, no tempo mais recente dapolítica externa do Brasil (os anos 90 e o início do novo século): o dasobrevivência limitada do nacional-desenvolvimentismo, o da expansãodo liberalismo desenfreado e do Estado logístico, que equilibra os doisanteriores.

Para Cervo, há uma constatação que perpassa o tempo e que éoriginal à inserção internacional do Brasil. O Brasil teria atuado, no

9 Idem, História da política exterior do Brasil. São Paulo: Ática, 1992.10 Idem, História da política exterior do Brasil. Brasília: IBRI-Editora da UnB, 2002.

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sistema internacional dos últimos dois séculos, como um astro flutuante.Ao atuar como uma potência média, não pode ser como as grandes oupequenas potências e, portanto, não quis ser aliado necessário deninguém. Por haver renunciado, ainda no século XIX, ao exercício dapotência com o fim de atingir resultados externos, recusou-se a atuarde forma dura no sistema internacional para implementar uma políticaexterior de baixo perfil. Acoplou, enfim, o movimento de suadiplomacia às demandas econômicas, de segmentos sociais hegemônicosaté a Revolução de 1930, do desenvolvimento nacional desde então.

A noção de que a política exterior do Brasil foi, antes de tudo,a expressão de uma economia política, é cara ao argumento de Cervo.O curioso seria sempre, para ele, o desvendar do caráter funcional dapolítica exterior, tendo em vista responder a uma pergunta fundamental.De que maneira e em que intensidade a política exterior brasileira serviude elemento propulsor ou de elemento de obstrução ao modernoprocesso de desenvolvimento nacional? A coerência do tempo e ainteligibilidade orgânica do processo apenas seriam alcançadas se aresposta anterior pudesse ser respondida.

A articulação entre a política exterior e o desenvolvimento é agrande equação intelectual, para não dizer o achado, do trabalho deinvestigação intelectual de Cervo acerca da política exterior do Brasildos anos 30 a nossos dias. Essa discussão está presente em sua atividadedidática, na orientação de dissertações de mestrado e de teses dedoutorado, na participação em inúmeros eventos nacionais einternacionais e, de forma explícita, na profícua produção científica.

Em especial, nos livros que se sucederam à sua História dapolítica exterior do Brasil, há um continuum estruturalizante a fundamentara argumento: a dimensão funcional alcançada pela diplomacia brasileirano modelo do nacional-desenvolvimentismo. Chegava o empírico àabstração devida, à teoria enriquecida pelos exemplos e contra-exemplos.As relações históricas entre o Brasil e a Itália; o papel da diplomacia,11

publicado quase que concomitante à História da política exterior do

11 Cervo, Amado Luiz. As relações históricas entre o Brasil e a Itália; o papel da diplomacia.Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1992.

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Brasil é nítido exemplo desse vínculo estreito entre o caso estudado e oarquétipo do nacional-desenvolvimentismo. No caso das relaçõesBrasil-Itália, testou-se a hipótese fundamental das diplomacias, paraesclarecer seu papel, aprofundando o caso do relacionamento entredois Estados e nações que partiram de uma situação similar em termosde inserção internacional e de estágio de evolução das forças produtivasinternas, no final do século XIX, e apresentaram, não obstante, ritmosvariados de desenvolvimento posterior.

A obra subseqüente, desta vez organizada em torno do grupode professores do programa de pós-graduação em História das RelaçõesInternacionais da Universidade de Brasília, foi essencial para afirmar aliderança brasiliense no desenvolvimento dos estudos internacionaisno país. Convocou Cervo seus colegas Clodoaldo Bueno, MonizBandeira, León Bieber, José Flávio Sombra Saraiva e Antonio JoséBarbosa. O livro coletivo que desse encontro se desdobra, O desafiointernacional: a política exterior do Brasil de 1930 a nossos dias,12 é umdos livros da área mais vendidos até hoje pela Editora da Universidadede Brasília. De utilidade didática notória, por conter capítulos atratar da inserção internacional do Brasil em diferentes espaçosgeográficos – como as Américas (escrito por Moniz Bandeira), a Europa(por Bieber), a África (por José Flávio Saraiva) e a Ásia (por AntonioBarbosa) –, além de dois belos capítulos sobre o balanço das relaçõesinternacionais do Brasil (escrito por Cervo) e outro sobre as relaçõesmultilaterais do Brasil (escrito por Clodoaldo Bueno), o texto abrigao experimento intelectual que Amado Cervo mais aprecia em suatrajetória intelectual: o trabalho em grupo.

O desafio internacional foi a prova de fogo da divulgação dotrabalho do grupo de Brasília de História das Relações Internacionais.Obra de grande alcance intelectual perante a opinião pública, e nãoapenas entre os historiadores das relações internacionais, mas,igualmente, na comunidade de especialistas em relações internacionaisem geral, a incluir cientistas políticos, sociólogos e economistas,

12 Cervo, Amado Luiz (org.). O desafio internacional: a política exterior do Brasil de 1930 anossos dias. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1994.

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O desafio serviu para amadurecer o grupo e mostrar que algo originalse passava na Universidade de Brasília e chamar a atenção da própriadiplomacia.

Esses passos firmes, no início da década de 1990, permitiram aconsecução de um dos projetos mais arrojados do grupo de historiadoresbrasilienses das relações internacionais. Após o falecimento de Cleantode Paiva Leite, diretor-geral do Instituto Brasileiro de RelaçõesInternacionais (IBRI) e editor da Revista Brasileira de PolíticaInternacional (RBPI), parecia órfã a mais antiga instituição brasileiraque, no seio da sociedade civil, semeava o debate das relaçõesinternacionais e da política exterior do Brasil. Emergia a hipótese detransferência, seguindo as tradições da República, do IBRI do Rio deJaneiro para a capital da República.

A aceitação, por parte de Cervo, da condição de editor daRevista Brasileira de Política Internacional, a partir de 1993, foi passoessencial para a instalação do IBRI em Brasília, no campus daUniversidade de Brasília. Ganhava o Brasil um editor moderno para omais tradicional veículo científico dedicado à reflexão sobre temas dasrelações internacionais contemporâneas e sobre a inserção internacionaldo Brasil. A partir daquele momento, agregada à experiência iniciadaem 1958, remodelava-se o estilo da revista, mantendo-a, no entanto,no seu sentido original de ser uma revista de matriz brasileira. Alinhadaao padrão de estrangeiras como a Foreign Affairs, InternationalOrganization, World Policics e International Affairs, a RBPI alcançou,sob a batuta de Amado Cervo, a necessária correção de rumos.

Alguns outros livros e dezenas de artigos foram posteriormenteescritos por Cervo, no campo das relações bilaterais – como aquelededicado a passar em revista as relações modernas com Portugal13 oucom a Alemanha14 – ou no campo das sínteses gerais sobre períodoshistóricos das relações internacionais – como nos dois volumes

13 Cervo, Amado & Magalhães, José Calvet de. Depois da caravelas: as relações entre Portugale Brasil, 1808-2000. Brasília: IBRI-Editora da UnB, 2000.14 Cervo, Amado. Relações Brasil-Alemanha: cenários possíveis. In: Bandeira, Moniz. Brasile Alemanha; a construção do futuro. Brasília: Funag-IPRI, 1995.

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organizados recentemente por este que escreve.15 Em RelaçõesInternacionais: dois séculos de história, Cervo abrilhanta a obra em váriasde suas incursões no tempo longo das relações internacionais e estabelece,bem ao seu estilo, um padrão de síntese das grandes correntes e processosinternacionais, com grande utilidade didática. Dialoga também, pelaprimeira vez, mas de forma decisiva, com a escola britânica das relaçõesinternacionais. Seu encontro com Adam Watson, um dos mais frutíferosda escola inglesa, o levaria a escrever um capítulo essencial sobre asrelações internacionais do século XIX. Demonstra a aproximação aosesquemas interpretativos de Watson claramente na discussão acerca dosistema internacional europeu de Vestfália (1648) a Viena (1815):

O crescimento da associação anti-hegemônica, no períodopós-renascentista, fez aflorar a idéia e estimulou a busca dabalança do poder entre os europeus. Desde então, a história dabalança do poder mostra que ele oscila entre os dois extremos deum espectro, no qual as relações internacionais deslocam-se dopredomínio hegemônico ao das múltiplas independências,passando por situações quase inumeráveis, como se fossem osmovimentos de um pêndulo que busca, no ponto de equilíbrio,seu ideal, segundo a imagem de Watson.16

O diálogo com os ingleses dedicados à história das relaçõesinternacionais, pouco tributário da discussão presidida pela tradiçãorenouviniana e que se espraiara pela Europa, abriu outras possibilidadesna área para Cervo. Aproximou-se de colegas da ilha, como DonaldWatt ou cientistas políticos como Andrew Hurrell. A influência daslições de Renouvin, Duroselle, bem como daquela resultante dacooperação com René Girault, Robert Frank, Charles Zorgbibe ouDenis Rolland, seus colegas franceses, foram agora ampliadas com oolhar sobre a produção historiográfica britânica na área.

15 Saraiva, José Flávio Sombra. (org.) Relações Internacionais: dois séculos de história. Entre apreponderância européia e a emergência americano-soviética (1815-1947). V.I. Entre a ordembipolar e o policentrismo (de 1947 a nossos dias). V.II. Brasília: IBRI, 2001.16 Cervo, Amado. Hegemonia coletiva e equilíbrio: a construção do mundo liberal (1815-1871). In: Saraiva, José Flávio. (org.) op. cit., vol II, p.61.

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Finalmente, ainda no âmbito de afirmação do campo dahistória das relações internacionais no Brasil deve ser lembrado seuesforço institucional para divulgar no país o trabalho da Comissão deHistória das Relações Internacionais, parte do Comitê Internacionalde Ciências Históricas. Disciplinado como é, vocacionado ao trabalhode grupo, Cervo prestou elevados serviços à institucionalização docampo internacionalista do Brasil graças a esse excelente trabalho deaproximação dos pesquisadores brasileiros ao mais importante grupoorganizado de historiadores das relações internacionais do mundo. Cercade cinco centenas de profissionais, ao se reunirem a cada cinco anos emvárias partes do mundo, discutem os resultados de suas pesquisas, osproblemas do método, os novos caminhos do conhecimento na área.

Coroando tão intensa militância acadêmica na Comissão deHistória das Relações Internacionais, Cervo foi convidado a fazer partedo Bureau da referida comissão. Função relevante, ainda mais levandoem conta que foi o primeiro latino-americano a alcançar essa posição,sua presença nesse lugar estratégico em muito ajudou a fazer ver aoseuropeus o quanto havia de pesquisa nessa área no Brasil. Convênios earticulações de redes científicas foram desenhadas e levadas a cabo,especialmente do grupo de Brasília com seus colegas franceses, ingleses,canadenses, norte-americanos, italianos e suíços, que serviram parasedimentar a excelência e grau de referência a que a área alcançou noBrasil.

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Há uma área em torno da qual a ação de Amado Cervo foi amais original e decisiva para mudar a inércia do desconhecimento.Mesmo com os protocolos de aproximação cultural e educacionalassinados nos primeiros anos de funcionamento do Mercosul, o Brasile grande parte de seus vizinhos estiveram verdadeiramente alheios aoque se passava mutuamente na área da investigação no campo da históriadas relações internacionais. Cervo está diretamente vinculado à rupturadessa situação quase constrangedora, inclusive nos contatos com osgrupos de pesquisadores da área nos outros continentes.

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O gesto de aproximação se fez no contexto das reuniões daComissão de História das Relações Internacionais, no final dos anos80 e início da década de 1990, a partir de sua participação do Bureau.Conheceu o colega argentino Mario Rapoport, com quem iriaentabular, rompendo as imagens das fronteiras gaúchas de desconfiançaem relação ao outro lado da fronteira, uma parceria que marca a grandeinflexão feita por Cervo na direção do ângulo austral da América doSul, e por essa via, seu encontro mesmo com a América Latina.

Dois movimentos foram marcantes na aproximação argentino-brasileira. O primeiro foi a organização, pela primeira vez em sololatino-americano, de um grande congresso da Comissão de Históriadas Relações Internacionais. Isso se daria em Brasília, sob os auspíciosda Universidade de Brasília, em fins de agosto de 94. Reuniam-se, pelaprimeira vez, quase sessenta estudiosos, especialmente professores epesquisadores argentinos. Foi um marco nas relações intelectuais naárea. Chamou a atenção de pesquisadores e estudiosos europeus, comRené Girault, então presidente da Comissão de História das RelaçõesInternacionais, o grau de maturidade e desenvolvimento próprio queo campo tinha alcançado na região, ainda que sem contatos estreitosentre os pesquisadores brasileiros e argentinos.

Cervo, organizador do evento, ao lado de seu colega WolfgangDöpcke, preocupou-se imediatamente com o destino dos textos, tãoricos, apresentados naquela reunião. Publicaram-se, em tempobrevíssimo, os anais do congresso.17 No mesmo ano, em Buenos Aires,Rapoport retribuía a iniciativa de Cervo organizando na Universidadede Buenos Aires, com seu grupo de historiadores das relaçõesinternacionais, evento para discutir política exterior do Brasil e daArgentina, de forma comparada. Lá esteve Cervo, como uma grandedelegação brasileira. Publicaram-se os anais imediatamente.18

17 Cervo, Amado & Döpcke, Wolfgang. Relações internacionais dos países americanos; vertentesda história. Brasília: Linha Gráfica, 1994.18 Cervo, Amado. Políticas exteriores: hacia una política común. In: Rapoport, Mario.Argentina y Brasil en el Mercosur: políticas comunes e alianzas regionales. Buenos Aires: EditorialLatinoamericano, 1994, p. 21-28.

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Esses dois movimentos foram essenciais para o grau deaproximação que viria se construir ao longo dos anos seguintes entreargentinos e brasileiros nessa matéria. Idas e vindas de colegas, a envolveroutros centros em cada um dos países, foram essenciais ao descortinarde uma nova base de conhecimento comum. Emergia um grupo, senãouma escola no sentido mais amplo, argentino-brasileira de história dasrelações internacionais. Ela tem características muito próprias que adistinguem das tradições européias e norte-americanas na área. Nessesentido, em muito valeu a tradução crítica dos ensinamentos das escolaseuropéias. Esse olhar próprio é o que garante que aqui se tenha feito,com a grande colaboração de Cervo, algo novo, registrado nos manuaisda área:

A leitura dos livros e das contribuições dos eventos conjuntosreleva o surgimento de um ângulo de estudo próprio, bem comoa identificação de problemas e desenvolvimentos particulares àregião. Observam-se, com efeito, procedimentos e temas comuns,tais como a superação da velha história diplomática, construídade dentro das nacionalidades, o distanciamento do estudo deconflitos como o centro historiográfico, a ênfase nas possibilidadese na prática da cooperação, a busca de identidades que unammais do que as singularidades que afastem, a preocupação, enfim,de substituir os velhos dogmas da teoria da dependência pelaidentificação das oportunidades concretas de desenvolvimento.19

Foi esse ambiente cooperativo, que cedeu lugar às recalcitrânciasdo passado e ao desconhecimento mútuo, o gerador da idéia deconstrução de uma história do Mercosul, a enfatizar não apenas o temporecente, mas a longa duração. Escrita por argentinos e brasileiros, aHistória do Cone Sul 20 é o primeiro esforço, organizado por Cervo eRapoport, no sentido de desnacionalizar as histórias nacionais e asrelações internacionais. O resultado desse esforço chega ao presente,

19 Saraiva, José Flávio S. História das Relações Internacionais: o objeto de estudo e aevolução do conhecimento. In: Saraiva, J. Flávio. (org.) op. cit., v. I, p. 55.20 Cervo, Amado & Rapoport, Mario (organizadores). História do Cone Sul. Brasília/Rio deJaneiro: Editora da UnB/Revan, 1998.

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onde professores argentinos encontram abrigo no programa de pós-graduação em Relações Internacionais da Universidade de Brasília, agoraimbricado entre as duas tradições que marcavam o estudo da área naUnB: o histórico e o politológico. Essa ponte foi também amplamenteestimulada pela liderança intelectual de Cervo.

Dados os passos fundamentais na direção da articulaçãoargentino-brasileira, debruça-se Cervo sobre o entorno maior, a AméricaLatina. Preocupado com a difícil inserção internacional da região aostempos da globalização, e assustado com o retrocesso ocorrido emvárias das partes antes promissoras da América Latina, Cervo não seconteve. Em seu último livro, Relações Internacionais da América Latina,publicado no âmbito da Coleção Relações Internacionais, editada peloIBRI, não resiste ao silêncio que se abateu por essas paragens. Encerre-se este artigo com suas próprias palavras:

Além de rever o processo de desenvolvimento auto-sustentado posto em marcha desde os anos 30, os liberais dofim do século exibiram uma desmedida segurança em suaestratégia, chamando com desprezo de saudosistas aqueles queporventura discordassem de suas idéias. De um ponto de vistahistórico, contudo, foram os dirigentes do fim do século XXque reproduziram na América Latina o paradigma liberal-conservador do século XIX. Quando o capitalismo exigiu daperiferia, durante a primeira metade do século XIX, a políticade portas abertas, fê-lo para escoar excedentes industriais, capitaise serviços. Quando impôs a mesma política de portas abertas,ao final do século XX, fê-lo para escoar excedentes de capitais,tecnologias, produtos e empresas.21

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O discurso final do mestre pareceria puramente político, a traira imagem inicial, aqui defendida, da “ciência como vocação”. Aocontrário, insistiria este autor: não fora a base de sustentação empírica

21 Cervo, Amado. Relações Internacionais da América Latina. Brasília: IBRI, 2001.

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sólida, o método rigoroso de apuração dos dados, a interpretação aberta,a percepção aguçada da força do tempo, o sentido da nação, a experiênciaacumulada na comparação dos processos históricos das relaçõesinternacionais, Cervo não chegaria onde chegou, nem seus textos seriamlidos com o interesse que eles despertam. É ciência social de qualidadee em permanente renovação.

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Mario Rapoport*

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El mundo llegó al siglo XXI sin tener en claro los escenariosque se le presentan. Nos hallamos, en todo caso, lejos del futuro optimistade principios del siglo XX. En ese momento, se estaba produciendo unaformidable revolución tecnológica y sus contemporáneos se encontrabanmuy confiados respecto a los resultados positivos que la misma traería.El desplazamiento esperanzado de poblaciones enteras del viejocontinente a nuevos espacios económicos, como la Argentina, era unsigno de las posibilidades abiertas por los cambios tecnológicos y del“ilimitado” progreso económico que, se creía, resultaría de ellos.

La situación no es igual actualmente. Frente a los que muchosdenominan una “tercera revolución económica”, esta vez basada no enel sector industrial sino en las comunicaciones y los servicios, lasexpectativas de nuestros contemporáneos son mucho más pesimistas.Esto resulta paradójico, porque con el fin de la “Guerra Fría” lasperspectivas bélicas (y de un holocausto nuclear) parecen haberse alejadodefinitivamente mientras que el retorno de las formas democráticas degobierno en una porción significativa del mundo periférico deberíaproveer motivos de ilusión en un mundo mejor.

Sin embargo, las señales negativas son numerosas y, paramuchos, más importantes que los signos positivos: desocupación,pobreza y desigualdades crecientes; desequilibrios ecológicos;mercantilización de las relaciones humanas, corrupción y ausencia de

* Director del Instituto de Investigaciones de Historia Económica y Social y ProfesorTitular de la Universidad de Buenos Aires. Investigador Principal del Consejo Nacional deInvestigaciones Científicas y Técnicas.

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contenidos éticos; difusión del narcotráfico, del “lavado” de dinero yde la criminalidad financiera internacional; identidades culturalesamenazadas de desaparición etc., forman parte de la realidad cotidianade la población del planeta.

En este sentido, la actual situación económica mundial hamostrado los límites de un proceso de globalización económica quefavorece a sectores limitados de la población mundial y pone en cuestiónlas condiciones mismas de sustentabilidad del sistema. Los paradigmaseconómicos priman sobre los políticos dentro de un panoramainquietante: el sector financiero está cada vez mas desvinculado de laeconomía real, hay un divorcio creciente entre la producción y elconsumo y no existen mecanismos reguladores ni estatales nisupraestatales que permitan ordenar el caos de un sistema de valoresque pone en peligro la democracia misma.

Pero es necesario, primero, realizar algunas precisiones respectoa la evolución histórica porque, para muchos autores, toda la historiadel capitalismo, desde el siglo XV, es una sucesión de procesosglobalizadores que aceleran el crecimiento económico e integran laeconomía mundial. Para Ferrer, por ejemplo, los dos elementos quecaracterizan esos procesos son el aumento de la productividad del trabajoy la existencia de un verdadero orden económico mundial, lo quecomienza a producirse desde fines de aquel siglo.1 Por otra parte, laprimera revolución industrial de fines del siglo XVIII y la segundarevolución industrial, un siglo más tarde, dan lugar a nuevos procesosde globalización y cambios tecnológicos, tan sorprendentes quizás parasus contemporáneos, como el que estamos viviendo actualmente.

Paradójicamente, sin embargo, desmintiendo a aquellos quedan por seguro que el mercado financiero global actual es un hechoadquirido que representa una etapa radicalmente diferente e innovadoraen la historia del capitalismo, publicaciones de ideología liberal comoThe Economist, advierten que aún falta mucho para la constitución deese mercado. Por el contrario, en un mundo con perfecta movilidad

1 Ferrer, Aldo. Historia de la globalización. Orígenes del orden económico mundial. BuenosAires: 1997, p. 12.

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de capitales debería haber escasa relación entre el ahorro y la inversiónnacionales y este lazo se ha debilitado muy poco en los paísesindustrializados; la mayor parte de la inversión interna es financiadacon ahorros domésticos. Incluso en las economías emergentes en suconjunto, sólo el 10% de la inversión doméstica es financiadaexternamente. Pero, lo más notable, es que a fines del siglo pasado yprincipios de éste, la situación no fue así: los índices de movilidad decapital en función de estas variables eran muy superiores; al menos tresveces más que actualmente. De igual modo, mientras que para lospaíses ricos la proporción de la inversión extranjera directa sobre lainversión interna es hoy de cerca del 6%, a principios de siglo loscapitalistas británicos invertían en el exterior casi tanto como en supropio país.2 Por otra parte, el vigor relativo de la economíanorteamericana en los últimos años se ha basado en el hecho de que elcomercio exterior de ese país no representa más que el 12% de su PBIy en el que el rol clave de la moneda norteamericana le asegura elfinanciamiento externo a través de su propia emisión monetaria.

Es, en principio, el consumidor norteamericano el que hasostenido el reciente proceso de crecimiento, no como ocurre en paísescomo el nuestro. En la Europa del «euro» pasa los mismo: el 90% delos ingresos de los europeos provienen de sus propios gastos. La mismarevista The Economist señalaba alarmada que, aunque los mercadostienden a ser cada vez más globales, en los Estados industrializados losgastos públicos han aumentado notablemente en los últimos años. Unanálisis histórico muestra que esos gastos, con relación al PBI, se hanincrementado en promedio para el conjunto de esos países del 27.9%en 1960 al 42.6% en 1980 y al 45.9% en 1996. Estados Unidos yGran Bretaña, paradigmas de las nuevas políticas económicas, no hanvisto disminuir significativamente sus gastos públicos en los últimos20 años.3

La conclusión para los neoliberales frente a estos hechos erahasta hace poco obvia, porque con las repetidas crisis económicas

2 The Economist, 18.10.1997.3 The Economist, 20.9.1997.

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internacionales se ha ido revirtiendo: las dificultades que puedenobstaculizar la marcha del proceso de globalización no se resuelven,según ellos, estableciendo controles cuya existencia termine erosionandola confianza del inversor, sino, por el contrario, propiciando una mayorintegración financiera y asegurando mercados más abiertos que superenlas opciones nacionales. Por supuesto, los riesgos son mucho másimportantes para países con mercados financieros pequeños yrelativamente poco sofisticados, como lo han puesto de manifiestocon crudeza el hecho de que las crisis comiencen en la periferia delsistema y no en el centro, como en 1930.

Por otra parte, desde el punto de vista del comercio internacionallos datos tampoco concuerdan con la idea de un triunfo absoluto dellibre comercio y de un avance cada vez más irrestricto del multilateralismocomercial. Esta afirmación se apoya en el crecimiento del comerciomundial a lo largo de las últimas décadas sostenido por el incrementode la liquidez internacional, la apertura de las economías periféricas y,como culminación de ese proceso, la definitiva unificación del mercadomundial con la caída de la ex-URSS y la disolución del bloque delEste, lo que habría dado por resultado una “república universal de losintercambios”.4

Pero, hasta los más firmes partidarios del liberalismo comercialno vacilan en reconocer que el grado de proteccionismo, regulación ybarreras al comercio mundial que existe en la actualidad, tanto a nivelestatal como regional, es igual o superior al que prevalecía en laeconomía occidental en las décadas de 1950 y 1960.5 Aunque las tarifashayan bajado, los subsidios agrícolas de los países desarrolladosaumentaron en los últimos años y se acercan a los 400 mil millones dedólares, el 40% de su facturación agrícola, ocasionando una pérdidapara los países periféricos, según el último informe del Banco Mundial,de casi 20 mil millones de dólares. Además, para países como EE.UU.,que promueve el Alca, a los cuantiosos subsidios, que entre 1998 y el

4 Roche, Jean-Jacques. Ordre, puissance et démocratie après la guerre froide. Grenoble: 1996.p. 115.5 Oman, Charles. Globalization and Regionalization: the challenge for developing countries.OECD, París: 1994. p. 31 y ss.

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2001 pueden alcanzar los 30 mil millones de dólares, se agreganrestricciones cuantitativas, sanciones unilaterales, medidas fitosanitariaso de defensa del consumidor, etc. La regulación que se pretende a travésde organismos como la OMC no soluciona estos problemas y le agregaotros, como la propuesta de liberalizar los servicios, la cuestión de laspatentes y rubros en los que los países más desarrollados y las empresasmultinacionales tienen ventajas evidentes.

En segundo término, gran parte de los flujos comerciales sedebe a la intensificación del comercio intraregional en el interior de losbloques económicos existentes, de raíces más profundas que la solaglobalización (Unión Europea, Mercosur, Nafta, Asean y otros), másque en el comercio extraregional. Para decirlo en otro términos, losintercambios de “proximidad” estimulados por los procesos deintegración regional, tienen mucho mayor peso que los intercambios“a la gran aventura”, para retomar la terminología de Fernand Braudel.6

Por ejemplo, el comercio de los países de la Unión Europea con elresto del mundo no supera el 30% de su comercio total. Esto se vinculacon un mayor énfasis en los mercados internos ampliados como factorde estímulo de la producción, del comercio y de la atracción de capitalesexternos por encima del mercado mundial y se compatibiliza con latendencia de las llamadas “multinacionales globales” a invertir ycompetir en cada uno de los bloques regionales. A la vez, en el propiomercado mundial no se practica un comercio plenamente libre sino“administrado”, debido al predominio de esas grandes corporacionesen cuyo interior se desarrolla una parte importante del flujointernacional de mercancías. Se calcula que cerca de un 40% delcomercio mundial de bienes representa un intercambio entre filialesde empresas multinacionales.7

6 Cf. Anderson Kym y Norheim, Hege. History, geography and regional economic integration.In: K. Anderson y Backhurst R. (edit.) Regional Integration and the Global Trading System,Nova York: 1993. p. 19-51; De Bernis. Gerard. Globalization, Regionalisation et Developpement.Grenoble: 1995. p. 9-13.7 Cf. Gilpin, Robert. Global Political Economy. Undestanding the International EconomicOrder, Princeton: 2001, p. 289-300; Andreff, Wladimir. Les multinationales globales.París: 1996.

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A pesar de los hechos descriptos, desde los centros de poder seha ido afirmando un discurso globalizador que ha logrado, en el terrenoeconómico, la casi unanimidad de organismos internacionales ygobiernos y al que algunos le han dado un nombre que suena corrosivo:el “pensamiento único”. No por singular, sino porque frente a él todaslas interpretaciones alternativas (desde el mismo marxismo, que tambiéntuvo sus ímpetus hegemonizadores, hasta las distintas variantes delkeynesianismo y del “Estado de Bienestar”) parecen haberse fundidocomo la nieve.

En verdad, ya desde la crisis de los años 30, y como consecuenciasde sus efectos, no sólo económicos sino también geopolíticos, puesconducen de una forma u otra a la Segunda Guerra Mundial, comienzana madurar, planteadas aquí en forma muy sintética, dos líneas depensamiento económico que, desde una interpretación diferente de lacrisis, propondrán también soluciones distintas para asegurar lasupervivencia del sistema o para transformarlo por vías no autoritarias.

Keynes es el más influyente, y además el primero, que criticalos fundamentos de la economía neoclásica y propone construir loscimientos de un nuevo edificio teórico que no se basa, como señala ensu artículo “El fin del laissez-faire”, escrito en 1926, en los supuestosde que “los individuos poseen ... una ‘libertad natural’ en el ejerciciode sus actividades económicas” y de que el mundo está gobernado por“la providencia de forma de hacer coincidir siempre el interés particularcon el interés general”.8 De allí la importancia del papel del Estado, através de políticas activas, vía incremento de la demanda, para volver arestablecer los equilibrios perdidos en épocas de crisis y, especialmente,el pleno empleo, y retomar la senda de crecimiento.

Su Teoría General, publicada en 1936, constituye la culminaciónno sólo de otros estudios teóricos sino también de una serie de trabajossobre las políticas económicas vigentes en su época, tanto en el escenariomundial como en su país, Inglaterra, que habían comenzado con la

8 Cf. Keynes, John Maynard. Essays in Persuasion. Rupert Hart-Davis, 1931.

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crítica del sistema económico internacional de la primera posguerra ensus Consecuencias Económicas de la Paz, o la crítica de la vuelta a laconvertibilidad británica en sus Consecuencias Económicas de Mr.Churchill. Más tarde, en medio del fragor del último gran conflictobélico y basado en la nefasta experiencia del libre flujo de hot moneyque había desestabilizado las relaciones monetarias en los años 20 y30, Keynes también advertía que nada era más perjudicial que unacompleta liberalización de los movimientos de capitales especulativosy que si en la posguerra no se preveía ninguna traba esos fondos sedesplazarían “a la velocidad de una alfombra voladora”, pudiendo circularpor el mundo y desorganizar toda situación estable.9 Pero aunque eneste último sentido no fue escuchado, las ideas keynesianas serviríanpara fundamentar el “Estado de Bienestar” que predominó en la mayoríade los países industrializados en los 30 años “gloriosos” que siguieron ala Segunda Guerra Mundial.

Una segunda alternativa que va a plantearse, también comoconsecuencia del análisis crítico de los años del período entre guerras yde la gran depresión, es la del economista austríaco, Friedrich VonHayek. Tempranamente, en su libro Precio y Producción, Von Hayekcrítica las ideas expuestas por Keynes en su Tratado sobre la Moneda de1930. A diferencia de Keynes, Von Hayek es un liberal convencidoque no considera que las causas de la crisis se debieron a fallas en elfuncionamiento de las leyes del mercado y que, por el contrario, eladvenimiento del fascismo y del nazismo y de los socialismosautoritarios tiene su origen en la intervención del Estado. En 1944, ensu libro más importante, La ruta de la servidumbre, expondrá las tesisprincipales del liberalismo moderno, que luego son retomadas porotros economistas como Milton Friedman y sus colegas de Chicago.Para Von Hayek el socialismo y la libertad son incompatibles y el papeldel Estado en un sistema capitalista debe permanecer limitado. Paramantener una sociedad libre sólo la parte del derecho que consiste enreglas de «justa conducta» (es decir, esencialmente el derecho privado y

9 Keynes, J. M. “Post-War Currency Policy”, memorandum del Tesoro Británico, septiembrede 1941, citado en Donald, Moggridge, The Collected Writings of John Maynard Keynes.Cambridge: 1980.

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penal) debería ser obligatoria para los ciudadanos e impuesta a todos.Es la tesis ultraliberal, basada en la descentralización y la desregulacióntotal de la actividad económica, que entiende, incluso, que la libertadindividual no depende de la democracia política y que ser libre, es, porel contrario, no estar sujeto, salvo en el caso de los derechos señalados,a la injerencia del Estado. Von Hayek creará la “Société, du MontPélerin”, que reunirá a los principales pensadores liberales de la época yserá, en algún sentido, la antecesora de Davos.

Son las ideas de Von Hayek, matizadas, sin duda, por susdiscípulos, las que constituyen hoy la base del neoliberalismo, doctrinaque parece tener un dominio excluyente en el pensamiento económicomoderno. El propio Von Hayek, defensor a ultranza de la libertad,estaría preocupado, si viviera, por este «monopolio» del pensamiento,bien lejos de sus propias inquietudes filosóficas.

Las razones históricas que dieron lugar al predominio de estasideas son por todos conocidas. En primer lugar, la crisis del dólar, aprincipio de los años 70, que fue acompañada bien pronto por la crisisdel petróleo, significó en los países desarrollados el fin del boom de laposguerra, y la aparición de políticos como Reagan y Margaret Thatcher,que desregularizaron la economía de sus países y estabilizaron susmonedas. La crisis de la deuda de los años 80, creó, por otro lado,nuevas reglas de juego y de funcionamiento en los mercados financierosinternacionales. El cambio en las ideas, acompaña, en realidad, unanueva revolución tecnológica, que le sirve de sustentación: la revolucióninformática y de las comunicaciones. Si la primera revolución industrialreemplazó el músculo por la máquina, ahora se plantea el reemplazodel cerebro por la computadora, por lo menos para un númeroimportante de funciones. La revolución en las comunicacionesconstituye, a su vez, el segundo elemento clave para explicar el cambioen la economía y en las ideas económicas. Su principal característica, lainstantaneidad de la información, incorpora el “tiempo real” que haceposible la intensificación explosiva de los flujos económicos y financierosen todo el globo.

El escenario estaba preparado para la aparición, en revistasvinculadas al mundo de los negocios o de la administración, como la

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Harvard Business Review, o autores de esa disciplina, como el consultorjaponés Kenichi Ohmae, de la popularización del concepto deglobalización, que se extiende luego a economistas e historiadores, afin de explicar la conformación de mercados globales (financieros,productivos, comerciales y de servicios) y el advenimiento de un «mundosin fronteras». Francis Fukuyama, con su teoría del “fin de la historia”contribuye, por su parte, a restar historicidad al nuevo período, que nosería uno mas sino el último en la trayectoria del capitalismo pero no,por supuesto, en la acepción que le daba Marx como preludio delsocialismo.10

Pero el cambio en las ideas no pudo producirse sin la caída del“socialismo real”, que, como señala Krugman, no sólo ayudó a“desacreditar las políticas estadistas” en todo el mundo, sino también aasegurar a “los inversores que sus activos en los países en desarrollo noserían expropiados por los gobiernos de izquierda”. El nuevo punto devista que aparece, apoyado por una constelación de actores nacionalese internacionales, entre los que se destacan instituciones y redes delíderes de opinión vinculados al capital mundial (FMI, Banco Mundial,bancos de inversión, empresas multinacionales) fue conocido como el“Consenso de Washington”, término que acuñó el economista JohnWilliamson.11 Los diez puntos expresados a través de este “consensode ideas” que deberían presidir, a partir de allí, las políticas económicasde la economía global (y de las economías nacionales incluidas en ella)tienen como eje el control del gasto público y la disciplina fiscal, laliberalización del comercio y del sistema financiero, el fomento de lainversión extranjera, la privatización de las empresas públicas, y ladesregulación y reforma del Estado.

Los Estados deben limitarse a fijar el marco que permita ellibre juego de las fuerzas del mercado pues sólo éste puede repartir de

10 Para una visión crítica sobre el proceso de globalización y sus mitos ver, Mario Rapoport,La globalización económica: ideologías, realidad, historia. In: Ciclos en la historia, la economíay la sociedad, n° 12, ler. Semestre de 1997. Cf. también, P. O’Meara, H. D. Mehlinger y M.Krain (ed.). Globalization and the Challenges of a New Century. A Reader. Indiana: 2000, quereproduce 36 ensayos claves sobre la problemática de la globalización.11 Krugman, Paul. Dutch tulipes and emergents markets. In: Foreign Affairs, vol. 74, julio-agosto de 1995.

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la mejor manera posible los recursos productivos, las inversiones y eltrabajo. La economía de bienestar desaparece y el individuo vuelve aser así enteramente responsable de su propia suerte. El homo economicusresurge con toda su fuerza y la economía pasa a tener primacía sobre lopolítico. El nuevo orden económico tendrá, por supuesto, sus ganadoresy sus perdedores, resultante del tipo de vinculación de cada uno con elmercado y con los valores principales que lo regulan; la rentabilidad, ellibre cambio, la productividad, la competitividad y la flexibilidad deltrabajo. Numerosas instituciones, en diversos países, garantizan ladifusión de estas ideas. Organismos económicos internacionales, a travésde sus informes anuales o de sus asesores, o fundaciones de grandesempresas, que financian universidades y cátedras de economía yadministración, ayudan a conformar el nuevo credo.

El discurso dominante se desentiende de sus consecuencias. Eldesempleo, la desigualdad de ingresos, la pobreza y aún las diferenciasen la educación y el nivel de conocimientos; contrapartida de la fuerteacumulación de riquezas que se genera en el mas reducido polo de losganadores; no constituyen una carga social ni deben ser atemperadospor políticas del Estado sino en última instancia. Es el propio sistema,generando una supuesta igualdad de oportunidades a través delcrecimiento acelerado de la economías, el que brindará la solución alargo plazo mientras que, en lo inmediato, recae en la sociedad civil, através de la acción privada y de instituciones no gubernamentales dedistinto tipo, la responsabilidad de hacerse cargo de los excluidos delsistema.

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Sin embargo, nada nos garantiza realmente que esto ocurrirá.Por un lado, se reiteran las crisis en los mercados financieros (la de1987, la del «tequila» mexicano, la del sudeste asiático, la rusa, la deBrasil, la caída de las acciones de las empresas de la “nueva economía”,la amenaza que entraña la crisis argentina) mostrando una crecienteinestabilidad del sistema, que no termina de revertir para el conjuntode la economía mundial la fase recesiva del «ciclo largo» iniciada en losaños 70, y revelando la incapacidad del «pensamiento único» para ofrecer

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herramientas adecuadas a fin de superarla. Por el contrario, laglobalización financiera ha transformado la economía mundial en unaespecie de “casino”, donde un billón y medio de dólares circulandiariamente de un país a otro, en su mayor parte con fines especulativos,provocando alzas de los intereses reales y frenando el consumodoméstico y las inversiones productivas de las empresas. En verdad,estamos en el medio de una crisis mundial que, a diferencia de la de losaños 30, comenzó en la periferia, pero que, también, como lo muestrala crisis japonesa, la debilidad de la moneda europea y el comienzo dela recesión en los EE.UU., anterior al atentado a las torres gemelas quela ha agudizado, llegó ya a los países centrales.

En las naciones periféricas, en particular, los procesos deendeudamiento externo producidos como consecuencia de la aplicaciónde los principios del neoliberalismo y del proceso de globalizaciónfinanciera, han puesto a varios países, como a la Argentina, en situaciónde cesación de pagos. Ese endeudamiento está vinculado no sólo aformas innecesarias, corruptas o ilegítimas de financiamiento por partede los países deudores, sino, también, a la irresponsabilidad de losacreedores (que buscan ganancias fáciles en los países periféricos enmomentos de recesión o estancamiento en los países centrales y que engran medida están vinculados al manejo de capitales especulativos) y aformas usurarias que tornan imposible la devolución de intereses ydeudas. En esto juega un rol negativo la política de los organismosinternacionales, que aconsejan planes de ajuste para el pago de lasdeudas, incrementando el círculo vicioso endeudamiento-recesióninterna-nuevo endeudamiento.12

Por otro lado, la “sociedad global” profundiza la brecha entrelas «islas» de riqueza y de pobreza diseminadas en todo el mundo, y yano sólo por la división geográfica entre el «norte» rico y el «sur»empobrecido. Es un mundo en el cual, según información de lasNaciones Unidas, un puñado de multimillonarios tiene un nivel de

12 Sobre las causas del endeudamiento responsabilizando sobre todo a los acreedores, ver:Gélinas, Jacques B. Freedom From Debt. The Reappropriation of Development through FinancialSelf-reliance. Ottawa, 1998, p. 36-44. Cf. también, Rodrik, Dani. The New Global Economyand Developing Countries: Making Openness Work. Washington: 1999.

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ingresos similar a cerca de dos mil millones de habitantes. Entretanto,la economía productiva es dominada por los mercados financieros y lapolítica por la economía, mientras que la difusión ideológica de lasideas neoliberales a través de los medios de información aumenta suinfluencia en todos los aspectos de la vida económica, política, social ycultural.

Cada paso adelante en el proceso de globalización de laeconomía y la política mundiales tiene así sus ganadores y perdedores,sus vencedores y vencidos, pero también sus “rebeldes”. El maquinismofue la base de una de las fases de la globalización más violentas yarrasadoras: la primera revolución industrial. Miles de campesinosdesalojados de sus tierras, artesanos despojados de sus trabajos, familiasseparadas y destruidas. Pero el cambio no se aceptó con sumisión porparte de muchos de los que lo padecieron. Un tal Ned Ludd, un artesanodesocupado, encendió la chispa arruinando algunos telares y,contagiados por su ejemplo, muchedumbres de trabajadores manualesse dedicaron a destruir toda maquinaria textil que veían por delante.Su característica principal era que se abstenían de cualquier violenciacontra las personas, siendo apoyados por la opinión pública local. Contodo, el triunfo de la mecanización era inevitable y los “ludditas”desaparecieron en los recovecos de la historia, aunque el llamado Estadode Bienestar no surgió de la nada y aquellos desclasados forman partede una tradición de “rebeldes” que defendieron una calidad de vida yterminaron, a su modo, amortiguando los efectos más crueles de loscambios tecnológicos y productivos.13

Hoy tenemos un proceso de globalización y de transformacionestecnológicas igualmente arrasador, con vencedores, vencidos y “rebeldes”.Estos últimos, como los que manifestaron en Seattle, en diciembre de1999, contra la primera reunión de la OMC o los que lo hicieron enWashington, para expresar su descontento a los asambleístas del FMIy del Banco Mundial, o más recientemente en Davos, Quebec Niza oGénova, no piensan, sin embargo, en destruir computadoras ni en

13 Frieldlaender, H. E. y Oser, J. Historia económica de la Europa moderna. México: 1957,p. 200-201.

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nada parecido (por el contrario, aprovechan todas las posibilidades deestablecer redes de vínculos y difusión brindadas por Internet), aunqueuna violenta represión, como la que causó su primera víctima en Italia,plantea interrogantes respecto al desarrollo de las protestas futuras.Frente al Foro de Davos, lugar de encuentro de los poderosos delmundo, surge el Foro Social Mundial de Porto Alegre, en donde seexpresan todos los movimientos que resisten el proceso de globalizaciónen curso, y que reunió, en enero de 2001, a cerca de 20 mil personas decasi 120 países. En todo caso, en las protestas actuales los protagonistasson más diversos, sus objetivos más profundos y sus enemigos máspoderosos que en otras experiencias pasadas.

El amplio abanico de fuerzas e instituciones no gubernamentaleso corporativas que estuvieron en una u otra de esas manifestaciones,puede llevar a la perplejidad: desde la principal organización sindicalnorteamericana, la AFL-CIO, hasta campesinos de diversas partes delmundo; desde movimientos ecuménicos y la más variada gama dedefensores del medio ambiente y de los derechos humanos hasta críticosacérrimos del capital especulativo; mujeres, hombres, activistas de losaños 60 y de los 90, hicieron recordar que el fin de la Guerra Fría nosignificó el fin de la historia sino, probablemente, sólo el comienzo deun nuevo tipo de toma de conciencia, y esta vez global. Los ahorallamados por algunos “globalifóbicos”, no se dirigen contra un procesode globalización, que de todos modos forma parte de la historia delcapitalismo, sino contra sus formas extremas, que favorecen aespeculadores y financieros y no al conjunto de la población mundial,y contra la ideología que lo sustenta. Recientemente, un historiadorfrancés, Jean-Baptiste Duroselle, señalaba como uno de los principalesmotivos de los cambios de rumbo en las sociedades modernas, lo quedenomina la conciencia de lo insoportable siendo, entre otras cosas, loinsoportable, las situaciones en las que se viola la dignidad humana enlo económico, lo político y lo social. Esto ocurre con el actual procesode globalización, que ha acentuado profundamente las desigualdades yatenta contra la calidad de vida en una gran parte del orbe.14

14 Duroselle, Jean-Baptiste. Todo imperio perecerá. Teoría sobre las relaciones internacionales.México: 1998, p. 182-186.

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Es que pocos pueden estar de acuerdo con un tipo de capitalismocomo el actual, que ni Adam Smith ni David Ricardo hubieranreconocido. El librecambio del siglo XVIII estaba basado en la necesidadde terminar con el despotismo de las monarquías absolutas, los abusosdel mercantilismo y del monopolio colonial y los resabios del sistemafeudal. Hoy, el libre juego de las fuerzas del mercado resulta para losmanifestantes una artimaña que intenta ocultar el despotismo de lasorganizaciones financieras internacionales, el neomercantilismo de lospaíses más ricos y el comportamiento oligopólico de empresastransnacionales.

Es notable, en particular, el rol jugado por organismosinternacionales creados en Bretton Woods para ayudar a estabilizar elsistema económico mundial e impulsar su desarrollo después del caosde la guerra y que ahora privilegian otros objetivos: la protección depoderosos acreedores que exigen la devolución de deudas difíciles oimposibles de pagar, creada en muchos casos por capitales especulativos;la imposición de un conjunto de políticas de ajuste similares a paísesesencialmente desiguales y la caída de barreras comerciales que casisiempre terminan beneficiando a los que venden productos valorizadospor su alta tecnología. Pero, en un mundo donde los pobres aumentande una manera “malthusiana” en forma más que proporcional alincremento de la población, éstas políticas parecen adquirir ribetes muypeligrosos, por lo que también surgen “enemigos” desde adentro. Comoel premio Nobel, James Tobin, que propone una tasa del 0,5% a losmovimientos especulativos de capital, que puede permitir no sólorecuperar parte de la soberanía económica perdida por los países sinotambién recaudar entre 250 mil y 300 mil millones de dólares parapaliar la situación de los 1.200 millones de personas que, según elBanco Mundial, viven en condiciones de extrema pobreza en el mundoo amortiguar el peso de sus deudas externas o, como Joseph Stiglitz,ex vicepresidente del mismo Banco, que hizo un aguda crítica de laburocracia interna de las organizaciones financieras internacionales, delos dogmas teóricos en los que se basan y de los decepcionantes resultadosde las políticas que prescriben.

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En el marco del discurso globalizador una cuestión que sediscute es el del debilitamiento o posible “desaparición” del Estado-nación. Se considera que hasta el fin de la bipolaridad habría regido enel escenario internacional el «paradigma» del Estado-nación soberanoy autárquico. Con el triunfo del capitalismo liberal y la globalizacióneconómica, nos encontraríamos ante un proceso de disminuciónprogresiva de la esfera de acción de los Estados, hecho sobre el queconcuerdan tanto apologistas como críticos del neoliberalismo.

Esto en parte es verdad. Nadie puede negar esos fenómenos detransnacionalización que ponen en cuestión el rol de los Estados-nacióno debilitan sus soberanías, pero es preciso incorporar al análisis ciertoselementos que relativizan esas visiones. En principio, se debe evitaruna asimilación mecánica entre el concepto de nación y el de Estado,la que a menudo resulta de una perspectiva eurocéntrica basada en elproceso histórico de formación de algunos países de Europa Occidental,cuyo paradigma sería Francia. ¿Como definir, por ejemplo, incluso enEuropa, a países como Suiza y Bélgica donde coinciden un Estado yuna sociedad plurinacional? Esto es más evidente aún en otras partesdel mundo como en la India o Canadá. En el sentido opuesto, existennaciones que no han podido transformarse en Estados.

La nación, del latín natus, es una categoría histórica vinculadaa procesos materiales y culturales que permiten constituir unacomunidad distintiva respecto de otras (o dicho de otro modo conuna identidad propia). Está ligada, además, a los procesos de evoluciónsocial que caracterizaron el desarrollo del capitalismo desde sus inicios.Los espacios nacionales pueden ser identificados a partir de cuatrodimensiones: la moneda, el mercado interno, las barreras a lamovilización de los factores de producción y un conjunto de normasinstitucionales y compromisos sociales.15

15 Romo, Hector Guillén. Some Challenge of Globalization. In: Économies et Sociétés,n° 9/2000, p. 136-137.

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A la vez, las naciones, con mayor o menor éxito, han procuradoestablecerse como Estados, es decir, poseer un aparato de poder (órganode acción y de coerción) con soberanía sobre el territorio de esa nacióny con el objetivo de regular las relaciones dentro de la sociedad nacionaly con las otras comunidades. En el mundo moderno estos procesoshan dado por resultado un sistema mundial conformado por pueblosque poseen Estados jurídicamente reconocidos.16

Sobre la base de estas premisas podemos preguntarnos si existehoy un debilitamiento generalizado del Estado-nación comoconsecuencia del proceso de globalización y cuál es el sentido delmismo. En primer lugar, se confunde el “debilitamiento” del Estadocon un fenómeno distinto aunque fuertemente asociado al procesointernacional y al del pensamiento que lo acompaña cual es el cambiode las políticas económicas predominantes, marcado por el abandonodel modo de regulación keynesiano y por la aplicación en su lugar depolíticas neoliberales de ajuste estructural (reestructuración productiva,reforma del Estado, apertura económica, privatizaciones, eliminaciónde políticas de seguridad social y de educación y salud públicas, renunciaa una política monetaria propia como en el caso argentino).

En segundo lugar, se parte de un presupuesto falso al concebirel escenario de las relaciones internacionales anterior como regido porla acción exclusiva de los Estados. Precisamente a lo largo de los últimoscien años se han hecho sumamente visibles los fenómenos y estructurasque Pierre Renouvin llamó “fuerzas profundas” en la vida internacional,que trascienden a los Estados como actores exclusivos y convierten alas naciones en «porosas» a procesos transnacionales. Desde el últimotercio del siglo XIX el mundo ha asistido a la expansión de las empresasmultinacionales, a crisis económicas y financieras de alcance universal,a escándalos internacionales, a procesos de intensificación y difusiónde prácticas culturales y científicas y de corrientes ideológicas y políticasde carácter mundial (socialismo, comunismo, fascismo, liberalismo,diversos tipos de movimientos religiosos y de organizaciones

16 Cf. Bédarida, Francois y Roussellier, Nicolas Nations, peuples et Etats. In: Proceedings,XVIIIth International Congress of Historical Sciences. Montreal: 1995, p. 3-23.

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internacionales). Recordemos por su peculiar importancia en la políticamundial a la Internacional Comunista. Sin embargo, esas tendenciasno anularon la acción estatal y, por el contrario, en ciertas coyunturas,las potenciaron: las guerras entre diversos países también tuvieron unalcance universal.17

En tercer término, al iniciarse el siglo XX gran parte de lapoblación del mundo no vivía bajo la jurisdicción de Estados soberanossino en el marco de diversas formas de dominación colonial ysemicolonial. Por el contrario, un resultado visible de las últimas cincodécadas, es la multiplicación de Estados independientes en el escenariointernacional.

En cuarto lugar, en el contexto de los cambios actuales losEstados-naciones conservan aún un rol destacado. En el caso de las grandespotencias es particularmente notable su papel como instrumento paragarantizar una mayor competitividad internacional de cada una de ellas.Como señala un autor, en el plano económico, la regulación estatalpermanece aunque retoma los objetivos que tenía “en un período mástemprano del capitalismo occidental, orientada al logro de lacompetitividad, la supremacía y el elitismo” en cambio de los rasgospresentes en el “Estado de Bienestar”, surgido en la posguerra, vinculadosa políticas de crecimiento, equilibrio social y universalidad. Hoy “lasoberanía del Estado, que no es jurídicamente puesta en cuestión porla afirmación de las tendencias en curso, se reduce de facto, para losgobiernos, a determinar soberanamente hasta dónde irá su sumisión alcapital.”18

En quinto lugar, el peso aún vigente de los Estados-naciones,particularmente el de las grandes potencias, se hace más visible en elplano político, estratégico y militar, como lo muestran la guerra delGolfo y el proceso posterior de negociaciones y conflictos entre lospaíses líderes en torno a diversos puntos “calientes” de la agendainternacional (el caso de la ex-Yugoslavia, la guerra de Kosovo, el Medio

17 Cf. Rapoport, Mario. ¿Una teoría sin historia? El estudio de las relaciones internacionalesen cuestión?. In: Ciclos en la historia, la economía y la sociedad. n° 3, 1992, p. 147-160.18 Letourneau, Jocelyn. Les Années sans Guide. Le Canada à l’Ere de l’Économie Migrante.Québec: 1996, p. 16.

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Oriente, etc.) así como las discrepancias en torno al control y desarrollode las armas nucleares, dentro del aún vigente monopolio atómico.Todo ello se ha reflejado en la visible “crisis” de los organismosinternacionales, como las Naciones Unidas, cuya influencia como entesupraestatal parecía afirmarse progresivamente a fines de los 80 yprincipios de los 90. Por eso mismo el proceso actual no marca el findel sistema interestatal; por el contrario, se intensifica el rol de losEstados de varias grandes potencias, y particularmente de EstadosUnidos, en la escena internacional.19

A la vez, se observa un gran debilitamiento de la presencia ypoder de decisión en el escenario internacional de los Estados de lospaíses periféricos, muchos de los cuales alcanzaron a jugar un rol másdestacado a través del movimiento de países “no alineados”. Con laspolíticas de ajuste estructural, los efectos del endeudamiento externo yla reducción de las áreas de capitalismo de Estado ha mermado lacapacidad de fuerzas locales para utilizar el aparato de Estado en labúsqueda de mayor poder interno y autonomía internacional.

En sexto lugar, el proceso de reformulación de la fuerza ydebilidad de los diversos Estados tiene su base no en la extinción sinoen la perduración y recreación del fenómeno nacional, en un procesode interacción con la globalización, incluso en el plano económico.Mas aún teniendo en cuenta la diversidad de sociedades, culturas ehistorias que inciden en el proceso de estructuración/desestructuraciónde los espacios nacionales.

El fin del imperio soviético, por ejemplo, caracterizó al períodocomo de emergencia de naciones antes subsumidas en el Este quereivindicaron sus derechos como naciones y como Estados. En el casoyugoslavo, enmarcado por desacuerdos entre las potencias occidentales,se asistió al retorno de nacionalismos «esencialistas»; en otros casos, sefortalecieron corrientes neofascistas. Estos fenómenos son en parte unarespuesta a la globalización como resistencia de valores culturalesamenazados pero también una tendencia que responde a las características

19 Cf. Bernal-Meza, Raúl. Sistema Mundial y Mercosur, Globalización Regionalismo y PolíticasExteriores Comparadas. Buenos Aires: 2000.

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competitivas del mismo proceso económico y político globalizador. Así,la competencia internacional ha engendrado incluso en el establishmentnorteamericano disyuntivas globalistas-nacionalistas frente a la necesidadde afirmar la hegemonía de EE.UU. en el escenario mundial.

Parece prematuro plantearse entonces que los espacios nacionalestienden a desaparecer disueltos en un contexto mundial global.Mientras ciertas naciones se desestructuran o fragmentan, emerge elnacionalismo en otras y diversas comunidades reivindican un Estadopropio para afirmar procesos de consolidación nacional.

Finalmente, es necesario remarcar que los propios proyectosde integración regional a la vez que tienden a recortar las soberaníasnacionales, expresan una tendencia a la constitución de suprasoberaníasque contradicen los presupuestos de la “aldea global”. La Unión Europea,que tiene ya instituciones políticas en funcionamiento (el parlamentoeuropeo) y una densa burocracia en Bruselas y Estrasburgo es el ejemplomás relevante de este proceso.

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Acuñado por el ex-presidente Bush en el fragor de la Guerradel Golfo, un mito fuertemente sostenido en el plano de las relacionespolíticas internacionales es el de la constitución de un nuevo ordenmundial. Tras la caída del muro de Berlín y la desintegración de laUnión Soviética, el fin de la disputa bipolar habría dado por resultadoun escenario mundial en el que los intereses globales vinculados altriunfo del capitalismo liberal engendraban una comunidad internacionalcon valores compartidos. La competencia estratégica perdía asíimportancia en relación a un mundo de cooperación y paz reguladocrecientemente por los organismos internacionales o sustentado, másbien, (según las teorías realistas) en la existencia de una sola potenciahegemónica, los Estados Unidos. En consonancia con estas ideas seproclamaba el triunfo de una nueva juridicidad internacional quesubordinaba los principios de la soberanía nacional, antes consagrados,a reglas supranacionales, inauguradas con la intervención colectivaen Irak.

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En verdad, no es la primera vez, a lo largo del siglo, que unpresidente norteamericano procura delinear un nuevo ordeninternacional. Henry Kissinger compara la formulación actual con lospresupuestos “idealistas” de Woodrow Wilson tras la Primera GuerraMundial y con la voluntad “de reformar todo el orbe siguiendo elmodelo norteamericano” de Franklin D. Roosevelt y Harry Trumandesde las postrimerías del segundo conflicto bélico. Con el fin de laGuerra Fría la condición de los Estados Unidos de ser la únicasuperpotencia con capacidad para intervenir en cualquier parte delmundo constituyó la base objetiva del nuevo discurso sobre el ordenmundial.20

Sin embargo, el rumbo tomado por los acontecimientos sibien afirmó parte de estas tendencias mostró también maticesdiferentes. El fin de la bipolaridad tornó visible la ya existentemultipolaridad económica en el plano político y los “grados de libertad”para las potencias nacionales o regionales que ofrece la ausencia de unenemigo único. Este proceso, no ha dado lugar en consecuencia a unnuevo orden sino a un incremento de la inestabilidad y la imprevisibilidadque desvela a los politólogos y estadistas. Se ha comenzado a hablar deun “déficit de poder” para el establecimiento de un nuevo orden enrelación a la incapacidad de los Estados Unidos para seguir siendo centrohegemónico en términos decisivos pese a su supremacía militar. La“difusión” y desarticulación de las “variables del poder” (económico,financiero, comercial, productivo, comunicacional, militar) reflejanen realidad el proceso de esa multipolaridad en curso.

Por ello, los organismos internacionales han probado noconstituir un poder en si mismos y su acción sigue dependiendo de lavoluntad y el acuerdo entre las grandes potencias. El proclamado nuevorol de la ONU se transformó en una situación de crisis cuando, alcompás de la creciente competencia multipolar el orden jurídico y lasacciones consiguientes que promovía se paralizaban por los desacuerdoso abrían paso a la lógica del poder tradicional, como en Bosnia, Haití,Somalia, Kosovo, Medio Oriente y otros lados. Fue la Otan finalmente,

20 Kissinger, Henry. La Diplomacia. México: 1995. p. 802.

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y no las Naciones Unidas, la que debió intervenir en la Guerra deKosovo. La comunidad internacional sigue siendo, como su nombrelo indica, una comunidad de naciones, con potencias hegemónicas ypaíses periféricos, en cuya cúpula se dibuja el poder estratégico deEE.UU. pero también una “triada” (la nación del norte, la UniónEuropea, Japón) con acuerdos y conflictos, pero sin reglas fijas.

En lugar de una paz universal “kantiana”, prevalece un nuevo“desorden” internacional que se refleja en numerosos focos de conflictoen todo el mundo. Según una publicación reciente existen más de 50conflictos y guerras en curso en los cinco continentes. Desde el dramade la ex-Yugoeslavia, en el corazón de Europa, pasando por losinnumerables focos africanos, la caldera del Medio Oriente, losenfrentamientos y guerras civiles en el extremo oriente y la ex-URSShasta el resurgir de movimientos guerrilleros en América Latina, elmundo no parece asistir a la gestación un nuevo equilibrio (u orden).Aunque algunos de estos conflictos son atribuidos a superviviencias delo antiguo, al “choque de civilizaciones” o al resurgimiento detribalismos, manifiestan en verdad un proceso de fragmentación queaparece como una evidente contracara de la globalización.21

Al mismo tiempo, no debe dejarse de tener en cuenta que laestrategia de las grandes potencias y la expansión del capital trasnacionalse articula con esos conflictos, los condiciona, potencia o aplaca.Persisten la competencia política y militar y el monopolio atómico yha continuado el comercio de armas: “todo ministro de defensa” de laspotencias vendedoras, es “jugado por sus capacidades de representantede ese comercio”.22 En la Argentina conocemos bien la situación entorno al tráfico de armas en dirección a Croacia y Ecuador.

El criminal atentado a las torres gemelas no altera el diagnósticoni constituye, como se ha dicho, el comienzo de otra guerra mundialni una expresión del “choque de civilizaciones”. En principio nada indicaque la civilización occidental es históricamente más adelantada queotras. El siglo XX ha conocido varios masacres de las cuales las dos más

21 Cf. Atlas 2001 des Conflits, Manière de Voir, n° 55, París: enero-febrero 2001.22 Chemillier-Gendreau, Monique. Les Nations Unies confisquées. In: Conflits fin de siècle,Manière de Voir, n° 29, París: febrero de 1996, p. 17.

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relevantes fueron las causadas por el genocidio nazi que, además degenerar una guerra con 40 millones de muertos se basó en laplanificación del exterminio de un pueblo, y por el bombardeo atómicode Hiroshima y Nagasaki, que aniquiló 300.000 personas de la maneramás horrenda posible. En su origen estaban naciones “civilizadas” comoAlemania y Estados Unidos.23 Por otra parte, como señala Kissinger,“por ser la única nación explícitamente creada para reivindicar la ideade libertad, los Estados Unidos siempre creyeron que sus valores eranrelevantes para el resto de la humanidad”. Lo que creaba la obligaciónde “transformar el mundo a nuestra imagen”.24 Pero ya el mismo expresidente Jimmy Carter había señalado años antes del reciente atentadoque “sólo hace falta ir al Líbano, Siria o Jordania para ver el inmensoodio de gente hacia Estados Unidos porque nosotros hemosbombardeado sin piedad y matado gente inocente (...) Como resultadode ello para esa gente que está profundamente resentida nos hemosconvertido en una especie de diablo”.25 El doble circuito impulsadopor la globalización de la inmensa pobreza y de las desigualdades sociales,étnicas y religiosas de millones de personas, por un lado, y de la inmensariqueza producto del tráfico de armas, el narcotráfico, los paraísos fiscalesy diversas formas de criminalidad internacional, por otro, que generamillonarios como Ben Laden (apañados en su momento por losmismos organismos de inteligencia norteamericanos), explican, juntoa esos odios y conductas, el origen del nuevo terrorismo internacional.Los problemas de Estados Unidos no provienen sólo del Medio Orientesino de su extrema hegemonía sobre el resto del mundo, como señalaAlain Touraine.26

En síntesis, si es cierto que la Guerra Fría pudo colocar almundo al borde del holocausto nuclear y ese peligro se disipó desdefines de los años 80, el análisis histórico debe brindarnos una mayorprudencia en cuanto a los alcances de una paz perdurable. La aguda

23 Sobre este tema ver Pedro Brieger, Guerra y globalización después del 11 de septiembre,inédito.24 Clarín, 31 de enero de 1993.25 New York Times, 26 de marzo de 1989, citado por Brieger.26 El País, 13 de septiembre de 2001.

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competencia comercial y económica, los fundamentalismos de todotipo, las crecientes disparidades de ingresos, el incremento de lapobreza en el mundo, las disputas territoriales y el nuevo terrorismointernacional, dan lugar a conflictos de distinto tipo que, aunque noestén condicionados o potenciados por la disputa bipolar, existen y sedesarrollan en el marco de la puja de hegemonías, que supone, al mismotiempo, interdependencia y rivalidad. Pero frente a esta realidad se alzantambién diversos procesos de integración regional, como la UniónEuropea y el Mercosur, que generan espacios diferentes y pacíficosdonde los países pueden unirse en función de intereses comunes,económicos, políticos, sociales y culturales

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Otro mito persistente de la ideología de la globalización es elde que ésta viene acompañada por un proceso de expansión yfortalecimiento de sistemas democráticos de gobierno, que va en caminode extenderse poco a poco a la mayoría del globo. En realidad, tal idease apoya en los acontecimientos que se sucedieron en Europa Orientalluego del derrumbe de la URSS y de los regímenes autoritarios del“socialismo real”, y a los procesos de transición democrática que, apartir de la década de los 80, comenzaron a verificarse en diversos paísesdel tercer mundo, especialmente en América Latina, como consecuenciade la caída de varias dictaduras militares surgidas en estrecha conexióncon la Guerra Fría.

Pero debemos señalar, ante todo, que esta visión no tiene encuenta los “agujeros negros” del mundo, como África (con excepciónde Sudáfrica, que es un caso aparte y cuya democratización se debe aun largo proceso de luchas internas y presiones externas) o ciertasregiones del Medio Oriente, Asia y América Latina.

En segundo término, es preciso recordar que la vulnerabilidadanterior del sistema democrático en América Latina, si bien erafavorecida por el contexto estratégico de la Guerra Fría, obedecíatambién a condiciones económicas, sociales y políticas propias queatentaban contra las posibilidades de estabilizar gobiernos democráticos

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y que, de todos modos, las actuales democracias no dejan de teneraspectos cuestionables que puede ponerlas nuevamente en peligro. Perú,Chile y Paraguay vivieron recientemente situaciones traumáticas,aunque la caída de Fujimori, el ocaso de Pinochet y el aborto de uncasi golpe de Estado parecen haber disipado algunos de los problemasexistentes. Pero al no producirse cambios en el modelo económico ysocial las tensiones políticas pueden renacer y ocasionar nuevasturbulencias a mediano plazo. Por otra parte, la existencia demovimientos indigenistas en México, el poder de los traficantes dedroga y de la guerrilla en Colombia, la incierta situación y la apariciónde un nuevo tipo de liderazgo político en Venezuela, la corrupcióngeneralizada y las diversas transgresiones jurídicas y constitucionales,que son moneda corriente en la mayoría de los países de la región,impiden hablar de democracias plenamente consolidadas. Laimplementación del Plan Colombia por parte de EE.UU. agudiza losproblemas de la región, instalando una variable militar de consecuenciasimprevisibles, y la continuación del embargo a Cuba no contribuye amejorar el panorama.

Algo parecido sucede en Europa Oriental, en la cual existenaún conflictos diversos y en donde, en muchos lados, las formasdemocráticas no ocultan tendencias autoritarias. El proceso deglobalización, en la medida en que torna más frágil la situación socialy separa arbitrariamente el ámbito de lo económico y de lo políticosubordinando éste a aquel (y sobre todo a los organismos económicosinternacionales que supervisan las políticas de ajuste) contribuye aaumentar las incertidumbres del sistema democrático de estos países.

En tercer lugar, incluso las democracias occidentales másavanzadas, sufren también diversos problemas de legitimidad. Laconsideración del mercado como “un principio de organización social”,la “privatización de la vida y de los valores” y la “banalización” de lapolítica a través de los medios, dan por resultado el alejamiento de lavida pública de una parte significativa de la ciudadanía. El elector seconvierte en “consumidor” pasivo de ofertas electorales sobre las queha perdido el control, con un grado de divorcio entre mandante ymandatario que se encuentra muy lejos de los paradigmas de la

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democracia liberal desarrollados en el siglo XIX. Existe, por el contrario,una acumulación del poder político (a través de una estrecha relaciónentre burocracia estatal, grandes medios de difusión e intereseseconómicos) que produce un descreimiento creciente sobre las virtudesdel sistema.

Esta despolitización tiene también por causas la declinación delos partidos políticos populares, de los sindicatos y de todo tipo demovilización de masas, así como los escándalos y la corrupción política(y la vinculación de diversas mafias con la política, como en Italia) y laausencia de valores comunitarios y objetivos nacionales que trasciendanlo meramente económico.

Finalmente, las desigualdades en los ingresos, la no resoluciónde los problemas étnicos y raciales y el incremento de la desocupacióny de la pobreza, son elementos que destruyen los lazos de solidaridadsocial y los principios democráticos. Así, en los Estados Unidos, unaparte de la ciudadanía no vota, se autoexcluye de la toma de decisionespolíticas, mientras que, en Europa, resurgen fuerzas políticas que secreían extinguidas: neonazis, fascistas, populistas de derecha etc algunascon cierto peso electoral, como en Austria, Italia o Francia, o se fortalecenmovimientos regionales separatistas. El agotamiento del modelodemocrático liberal ha llevado así a algunos especialistas a buscar nuevasformas de participación política y a proponer una reconstitución delrol del Estado como regulador y sostenedor de ese modelo.

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La historia nos revela que el “Estado absoluto”, ya sea en laforma del “socialismo real” o de las distintas variantes del fascismo, nosólo no resultó una solución para los problemas de la sociedad modernasino que se transformó en una verdadera pesadilla. Pero el paradigmadel “mercado absoluto”, y la ideología que lo sustenta, pueden generarotras fuentes, igualmente injustas, de opresión y desigualdad. Porquedemocracia y mercado no son términos intercambiables y si la vigenciade la primera debe sacrificarse a la persistencia del segundo, es decir, silos ciudadanos no pueden intervenir en el dominio de una economía

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cada vez más desconectada de lo social y a la que se le niega la posibilidadde utilizar los instrumentos de política necesarios para corregir losdesequilibrios que el mercado por si mismo no puede solucionar, lasociedad civil deja de tener sentido y se corre el riesgo de que otrasaventuras totalitarias se levanten, como en los años 30, por sobre suscenizas. Es posible que, sólo entonces, por la fuerza de las circunstancias,nuevos pensadores, estadistas o economistas retomen el rumbo de undebate sobre Estado y mercado, que hoy recobra nuevamente vigencia.

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Paulo G. Fagundes Vizentini *

Após o encerramento do regime militar a política externabrasileira se encontrava sob pressões negativas interna e externamente.Contudo, durante o governo Sarney, logrou manter o mesmo padrãode inserção internacional. Mas no início dos anos 90, a Política Externapara o desenvolvimento deu lugar ao Estado Normal (de viés neoliberale globalizante), segundo as consagradas expressões de Amado Cervo.A autonomia foi substituída pela aceitação das pressões globalizadoraspara a abertura do mercado interno. Ainda assim, a diplomacia brasileiraapoiou-se no âmbito regional como forma de uma relativa resistência,por meio do Mercosul. Da mesma forma, a política externa do governoItamar Franco representou certa retomada momentânea dos conceitosde soberania e interesse nacional.

Ao iniciar-se o século XXI, a crise se abateu sobre o modeloneoliberal de inserção internacional, justamente quando o desafio daimplantação da Área de Livre Comércio das Américas (Alca) tentaenquadrar a inserção internacional do Brasil no âmbito hemisférico.Nesta conjuntura contraditória, a transição da política externabrasileira tanto pode retomar alguma forma semelhante ao padrãodesenvolvimentista e autonomiasta que se afirmou gradualmente de1930 a 1990 (dependendo do resultado das eleições de 2002), comopode aprofundar sua subordinação passiva ao reordenamento mundial,caso adira a Alca.

Neste contexto, este ensaio pretende realizar uma sistematizaçãopreliminar dos fatos e processos que marcaram a política externa

* Professor titular de História Contemporânea e Relações Internacionais da UFRGS ecoordenador do Núcleo de Estudos em Relações Internacionais e Integração (Nerint) doInstituto Latino-americano de Estudos Avançados da UFRGS. Os bolsistas de IC, Samir deMiranda e Fernanda Martins, colaboraram na pesquisa e redação deste artigo.

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brasileira desde o fim do regime militar. Trata-se, neste sentido, doprimeiro resultado da pesquisa que realizamos com bolsa do CNPq,coordenada pelo Professor Amado Cervo, a quem este livro éconsagrado. Cabe-me, ao lado dos laços de amizade que me ligam aeste ilustre acadêmico, destacar seu trabalho pioneiro no estudocientífico sistemático da história da política externa brasileira, bemcomo seu posicionamento corajoso em defesa de nosso patrimôniodiplomático, numa época de omissão e conivência quase generalizadas.

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Na véspera da posse (14 de março de 1985), em meio à alegriageral com o iminente encerramento de 21 anos de regime militar, apopulação foi surpreendida com a notícia da hospitalização urgente deTancredo Neves. Submetido à várias operações, o presidente jamaisassumiria, vindo a falecer dia 21 de abril, feriado nacional de Tiradentes(mártir da luta pela independência, natural de Minas Gerais comoTancredo)... Os meios de comunicação alimentaram durante toda criseuma verdadeira comoção popular, que catalisou a opinião públicaenquanto José Sarney, que menos de um ano antes era o líderparlamentar do regime militar, assumia o poder. O episódio da doençae morte do presidente levantaram suspeitas (nunca investigadas), comboatos de que teria sofrido um atentado.

O novo presidente, uma figura discreta, prometeu cumpririntegralmente o vago projeto esboçado por Tancredo. A base de apoioao novo governo era integrada por uma coalizão de partidos lideradospelo PMDB e PFL, com os militares claramente permanecendo comodiscretos fiadores do novo e aparentemente instável governo, auxiliandoa manter a consolidação da transição dentro de certos limites. Já em1985 o presidente legalizou os partidos comunistas (PCB e PC do B,com quatro décadas de clandestinidade), ampliando o apoio ao governo,aprovou eleições diretas para presidente e prefeitos das capitais e áreasde segurança e a transformação do futuro Congresso, a ser eleito em

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1986, em Assembléia Nacional Constituinte. Contudo, estes avançoseram obscurecidos pelas dificuldades econômicas, que continuavam aagravar-se, com inflação, aumento do custo de vida, deterioração dosserviços sociais e crescentes pressões do FMI. No campo econômico,Sarney manteve o mesmo modelo de desenvolvimento, tentandoresistir às dificuldades internas e externas com medidas paliativas, numquadro de concessões e reafirmações. Poucos meses depois de iniciadoo novo governo, a população já havia esquecido Tancredo e sedesiludido com as promessas da Nova República. A popularidade donovo presidente caíra vertiginosamente. Contudo, mais um ato do“Estado-espetáculo” estava a caminho.

Em fins de fevereiro de 1986, quando grande parte dapopulação voltava das férias de verão para mais um ano de dificuldades(e eleições), o Ministro Dilson Funaro da Economia implantou desurpresa o Plano Cruzado: congelamento de preços e salários, reduçãoda taxa de juros, substituição da moeda cruzeiro pelo cruzado e controlecambial. A população foi estimulada a ajudar o governo a impedirremarcações de preços (os “fiscais do Sarney”) e como a inflação caiu eparou de remunerar a caderneta de poupança, produziu-se uma euforiaconsumista. A popularidade do governo subiu às alturas e, emnovembro, foi retribuída com uma votação maciça para governadorese para o Legislativo Federal e dos estados (o governo fizera coincidireleições em todos os níveis numa mesma data). Assim, com o controledos governos estaduais e maioria absoluta no Congresso-AssembléiaConstituinte, dias depois era anunciado o fim do Plano Cruzado,explodindo a inflação artificialmente contida durante nove meses ereduzindo drasticamente o consumo. Sintomaticamente o FMI, quesempre criticou e pressionou contra políticas deste tipo, permaneceusilencioso e inativo durante esse período.

Apesar do perfil centrista do Congresso Constituinte, a recessãoe o descontentamento popular acabaram influenciando os políticosprofissionais, que já estavam pensando nas eleições presidenciais. Oresultado foi a aprovação, em outubro de 1988, de uma Constituiçãoque apresentava alguns avanços sociais, embora estes fossem vagos edependessem de complicadas regulamentações. Ou seja, mais uma vez

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o problema foi empurrado para o futuro, que chegaria mais rápido,uma vez que o mandato presidencial fora reduzido para cinco anos.Durante a Constituinte, e mesmo depois dela, repetiu-se a mesmasituação do governo Figueiredo, com ameaças de retrocesso, boatos emanobras políticas que deixavam a população na incerteza, tudocontribuindo para manter a evolução do processo de consolidação dademocracia dentro de limites moderados. O poder da mídia, emparticular da Rede Globo, tornou-se ainda mais explícito, constituindouma das bases da política brasileira.

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A política externa da Nova República apresentou uma evoluçãosingular. O Ministro Olavo Setúbal mostrou-se determinado a rompercom a linha diplomática do Pragmatismo Responsável e doUniversalismo. Argumentava que o Brasil era um país Ocidental, quedeveria maximizar suas oportunidades individuais, em cooperação comos EUA, para chegar ao Primeiro Mundo. Obviamente sua ênfasefoi de afastamento do Terceiro Mundo e de suas reivindicações. Suapolítica baseava-se, em larga medida, na situação internacional,caracterizada pela relativamente bem sucedida tentativa norte-americanade reafirmar sua liderança, pela crise e reforma do socialismo (a ascensãode Gorbachov foi praticamente simultânea ao início da Nova República)e pelas crescentes dificuldades do Terceiro Mundo, pois em 1985,na Reunião de Cúpula do G-7 em Cancun, o diálogo Norte-Sul foiabandonado. Contudo, o Itamaraty resistiu a esta nova orientação,que se assemelhava à diplomacia de Castelo Branco. Assim, no iníciode 86 o chanceler era substituído por Abreu Sodré. Uma de suasprimeiras medidas foi o reatamento de relações diplomáticas com Cuba,que fora até então obstaculizada por Setúbal e pelo Conselho deSegurança Nacional.

As tensões desencadeadas no cenário internacional sinalizavampara o profundo desequilíbrio entre as nações e para as condiçõesobjetivas de atuação na esfera mundial. As dificuldades no campoeconômico tornariam imperativo para o Brasil buscar parcerias

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multilaterais e bilaterais que instrumentalizassem o país em suasestratégias para o entendimento internacional. Apesar do trabalho dedesmontagem do multilateralismo iniciado nos anos 80 pelos paísescentrais, essa foi a grande linha de força sob a qual atuou a diplomaciabrasileira.

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O Presidente Sarney, oriundo do regime anterior (o presidentefora líder parlamentar do regime militar), retomou o rumoconsolidado pela política externa com um projeto diplomático bemdefinido e instituindo uma inovação: depois de muitos anos, foi oprimeiro presidente a contar com uma assessoria diplomática formalna Presidência da República. Não obstante, a diplomacia tenhatranscorrido com variados graus de intensidade e ritmo, de acordocom as exigências de inserção do país, as principais linhas de orientaçãoda política externa brasileira foram mantidas, em alguns casosavançaram em direções específicas ou, até mesmo inovaram, a exemplodo restabelecimento das relações diplomáticas com Cuba.

Como parte do projeto anterior, a política externa brasileiranão teve grandes inovações, no entanto, deu saltos qualitativos emquestões já iniciadas. O acercamento com América Latina eparticularmente com o Cone Sul, com destaque para a Argentina e oUruguai, foram espaços privilegiados de atuação do governo Sarney.Foi no âmbito latino-americano a ênfase em termos de visitas eencontros presidenciais, reuniões multilaterais de cúpula e projetos decooperação e integração. A criação dessa agenda deve-se à convergênciade interesses diante das dificuldades para enfrentar os acontecimentosinternacionais, mas, sobretudo, como forma de instrumentalizar odiscurso democrático.

Quanto mais se estreitavam as possibilidades de atuação doBrasil no plano global, mais a América do Sul foi valorizada comoalternativa estratégica, tendo seu eixo centrado na cooperação eintegração com a Argentina, que vivia problemas semelhantes aos do

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Brasil. O retorno da democracia, com os presidentes Raul Alfonsín eJosé Sarney, se deu numa conjuntura adversa do ponto de vistaeconômico e diplomático. A crise da dívida fez com que os paíseslatino-americanos ficassem extremamente vulneráveis às pressões doFMI e do Banco Mundial, num quadro de graves dificuldadeseconômicas, enquanto o conflito centro-americano permitia ao governoReagan trazer a Guerra Fria para o âmbito hemisférico, o que lhepossibilitava também utilizar instrumentos diplomáticos e militarespara exercer uma pressão suplementar sobre a América Latina. Nestecontexto os dois países haviam aderido ao Grupo de Apoio à Contadorae desencadeado um acercamento sistemático e institucionalizado.

Em 1985, por meio da Declaração de Iguaçu, foi estabelecidauma comissão para estudar a integração entre os dois países e em 86foi assinada a Ata para Integração e Cooperação Econômica, que previaa intensificação e diversificação das trocas comerciais. Fruto desseesforço, em 1988 foi firmado o Tratado de Integração, Cooperação eDesenvolvimento Brasil-Argentina, que previa o estabelecimento deum Mercado Comum entre os dois países num prazo de dez anos. Oque estava por trás desta cooperação, a par dos fatores já apontados, eraa marginalização crescente da América Latina no sistema mundial, atentativa de formular respostas diplomáticas comuns aos desafiosinternacionais, a busca de complementaridade comercial, a criação defluxos de desvio de comércio e um esforço conjunto no campotecnológico (particularmente nuclear) e de projetos específicos. Para oBrasil, especificamente, a integração permitia aumentar a base regionalpara a inserção internacional do país, num caminho que conduzirá,em 1991, à criação do Mercado Comum do Sul (Mercosul).

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As relações entre Brasília e Washington mostraram-se instáveisnesse período, tendo o governo norte-americano imposto sançõescomerciais e retaliações às iniciativas brasileiras que transparecessemalguma autonomia. As principais preocupações do presidente norte-americano eram em relação à dívida e à economia brasileira. A posição

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brasileira, reticente aos acordos e renegociações da dívida junto ao BancoMundial e ao FMI, acaba por gerar desgastes nas relações com os norte-americanos. Reagan convidou Sarney para lhe explicar a situação eafirmar que algumas coisas deveriam ser mudadas: os norte-americanosexigiram do presidente brasileiro a aceitação das novas regras para o“livre comércio” e se mostraram irritados pelo fato de o Brasil retardare atrapalhar as negociações com o FMI (além de ter abandonado omonitoramento do Fundo). O Brasil, após algumas medidas e projetoseconômicos frustrados, termina por recorrer às linhas de crédito doFundo.

Além disto, os EUA pressionam o Brasil a abandonar suaposição autônoma em relação à ecologia e à região amazônica – distintasagências do governo norte-americano propuseram sanções comerciaise itens de entendimento; ao que Brasília reagiu de diferentes formas,instrumentalizadas por diversos meios (organização de uma equipeespecializada na representação diplomática em Washington e combateà campanha difundida no meio da opinião pública norte-americana).

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A relação de turbulência e conflito com os Estados Unidosdesencadeou uma série de iniciativas da diplomacia brasileira em direçãoa outras regiões. Isto é percebido nos diversos contatos mantidos pelogoverno brasileiro com as diferentes regiões, como uma tentativa dediversificar os eixos diplomáticos. O relacionamento com paísesestratégicos provinha da necessidade de desenvolver projetos decooperação em áreas específicas e como forma de demonstrar autonomiaem relação aos Estados Unidos. A alguns países em especial, era atribuídaimportância fora do âmbito latino-americano. Tanto a URSS e algunspaíses do Leste Europeu, quanto Estados que poderiam compor umeixo de cooperação Sul-Sul, na África, no Oriente Médio e na Ásia,receberam atenção especial do governo brasileiro.

No tocante à África, foram mantidas as posições encaminhadasna década de 1970. O foco das relações foi a questão comercial com aparticipação intensa do Estado, por meio de suas agências e empresas.

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No que concerne às relações do Brasil com a Ásia, a República Popularda China teve um papel destacado no interesse brasileiro. Durante ogoverno Sarney, registrou-se intenso intercâmbio bilateral sino-brasileiro, tanto em termos de visitas e de contatos políticos, quantoem termos de comércio e, ainda, uma série de acordos de cooperaçãoforam firmados na área de ciência e tecnologia, especialmente na áreaespacial. A cooperação com a URSS cresceu, especialmente com asesperanças despertadas pela Perestroika, mas logo a crise soviética e aconvergência entre Moscou e Washington frustraram-na. Em relaçãoao Oriente Médio e aos países árabes, o intercâmbio ocorreu em diversasáreas, a saber, cooperação econômica, industrial-militar, técnico-científica, transporte e navegação, além do intercâmbio comercial.

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Com relação ao Terceiro Mundo e aos organismos internacionais,Sarney conservou a mesma linha que iniciara com Geisel, mantendoatitudes que lhe valeram até o respeito da esquerda. Contudo, adiplomacia do governo José Sarney também patrocinou algumasinflexões diplomáticas importantes. A preocupação em torno da políticade Direitos Humanos e a adesão às Convenções da ONU e OEA; oretorno brasileiro ao Conselho de Segurança; o restabelecimento dasrelações diplomáticas com Cuba; o debate em relação à questãoambiental; e as iniciativas em torno do aprofundamento do processode cooperação e integração regional eram encaminhadas visando mantera soberania nacional em uma conjuntura extremamente desfavorávelpara os países em desenvolvimento. A ruptura com o paradigma dapolítica exterior fortalecido durante o regime militar acontece com aeleição de Collor para presidente da República, que acabou por instituiruma nova conduta externa, com alto grau de subordinação às exigênciasdo processo de mundialização econômica.

Dentro da lógica de aproximação diplomática Sul-Sul, emoutubro de l986, a delegação brasileira à Assembléia Geral da ONUapresentou um importante projeto de resolução declarando o Oceano

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Atlântico, na região situada entre a África e a América do Sul comoZona de Paz e de Cooperação do Atlântico Sul. A posição brasileirafundava-se nos seguintes pressupostos: (a) identidade própria doAtlântico Sul como região; (b) responsabilidade primordial dos paísesem desenvolvimento ribeirinhos sobre a área; (c) comunidade deinteresses sobre a região; (d) a idéia de que o Atlântico Sul deva ser uminstrumento para a paz e desenvolvimento; (e) a necessidade de que aárea seja mantida a salvo das tensões e confrontações internacionais; e(f ) a conveniência de que os temas de interesse comum neste contextosejam mantidos sob exame. O Presidente Sarney opõe-se a qualquertentativa de militarização do Atlântico Sul e à presença de armasnucleares na área. O representante dos EUA, Noel Gron, foi o único avotar contra o projeto, que, apesar disto, foi aprovado.

Quanto à questão da energia nuclear, a posição brasileira temsido de defesa da utilização pacífica desse recurso. Em l989, o Brasilformulou uma proposta vinculando o desarmamento químico enuclear à preservação ambiental, proposta essa rechaçada pelaConferência Internacional sobre Armas Químicas. Neste mesmo ano,Sarney, em discurso para a Marinha brasileira, afirmou que nãopermitiria que a Amazônia se convertesse em um Golfo Pérsico verdeinternacionalizado e lançou o programa Nossa natureza.

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Em 1989, num quadro econômico irremediavelmentedeteriorado, com ameaça de hiper-inflação e acirramento da crise social,desencadeou-se a corrida presidencial, tendo ainda como pano de fundoa derrocada do socialismo no Leste Europeu (processo largamenteexplorado pelos candidatos conservadores). Lula e Brizola afirmaram-se como candidatos de esquerda, enquanto um jovem políticoaventureiro, Fernando Collor de Mello, consolidava-se como candidatoconservador. A candidatura de Collor fora, em grande medida,construída pela mídia, com a imagem de “caçador de Marajás”

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(funcionários públicos com supersalários) e inimigo da corrupção.Collor logo passou a liderar a preferência dos eleitores, concorrendopelo Partido da Reconstrução Nacional (PRN). O PRN fora criadoespecialmente para a eleição, existindo praticamente apenas no papel,sem estrutura organizacional ou base de apoio popular. Como as eleiçõesagora eram em dois turnos, e Lula e Brizola estavam empatados emsegundo lugar, a mídia procurou mostrar o candidato do PT comofato novo e autêntico na política brasileira, atacando Brizola comoresquício de um velho populismo. Talvez isto tenha sido decisivo paraLula chegar em segundo lugar, eliminando Brizola que, por estar maispróximo do centro, teria chances de construir alianças e de enfrentarCollor em condições de igualdade.

No segundo turno os meio de comunicação passaram a atacarbruscamente Lula, pintando-o como um socialista radical, revelandoinclusive problemas de sua vida afetiva e pessoal. Além disso, na semanadas eleições ocorreu o misterioso seqüestro do empresário Abílio Dinizpor um grupo de extrema-esquerda, em cujo cativeiro a políciaencontrou material de campanha do PT... No dia da eleição, em grandescidades onde a oposição possuía maioria, os transportes funcionaramsó parcialmente, impedindo milhares de eleitores de votar. Assim, emmeio a uma campanha polarizada e marcada por acontecimentosestranhos, Collor foi eleito com os votos das classes A e D, encerrandouma era da história brasileira. Prometendo governar para os“descamisados”, acima dos partidos e sem os políticos, ele abririacaminho ao neoliberalismo desde sua posse em março de 1990.

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Este período é notadamente marcado por um processo deliberalização da economia brasileira, de retomada das relações com osEUA e de abertura às proposições do FMI. Segundo Paulo NogueiraBatista, a política de comércio exterior refletia a tensão entremodernização ou retrocesso. A visão de Collor era um retrocesso aoséculo XIX, com medidas ultraliberais que não haviam sido praticadasde maneira ortodoxa nem mesmo nos países centrais do capitalismo e

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que tinham fundamento no Consenso de Washington. Cabe notarque, nessa época, os governantes dos EUA e Inglaterra já tentavamresolver graves problemas oriundos dessa política. A política econômicade Collor, no entanto, encarava resultados como desemprego, misériae recessão como uma saída para os problemas da sociedade. O objetivoda política externa de Collor era obter para o Brasil o acesso a novastecnologias. Neste sentido, a abertura comercial dar-se-ia de formaunilateral e independente de um mínimo de reciprocidade dos parceiros– quanto mais concorrentes – externos. Enquanto o mundo começa afechar-se para seus concorrentes, o Brasil e o Terceiro Mundo, em geral,são obrigados a abrir.

Cálculos da Cepal mostram que, em 1992, o fluxo de entradalíquido de todos os tipos de recursos financeiros para a América Latinaatingiu US $ 57 bi, 50% a mais do que em 1991 e quase três vezesacima do nível de 1990. O Brasil teve um aumento considerado notável:de US $ 1,2 bi para US $ 10,1 bi. Estes dados apontam para a crescentedependência da economia nacional a fatores externos, tendo em vista avolatilidade destes fluxos financeiros e sua vulnerabilidade às flutuaçõesdas taxas de juros.

Segundo Paulo Nogueira Batista, a premissa de Collor, visandoa uma “inserção ‘colorida’ do Brasil no mundo”, é rever o consenso dodesenvolvimento um programa ultra-liberal a partir do Consenso deWashington. No começo tentou taticamente agir com autonomia emrelação aos compromissos assumidos com os patrocinadores da suacampanha. Pretendia articular uma política econômica no plano internoe deter o processo inflacionário; tendo, com isso, uma melhor imagemno plano externo junto aos credores internacionais. Como o plano foimal visto pela comunidade financeira internacional e deu errado, ogoverno Collor impôs-se o ideário do Consenso de Washington, queserviria para arejar a balança comercial desfavorável aos EUA em relaçãoaos países da América Latina. Desse modo, para melhorar sua imagemperante a comunidade internacional, de um só golpe, Collor eliminavárias taxas de comércio externo não buscando contrapartidas dosparceiros comerciais, muito menos salvaguardando os produtos brasileirosda concorrência externa.

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Diante da instabilidade política e econômica decorrente da NovaOrdem (ou Desordem), incrementa-se a perda efetiva de valorestratégico do país. Assim, a inserção no cenário mundial, sem integrareconomicamente o país, como querem os liberais de Collor, é lançar150 milhões de brasileiros em “um vôo cego” sem precedentes.

O Ministério das Relações Exteriores não teve participação napolítica externa assassina de Collor, pelo contrário, às vezes, tentouminimizar-lhe os efeitos. No Acordo de 4 + 1 (Mercosul e EUA), porexemplo, foi a atuação do Itamaraty que resguardou um mínimo dedistância com relação aos EUA visando a manobras de cunho regional.Segundo Paulo Nogueira Batista, era a atuação compensadora doItamaraty a atenuar as perversas conseqüências da orientação do governoCollor. Além disso, o Ministério das Relações Exteriores conseguiusalvar a Eco-92, tomando para si a responsabilidade da organização daconferência.

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Paulo Nogueira Batista propunha, antes de tudo, a definiçãoda estratégia regional. Na ótica do embaixador, era imperativo saber,afinal, qual tipo de integração: mundial, latino-americana ouhemisférica? O governo Collor pretendeu, com o Mercosul – criadoem março de 1991 com a assinatura do Tratado de Assunção entreArgentina, Brasil, Paraguai e Uruguai –, fazer o mesmo que a CEE,isto é, criar uma zona de livre comércio em apenas três anos e meio;equivocando-se, desse modo, nos prazos de ajustamento de importantessetores da economia. Aquilo que Europa demorara quase quarentaanos para consolidar, Sarney e Alfonsín tinham estipulado um prazode dez anos. Sendo assim, a definição de Collor com relação àintegração nada mais é do que o aprofundamento do processo deliberalização. Contudo, neste mesmo contexto, havia a iniciativa deBush, que representava um programa alternativo de integraçãohemisférica, o qual foi imediatamente descartado por Collor, depoisde ouvir o Itamaraty, cuja previsão era de que o projeto representava

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uma área maior de livre-comércio, mas que perturbaria os processosregionais de integração.

Portanto, é importante definir uma nova política externa parao Brasil; repensar a política externa do governo Collor, de forma queleve em conta as dimensões do país como Estado-nação. A políticaeconômica interna do Brasil, especificamente, leva em conta amodernização, liberalização do comércio e abertura exterior, sendo oMercosul uma base regional de muita importância para se inserir nomundo globalizado. O Mercosul, assim, tinha de ser levado adiante,por meio de uma diplomacia brasileira que moldasse as economias denossos vizinhos, já que a economia brasileira é maior e com um parqueindustrial maior. Para Batista, não é viável uma integração igual aoNafta, pelo simples fato de que as relações econômicas dos EUA-México-Canadá só foram legalizadas com este acordo, uma vez que jáexistiam antes de maneira mais profunda do que se verifica no caso doMercosul.

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O Embaixador Paulo Nogueira Batista resume, de maneiranítida e incisiva, a estratégia brasileira nas relações com os EstadosUnidos: “a ilusão norte-americana de Collor”. A visão de Collor eraunipolar no que tange aos EUA, confundindo “força militar com forçaeconômica”. O presidente não tentou manobrar com as diferenças entreos países poderosos e acomodou-se às regras impostas pelos EUA,visando com tal alinhamento ser favorecido até mesmo pelos paísesfronteiriços. Na concepção de Collor, não há consciência de que opróprio poder dos EUA está posto em cheque com o fim da GuerraFria, uma vez que sua economia tem de ser estruturada para acompetição no plano econômico. Neste sentido, é compreensível, daparte norte-americana, uma estratégia firme nos assuntos econômicosinternacionais, “com ou sem apoio do Gatt”. A política econômicanorte-americana não leva em conta os efeitos externos. Toda estaconjuntura foi totalmente desprezada por Collor. Desta forma, PauloNogueira Batista não considera que as relações Brasil-EUA estejam

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totalmente erradas, já que este é um dos principais parceiros econômicosdo país, depois da CEE; entretanto, critica a decisão de fazer dos EstadosUnidos um pólo único de relacionamento, esquecendo os demais póloseconômicos.

É exemplar, com vistas a caracterização da orientação brasileira,a questão da dívida externa: o montante devido aos EUA correspondea somente um terço do total. Finalmente, Batista faz um questionamentoda orientação brasileira: um novo modelo de inserção internacionalou, na verdade, uma submissão? O plano de inserção internacional dopaís, projetado pelo governo Collor, apresentava como premissa básicaa estabilidade econômica para uma melhor relação com os EUA, jáque este representava o vencedor da Guerra Fria. As relações internacionaisbrasileiras estariam, portanto, condicionadas a este país na mentalidadede Collor.

Além disso, partindo de um conceito de interdependênciainternacional, conseguira-se aprofundar a dependência. Neste sentido,no plano econômico, as propostas do FMI e Banco Mundial pararenegociação da dívida (Plano Brady, de janeiro de 1992) são aceitas ebem-vindas. Sem mencionar as drásticas políticas de ajustamentointerno, com medidas de saneamento do déficit e privatização de setoresestratégicos da economia nacional.

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A vitória eleitoral de Fernando Collor de Mello, em 1989,representou a ascensão de propostas neoconservadoras, revestidas desocial-democracia e voltadas para o Primeiro Mundo. Assim, o novopresidente pretendia melhorar a vinculação brasileira com os EUA, aInglaterra e a França. Porém, devido à preferência deste governo porrelações com os norte-americanos, o diálogo multilateral com aComunidade Européia foi instrumentalizado por intermédio doMercosul ou no âmbito do Gatt. Mesmo assim, o Brasil ainda mantémalguns acordos bilaterais com países europeus, como a Alemanha queconcede recursos para a proteção da região amazônica.

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Quanto às negociações no Gatt, o Brasil defende a discussãodo tema agrário e já aceita discutir os chamados novos temas, denotandosintonia com a posição norte-americana. Neste sentido, a políticabrasileira é de que a Rodada Uruguai não deveria ser desrespeitada porpressões protecionistas entre os países. Segundo Rubens Ricupero,

a Rodada Uruguai viu acentuar-se a área de incertezas. A questãochave é a incorporação do comércio de produtos agrícolas (e dostêxteis) às regras do sistema multilateral de comércio. A resistênciaprincipal vem da CEE, aferrada à sua Política Agrícola Comum,e de outros países industrializados (Japão, nórdicos, Suíça, Áustria,Coréia) (...). Um fracasso ou impasse nas negociações da RodadaUruguai será um agravante de peso na incerteza considerávelque o meio ambiente econômico internacional cria para o Brasil.

A I Reunião do Grupo dos 15, realizada na Malásia, em 1990,conta com a participação do Brasil e reuniu outros países emdesenvolvimento empenhados em aumentar as relações e cooperaçãodo tipo Sul-Sul. Além disto, no ano seguinte, o Brasil firma acordopara a compra de petróleo do Irã.

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O ministro das Relações Exteriores do governo Collor, CelsoLafer, esboça as linhas da política externa brasileira na fala proferida na47º Assembléia Geral das Nações Unidas em 21 de setembro de 1992.Embasado na nova geografia mundial, o ministro cumprimenta osnovos Estados com assento na ONU, fruto do colapso da URSS.Segundo o chanceler brasileiro, “o desafio da ONU hoje é buscar umnovo consenso na ordem internacional”. A partir deste trecho, afirmaque a liberdade, a democracia, o respeito aos direitos humanos, odesenvolvimento sustentável, a justiça e a paz, devem ser os novosobjetivos buscado pelas Nações Unidas.

Para Celso Lafer, desarmamento, paz e segurança são aspremissas indissociáveis para repensar a nova ordem mundial. Com

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base nestes três elementos, são considerados o desenvolvimento e omeio ambiente. A questão sobre o desarmamento é levantada comoponto importante, em especial os tratados sobre o tema que foramassinados com os países vizinhos (como o Acordo de Guadalajara,firmado com a Argentina em 1991). Além disto, conjuga o assuntocom a “Agenda para a Paz”, na qual o Brasil não medirá esforços paraajudar a consolidar, desde que esta se estenda para a paz socioeconômicanos países e entre eles.

O Brasil quer a discussão sobre os poderes do Conselho deSegurança, alegando que sempre contribui para a força de paz da ONU,seus membros e a sua representatividade. Dentro do projetodiplomático do Brasil, um lugar como membro permanente doConselho de Segurança da ONU é o objetivo primeiro de uma inserçãosoberana do país, levando em conta também os parceiros econômicos(o Japão, a Índia e a Alemanha) e uma melhor distribuição geográficado poder que é possível como membro permanente deste conselho.Celso Lafer declara ser necessário que as Nações Unidas trabalhem juntaspara o crescimento econômico de todos os países.

No plano ecológico, o destaque de Lafer é a Eco-92. Em suaótica, todas as declarações assinadas nesse encontro são de primordialimportância para as novas relações (Declaração do Rio, Agenda XXI,Declaração sobre Florestas, Convenção sobre o Clima e a Convençãosobre a Biodiversidade). Mais uma vez a diplomacia brasileira, assimcomo o próprio presidente, enfatiza que é impossível “ter um planetaambientalmente sadio num mundo socialmente injusto”. Cita aindadados sobre o desmatamento da Amazônia que diminui de formaconsiderável, de 1987 a 1991.

As opiniões sobre o desempenho brasileiro nesse eventodivergem. Rubens Ricupero ressalta a potencialidade do assunto meioambiente nas relações internacionais, na qual o Brasil “dispõe de cartaspreciosas como o fato de deter o maior patrimônio de biodiversidade,de ser o dono da maior floresta tropical existente”. Para Ricupero, aEco-92 seria um importante catalisador de recursos e iniciativas decooperação internacional. Em oposição à opinião anterior, a análise doEmbaixador Paulo Nogueira Batista é elucidativa, na medida em que

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esclarece, de forma crítica, as deficiências da política externa do governoCollor em relação ao tema da ecologia. Na ótica do diplomata, oesvaziamento da Rio-92 configurava mais uma oportunidade perdidapela diplomacia brasileira. De forma submissa, embasado no seudeslumbramento pelo Primeiro Mundo, Collor se diz a favor de ummonitoramento e exploração da floresta Amazônica, proposta ratificadapelo G-7 à revelia do Brasil. Neste sentido, era intenção de Collorcolocar o Brasil na “vitrine internacional” por meio da Eco-92. Nocaso da Declaração sobre Florestas Tropicais, o Brasil não conseguiuver aprovada a sua proposta de que os países que se enquadram na áreada floresta Amazônica assumam a exploração da região, sem umacontrapartida dos países desenvolvidos. Na Agenda XXI, o Brasilconformou-se com suas cláusulas que são de intenções para os paísesdesenvolvidos e de obrigações efetivas para os países em desenvolvimento.Porém, não foi tentado nenhum acordo com os países da BaciaAmazônica e do sudeste asiático que têm em seus territórios florestas.

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De acordo com Rubens Ricupero:

Na verdade, o que é marcante na situação do Brasil é que,apesar de uma grande convulsão política, como o processo deimpeachment do presidente que deu início à reforma econômica,não houve entraves ou retrocessos em nenhuma das reformasestruturais concernentes à privatização, à desregulamentação, ànormalização das relações financeiras com a comunidadeinternacional e à liberalização do comércio.

Em junho de 1993, reconhecendo que a inflação brasileira seorigina da desorganização financeira do setor público, o ministro daFazenda, Fernando Henrique Cardoso, anuncia um duro plano de açãoem curto prazo, voltado para três principais fontes de pressãoinflacionária: o déficit orçamentário, o acúmulo de dívidas dos estados

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e governos locais e a falta de controle dos bancos oficiais, estaduais efederais.

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A política externa brasileira do período visava a integração dopaís no sistema internacional, de forma democrática, dentro dos valoresda sociedade brasileira, e embasada no processo de restruturação internapelo qual passou o Brasil com a posse de Itamar Franco. O compromissodo Brasil no plano externo é ligado a democracia, justiça social, direitoshumanos, liberdades individuais e justiça social com desenvolvimento.Defendendo sempre a autodeterminação dos povos e a não-intervenção,solução pacífica dos conflitos e cooperação entre os povos.

Segundo o Relatório do Ministério das Relações Exteriores, ogoverno Itamar Franco teve como objetivo revalorizar a presença doBrasil no cenário mundial a partir de foros multilaterais e da integraçãoregional. Durante seu governo, o Brasil foi eleito, por dois anos, membrodo Conselho de Segurança da ONU, participando de sete operaçõesde paz, sendo que se candidatou a um cargo permanente; defendeu anão-proliferação de armas de destruição em massa; propôs uma “Agendade Desenvolvimento” ligada a uma “Agenda da Paz”; participou dacriação da OMC, resolveu pendências econômica-comerciais comdiversos países; teve papel destacado na Conferência Mundial sobreDireitos Humanos; desenvolveu parcerias com vizinhos de fronteiraou não – Mercosul e CPLP (Comunidade dos Países de LínguaPortuguesa); proposição da ALCSA (Iniciativa Amazônica e a Área deLivre-Comércio Sul-Americana) e reunião da ZPCAS (Zona de Paz eCooperação do Atlântico Sul).

O Itamaraty reaparelhou os recursos humanos e materiais(expansão da rede consular) para atender um maior fluxo de imigração,para isso decidiu criar um Grupo de Acompanhamento de Crises paradefender os cidadãos brasileiros no mundo e atuar nos problemas queafetam nossos interesses. Para melhorar a imagem do Brasil no exteriorfoi criado o Núcleo de Divulgação.

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Dentre as prioridades brasileiras é possível apontar: a defesa dosistema multilateral nos planos econômico e político; a consolidaçãode sua atuação junto a órgãos internacionais, como as Nações Unidas,OMC e blocos; a afirmação do sistema multilateral de comércio e daintegração regional. Para com isso combater o protecionismo e lutarpara que o país tenha acesso às tecnologias de ponta.

Rubens Ricupero, no seminário Capital, Investment and Tradein the Americas, promovido pelo The World Trade Institution, emNova Iorque, no dia 16 de junho de 1993, analisa as razões dainsuficiente expansão das exportações brasileiras:

Em primeiro lugar, isto se torna evidente pelas altas somasque a CEE, os EUA e outros países industrializados ainda gastamcom subsídios para amparar suas vendas de cereais, carne, soja eaves em detrimento de países como o Brasil e a Argentina. Emsegundo lugar, enquanto a América Latina começava, corajosamente,a abrir seu mercado, a maioria das nações industrializadas o fechampor meio de uma crescente tendência a se valer de barreiras não-tarifárias e as chamadas medidas de restrição ‘voluntária’ à exportação.

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O Brasil tem o objetivo de aprofundar os laços de integraçãonos diversos âmbitos e com todos os vizinhos da América do Sul –durante o mandato de Itamar Franco, foram realizadas visitas aos paísesfronteiriços, assim como o Brasil foi visitado. Como a integraçãoregional é uma realidade, a instalação efetiva do Mercosul resultou emum aumento do comércio e das relações com os países vizinhos.

No caso da Argentina as relações acontecem no âmbitoturístico, econômico, comercial e consular. Foi criada a AgênciaBrasileiro-Argentina de Contabilidade e Controle de Material Nuclearque contribuiu para aprofundar as relações bilaterais. O Uruguai temvários projetos com o Brasil dentre eles destacam-se: Lagoa Mirim,Usina de Candiota, desenvolvimento dos trabalhos dos comitês

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permanentes e do Grupo Permanente de Cooperação Consular. Naquestão do meio ambiente, o Brasil assinou com o Uruguai o Acordode Cooperação Ambiental Brasil-Uruguai, este é o primeiro queincorporou as normas resultantes da Eco-92. Em 1993 foi instalada aComissão Trinacional Brasil-Argentina-Uruguai para tratar daimplantação do Eixo Viário do Cone Sul.

Com o Paraguai um dos primeiros acertos foi a normalizaçãode pagamentos no que se refere à usina de Itaipu Binacional. A pontesobre o rio Paraná também foi um assunto importante; junto com oAcordo de julho de 1993 para a construção de uma ponte sobre o rioApa, também foi acordado o combate ao contrabando entre os doispaíses. No caso do Chile temos uma cooperação no programa Antárticobrasileiro. Em março de 1993, foram assinados com os chilenos acordosnas áreas de: turismo, cooperação científica, técnica e tecnológica,também foi criado o Conselho Bilateral de Economia e Comércio e aComissão Técnica Bilateral para estudar a ligação entre os dois oceanos.

Com a Colômbia, a Venezuela, a Guiana e o Suriname, adiplomacia brasileira tem buscado negociações bilaterais nas áreas daagricultura, meio ambiente, transportes, cooperação cultural, repressãoao narcotráfico e controle da região amazônica. O Brasil ainda assinouum acordo para a aquisição de gás boliviano; e no Equador temosinteresse em uma via interoceânica. Essas relações bilaterais podem levara um processo de integração igual ao Mercosul.

No que tange à integração regional, acontece em dezembro de1994 à assinatura do Protocolo de Ouro Preto, que mantém a estruturaintergovernamental do Mercosul, com o processo decisório alicerçadono consenso. No mesmo período ainda ocorre a Cúpula das Américas,em Miami, com as lideranças dos 34 países da América (exceto Cuba),onde é lançada oficialmente a negociação para o processo de construçãode uma Área de Livre Comércio das Américas (Alca), na qual as barreirasao investimento serão progressivamente eliminadas do continente apartir de 2005.

Continuando com a política de boa vizinhança o Brasil temuma atuação na América Central e Caribe muito importante. Começoua implementação de embaixadas residentes onde não as tinha, e enviou

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delegação para a Cúpula dos Chefes de Estado Centro-Americanos,também a diplomacia brasileira vem trabalhando na esfera da OEApara estabelecer um Fundo Brasil de Cooperação. Com Cuba o trabalhoestá sendo feito em duas áreas: tentar reexaminar a sua situação naOEA e com a sua adesão ao Tratado de Tlatelolco. Também foramassinados acordos nas áreas do combate ao tráfico de drogas, cooperaçãotécnica científica e nas áreas de biotecnologia e mineração. O Haiti,dentro de seu problema de governo, obteve do Brasil o apoio para atentativa de uma saída negociada e pacífica. O Brasil não apoiou umaintervenção das Nações Unidas para a resolução desse caso.

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A política externa no governo Itamar para a América do Nortetem a atenção central voltada para o Nafta, embora sem esquecer asrelações bilaterais, das quais se destacam aquelas com os EUA. O Brasilcontribui para a realização da Cúpula das Américas. Também conseguiu,a partir das negociações da Rodada Uruguai, que não se aplicasse sançõesnorte-americanas contra o comércio brasileiro (Super 301). No âmbitomilitar o Brasil firmou acordos de cooperação entre Cobae e Nasapara o lançamento de foguetes americanos da base de Alcântara. Oprojeto Sivam/Sipam também passa por negociações com os EUA.

Participando do Seminário Trade and Investiment Opportunitiesin Brazil, realizado em 7 de abril de 1993, em São Francisco, EUA,Rubens Ricupero salienta alguns aspectos das relações Brasil-EUA:

Como membro do Conselho de Segurança das NaçõesUnidas, começando em janeiro um mandato de dois anos, oBrasil se engajou em um estreito diálogo com os EUA e os outrosmembros sobre assuntos que afetam a paz e a segurançainternacionais. Na esfera econômica, o Brasil e os EUA têm lutadopor uma boa conclusão da Rodada Uruguai.

Depois, Ricupero ressalta alguns dados sobre o intercâmbiobrasileiro-norte-americano, por meio dos quais demonstra que os EUAsão o maior parceiro comercial brasileiro.

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No dia 29 de maio de 1993, no México, o EmbaixadorRubens Ricupero participa do Fórum The Western Hemisphere Interface:Beyond Nafta, expondo sua visão acerca das repercussões do Naftasobre a economia brasileira, destaca:

Entre os quatro países continentais anteriormentemencionados [China, Rússia, Índia e Brasil], o Brasil é o únicoengajado, no momento, em um projeto de integração regional, oMercosul, com a Argentina, o Uruguai e o Paraguai. (...). [Diantedos números do comércio internacional do Mercosul e do Brasil],é lógico e compreensível que os países do Sul devam, primeiro,consolidar sua integração econômica antes de se engajarem,coletivamente, em arranjos comerciais com o Nafta ou outrosgrupos. Aspirando a se tornar uma unidade alfandegária, o Mercosultenta no momento definir uma tarifa externa comum. Dos membrosdo Mercosul, o Brasil é o país que apresenta maiores semelhançascom o México em termos de comércio com os EUA. (...) Emconseqüência, o Brasil poderia ser particularmente afetado pelospossíveis efeitos do desvio de comércio acarretado pelo Nafta. Emque pese essa legítima preocupação, o Brasil tem uma atitudepositiva e de esperança em relação ao Nafta e a uma eventual áreade livre comércio hemisférica. Junto com os outros países-membrodo Mercosul, esperamos que, na hora certa, será possível dar inícioa negociações relativas às opções comerciais geradas pela novarealidade do hemisfério como fruto da Iniciativa para as Américase pela assinatura do Nafta.

Em março de 1994, Brasil e Estados Unidos assinaram oProtocolo de Ciência e Tecnologia.

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Começando com a Comunidade dos Países de LínguaPortuguesa (CPLP) (Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau,Moçambique, Portugal e São Tomé e Príncipe), aconteceu em fevereirode 1994 a I Reunião dos Chanceleres dos Países de Língua Portuguesa,cujo objetivo é atuar sobre as áreas social, cultural e econômica. Além

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desta porta aberta com os africanos, o Brasil ainda encontra outro acessocom a Comunidade Européia por meio de Portugal, já que esteingressou agora na Comunidade.

A União Européia é o maior parceiro do Brasil, onde são realizadas26% das trocas comerciais, por isso pretende-se um aprofundamentodo Mercosul e do Grupo do Rio com esta comunidade. Com algunspaíses da UE ainda ocorreram negociações no âmbito bilateral. Comos outros países da Europa houve várias iniciativas de aprofundar oslaços de amizade, dentre elas podemos citar a abertura de embaixadas eformalização de relações diplomáticas. Com a Rússia o Brasil tentadesenvolver cooperação nas áreas de tecnologia de ponta e assinou, em1994, um Acordo para Cooperação nos Usos Pacíficos da EnergiaNuclear; Acordo de Cooperação ao Tráfico Ilícito de Drogas; Protocolode Consultas entre Chancelarias; Memorando de Intenções sobreDesenvolvimentos da Cooperação em matéria de Meio Ambiente;Acordo Brasil-Rússia sobre Transportes Aéreos e Acordo sobre Criaçãode Adidâncias Militares; e no campo aeroespacial a cooperaçãoaprofundou-se.

O Brasil estabeleceu a Comissão Mista com Israel, em abril de1994, quando foi firmado o Programa de Cooperação Cultural eEducacional 1994-96. Com a OLP, tem-se um relacionamento agoramais profundo, depois do acordo de paz com Israel. Com outros paísesdo Oriente Médio, o Brasil manteve relações bilaterais atuando emvárias áreas: forças armadas, transportes, finanças e cooperação técnicae cultural. A chancelaria brasileira ainda participou da reunião sobre oDesenvolvimento do Oriente Médio e Norte da África.

Com a China foi assinado um Protocolo sobre Cooperaçãoem Aplicações Pacíficas da Ciência e Tecnologia do Espaço Exterior.Houve acordos bilaterais nas áreas de biotecnologia e medicina,educação, cultura e desportos. Com o Japão foi comemorado, no anode 1995, o centenário do Tratado de Amizade, Comércio e Navegação;na área da agricultura foi assinado o Registro de Conversações sobre oPrograma de Desenvolvimento do Cerrado; e ainda foram assinadosvários projetos de empréstimos para projetos ambientais em São Pauloe Rio de Janeiro. No mês de abril de 1993, o Ministério da Indústria

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e Comércio do Japão estabeleceu uma linha de crédito de US$ 1 bilhãopara as importações brasileiras. A Índia se enquadra no conceito demercados emergentes como o Brasil, ela compactua com o Brasil naquestão da “Agenda do Desenvolvimento” e na reforma do CSONU.Também existe cooperação em interesses comuns aos dois países:indústrias, têxteis e ferrovias.

Com os demais países da Ásia temos um “Plano de Açãopara a Ásia e Oceania”. Temos acordo com a Coréia em proteção deinvestimentos recíprocos, abertura de embaixadas em Hanói, relaçõesdiplomáticas com o Camboja e embaixada cumulativa na Tailândia.Com a Oceania temos um incremento com intercâmbio comercial apartir de 1994, também foi discutida a aproximação dessa região como Mercosul.

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Em relação à criação da OMC, esta nova instituição tem comoprincípio, no conceito brasileiro, gerenciar o comércio mundial deforma eficaz e estável, restringindo medidas unilaterais e aprofundandoo processo multilateral.

No âmbito da ONU, a representação brasileira defende umamaior transparência em seu sistema decisório, que o Conselho deSegurança seja mais democrático e representativo entre todas as nações,e que os grandes problemas entre as nações só serão resolvidos com acorreção desses problemas.

Foi durante o governo Itamar que o Grupo dos 15 (Grupo deConsulta e Cooperação Sul-Sul) reuniu-se em Dacar, onde foireafirmado a questão da Agenda da Paz articulada com a Agenda parao Desenvolvimento. Na Cúpula Ibero-Americana, o Brasil foiprotagonista de uma reunião realizada na cidade de Salvador em 1993a III Conferência Ibero-Americana de Chefes de Estado e Governo oBrasil lançou Uma nova agenda para o desenvolvimento, com ênfaseno aspecto social. No decorrer do mandato também realizou-se a mesma

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conferência em Cartagena na Colômbia em junho de 1994, onde oBrasil mostrou seu plano de estabilização e interviu a favor de Cuba.

A Unesco fez uma reunião para lançar o programa “Educaçãopara todos”, em dezembro de 1993, que o Brasil participou. Em marçode 1994 houve outra reunião: IV Reunião da Cúpula do organismoem Nova Dheli. O Brasil, em setembro de 1994, foi anfitrião da IIIReunião da ZPCAS, na qual foi adotada, dentre as várias propostas,uma Declaração de Desnuclearização do Atlântico Sul, outra sobreCooperação Empresarial e uma última sobre Meio Ambiente Marinho.

O Brasil assinou com a Argentina, Abacc e a Aiea o AcordoQuadripartite para a Não-Proliferação de Armas Nucleares e ainda emmaio de 1994 entra em vigor o novo texto do Tratado de Tlatelolco.Dentro deste tema de desarmamento o Brasil ainda assinou a Convençãosobre Armas Químicas, em janeiro de 1993, e a Convenção para aProibição de Armas Biológicas. Dentro da ONU, o Brasil luta paracriar um órgão que registre todas as armas convencionais e intenta verconcluído o Tratado para a Proibição Completa de Testes Nucleares.Nas exportações de materiais sensíveis que o país tem feito já estãosendo aplicadas as diretrizes do Regime de Controle de Tecnologia deMísseis (MTCR). Pretende, com isso, ter acesso à tecnologia de pontados parceiros mais desenvolvidos, que pode ser utilizada com finsmilitares, para a construção de lançadores de satélites e de submarinosde propulsão nuclear; sendo que foi bem recebido pelos países queproduzem esta tecnologia, depois da assinatura dos tratados de não-proliferação de armas nucleares.

Dentro das premissas básicas da diplomacia brasileira destemandato, o assunto meio ambiente foi contemplado com a ratificaçãodo acordo Convenção-Quadro sobre a Mudança do Clima e daConvenção sobre Diversidade Biológica e participou, também, daComissão de Desenvolvimento Sustentável para implementar a AgendaXXI da Eco-92. Atuou, também, na formação do Centro Internacionalde Estudo sobre Desenvolvimento Sustentável e criou internamente aComissão Interministerial para esse tema.

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Em maio de 1993, FHC assume o Ministério da Fazenda(governo Itamar Franco), elaborando uma reforma tributária e umplano para controlar as despesas governamentais (déficit público). Em1994, o Governo Federal, implanta o plano real (com taxa de jurosalta para atrair investimentos estrangeiros), pondo fim à elevada inflação,estabilizando a moeda e conferindo à população aumento de poderaquisitivo. Esse clima de estabilização econômica, além de favorecer aeleição do ex-ministro à Presidência da República, conferiu aos doisprimeiros anos de mandato (1995-1996), a possibilidade de ocultaros enormes déficits do comércio exterior e da balança de pagamentos,cujo crescimento da dívida é uma conseqüência.1

Entretanto, o plano real deve ser analisado não somente peloseu viés técnico-econônico – o qual sem dúvida não pode deixar de serestudado – porém o caráter político não deve ser posto de lado. Muitomais que um plano de controle da inflação, o real significa o novoposicionamento do Brasil no contexto internacional. Após passar pelochoque da Collorstroika, durante o qual a economia brasileira foiverdadeiramente jogada de sopetão no livre mercado, o Brasil procuraadaptar-se às “regras” do pós Guerra Fria.

Desta forma, FHC representa a inserção do Brasil como globaltrader e global player. O contexto interno brasileiro de estabilidadeinflacionária, saldo negativo na balança comercial, grande volume dereservas cambiais, parecem demonstrar a escolha brasileira de inserçãono denominado processo de globalização ecônomico-financeiro, sem,contudo, repetir a desordenada política realizada no governo Collor.2

O novo presidente, no plano interno, intensificou o processode privatizações das grandes e eficientes empresas públicas (aeronáutica,

1 Corrêa, Luiz Felipe de Seixas. In: Cena Internacional, www.relnet.com.br p. 18.2 Vizentini, Paulo F. Política Externa no Governo do Presidente Fernando Henrique Cardoso.

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petroquímica, siderúrgica e informática), sem se preocupar com asempresas privadas nacionais.

Adotou, também, o hábito de não se referir mais ao Brasilcomo um país subdesenvolvido, mas não pôde desconsiderar que talcondição ultrapassava a questão conceptual, pois a estabilizaçãomonetária foi fundada sobre o endividamento externo e o plano realconsumiu o superávit nacional.

Em linhas gerais, vários fatores, como a economia brasileiraem crescimento, a confiança cada vez maior no comércio exterior e aprópria eleição de FHC, levaram o Brasil a preterir questões domésticasem prol de uma maior atuação no cenário internacional.

O país passou, então, a privilegiar a cooperação com os outrospaíses da América do Sul, assim como apelar para um universalismode sua política.

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O caráter da política externa desenvolvido no governo de FHCsinaliza para a instauração de novos projetos e parcerias para o Brasil,sem definir claramente o paradigma estratégico pelo qual está seorientando. Fernando Henrique Cardoso, como ministro das RelaçõesExteriores (outubro de 92 a maio de 93) deu início à substituição dotermo “América Latina “ pelo termo “América do Sul”, delimitandouma nova esfera geográfica de política regionalista.

Essa diretriz teve uma dimensão prática muito importante naagenda diplomática sul-americana, e o Mercosul é, talvez, o exemplomais importante dessa estratégia. Entretanto, além da prioridadeconferida à conformação do Mercosul, a diplomacia brasileira expandiusua estratégia regional na América do Sul: em dezembro de 1992anunciou a complementação econômica com os países-membro doTratado de Cooperação Amazônica.

No ano seguinte, absorvendo a proposta da IniciativaAmazônica, o Brasil lançou o projeto de criação de uma Área de LivreComércio Sul-Americana (Alcsa), que visaria congregar os países doMercosul, do Grupo Andino e o Chile, mediante uma rede de acordos

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de livre comércio. Contudo, o lançamento da Iniciativa Amazônica,que visava a negociação de acordos no final de 1994, a preparaçãopara a entrada em vigor da união aduaneira do Mercosul, o interessede outros países em se associarem (Bolívia e Chile) e a proposta decriação da Alcsa conformaram, junto com o início das negociaçõesentre o Mercosul e a União Européia, opções abertas para o regionalismobrasileiro3.

Nesse mesmo ano, o Brasil acabou concordando com relutânciaa proposta de aceitar as negociações para a criação da Área de LivreComércio para as Américas (Alca), com base na avaliação de que, casooptasse por obstruir o processo, encontrar-se-ia em posição isolada nocontinente e confrontado diretamente com os EUA. Assim sendo, oposicionamento brasileiro sinalizou para a defesa do constantemultilaterlalismo nas relações, principalmente econômicas-comerciaise na defesa dos planos de integração regional

Segundo Lima4, a orientação da política externa brasileira sugereuma orientação globalista, conjugado à melhora contínua dorelacionamento com os Estados Unidos. Desta maneira, uma série decontenciosos com o mesmo tiveram um encaminhamento parasoluções, como, por exemplo, à adesão ao TNP (Tratado de Não-Proliferação), ao MCTR (Regime de Controle de Tecnologia deMísseis), ou ainda ao NSG (Grupo de Supridores Nucleares), comoclara demonstração da “limpeza” da agenda internacional.

Amado Cervo5 destaca, por sua vez, que a consciência de FHCde ter uma imagem de presidente eticamente correto e deintelectualidade renomada, contribuiu para a expansão do universalismoda política exterior do Brasil por meio da diplomacia pessoal. As linhasde ação prioritárias foram assim estabelecidas:

a) avançar no caminho da integração regional aprofundandoo Mercosul;

3 Mello, Flávia de Campos. In: Carta Internacional. Fevereiro de 2001, nº 96.4 Lima, Maria Regina Soares de. Apud Pecequilo, Cristina. In: Cadernos de Política/UFRGS,nº 1, Porto Alegre, 1997.5 Cervo, Amado. op.cit., p. 222.

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b) estimular a estratégia de diversificação de parceiros nasrelações bilaterais;

c) insistir junto às organizações econômicas multilaterais, emparticular a Organização Mundial de Comércio (OMC),seu ideal de multilateralismo, sempre sustentado pelo país;

d) concentrar esforços para elevar a condição de potênciainternacional do Brasil, tornando-se membro permanenteno Conselho de Segurança da ONU, com base emargumentos como o seu tamanho territorial, seu contingentepopulacional, assim como o status de ser o décimo maiorcontribuinte do orçamento da ONU.

O Brasil também procurou mudar sua imagem, às vezesnegativa, no “mundo industrializado do norte”, que focaliza, sobretudo,problemas sociais e ambientais brasileiros, ressaltando que não hánenhum grupo terrorista em atividade no país e não houve violênciapoliticamente motivada nos anos recentes.

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Por determinação constitucional, a integração latino-americanaé o compromisso mais importante da política externa brasileira. Acarga simbólica é muito intensa, pois celebra uma longa tradição deconvivência pacífica e harmoniosa entre o Brasil e os demais países daAmérica do Sul.

A composição do Grupo do Rio tem evoluído ao longo dosanos. A Aladi é integrada por dez países sul-americanos, pelo México epor Cuba. Na América do Sul, o Mercosul, a partir de 1994 tornou-se referência significativa como união aduaneira para os países-membro(Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai) e cuja vertente política agregoua Bolívia e o Chile. A Bolívia, por sua vez, é membro da ComunidadeAndina, o outro processo de integração importante da América doSul. O Tratado da Bacia do Prata e o Tratado de Cooperação Amazônicasão, ainda, dois instrumentos igualmente importantes na composiçãodo mosaico de iniciativas de aproximação entre os países da América

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do Sul. Também na América Central e no Caribe registram-se variadasiniciativas de concertação política e de integração econômico-comercialde caráter sub-regional.

Na agenda da política externa desenvolvida pelo Brasil nessaregião podemos elencar a Sessão do Comitê Coordenador do CodexAlimentarius para a América Latina e o Caribe, realizada em Brasíliaem abril de 1995. Também foi realizado o Ajuste Completar ao AcordoBrasil-Cuba de Cooperação Científica, Técnica e Tecnológica sobreAproveitamento de Lignina e Celulose do Bagaço de Cana-de-Açúcar.Ainda foi estabelecido o Acordo de Sede entre o Governo Brasileiro ea Cooperação Andina de Fomento e realizou-se em Lima, em dezembrode 1995, a V Reunião de Ministros das Relações Exteriores dos Países-Membro do Tratado de Cooperação Amazônica. O Brasil tambémfoi sede da sessão de inauguração das negociações substantivas entre oEquador e o Peru em abril de 1997, em Brasília. Finalmente, em marçode 1998 ocorreu a IV Reunião de Ministros Responsáveis por Comérciono Hemisfério, em São José da Costa Rica.

Entretanto, o Embaixador Rubens Antônio Barbosa, assinalouque a substituição do termo América Latina pelo termo América doSul, deu às intenções brasileiras de integração e cooperação o sentidoreal das limitações e potencialidades brasileiras. O Mercosul, por suavez, constitui a pedra angular da aliança estratégica Brasil-Argentina,concebida nos governos Sarney-Alfonsín, como um projeto de cortepolítico e estratégico destinado a estimular a criação de uma rederecíproca de interesses concretos que tornasse as hipóteses de conflitobilateral obsoletas e ilegítimas.

No período entre 1991-1997, o comércio intrazona apresentoutaxas aceleradas de crescimento, comprovando o caráter econômico-comercial do bloco, mas, também, avançou no caráter político-estratégico, no sentido de aprofundar os mecanismos de concertação edefinições conjuntas, para enriquecer a letra do Tratado de Assunção edar dinamismo à idéia de integração que vem sendo designado de“Mercosul político”. Exemplos relevantes dessa nova vertente, queincorporou a Bolívia e o Chile, foram a Decisão nº 18, adotada naCúpula do Rio de Janeiro, em dezembro de 1998, criando o foro de

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Consulta e Concertação Política, e a Declaração Política do Mercosul,Bolívia e Chile como Zona de Paz, firmada em Ushuaia, em julhode 1998.

Destaca-se ainda, no âmbito do “Mercosul político”, a “cláusulademocrática”, institucionalizada pelo Protocolo de Ushuaia, a qual setornou garantia relevante da consolidação dos regimes democráticosna nossa sub-região.

Em relação aos Estados Unidos, as relações foram pautadaspelo tema da “limpeza” da agenda de contenciosos. Entretanto, nocenário internacional após o fim da Guerra Fria, a política norte-americana apresentou um caráter mais agressivo no setor comercial, oque denotou um balanço deficitário para o Brasil.

As discussões em torno de uma área de livre comércio para ocontinente foram refutadas de forma clara pelo Brasil no primeiromomento. Entretanto, o amadurecimento da questão não conduziu ocorpo diplomático a um comportamento efetivamente ativo. Assimsendo, nos encontros de cúpula americanos de Miami em dezembrode 1994, e de Denver em julho de 1995, embora a questão tenhaadquirido uma agenda efetiva qualquer discussão mais profunda,principalmente no tocante ao adiantamento do processo da Alca, sofreurevés, seja na Reunião de Ministros Responsáveis por Comércio doHemisfério, realizada em Belo Horizonte, seja pelo constante insucessodo Presidente Clinton em obter a autorização do Congresso paraacelerar o projeto da Alca.

No tocante a outras relações foi estabelecido o Acordo deCooperação Mútua entre Brasil e os EUA para a Redução da Demanda,Prevenção do Uso Indevido e Combate à Produção a ao Tráfico Ilícitode Entorpecentes e também foi firmado um ajuste no campo da saúde,complementar ao acordo de cooperação técnica, todos em abril de 95.

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Em seu conjunto, os países da União Européia são o principalmercado para produtos brasileiros e a principal fonte de investimentosdiretos no país. Temos parcerias bilaterais prioritárias com vários de

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seus membros. A novidade nesse quadro é a relação com a Espanha,que em investimentos diretos já ultrapassou a Alemanha6 , e são hojeinferiores apenas aos dos EUA. Também Portugal aumentou, de formaexcepcional, sua presença econômica no Brasil.

Nos últimos anos, o aprofundamento do trabalho diplomáticopara promover o crescimento da parceria Brasil-Europa esteve, emgrande medida, concentrado na meta de lançamento de negociaçõesentre o Mercosul e a União Européia, com vistas à liberalização docomércio entre os dois agrupamentos, conforme previsto no Acordo-Quadro assinado em 1995. Sendo que em março deste mesmo ano,ocorreu em Paris a V Reunião Ministerial Institucionalizada entre oGrupo do Rio e a EU. É importante destacar que, do ponto de vistaeuropeu, a negociação com o Mercosul se justifique, antes, como umaresposta aos desdobramentos da Alca, uma vez que não deseja perderespaço econômico-comercial no agrupamento do bloco sul-americano.

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As relações bilaterais continuaram a ser marcadas pelomultilateralismo. Desta forma, além do Acordo-Quadro deCooperação Inter-Regional entre Mercosul e União Européia(dezembro de 95), houve crescente intercâmbio com os países asiáticos(inclusive no período de crise financeira que se iniciou na Tailândiaalastrou-se pelo sudeste asiático), assim como a busca de parcerias maisprofundas com os países africanos, principalmente na região australdaquele continente.

Em relação à África, ocorreu em março de 1995 a I ReuniãoMista Brasil-Namíbia, em Brasília e, em julho de 1997, a ReuniãoMinisterial da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa na cidadede Salvador.

Nas relações bilaterais o destaque foi da Alemanha e da Rússia.Com o primeiro foi assinada uma série de Acordos de CooperaçãoFinanceira ligados a questões ambientais, como o projeto Estudos

6 Corrêa, Luiz Felipe de Seixas. In: Cena Internacional, www.relnet.com.br p. 23

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Técnico, Econômico e de Impacto Ambiental para a melhoria dotransporte de carga e passageiros no corredor Rio de Janeiro – SãoPaulo – Campinas, ou o projeto Proteção da Mata Atlântica no Estadodo Paraná ou a Demarcação de Áreas Indígenas. No contexto da relaçãobilateral Brasil-Alemanha, ocorreu em São Paulo a XXII Sessão daComissão Mista Brasil-Alemanha de Cooperação Econômica.

Com relação a Rússia uma série de atos foram firmados, asaber: Declaração dos Princípios de Interação entre Brasil e Rússia comvistas ao século. XXI; Declaração Conjunta de Criação da Comissãode Alto-Nível (Comissão Maciel-Tchernomirdin); Acordo deCooperação Científica, Técnica e Tecnológica e o Acordo deCooperação na Pesquisa e nos Usos Pacíficos do Espaço Exterior.

Em relação ao Japão, foi instalado o Comitê Honorário daComissão Organizadora Nacional das Comemorações do Centenárioda Assinatura do Tratado de Amizade, Comércio e Navegações entre oBrasil e o Japão.

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Após a uma grande “negociata” para aprovar a Emenda dareeleição em 19977 , Fernando Henrique Cardoso inaugura fatoinusitado nos 106 anos de vida republicana: a possibilidade derecondução ao cargo para aqueles que postulam a chefia do Executivo.O professor norte-americano, Thomas Skidmore, estudioso da históriado Brasil, em entrevista8 chega a perguntar se não há, entre os 160milhões de brasileiros, um outro homem capaz de ser presidente daRepública? E acrescenta, se não há um, isso é mau sinal.

Há que se considerar, também, que se a eleição foi conseguidaem cima do plano real, a inflação sob controle foi a pedra de toque

7 No dia 25 de fevereiro de 1997, a Câmara dos Deputados aprovava a reeleição, em segundavotação, com 368 votos, contra 11 e 5 abstenções. No Senado este foi o placar: na primeiravotação, datada de 21 de maio, 63 votos a favor, contra 6. No segundo turno, em 4 de junho,62 votos a favor, 14 contra e 2 abstenções.8 Folha de São Paulo, 18 de maio de 1998, caderno 5, p.1

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para tentar a reeleição. Porém, os indicadores não ocultaram a crisecambial de janeiro de 1999 e a possibilidade de retrocesso nas conquistasalcançadas pelo país na estabilização econômica.

Analisando a situação interna brasileira, a crise asiática em 97 erussa em 98, representaram para o país uma enorme fuga de capitais,contabilizadas em torno de 16 e 31 bilhões, respectivamente. O governo,então, em 99 mexeu no câmbio para amenizar o déficit comercial.Porém, a redução de tarifas e o valor do dólar geraram um boom nasimportações, o que acabou por prejudicar as indústrias nacionais.

O próprio Mercosul, nesse ano passou por um períodoextremamente delicado e a diplomacia brasileira teve que operar emcondições claramente menos favoráveis do que no período 1995-1998.Diminui sua capacidade de iniciativa e tornou-se necessário administrarsituações difíceis no plano econômico-comercial, geradas tanto pelafrustração das expectativas em relação a exportações, quanto pelo temorde aumentos exponenciais nas vendas de produtos brasileiros9.

Então, no conturbado cenário pós-crises cambiais, a diplomaciabrasileira teve de dedicar-se com grande intensidade a um esforço deinformação de governos estrangeiros e da comunidade financeira arespeito da evolução da situação econômica. Importava enfatizar queo governo e a sociedade mantinham compromisso com a estabilizaçãoeconômica, e demonstrar que estavam sendo tomadas as medidasnecessárias para este fim.

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No segundo mandato do governo de FHC, paralelamente àinclusão de uma perspectiva especificamente sul-americana na agendaexterna do Brasil, o país continuou trabalhando com grande empenhopara promover uma aproximação cada vez maior com a América Centrale o Caribe. Uma das prioridades da agenda externa em 2000 foi aconclusão de acordo de preferências tarifárias fixas com o México, comoprimeiro passo para a negociação posterior de instrumento entre o

9 Corrêa. op. cit., p. 10.

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Mercosul e aquele país. Em abril de 2000, foi assinado um entendimentoparcial Brasil-México, cobrindo o setor automobilístico. Também emabril, o Presidente Fernando Henrique esteve na Costa Rica, na primeiravisita oficial de um chefe de Estado brasileiro a país da América Central.O governo brasileiro também tomou mediadas necessárias para cancelar,de forma unilateral, as dívidas oficiais da Nicarágua e de El Salvador,atingidas no ano de 99 pelo furacão Mitch.

Em setembro de 1999, na abertura da LIV AGNU, o MinistroLampreia decidiu por o foco de seu discurso na análise da conjunturalatino-americana. Tratou-se de uma inovação importante, que atualizoua tradição de fazer em tais oportunidades uma apreciação mais amplasobre o panorama global, inclusive sobre cenários regionais nos quais éescassa a presença e a capacidade de influência do Brasil.

Entretanto, o fortalecimento de compromissos objetivos eprecisos entre os países da América do Sul tornou-se vital para que ospaíses da região pudessem acompanhar os desenvolvimentos queocorrem no cenário internacional. Nesse sentido, tal fortalecimentonão pôde ser interpretado como um subterfúgio e, sim, como umaarticulação interna que delimita as reais potencialidades dos países sul-americanos, para o fortalecimento de processos de integração maisamplos de que fazem parte, a exemplo do Grupo do Rio ou da Áreade Livre Comércio das Américas.

Nesse sentido a articulação da América do Sul é imprescindívelpara o fortalecimento dos seus pontos de vista, uma vez que, dada àformação de uma área de livre comércio nas Américas, sua atuaçãocontribua para a redução dos desequilíbrios econômicos e sociais queainda dividem o Hemisfério.

A Cúpula de Brasília (31 agosto a 1º de setembro de 2000),em uma perspectiva de longo prazo, foi um fato importante da políticaexterna do Brasil, pois a intensificação das pressões socioeconômicasem 1998-1999 foram um teste para revitalizar as instituiçõeseconômicas, políticas e democráticas na região, e o Brasil, fazendo umaapreciação mais ampla sobre o caráter global, propôs o estabelecimentode uma Área de Livre Comércio da América do Sul (Alcsa), para, decerta forma, dar ao seu discurso diplomático um caráter autonomista.

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O Mercosul, por sua vez, perdeu em 1998-1999 a dinâmicaque o caracterizava. Esgotou-se a etapa de ganhos fáceis com a integração,característicos da fase inicial de expansão de comércio em decorrênciada desagravação tarifária automática. Somou-se a essa constataçãoestrutural o fato de que a retração econômica nos países da região provocouuma exacerbação de pressões protecionistas, especialmente por parteda Argentina em relação a produtos brasileiros – desconsiderando, osuperávit argentino que permeou as relações comerciais entre essesparceiros do bloco.

Com o propósito de manter as conquistas da integração sub-regional e preparar as bases para novos avanços em momento oportuno,o governo brasileiro e o Itamaraty conduziram um exercício internode reflexão sobre as metas de negociação para o relançamento doMercosul, em especial a consolidação da União Aduaneira. Nessesentido, a iniciativa de criação da Alcsa e o estabelecimento de uma zonade livre comércio entre o Mercosul e a Comunidade Andina, sinalizarama perspectiva adotada pelos parceiros da bacia do Prata para a crise.

Na XXXVII Reunião do GMC, em abril de 2000, foramabordadas as demandas argentinas em torno dos “setores sensíveis” desua economia, cujo nível de produtividade não permite competir emcondições de igualdade no mercado ampliado do Mercosul. Em marçodo mesmo ano o Brasil e a Argentina alcançaram entendimento bilaterala respeito das grandes linhas do futuro regime automotivo do Mercosul,cujo comércio nesse setor responde por cerca de um terço das trocasintrazona, e cujo estabelecimento de regras é fundamental para atraçãode investimentos diretos estrangeiros10. E, além disso, foi registradona Declaração Ministerial de Buenos Aires, um entendimento na áreade coordenação de políticas econômicas (área fiscal, de dívida públicae de preços).

Em relação aos Estados Unidos, a política externa brasileirateve que articular seu papel na condução de assuntos hemisféricos e noplano estritamente bilateral, devido a relevância da “superpotência” parao desenvolvimento nacional.

10 Corrêa. op. cit., p. 14.

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Embora, como apresentou Luiz Felipe Lampreia11 , nãotenhamos ligação preferencial de caráter excludente com apenas umdos pólos da economia internacional, uma vez que, segundo dadosdos anos 2000, a América do Norte foi o destino de um quarto denossas exportações e a União Européia representou proporção similar– 27%, não podemos desconsiderar que a atuação norte-americana nosetor econômico pós-Guerra Fria é pautada pela condução de políticasque preservem sua supremacia.

No segundo semestre de 2000, em meio à crise do Mercosul,a economia americana começou a apresentar sinais de desaquecimento,enquanto o Brasil avançava a iniciativa de integração sul-americana.Com a derrota eleitoral, os democratas americanos procuraram criarfatos novos, comprometendo a agenda do Presidente Bush com aaceleração das negociações da Alca. Segundo o economista Marcelo dePaiva Abreu,

a integração hemisférica é de fato uma extensão do Nafta. O novopapel do regionalismo para os EUA é uma manifestação dachamada política do ‘pé de cabra’, do ‘crowbar’. A expressãofoi utilizada por Carla Hills (negociadora americana) nestesentido: arrombar mercados onde eles estão fechados (PolíticaExterna, 1997, p. 47)12.

Nesse sentido, a concretização da Alca implicaria no fim doMercosul, uma vez que anularia as vantagens que a Tarifa ExternaComum assegura às empresas dos países-membro, além de solaparvários setores industriais devido a desproporcional competitividade dasindústrias do “norte” em relação às do “sul”. Durante o segundo mandatodo governo FHC, a questão Alca e Mercosul adquiriu relevância napauta da política externa brasileira, tanto pela crise do Mercosul(sobretudo da Argentina) como pela pressão norte-americana para aimplementação de uma área de livre comércio do Alasca a Terra doFogo em caráter de urgência.

11 Lampreia, Luiz Felipe. Palestra proferida na Câmara de Indústria e Comércio Brasil-Alemanha. Junho de 2001.12 Vizentini, Paulo. Alca: a Área de Livre Comércio das Américas.

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Em 2001 ocorreram dois encontros que marcaram fortementea agenda internacional do Brasil: a VI Reunião dos Ministros deComércio do Hemisfério, em Buenos Aires e a III Cúpula das Américas,em Quebec. Ambas versaram essencialmente sobre o tema de antecipaçãoda Alca e preteriram a discussão do efetivo programa dessa área de livrecomércio, caso tal fato não seja algo consumado. Ainda em relação aosEUA, o Brasil enfrentou problemas relativos a questão das patentesdos medicamentos contra o HIV-Aids, o qual acabou resultando numacordo em junho de 2001. Além disso, o Brasil, juntamente com demais188 membros da ONU, aprovaram um Plano de Ação Global paraTratamento e Prevenção da Aids, junto com a idéia de um fundo global.

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Apesar do grande enfoque dado às questões relativas aoMercosul e a Alca, o Brasil não prescindiu de continuar atuando“multilateralmente”, conduzindo negociações com a União Européiae firmando relações bilaterais e parcerias estratégicas.

Em junho, ocorreu no Rio de Janeiro a I Cimeira UniãoEuropéia-América Latina e Caribe, no qual foram lançadas negociaçõescom vistas à conclusão de um acordo de livre comércio inter-regional,em junho do mesmo ano, pelos chefes de Estado do Mercosul e doChile e da União Européia. Ainda que num primeiro momento, osentendimentos tenham progredido lentamente, nas negociações doComitê de Negociações Birregionais realizadas em novembro de 2000,em Brasília, e em Bruxelas em março último, houve maior disposiçãopor parte dos parceiros europeus em avançar discussões sobre métodos,modalidades e calendário das negociações para a eliminação progressivadas tarifas sobre bens e para a liberalização do comércio de serviços.

Em maio de 99 realizou-se na Cidade do México, a XIII Reuniãode Chefes de Estado e de Governo do Grupo do Rio e, em julho,ocorreu a assinatura de Acordo Comercial entre o Mercosul eComunidade Andina, sinalizando para a continuação da tradição dapolítica externa brasileira em aprofundar e estabelecer contatos com aAmérica do Sul.

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Em novembro de 1999 o Brasil marcou presença na IXConferência Ibero-Americana em Havana e na Reunião de Florença,sobre a chamada “boa-governança”, reiterou suas propostas (que datamde 1995), sobre a necessidade de maior cooperação internacional parao controle dos fluxos de capital de curto prazo.

No ano 2000, o Brasil participou, em Moçambique, da IIIConferência de Chefes de Estado e de Governo da Comunidade dePaíses de Língua Portuguesa. Em 2001, a XV Cúpula de Grupo doRio, em Santiago do Chile, teve como pauta inconclusa a cláusulasobre a democracia participativa com a dimensão de democraciarepresentativa.

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Do início dos anos 60 ao fim da década de 1980, a históriabrasileira foi marcada pela ascensão e queda do regime militar, quepermaneceu no poder por 21 anos e alterou profundamente a sociedadebrasileira. Estabelecer um balanço deste período é algo difícil, que poucostiveram coragem de fazer. Basicamente, o regime militar propôs-se ecumpriu dois objetivos básicos: construir um moderno capitalismoindustrial e conter o movimento popular. Quanto ao primeiro aspecto,é preciso considerar que os militares deixaram o Brasil na posição deúnico país ao sul do equador dotado de um completo e diversificadoparque industrial, ao contrário de seus congêneres do Cone Sul, quedesindustrializaram seus países. Obviamente, como país periférico eem decorrência de ser um projeto capitalista, isto não reverteu adependência do país, até hoje estrangulado pela dívida externa emarcado por uma série de distorções.

Ao longo deste caminho, as elites tradicionais se modernizaram,e redimensionaram as estruturas de dominação, que seguem vigentes.As desigualdades sociais, por sua vez, tornaram-se ainda maiores,colocando o país na posição de liderança da pior distribuição de rendado mundo. Mesmo tendo atingido a posição de oitava economia domundo nos anos 80, o Brasil ostenta índices de analfabetismo, pobrezae doenças que o situam entre os mais pobres do mundo. Tendo que

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manter submissa politicamente e excluída economicamente grandeparte da população, e optando por um modelo socioeconômicodinâmico, mas tendente às desigualdades; a burguesia brasileira gerouuma contradição insolúvel, que a obrigou a procurar certos caminhosde autonomia, os quais antagonizavam certas regras da ordem capitalistamundial.

Os governos Sarney e Itamar, em condições adversas, tentaramresistir às pressões externas, em particular dos EUA, afirmando os conceitosque se tornaram vetores de nossas relações internacionais. Contudo, osgovernos Collor e FHC optaram pelo caminho de menor resistência,aderindo à agenda internacional, o que rebaixou significativamente operfil de nossa política externa. O país pagou um preço elevado por talopção nos anos 90. Contudo, a década se encerrou com a crise destemodelo de inserção internacional, e o ano de 2002 afigura-se comodecisivo. A adesão ou não à Alca, tornou-se a questão pivô, em meio àcrise argentina e do Mercosul. Como em outras oportunidades, talcrise pode servir de catalisador para a estruturação de um novoparadigma de inserção internacional. O Brasil terá de optar entreconstituir um mero apêndice dos EUA numa integração hemisféricaassimétrica, ou inserir-se de forma mais soberana na globalização,construindo um pólo de poder político-econômico na América doSul, capaz de contribuir para o estabelecimento de um sistemainternacional multipolar para o século que se inicia.

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Lúcia Maria Bastos P. Neves*Tania Maria Bessone T. da Cruz Ferreira**

“Depois de tantos anos de colônia portuguesae agora improvisado em império, o que nosapresenta o Brasil? um quadro selvático, salpicadode tênues vestígios de civilização” ...1

“Essa Europa que não é culta, que é Portugal,vá nos mandando os seus colonos” ... 2

Percepções e imagens que portugueses e brasileiros construíramreciprocamente no decorrer do século XIX, as duas citações acimaevidenciam os preconceitos e estereótipos a que os dois países recorrerampara pensar a sua identidade e alteridade, revelando, assim, aspectos docotidiano, dos costumes, das atividades de seus habitantes, filtradospelas categorias intelectuais de cada observador, em que cada um, aoexagerar a deformação do outro, representava também a si próprio.3

Analisar tais representações sobre o Brasil e Portugal, ao longodo século XIX, por meio de conjunturas distintas, em que repulsa eatração se alternavam, em função das relações diplomáticas entre asduas nações irmãs, é a proposta deste estudo. Pretende-se proceder a

* Doutora em História Social pela Universidade de São Paulo e professora do Departamentode História da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.** Doutora em História Social pela Universidade de São Paulo e professora na Universidadedo Estado do Rio de Janeiro.1 O Ramalhete. Lisboa, n.º 154, 21 de janeiro de 1841.2 Anais do Senado, sessão de 16 de junho de 1859, Rio de Janeiro, v. 1. p. 131.3 Cf. Frank Robert. History of International Relations and Images. In: Comission of Historyof International Relations (org.). Commemorative Volume. Papers for the 19th InternationalCongress of Historical Sciences. The Formation of the Images of the Peoples and the History ofInternational Relations from the 18th Century to the Present Day. Publicação Digital. Oslo,2000, p. 574-577; Pizzetti Silvia. Images: lieux et temps. In: Comission of History ofInternational Relations (org.). Commemorative ..., p. 578-583.

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uma exploração da presença e da circulação de idéias vindas de fora,não só no interior da esfera do Estado, como no cotidiano da sociedadebrasileira, a fim de se efetuar uma análise a partir da atuação das elitesintelectual e política da época, que circularam nos dois mundos, sejapor meio de viagens, ou de leituras, absorvendo influências do exteriore produzindo bens culturais destinados ao público brasileiro. Ao estudaressa variedade de olhares sobre o Brasil, do interior para o exterior evice-versa, que estabeleceram influência de mão dupla no interior deuma elite civilizada, mas inserida numa sociedade escravista,majoritariamente iletrada e tradicional, tem-se por objetivo principal,enfim, esclarecer a identidade de um país cujas contradições continuama manifestar-se até hoje.

* * *

Um espírito de recíproca aversão entre brasileiros e portuguesesmanteve-se quase sempre latente ao longo do período colonial, emfunção dos obstáculos à ascensão social dos filhos dos portuguesesnascidos neste lado do Atlântico, e que recrudesceria quando do processode autonomização brasileira. Aversão, fermentada ainda mais, emvirtude da ingratidão demonstrada pelos portugueses radicados naAmérica quanto à terra e seus habitantes:

Vinha um europeuzinho para o Brasil [...]: era logoagasalhado, vestido, estimado pelos negociantes filhos da terra,ou casados e estabelecidos nela; entrava a servir como caixeiro,juntava algumas patacas, punha seu armarinho, passava a ter umaloja, casava com uma rica brasileira; vai senão quando dizia aquelehomenzinho à mulher e à sogra que elas eram mulatas; ao sogro,que era marcado; e que ele, homenzinho, era filho de um ricoproprietário lá na sua terra; que veio ao Brasil com o fim de viajar;e que a sua maior desgraça foi contrair um casamento tão desigual,que muito desonrava a sua ilustre família, que tem armas na porta.4

4 Ensaio historico – politico sobre a origem, progressos e merecimentos da antipatia ereciproca aversão de alguns portuguezes europeus, e brasilienses, ou elucidação de humperíodo da célebre acta do governo da Bahia datada de 18 de fevereiro do anno correnteescripto. (Por R. J. C. M.). Rio de Janeiro: Tip. Moreira & Garcez, 1822, p. 14.

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A época da independência constituiu-se, portanto, como umprimeiro período privilegiado para se apreender as imagens erepresentações, próprias a cada uma das respectivas elites políticas eintelectuais, indicando os valores distintos que uma cultura políticacomum tinha a capacidade de assimilar. Com o movimento vintista,de um lado, as elites da metrópole procuraram recuperar a proeminênciado reino europeu no interior do império luso-brasileiro, perdida em1807. De fato, desde a partida da família real para o Rio de Janeiro,tinham-se invertido os papéis entre o Brasil e Portugal. Consolidadapela elevação do primeiro a Reino Unido, em 1815, a essa situação eraatribuído o estado lastimável em que se encontravam a economia e asfinanças portuguesas, duramente atingidas com a volumosa e contínuatransferência de créditos públicos e particulares para a corte do Rio deJaneiro, com os pesados encargos militares e a drástica redução docomércio luso-brasileiro. Além disso, a virtual tutela inglesa sobre Portugale a ausência do soberano abalavam a auto-estima dos portugueses.De outro, os brasileiros não podiam deixar de tentar resguardar osprivilégios e prerrogativas adquiridos desde o estabelecimento da sededa monarquia no Rio de Janeiro. Desse modo, a independência, maisdo que um desentendimento entre colonizador e colonizado, era umaluta pela hegemonia no seio do império.

Objetivos e anseios distintos levaram, assim, a elaboração deimagens entre colônia e metrópole, que perduraram ao longo de todoo século XIX e que podem ser encontradas, inicialmente, na polêmicaestabelecida entre os principais jornais e folhetos da época, tanto aquelespublicados no Brasil, quanto em Portugal. Do lado de lá, os portuguesesprocuravam ressaltar a ingratidão do Brasil em relação à Pátria-Mãe,que lhe concedera tantos benefícios sob a forma do constitucionalismo,ao buscar nesse momento quebrar a integridade do império por meiode sua separação. Do lado de cá, os brasileiros viam nos escritos impressosem Lisboa um modo de “inflamar os espíritos e promover a desuniãodo Brasil”, devido aos insultos que traziam.5 Era uma guerra “mais de

5 Correio Braziliense. Londres, v. 28, junho 1822, p. 729.

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pena, que de língua ou de espada,”6 apontando uma série de questõesque envolveram as representações imaginadas entre Portugal e Brasil.

Tais escritos exaltavam a superioridade portuguesa por meiode uma comparação física, reduzindo o Brasil a “um gigante, emverdade, mas sem braços, nem pernas; não falando do seu clima ardentee pouco sadio”, e a umas poucas “hordas de negrinhos, pescados nascostas da África”. Além disso,

seu terreno interior está inculto e seria preciso que decorressemséculos para cultivar-se, ou que Sua Majestade adotando o sistemado autocrata de todas as Rússias, estabelecesse e criasse ali de novoos antigos infatigáveis jesuítas, que com suas mossas de pau fossemcristianizando e domesticando todos os índios Botocudos,Coroados e Puris; ou então que o Astro, pelas suas benéficasinfluências, fizesse transportar para lá todos os calcetas da Europae meretrizes de Lisboa (que não havia de fazer má colheita)!

Em compensação, Portugal era o “Jardim das Hespérides, osElísios, deste pequeno mundo chamado Europa”, que concentrava emsi todas as delícias e prazeres da terra. A imagem do Brasil era identificadaà “terra dos macacos, dos pretos e das serpentes”; enquanto a de Portugal,ao “país de gente branca, dos povos civilizados e amantes de seusoberano”.7 Inversamente, uma outra imagem surgia do português,visto como “um gárrulo mesquinho, um declamador insolente, umverme obscuro, que “ousou enxovalhar o país”, “menoscabar” os direitosdos brasileiros e “insultar” a família brasileira.8

Uma outra representação tomava forma pelo – pés-de-chumbo– dado aos soldados portugueses da Divisão Auxiliadora no Brasil.Essa idéia surgiu a partir dos calçados dos soldados portugueses, repletosde cravos na sola; os brasileiros, como eram superiores em leveza, eram

6 Carta do Sacristão de Tambi ao estudante Constitucional do Rio. Revérbero ConstitucionalFluminense. Rio de Janeiro: nº 9, 8 de janeiro de 1822.7Carta do compadre de Lisboa em resposta a outra do compadre de Belém ou juízo crítico sobre aopinião pública dirigida pelo ‘Astro da Lusitânia’. Reimpressão no Rio de Janeiro: Tip. Real,1821, p. 15-6.8 Discurso que em desagravo aos brasileiros ofendidos pelo compadre de Lisboa na sua cartaimpolítica dirigida ao compadre de Belém. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1821, p. 3.

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denominados pés-de-cabra. Mais tarde, a linguagem política ampliouo significado do termo, definindo como pés-de-chumbo “todo aqueleeuropeu que não assentiu à causa brasileira”.9

A essas rivalidades, logo se sobrepôs o temor quanto à presençados lusitanos na órbita da Corte no Rio de Janeiro. Essa ojeriza decorria,em parte, de uma suposta “recolonização”. Segundo Francisco Gomesda Silva, o conhecido Chalaça, favorito do imperador, a indisposiçãocontra os portugueses “não provinha tanto do desejo de vingar antigosultrajes”, mas do receio dos brasileiros que os europeus “urdissem tramaspara os privar do bem da independência”.10 Além disso, em termos depolítica, a presença portuguesa constituía uma ameaça à organizaçãodo novo país, em virtude da influência que poderia exercer junto aoimperador, com idéias de um governo mais centralizado e absolutista.

Em segundo lugar, situava-se a questão administrativa, emfunção da disputa de cargos entre lusos e brasileiros. Ministros deEstado, oficiais, magistrados, deputados, inclusive o próprio imperadorhaviam nascido em Portugal. O jornal A Estrela Brasileira, em 1823,aconselhava o governo a afastar os portugueses “dos grandes empregosnacionais, enquanto não fosse reconhecida a independência doimpério”.11 A Junta do Maranhão, após a sua adesão ao sistema doRio de Janeiro, em 1823, enviava ofício ao imperador informandoque julgava, “de extrema necessidade para a consolidação de nova ordemde coisas, que fossem demitidos todo os empregados públicosportugueses, a fim de serem substituídos por filhos do país”.12

Encaminhava, dois meses mais tarde, uma relação dos europeusportugueses que tinham sido privados de seu ofício, como por exemplo,Antonio José do Carmo, proprietário do ofício de escrivão daOuvidoria-Geral da Relação e Conservatória Inglesa. Justificava-se talato em virtude de ser um indivíduo

9 Para a origem desses apelidos, ver C. Seidler. Dez anos no Brasil. São Paulo: Martins, 1941,p. 305. Para a citação, cf. D. Periquito na Serra dos Órgãos, congratulando-se com seuscompanheiros. Rio de Janeiro: Tip. Nacional, 1822, p. 1.10 Francisco Gomes da Silva (O Chalaça). Memórias. (Prefácio e anotações de NoronhaSantos). Rio de Janeiro: Editora Souza, 1959, p. 62.11 A Estrela Brasileira. Rio de Janeiro: n.º 14, 19 de novembro de 1823.12 Biblioteca Nacional. Divisão de Manuscritos. I – 31, 29,35. Ofício da Junta do Maranhão.agosto de 1823.

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a quem a opinião pública acusa por um dos principais perturbadorese capital inimigo da independência política do Brasil e de SuaMajestade Imperial, de que deu as mais manifestas e verídicas provas,denunciando e promovendo flagelos, bárbaras prisões e desterrosa todos os amantes da Grande Causa Brasílica, publicando quese deviam matar todos os brasileiros e europeus que davam provasde independentes.

No entanto, como o termo brasileiro ainda não adquirira seusentido moderno, estando restrito à idéia de local de nascimento, oude moradia, explicava a permanência de Joaquim da Costa Barradas,português, proprietário do ofício de guarda-mor da Relação, que, “nãofoi amante da Constituição Portuguesa, em cujo tempo sofreu toda asorte de despotismo e cujo sistema nunca jurou”, mas, ao contrário,“por ser uma das pessoas que mais promoveu nesta província o felizSistema da Independência do Brasil”.13

Da mesma forma, contribuía para a tensão entre portugueses ebrasileiros a questão social, que se mesclava à econômica, em funçãoda concorrência exercida no mercado de trabalho pelo português debaixa renda em relação aos indivíduos das camadas mais humildes,compostas na maioria de mestiços e negros. Na matrícula de portuguesesna Polícia, entre 1825 e 1827, verifica-se o registro de 406 indivíduos,quase todos solteiros (97%), na faixa etária dos 16 aos 20 anos, dosquais 342 diziam ser caixeiros de profissão, vindos para o Rio de Janeiroa “procurar fortuna”, mas que, em comparação com forros, pardos emulatos, permaneciam, antes de tudo, brancos. Nessas condições, nãoera difícil, nos momentos de conflito, mobilizar esses forros e libertospara fins políticos, recorrendo à imagem daqueles outros.14 Aliás,

13 Biblioteca Nacional. Divisão de Manuscritos. I – 31, 28,28. Lista dos Europeus que têmsido privados de ofícios de Justiça depois que se proclamou a independência deste império.Maranhão, 18 de outubro de 1823.14 Arquivo Nacional. Códice 373. Matrícula de Portugueses na Polícia. 1826. Cf. aindaGladys S. Ribeiro. “Pés-de-chumbo” e “Garrafeiros”: conflitos e tensões nas ruas do Rio deJaneiro no Primeiro Reinado (1822-1831). Revista Brasileira de História. São Paulo: v. 12,n.º 23/24, p. 141-165, set. 91/ago. 92

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também era grande o número dos lusos nas camadas mais altas dasociedade carioca e eles sempre estiveram enraizados nos setoresfundamentais da economia, sendo, por conseguinte, obrigados a adotara cidadania brasileira, como única saída possível, se quisessem permanecerno país.

Finalmente, havia a questão cultural, em função da homoge-neidade que Portugal soubera assegurar com a formação dos elementosmais destacados da elite na Universidade de Coimbra, restringindo apossibilidade de que a cultura letrada formulasse uma personalidadepara o novo país.

Foi no bojo dessas susceptibilidades ofendidas, após 1822, queemergiu na linguagem política o sentido moderno da palavra brasileiro,com uma conotação de identidade coletiva, quer social, política oucultural. Fazendo eco a essa novidade, afirmava o Deputado Carneirode Campos, na Assembléia Constituinte, em 19 de junho de 1823,que o nome brasileiro deixava de indicar apenas o local de nascimentoe passava a significar “qualidade na esfera política”.15 Na ausência,porém, de uma tradição cultural própria, distinta da herança lusa, queemprestasse consistência a essa percepção, a única forma de definir obrasileiro era pelo que o termo excluía. E, naquela conjuntura que seseguiu à independência, dominada pelas atitudes contraditórias dePedro I – em particular após a morte de seu pai, em 1826, quando sedeixou envolver cada vez mais pelas questões da antiga metrópole –nenhuma idéia se oferecia com maior facilidade para exercer este papeldo que a de ser português. Neste momento, o português transformou-se justamente no outro, isto é, no estrangeiro com o qual havia apossibilidade de conflito, convertendo-se, por conseguinte, no inimigo.16

Essa visão do português, considerado como a nacionalidadeestranha e inimiga, no momento de construção do Império do Brasil,

15 Diário da Assembléia Geral Constituinte e Legislativa do Império do Brasil – 1823. (v. 1).Sessão de 19 de junho de 1823. Brasília: Senado Federal, 1973, p. 244. (Edição fac-similada).16 Cf. C. Schmitt. O conceito do político. Petrópolis: Vozes, 1992, p. 51-53. Cf. ainda LúciaMaria Bastos P. Neves & Tania Maria Tavares Bessone da C. Ferreira. Brésil, Portugal etFrance: Représentations imaginées (1808-1864). In: Comission of History of InternationalRelations (org.). Commemorative ..., p. 606-619.

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refletiu-se também no âmbito do poder oficial. Em dezembro de 1822,o governo imperial estabeleceu um decreto em que mandou seqüestraras mercadorias, prédios e bens pertencentes a vassalos portugueses, emvirtude “dos escandalosos procedimentos e das hostilidades manifestasdo governo de Portugal contra a liberdade, honra e interesses” do Brasile das “desesperadas tentativas” dos habitantes portugueses em continuara fazer “uma guerra fratricida” na antiga colônia, com o objetivo de“tiranizar” os súditos brasileiros.17 Da mesma forma, era necessáriodefender o país contra o possível envio de tropas portuguesas. O decretoe plano de organização da Guarda Cívica demonstravam essa atitude:

Logo que chegou a essa capital a notícia que Portugal, emmenoscabo dos direitos de igualdade e liberdade civil para esteReino do Brasil [...], projeta agredir e pela força tornar esteinocente e brioso povo do Brasil ao abjeto antigo estado decolônia, patenteou-se a pública indignação, e os habitantes destaprovíncia, animados do justo sentimento de sua honra epundonor ofendido, correram a alistar-se voluntariamente paraa defesa de sua pátria e de seus inauferíveis direitos; pedindo-meque houvesse por bem de aprovar o incluso plano, que a MinhaAugusta Presença dirigiram, para a organização de um Corpo,composto das classes dos mais distintos cidadãos, com adenominação de Guarda Cívica.18

Por meio de um jogo de palavras, reforçava-se a ameaça deo Brasil voltar a ser colônia, opondo-se o “povo inocente e brioso”à agressão e à força militar portuguesa. Sem dúvida, uma alusão aoenvio de tropas para a Bahia, anteriormente aprovado pelo Congressoportuguês, e que chegaram a seu destino em finais de outubro. A ameaçade “uma guerra cruel pelas Cortes despóticas de Lisboa” levava osbrasileiros às armas. Uma proclamação, no Correio do Rio de Janeiroconclamava: “Alerta brasileiros: às armas, cidadãos honrados, sejamostodos soldados: a pátria o pede, a natureza o dita”. Uma nova fé política

17 Brasil. Decreto de 11 de dezembro de 1822. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1822.18 Decreto e Plano de Organização da Guarda Cívica. Gazeta do Rio de Janeiro. Suplementoao no 120, 5 de outubro de 1822.

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se propagava, ampliando a divisa “Independência ou Morte” para“Constituição Brasileira ou Morte”. O final da proclamação era umaexaltação ao espírito patriótico: “não há cidadão sem pátria: É precisodefendê-la, é doce morrer por ela”.19

No mesmo espírito, alguns brasileiros levaram a D. Pedro umplano de subscrição para angariar fundos a fim de melhor equipar aMarinha brasileira. Segundo seus idealizadores, o projeto servia deinstrumento para “excitar o entusiasmo e o patriotismo dos povos”.Em resposta, registrou-se, até mesmo, o oferecimento de escravosmarinheiros para o serviço da esquadra, como se observa numa petiçãopublicada pela Gazeta do Rio de Janeiro. Tratava-se de Manuel Felizardode Carvalho e Almeida que, embora natural do Porto, estava “animadoda mais sincera adesão pela causa do Brasil e pela grandeza do império”.20

Apesar do momento convulsivo, ainda se tornava bastantedifícil definir os critérios de uma nacionalidade. Sem dúvida, foi apartir do movimento constitucional de 1821 que os conceitos de pátriae nação adquiriram uma nova dimensão, ligada ao vocabulário políticoda Revolução Francesa. Se o dicionário de Antonio de Moraes Silva,até 1823, referia-se à pátria como “a terra donde alguém é natural”,alguns folhetos políticos que circulavam no Rio de Janeiro, definiam apalavra dotando-a de um sentido moderno e revolucionário.

Pátria é coisa pública: o rei é a pátria; o governo é a pátria,o país em que habitamos é pátria; a coleção de nossos concidadãos,de nossas mulheres, de nossos filhos é pátria; o nosso própriobem estar é pátria, entidade sagrada e por cuja conservação tudodevemos arriscar.

Logo, a pátria pertence a todos, pois é a “mãe comum”. Nessemomento, porém, a mãe comum não era mais Portugal. A imagemda pátria estava cindida; por conseguinte, era preciso estabelecer quaisos parâmetros para decidir se o indivíduo podia ser considerado um

19 Proclamação. Correio do Rio de Janeiro. no 143, 3 de outubro de 1822.20 Revérbero Constitucional Fluminense. no 19, 1 de outubro de 1822. Última citação emGazeta do Rio de Janeiro. no 129, 26 de outubro de 1822.

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cidadão brasileiro, uma vez que o critério de nascimento eraabandonado.21 O autor de uma carta, publicada no jornal fluminenseO Sylpho, afirmava que: “quando uso da denominação brasileiro,entendo como tal o natural do império e o português aqui domiciliadoe ligado à causa do Brasil”.22

Para dirimir, em parte, alguns desses conflitos entre brasileirose portugueses, tentou-se definir a questão dos direitos de cidadania,ainda que provisoriamente, por decreto de 14 de janeiro de 1823,admitindo-se como cidadãos brasileiros, os portugueses chegados aoBrasil após a separação e que, perante as câmaras municipais, jurassemfidelidade ao imperador e à nova pátria. Quanto aos portugueses jáaqui residentes, eram considerados da mesma nacionalidade dosbrasileiros, alcançando direitos iguais a estes. A partir de maio de 1823,a discussão na Assembléia Constituinte do projeto apresentado pelodeputado pernambucano Muniz Tavares sobre naturalização suscitounovos debates. Por este, eram declarados cidadãos brasileiros todos osportugueses que residissem no Brasil com a intenção de permanecereme que tivessem “dado provas não equívocas de adesão à Sagrada Causada Independência do Brasil e à augusta Pessoa de sua MajestadeImperial”. O governo ainda estava autorizado, por espaço de três meses,a partir da publicação do decreto, a expulsar imediatamente aquelesque tivessem conduta suspeita.23 Antonio Carlos de Andrada e Silva,ao defender o projeto de naturalização, chegou a afirmar que nenhumportuguês poderia “amar de coração uma ordem de coisas que implicana ruína de sua pátria de origem”. E arrematava: “se eu fosse portuguêsdetestaria a separação e a independência do Brasil”. Os portugueses denascimento, por seu turno, sentiam-se ofendidos pelas dúvidas sobre afidelidade deles à “causa brasílica”.24 Talvez porque, mais presos àtradição, identificassem esta causa prioritariamente ao imperador e àsinstituições do império, que julgavam preservar das cortes, relegando aterra de origem a um segundo plano. E contavam com a simpatia de

21 Ensaio histórico-político sobre a origem, progressos ... , p. 5.22 O Sylpho Extraordinário. Rio de Janeiro: 22 de agosto de 1823.23 Diário da Assembléia Geral Constituinte .... (v. 1). Sessão de 19 de junho de 1823. p. 244.24 Diário da Assembléia Geral Constituinte .... (v. 1). Sessão de 19 de junho de 1823. p. 253.

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D. Pedro, nascido no palácio de Queluz, nos arredores de Lisboa, eencrespado pelos mesmos motivos.

A polêmica decorreu, não tanto da letra do projeto, e sim dassensibilidades envolvidas, que se manifestaram num episódio ocorridono teatro, na noite de 11 de agosto de 1823. Alguns criados e umoficial portugueses foram vistos no camarote imperial, sentados à frentede ministros de Estado, que eram brasileiros. O Tamoio considerou ofato “escandaloso e ridículo”, e o partido português respondeu deimediato no Correio do Rio de Janeiro, que se transformara em instrumentodos europeus.25 Na realidade, os brasileiros estavam agastados com oimperador, cujas atitudes mais recentes favoreciam os portugueses doseu círculo imediato, e aproveitavam a ocasião para, indiretamente,denunciar a situação.

Em Portugal, as representações edificadas mantinham, de umlado, a imagem do filho ingrato, uma vez que nada lhe faltara desde oinício da colonização e, após a Revolução de 1820, o Brasil vira-seainda favorecido pelas benesses da Regeneração Portuguesa. Não era o“honrado povo brasiliense”, mas sim uma “facção monstruosa” queestava “determinada a enterrar o punhal no próprio coração da pátriainocente”.26 De outro lado, estava presente a idéia de que o “Brasilpertence aos portugueses como uma herança de seus pais”, que oconquistaram. Da mesma forma, a figura do príncipe regente eraapresentada na Assembléia de 1822, como “um mancebo ambicioso ealucinado” que ousava “contravir os decretos das cortes” e “insultar asoberania da Nação”.27 Nada mais restava, na visão de alguns, do queusar a força para trazer de volta o Brasil ao seio do império português.

25 Ver, respectivamente, O Tamoio. Rio de Janeiro: n.º 3, 19 de agosto de 1823 e Correio doRio de Janeiro. Rio de Janeiro: n.º 20, 25 de agosto de 1823. Para a visão do Correio comoinstrumento do partido português, cf. Correspondência do Barão de Mareschal. Revista doInstituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Rio de Janeiro: v. 314, jan-março 1977, p. 314-342.26 Cf., entre outros, A América inglesa e o Brasil contrastados, da sobeja razão que teve a primeira;e a sem razão do segundo para se desligarem da Mãe-Pátria. (Por um Amigo da Ordem). Bahia:Tip. de Silva Porto, 1822. Para a citação, ver Campeão Português em Lisboa ou Amigo do Povoe do Rei Constitucional. Lisboa: n.º 8, 25 de maio de 1822.27 O Brasileiro em Coimbra. Coimbra: n.º 1, 1823. Para a citação da Assembléia de 1822, verDiário das Cortes. Sessão de 27 junho 1822, p. 590-1.

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Criava-se, assim, o espectro de uma possível invasão por Portugal daantiga colônia, defendida por alguns deputados nas cortes ordináriasde 1823 e pela imprensa de época, como o Campeão Lisbonense e aGazeta de Portugal. Apesar de haver uma preocupação com a sorte dopróprio movimento liberal em Portugal, em virtude da invasão francesana Espanha, decretada pelo Congresso de Verona em 1822, essesindivíduos acreditavam que ao Brasil devia ser elevado “a ferro e afogo”. Afinal, a “honra nacional” fora “tão indecorosamente insultada”que se tornava necessário um “desagravo de tamanha ofensa”. Ao longode 1823, no entanto, a situação financeira precária de Portugal e omovimento da Vila Francada, que colocou fim à experiência liberal etrouxe o conseqüente retorno ao absolutismo, inviabilizavam, na prática,qualquer possibilidade de organizar-se uma expedição ao Brasil.28

No lado de cá do Atlântico, as notícias estrondosas dapossibilidade do envio de tropas lusitanas para submeter a ex-colôniaprovocavam imagens de um mar coalhado de corsários armados pelaantiga metrópole. Avistava-se um navio ao longe e, na visão doSpectador Brasileiro, os novelistas já publicavam que aí vinha “contranós o anticristo com a besta de sete portas”; não tardava “a trombetado dia do juízo”; tudo estava perdido, pois uma esquadra de vinte milhomens estava pronta para saltar “às escondidas em diversos pontos”.29

A situação permaneceu inalterada até o momento doreconhecimento da independência, por Portugal, pelo Tratado de Paze Aliança, firmado em 29 de agosto de 1825. D. João VI cedia asoberania ao Brasil e tomava para si o título honorário de imperadordo Brasil. D. Pedro comprometia-se a indenizar a antiga metrópolecom a vultosa quantia de dois milhões de libras esterlinas, supridas porum empréstimo inglês. Restituíam-se as presas e levantavam-se osseqüestros realizados durante a guerra de independência. Para contornar

28 Para a primeira citação, ver Gazeta de Portugal. Lisboa: n.º 17, 10 de fevereiro de 1823;para a segunda, cf. Campeão Lisbonense. Lisboa: n.º 149, 30 de dezembro de 1822. Para aquestão brasileira face à imprensa portuguesa, ver Valentim Alexandre. Os sentidos do Império.Questão nacional e questão colonial na crise do Antigo Regime português. Porto: Afrontamento,1993. p. 713-729.29 Spectador Brasileiro. Rio de Janeiro: n.º 10, 20 de julho de 1824.

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o problema de Angola, o Brasil ainda assegurava recusar a anexação dequalquer outra colônia portuguesa.30

Ao final da década de 1820, os acontecimentos acabaram portrazer outras mudanças à percepção recíproca entre os dois lados doAtlântico. Em Portugal, após a morte de D. João VI, e a tomada dopoder por D. Miguel, favorável ao absolutismo, o sentimento nacionalpôde emprestar a D. Pedro I, IV de Portugal, uma nova imagem: o“herdeiro de [seus] reis, o primogênito do Senhor D. João VI, o Dadorda Carta, o restaurador da liberdade dos Portugueses”.31

No Brasil, contudo, a imagem de Pedro I tendia a enfraquecer-se como imperador constitucional. Ao mesmo tempo, suas atitudes apartir de 1823 fortaleciam a idéia de vê-lo como um verdadeiro déspota,que tudo fazia para escravizar o Brasil, conduzindo seus interessesparticulares em consonância com aqueles dos portugueses. Por isso,segundo relatos de época, somente em 1831, teria começado “a nossaexistência nacional; o Brasil [seria] dos brasileiros, e livre”. Da mesmaforma, em 1840, o Brasil iria aclamar Pedro II como símbolo da uniãoe da integridade do império, pois “educado entre nós recebeu quase noberço as primeiras lições da liberdade americana e aprendeu a amar oBrasil que o viu nascer”.32

De fato, após a abdicação de Pedro I, os conflitos políticos esociais do período regencial reavivaram a aversão ou desprezo peloportuguês. Na visão dos jornais de época: “O fito dos portugueses éamontoar dinheiro e pisar os brasileiros”, pois eles “continuam a ser osusufrutuários de tudo quanto colhemos”, sendo uma “espécie dedemônios incubos que sufocam a nossa prosperidade”.33

Nesse sentido, algumas medidas de caráter administrativoforam adotadas a fim de favorecer os brasileiros em detrimento dos

30 Bastos P. Neves. Ver Lúcia Maria Angola entre o Brasil e Portugal (1808/1825). Anais daXVI Reunião da Sociedade Brasileira de Pesquisa Histórica. Curitiba: SBPH, 1997. p. 181-186.31 Cf. Paquete de Portugal. Rio de Janeiro: nº 35, 27 de setembro de 1833.32 Para a primeira citação, cf. Abdicação de D. Pedro I. Rio de Janeiro: Tip. Nacional, 1831,p. 7-8. Para a segunda, ver Pharol do Império. Rio de Janeiro: nº 16, 8 de abril de 1837.33 O Sete de Abril. Rio de Janeiro: 7 de dezembro de 1833; Cartas ao Povo. Rio de Janeiro,nº 2, 23 de abril de 1831.

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portugueses. Em 18 de agosto de 1831, um decreto dava providênciassobre os cidadãos portugueses que indevidamente juraram aConstituição do império, pois “inimigos do Brasil”, opuseram-se àsua independência, “chegando mesmo a ponto de empunharem as armascontra uma causa tão sagrada”. No entanto, eles tinham sido até então“escandalosamente considerados como cidadãos brasileiros, pelogoverno transacto, só pelo motivo de continuarem a permanecer noBrasil depois daquela época”. Assim, determinava-se que

os chefes de cada uma das repartições civis, militares e eclesiásticasonde houverem empregados de nascimento português, escrupulo-samente examinem se eles são de fato cidadãos brasileiros adotivosou naturalizados, na forma da Constituição [...]; e quando tallegitimidade se torne duvidosa a respeito de alguns dos primeirosfarão que eles justifiquem perante os juizes territoriais [...].

Além disso, proibia-se que qualquer indivíduo que não fossenascido no Brasil, não sendo cidadão adotivo ou naturalizado, usufruíssede direito ou regalia pertencente a cidadão brasileiro.34

No plano do poder público, sob o prisma das relações formaisentre Brasil e Portugal, algumas medidas foram igualmente tentadaspara reduzir os conflitos entre as duas nacionalidades. Deve-se destacara Comissão Mista Brasil-Portugal, criada a partir da ConvençãoAdicional ao tratado de 29 de agosto de 1825, instalada em outubrode 1827, e que, até meados do século XIX, tentou solucionar osproblemas que se colocavam como herança da separação entre os doispaíses, especialmente aqueles que envolviam questões pecuniáriasrelativas à liquidação de perdas sofridas na Guerra de Independência.35

Uma nova fase das relações entre Brasil e Portugal somente seestabeleceu a partir da disputa em Portugal entre liberais, apoiando arainha D. Maria da Glória, e absolutistas, liderados por D. Miguel.

34 Brasil. Decreto de 18 de agosto de 1831. In: Coleção das Leis do Império do Brazil de 1831.Rio de Janeiro: Typ. Nacional, 1875, p. 277-278.35 Para as informações da Comissão Mista Brasil-Portugal, ver Relatórios do Ministério dasRelações Exteriores de 1831 a 1835; Cervo Amado & Magalhães Calvet de. Depois das Caravelas:as relações entre Portugal e Brasil: 1808-2000. Brasília: Editora da UNB, 2000, p. 118 e 132.

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Buscava-se por parte da antiga metrópole uma reaproximação com oBrasil, a fim de que este emprestasse o seu apoio a um dos soberanos.Para os liberais, sobretudo, o futuro imperador Pedro II era o “augustoirmão de S. M. Fidelíssima”, assim como o Brasil tornava-se o“descendente da heróica nação portuguesa”.36 Comparava-se oimperador-menino a D. Maria II, afirmando-se que no Porto, centroda resistência liberal, o nome de Pedro II, bem como o da ConstituiçãoBrasileira, eram “objetos tão governados e tão sagrados” nos “coraçõesde todos os súditos da senhora D. Maria II”, como eram solenementeproclamados “os direitos da mesma Senhora e a ConstituiçãoPortuguesa”. Assim, o novo representante diplomático escolhido parao Rio de Janeiro, Joaquim Antônio de Magalhães, recebeu instruçõesredigidas pelo Duque de Palmela, em novembro de 1834, querecomendava assentar as novas relações entre Brasil e Portugal sobrelaços de família – D. Pedro II, então herdeiro do trono brasileiro eD. Maria II, a soberana portuguesa, eram irmãos, e dessa aproximaçãodeveria surgir uma nova fase de relações íntimas e duradouras, em quea imagem de Portugal e dos portugueses ficaria amenizada frente aosbrasileiros, com o abandono da idéia do mau colonizador e, suasubstituição por um valor positivo, uma vez que estava na origem danação brasileira.37 Sem dúvida, em ambos os países, a necessidade demanutenção da ordem e da integridade do reino encontrava norestabelecimento de uma autoridade monárquica a solução ideal paraseus problemas. No fundo, as limitadas transformações que oliberalismo trouxe, tanto a Portugal, quanto ao Brasil, marcadas pelaelaboração de uma frágil esfera pública de poder, ainda conservavam afigura do monarca como pólo aglutinador das vontades políticas.

Nesse contexto, o representante português no Rio de Janeirobuscou obter um Tratado de Comércio e Navegação, cuja propostafoi apresentada na Assembléia Geral Legislativa em 1836 e tornou-sealvo de inúmeras críticas dos deputados brasileiros, que reputavamPortugal como “nosso natural inimigo”, achando no tratado “os

36 O Paquete de Portugal. Rio de Janeiro: nº 7, 21 de junho de 1833.37 O Paquete de Portugal. Rio de Janeiro: nº 10, 2 de julho de 1833.

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fundamentos” para se atribuir as piores intenções aos portugueses, que,por detrás de uma “boa capa” de aliança, escondiam todo o venenocontra o Brasil. Surpreendentemente, porém, Francisco AgostinhoGomes, intelectual baiano de fins do século XVIII e das primeirasdécadas do XIX, redigiu uma memória apologética a favor do tratado,em 1837, afirmando que “só o Brasil quer imitar os povos selvagenspara conservar um ódio perpétuo e tão fidagal aos portugueses, quelhes imputamos todos os males que a nossa fantasia pode afigurar”.38

À medida que se caminhava para a segunda metade do séculoXIX, ao se estabelecerem regras para o comércio entre Brasil e Portugale ao cessar a atuação das comissões mistas, no plano oficial, as relaçõesentre os dois países, segundo Amado Cervo, perdiam substância,ocupando-se a diplomacia com a questão imigratória e com algunsacidentes esporádicos.39 No entanto, atitudes ambíguas entre Portugale Brasil possibilitavam novos desencontros, como aquele suscitado pelosartigos publicados no periódico português Asmodeu:

O brasileiro é tipo caricato em França, em Inglaterra, emEspanha e em todas as nações que não sejam o Brasil; mas é-omuito mais entre nós, que somos a origem dessa nova espécie deanimal curioso, transição do macaco para o periquito; doquadrúmano de que possui a figura e da ave da qual origina afala e a cópia da plumagem.

[...]O brasileiro nasceu nosso, como tal é mais nosso do que do

inglês, do francês ou do espanhol. Fugiu-nos, nacionalizou ococo e a banana e tornou-se independente; embrenhou-se nasselvas, amou o orangotango e a arara, fundiram-se as espécies,degenerou a raça, e da antiga origem só lhe ficou a linguagemdecadente e arrastada.40

38 Memória apologética do tratado de Comércio, negociado entre o ministro do Brasil e o ministrode Portugal, e dos senhores deputados, que na Câmara temporária o sustentarão, por FranciscoAgostinho Gomes. Bahia, Typ. da Viúva Serva, 1837, p. 36.39 Amado Cervo & Calvet de Magalhães. Depois das Caravelas ..., p. 135.40 Asmodeu. Lisboa: 26 de julho de 1857.

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A polêmica prosseguiu por meio de resposta em O Brasileiro,folha livre e independente. Nela afirmava-se que “as palavras incertasnas suas colunas custam a crer que saíssem de uma pena científica dignada ilustração do povo português” e rebatiam-se as críticas, procurandomostrar o pouco grau de civilização e progresso de “Asmodeu, príncipede Satã”. Dizia ainda que sua pena fora movida por um frenesi deidéias, pois em um desses devaneios, Asmodeu desceu da “cadeiramagistral de jornalista e precipitou-se no lodaçal dos impropérios”.41

Também A Marmota e o Jornal do Commercio rebateram duramente ascríticas ao artigo, estampando-se caricaturas dos portugueses, que osridicularizavam. Em novembro, o Asmodeu desculpava-se, afirmandoque apenas esboçava o “tipo do americano do sul”, que em Portugalapresentava-se como “ridículo e amacacado”. De modo algum, em sualinguagem, pretendia “menosprezar a briosa nação brasileira”. A respostafinal vinha estampada por meio de uma caricatura em O Brasileiro –três macacos sobre as nuvens defecavam sobre a terra, em uma parteidentificada a Portugal, ao mesmo tempo em que um diabo abatido,caía de cabeça para baixo. Os macacos simbolizavam o Brasil e seupovo e o diabo, o redator português. A charge marcava a superioridadeda antiga colônia sobre sua Mãe-Pátria.42 Assim, existia um “capitalde imagens”, algumas vezes positivas, outras negativas, que o Brasilforjava de Portugal com elementos de sua própria sociedade. Essa curiosaoscilação entre a aproximação e a rejeição era justificada, uma vez quea tradição e a cultura portuguesa encontravam-se ainda profundamenteenraizadas nas instituições e no cotidiano do Brasil.

No apogeu do império, após a acomodação dos interessesdivergentes das elites propiciada pela política da conciliação e antesque a Guerra do Paraguai viesse abalar o frágil equilíbrio alcançado, oolhar de estranhamento entre portugueses e brasileiros se mantinha,com características marcantes. Sob a perspectiva dos brasileiros, adesvinculação do país com o modelo português, símbolo do passado

41O Brasileiro, folha livre e independente. Rio de Janeiro: nº 1, 1º de novembro de 1857.42 Cf. Asmodeu. Lisboa: 14 de novembro de 1857; O Brasileiro, folha livre e independente. Riode Janeiro: nº 9, 14 de janeiro de 1858.

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colonial e do atraso, ficou mais enfática. Tanto no cotidiano popular,quanto na elite letrada expunha-se essa aversão. Na imprensa criticava-se tudo que fosse identificado com a presença de portugueses,veiculando-se notícias que contrapunham os interesses entre os doispovos, ainda que o fato se restringisse à simples propriedade de um jornal:

Que vergonha!É voz pública que vem de Lisboa o correspondente do Jornal

do Commercio, cidadão português, para tomar a redação domesmo jornal em substituição ao falecido redator?

E continua o jornal a ser uma folha de estrangeiros, massempre sustentada pelos brasileiros e pelos cofres nacionais!43

Essa crítica vinculava-se à forte presença portuguesa, estimuladaa partir da onda de imigração para o Brasil em meados do século XIX,apresentando um ciclo ascendente de imigrantes, que flutuou de 10 a45 mil saídas anuais de Portugal. Em sua maioria, radicaram-se nosprincipais centros urbanos, como Rio de Janeiro, Recife e São Paulo,pontilhando o país com sua presença. Além de reafirmarem omonopólio tradicional nas atividades típicas do pequeno comérciourbano, eles ingressaram na massa operária, que se constituía no Riode Janeiro e em São Paulo, passando a concorrer com a mão-de-obranacional no restrito mercado de trabalho dessas cidades. Essa situaçãotendeu a consolidar duas imagens divergentes do imigrante português:de um lado, propalada pela imprensa antilusitana, a do portuguêsignorante, analfabeto, oportunista, adulterador de pesos e medidas; deoutro, a do português obediente, trabalhador e apolítico, ideal para oordem social vigente, cuja idealização foi elaborada, em parte, pelaelite da própria colônia lusitana, que também destacava o papel doemigrante na manutenção dos laços econômicos, culturais e afetivoscom o Brasil, considerado a maior obra realizada por Portugal.44

43 O Paiz. Rio de Janeiro: 24 de setembro de 1860.44 Cf. Lobo, Eulália Maria Lahmayer. Imigração Portuguesa no Brasil. São Paulo: Hucitec,2001, p. 17-19; Neves, Lúcia Maria Bastos P. & Ferreira, Tania Maria T. Bessone da Cruz.As relações culturais ao longo do século XIX. In: Cervo, Amado Luiz & Magalhães, JoséCalvet de. Depois das caravelas ..., p. 244-245.

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Em contrapartida, em Portugal, havia, no seio das elites políticae intelectual, enormes preocupações em virtude dessa migraçãoconstante e significativa, não só para o Brasil, mas também para aAmérica. Na imprensa, tanto portuguesa, quanto brasileira, em textose caricaturas, ficavam bastante claros os antagonismos e ospreconceitos.45 Em 1872, o jornal Vida Fluminense tratava da gravequestão da febre amarela que grassava no Rio de Janeiro, comcomentários jocosos e caricaturas. Em uma delas, dois portuguesesconversavam e um homem dizia para o outro que iria naturalizar-se, omais rápido possível, porque desde que chegara de Portugal perceberaque a febre respeitava os brasileiros.46

A questão do imigrado português virou tema de debates edesconforto, pois muitos que aqui chegavam tornavam-se objeto deexploração e decepcionavam-se quanto às possibilidades que teriamno Brasil. Por outro lado, a imagem negativa, elaborada em Portugal eregistrada por inúmeros autores, do emigrante que regressava enriquecido,colaborava para manter viva a chama de ilusão dos que migravam,ainda que, em relação ao grande contingente dos que partiam, fossemde número reduzido. Este indivíduo – o brasileiro – espécie de burguêsfidalgo, alvo fácil de caricaturas e comentários jocosos sobre seus hábitose maneiras, foi caracterizado por Alexandre Herculano como:

Um indivíduo cujas características principais e quaseexclusivas são viver com maior ou menor largueza, e não ter nascidono Brasil; ser um homem que saiu de Portugal na puerícia ou namocidade mais ou menos pobre e que, anos depois, voltou maisou menos rico.

Esta imagem tornou-se forte em Portugal, alimentada pelosjornais, criando-se um estereótipo literário e uma referência emblemáticapara toda emigração portuguesa, sobretudo no final do século XIX e

45 Rowland, Robert. O problema da imigração: dinâmicas e modelos. In: Bethencourt,Francisco e Kirti, Chaudhuri (orgs.) História da Expansão Portuguesa: Do Brasil para a África(1808-1930), v. 4. Lisboa: Círculo de Leitores, 1998. p. 304-323.46 Vida Fluminense: Rio de Janeiro: 8 de fevereiro de 1872.

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início do XX, marcando de forma indelével a opinião pública e a classepolítica portuguesa.47

Essa impressão negativa deixada pelos “brasileiros” chegou acontaminar o Imperador Pedro II, quando de sua viagem a Portugal,em 1871. Os comentários mordazes de Eça de Queirós e RamalhoOrtigão em As Farpas tornaram a visita do imperador um acumuladode gafes e atitudes grotescas.

O nome do imperador, seus títulos nobiliárquicos, suabagagem itinerante, suas preferências literárias, seu gosto peloconhecimento das línguas estrangeiras, as festas a que estiverapresente, as homenagens a si tributadas, o apetite para certascomidas, a indumentária, a calculada modéstia, a tudo e tudoAs Farpas cobriram de chacota, com impiedade.48

Tais críticas chegaram a mobilizar respostas de autoresbrasileiros, como José Soares Pinto Correia, que no Recife atacou, emOs Farpões, ou Os Bandarilheiros de Portugal, os habitantes da antigametrópole. E os desdobramentos dessa troca de acusações e ofensasaçodaram de tal forma os ânimos que a população da pequena cidadede Goiânia, em Pernambuco, agrediu os portugueses habitantes dacidade, bem como suas lojas, exigindo a transferência de tropas doRecife, na tentativa de se obter alguma tranqüilidade, ao mesmo tempoem que pasquins locais repercutiam novas notícias de outros númerosde As Farpas.49

Diante da emocional reação brasileira às críticas e comentáriosjocosos da publicação portuguesa, tanto por meio de publicações comode fato, não só quanto ao imperador, como aos hábitos dos brasileiros,as respostas dos redatores de As Farpas mostraram surpresa e desprezo,fazendo aflorar também o azedume de ambas as posições. As “vésperas

47 Robert Rowland. O problema da imigração ..., p. 310-312.48 Cavalcanti, Paulo. Eça de Queirós, agotador no Brasil, p. 35-36 apud Wilson Martins.História da Inteligência Brasileira. (1855-1877). v. 3. São Paulo: Cultrix, Editora daUniversidade de São Paulo, 1977, p. 395-396.49 Ferreira, Tania Maria T. Bessone da Cruz & Neves, Lúcia Maria Bastos P. As relaçõesculturais ..., p. 182-183.

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pernambucanas”,50 denominação dada por Ramalho aos conflitosantilusitanos ocorridos no Nordeste do Brasil, continuaram merecendocomentários no número de julho/agosto de 1872 da publicaçãoportuguesa, sob a forma de críticas ásperas em relação ao Brasil e aosbrasileiros, que viviam “nestas províncias semibárbaras”, alimentadospela inveja da preponderância econômica dos portugueses, e daobservação de que “o brasileiro detesta o português”, à semelhança doódio existente entre americanos e ingleses. E deduz: “teria que ver se ossenhores brasileiros, depois de serem célebres pela sua ridícula bonomia,aspiravam a serem gloriosos pela sua ensangüentada ferocidade”.51 Asantigas desavenças não estavam esquecidas e ajudavam a dar continuidadea representações que ambas as partes mantinham vivas no imagináriosocial.

Como capital e porto mais importante, o Rio de Janeiro, noinício da segunda metade do século, abrigava 26.749 portugueses paraum total de 37.924 imigrantes. Essa população, constantementeampliada pelo ingresso clandestino, enfrentava inúmeras dificuldades,em especial, a insalubridade, que, em algumas épocas, se tornavacalamitosa, com febres, como a amarela e a tifóide, ou epidemias, queafetavam a saúde de grande parte de seus habitantes. Mas também,dada a manutenção escravidão e do tratamento dado à mão-de-obraescrava, as queixas freqüentes quanto à exploração dos trabalhadoresimigrantes, particularmente daqueles que não se encontravamregularmente documentados, motivando propaganda contrária à suavinda para o Brasil, sob o argumento de que a mentalidade escravistaexistente no seio da elite brasileira expunha o imigrante ao perigo deuma relação de trabalho perniciosa e de princípios escravizantes. Diantedessas dificuldades, alguns comerciantes e antigos imigrantes bemsucedidos economicamente, à semelhança do que ocorria comoutras nacionalidades, passaram a constituir e apoiar associações

50 A expressão foi usada para compará-las aos célebres motins antifranceses, na Sicília, noséculo XIII.Ver Medina, João. Eça de Queirós antibrasileiro?. Bauru/São Paulo: EDUSC,2000, p. 74-75.51 Idem, Ibidem. p. 77.

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filantrópicas, que prestassem socorro à colônia portuguesa.52 Essafilantropia tornou-se então um grande esteio para adequação dospadrões de vida dos portugueses, que chegavam totalmentedesinformados, às condições de vida na sociedade brasileira.

As representações positivas e negativas a respeito de portuguesese brasileiros desenrolavam-se também nos bastidores políticos,relacionadas a inúmeros outros aspectos. Críticas portuguesascontundentes dirigiam-se, por exemplo, ao desinteresse brasileiroquanto à assinatura de um tratado que pusesse fim às disputas pelosdireitos autorais. Na ótica dos negociadores portugueses, essa atitude,evidenciada pelo fracasso de alguns projetos de lei a respeito, permitiaque os brasileiros permanecessem isentos de taxas e obrigações. Oimpasse somente foi superado em 1912, com a aprovação da proteçãointernacional aos direitos autorais, embora antecedida pela convençãofirmada pelo governo republicano já em 1889.

Apesar disso, em 1880, Luís de Camões não deixou de serobjeto de uma larga e importante comemoração, sobretudo no Rio deJaneiro, por ocasião de seu tricentenário. Uma importante exposiçãofoi organizada na Biblioteca Nacional em comum acordo entre osintelectuais portugueses, ou de origem portuguesa, e os nacionais,colecionadores e bibliófilos e foi lançada a pedra fundamental do novoedifício do Gabinete Português de Leitura do Rio de Janeiro.53 Alémdisso, o evento envolveu inúmeras atividades de caráter popular, comoqueima de fogos, iluminação especial de algumas vias públicas e apresença da família imperial, indicando a imprensa que os brasileirosintegraram-se fervorosamente aos festejos, como deixou registrado OCombate:

A cidade acordou ontem com feição alegre e festiva, emhonra ao tricentenário do grande épico Luís de Camões. As ruasornadas de festões e galhardetes, atapetadas de verde, mal

52Silva, Maria Beatriz Nizza da. Filantropia e Imigração: a Caixa de Socorros D. Pedro V . Riode Janeiro: Sociedade Portuguesa Caixa de Socorros D. Pedro V, 1990. passim.53 Barão do Rio Branco. Efemérides Brasileiras. Brasília: Senado Federal, 1999, p. 276 (ed.fac-similar).

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continham a população que de todos os pontos afastadosconvergia para o centro desta capital, afirmando por esta forma,unir-se às associações que promoviam os festejos comemorativosdo maior vulto da literatura do século XVI. [...] A rua do Ouvidor,ornada caprichosamente distinguia-se nos quarteirões da ruaGonçalves Dias ao Largo de São Francisco de Paula, pelo gosto edelicadeza com que a comissão para isso nomeada pelos moradoresse desempenhou no cargo...54

O Diário distribuiu aos seus assinantes e leitores habituais dacorte, nessa ocasião, uma edição popular e gratuita de Os Lusíadas,com tiragem de 30.000 exemplares. A Gazeta de Notícias, também noRio, publicou textos comemorativos organizados por Veiga Cabral.Regatas e outros certames tiveram como prêmio a obra completa deCamões em belíssimas embalagens de veludo e milhares de exemplarescom os excertos mais notáveis das produções poéticas do autor.55

Na visão de um autor que comparou as comemorações docentenário do poeta, no Brasil e em Portugal, Camões

a todos dá o reflexo da glória superior, por ser o primeiro naconcepção da língua, na formação da índole, no complexo deidéias que se escultaram numa raça monumental para os grandesfeitos e para a história. Homero, mito ou realidade, foi assimpara os povos Helênicos [...], assim é e será Camões para raçaportuguesa, que [...] ainda há pouco, há apenas quatro séculos,era uma fração dos povos ibéricos, individualidade apenas distintanas grandes e orgulhosas nacionalidades novas da Europa e hojejá promete aos políticos, aos filósofos, aos sábios uma raça grandee potente, que se multiplicará ao milhões e tornará a sua línguadas mais dilatadas e conhecidas no globo.56

E acrescentava comparações, que julgava ousadas, quanto àimportância de Camões e da língua portuguesa perante o domínio das

54 O Combate. Rio de Janeiro: 11de junho de 1880.55 Cf. jornais de junho de 1880, sobretudo O Diário e A Gazeta de Notícias.56 Montoro, Reinaldo Carlos. Brasil em 1880. O centenário de Camões no Brasil. O centenáriode Camões em Portugal. Portugal em 1880. Rio de Janeiro:s/e. 1880. p. 4-6.

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nações civilizadas. Considerava que, “na própria América, terra das idéiasnovas”, adquiriu-se o hábito de “ver tudo com olhos do preconceitoeuropeu”, uma vez que a reconstituição “pela inoculação do elementogermânico” das tradições greco-romanas “ditam a lei do nossopensamento educado pela literatura européia”, mas concluía afirmandoque dezesseis milhões de pessoas têm a língua portuguesa “por idiomanacional e este número, crescendo rapidamente, há de vir a serenorme”.57

Em Portugal, a revista Era Nova festejou igualmente otricentenário como “um sintoma grandioso da revivescência nacional”e acrescentou que “o primeiro e o segundo centenários passaramdesapercebidos, porque o país estava abismado na degradaçãomonárquica e teocrática”. No entanto, dessa feita, até o Brasil, “essepovo irmão pelo sangue e pela língua, essa nação americana que atravessauma crise idêntica àquela que nós atravessamos, sentiu-se igualmenteabalada e comovida ao pronunciar-se o nome de Camões e não seesqueceu de prestar ao grande épico as devidas homenagens”.58

Essa tendência à aproximação recíproca reforçou-se nos anosseguintes. Em 1909, um autor português registrava da seguinte maneiraa percepção do Brasil na Europa:

O Brasil já foi uma região mal conhecida. Hoje já o não é.Em todos os centros civilizados deixou de ser ignorado. Existe,enfim! E não existe somente por ser riquíssimo de climas, deflora e de fauna, nem por oferecer, nos seus terrenos explorados,largo campo às ambições insatisfeitas dos povos do Velho Mundo[...] Mas o que mais lhe propaga o nome é a surpresa causadapela sua cultura [...]59

Uma nova imagem despontava: a de um país em que as riquezase oportunidades transformavam-se em um poderoso atrativo para a

57 Idem. Ibidem. p.5-658 Teixeira Bastos. Bibliografia Camoneana. In: Teófilo Braga e Teixeira Bastos (dir.) EraNova. Revista do Movimento Contemporâneo. Lisboa: 1880-1881, p. 93.59 Barbosa, José. As relações Luso-Brasileiras: a imigração e a desnacionalização do Brasil.Lisboa: Ed. de José Barbosa/Tipografia do Comércio, 1909, p. 6-10.

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imigração, devido à falta de oportunidades para os trabalhadoreseuropeus. Destacava ainda que, em oposição ao progresso brasileiro,Portugal permanecia envolvido numa inércia comercial, social e cultural,completamente dependente dos mercados brasileiros: “O recurso dasremessas do Brasil e a exportação que para esse país fazemos tornaram-se essenciais à vida portuguesa”. Na realidade, reconhecia que os laçoscom Portugal permaneciam fortes na sociedade brasileira, e mesmo aindependência não significara um “rompimento com o passado”,marcado pela tradição portuguesa.60 Na mesma linha, reproduzia umaproposta apresentada na sessão de 10 de novembro de 1909, naSociedade de Geografia de Lisboa. Nela, Consiglieri Pedrosoconsiderava “que Portugal e Brasil, pela sua origem, história e tradições[...] constituem na realidade, em face das outras agremiações nacionaise exóticas, um grupo à parte, nitidamente delimitado” e também que,“na situação de isolamento recíproco, em que se encontram, as duasnações estão comprometendo a grandeza do papel primacial que deviamrepresentar no mundo”. Diante disso, propunha um “forte e largoacordo luso-brasileiro” de modo a resolver os problemas econômicosportugueses e a criação de uma “comissão luso-brasileira”, que apontassemedidas a serem tomadas para beneficiar os dois países nos aspectosculturais, econômicos e jurídicos.61

Da mesma forma, nessa época, alguns intelectuais brasileiroscomeçaram a formar uma imagem positiva de Portugal, que fugia doestereótipo tradicional do português. Oliveira Lima, diplomata,historiador e bibliófilo, no prefácio da primeira edição do livro Históriada Civilização (1921), lembrava seu professor de Filosofia da História,do Curso Superior de Letras de Lisboa, Jaime Moniz, como “um dosespíritos mais formosos da intelectualidade portuguesa do século XIX”,para demonstrar o quanto devia sua formação à influência portuguesa.Frisou ainda: “Concedendo a essa história [da América] amplitudeproporcional às demais e não esquecendo a história da mãe pátriaportuguesa, para a qual se devem voltar nosso carinho e nosso respeito,

60 Idem. Ibidem, p.10.61 Idem. Ibidem, p.12.

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em vez de considerá-la com preconceitos e rancores obsoletos.”62 Apesardisso, essas representações intelectuais positivas, em torno dasinfluências mútuas entre portugueses e brasileiros, não se tornarampreponderantes nas relações luso-brasileiras imediatamente e sóadquiriram uma nova dinâmica no decorrer do século XX.

* * *

Ao longo do século XIX, o Brasil foi sujeito e objeto de imagense representações, tanto a respeito de si próprio, quanto em relação aPortugal – a partir das quais, consciente ou inconscientemente, porimitação ou rejeição, construíu-se o imaginário da nova nação nostrópicos. Alteridade e identidade funcionaram, assim, em conjunto,na fabricação do sistema de representações sobre o português, queserviu para a construção do próprio sentido de Brasil, a partir daindependência.63

Nessa perspectiva, no entanto, à antiga aversão ao portuguêsdos tempos coloniais somou-se a sua identificação com o passado e oatraso, dando origem a um antilusitanismo particular, misto de desprezoe galhofa, que persistiria por todo o império, e que inviabilizou umadiscussão das raízes a partir das quais o país nascera. Desse longoprocesso, ocorrido no decorrer do século XIX – ao qual não ficaramimunes os próprios portugueses, ressentidos com a autonomia da ex-colônia – resultaram uma multiplicidade de visões e uma diversidadede opiniões sobre o português, que se mantiveram através de váriasgerações. Cristalizadas em paralelo à elaboração de uma nação brasileiraainda carente de muitos elementos essenciais, essas imagens não deixamde indicar que a comunidade que se constituiu no Brasil, mais do queimaginada, revelou-se sobretudo imaginária – elemento fundamentalpara explicar o divórcio, até hoje presente, entre a sociedade e o Estadoque a caracteriza.64

62 Lima Oliveira. Obra Seleta. Organização de Barbosa Lima Sobrinho. Rio de Janeiro:Instituto Nacional do Livro, 1971, p. 66.63 Cf. Frank, Robert. History of International Relations and Images. In: Comission of Historyof International Relations ...., p. 575-576.64 Cf. Carvalho, José Murilo de. Pontos e bordados: escritos de história política. Belo Horizonte:Ed. da UFMG, 1998. Anderson, Benedict. Nação e consciência nacional. São Paulo: Ática, 1989.

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Francisco Fernando Monteoliva Doratioto*

A independência brasileira foi sui generis. Feita contra Portugal,antiga metrópole que procurava restaurar seus privilégios comerciais epolíticos em relação ao Brasil, foi proclamada em 1822, pelo príncipeherdeiro português, Pedro de Alcântara, com o respaldo da burocraciaque comandava no Rio de Janeiro. Esses privilégios haviam sidoeliminados com a abertura dos portos brasileiros às nações amigas,em 1808, e a elevação da antiga colônia brasileira à condição deReino Unido a Portugal e Algarves, em 1815. O Brasil independentetornou-se uma monarquia, governada por aquele príncipe com o títulode Pedro I, com o apoio daquela burocracia. Essa continuidade político-administrativa, que também foi socioeconômica, proporcionou aoImpério do Brasil usufruir conhecimentos diplomáticos acumuladospor Portugal e de funcionários experientes, permitindo ao novo Estadocerta operacionalidade, inclusive em questões externas.

Em contraste, as colônias espanholas na América fizeram aindependência enfrentando os representantes metropolitanos eromperam com a tradição monárquica, adotando a república comoforma de governo dos novos Estados. Os vizinhos hispânicos tiveramde construir uma nova máquina estatal, em meio a disputas, que seprolongaram até meados do século XIX, entre facções das elites quantoao caráter centralizado ou federalista a ser assumido pelo Estado. Essarealidade dificultou a ação externa desses países.

Foi prioridade exterior de Pedro I, obter o reconhecimento daindependência brasileira. Ter personalidade jurídica reconhecida poroutros países é objetivo básico de qualquer novo Estado. No casobrasileiro, porém, significava mais, era eliminar obstáculos de ordempolítica à realização do verdadeiro objetivo da independência: a

* Professor das Faculdades Integradas UPIS e do Instituto Rio Branco, é doutor em Históriadas Relações Internacionais pela Universidade de Brasília.

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continuidade do livre comércio com os países centrais, principalmentea Inglaterra. O primeiro reconhecimento do Império do Brasil foiafricano, intermédio de embaixada, enviada ao Rio de Janeiro em 1823,pelos reis Obá Osemwede, do Benim, e o Ologum Ajan, de Onim,atual Lagos,1 seguido pelos Estados Unidos em 26 de maio de 1824.O reconhecimento do governo norte-americano foi cauteloso, paranão desgostar as potências européias conservadoras. O encarregado denegócios norte-americano no Rio de Janeiro, Condy Raguet, em marçode 1825, após Washington tomar conhecimento de que as negociaçõesentre o Brasil e Portugal estavam por terminar em bom termo.2

A Inglaterra condicionou o reconhecimento da independênciabrasileira à própria aceitação por Portugal, tradicional aliado de Londres.Para obtê-la, o débil Estado brasileiro foi obrigado, por meio demediação inglesa, a pagar “indenização” de 2 milhões de libras esterlinasa Portugal, sendo 1,4 milhão resultante de dívida portuguesa feita parafinanciar a luta contra a independência brasileira. Esta foi conquistada,mas o Brasil recuou para comprá-la da antiga metrópole, resultado dapressão inglesa nesse sentido, bem como a urgência de Pedro I e daselites brasileiras em manter sua estreita relação com a Europa. Não sepensava – à exceção de poucos, como José Bonifácio – construir asociedade brasileira em novas bases, mas, sim, em reproduzir adependência colonial em outros moldes, por meio de contato diretocom o centro capitalista. Nessa perspectiva, entende-se aquela“indenização”, bem como as concessões comerciais e políticas feitas,durante o Primeiro Reinado a diferentes Estados europeus.

Aceita a independência por Portugal, a Inglaterra impôs asegunda condição para o reconhecimento: a ratificação, pelo governobrasileiro, das vantagens comerciais e políticas que havia arrancado,em 1810, de Portugal com dois tratados, o de Aliança e Amizade e ode Comércio e Navegação. Por eles, os produtos ingleses importados

1 Costa e Silva, Alberto da. O Brasil, a África e o Atlântico no século XIX In: Studia. Lisboa,nº 52, 1994, p. 196-197. Garcia, Eugênio Vargas. Cronologia das relações internacionais doBrasil. São Paulo: Alfa-Ômega; Brasília: Funag, 2000, p. 43.2 Bandeira, Luiz A. Moniz. Presença dos Estados Unidos no Brasil (dois séculos de história). 2.ed.Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978, p. 56-57.

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obtinham privilégios alfandegários no Brasil, pagando imposto de 15%ad valorem, contra 16% para as mercadorias portuguesas e 24% paraoutros países. Ademais, os súditos ingleses gozavam da extraterritorialidadejudicial no Brasil e de liberdade religiosa. Em 1810 a Inglaterra obteve,ainda, o compromisso português de proceder à gradual abolição dotráfico negreiro. O governo do Império do Brasil cedeu à pressão inglesae assinou, em 1826, uma convenção determinando o fim desse tráficoem três anos. No Tratado Comercial de 1827, “desgostado, mastolerado” pelo lado brasileiro, a Inglaterra consolidou os privilégiosarrancados de Portugal em 1810, ao obter do Rio de Janeiro a condiçãode nação mais favorecida.3 A “conta inglesa”, escreveu José HonórioRodrigues, “transformou-nos num protetorado inglês até 1844”.4

A condição de nação mais favorecida acabou por ser estendidapelo Brasil, em tratados de reconhecimento da independência, a outraspotências européias. Em 1828, a Assembléia Geral aprovou o impostode importação de 15% para as mercadorias de todos os países.5

Em 1831, a figura de Pedro I estava abalada junto aos brasileirospor haver cedido à Inglaterra na questão do tráfico negreiro; por seuenvolvimento na guerra civil travada em torno da sucessão do tronoportuguês; pela perda da Cisplatina e por cercar-se de membros do“partido português”. Como conseqüência, o imperador se viu forçadoa abdicar, em 7 de abril desse ano, em favor de seu filho, tambémPedro. O herdeiro da coroa tinha apenas cinco anos de idade e, até suamaioridade ser antecipada em 1840, o império foi governado porregentes. No Período Regencial (1831-1840), a burocracia governamentaldo Rio de Janeiro, com o respaldo das elites dessa província, de SãoPaulo e de Minas Gerais, buscou implantar um modelo centralizadorde Estado, sofrendo resistência armada de oligarquias regionais. Essascircunstâncias, bem como o cumprimento dos tratados assinados nadécada de 1820, levaram à ausência de estratégias externas definidas

3 Manchester, Alan K. Preeminência inglesa no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1973, p. 23.4 Rodrigues, José Honório. Aspirações Nacionais; interpretação histórico-política. 4.ed. rev. Riode Janeiro: Civilização Brasileira, 1970, p.79.5 Cervo, Amado Luiz, Bueno, Clodoaldo. História da política exterior do Brasil. São Paulo:Ática, 1992, p. 35.

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por parte dos governos regenciais. Eles se colocaram em posiçãodefensiva e reativa quanto às duas maiores questões com as grandespotências no decênio de 1830: a tentativa de expansão européia aonorte e a pressão inglesa para que se pusesse fim ao tráfico negreiro.

O tráfico estava proibido desde março de 1830, conformeestabelecera a convenção entre os governos brasileiro e inglês emnovembro de 26. A proibição foi regulamentada por lei brasileirasomente em 7 de novembro de 1831 e, ainda assim, o tráfico prosseguiupor ser de interesse dos grandes proprietários de terras, que tinham noescravo a mão-de-obra para a lavoura. Uma ação decisiva, reprimindoo seu prosseguimento, levaria o governo regencial a ser acusado desubserviente, pois a opinião pública veria na extinção o resultado deimposição inglesa.6 Como resultado, de nada adiantou a pressão inglesapara terminar com o tráfico, o qual constituiu elemento perturbadornas relações entre o império e a Inglaterra até 1850.7

Quanto a fronteira norte, desde o período colonial houveconflitos de jurisdição entre autoridades francesas, instaladas na Guiana,e brasileiras na Amazônia. Contudo, o artigo 107 do Ato Final doCongresso de Viena, assinado em 9 de junho de 1815, estipulou arestituição à França da Guiana, ocupada pelos portugueses em 1808,até o rio Oiapoque. Era ratificado, portanto, o limite estabelecido entreessa colônia francesa e o Brasil no Tratado de Utrecht, de 1713. Desde1832, porém, o novo Rei Luís Felipe, a França retomou a políticaexterna expansionista, inclusive em relação à Amazônia. Com estímulooficial, um membro do Instituto de França e da Société de Géographiede Paris, o irlandês Warden, falsificou mapa do Corografia Brazilica ouRelação Histórico-Geográfica do Reino do Brazil, elaborado pelo padreManoel Ayres de Cazal. Warden confundiu, propositalmente, em1834, o rio Oiapoque com o Araguari, de modo a reivindicar a fronteiraentre a Guiana e o Brasil no rio Amazonas.8

6 Idem, p. 51.7 Alan K. Manchester, p. 209-210.8 Williams, Donn Alan. Brazil and French Guyana: the four-hundred year struggle for Amapa.Texas: Christian University, PhD., 1975, p. 93.

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Os partidários da expansão colonial francesa passaram a clamarpela expansão territorial da Guiana até o Amazonas. Em 1836, tropasfrancesas ergueram um forte no lago Amapá, sob pretexto de protegerconterrâneos, que estariam ameaçados pelas lutas políticas no Pará, e,ainda, pela necessidade de se fixarem os limites entre o império e aGuiana. Em agosto desse ano, o governador de Caiena, Laurens deChoisy, comunicou ao governador do Pará, general Soares de Andréia,que forças francesas tinham ocupado o território até o Araguari,conforme estabelecia o Tratado de Amiens.9 Para a invasão colaboroua própria fraqueza demonstrada pela regência de Diogo Antonio Feijó(1835-1837), revelada ao solicitar, em 17 de dezembro de 1835, emaudiência secreta com o representante diplomático inglês e francês,que seus países enviassem auxílio militar para reprimir a revolta daCabanagem, no Pará. O governo inglês não atendeu ao pedido,10 queserviu, porém, para demonstrar aos franceses não ter o Brasil condiçõesmilitares de reagir à instalação daquele forte.

O ato francês provocou indignação da opinião pública do Riode Janeiro e, em decorrência do silêncio francês frente a seus protestos,o governo imperial pediu, em 1º de abril de 1839, ajuda britânica.O representante diplomático inglês, em Paris, solicitou ao governofrancês que retirasse o posto militar instalado naquele territóriobrasileiro. À Grã-Bretanha não interessava a expansão territorial francesana região amazônica, nas proximidades com a fronteira da GuianaInglesa. A firme resistência brasileira às pretensões francesas e ainterferência da diplomacia britânica produziram resultado. Asautoridades de Paris ordenaram, em 1840, a evacuação daqueleterritório, que foi declarado neutro, em troca de notas entre os governosbrasileiro e francês, de 1841.11 A questão somente seria resolvida cinco

9 Relatório da Repartição dos Negócios Estrangeiros apresentado à Assembléia Geral do Império,1836, p. 10; 1837, p. 7.10 Conforme pesquisa no Publics Records Office, em Londres, pelo antropólogo David ClearyIn: Indriunas, Luís. País pediu apoio externo contra revolta. Folha de São Paulo, 13.10.1999,p. A-8, Pinto, Lúcio Flávio. Cartas mudam história do Império brasileiro. O Estado de SãoPaulo, 21.1.2001, p. A-16.11 Araújo Jorge. Arthur Guimarães de. Rio Branco e as fronteiras do Brasil: uma introdução àsobras do Barão do Rio Branco. Brasília: Senado Federal, 1999, p.62-64.

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décadas mais tarde, quando a arbitragem internacional deu vitória àposição brasileira.

Por essa época, os próprios ingleses tentavam ampliar seuterritório amazônico, a Guiana. Em 1838, o missionário protestanteYoud, vindo da Guiana Inglesa, estabeleceu-se, com algunsacompanhantes, em Pirara, região salubre e povoada por indígenas ebrancos brasileiros, próxima de minas de pedras preciosas. Youd foiexpulso por ordem do presidente da Província do Pará e o distrito dePirara foi reocupado por destacamento brasileiro que, pouco tempodepois, retirou-se devido a intimação de força militar inglesa maisnumerosa, enviada pelo governador da Guiana por ordem do governobritânico. Em 1842, as forças inglesas desocuparam a região, após seracolhida sugestão brasileira de declará-la zona neutra, em possessãodos índios e sem tropas de ocupação. A definição de limites entre aGuiana Inglesa e o Brasil se deu somente em 1904, mediante aarbitragem do rei da Itália, Victor Emanuel III, que, alegando não serpossível definir qual o direito preponderante na região litigiosa, resolveudividi-la. Dos 33.200 quilômetros quadrados arbitrados pelo rei italiano,13.370 ficaram com o Brasil e 19.630 foram atribuídos à Grã-Bretanha.12

A essa altura, no Brasil, consolidou-se o bloco de poder tendocomo núcleo a oligarquia enriquecida com a produção de café emMinas Gerais, no Rio de Janeiro e em São Paulo, na região do vale dorio Paraíba do Sul. Esse setor oligárquico tornou-se hegemônico, aliadoà burocracia governamental na defesa do Estado centralizado, para oqual obteve legitimidade ao colocar à frente do seu governo,antecipadamente, D. Pedro II. O jovem imperador simbolizava a novaarticulação entre as oligarquias regionais e esse núcleo hegemônico,viabilizando a vitória do projeto político centralizador sobre oautonomista. As oligarquias regionais convenceram-se de que o modelomonárquico centralizador afinal lhes convinha, por ser útil para mantera ordem no campo e na cidade, e ao mesmo tempo, arbitrar asdivergências entre os grupos oligárquicos. A manutenção do status quo

12 Delgado de Carvalho, Carlos. História Diplomática do Brasil. São Paulo: CompanhiaEditora Nacional, 1959, p. 209-215.

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tornou-se “o fator principal da unidade nacional, entendida comounidade nacional das elites”.13 Um Estado brasileiro forte teria, ainda,melhores condições de gerenciar os problemas externos, fosse em relaçãoàs grandes potências, fosse na região estratégica do rio da Prata.

A construção da unidade intra-elites e a melhoria das finançasimperiais fortaleceram o Estado brasileiro. Este pode, então, implementaruma política externa que “tendeu à racionalidade e à continuidade” eadquiriu caráter autônomo em relação à potência hegemônica, a Grã-Bretanha. A racionalidade resultava de um processo decisório paraestabelecer metas de política externa, do qual participavam oParlamento, o Conselho de Estado, o Gabinete de Ministros e o próprioimperador.14

A nova orientação externa brasileira tinha como uma de suascaracterísticas controlar a política de comércio exterior. O império estavadeterminado a tirar da Inglaterra o caráter de nação mais favorecida,embora não buscasse eliminar os interesses britânicos no mercadobrasileiro. Buscava, sim, impor que a melhor posição comercial daGrã-Bretanha no Brasil decorresse antes da superioridade das suasmercadorias, sobre a de seus concorrentes, do que de favores especiais.Favores esses que, por outro lado, eram prejudiciais ao Tesouro Imperial,por implicarem na baixa taxação aduaneira sobre a importação deprodutos ingleses. Como conseqüência, o Tratado de Comércio coma Grã-Bretanha, assinado em 1827, expirou em 42, sem ser renovado.A pressão resultante da missão especial do diplomata britânico HenryEllis ao Rio de Janeiro, onde chegou em fins de 1842, partindo emmarço do ano seguinte, obteve somente a prorrogação por dois anosdaqueles favores.15

A recusa de renovar os tratados da década de 1820 “teve caráterde defesa da soberania nacional contra os privilégios ingleses”.16 Em

13 Wernet, Agustin. O período regencial. São Paulo: Global, 1982, p. 18.14 Cervo, Amado Luiz, Bueno Clodoaldo. op. cit., p. 55, 131. Sobre a relação entre osórgãos de Estado e os partidos políticos nesse processo ver Cervo, Amado Luiz. O ParlamentoBrasileiro e as relações exteriores (1826-1889). Brasília: Editora da UnB, 1981.15 Alan K. Manchester, p. 23, 193, 289.16 Carvalho, José Murilo de. Teatro de sombras: a política imperial. São Paulo: Vértice, Rio deJaneiro: IUPERJ, 1988, p. 28.

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agosto de 1844, o governo imperial, com a finalidade principal deaumentar a arrecadação fiscal, determinou novas tarifas de importação,que alcançavam até 60%. Conhecida como Tarifa Alves Branco, amedida também teve alguma preocupação protecionista, favorecendoas indústrias brasileiras nascentes, ao reduzir as importações demanufaturados. Nos anos seguintes, conforme venciam os tratados decomércio assinados com as demais potências européias, a diplomaciabrasileira não os renovava.

Em julho de 1845, o governo brasileiro comunicou à Inglaterraa cessação da convenção de combate ao tráfico negreiro. Esse ato e aTarifa Alves Branco, levaram Londres, no mês seguinte, a retaliar aoconsiderar, unilateralmente, pelo Bill Aberdeen, perpétua a declaraçãode pirataria para o tráfico negreiro, contida na convenção de 1826. Oscruzadores britânicos passaram a capturar navios brasileiros quetransportavam escravos e suas tripulações eram julgadas em Cortes doalmirantado inglês. O governo brasileiro, por sua vez, ordenou à suaMarinha de Guerra combater o contrabando de escravos, contra o qualera enorme a pressão britânica. Em 1850, o Estado brasileiro já eraforte o suficiente para impor a senhores e comerciantes de escravos ofim dessa atividade, o que foi feito por meio da Lei Eusébio deQueirós.17 Eliminou-se, assim, um dos focos de tensão nas relaçõesbilaterais, mas persistiu a recusa do governo brasileiro em assinar novotratado de comércio com a Grã-Bretanha, contra a qual persistiu aanimosidade dos brasileiros.

Superada a questão do tráfico negreiro, o governo imperialteve de enfrentar outro grave problema, que foi a defesa da soberania

17 Eusébio de Queirós apresentou a versão brasileira para a proibição do tráfico à Câmarados Deputados, em 16 de julho de 1852. Argumentou que, após o Bill Aberdeen, houvegrande aumento na importação de africanos, alarmando os proprietários rurais, pois osnegros que chegavam aumentavam a ameaça de insurreições. Ademais, os proprietários deescravos tinham esperança que, com a proibição do tráfico, teriam canceladas suas dívidascom os comerciantes portugueses, vendedores de africanos. Como resultado, segundoQueirós, a proibição brasileira estava pronta para ser implementada pelo governo brasileiro,que teve dificuldade em impô-la, devido as primeiras capturas de navios dedicados ao tráficopor belonaves britânicas. Graham, Richard. Brasil-Inglaterra (1831-1889). In: Holanda,Sérgio Buarque. História Geral da Civilização Brasileira. 4. ed. São Paulo: Difel, t. II, 4ºv., 1985, p. 143.

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brasileira sobre o vale do rio Amazonas. As ameaças estrangeiras a essaregião vinham, na década de 1850, da indefinição dos limitesfronteiriços com as possessões européias ao norte – as Guianas –, e,principalmente, de interesses norte-americanos.

As relações com os Estados Unidos eram delicadas. Seurepresentante no Rio de Janeiro, Henry Wise, foi declarado, em 1846,persona non grata pelo governo imperial, devido a postura arroganteque adotou quando da prisão do Tenente Alonzo Davis, do navio norte-americano Saratoga, pela polícia carioca. O incidente se inseria, naverdade, em um contexto mais amplo, da oposição, “suposta ouverdadeira, do republicanismo democrático americano à monarquiabrasileira”.18 As pressões norte-americanas sobre o Brasil, no sentidode liberar a navegação internacional do rio Amazonas, contribuírampara que as relações bilaterais se mantivessem delicadas. O Brasil resistiua essas pressões, que eram não somente norte-americanas, mas, também,dos países hispano-amazônicos. Já em 1826, uma companhia foiorganizada nos Estados Unidos para fazer a navegação desse riocontando, inclusive, com o apoio do representante brasileiro emWashington, José Silvestre Rebelo. Um barco norte-americano chegoua aportar em Belém, mas foi impedido de prosseguir viagem pelasautoridades brasileiras. O governo inglês, por sua vez, solicitou, em1833, licença para estabelecer a navegação a vapor no Amazonas, pedidoque foi recusado.19

Houve, na década de 1850, verdadeira campanha internacionalpela abertura do rio Amazonas à navegação internacional. Movimentonesse sentido foi iniciado por cidadãos norte-americanos, coincidindocom a expansão da presença dos Estados Unidos na América Central,antecedida pela anexação de território mexicano. Esteve à frente dacampanha o tenente reformado da Marinha norte-americana, MathewFontaine Maury, que procurou, já no final dos anos 40, interessar seusconterrâneos sulistas com a possibilidade da transferência de escravospara o plantio de algodão na Amazônia e, simultaneamente, obter do

18 Wright, Antonio F. de Almeida. Brasil-Estados Unidos, 1831/1889. In: idem, p. 193-194.19 Bandeira, Luiz A. Moniz. Relatório da Repartição dos Negócios Estrangeiros, 1833, p. 5. p. 87.

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governo brasileiro permissão para supostas explorações científicas dessaregião. As pretensões de Maury ganharam intensidade por volta de1852, quando o governo norte-americano passou a respaldá-las.20

O governo brasileiro tinha consciência da gravidade da situação“e (...) da forma como os [norte-]americanos pretendiam a anexaçãoda Amazônia”. Em 1849, logo após o aparecimento das idéias deMaury, Sérgio Teixeira de Macedo, representante brasileiro emWashington, advertiu o Chanceler Paulino José Soares de Sousa deque a eventual abertura do Amazonas à navegação internacional abririaa porta para a instalação de empreendimentos, a imigração de norte-americanos e, portanto, “à manobra com que se verificou a usurpaçãodo Texas”. Três anos depois, em 1852, Francisco Inácio de CarvalhoMoreira, substituto de Macedo, alertou o Ministério dos NegóciosEstrangeiros que a instalação de escravos norte-americanos à margemdo rio Amazonas, como defendia Maury, serviria a futuros planos deanexação da região pelos Estados Unidos.21

Em 1853, o governo brasileiro abriu o rio Amazonas à navegação,mas apenas para embarcações dos países ribeirinhos superiores, com osquais tinha interesse em estreitar relações. Uma abertura irrestrita, válidapara barcos de todas as bandeiras, viabilizaria a instalação de estrangeirosde outros países nesse território, sob diferentes pretextos, colocandoem risco a soberania brasileira. Mantido o controle da navegação, adiplomacia imperial procurou assinar tratados definindo as fronteirascomo países vizinhos ao norte – Peru, em 1851; Colômbia, em 1853e Venezuela, em 1859 –, com base no uti possidetis. Essa ofensivadiplomática, bem como a expansão geográfica da exploração da borrachapor brasileiros, permitiram ao Brasil reafirmar a posse da Amazônia.22

Durante quase vinte anos, nas décadas de 1850 e 1860, a açãodiplomática do Brasil, na fronteira norte, desenvolveu-se sob forte

20 Idem, p. 44.21 Bandeira, Luiz A. Moniz. p. 88-89.22 O Senado colombiano, porém, rejeitou o Tratado de Limites. Carvalho, Valéria NelyCézar de. O Brasil e a Amazônia internacional no século XIX. 1990. Dissertação (Mestradoem História das Relações Internacionais), Departamento de História da UnB, Brasília, p.41-42; 51; 75.

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pressão externa e de setores internos, de liberalismo extremado. TavaresBastos, por exemplo, via na abertura à navegação do Amazonas umaforma de aproximar o Brasil dos Estados Unidos e estender ao norte olivre comércio, dinamizando a economia dessa região.23

Em dezembro de 1866, tendo em vista anular as simpatias dospaíses amazônicos em relação ao Paraguai na guerra contra a TrípliceAliança, o governo brasileiro liberou a navegação internacional doAmazonas. O decreto estabeleceu que a abertura vigiaria a partir de7 de setembro de 1867, nove meses após sua assinatura e definiu quaisrios estariam abertos à livre navegação, evitando o acesso irrestrito deestrangeiros à região.24 Solucionado esse problema diplomático,persistia outra ameaça à soberania brasileira sobre esse território. Tratava-se das ambições franceses sobre o Amapá, definitivamente afastadascom o laudo arbitral de 1900, do governo da Confederação Suíça,confirmando ser brasileiro o território.

Na década de 1860, a diplomacia brasileira enfrentou duasoutras situações complexas, a Guerra do Paraguai e o rompimento derelações com a Grã-Bretanha. Dos representantes desta no Rio deJaneiro, na década de 1850, o governo imperial teve que ouvir exigênciase recriminações a respeito dos escravos importados da África a partirde 1831, quando, por lei brasileira, essa prática estava proibida.Argumentavam os diplomatas britânicos que os negros nessas condiçõesnão podiam ser reduzidos à escravidão. Um deles, William DougalChristie, no Brasil a partir de 1859, foi particularmente insistente nesseponto e em outros temas relativos à escravatura.25

Com essas questões como principal pano de fundo, Christie,de personalidade arrogante e prepotente, apoiou-se em questãosecundária para obter a submissão do governo brasileiro, exigindo-lhepedido de desculpas e indenização. Uma delas foi a pilhagem do navioinglês Prince of Walles, após naufragar na costa do Rio Grande do Sul,

23 Tavares Bastos, A. C. O vale do Amazonas. 2. ed. Rio de Janeiro: Companhia EditoraNacional, 1937, p. 37.24 Carvalho, Valéria Nely César de. p. 98-99; 106-107.25 Graham, Richard. p. 143-144.

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e, outra, quando da prisão de três marinheiros ingleses, em trajes civis,no Rio de Janeiro, por desacato a autoridades brasileiras. Christie exigiudo governo imperial indenização pelo desaparecimento dos salvadosdo Prince of Walles e, ao não obtê-la, bloqueou a barra do Rio de Janeiro,entre 31 de novembro de 1862 e 5 de janeiro do ano seguinte, combelonaves britânicas, que capturaram cinco navios mercantes brasileirosna baía da Guanabara. Os cariocas reagiram com fúria, amaldiçoandoaos gritos os ingleses e ameaçando atacar o Consulado e a Legaçãobritânicos. O governo imperial pagou a indenização exigida sobprotestos e rompeu as relações diplomáticas com Londres.26

Elas somente foram reatadas em setembro de 1865, quandoEdward Thornton, representante britânico na Argentina removido parao Brasil, apresentou credenciais a D. Pedro II. Esse reatamento resultoudo laudo arbitral do rei belga Leopoldo I, favorável ao império brasileirona chamada Questão Christie. Ao apresentar-se ao imperador, Thorntonfez um discurso exprimindo “o sentimento com que Sua Majestade aRainha [Vitória] viu as circunstâncias que acompanharam a suspensãodas relações de amizade entre as cortes do Brasil e da Inglaterra, e dedeclarar que o governo de Sua Majestade [britânica] nega de maneiramais solene toda a intenção de ofender a dignidade do Império doBrasil”.27 Vindo da maior potência da época, o pedido de desculpasera uma significativa vitória diplomática do Brasil.

O reatamento se deu durante a Guerra do Paraguai, iniciadaem dezembro de 1864, com a invasão do Mato Grosso, e terminadaem março de 1870, com a morte de Francisco Solano López. Aobloqueio naval imposto pela Marinha brasileira ao Paraguai, reagiramcom pressões os comandantes de navios de guerra estrangeirosinteressados em chegar a Assunção. Durante o conflito, as potênciaseuropéias mantiveram-se neutras, embora o governo britânico tomasseiniciativa desfavorável à causa dos países aliados – Argentina, Brasil eUruguai – ao apresentar a seu Parlamento, em 2 de março de 1866, o

26 Manchester, Alan K. p. 240.27 Apud. Comentário do Barão do Rio Branco. In: Schneider, Louis. A Guerra da TrípliceAliança (anotado pelo Barão do Rio Branco). São Paulo: Edições Cultura, t. 1, 1945, p. 346.

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tratado até então secreto que constituiu a Tríplice Aliança.28 Ao tornar-se público esse conteúdo, houve a ampliação das dificuldadesdiplomáticas do império na luta contra Solano López.

O interesse britânico na guerra consistiu, num primeiromomento, em evitá-la29 ou, ao menos, impedir que ela afetasse, deforma considerável, o comércio na região platina. Apesar da neutralidadedo governo de Londres durante o conflito, seus diplomatas no rio daPrata praticaram, algumas vezes, atos prejudiciais ao Paraguai. No geral,porém, esses representantes obedeceram as ordens recebidas do seugoverno.30

No caso da França ocorreu o contrário, pois enquanto a posiçãooficial era de neutralidade na guerra, seu cônsul em Assunção a partirde outubro de 1867, Cuverville, nutria simpatias pela causa paraguaia.Solano López chegou a utilizar-se da mala diplomática francesa pararemeter, em novembro de 1868, 20 mil pesos para o encarregado denegócios paraguaio em Paris, Gregório Benítes, bem comocorrespondência oficial ao exterior. Tal liberalidade fez com queCurveville sofresse uma severa admoestação da chancelaria francesa.31

A neutralidade do governo de Paris dificultou, inclusive, ao impérioreceber o encouraçado Brasil, encomendado a estaleiros franceses antesdo início da guerra. Foi necessária uma missão especial do barão dePenedo, representante brasileiro em Londres, para que essa belonave

28 O representante britânico em Montevidéu obteve cópia do Tratado da Tríplice Aliança dochanceler uruguaio Carlos de Castro, que assinou o documento. Frederico Francisco deFiganiere, encarregado de negócios espanhol, para o ministro dos Negócios Estrangeiros daEspanha, Of. nº 68, Rio de Janeiro, 8.5.1866. Archivo del Ministerio de Negocios Exteriores(Espanha), caixa 209.29 Thornton para Russel, Assunção, 5.9.1864. In: British Documents on Foreign Affairs;reports and papers from the Foreign Office confidencial print; Latin-America, 1845-1914.Part I, Series D, p. 165. Thornton para Berges, ministro de Relações Exteriores do Paraguai,carta reservada, Buenos Aires, 7.12.1864. Archivo General de Asunción (Paraguai), ColecciónRio Branco, documento 3277.30 Herken Krauer, Juan Carlos., Gimenez de Herken, Maria Isabel. Gran Bretaña y la guerrade la Triple Alianza. Asunción: Editorial Arte Nuevo, 1982, p. 20 e 53.31 Rivarola, Milda. La polemica francesa sobre la Guerra Grande. Eliseo Reclus: la Guerra delParaguay; Laurent-Cochelet: correspondencia consular. Asunción: Editorial Histórica, 1988,p. 190-196.

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fosse entregue e partindo às pressas, temendo-se uma contra-ordemdas autoridades francesas.32

A neutralidade não caracterizou, porém, a política oficial dosEstados Unidos. O Congresso norte-americano aprovou, em dezembrode 1866, resolução recomendando ao Departamento de Estado oferecerseus ofícios para pôr fim ao conflito. O governo norte-americanoencampou essa iniciativa, de modo a colocar-se como protetor econselheiro aos olhos das repúblicas hispano-americanas,33 nas quaisas simpatias iam para o Paraguai, um David enfrentando o Goliasbrasileiro, única monarquia no continente.

O secretário de Estado norte-americano, Seward, remeteu aospaíses em guerra a proposta de um armistício pela qual enviariam aWashington representantes. Cada parte em luta teria direito a um voto,embora os aliados pudessem enviar três ministros plenipotenciários.Se esses representantes não chegassem a um acordo, caberia ao presidentenorte-americano designar árbitro para dirimir a questão. O ministronorte-americano no Rio de Janeiro, General Webb suspeitava de umaintervenção mediadora da Grã-Bretanha e França, iniciativa que,afirmava, deveria ser desencorajada por meio de uma postura ativa dosEstados Unidos na questão. Essa preocupação refletia a disputa deinfluência, sobre a América Latina, por parte dessas potências.34

À Grã-Bretanha interessava limitar a expansão norte-americana naAmérica Central, enquanto os Estados Unidos buscavam ampliar suazona de influência, participando dos assuntos sul-americanos.35

O governo estadunidense apresentou sua proposta de paz nosprimeiros três meses de 1867. Solano López aceitou-a, mas o impériorecusou, atitude em que foi seguido pelos governos da Argentina e do

32 Mendonça, Renato. Uma página na História Diplomática. In: Mensário do Jornal doCommércio. Rio de Janeiro, t. I, v. II, fev. 1938, p. 30.33 Peterson, Harold F. Argentina and the United States, 1810-1960. New York: State Universityof New York, 1964, p. 195.34 Idem, p. 196.Webb para Seward, Rio de Janeiro, 7.8.1866. In: ibidem.35 Carmagnani, Marcelo. Estado y Sociedad en América Latina; 1850-1930. Barcelona: EditorialCrítica, 1984, p. 154.

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Uruguai, apesar da impopularidade da guerra nos dois países.36 A recusarobusteceu a simpatia oficial dos Estados Unidos pela causa paraguaia,a ponto de o General M. T. MacMahon, agente diplomático norte-americano, acompanhar Solano López no início de sua retirada pelointerior do país. O Presidente Grant, por sua vez, em encontro com oenviado paraguaio, Gregório Benítes, pediu-lhe que transmitisse aSolano López a amizade e simpatia do governo norte-americano peloParaguai. Hamilton Fish, novo secretário de Estado, em conversa comBenítes mostrou-se convencido das tendências do império em dominaros Estados platinos.37

Em 1869 houve suspensão das relações brasileiro-norte-americanas, por iniciativa do General Webb, representante norte-americano no Rio de Janeiro, apoiado pelo secretário de Estado, Seward.Anteriormente, em 1867, Webb obtivera, mediante insultos e ameaças,vultuosa indenização do governo imperial para supostas perdas sofridaspelos proprietários de três navios de bandeira norte-americana, umdeles o Caroline. Em seguida, reclamou indenização para a baleeiraCanada, que encalhara na costa brasileira há mais de dez anos. Asautoridades brasileiras repeliram a reclamação, o que levou àquelasuspensão de relações, em 10 de maio de 1869. A essa altura, porém,mudara o governo norte-americano, que desautorizou o ato de Webbe restabeleceu as relações diplomáticas.38

Com o fim da Guerra do Paraguai, em 1870, terminaram osatritos nas relações bilaterais entre o Brasil e os Estados Unidos; acordialidade passou a predominar. Também as relações do Brasil coma Grã-Bretanha entraram em nova fase, caracterizada pelas oportunidadespara investimentos industriais, estradas de ferro e serviços urbanos.39

Tendo saído da guerra em péssima situação financeira, o impériocontraiu, entre 1871 e 1889, seis empréstimos na praça financeira de

36 Peterson, Harold F. p. 196-197.37 Benítez, Gregório. Anales diplomático y militar de la Guerra del Paraguay. Asunción:Establecimento, 1906, v. 2, p. 100.38 Bandeira Luiz A. Moniz, p. 114.39 Richard Graham, p. 141.Alan K. Manchester, p. 276-277.

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Londres, utilizando a maior parte desses recursos no financiamento dodéficit orçamentário e no refinanciamento de dívidas antigas.40

Como conseqüência dessa nova realidade, os governos norte-americano e britânico solicitaram, em 1871, que Pedro II, “amigocomum”, nomeasse um árbitro para integrar o tribunal arbitral nocaso do navio Alabama. Novo passo positivo nas relações entre oimpério e os Estados Unidos ocorreu quanto a uma revisão da questãodo Caroline. Em 1872, por solicitação da legação brasileira emWashington, o procurador-geral dos EUA julgou que o Brasil foravítima de extorsão no caso do Caroline. Foi apurado que Webbembolsara 9.252 libras esterlinas da indenização paga pelo Tesourobrasileiro, remetendo somente 5.000 ao Departamento de Estado. Em1874, o governo norte-americano devolveu ao representante brasileiroUS$ 96.406,73, valor resultante da quantia original paga pelo Caroline,acrescido de juros anuais de 6%.41

A cordialidade nas relações entre o Brasil e os Estados Unidostinha sólida base comercial. Afinal, era superavitário para o Brasil ocomércio com essa república, graças à exportação de café. O momentopolítico mais significativo dessa cordialidade foi a visita do imperadoraos Estados Unidos, em 1876, por ocasião das comemorações docentenário da independência norte-americana. Pedro II, embora emvisita particular, participou com o Presidente Grant da inauguração daExposição Universal de Filadélfia. A visita foi um êxito de relaçõespúblicas, deixando uma imagem simpática do chefe de Estadobrasileiro.42

As três viagens que Pedro II fez ao exterior permitiram-lheestabelecer contatos de alto nível com governos e instituições erobusteceram a respeitabilidade externa do império. Assim, em 1880,

40 Almeida, Paulo Roberto. Formação da diplomacia econômica no Brasil; as relações econômicasinternacionais no império. Brasília: edição do autor, 1998, p. 127. Conforme esse autor, oimpério do Brasil, nas seis décadas de existência, contraiu 68.191.900 libras esterlinas emempréstimos, resgatando 37.458.000.41 Bandeira, Luiz A. Moniz p. 144-155.42 Topik, Steven C. Trade and gunboats; the United States and Brazil in the Age of Empire.Stanford (USA): Stanford University Press, 1996, p. 54-55.

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a convite do governo francês, Pedro II nomeou o barão de Arinoscomo um dos juizes da arbitragem nas reclamações pendentes entre aFrança e os Estados Unidos. Quatro anos depois, em 1884, o imperador,novamente atendendo a convite das partes interessadas, nomeou umárbitro para julgar as reclamações de prejuízos, por parte alguns paíseseuropeus contra o Chile, decorrentes da Guerra do Pacífico.43

Embora as décadas de 1870 e 1880 tenham se caracterizadopelo enfraquecimento do Estado monárquico, em decorrência de suascrises política e financeira, a economia brasileira esteve próspera. Desdemeados do século XIX, ocorreram surtos de prosperidade de diferentesprodutos primários (cana-de-açúcar, algodão, borracha...) e permanentecrescimento da produção cafeeira. Como conseqüência, o comércioexterior brasileiro tornou-se superavitário a partir da década de 1860,44

e o país se apresentou na Europa, desde os anos 70, como naçãoreceptora de imigrantes, principalmente para abastecer de mão-de-obraa próspera lavoura do café em São Paulo.

As relações cordiais com os EUA levaram o império a aceitar oconvite do governo norte-americano para a Conferência Pan-Americana,que iniciou seus trabalhos em 20 de outubro de 1889, em Washington.Entre os vários objetivos da Conferência, explicitados no convite norte-americano, estavam a criação da união aduaneira continental e a adoçãode moeda comum a todos os países americanos, bem como oestabelecimento de arbitramento obrigatório em eventuais divergênciasentre eles.45 O fato é que, em 1889, enquanto Estados Unidos, emseu comércio exterior, conseguiam um superávit de US$ 129 milhõescom o resto do mundo, tinham um déficit de 142 milhões com aIbero-América. Desse modo, a finalidade da conferência de 1889 era ade colocar os países independentes do continente sob a esfera da

43 Pedro II viajou para a Europa e o Oriente Médio em 1871; para o mesmo destino em1876, com passagem pelos Estados Unidos, e retornou ao Velho Continente em 1887.44 Nessa década o Brasil exportou 149.433 libras esterlinas e importou 131.866; essesnúmeros foram, respectivamente, 199.685 e 164.929 (1871-1880), e 220.725 e 192.361(1881-1890). Ianni, Octávio. O progresso econômico e o trabalhador livre. In: Holanda,Sérgio Buarque de. op. cit., t. II, 3º v., p. 300.45 Relatório da Repartição dos Negócios Estrangeiros, 1889, p. 73-74.

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influência dos Estados Unidos,46 em detrimento dos interesses da Grã-Bretanha.

A delegação brasileira à Conferência Pan-Americana deWashington, chefiada por Lafayette Rodrigues Pereira, partiu do Riode Janeiro após encontro com o imperador. Tinha instruções, doGabinete de Ministros, de tratar com extrema cautela as propostas deunião aduaneira e de criação da moeda comum e rejeitar a idéia dearbitramento obrigatório. O governo imperial via nessas duas propostasa tentativa de os Estados Unidos estabelecerem protetorado sobre ocontinente americano, quer se colocando como árbitro perpétuo, querreduzindo as relações políticas e econômicas da Ibero-América com aEuropa. Para os governantes brasileiros, devia-se, ao contrário, mantera liberdade de ação externa do Brasil que, mesmo aproximando-se dosEstados Unidos, não deveria distanciar-se da Europa. Desse modo, seconservaria um equilíbrio nas relações internacionais do Brasil, bemcomo facilitaria a manutenção da forma monárquica de governo.47

Manter o equilíbrio entre a Europa e os Estados Unidos nasrelações externas do Brasil era um objetivo sábio no plano político epragmático na dimensão econômica. No plano político, o VelhoContinente continuava a ser a região que maior influência tinha sobreo resto do mundo e, no plano financeiro, predominava o capitalbritânico no Brasil. Com o golpe de Estado republicano de 15 denovembro de 1889, o governo provisório alterou essa política, aoordenar que se aceitasse o arbitramento obrigatório proposto naConferência Pan-Americana. As posições do novo representantebrasileiro nesse encontro, Salvador de Mendonça, foram basicamenteas mesmas da delegação norte-americana.48

* * *

46 Steven C. Topik, p. 35, 44.47 Apud. Mendonça, J. A. Azevedo. Vida e obra de Salvador de Mendonça. Brasília: Ministériodas Relações Exteriores, 1971, p. 189.48 Cervo, Amado Luiz e Bueno, Clodoaldo, p. 154-155.

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A política externa do Império do Brasil teve, nas relações comas grandes potências, dois momentos: de subordinação, daindependência até 1840, e, desse ano em diante, do exercício daautonomia possível, na defesa de interesses próprios brasileiros.

A subordinação decorreu, em um primeiro momento, daprioridade dos governantes do Império do Brasil em obter seureconhecimento por parte das potências européias. Afinal, o projetodas elites brasileiras, econômicas e políticas, era de dar continuidade àrelação com o centro capitalista na condição de fornecedor de produtosprimários e importador de manufaturados. Como preço doreconhecimento da independência, aquelas potências, principalmentea Inglaterra, arrancaram do Brasil privilégios econômicos e políticos,por meio de diferentes tratados. A capacidade de implementação deestratégias externas por parte do Império do Brasil, na década de 1830,foi limitadas por esses tratados e comprometida pelas lutas internasquanto a definição do caráter do Estado Nacional brasileiro.

Em 1840, porém, foi alcançada a unidade intra-elites, com amaioridade antecipada de Pedro II. O Estado brasileiro – monárquicoe centralizado – pode, então, na medida em que acumulava poder,substituir a subordinação externa pela autonomia, principiando pornão renovar os tratados impostos pelas grandes potências em troca doreconhecimento da independência brasileira. Estado periférico, masnão submisso, o Segundo Império brasileiro agiu pragmaticamentepara resistir às pretensões inglesas de ter privilégios comerciais e políticos;para defender a integridade nacional, repelindo pretensões européias enorte-americanas sobre a Amazônia; para driblar a simpatia dos EstadosUnidos pelo Paraguai, na guerra que este desencadeou contra o Brasil.Mesmo nas décadas de 1870 e 1880, quando a crise interna desviava asatenções e energia dos governantes brasileiros, o Império manteve-serespeitado pelas grandes potências.

Nas relações interestatais inexistem dependência ou autonomiaem termos absolutos; na inserção externa, cada país se coloca entre osdois extremos a partir de uma junção entre seu poder nacional e ocontexto internacional. É, porém, política a decisão de se buscar, noespaço de manobra delimitado por essa junção, o máximo de

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autonomia possível. Essa decisão foi tomada pelo Império do Brasil,enfrentando com sucesso os desafios externos, de países vizinhos e dasgrandes potências, na manutenção da soberania nacional.

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Paulo Roberto de Almeida*

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O primeiro período republicano no Brasil significou, não apenasdo ponto de vista estritamente econômico, mas, igualmente, no planoda política externa, a preeminência dos interesses ligados à exportaçãode café. No plano externo, tem início a chamada diplomacia do café,que era mais do que um simples esforço de promoção comercial (aliás,de caráter essencialmente passivo, pois bem mais nos deixávamoscomprar, do que participávamos ativamente do lado da oferta), poisenvolvia a negociação de empréstimos e a defesa contra acusações decartelização e abuso de poder dominante.

As crises de superprodução foram enfrentadas, geralmente noâmbito dos estados, com planos de “valorização” do café – antiga ediçãodo dicionário Webster’s definia valorization como uma palavra deorigem brasileira, destinada a descrever a alta artificial dos preços docafé – inclusive mediante empréstimos externos para a manutenção deestoques e retirada de circulação: o serviço da dívida foi enfrentadomediante sobretaxa aplicada às sacas exportadas. No plano internoargumentava-se que impedir o programa de valorização do caférepresentaria “paralisar o nosso progresso” e inviabilizar o orçamentopúblico; no externo, a diplomacia profissional foi intensamentemobilizada para a “propaganda” do café nos países consumidores, ouseja, para um esforço adicional de promoção comercial, além denegociações de acordos comerciais nos quais constasse, expressamente,

* Diplomata, editor adjunto da Revista Brasileira de Política Internacional e doutor em CiênciasSociais pela Universidade de Bruxelas.

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tratamento de favor ao café brasileiro. Como na maior parte dos paísesa tarifa aplicada era específica, o café brasileiro era tanto mais gravadoquanto seu preço caía no mercado internacional.1

No âmbito multilateral, antecipando o fenômeno dos acordosde produtos de base e a própria constituição de organizações econômicasespecificamente dedicadas ao tratamento do problema do café, adiplomacia econômica brasileira esteve na origem ou envolveu-sediretamente na organização de diferentes reuniões de concertação, ondese buscou a elaboração de acordos internacionais sobre o café. O quadro1 apresenta informação sumária sobre os esforços de regulação dascondições mundiais de comercialização desse produto básico na pautade exportação do Brasil, no período aqui considerado.

No final do período, ainda que o café continue representandodois terços das exportações, sua importância política diminui, em facedo projeto industrializador que passa então a empolgar a sociedadebrasileira. Essas novas características das relações econômicas internacionaisdo Brasil são sintomáticas das diferenças marcantes existentes no planomais geral entre o século XIX e o XX, sobretudo no terreno das políticaseconômicas. Enquanto o século anterior tinha sido relativamente“sereno” e aberto – à exceção de alguns poucos conflitos intereuropeus–, o século XX atravessou convulsões e crises repetitivas: passou-se deuma ordem econômica relativamente liberal e da estabilidade monetáriapermitida pelo padrão ouro, a um sistema fechado e protecionista,marcado por guerras tarifárias e escaramuças cambiais.

Os germes da nova situação internacional são colocadosjustamente na época da passagem do sistema monárquico ao regimerepublicano no Brasil. Como diz um autor,

muitos dos aspectos econômicos do período do após-guerra jáestavam presentes antes de 1914: o fechamento dos mercados àconcorrência estrangeira, a tendência para as restrições ao livrecomércio, a intervenção do Estado em assuntos antes reservados

1 Ver Delfim Netto, Antonio. O problema do café no Brasil. São Paulo: Faculdade de CiênciasEconômicas e Administrativas da Universidade de São Paulo, 1959. p. 50.

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à iniciativa privada ou entregues à livre atuação do mercado –todos esses fenômenos estavam bem avançados na virada doséculo.2

São esses fenômenos que irão marcar a política externa e asrelações internacionais do Brasil até a primeira metade do século XX.

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Sem esquecer as preocupações fiscalistas sempre presentes nosresponsáveis pelas finanças, o Brasil consolidaria, desde meados doséculo XIX, uma política comercial basicamente protecionista, em seuformato global, e essencialmente cautelosa na assunção de compromissosno plano bilateral, em especial no que se refere à redução recíproca dedireitos, atitude que seria a sua durante praticamente um século demoderada inserção econômica internacional, a despeito mesmo daaceitação, embora relutante e passível de reconsideração, do princípioincondicional da cláusula de nação-mais-favorecida nos tratadoscomerciais a partir da era republicana.3 A aplicação da cláusula NMFsofreu, com efeito, variações substanciais a partir da última décadado século XIX, quando muitos países, como a França por exemplo,abandonam sua modalidade geral e incondicional passando a privilegiarformas limitadas e condicionais. Coincidindo com a tendêncianeoprotecionista que alcançou quase todas potências industriais, aaplicação limitada da cláusula NMF começou, mais freqüentemente,a ser negociada em bases de reciprocidade bilateral, com a utilização

2 Cf. Landes, David. Prometeu desacorrentado: transformação tecnológica e desenvolvimentoindustrial na Europa ocidental, desde 1750 até nossa época. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,1994. p. 369-370.3 Os tratados do final do século XIX previam o tratamento recíproco, incondicional eilimitado de NMF como aqueles contraídos com o Japão e a Sérvia; ver HildebrandoAccioly. Actos internacionaes vigentes no Brasil. 2. ed.; Rio de Janeiro: Pongetti Editores, 1937,Tomo II: Comércio, p. 57-100. O acordo comercial negociado com os Estados Unidos em1891, e baseado numa reciprocidade estrita, deixou de vigorar três anos depois.

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simultânea de tarifas mínimas (ou normais) e máximas (isto é,retaliatórias).4

A tarifa aduaneira deixa progressivamente de ter fundamentosfiscais, ainda predominantes na Velha República para assumir tendênciasnitidamente protecionistas com o incremento da industrialização.A primeira pauta republicana, sancionada pelo Ministro Rui Barbosa,assistiu à introdução da cota-ouro expediente do qual se esperava apreservação da capacidade de arrecadação fiscal do Estado: a partir de1890, parte dos direitos alfandegários teria de ser paga em moeda forte(inicialmente 2%, que subiu para 10% em 1898, para 25% em 1900,para 35% em 1905 e, finalmente, 60% em 1922), como forma decompensar a desvalorização cambial.5 Uma nova tarifa, adotada em1896 na gestão Rodrigues Alves, começa a aplicar o princípio da duplapauta, uma geral e outra mínima, com vistas a obter vantagens de paísesque se abrissem aos produtos brasileiros. Até meados da década de1930, pelo menos, os impostos de importação constituíram a principalfonte de recursos tributários do Estado. O processo de reformas dastarifas brasileiras, bem como as sucessivas medidas de política comerciale cambial do período republicano, inclusive no que se refere ao cenáriocomercial regional e multilateral, podem ser seguidos no quadro 2.

Alguns estadistas de formação e idéias essencialmente liberais,como Leopoldo de Bulhões, tentaram, é verdade, em 1897, opor-se,em nome da defesa do consumidor, à elevação dos direitos aduaneiros,mas foram vencidos pela crescente afirmação da corrente protecionista,que se torna praticamente majoritária entre a classe política e osmembros do Governo. Tampouco o “darwinista” ministro da Fazendado Presidente Campos Salles, Joaquim Murtinho, partilhava do credoprotecionista, mas foi levado, em 1900, por absoluta necessidadeorçamentária e em função das obrigações contraídas no âmbito dofunding-loan com os Rothschilds, a promover nova revisão da tarifa e

4 O movimento protecionista desenvolveu-se particularmente depois da depressão européiada década de 1880: em 1891, por exemplo, o Parlamento francês adota um sistema de duplatarifa, uma mínima, ou normal, outra máxima, de caráter agressivamente protecionista; verPaul Leroy-Beaulieu. Traité de la Science des Finances. 5. ed. Paris: Guillaumin, 1891. p. 631.5 Abolida em 1891, a cota-ouro foi restabelecida em 1898, na base de 10%, e logo emseguida elevada a 15% em 1899; cf. Gerson Silva. Estudos Aduaneiros, op. cit., p. 190.

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elevação da cota-ouro, com objetivos claramente declarados deestabilização financeira. Os altos níveis tarifários então praticadostiveram efeitos industrializantes involuntários, fenômeno que de restofoi registrado em ocasiões ulteriores do intermitente processo deindustrialização brasileira. A “Tarifa Murtinho”, que dispunha sobre aaplicação de taxas mínima (NMF) e máxima (o dobro da primeira),subsistiu durante mais de três décadas, mas foi sucessivamente alterada,emendada e modificada, por vezes em pontos fundamentais: os valoresfixados na pauta seriam irrelevantes se o imposto-ouro não tivesse sidoprogressivamente elevado em até 60%; ela também foi “corrigida” pelaaplicação negociada de níveis mínimos com países com os quais ointeresse na colocação de certos produtos – no caso do Brasil,praticamente apenas o café – justificasse um tratamento de favor combase em níveis tarifários mínimos ou “normais”. Foi o caso de diversosacordos de comércio negociados a partir de 1923, com os EstadosUnidos, a Bélgica e a Espanha, por exemplo.6

No plano multilateral, o cenário diplomático é caracterizadopor poucas negociações e, de fato, nenhuma regulamentação substantiva,a não ser por algumas conferências internacionais de cooperação, noâmbito da Ligas das Nações ou do Escritório de Bruxelas, para afacilitação aduaneira e o intercâmbio de estatísticas e pautas de comércioexterior. Os debates do entreguerras sobre questões comerciais oumonetárias não resultaram em nada de significativo et pour cause. Segundoum historiador, a Liga das Nações “não era suficientemente universalpara conseguir uma conciliação geral, nem suficientemente coesiva paraconseguir uma ação decisiva como um concerto de potências.”7

6 Também a Argentina buscou compensação para os favores que o Brasil concedia àimportação de farinhas norte-americanas, obtendo-se, como contrapartida, a abertura deseu mercado ao mate dos estados do sul do país; cf. Relatório apresentado ao presidente daRepública dos Estados Unidos do Brasil pelo ministro de Estado das Relações Exteriores,compreendendo o período decorrido de 30 de abril de 1923 a 3 de maio de 1924. Rio deJaneiro: Imprensa Nacional, 1925, Exposição e Anexo A, 1º vol., p. x-xiii. Nessa época, oItamaraty coordenava uma “comissão técnica de acordos comerciais”, no âmbito da qualforam negociados diferentes acordos contendo uma cláusula NMF condicional e restrita.7 Cf. Thomson, David. Pequena História do Mundo Contemporâneo. Rio de Janeiro: Zahar,1967. p. 93.

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Assim, se as conferências de Londres de 1924 e da Haia de1930, sobre reparações de guerra, foram relativamente bem sucedidas– tendo delas emergido os planos Dawes e Young que resultaram,respectivamente, na coordenação da ajuda à Alemanha e no términoda inflação catastrófica naquele país e, em 1930, na criação, na Basiléia,do Banco Internacional de Compensações (BIS) –, já a Conferênciado Desarmamento Naval de Genebra, em 1926, e, mais ainda, asconferências econômicas internacionais de Gênova, em 1922, e a deLondres, em 1933, redundaram em rotundos fracassos, dada aincapacidade dos países em abandonarem políticas estreitamentenacionais em favor da cooperação monetária e da liberalização comercialrecíproca. No plano hemisférico, por sua vez, sob a égide do EscritórioPan-Americano, ocorreram na área econômica – mas sem repercussõesrelevantes para os fluxos de comércio e as relações econômica de modogeral – algumas reuniões dedicadas ao tratamento comercial uniforme,a questões arbitrais e a outras matérias técnicas.

A crise de 1929 e a depressão que se seguiu determinaram umreforço ainda maior das tendências protecionistas nacionais e aemergência de esquemas estritamente bilateralistas, inclusive do pontode vista dos pagamentos, com a introdução subseqüente de acordos decompensação. A “Tarifa Oswaldo Aranha”, de 1934, decretou aextinção da cobrança dos direitos aduaneiros em ouro, mas mantevedireitos específicos, com um nível médio de proteção de 35%. Váriosacordos comerciais bilaterais foram renegociados pelo Brasil, semprecom cláusulas limitadas, outros declarados expressamente “provisórios”.O entreguerras, a não ser por algumas iniciativas da Liga das Naçõesem questões de simplificação aduaneira e da mútua aceitação de chequese de títulos cambiais, não assiste nenhum desenvolvimento notável dosistema comercial multilateral, sendo antes um período de bilateralismoestrito, quando não de “guerra comercial”.

O Itamaraty, como passou a ser conhecida a chancelariabrasileira, participou ativamente desses processos negociadores, nãoapenas por meio de adequada preparação interna, funcional e humana– por meio da constituição de um Departamento de Assuntos

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Econômicos e Comerciais, por exemplo8 –, mas, igualmente, integrandoou dirigindo instâncias interministeriais que passaram a ficarencarregadas de dar embasamento técnico ou, muitas vezes, a integrardelegações consultivas ou negociadoras, como no caso dos acordoscomerciais bilaterais. Em 1934, por exemplo, foi criado o ConselhoFederal do Comércio Exterior, órgão presidido pelo próprio presidenteda República ou, na sua ausência, pelo “representante do Ministériodas Relações Exteriores”.9 Muitas das reuniões econômicasinternacionais de que participavam os delegados brasileiros se davamno plano multilateral, seja no âmbito da Liga das Nações, que o Brasilintegrou até 1926, seja no quadro da União Pan-Americana, comopassaria a se chamar, a partir de 1929, o antigo Escritório de Washington.

A reforma do corpo diplomático, em 1918, viu serematribuídos aos “chefes de Missão uma intervenção mais vasta na políticade expansão econômica da República, impondo-lhes deveres nodesenvolvimento do intercâmbio comercial do país, a que não sejulgavam obrigados no modo de ser da diplomacia antiga”.10 Na décadaseguinte foram criados os cargos de “adidos comerciais”, num total deonze, espalhados por diversas cidades da Europa e das Américas, inclusiveum em Alexandria. O corpo consular, bastante ampliado no começoda República – depois “racionalizado” em função de cortesorçamentários, mas, também, razoavelmente ampliado no decorrerdos anos 20 – seria fundido ao diplomático em meados dos anos 30,mais exatamente na gestão Oswaldo Aranha, em 1938.

O sistema de comércio internacional e a própria ordemeconômica internacional seriam reorganizados em novas bases no pós-

8 A “Seção dos Negócios Econômicos e Comerciais”, separada dos assuntos consulares, foiinstituída pela primeira vez em 1918, na reforma Nilo Peçanha, ao lado de outras iniciativasno âmbito consular, cujos representantes deveriam ser “agentes propulsores do comércioexterior do Brasil”; assim, pelo novo regulamento consular, os cônsules poderiam ter “umapercentagem sobre os seus vencimentos, a título de adicionais, igual à percentagem doaumento da exportação brasileira verificada no último ano... uma vez que prove[m] que esseaumento foi devido aos seus esforços”; ver Flávio Castro. História da Organização do Ministériodas Relações Exteriores, op. cit., p. 238-240.9 Idem, p. 317-318.10 Cf. Preâmbulo do Decreto nº 13.113, de 24.7.1918. In: Flávio Castro, op. cit., p. 249.

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guerra, tendo o Itamaraty assumido posição de destaque, senão emBretton Woods, em 1944, pelo menos na condução das negociaçõespreparatórias e substantivas que se desenvolviam para a criação de umaprojetada “Organização Internacional de Comércio”.

Na vertente financeira, caberia diferenciar os capitais deempréstimo dos investimentos diretos, que foram relevantes a partirdo último terço do século XIX, quando da construção de ferrovias eda realização de muitas obras públicas. Os investimentos diretos deempresas norte-americanas começaram a superar os britânicos apenasnos anos 20, tendo igualmente os primeiros sofrido menor reduçãoque estes últimos durante os anos de crise: entre 1929 e 1950, osinvestimentos britânicos diminuem de 60% em toda a América Latina,enquanto os norte-americanos aumentam 28%. Nesse período, o Brasildá início a seu processo de industrialização, e o estoque de investimentosdiretos provenientes dos Estados Unidos passa de 194 milhões dedólares em 1929 para 644 milhões em 1950.11

No geral, porém, as importações de capital se fizeram maispor motivos financeiros, para cobertura de déficits estatais e parasuprimento das obrigações externas em divisas. Os investimentosbritânicos, como é sabido, foram responsáveis por cerca de três quintosde todos os investimentos e empréstimos externos até 1914, sendodepois substituídos pelos norte-americanos, sobretudo a partir de1930.12 Às vésperas da Primeira Guerra Mundial, o Brasil era, noconjunto da América Latina, um dos principais tomadores de capitaisbritânicos, rivalizando com a Argentina na captação de recursos dasmais diversas fontes. As tabelas 1 e 2 apresentam as cifras, globais erelativas, disponíveis sobre o estoque de capital estrangeiro – dívidapública e investimento direto – na América Latina no final de 1914.

O perfil do endividamento externo também começa a mudarnessa época, em vista da intervenção de outros agentes econômicosrelevantes, que não apenas o governo central e os tradicionais banqueirosingleses. Do lado da oferta de recursos externos, outros atores

11 Cf. Cepal. El financiamiento externo de América Latina. Nova York: Naciones Unidas,1964. p. 33-35.12 Cf. Goldsmith, Brasil 1850-1984. op. cit., p. 15.

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interessados são mobilizados para o financiamento de operações noBrasil. Já quando da Convenção de Taubaté, em 1906, o governopaulista obteve financiamento – cerca de £ 1 milhão, aproximadamente– não junto aos Rothschilds (que se opunham ao plano de valorização),mas do Brasilianische Bank für Deutschland e de operadores de NovaYork, tendo o governo federal atuado apenas em 1907 para garantirnova contratação de recursos – da ordem de £ 3 milhões desta vez – daCasa Rothschild.13

Do lado dos tomadores, a extrema descentralização republicanainduzida pela nova Constituição significou, também, do ponto devista da dívida externa, uma certa irresponsabilidade dos estados emunicípios, seja na contratação de alguns coffee realization loans, sejaem operações de custo elevado e destinação duvidosa.14 ValentimBouças, encarregado de levantar a situação do endividamento dosestados e municípios, lamenta o

descaso de alguns de nossos administradores, já por inadvertência,ao anuírem em certas cláusulas deprimentes para os nossos brios,já por não demonstrem escrúpulos em assumir obrigações muitosuperiores às reais possibilidades das unidades federativas oucomunas sob sua jurisdição, motivando todo um cortejo defunestas conseqüências.15

O quadro internacional muda dramaticamente a partir dagrande crise dos anos 30, seja para a contratação de empréstimos

13 Cf. Delfim Netto. O problema do café. op. cit., p. 65-70; outras operações de valorizaçãodo café seriam conduzidas nos anos 1917-1920 e 1921-1924.14 Com efeito, a Constituição de 1891 estabelecia que os estados da federação poderiamnegociar empréstimos externos sem a intermediação do governo federal, além de decretarimpostos sobre a exportação de mercadorias de sua própria produção e sobre indústrias eprofissões; cf. Margarida de Neves, Margarida de Souza e Heizer, Alda. A Ordem é oProgresso: o Brasil de 1870 a 1910. 4. ed. São Paulo: Atual, 1991. p. 68.15 Bouças Valentim. Finanças do Brasil. Rio de Janeiro: Secretaria do Conselho Técnico deEconomia e Finanças do Ministério da Fazenda, 1942 X: História da Dívida Externa Estaduale Municipal. p. vi. Em 1912 se fez tentativa de proibir aos estados e municípios contrairdívidas no exterior sem a autorização do Congresso, mas o projeto de lei ficou no “pó dosarquivos” por mais de dez anos; cf. Cavalcanti. Histórico da dívida externa federal. op. cit.,p. 104.

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externos, seja no caso de renegociação dos atrasados comerciais oufinanceiros: a diplomacia assume um papel político por vezesestratégico, em virtude da ausência de arranjos institucionais maiselaborados para o tratamento substantivo das questões comerciais edas matérias financeiras.16 Quando a situação requeria, o Itamaratyseria chamado a participar dos encontros programados no exterior,muito embora tanto o chamado “Esquema Oswaldo Aranha”, entre1934 e 1938, quanto as renegociações posteriores conduzidas peloMinistro Souza Costa fossem realizadas essencialmente no âmbito doMinistério da Fazenda. As embaixadas em Londres e Washington forammobilizadas para a facilitação dos contatos com os credores externos.Estes, organizados desde o século XIX em corporações de detentoresde títulos da dívida de governos estrangeiros, continuaram a atuar demaneira concertada, sobretudo na renegociação da dívida pública depaíses da América Latina.17 Em todo caso, esse novo papel internacionaldas autoridades econômicas brasileiras começa a retirar do serviçodiplomático o virtual monopólio que detinha até então sobre a maiorparte das negociações econômicas externas.

De fato, como informa Bouças, ao agravar-se a situação dasfinanças do Estado, poucos anos depois, “foi suspenso [em 1937] opagamento de nossas obrigações contraídas no exterior, com a finalidadede dar tempo e oportunidade ao responsável pela pasta da Fazenda deentrar em novas negociações com os banqueiros, com o objetivo deser assentada uma solução mais consentânea com as difíceis condiçõesda época”. Novos acordos, ajudados pelo próprio Oswaldo Aranha, jáembaixador em Washington, foram firmados pelo Ministro SouzaCosta, com a retomada dos pagamentos na base de 50% das remessas

16 Ver a tese de Marcelo de Paiva Abreu. Brazil and the world economy, 1930-1945: aspects offoreign economic policies and international economic relations under Vargas (PhD dissertation,University of Cambridge, 1977), publicada como O Brasil e a economia mundial, 1930-1945. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999.17 Como referido anteriormente, a Corporation of Foreign Bondholders, de Londres, tinhasido criada em 1883, para defender os interesses dos compradores ingleses (e europeuscontinentais) de títulos estrangeiros, impulsionando, mais tarde, a constituição da ForeignBondholder Protective Council, de Nova York, com os mesmos objetivos; cf. Cepal,El financiamiento externo de America Latina. op. cit., p. 27.

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efetuadas na vigência do Esquema Oswaldo Aranha. “Uma cláusulado novo acordo permitiu que a União, os estados e municípiosadquirissem títulos de seus empréstimos para serem retirados decirculação. Esta sábia medida permitiu pela primeira vez, desde umséculo, a diminuição do total da circulação da nossa dívida externa”.18

A tabela 3 traz elementos factuais sobre a evolução positiva da dívidaexterna de alguns países da América Latina entre 1929 e 1945.

Na questão da imigração, se passa da abertura ao fechamento.Em 1889, ao concluir-se a fase monárquica, a população do Brasil erade 14 milhões de pessoas: nos dez anos seguintes iriam ingressar nopaís mais de 1 milhão de pessoas, com mais 1,5 milhões nas duasprimeiras décadas do século XX, com a predominância de italianos,portugueses e espanhóis.19 O período inicial da República assistiu aoauge da entrada de imigrantes no Brasil – mais do que nos setenta anosanteriores do período monárquico – e também à maior mobilizaçãode esforços, diplomáticos e outros (no Estado de São Paulo, porexemplo), para a atração de novos colonos e de trabalhadores rurais depaíses determinados.20 A tabela 4 computa, por nacionalidade, onúmero de imigrantes desembarcados no Brasil desde 1820 até 1910,quando as entradas começam a diminuir sensivelmente.

As diretrizes que então eram traçadas para os representantes dadiplomacia no exterior eram indicativas do Zeitgeist, com umacuidadosa seleção de tipos e “raças” de trabalhadores “ideais”. A políticamigratória estabelecida em 1890 já restringia a entrada de africanos easiáticos, não obstante o acordo que seria feito logo depois com oJapão, prevendo o ingresso no Brasil de súditos daquele Império. Demaneira geral, a entrada de não-europeus tinha de ser aprovada peloCongresso, o que geraria problemas mais adiante, justamente apropósito da imigração japonesa, quando a Constituinte de 1934

18 Cf. Bouças. História da Dívida Externa Estadual e Municipal. op. cit., p. xii.19 Ver Gonçalves, Mirna Ayres Issa. A população brasileira de 1872 a 1970: crescimento ecomposição por idade e sexo. Cadernos Cebrap 16 Cebrap, São Paulo: 1974, p. 27-74).20 O ano de 1891 registrou a maior entrada de imigrantes de toda a história do Brasil:215.239 estrangeiros, mas o número começou a cair logo depois, mantendo-se contudo empatamares elevados até o começo da Primeira Guerra Mundial.

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pretendeu vedar totalmente sua entrada no Brasil. 21 A crise do café, apartir de 1902 e de forma intermitente nos anos seguintes, acirrou aexploração de trabalhadores rurais nas fazendas paulistas e, com isso,medidas de retorsão por parte de governos estrangeiros, como, na Itália,a suspensão da emigração subsidiada para o Brasil.22

Fatores políticos, numa época de ativas correntes anarquistas ede sindicalismo clandestino, também passaram a entrar em linha deconta: em 1907, por exemplo, estabeleceu-se no Brasil uma lei quevedava a entrada de imigrantes cujos antecedentes, em seus países deorigem, os enquadrassem como sujeitos à expulsão; outro decreto,assinado em 1921, estabelecia alguns casos de proibição de entradapara estrangeiros considerados indesejáveis, enquanto outras medidasrestritivas foram adotadas em 1924 e em 1928, antecedendo a fase defechamento dos anos 1930 (estabelecimento de sistema de quotasnacionais). A diplomacia brasileira seria estritamente controlada nasfunções de concessão de vistos, conformando-se, ao aproximar-se aguerra de 39 e durante seus momentos mais dramáticos, alguns casosde reduzida estatura moral e de claro conflito entre a ética e as instruçõesoficiais.23

A primeira metade do século XX também assiste a uma decisivamudança de parceiros externos, com uma crescente predominânciacomercial, financeira e industrial dos Estados Unidos na economiabrasileira, movimento que seria ainda acelerado a partir dos anos 50.

21 Ver Valdemar Carneiro Leão, A Crise da Imigração Japonesa no Brasil (1930-1934) ContornosDiplomáticos. Brasília: IPRI/Funag, 1990.22 Ver, a propósito, Amado Luiz Cervo. As relações históricas entre o Brasil e a Itália: o papel dadiplomacia. Brasília: Editora da Universidade de Brasília; São Paulo: Istituto Italiano diCultura, 1992. p. 70; e o trabalho de Tereza Cristina Kirschner. A intervenção do Estado nacriação de um mercado de trabalho para a economia cafeeira no século XIX. In: ManuelGonçalves Ferreira Filho et alii, A Intervenção do Estado na Economia: o caso café. Brasília:Editora da Universidade de Brasília, 1985, Cadernos da UnB. p. 43-56.23 De fato, Getúlio Vargas registra em seu Diário, na entrada relativa a 14 de dezembro de1940: “Convoquei o ministério. Tratou-se da imigração clandestina e abusiva que se fazia.Assentei como medidas resultantes da palestra: 1) proibir o visto consular nos passaportesde judeus; 2) levantar o cadastro de todos os imigrantes que se achavam irregularmente noBrasil; 3) promover uma legislação mais severa sobre a imigração”; Vargas, Getúlio Diário.Rio de Janeiro: Siciliano/FGV, 1995, vol. 2: 1937-1942, p. 243.

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No início do século, grande parte do comércio bilateral entre os EstadosUnidos e o Brasil ainda era manipulado por firmas européias e porbancos ingleses e o primeiro banco norte-americano o City New York,só se estabelece em 1915. O período entreguerras e o imediatopós-Segunda Guerra Mundial alterariam dramaticamente o quadro,sobretudo no terreno comercial, com o declínio britânico e o retornoem força da Alemanha após cada conflito, como revelam as tabelas5 e 6.

De forma geral, a importância do setor externo se contrai noperíodo republicano: a importância das exportações no produtonacional declina de 33% em 1890 a 15% em 1928, caindo tambémcomo percentual das rendas governamentais.24 A partir dos anos 30, aeconomia brasileira torna-se ainda mais introvertida, deixando de seruma simples economia reflexa, apoiada na exportação de produtosprimários, para transformar-se numa estrutura industrial bastanteintegrada, com baixo coeficiente de dependência em relação ao comércioexterior: este indicador caiu de uma média de 22% do PIB nos anos20 para cerca de 6% nos anos 60.25 Assim, a participação do Brasil nasexportações mundiais de café, de 63% em 1920, caiu para 32% emprincípios dos anos 60. Não obstante, nos anos 50, as exportaçõesbrasileiras ainda estavam concentradas em três produtos principais: café,açúcar e cacau, sendo que o café cobria, desde princípios do século XX,entre a metade e mais de dois terços das exportações totais; tabaco,algodão e erva-mate, ademais da borracha, completavam nossa pautade comércio exterior. A participação dos produtos agrícolas, aindaimportantes relativamente se considerarmos a ascensão do complexoda soja nos anos 70 e dos cítricos nessa mesma época, declinagradativamente para menos de 40% nos anos 80, como resultado doaumento dos manufaturados.

24 Ver dados citados em Topik, The political economy of the Brazilian State, op. cit., p. 7.25 Ver Simonsen, Mário Henrique. Brasil 2001. Rio de Janeiro: APEC, 1969. p. 152. Parauma coletânea de textos contendo uma visão geral do setor externo em meados do século,ver Pedro S. Malan et alii, Política Econômica Externa e Industrialização do Brasil, 1939/52.Rio de Janeiro: INPES, 1980.

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Tal estrutura do comércio externo explica, provavelmente,porque a diplomacia econômica brasileira foi, durante toda a primeirametade do século XX e até os anos 60, particularmente ativa no campodas negociações de acordos econômicos de produtos de base,relativizando, porém seu papel à medida em que a industrializaçãodiversificava a pauta das exportações. Da “diplomacia do café”,inaugurada de maneira unilateral em princípios do século por meiodos esquemas de sustentação dos preços do produto (via retenção deestoques), passa-se à “diplomacia da promoção comercial”, com a criaçãode sistemas de informações comerciais disponibilizados pelos postosno exterior, a designação de funcionários diplomáticos para os esforçosde penetração de mercados e o estabelecimento, no plano interno, deuma rede de mecanismos (subvenções, incentivos fiscais) de estímuloàs exportações de manufaturados.

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A história institucional da economia mundial desde o séculoXIX é, basicamente, uma história das organizações intergovernamentaisde cunho cooperativo nos terrenos da regulação industrial (patentes,normas técnicas, pesos e medidas), dos transportes e comunicações(uniões telegráfica e postal, de ferrovias), do comércio (tarifas, DireitoComercial), bem como no campo das questões sociais (liga contra otrabalho escravo, oficina internacional do trabalho), jurídicas (CortePermanente de Arbitragem, Tribunal Internacional de Justiça), de higienepública, de direitos humanos ou da educação e pesquisa. As uniões ouorganizações concebidas a partir da segunda revolução industrial – aprimeira foi a União Telegráfica Internacional, em 1865 – prosperaramdesde então, contribuindo decisivamente para impulsionar a chamadagovernança global a partir de meados do século passado até o surgimentoda mais jovem dentre elas: a Organização Mundial do Comércio, quecomeçou a funcionar em 1995.

Essas entidades intergovernamentais ajudaram a criar mercadosmundiais para os bens manufaturados pelo estabelecimento de melhores

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meios de comunicações (“uniões” postal e telegráfica) e da interconexãofísica dos transportes (escritórios de ligações ferroviárias ou marítimas),pela proteção da propriedade intelectual (União de Berna sobre DireitoAutoral) e industrial (União de Paris para a Propriedade Industrial) epor meio da redução das barreiras ao comércio (União para a Publicaçãodas Tarifas, Escritório de Cooperação Aduaneira). O comércio se faziaao abrigo dos acordos bilaterais de “comércio, amizade e navegação”,que geralmente continham a cláusula de Nação-mais-Favorecida(NMF), mas muitas vezes sob a forma condicional e restrita, o quecertamente suscitou a necessidade de sua uniformização multilateral,obtida tão somente a partir do Gatt-1947. A sede dessas organizaçõesera, geralmente, na Europa, simplesmente porque as potências européiascontrolavam, até a primeira metade do século XX, a maior parte domundo civilizado (e o “não-civilizado”).

Paralelamente ao trabalho burocrático desses organismos decooperação, eram realizadas todo ano, de forma ad hoc ouinstitucionalizada, centenas de conferências, européias ou mundiais,constituindo um verdadeiro sistema global de consulta e de coordenaçãoentre representantes de governos e de entidades associativas deempresários, que definiam, assim, a agenda econômica mundial. Noplano financeiro, os capitais circulavam livremente durante a era clássicado laissez-faire e as transações bancárias e com ouro não conheciamrestrições de monta até o final da belle-époque, o que facilitava ainterdependência dos mercados capitalistas e dispensava qualquerorganismo para intermediar as relações entre os bancos centrais. Aindaassim, no período anterior à guerra, foram realizadas conferências paraa unificação de letras de câmbio e cheques.

A Primeira Guerra Mundial destruiu os fundamentos dessaordem liberal, introduzindo em seu lugar o protecionismo comerciale restrições dos mais diversos tipos aos fluxos de bens, serviços, capitaise pessoas. Alguns acordos de matérias-primas negociados nessa fasebuscaram amenizar os desequilíbrios entre a oferta e a procura dedeterminados bens, mas eles tiveram escasso sucesso em suaimplementação. As cláusulas econômicas da paz de Versalhes e asinstituições por ela criadas (Liga das Nações e a Oficina Internacional

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do Trabalho) tentaram reduzir o potencial de conflitos embutido nosistema discriminatório então existente, baseado nos sistemas coloniaisde reservas de mercado e de preferências tarifárias. A “taxa de mortalidade”do multilateralismo econômico foi relativamente alta: um terço dasuniões criadas a partir da segunda metade do século XIX não sobreviveuà Primeira Guerra Mundial e apenas a OIT cresceu para ser absorvidadepois da Segunda Guerra Mundial por um sucessor mais forte. Aquelasrelativas à infra-estrutura, à indústria, à propriedade intelectual e aocomércio sobreviveram, muito embora algumas tiveram seu potencialdiminuído com o desaparecimento de alguns de seus patrocinadores(reis e príncipes).

Com a ascendência do nacionalismo econômico e do princípioda auto-suficiência poucas entidades intergovernamentais foram criadas:o Instituto Internacional de Refrigeração em 1920, os escritóriosinternacionais de epizootias, da uva e do vinho, ambos em 1924, ede feiras e exposições em 31. Em 1930 era criado o Banco deCompensações Internacionais, com sede na Basiléia, mas, longe de serum organismo multilateral, ele estava voltado para administração dasdívidas de guerra da Alemanha. O período de entreguerras foi incapazde restabelecer as condições de uma ordem internacional aceita portodos os parceiros, sobretudo em virtude de atitudes defensivas porparte de algumas potências européias e o prosseguimento de políticascoloniais. No terreno do comércio, uma conferência da Liga das Nações,em 1927, tentou converter esforços bilaterais e unilaterais deliberalização em um tratado de redução multilateral de tarifas, segundoo princípio NMF, mas o tratado recebeu muito poucas ratificaçõespara entrar em vigor, inclusive porque os EUA, que não faziam parteda Liga e também aderiam ao nacionalismo econômico, não reduziramsubstancialmente suas tarifas.

A crise dos anos 30 e a depressão que se seguiu bloquearamqualquer solução cooperativa para os problemas do comércio mundialde bens e dos fluxos de pagamentos. As políticas de “exportação dodesemprego”, de desvalorizações competitivas, bem como os sistemasdiscriminatórios de intercâmbio (muitos deles baseados nacompensação estrita) e de controle de capitais mergulharam a maior

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parte do sistema capitalista numa das piores crises já conhecidas emsua história econômica. Ao reunirem-se, ainda durante a Segunda GuerraMundial, as potências aliadas buscaram reconstruir em novas bases aordem econômica internacional, reduzindo o grau de bilateralidadediscriminatória em favor de um sistema tanto quanto possívelmultilateral, dotado de regras transparentes e não-discriminatórias eaberto à adesão contínua de um número cada vez mais amplo deparceiros, desenvolvidos ou em desenvolvimento.

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Como evoluiu a diplomacia econômica brasileira do ponto devista de seu envolvimento na emergente estrutura multilateralinternacional? Como participou o Brasil do sistema de organizaçõeseconômicas que, a partir do último terço do século XIX, começou amoldar o mundo contemporâneo? Qual seria o papel das diplomaciaseconômicas nacionais na criação de uma ordem mundialinterdependente, hoje essencialmente caracterizada por uma economiaglobalizada, na qual fluxos de capital, contratos de licenciamentotecnológico, compra de know how e correntes de comércio fluem bemmais livremente do que no passado? Haveria, em primeiro lugar, omesmo espaço de manobra para os diplomatas, tal como existiu numpassado de relações predominantemente políticas e bilaterais?

Nesse particular, segundo a opinião de alguns observadores,“Enquanto no século XIX os diplomatas foram de grande importânciaem um mercado mercantilista [sic], aqui [isto é, hoje] se vê a livreeconomia ganhando terreno por conta dos homens de negócio”.26 Defato, a economia mundial parece apresentar, no final do século XX,alguns traços que tenderiam a aproximá-la daquela conhecida no finaldo século XIX, caracterizada por uma ordem liberal capitalista, de grandeliberdade de movimentos de capitais e de pessoas e de poucas exceções

26 Cf. Freitas Jr. Norton Ribeiro. O capital norte-americano e investimento no Brasil: característicase perspectivas de um relacionamento econômico, 1950 a 1990. Rio de Janeiro: Record, 1994. p. 29.

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ao princípio do tratamento nacional. Na verdade, a presente ordemeconômica não é nem tão liberal, nem tão pouco regulada como o eraaquela da belle époque: ela ainda é extremamente regulada, muito poucopermissiva quanto ao livre movimento de pessoas, comportandoinúmeras exceções nacionais e reservas de mercado que excluem aconcorrência estrangeira de setores inteiros da nova economia deserviços. Ela seria bem mais neomercantilista do que neoliberal, a únicaexceção sendo o tratamento geralmente leniente dado aos fluxos decapital num cenário político e econômico claramente pós-socialista.

A grande diferença em relação ao cenário e ao timing históricoexaminados no presente ensaio seria, precisamente, o caráteressencialmente multilateralista da maior parte dos arranjos econômicosconcertados entre os países participantes desse novo mundointerdependente. Com efeito, até meados do século XX, pelo menos,os tratados bilaterais de amizade, comércio e navegação – contendo ounão a cláusula de Nação-mais-Favorecida – representavam o instrumentomais utilizado na vida econômica externa dos países: eles regulavam osdiversos aspectos da cooperação econômica e técnica bilateral, inclusivea proteção aos nacionais e aos investimentos da outra parte. Desde asegunda metade do século XIX, entretanto, vinham sendo negociadosinstrumentos econômicos “plurilaterais” e, mais adiante, legitimamentemultilaterais, para administrar, sobre uma base técnica e impessoal, asrelações econômicas entre os Estados que integravam a chamada“comunidade internacional”. Para visualizar a seqüência de atosmultilaterais que foram sendo acrescentados ao edifício ainda largamenteinacabado do Direito Internacional, o quadro 3 apresenta umacronologia do multilateralismo econômico, tal como refletido noscompromissos externos assumidos pelo Brasil, entre 1856 e 1945.

No que se refere exclusivamente ao século XX, por exemplo,uma primeira regulação “multilateralista” das relações internacionaisfoi tentada no contexto do chamado sistema de Versalhes, mas, alémde seu penchant tipicamente político-militarista, ele deixava a desejarna seleção dos instrumentos e mecanismos mobilizados para fazer“reviver” o universo do padrão ouro e o mundo do livre-cambismo,de resto mais proclamados do que reais. Algumas conferências foram

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convocadas, algumas reuniões mantidas sob a égide da Sociedade dasNações, mas muito pouco se pôde fazer no espaço histórico da “segundaGuerra dos Trinta Anos” em que parece ter vivido a Europa, e com elagrande parte do mundo, entre 1914 e 1945.

Apenas a partir da segunda metade do século XX, e com maiorvigor a partir dos anos 60, os acordos multilaterais começaram asuplantar os instrumentos bilaterais como mecanismos reguladores davida econômica das nações. Inaugurados timidamente no último terçodo século XIX, durante a fase do capitalismo triunfante, masinterrompidos logo depois pelos desastres políticos, econômicos e sociaisdas duas guerras mundiais e, mais particularmente, pelos fenômenosda depressão e do protecionismo dos anos 30, os instrumentosmultilaterais passam a estar no centro da reconstrução da ordem econômicainternacional, que começou a ser elaborada, sob a égide da ONU, embases essencialmente contratuais e institucionalistas.27

Os Estados, sob a discreta pressão da potência hegemônica nessaépoca, aceitam transferir parte de suas soberanias respectivas – oumelhor, de suas competências reguladoras – em favor de umaadministração concertada de alguns setores da vida econômica, sobretudono campo do comércio, das finanças e dos meios de pagamentos(e adicionalmente no da regulação de alguns aspectos da vida produtiva,como o das relações de trabalho, por exemplo). Bretton Woods (julho-agosto de 1944: criação do Fundo Monetário Internacional e do BancoInternacional de Reconstrução e Desenvolvimento) é o marco inicialdesse processo “fundador” multilateral, que se desdobra igualmenteem Chicago (dezembro de 1944: Organização da Aviação CivilInternacional) e no Quebec (1945: Organização para a Alimentação eAgricultura bem como nas várias conferências do pós-guerra em capitaiseuropéias e em cidades norte-americanas (1946-1947), preparatórias àConferência sobre Comércio e Emprego de Havana (1947-1948), que

27 Em face da meia dúzia de entidades “multinacionais” do século passado, estima-se emcerca de 350 as organizações internacionais existentes atualmente, sendo pelo menos umacentena de base universal; cf. Jean-Paul Jacqué. Les organisations internationales contemporaines.Paris: Pedone, 1988 citado pelo Professor Ricardo Seitenfus. Manual das OrganizaçõesInternacionais. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 1997. p. 21.

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deveria completar o tripé institucional concebido em Bretton Woods,acrescentando uma organização dedicada exclusivamente ao comércio(mas em sentido amplo) às entidades já criadas para os aspectosmonetário (FMI) e financeiro (Bird).

As primeiras instituições internacionais foram constituídas paratratar, num meio ambiente fundamentalmente europeu, de questõeseminentemente práticas, como os problemas de transportes (conexãode vias férreas) e comunicações (postais e telegráficas). A União TelegráficaInternacional, fundada em Paris em 1865 e antecessora da atual UniãoInternacional de Telecomunicações, é provavelmente a decana dasorganizações multilaterais e a primeira a verdadeiramente figurar nalista de adesões brasileiras. De modo geral, uma rápida avaliação dapresença mundial da diplomacia multilateral brasileira revelaria a amplaadesão à maior parte dos principais organismos internacionais decooperação e de coordenação na área econômica, senão a todos eles.Com efeito, desde meados do século XIX, o Brasil esteve presente emgrande parte das conferências inaugurais de diversas entidadesinternacionais, sendo membro fundador das mais importantes. É o caso,por exemplo, das entidades de cooperação técnica no terreno dascomunicações (telegráfica, ferroviária e postal) e das uniões de defesada propriedade intelectual (União de Paris sobre Propriedade Industrial,e União de Berna, sobre Direito do Autor, esta de adesão mais tardia).

O Brasil compareceu à segunda Conferência Internacional daPaz, realizada na Haia em 1907, assim como esteve presente naConferência de Paz de Versalhes, em 1919, que criou a Sociedade dasNações e a primeira organização dedicada às questões sociais etrabalhistas, antecessora da OIT. Ainda durante a Segunda GuerraMundial, o Brasil materializou sua adesão à Declaração do Atlânticosobre as Nações Unidas e participou como um dos 44 países convidadosda Conferência de Cooperação Econômica Internacional de BrettonWoods, em julho de 1944, no âmbito da qual foram estabelecidos oFundo Monetário Internacional e o Banco Internacional de Reconstruçãoe Desenvolvimento (Banco Mundial). No campo das grandesorganizações conceituais e de estruturação das relações econômicasinternacionais, o Brasil aderiu desde seu início à ONU e a seu Conselho

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Econômico e Social e mais tarde ele favoreceria a criação do Programadas Nações Unidas para o Desenvolvimento.28

No terreno comercial, sem mencionar a União Internacionalpara a Publicação das Tarifas Aduaneiras (Bruxelas, 1890, antecessorada Organização Mundial das Alfândegas, denominação atual doConselho de Cooperação Aduaneira), não apenas esteve nas sessõesconstitutivas do Acordo Geral sobre Tarifas Aduaneiras e Comércio(Gatt, entre março e outubro de 1947), como na Conferência dasNações Unidas sobre Comércio e Emprego de Havana, que criou umanatimorta Organização Internacional do Comércio (de novembro de1947 a março de 1948). O Brasil também foi um dos principaisprotagonistas diplomáticos, durante todo o período contemporâneo,de todos os esquemas políticos, arranjos setoriais, acordos deestabilização e das organizações de caráter econômico ou mesmoadministrativo que tentaram viabilizar uma certa ordem cooperativanos mercados de produtos de base, inovando nos debates e nosmecanismos institucionais com a apresentação e defesa de conceitoscomo “retenção de estoques” – que ele já tinha praticado de formapioneira a propósito do café, no começo do século –, preços referenciais,acordos de quotas e outros ainda, que distinguiram sua diplomaciaeconômica ao longo do século XX.

Nas organizações econômicas de caráter técnico ouespecializado, o Brasil se fez igualmente presente como membrofundador de várias delas: Organização da Aviação Civil Internacionalem 1944, Organização para a Alimentação e Agricultura (FAO) em1945, Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e aCultura (Unesco) no ano de 1945, Organização Mundial da Saúde em46, Organização Meteorológica Mundial em 47 e a OrganizaçãoMarítima Internacional em 1948, vigente desde 1958. No que se refereaos acordos e organizações regionais, à exceção do Congresso bolivariano

28 Para uma visão abrangente da participação do Brasil nos debates e trabalhos da ONU, veros pronunciamentos dos chefes de delegação às cinqüenta primeiras assembléias gerais daorganização. In: Brasil, Ministério das Relações Exteriores: A Palavra do Brasil nas NaçõesUnidas: 1946-1995. Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão, introdução e comentáriosdo Embaixador Luiz Felipe de Seixas Corrêa, 1995.

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do Panamá, em 1826, o Brasil esteve presente em todas as conferênciasrelevantes, a começar pela de Washington de 1889-1890 (que criou oescritório comercial da futura União Pan-Americana), até a Organizaçãodos Estados Americanos (Bogotá, em 1948). O quadro 4, finalmente,identifica os elementos de base, isto é, a “matéria-prima” constitutivada política econômica e da diplomacia econômica brasileira entre 1890e a primeira metade do século XX.

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Quadro 1Conferências internacionais sobre o café, 1902-1940

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175

RELAÇÕES INTERNACIONAIS: VISÕES DO BRASIL E DA AMÉRICA LATINA

Quadro 2Brasil: evolução da estrutura tarifária e da política comercial, 1889-1945

(em itálico, conferências, negociações e acordos comerciais bilaterais,regionais ou multilaterais)

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176

ESTEVÃO CHAVES DE REZENDE MARTINS (ORGANIZADOR)

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177

RELAÇÕES INTERNACIONAIS: VISÕES DO BRASIL E DA AMÉRICA LATINA

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178

ESTEVÃO CHAVES DE REZENDE MARTINS (ORGANIZADOR)

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179

RELAÇÕES INTERNACIONAIS: VISÕES DO BRASIL E DA AMÉRICA LATINA

Tabela 1América Latina: dívida pública externa, 1914

(milhões de dólares)

Tabela 2América Latina: investimento privado estrangeiro, 1914

(milhões de dólares)

Page 181: 40110057 RI Visoes Do Brasil

180

ESTEVÃO CHAVES DE REZENDE MARTINS (ORGANIZADOR)

Tabela 3América Latina: evolução da dívida externa, 1929-1945

(milhões de dólares)

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Page 182: 40110057 RI Visoes Do Brasil

181

RELAÇÕES INTERNACIONAIS: VISÕES DO BRASIL E DA AMÉRICA LATINA

Quadro 3Brasil: cronologia sumária do multilateralismo econômico, 1856-1945

(data de adesão do Brasil, se delongada)

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Tabela 6Brasil: distribuição geográfica das importações, 1903-1945

(% do valor total)

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Page 183: 40110057 RI Visoes Do Brasil

182

ESTEVÃO CHAVES DE REZENDE MARTINS (ORGANIZADOR)

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183

RELAÇÕES INTERNACIONAIS: VISÕES DO BRASIL E DA AMÉRICA LATINA

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Page 185: 40110057 RI Visoes Do Brasil

184

ESTEVÃO CHAVES DE REZENDE MARTINS (ORGANIZADOR)

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Quadro 4Vetores das relações econômicas internacionais do Brasil, 1890-2000

(apresentação sinóptica)

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Antônio Carlos Lessa*

Diz-se que uma anedota é uma narrativa pitoresca que aconteceà margem dos eventos mais importantes e, justamente por isso,usualmente pouco divulgada e conhecida, ou que, quando lembrada,o é justamente pelo que tem de picante, jocoso, engraçado, e porquenão dizer, de trágico. São assim as anedotas – as partes menos nobresque todas as histórias têm – aquelas que não deixaram heróis, não têmdatas a comemorar, e que, se fosse possível, todos gostariam de esquecer,justamente porque expõem os seus protagonistas em seus momentosde mesquinhez, carreirismo, covardia e incompetência. Sob esse pontode vista, o historiador é também um colecionador de anedotas, tantodaquelas com as quais tropeçou acidentalmente ao longo dos seuspercursos de investigação, quanto das que foram deliberadamenteperseguidas, antes que se perdessem para sempre na poeira dotempo.

Este trabalho resgata uma das melhores anedotas da PolíticaExterior do Brasil, aquela que sempre ocorre aos cidadãos brasileirosdos mais diversos segmentos sociais quando se pensa na França enos franceses, e que sempre produziu um certo mal-estar quandolembrada. Como nunca foi esquecida, ambiciona-se aqui recuperar osseus pequenos detalhes, alinhar os atores envolvidos, “tirar da boca”umas frases que jamais foram pronunciadas, evidenciar interessesolvidados, e, enfim, mostrar inabilidades e egoísmos que são tão comunsna política e na diplomacia. Aspira-se, quem sabe, redimir-lhe, epor que não, trazê-la para o lado “limpo” da história, quando deixade ser pitoresca e curiosa e passa a ser compreendida como um

* Doutor em História das Relações Internacionais e professor do Departamento de RelaçõesInternacionais da Universidade de Brasília.

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momento importante da história das relações entre os brasileiros e osfranceses.

Cuida-se aqui de examinar o conflito diplomático queenvenenou as relações franco-brasileiras entre 1961 e 1963 e que teveinício com a recusa por parte do governo brasileiro em permitir aatividade de pesqueiros franceses ao largo da costa do Nordeste,contribuindo para temperar a querela com doses generosas do burlescoe da incompreensão que se tornavam característicos das relações entreas duas nações, e especialmente, da incapacidade que demonstravamos Estados em encaminhar, de modo profícuo, os seus negócios.A Guerra da Lagosta é o tema deste trabalho.

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O monitoramento do rápido surgimento do Brasil como umgrande fornecedor no mercado mundial, adicionado ao fato de que omercado consumidor francês estava longe de encontrar o seu ponto desaturação e a França era, além de um dos grandes produtores do crustáceo,também um dos maiores importadores, fizeram com que os armadoresbretões voltassem a sua atenção para os bancos lagosteiros brasileiros.

Conscientes das oposições que tais projetos poderiam suscitarna opinião pública local, e desejosos de se conciliarem com asautoridades brasileiras, os armadores bretões tomaram precauções quepoderiam evitar maiores contratempos na exploração local. Ainda noinício de fevereiro de 1961, uma missão preparatória composta decinco armadores da Bretanha chegava a Recife para estudar, em ligaçãocom o consulado francês, as possibilidades de realização de uma primeiraexperiência de pesca e proceder a sondagens e negociações que lhesassegurassem a rentabilidade da atividade.

Na capital pernambucana, a visão dos portentosos barcosfranceses deu folga para a manifestação de grande comoção na opiniãopública: os protestos eclodiram inicialmente nos meios profissionaisda pesca, a imprensa local deles fez largo eco e a ela se juntaram emuníssono, as lideranças políticas mais destacadas, que não se cansavamde reprovar as autoridades brasileiras pelo abandono das riquezas

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nacionais aos estrangeiros.1 Enfim, o assunto que se iniciou naprovíncia, chegou rapidamente aos gabinetes federais, uma vez que aslideranças políticas, se queixando ao Governador Miguel Arraes,forçaram-no a levar a questão ao Presidente Jânio Quadros.

Rapidamente fixava-se para a opinião pública, a imagem inéditade uma França mesquinha e egoísta, que surrupiava o ganha-pão demilhares de pobres pescadores nordestinos que labutavam em risco, desol a sol, sobre pequenas e frágeis embarcações feitas de um rejunte detroncos de madeira. Em síntese, o espetáculo das poderosas navesfrancesas conformava o epíteto perfeito do “mau rico” como, de fato,a comparação dos recursos e da autonomia de atuação em campanhasde pesca confirmava: uma comparação entre a capacidade de exploraçãodos barcos lagosteiros franceses e dos meios de exploração dos barcos amotor e das jangadas dá a medida do desfavorecimento desses últimos:um barco bretão poderia pescar tanto quanto três barcos a motor ou12 jangadas reunidas, ou seja, a sua produtividade média era 200%superior a dos barcos a motor e 1.100% superior à das jangadas.2

Ao avaliar o estado emocional acalorado, reafirmado pelosprotestos formais das principais lideranças políticas e empresariais dePernambuco perante ao Comando do Terceiro Distrito Naval, esseesperançosamente julgou que a paz pública seria restabelecida com ofim próximo da campanha exploratória de pesca, esperado para umadata próxima de 20 de abril. Entretanto, o anúncio no dia 11 daquelemês do acostamento de outros dois lagosteiros agravou a situação. Aoexprimir a sua surpresa ao consulado francês, o comando fez saber, sob

1 Carta do cônsul-geral da França em Recife, Edgar Morin, 14.4.1961, número 21, Archivesdu Ministères des Affaires Étrangères à Paris, doravante Amae, Série B Amérique 1964 (...),Généralités (en cours de classement), vol. 600 (Différend franco-brésilien des langoustes).2 Dados da Superintendência para o Desenvolvimento do Nordeste (Sudene); da Nota daDireção das Questões Administrativas e Sociais do Ministério dos Negócios Estrangeiros daFrança, sobre “Données du problème de la pêche à la langouste sur les côtes brésiliennes”,8.1.1963, s/n, Amae, Série B Amérique 1964 (...), Généralités (en cours de classement), vol.600 (Différend franco-brésilien des langoustes); e do Telegrama da Embaixada da França noBrasil para o Ministério dos Negócios Estrangeiros, sobre “La réunion au Itamaraty au sujetde la pêche à la langouste au large des côtes brésiliennes, 15/01/1963, número 63, Amae,Série B Amérique 1964 (...), Généralités (en cours de classement), vol. 600 (Différendfranco-brésilien des langoustes).

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instruções do Estado-Maior da Marinha, que o limite de atividade dosestrangeiros estava transferido para além das 12 milhas, perímetro queconstituiria a zona de pesca reservada. Enquanto isso, a Federação dasColônias de Pescadores de Pernambuco invocava o Decreto nº 28.840,de 8 de novembro de 1950, que incorporou a plataforma continentalao território nacional e condicionou a exploração dos seus recursosnaturais por estrangeiros a uma autorização federal.3

Assim, convidados que foram a atuarem exclusivamente forados limites das águas territoriais e da zona de pesca exclusiva, os lagosteirosfranceses descobriram que, em verdade, os bancos localizados para alémdas doze milhas se mostravam mais fartos do que aqueles próximos dacosta, naturalmente de acesso fácil para as pequenas embarcaçõesbrasileiras a motor ou mesmo para as jangadas. 4

Finda a experiência exploratória no dia 18 de abril, os bretõesarribaram, levando consigo uma avaliação de quão lucrativas poderiamser as operações nas águas extraterritoriais brasileiras. Tal descoberta, aoalimentar o seu apetite nutriu o desconforto dos brasileiros: com arepetição de longas campanhas de pesca nas regiões mais afastadas,criadouros naturais dos crustáceos que depois migrariam para as zonasde baixa profundidade, compreendidas nas águas territoriais e na zonade pesca exclusiva, as populações seriam rapidamente dizimadas.Temiam que ocorresse, no Brasil, o que aconteceu na Mauritânia, ondea pesca de arrasto predatória promovida pelos franceses inviabilizouqualquer aproveitamento comercial da pesca local. Em síntese, apreocupação brasileira estava ligada ao receio de que repetissem osfranceses no Nordeste o que fizeram em África, levando ao colapso dapesca costeira que as embarcações a motor e as jangadas brasileiraspoderiam realizar com os seus recursos de curto fôlego. Urgia tomarprecauções contra um fluxo maior de embarcações estrangeiras maisequipadas para a pesca costeira, o que poderia, no entender dosarmadores nordestinos, prejudicar a exploração das empresas locais.

3 Diário de Pernambuco, 4.4.1961.4 Idem, ibidem.

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Com o episódio da missão exploratória, os brasileirosaprenderam que era necessário acionar os mecanismos existentes nalegislação nacional para impedir, a qualquer sinal de alerta, o surgimentoeventual de um fluxo de embarcações cobiçosas em explorarem a pescaao longo do litoral do Nordeste.

Urgia esclarecer, por exemplo, que o limite de doze milhasestabelecido correspondia apenas à extensão da zona de pesca reservada,mas não da plataforma continental, cuja extensão permaneciacertamente imprecisa para os brasileiros, que acreditavam dever esta seestender até 180 ou 200 quilômetros da costa. Com efeito, o DecretoFederal de 1950, que integrou ao território nacional a plataformacontinental submarina, não era preciso acerca da sua extensão. A noçãode plataforma continental teve origem oficialmente no DireitoInternacional, com a Convenção sobre a Plataforma Continental, de29 de abril de 1958, um dos resultados da Conferência de Genebrasobre o Direito do Mar, que se inaugurou naquele ano e permitiu quecada Estado costeiro reivindicasse direito exclusivo de aproveitamentoda plataforma adjacente às suas costas por meio de uma definição quenão determina seus contornos de maneira suficientemente precisa.Estabelece o artigo segundo da Convenção: “o Estado ribeirinho exercedireitos soberanos sobre a plataforma continental para os fins daexploração desta e o aproveitamento de seus recursos naturais”.

Apesar dos incidentes e mal-entendidos da campanhaexploratória, não há que se reprovar as autoridades navais brasileirasquanto ao policiamento da atividade pesqueira por estrangeiros na costado Nordeste, uma vez que, no seu entender, as preocupações daslideranças locais estavam muito claras e, em alguma medida, até corretas.O Itamaraty também não descuidou de evidenciar aos estrangeiros oseu desacordo com a eventualidade do prosseguimento de campanhasde pesca. Após a realização das pesquisas aludidas, o Ministério observouà Embaixada da França no Rio que, sendo a lagosta recurso de grandeimportância para o Nordeste e cuja existência estaria ameaçada pela

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exploração intensiva com métodos predatórios, o governo brasileironão estaria disposto a permitir essa atividade a pescadores estrangeiros.

Não havendo protestos de nenhuma forma por parte dogoverno francês, entendeu o Itamaraty que a embaixada no Rio deJaneiro não somente teria aceitado as condições segundo as quais foiautorizada a pesca do crustáceo nas costas do Nordeste entre março eabril daquele ano – ou seja, meramente a título de pesquisa, mas,também, não opunha nenhuma contestação ao direito que formularao Brasil em sua legislação nacional, e que, agora, aplicava ao caso concreto:a regulamentação da pesca da lagosta na sua plataforma continental.5

Viu-se que os armadores franceses que participaram dacampanha exploratória estavam convencidos das potencialidades dosbancos lagosteiros do Nordeste. Assim, decidiu-se, ainda no finaldaquele ano, pela pesca sistemática da lagosta no Brasil. Se a riquezado litoral nordestino ficou-lhes na memória, parece, entretanto, quenão retiveram as mensagens das autoridades e da opinião públicabrasileiras. Uma vez que estas se mostraram tão reticentes até mesmoquanto ao prosseguimento da campanha exploratória, o que poderiampensar da possibilidade de instalação de uma concorrência que, aosseus olhos, lhes parecia ilegal e desleal?

Decididamente estes fatores não foram levados em conta nadecisão de enviar novos barcos pesqueiros à região, desta feita para apesca sistemática e o transporte do seu produto diretamente para aFrança. Do mesmo modo, não cuidaram os armadores bretões de outrasmedidas que lhes pouparam maiores aborrecimentos na oportunidadeanterior, a saber: o acordo do Quai d’Orsay para as operações, a proteçãoconsular prévia e a licença negociada com as autoridades brasileiras.Apesar de ainda em dezembro de 1961 o Syndicat Douarneniste del´Armement à la Part ter solicitado uma autorização de exploraçãodiretamente ao Ministério da Agricultura do Brasil, a entidade nuncarecebeu resposta das autoridades brasileiras com a necessária autorização

5 Relatório da Comissão Parlamentar de Inquérito,16.4.1964. Arquivo da Câmara dosDeputados, Brasília, CPI (01)62, caixas 1 e 2. Arquivos da Comissão Parlamentar de Inquéritocriada para investigar as condições da pesca da lagosta.

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para atividade de pesca sobre a plataforma continental. De todo modo,passaram os franceses imediatamente à ação.6

Como era de esperar, problemas aconteceriam cedo ou tarde e,de fato, o apresamento do barco lagosteiro Cassiopée, que se deu no dia2 de janeiro de 1962, confirma que as autoridades brasileiras de fato nãoestavam dispostas a tolerar atividades de pescadores estrangeiros sobnenhuma condição. A sua suscetibilidade às pressões das liderançaspolíticas nordestinas e a ferocidade da imprensa provinciana rapidamentecontagiaram os grandes veículos nacionais, que, por essa hora, já haviamse acostumado à idéia de eleger a tibiez do governo em todos os campos,mas, sobretudo, na esfera internacional, como um dos seus alvos preferidos.

Do ponto de vista brasileiro, entretanto, o apresamento doCassiopée não deixou de ser gesto prematuro, uma vez que o governobrasileiro ainda não havia firmado a sua doutrina a respeito da capturado crustáceo por estrangeiros sobre as águas adjacentes à plataformacontinental. Afinal, o barco fora apresado sob denúncia de pescadoresbrasileiros, que avistaram-no ao largo de Fortaleza, mas certamentefora das águas territoriais.7

O arrestamento daquele lagosteiro foi motivo do primeiroprotesto da Embaixada da França, mediante nota do dia 3 de janeiro,respondida pelo Itamaraty no dia 19 do mesmo mês.8 Esse foi o temponecessário para que o governo brasileiro formulasse a sua doutrina,reafirmada em diferentes oportunidades desde então: o decreto de 1950

6 Observe-se que, apesar de existirem repetidas menções à referida carta nos arquivos doQuai d´Orsay, dela não há registros nos arquivos do Itamaraty, e muito menos nos fundosdo Ministério da Agricultura e do Conselho para o Desenvolvimento da Pesca (Codepe)depositados no Arquivo Nacional. Igualmente não há menção a igual documento nosarquivos da Comissão Parlamentar de Inquérito aberta na Câmara do Deputados paraapurar problemas na pesca da lagosta no Nordeste brasileiro em 1964.7 Compte Rendu da Embaixada da França no Rio de Janeiro, doravante Embafrance paraMAE, “Langoustiers français au large des côtes brésiliennes”, 4.1.1963, s/n, Amae, Série BAmérique 1964 (...), Généralités (en cours de classement), vol. 600 (Différend franco-brésilien des langoustes).8 Nota verbal do MRE para a Embafrance, DEOc/DAI/DPC/2/562.8, de 19.1.1962,Arquivo Histórico do Ministério das Relações Exteriores do Brasil em Brasília, doravanteAHMRE-B, Notas Ostensivas Expedidas para a Embaixada da França no Brasil, doravanteBrasemb, 1961-63, maço 07007.

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era pela primeira vez oficialmente invocado e a lagosta era classificadacomo “recurso da plataforma continental”, além de ser expressamenteanunciado que o governo federal não estava disposto a autorizar aexploração desses recursos por pescadores estrangeiros. De todo modo,o anunciado “a lagosta é uma riqueza da plataforma continental, e porisso somente pode ser pescada por brasileiros” guardava sutilezas quedevem ser retidas.

A tese brasileira amparava-se no pressuposto de que existemvínculos orgânicos entre o crustáceo e o leito da plataforma, pois que alagosta dela vive, dela nunca se afasta, dela é inseparável e sobre ela migra.O fato é que os pescadores franceses capturariam ao largo as mesmaslagostas que, de outro modo, na estação seguinte, se aproximariam dacosta nordestina e estariam ao alcance da pesca artesanal.

Há de se lembrar que não havia nenhuma restrição à pesca naságuas adjacentes à plataforma continental brasileira, pelo menos à pescade peixes, mas o mesmo não poderia ser dito da pesca dos crustáceos.A pesca, portanto, sobre aquelas águas não poderia ser regulamentadapelos estados ribeirinhos desde que fosse restrita aos seres que nadam,ou seja, apenas aos peixes e, quando muito aos camarões (uma vez quese tratam de crustáceos que nadam), espécimes que não guardamvinculações orgânicas com a plataforma. O mesmo não acontece,entretanto, com as lagostas, ditos crustáceos reptantes, já que osindivíduos de todas as famílias da espécie mantêm vínculos essenciaiscom a plataforma. Quando adultos, por exemplo, são incapazes denadar – a sua locomoção se efetua por meio de cinco pares de patas,“marchando o indivíduo” sobre o solo da plataforma continental. Aindaque fosse verdadeiro que a locomoção de algumas espécies seassemelhasse ao nado (dado que o “indivíduo” por vezes se move porsaltos longos, permanecendo suspenso na água por algum tempo, logotomba sobre a plataforma, para voltar a saltar), a natureza desses seresnão permite concluir que nadassem.9 Em síntese, o crustáceo conhecidocomo lagosta não pode nadar, e por isso, de acordo com o direito

9 Coelho, Petrôneo A. Súmula de observações sobre a lagosta comum. Boletim de Estudos dePesca. Sudene, v. 2, nº. 5, maio de 1962, p. 6.

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brasileiro, não poderia ser pescado. Fosse a sua natureza natante, seriacomo qualquer outro peixe ou mesmo como os camarões, e poderiamser capturados, desde que a atividade de pesca se realizasse fora daságuas territoriais e da zona de pesca exclusiva. Conclui-se que o própriotermo pesca não seria apropriado para denominar a atividade deexploração de bancos lagosteiros – dado o fato de que a espécie selocomove exclusivamente sobre patas, caminhando sobre a plataformacontinental, a melhor expressão para denominar o ato de retirarindivíduos do mar seria captura.

Isso posto, acreditavam as autoridades responsáveis pela pescano Brasil que a única maneira existente de coibir ou impedir a capturade lagostas por estrangeiros no Nordeste, seria invocar a tese de que ocrustáceo é uma riqueza da plataforma continental, que somente osbrasileiros poderiam explorar, em estrito acordo com a letra da leinacional.10 Foi o que se fez...

Rejeitando a classificação dos crustáceos como recursos naturaisda plataforma, a Embaixada da França no Rio de Janeiro manifestou-se sob orientação do Serviço Jurídico do Quai d’Orsay por meio denota de 16 de março, pela qual se firmava também a sua doutrina.11

Reconhecendo que o argumento brasileiro se fundava na noção deplataforma continental, precisava a nota verbal que os limites destanão estavam estabelecidos na legislação pertinente. Fossem adotadosos critérios que figuram no artigo 1º da Convenção de Genebra de 29de abril de 1958 sobre a plataforma continental (profundeza das águassobrejacentes não ultrapassando 200 metros e explorabilidade) – cujosomente o primeiro, aliás, era reconhecido pela França como válido –existiriam condições para determinar se o arrestamento foi efetuadosobre a plataforma, questão de fato sobre a qual uma verificaçãocartográfica deveria ser feita.

10 Ofício reservado do diretor executivo do Conselho do Desenvolvimento da Pesca (Codepe),Célio Lyra, para o ministro das Relações Exteriores. Arquivo da Câmara dos Deputados –Brasília, CPI (01)62, caixas 1 e 2. Arquivos da Comissão Parlamentar de Inquérito criada parainvestigar as condições da pesca da lagosta.11 Nota verbal da Embafrance para o Ministério das Relações Exteriores, doravante MRE,número 97, 16.3.1962, AHMRE-B, Notas Ostensivas Recebidas da embaixada da Françano Brasil, 1962-63, maço 06999.

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Ainda que a resposta fosse afirmativa, a pretensão brasileiraera, sob o ponto de vista dos franceses, insustentável, uma vez que odecreto de 1950 não visaria mais do que a “utilização e exploração dosprodutos ou riquezas naturais”. Essa expressão não é definida no decreto,mas não poderia ter significado diferente daquela que se encontra noparágrafo 4o do artigo 2o da Convenção de Genebra precitada. Excluindoos recursos minerais e outros recursos não-vivos, a Convenção cobreapenas

os organismos vivos que pertencem às espécies sedentárias, ouseja, os organismos que, no estado em que podem ser pescados,estejam sejam imóveis sobre o leito do mar ou sob esse leito, sejamincapazes de se locomover que não seja estando constantementeem contato físico com o leito do mar ou com o subsolo.

Afinal, por que resistia o governo francês a reconhecer os direitosque eram proclamados pelo governo brasileiro? O que mais temia oMinistério dos Negócios Estrangeiros não eram propriamente aspressões dos segmentos sociais interessados na atividade de pesca noBrasil (que certamente ainda não haviam tido tempo de incorporaressas possibilidades de exploração lagosteira entre as suas certezas), masos problemas decorrentes da crise para as relações exteriores da Françaem geral.12 Tratava-se aqui, com efeito, de salvaguardar os interessesde toda a frota pesqueira e de não deixar que se criasse um precedenteque poderia levar à proibição de todas as possibilidades de pesca naságuas que recobrem as plataformas continentais de outros países.13

Mesmo que a França não tivesse assinado a Convenção deGenebra sobre a plataforma continental, o Quai d’Orsay se permitiaafirmar que a pretensão do Itamaraty de considerar as lagostas como

12 Nota do Jurisconsulto para a Secretaria-Geral do MAE, sobre “Le différend avec le Brésilsur la pêche”, 7.2.1963, número 109, Amae, Série B Amérique 1964 (...), Généralités (encours de classement), v. 600 (Différend franco-brésilien des langoustes).13 Nota da Direção das Questões Econômicas e Sociais – Divisão das Uniões Internacionais,sobre “Le différend franco-brésilien sur la pêche à la langouste”, 2.10.1963, s/n, AMAE,Série B Amérique 1964 (...), Généralités (en cours de classement), vol. 600 (Différendfranco-brésilien des langoustes).

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“produtos ou riquezas naturais” da plataforma continental era desprovidade qualquer fundamento e contrária ao Direito Internacional. Entretanto,referindo-se ao artigo 6 da Convenção, segundo o qual “todo estadoribeirinho tem um interesse especial na manutenção da produtividadedos recursos biológicos de toda a parte do alto-mar adjacente ao seumar territorial”, admitia a diplomacia francesa que o Brasil estaria como direito de solicitar à França o início de negociações em vistas detomar de comum acordo as medidas necessárias para se concluir ummodus vivendi que permitisse aos súditos franceses a exploração dosbancos lagosteiros brasileiros e, ao mesmo tempo, a sua conservação.14

A posição francesa, por meses seguidos, aguardou resposta doItamaraty. Enquanto isso, as autoridades navais verificaram, repetidasvezes, a presença de lagosteiros bretões na costa nordestina, sem que aMarinha de Guerra rechaçassem-nos. Parecia que a tranqüilidadereinstalara-se nas relações franco-brasileiras, e chegou-se a considerarultrapassado o diferendo entre os dois governos.

No dia 14 de junho de 1962, entretanto, o lagosteiro Plomarc’hfoi arrestado a 17 milhas ao largo do litoral norte do Estado do RioGrande do Norte.15 Como seria de se esperar, o embaixador francêsprotestou energicamente contra o que considerava ser uma atitude ilegal,fundada em uma doutrina equivocada e descolada das boas práticas dodireito das gentes.16 A irritação francesa permaneceu sem satisfaçõespor parte do Itamaraty pelo menos até o dia 30 daquele mês, quando

14 Nota do Serviço Jurídico para a Direção das Questões Administrativas e Sociais, “Au sujetde l´arraisonnement de la Cassiopée”, nº 129, 9.2/1963, Amae, Série B Amérique 1964 (...),Généralités (en cours de classement), v. 600 (Différend franco-brésilien des langoustes);Carta de Jean Grapinet, encarregado de negócios da França a.i. no Brasil para MauriceCouve de Murville - Direction des affaires administratives et sociales, nº 269, 16.3.1962,Amae, Série B Amérique 1964 (...), Généralités (en cours de classement), v. 600 (Différendfranco-brésilien des langoustes).15 A Convenção de Genebra de 29.4.1958 definiu a plataforma continental a umaprofundidade de duzentos metros. De fato, os fundos ao largo das costas brasileiras passamdiretamente de oitenta a mais de mil metros e a plataforma continental se estenderia, assim,entre quarenta e cento e quarenta milhas da costa.16 Nota verbal da Embafrance para o MRE, 14.6.1962, nº 202; Nota verbal da Embafrancepara o MRE, 28.6.1962, nº 208, AHMRE-B, Notas Ostensivas Recebidas da Embaixadada França no Brasil, 1962-1963, maço 06999.

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o governo brasileiro, após interpretar as proposições e protestosfranceses, reafirmou a sua doutrina.17

Entendia o Itamaraty que, de acordo com a nota verbal de 16de março, sustentava o governo francês o direito de pesca, buscandoapoio na Convenção de Genebra de 29 de abril de 1958 sobre aplataforma continental, que considerava, apesar de não assinada nempela França nem pelo Brasil, como representativa, para as relações franco-brasileiras, do estado do Direito Internacional. Embora não fosse válida,o Itamaraty admitia a possibilidade de considerar, ad argumentando,os preceitos contidos na convenção para iluminar a discussão sobre asteses dos dois países.

Conseqüentemente, julgaria o Quai d’Orsay injustificado eilegal o apresamento do Plomarc’h pelo governo brasileiro, “reservando-se o direito de reclamar a reparação do prejuízo decorrente desse ato”.Lembrava o Itamaraty que na mesma nota, o governo francês, baseando-se na citada Convenção de Genebra sobre a pesca e a conservação dosrecursos biológicos do alto-mar, declarava-se pronto a entrar nummodus vivendi na matéria, compreendendo um acordo e possivelmentea formação de uma comissão especial arbitral, como previsto nos artigos6 e 9 da mesma convenção.

Entretanto, de acordo com a doutrina brasileira, a lagostarepresentava um recurso natural da plataforma continental, exploradohá muitos anos pelos pescadores do Nordeste, atentando sua pesca pornavios estrangeiros contra o direito nacional, conforme o estabelecidopelo decreto de 1950. Esse decreto, à semelhança de normas legaisestatuídas por diversos outros Estados, como por exemplo, a Rússiaem 1916 e os EUA em 1945, constituía norma jurídica assente, nãotendo sido objeto de qualquer protesto internacional, sequer da própriaFrança. Lembrava o Itamaraty que o próprio Hexágono adotou esseregime quanto à pesca da esponja na Tunísia, para além das águasterritoriais daquele protetorado. De conseguinte, o governo brasileironão poderia concordar em retirar o assunto do seu local próprio, istoé, do terreno da plataforma submarina.

17 Nota verbal do MRE para a Embafrance, 20.6.1962, nº 52, AHMRE-B, Notas OstensivasExpedidas para a embaixada da França no Brasil, 1961-1963, maço 07007.

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Rejeitando os argumentos franceses, o Itamaraty fez com quepermanecessem em aberto as questões da captura da lagosta pelosfranceses, cuja solução deveria ser buscada pela via da negociação ou daarbitragem.

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Ainda que as teses e doutrinas dos dois Estados sobre a pescahouvessem sido firmadas e suficientemente expostas para um e outrogoverno, os súditos franceses interessados no assunto permaneceramalheios à querela, tanto que deram prosseguimento aos seus projetosde explorar os bancos lagosteiros do Nordeste brasileiro, como secontratempos não existissem entre os dois governos sobre o assunto.

Como seria de esperar, novos arrestamentos ocorreram. Em10 de julho de 1962, as autoridades navais brasileiras prenderam oLonk-Ael,18 ao largo de Natal, e, no dia 5 de agosto foram arrestadosao largo de Fortaleza os barcos Folgor e Françoise Christine.19

Entrementes, a Embaixada da França declarou que, em face dadivergência de posições jurídicas, o governo francês propunha que oassunto fosse submetido a uma instância arbitral, nos termos daConvenção Franco-Brasileira de Arbitragem de 1909.20 A propostafoi prontamente rejeitada pelo Itamaraty, por entender que a questãodizia respeito a interesse vital de um dos Estados e a assunto que tocava

18 O Lonk-Ael (matrícula da Douarnenez), arrestado a 26 milhas da costa de Natal, foraconduzido aos portos da capital potiguar e liberado no dia 12 nas mesmas condiçoes doPlomarc’h – Telegrama de Baeyens, para Maurice Couve de Murville, 10.7.1962, númeroilegível, Amae, Série B Amérique 1964 (...), Généralités (en cours de classement), v. 600(Différend franco-brésilien des langoustes).19 O Françoise Christine e o Folgor, arrestados a 24 milhas da costa de Fortaleza, foramescoltados aos portos da capital cearense e liberados três dias depois. No total, em poucomais de oito meses, cinco dos lagosteiros que estavam operando nas costas do Nordeste doBrasil foram arrestados, representando quase a metade dos barcos enviados durante operíodo. Telegrama de Baeyens, para Maurice Couve de Murville, 6.8.1962, nº 634, Amae,Série B Amérique 1964 (...), Généralités (en cours de classement), v. 600 (Différend franco-brésilien des langoustes).20 Nota verbal da Embafrance para o MRE, 30.7.1962, nº 232, AHMRE-B, Notas Ostensivasrecebidas da Embaixada da França no Brasil, 1962-1963, maço 06999.

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interesse de terceiras potências, sendo essas cláusulas de exceção parteintegrante da própria convenção.

Com base nos pareceres lavrados pela sua Consultoria Jurídica,o Itamaraty estava seguro de que, na Convenção de Arbitragem, ficaraestabelecida apenas uma cláusula compromissória, facultativa, semsanção, geral, condicional, salvo reservas subjetivas, e a depender docompromisso a ser pactuado lograr aprovação Congresso Nacional.21

Aplicando os textos da Convenção Franco-Brasileira de 1909, e osprincípios acima à tese do governo brasileiro (não se aplicaria a convençãoao litígio em causa), conclui-se que não era de fato o caso de o Brasilaceitar o arbitramento proposto22

O Itamaraty também anunciou que o caminho da arbitragem,ainda que fosse aceito pelo governo brasileiro, certamente não o seriapelo Congresso Nacional, já escaldado pelo episódio tão recente quantoinfeliz do resgate dos títulos de capitais franceses nacionalizados queestiveram em evidência poucos meses antes. Por conseguinte, a situaçãoda imagem da França perante a opinião pública e no parlamentobrasileiros, já comprometida por aquele episódio, certamente nãocomportaria o longo e difícil procedimento prévio necessário no DireitoInterno brasileiro para fazer aprovar o compromisso arbitral especialprevisto no artigo 2 da convenção de 1909. Com a avaliação do desgasteda imagem nacional no país concordava a própria embaixada no Riode Janeiro, que se mostrara incapaz de interagir com a opinião públicasobre assunto que se lhe configurava tão espinhoso. De fato, não haviameios de explicar às populações emocionadas que não ocorreria, noNordeste brasileiro, a mesma devastação deixada pelos bretões naMauritânia. Ainda que se fizessem compensações pela pesca, estas nãoseriam suficientes para diminuir os danos já feitos à imagem degenerosidade tradicional do Hexágono, a qual, a esta altura já se achava

21 Parecer do consultor jurídico do MRE sobre a pesca da lagosta por barcos franceses noNordeste do Brasil, 28.12.1962, nº 1.793, AHMRE-B, Pareceres ostensivos do consultorjurídico do MRE, 1962-1965, maço 07630.22 Parecer do consultor jurídico do MRE, sobre “A pesca da lagosta por barcos franceses nonordeste do Brasil. Arbitragem facultativa e obrigatória”, 29.4.1963, nº 1801, AHMRE-B,Pareceres ostensivos do consultor jurídico do MRE, 1962-1965, maço 07630.

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irremediavelmente maculada quando decidiu querelar pela pesca naregião mais pobre do Brasil.23

Apesar disso, Paris não se conformou com a tese esboçada peloRio de Janeiro para lhe escapar à arbitragem. O absurdo da tese brasileira,assim se configurava para o Quai d’ Orsay: a recusa de levar à arbitragemo arrestamento dos lagosteiros franceses e a proibição que lhes foidirigida pelas autoridades navais de pescar ao largo de 12 milhas nãopõem em causa apenas os cidadãos franceses e o Estado que, tomandoo fato e a causa por um dos seus, coloca em movimento em seu favora proteção diplomática, e faz valer o seu direito próprio –o direito quetem o Estado de fazer respeitar na pessoa de seus súditos, o DireitoInternacional. No caso, a França invocava o seu direito próprio dedefender os seus súditos que pescam em alto-mar e que sofreram umprejuízo nas circunstâncias de fato, e se uma sentença arbitral lhe desseeventualmente razão, essa sentença seria desprovida de qualquer efeitosobre os interesses de Estados terceiros, em virtude do princípio darelatividade da autoridade da coisa julgada, que limita os efeitos dasentença exclusivamente às partes.24

Ainda que discordasse da tese francesa sobre a arbitragem, oItamaraty aceitou a sugestão de se procurar chegar a uma fórmula deconvivência, mesmo que não considerasse tal negociação uma obrigação,uma vez que não havia direito francês real ou potencial lesado no caso,mas como iniciativa que poderia favorecer a concórdia quanto à questãoda pesca e permitir o encaminhamento de outros assuntos das relaçõesbilaterais que se viram repentinamente bloqueados em Paris.25

23 Nota da Direção da América para o Maurice Couve de Murville, sobre “Les pêcheursfrançais au large des côtes brésiliennes”, 5.2.1963, número 05, Amae Série B Amérique1964 (...), Généralités (en cours de classement), vol. 600 (Différend franco-brésilien deslangoustes).24 Nota do Jurisconsulto para o ministro dos Negócios Estrangeiros, sobre “Le refusd´arbitrage par le Brésil du conflit de la langouste”, 18.2.1963, número 144, Amae, Série BAmérique 1964 (...), Généralités (en cours de classement), v. 600 (Différend franco-brésiliendes langoustes).25 Nota da Direção da América para Secretaria-Geral do MAE, 8.8.1962, número ilegível,Amae, Série B Amérique 1964 (...), Généralités (en cours de classement), v. 600 (Différendfranco-brésilien des langoustes).

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Mesmo que a proposta da fórmula de convivência tenha partidodo Quai d’Orsay, este não estava seguro do acerto da decisão de seenviar uma missão negociadora composta por delegados que nãoestavam diretamente envolvidos nas questões de Estado quecaracterizavam o conflito. Acreditava que, dados os rumos tomadospela questão, não era crível que acordos de natureza privada fossemsuficientes para salvaguardar os interesses dos lagosteiros, que não eramsuficientemente organizados para se bastarem na sua própria defesa.26

Se parecia oportuno recorrer a uma tentativa de arranjo amigável,paralelamente à ação diplomática, seria conveniente, para a diplomaciafrancesa, que ela se situasse na escala das administrações nacionais,esperando que o debate pudesse se prender ao fundo da questão e, pormeio de um procedimento de arbitragem, chegar à conclusão de ummodus vivendi nesse nível.27 A chancelaria francesa finalmente temiaque o envio de uma missão negociadora acabaria por consagrarindiretamente o direito auto-alegado pelo Brasil sobre os recursos daplataforma continental, e especialmente sobre as lagostas. Em outraspalavras, os arranjos privados poderiam comprometer a estrutura datese francesa, uma vez que estaria sendo reconhecido tacitamente queos brasileiros teriam o direito de regulamentar a exploração dos bancoslagosteiros – tanto é, que os súditos franceses passariam a buscarcondições de contratar tal atividade.28

De todo modo, acordaram o Itamaraty e o Quai d´Orsayna vinda de uma missão, com o objetivo de negociar um modusvivendi.

26 Telegrama da Direção das Questões Administrativas e Sociais para a Embafrance,18.12.1962, número ilegível, Amae, Série B Amérique 1964 (...), Généralités (en cours declassement), v. 600 (Différend franco-brésilien des langoustes).27 Carta do ministro dos Negócios Estrangeiros - Direction des affaires administratives etsociales, para o ministro dos Trabalhos Públicos e dos Transportes - Direction des PêchesMaritimes, sobre “La pêche à la langouste sur les côtes brésiliennes”, 30.11.1962, número06320, Amae, Série B Amérique 1964 (...), Généralités (en cours de classement), v. 600(Différend franco-brésilien des langoustes).28 Telegrama da Direção das Questões Administrativas e Sociais para a Embafrance,28.12.1962, número ilegível, Amae, Série B Amérique 1964 (...), Généralités (en cours declassement), v. 600 (Différend franco-brésilien des langoustes).

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Finalmente chegou ao Brasil, em 12 de janeiro de 1963, a missãoencarregada de negociar uma fórmula de convivência enquanto seaguardada a solução da diferença jurídica. O envio da missão e os seuspropósitos foram repassados formalmente pelo Itamaraty à Embaixadada França, retomando, inclusive, os termos das comunicações anterioresdesta última sobre o assunto, sem descuidar de reafirmar a proibiçãode exploração dos bancos lagosteiros brasileiros, conforme havia sidoanunciado no início da contenda.29 No Brasil, a missão tratou com osrepresentantes do Conselho para o Desenvolvimento da Pesca (Codepe),da Superintendência para o Desenvolvimento do Nordeste (Sudene),e dos ministérios das Relações Exteriores e da Marinha.

A missão apresentou propostas que não foram consideradasaceitáveis pelo governo brasileiro, que incluíam a entrega para ascongregações profissionais e/ou obras sociais do Nordeste de parte doproduto da pesca e o escalonamento da chegada dos barcos franceses,de modo a não prejudicar as atividades de pesca das populaçõesribeirinhas. A delegação brasileira, por seu turno, apresentou tambémduas fórmulas: a primeira, patrocinada pela Sudene, dizia respeito àconstituição de sociedades franco-brasileiras, de acordo com a legislaçãonacional, para operação da pesca da lagosta; a segunda, apresentadapelo Codepe, referia-se ao arrendamento de barcos franceses por firmasbrasileiras, ficando 20% do produto da pesca bloqueados para umfundo de construção de barcos pesqueiros nacionais.30

As fórmulas brasileiras não foram consideradas razoáveis pelaparte francesa. Acostumados que estavam a explorar os bancos

29 Notas verbais do MRE para a Embafrance, de 9.1.1963, 9 e 16.10.1962, AHMRE-B,Notas Ostensivas Expedidas para a Embaixada da França no Brasil, 1961-1963, maço 07007.30 Despacho da Secretaria de Estado das Relações Exteriores para a BRASEMB, 25.1.1963,número 10, AHMRE-B, Despachos Ostensivos para a embaixada em Paris, 1960-1964,maço 02661; Carta de Baeyens para Maurice Couve de Murville – Direção de QuestõesAdministrativas e Sociais, sobre “La pêche à la langouste au large des côtes brésiliennes”,29.1.1963, nº 109, Amae, Série B Amérique 1964 (...), Généralités (en cours de classement),v. 600 (Différend franco-brésilien des langoustes).

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lagosteiros sem custos adicionais aos da própria campanha de pesca,por que haveria agora os bretões de se sujeitar ao recolhimento deencargos que tornariam a operação proibitiva?31 Para os brasileiros,por seu turno, as propostas francesas não ofereciam atrativos: seuobjetivo, estava claro, era a exploração conjunta dos bancos lagosteirospor empresas francesas e brasileiras, entendida como etapa necessáriapara o aumento da frota nacional e para a capacitação da indústriapesqueira local.32

Ainda que houvesse um impasse, era de se esperar que algumtempo adicional de conversação permitisse às partes chegarem aoambicionado modus vivendi, não fosse a superveniência de um fatoinusitado, que abalaria a confiança mútua necessária na mesa denegociações: enquanto se realizavam as negociações no Rio de Janeiro,os membros da missão francesa informaram o Itamaraty da chegadaiminente de dois barcos aos locais contenciosos no litoral doNordeste.33 O Ministério das Relações Exteriores entendeu esse fatocomo um sinal da deslealdade para com a política de boa-vontadeencetada a partir da decisão de receber a missão negociadora.34

Cedera a diplomacia francesa às pressões dos setoresgovernamentais encarregados de supervisionar as atividades pesqueiras,que conheciam as resistências das opiniões públicas dos países com osquais tinham contenciosos pesqueiros, tanto que propuseram aosNegócios Estrangeiros enviar naquela oportunidade, uma unidade daMarinha de Guerra para acompanhar as atividades dos barcoslagosteiros, como já estavam habituados a fazer nas situações em que a

31 Idem. No Brasil a alíquota d e exportação para pescados de qualquer espécie era de 10%,enquanto o governo francês cobrava 32% de alíquota sobre a importação.32 Compte Rendu – Langoustiers français au large des côtes brésiliennes, da Embafrance parao MAE, 4.1.1963, s/n, Amae, Série B Amérique 1964 (...), Généralités (en cours declassement), v. 600 (Différend franco-brésilien des langoustes)33 O comunicado incidental da chegada iminente dos barcos lagosteiros bretões se deu aolongo da sessão de trabalho do dia 14 de janeiro.34 Vê-se, portanto, que quando foi instalado o processo negociador entre o Itamaraty e adelegação francesa, o Quai d’Orsay já havia autorizado há muito a vinda ao Brasil de barcoslagosteiros. Carta de Maurice Couve de Murville para o ministro dos Trabalhos Públicos edos Transportes, 11.12.1962, número 6563, Amae, Série B Amérique 1964 (...), Généralités(en cours de classement), vol. 600 (Différend franco-brésilien des langoustes).

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atividade pesqueira nacional sofria algum tipo de risco, real oupotencial.35 Com efeito, o envio de naves de guerra para proteger barcosde pesca tornara-se uma prática usual da França, que seguia tendênciahá muito estabelecida por outros governos, como o dos EUA, da Grã-Bretanha, da Noruega e da Dinamarca, sendo que alguns destes tinhaminclusive seções especializadas para este propósito em suas marinhas deguerra. Precisamente, o governo francês enviava todos os anos vasos deguerra em missões de assistência durante as campanhas de pesca que afrota pesqueira realizava ao largo das costas da Groelândia, da TerraNova, da Irlanda e, ao sul, por todo o Mediterrâneo.36

Pelo menos conseguiram os diplomatas reverter a decisão doenvio imediato da belonave, que arriscaria tornar o problema maisagudo (na eventualidade de sobrevir algum incidente entre vasos deguerra brasileiros e franceses). O envolvimento da Marinha de Guerraera certamente inoportuno no exato momento em que o governofrancês enviava negociadores ao Brasil para tentar determinar as basesde um modus vivendi.37

Sabendo que a reação do Itamaraty seria, no mínimo, dedesagrado, cuidou o Quai d’Orsay de tomar providências quedesfizessem a marca da deslealdade que se configurava. Assim, oEmbaixador Carlos Alves de Sousa Filho foi chamado ao Ministériodos Negócios Estrangeiros, no dia 13 de dezembro de 1962 para sercomunicado que o governo francês havia assentido na partida de doisbarcos lagosteiros que se dirigiriam ao Brasil no início do ano seguinte,e que se solicitava ao governo brasileiro que não fossem importunadosem suas intenções.

Por motivos que não se conhece, Sousa Filho não transmitiunesses termos tal comunicação ao Itamaraty.38 No telegrama que

35 Telegrama da Direção das Convenções Administrativas e das Questões Consulares para aEmbafrance, 1º.3.1963, número ilegível, Amae, Série B Amérique 1964 (...), Généralités(en cours de classement), vol. 600 (Différend franco-brésilien des langoustes).36 Telegrama da Direção das Convenções Administrativas e das Questões Consulares para aEmbafrance, 1º.3.1963, número ilegível, citado.37 Idem, ibidem.38 A propósito, Souza, Carlos Alves de. Um embaixador em tempos de crise. Rio de Janeiro:Francisco Alves, 1979, 361 p.

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expediu na seqüência da audiência no Quai d’Orsay, afirmava que se“pedia que os pescadores franceses fossem autorizados a operar, comoantes, nas costas brasileiras sem serem molestados”. Referindo-se aoepisódio em suas memórias, o embaixador alegou que a chancelariadesconhecia a chegada iminente dos lagosteiros porque uma mensagemespecífica que supostamente fora expedida da Embaixada em Paris teriase extraviado nos escaninhos da burocracia diplomática no Rio deJaneiro. Responsabilizando a desorganização do Itamaraty, alegava queas mesmas informações teriam sido comunicadas pela Embaixada daFrança à Secretaria de Estado, que, inexplicavelmente, não as reteve.Há que se registrar que não há indícios do referido telegrama expedidopela Embaixada do Brasil em Paris, e muito menos de nota verbal daEmbaixada da França no Rio de Janeiro nos arquivos do Itamaraty emBrasília. Acresce que não existem referências na extensa documentaçãofrancesa sobre o conflito de que tenha o Quai d’Orsay nem mesmoinstruído a Embaixada no Rio a comunicar oficialmente o Itamaratyda partida de dois lagosteiros no momento em que se negociava omodus vivendi. 39

Pelo exposto, conclui-se que naufragavam na desinformaçãoos esforços de negociação do modus vivendi. Inconformado com adecisão do governo francês de enviar novamente uma frota pesqueirapara o Brasil, e acuado diante do fato consumado, o Itamaraty decidiususpender as negociações até que o Quai d’Orsay fizesse regressar oslagosteiros, que a essas alturas já se aproximavam do Nordeste.Mostraram-se os diplomatas brasileiros sinceramente preocupados comas repercussões que a chegada iminente dos bretões poderia ter sobre aopinião pública local e, especialmente, com a alimentação da pressãohostil dos interesses do setor pesqueiro e das forças políticas nacionais.

A decisão francesa foi entendida pelo Itamaraty como umapressão inaceitável, tendente a impor-lhe a renúncia da sua posição

39 Telegrama de Sousa Filho para a Secretaria de Estado das Relações Exteriores, 13.12.1962,número 368, AHMRE-B, Telegramas Ostensivos Recebidos da Embaixada do Brasil emParis, 1962, maço 02667; Telegrama da Direção das Questões Administrativas e Sociaispara a Embafrance, 14.12.1962, número ilegível, Amae, Série B Amérique 1964 (...),Généralités (en cours de classement), vol. 600 (Différend franco-brésilien des langoustes).

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jurídica e por razões de princípio rejeitou todos os artifícios propostospela delegação francesa para encobrir a chegada dos lagosteiros, e decidiusustentar um corolário da sua doutrina, segundo o qual o Brasil nãoaceitaria a arbitragem proposta pela França por considerar a questãoincluída nas exceções previstas no artigo primeiro da Convenção deArbitragem Franco-Brasileira de 1909, como também não permitiriadoravante a pesca da lagosta por barcos de qualquer país na plataformacontinental, nem mesmo aqueles eventualmente autorizados, e queuma eventual concessão de pesca dependeria de acordo baseado emuma das duas fórmulas apresentadas durante as negociações pela partebrasileira.40 Assim, o Itamaraty instruiu Sousa Filho para que comunicasseimediatamente ao Quai d’Orsay os pontos recém-estabelecidos, alémde lembrar-lhe da possibilidade de arrestamento imediato de toda equalquer embarcação de pesca estrangeira que se aproximasse da costaou das águas adjacentes à plataforma continental.41

A reação do Quai d’Orsay às novas decisões do governobrasileiro, comunicadas no dia 23 de janeiro, foi a menos favorávelpossível.42 A França insistia na submissão do litígio ao arbitramento,julgava as fórmulas propostas pela delegação brasileira inteiramenteinaceitáveis e informava, enfim, que em se verificando o arrestamentodos dois pesqueiros franceses que já se aproximavam da costa brasileira(uma vez que o seu retorno não seria determinado e que outros barcosse lhes seguiriam), caracterizar-se-ia um conflito aberto entre os doispaíses.43 Diante do impasse que nascia, restava às partes a espera pelosacontecimentos e, especialmente, pelos primeiros arrestamentos, que

40 Carta de Baeyens para Maurice Couve de Murville – Direction des affaires administrativeset sociales, 29.1.1963, número 109, Amae, Série B Amérique 1964 (...), Généralités (encours de classement), vol. 600 (Différend franco-brésilien des langoustes).41 Telegrama confidencial da Secretaria de Estado para Sousa Filho, 24.1.1963 , número 23,AHMRE-B, CT’s-Telegramas Confidenciais Recebidos e Expedidos – Embaixada do Brasilem Paris, 1963, caixa 284.42 Telegrama da Direção da América para a Embafrance, 29.1.1963, s/n, Amae, Série BAmérique 1964 (...), Généralités (en cours de classement), vol. 600 (Différend franco-brésilien des langoustes).43 Telegrama confidencial e urgente de Sousa Filho para a Secretaria de Estado das RelaçõesExteriores, 29.1.1963, número 33, AHMRE-B, CT’s-Telegramas Confidenciais Recebidose Expedidos – Embaixada do Brasil em Paris, 1963, caixa 284.

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certamente não tardariam e poderiam ter conseqüências desastrosaspara o já deteriorado clima de entendimento entre os dois países.

Cioso de evitar nova confrontação na questão que poderiaprejudicar o entendimento já abalado para o modus vivendi, Baeyensprocurou ser recebido pelo Presidente João Goulart, na manhã do dia30 de janeiro de 1963, para solicitar-lhe, em nome da concórdia entreas duas nações, uma autorização especial para que os lagosteiros quepartiram em dezembro da França pudessem pescar sobre a plataformacontinental.44 Nessa oportunidade, tomou-se conhecimento de que,ainda na noite anterior, haviam sido apresados ao largo da costa do RioGrande do Norte os barcos Françoise Christine, Banc d’Argain e Gotte,todos reincidentes, que pescavam no interior do perímetro de 12 milhasmarítimas que constituem a zona exclusiva.45

O novo incidente, sem dúvida, punha Goulart em uma situaçãoembaraçosa, uma vez que não se tratava mais de prevenir osapresamentos, mas de liberar os barcos arrestados, ordem imediatamenteemitida e executada, no dia 31 de março. Partiram os lagosteiros, quese entregaram novamente à pesca sobre a plataforma continental,enquanto outros três a eles se juntavam. Prevendo a possibilidade denovos arrestamentos diante da oposição à presença dos barcosestrangeiros que se avolumava no litoral nordestino, Baeyens procurourevestir a sua presença de alguma legalidade. Solicitou novamente àPresidência da República que os barcos gozassem do privilégio deconcluir a sua campanha de pesca sem serem importunados pelasautoridades navais brasileiras.

Ciente de que a política de contemporização encetada pelaembaixada no Rio vinha enfrentando oposições crescentes mesmo entre

44 Telegrama de Baeyens para o MAE, 31.1.1963, número 15; Nota da Direção da Américapara o ministro dos Negócios Estrangeiros, sobre “Les pêcheurs français au large des côtesbrésiliennes”, 5.2.1963, número 05, Amae, Série B Amérique 1964 (...), Généralités (encours de classement), vol. 600 (Différend franco-brésilien des langoustes).45 Nota verbal do MRE para Embafrance, 31.1.1963, nº 14, AHMRE-B, Notas OstensivasExpedidas para a Embaixada da França no Brasil, 1961-63, maço 07007; Telegrama deBaeyens para Maurice Couve de Murville, 1.2.1963, número ilegível, Amae, Série B Amérique1964 (...), Généralités (en cours de classement), v. 600 (Différend franco-brésilien deslangoustes).

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os setores mais pacientes do Quai d’Orsay (que a enxergavam comouma perda de margens de manobra para o encaminhamento futuro daquestão), cuidou o representante francês de mostrar trunfos imediatos,ainda que calcados no reconhecimento tácito da doutrina brasileirasobre a plataforma continental (como não poderia deixar de sercompreendida a solicitação de autorização especial).46 Ainda que assimfosse, a Embaixada da França esperava contar com mais alguns diaspara testar as possibilidades de entendimento com o Rio de Janeiro,antes que Paris optasse por outros rumos para a questão. Baeyens temiaespecificamente que o Ministério dos Negócios Estrangeiros cedessemais uma vez às pressões sociais e, especialmente, das agências responsáveispela organização da pesca, e concordasse com o que lhe parecia a medidamais drástica de todas: o envio de um navio de guerra. Com a autorizaçãodo governo brasileiro, o Quai d’Orsay decidiu suspender, pelo menosprovisoriamente, o desatracamento do navio de guerra, esperando queo Rio de Janeiro voltasse a negociar o modus vivendi.47

Para demonstrar a boa vontade do governo do Brasil em chegaruma fórmula de convivência, e nutrido pela esperança de ver desaparecerrapidamente da imprensa a campanha que se armou para denunciar adebilidade da sua administração ao lidar com recurso de tantaimportância econômica para a região, Goulart acedeu a apelo doembaixador francês. O Itamaraty, entretanto, alertava a Embaixada daFrança, naquela oportunidade, de que essa concessão, que se iniciavano dia 8 daquele mês, era feita na fé de que as autoridades francesasnão permitiriam a partida de novos barcos até que se concluíssem asnegociações do modus vivendi.48 Para o momento, a estratégia deBaeyens atingia resultados.

46 Telegrama de Baeyens para Maurice Couve de Murville, 1.2.1963, nº 133, Amae, Série BAmérique 1964 (...), Généralités (en cours de classement), v. 600 (Différend franco-brésiliendes langoustes).47 Telegrama da Direção das Questões Administrativas e Sociais para a Embafrance, 4.2.1963,número ilegível, Amae, Série B Amérique 1964 (...), Généralités (en cours de classement),v. 600 (Différend franco-brésilien des langoustes).48 Observe-se, entretanto, que o Itamaraty não afirmou ter a concessão prazo certo. Notaverbal do MRE para a Embafrance, 12.2.1963, número 16, AHMRE-B, Notas OstensivasExpedidas para a embaixada da França no Brasil, 1961-1963, maço 07007.

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Se por um lado, o gesto de Goulart impediu a adoção demedidas mais enérgicas pelo Quai d’Orsay, teve, por outro, efeitosopostos aos esperados no âmbito doméstico.49 Imaginando que umaboa forma de fazer calar a opinião pública nordestina seria fazendodesaparecer dos portos locais os lagosteiros bretões, ao mesmo tempoem que demonstrava a sua boa vontade no equacionamento da questãocom os franceses, o governo brasileiro viu as críticas à sua política deliberalidade se multiplicarem repentinamente.50

Acuado pela crise política que gerou, decidiu o governobrasileiro reverter as concessões feitas aos franceses, na esperança de, aomenos, calar a frente de oposição doméstica. Assim, no dia 19 defevereiro, o Chanceler Hermes Lima convocou Baeyens ao Itamaratypara comunicar-lhe o termo, no dia seguinte, da autorização especialdada por Goulart aos bretões. Com a intenção de dar satisfaçõesimediatas à oposição, era publicado comunicado de imprensa onde seprocurava esclarecer a excepcionalidade da autorização e o seu termonaquele momento.51

Antevendo, que a reação de Paris seria a pior possível, o Rio deJaneiro instruiu Souza Filho para contatos pessoais no Quai d´Orsay,quando deveria reafirmar às autoridades francesas a excepcionalidadeda concessão especial e esclarecê-las sobre a duração da campanha e osmotivos que levavam o governo brasileiro a pôr fim abruptamente àautorização de pesca. Ao mesmo tempo, deveria o embaixador brasileirolembrar à diplomacia francesa que o governo federal doravante seriainflexível para com as incursões dos bretões.52 Esperava o Itamaratyao menos poder contar com o entendimento de que a autorizaçãoconstituíra um bom indicador da compreensão e da boa vontade quenutria o governo brasileiro pela negociação da fórmula de convivência.

49 Telegrama da Embafrance para o MAE, 13.2.1963, número ilegível, Amae, Série BAmérique 1964 (...), Généralités (en cours de classement), v. 600 (Différend franco-brésiliendes langoustes).50 Nota da Direção da América para o gabinete do ministro dos Negócios Estrangeiros, sobre“Le différend franco-brésilien”, 16.11.1963, número 119, Amae, Série B Amérique 1964 (...),Généralités (en cours de classement), v. 600 (Différend franco-brésilien des langoustes).51 Idem.52 Idem.

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Por certo que a reação do Quai d’Orsay foi até pior do quepreviram os diplomatas brasileiros. Chamado na manhã do dia 21pelo secretário-geral do Quai d´Orsay, Souza Filho foi oficialmenteinformado que a Embaixada no Rio acabara de receber instruções paracomunicar ao Itamaraty que o governo francês decidira enviar um vasode guerra ao litoral do nordeste brasileiro, com o objetivo de controlaros movimentos dos seus pesqueiros.53 Alertando o seu interlocutorpara a gravidade da atitude que a França adotara, tendo em vista que onavio, provavelmente, já estava a caminho, Souza Filho lembrou apossibilidade de tensão entre belonaves dos dois países, uma vez que ogoverno brasileiro não permitiria a aproximação de um navio de guerraestrangeiro com intenções que se lhe afigurariam hostis.54

Ainda na manhã do dia 21 de fevereiro, Baeyens notificou oItamaraty do envio do vaso de guerra, o que era feito com base numarrazoado que se articulava em torno de uma única exigência: a retomadaimediata das negociações de um modus vivendi que permitisse aospescadores franceses a pesca sobre plataforma continental.55

Os elementos do conflito aberto estavam postos. Esta era aquinta-feira, véspera de Carnaval, 21 de fevereiro de 1963, e tinhainício a Guerra da Lagosta.

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O anúncio do envio de um vaso de guerra para as proximidadesda costa brasileira não poderia deixar de causar grande comoção nogoverno e na opinião pública brasileiros.

53 Telegrama confidencial urgentíssimo de Sousa Filho para Hermes Lima, 21.2.1963,número 57, AHMRE-B, CT’s-Telegramas Confidenciais Recebidos e Expedidos – Embaixadado Brasil em Paris, 1963, caixa 284; Telegrama urgente da Direção das ConvençõesAdministrativas e das Questões Consulares para a Embafrance, 20.2.1963, número ilegível,Amae, Série B Amérique 1964 (...), Généralités (en cours de classement), vol. 600 (Différendfranco-brésilien des langoustes).54 Telegrama confidencial urgentíssimo de Sousa Filho para Hermes Lima, 21.2.1963,número 57, op.cit.55 Telegrama da Direção das Convenções Administrativas e das Questões Consulares para aEmbafrance, 20.2.1963, número ilegível, Amae, Série B Amérique 1964 (...), Généralités(en cours de classement), vol. 600 (Différend franco-brésilien des langoustes).

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O Rio de Janeiro, estupefato, cuidou de afiar as suas posições,tendo em vista agora a presença de um fato novo na querela entre osdois governos. Paris justificava o envio do Tartu tendo em vista ocancelamento da autorização especial dada por Goulart, quando, narealidade, a decisão do dia 18 não anulara nem cancelara aquelaautorização, mas apenas fixara o seu período de validade dentro de umprazo razoável para a pesca. Com efeito, julgava o Itamaraty que aautorização do presidente da República tivera caráter excepcional,devendo-se levar em conta que quando a mesma foi solicitada, os seislagosteiros já se encontravam próximos ao litoral brasileiro, sendo quetrês deles eram reincidentes, pois que acabavam de ser liberados já ematenção a pedido anterior do governo francês.

O argumento do Quai d’Orsay de que fizera apreciávelconcessão ao Brasil, ao admitir uma fórmula de convivência, merecia,segundo o Itamaraty, quando menos, a réplica de que se encontravaem boca errada, porquanto era o Brasil que fizera graça à França aonegociar um modus vivendi para permitir barcos franceses a operaremsobre a plataforma continental. Acresce que, se o envio de vaso deguerra para acompanhar pesqueiros não tinha caráter intimidativo, nãose sentia o governo brasileiro obrigado a ter idêntica reação nem aconsiderá-lo ato de rotina. No entender do Rio de Janeiro, urgia tomarprovidências imediatas para deter o avanço do barco de guerra, comchegada prevista para o dia 25, antes que tal notícia, ao cair em domíniopúblico, causasse estragos ainda maiores às relações entre os dois paísese acabasse por inviabilizar qualquer tentativa de entendimento.

Um comunicado de imprensa do Itamaraty, publicado no dia22, ao dar conta da chegada iminente do Tartu, repercutiuimediatamente perante a opinião pública.56 A imprensa nacional searmou para ecoar a decisão do governo francês, ao mesmo tempo emque repercutia as opiniões de juristas e homens públicos que seencarregaram de emprestar combustível para a oposição expor asdebilidades do governo federal. Incitava-se a população à defesa do

56 Telegrama de Baeyens para o MAE, 28.2.1963, nº 334, Amae, Série B Amérique 1964(...), Généralités (en cours de classement), vol. 600 (Différend franco-brésilien des langoustes).

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território pátrio. Cuidava-se de denunciar a “política de canhoneira”que acabara de adotar o governo francês, que tomava no caso o Brasilpela miríade de débeis Estados que nasciam de seu “desastrado processode descolonização”.57

A excitação da opinião pública deu folga a outros desastres,como aquele promovido pelo ministro da Marinha, Almirante PedroPaulo de Araújo Suzano: afirmando que o serviço de inteligência daarmada dispunha de informações de que o governo francês destacara oporta-aviões Clemenceau e dois cruzadores pesados para as operaçõesno Brasil, deu ordem ainda na madrugada da sexta-feira, 22 de fevereiro,para a mobilização imediata da Marinha de Guerra.58 Assim, foirapidamente constituída uma Força Tarefa, composta por oitocontratorpedeiros, que zarpou do Rio de Janeiro nas primeiras horasdo domingo de Carnaval, tendo como inimigo o contratorpedeiroTartu.59 Em entrevista coletiva concedida poucos dias depois, confirmavaSuzano a vinda de uma poderosa frota francesa para o litoral doNordeste, ocasião na qual a Marinha distribuiu nota aberta à populaçãopara demonstrar a importância dos interesses em jogo e a necessidadede defender a “soberania nacional.”60 Ainda que Baeyens tenha desmentidoo envio do Clemenceau, acabou por vingar o anunciado da Marinhade Guerra do Brasil, já em deslocamento para os locais contenciosos.61

As emoções daquele domingo de festa ainda estavam longe,entretanto, de se esgotarem. No mesmo dia Souza Filho foi recebido

57 O Estado de São Paulo, 21.2.1963; Correio da Manhã, Jornal do Brasil, O Globo, Jornal doCommercio, Última Hora, 22.2.1963.58 Espellet, Edy Sampaio. Recordações do episódio naval denominado “Guerra da Lagosta”.Revista Marítima Brasileira, Ano CV, Nos. 7, 8, e 9 – jul-ago-set., 1985, p. 15.59 Espellet, Edy Sampaio. op. cit.60 O Globo, 27.2.1963; telegrama secreto do adido militar junto à Embafrance para oSecretariado da Marinha, via Ministério dos Negócios Estrangeiros, 28.2.1963, número 26;Telegrama de Baeyens para o MAE, 28.2.1963, número 327, ambos em Amae, Série BAmérique 1964 (...), Généralités (en cours de classement), vol. 600 (Différend franco-brésilien des langoustes).61 Telegrama de Baeyens para o Ministério dos Negócios Estrangeiros, 28.2.1963, número339, Amae, Série B Amérique 1964 (...), Généralités (en cours de classement), vol. 600(Différend franco-brésilien des langoustes).

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em caráter de urgência pelo General Charles de Gaulle para transmitir-lhe apelo de Goulart: o presidente brasileiro solicitava ao seu colegaque fizesse retroceder a nave de guerra, que era vista no Brasil comoum gesto hostil por parte da França, capaz de elevar a tensão entre osdois países a conseqüências imprevisíveis. A resposta do presidentefrancês, entretanto, foi dura: da mesma forma que o presidente doBrasil vinha se ocupando da questão, agora passaria ele próprio a fazê-lo e não considerava o envio do contratorpedeiro como um gesto hostil,mas, bem ao contrário, tendente a preservar as margens ínfimas dediálogo ainda abertas entre os dois governos. Para de Gaulle, a matériaenvolvia questão de princípio: a França não reconhecia e não reconheceriajamais a jurisdição do Estado ribeirinho sobre a plataformacontinental.62 Em síntese, o retorno do Tartu somente seria cogitadose concordasse o governo brasileiro em negociar imediatamente afórmula de convivência.63

A audiência concedida por de Gaulle a Souza Filho está naorigem da expressão atribuída ao chefe de Estado francês (Le Brésiln’est pas un pays sérieux), que surgiu na imprensa carioca pela primeiravez pelas prensas do Diário de Notícias. Em verdade, Souza Filhoreivindicou para si a responsabilidade da expressão em suas memórias.A frase teria sido por ele pronunciada neste domingo, quando inqueridopelo jornalista Luiz Edgar de Andrade sobre os mal-entendidos quecaracterizavam o conflito pesqueiro entre o Brasil e a França, eespecialmente sobre o teor da entrevista que o representante tivera como presidente da República. Referindo-se à incorporação do conflito aoenredo do Carnaval do Rio de Janeiro e ao teor dos comentários daimprensa carioca, Souza Filho teria assim sintetizado a sua opiniãosobre toda a diferença sobre a pesca da lagosta com a França: Le Brésiln’est pas un pays sérieux.64

62 A propósito, Souza, Carlos Alves de. op. cit., p. 317.63 Telegrama confidencial de Sousa Filho para Hermes Lima, 23.2.1963, número 65,AHMRE-B, CT’s-Telegramas Confidenciais Recebidos e Expedidos – Embaixada do Brasilem Paris, 1963, caixa 284.64 Idem.

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Percebendo que o envio do navio de guerra causara grandedesconforto no governo brasileiro, naquele mesmo dia, o Quai d’Orsayapresentou à Embaixada em Paris as bases negociação:65

a) o navio de guerra enviado à plataforma continentalbrasileira não chegaria a atingi-la;

b) o governo brasileiro autorizaria, em caráter excepcional, osseis pesqueiros franceses que se encontravam na costa doNordeste, a prosseguirem suas operações de pesca pelo prazomáximo de 15 dias;

c) o governo brasileiro concordaria em que um tribunalinternacional ou outra qualquer instância superior declarassese o caso se aplica ou não a arbitragem prevista naConvenção Franco-Brasileira de 1909;

d) ambos os governos assumiriam o compromisso de iniciarimediatamente entendimentos acelerados, visando a umacordo que, sob a forma de modus vivendi ou qualqueroutra, permitisse encontrar solução satisfatória para aspartes, com base em um dos projetos já formulados ououtros que viessem a ser apresentados;

e) na hipótese de ser concluído rapidamente o acordomencionado no item anterior, o governo francês abririamão do exigido no item “c”.

Para o Itamaraty, tornara-se claro que a presença do vaso deguerra não passava de um elemento intolerável de chantagem: entendiao Rio de Janeiro que a negociação com a presença do Tartu configurariauma rendição aos poderosos argumentos da canhoneira francesa, e nãogostaria o governo brasileiro de parecer, frente às opiniões públicanacional e internacional, como tendo recuado de suas posições dianteda belonave. Desse modo, o governo brasileiro rejeitou a retomada denegociações enquanto não se suspendesse o envio do navio de guerra, e

65 Telegrama Confidencial de Sousa Filho para Hermes Lima, 23.2.1963, número 67,AHMRE-B, CT’s-Telegramas Confidenciais Recebidos e Expedidos – Embaixada do Brasilem Paris, 1963, caixa 284.

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os lagosteiros estacionados sobre a plataforma continental não fossemretirados.66

O Quai d’Orsay, por um lado, convencera-se de que oItamaraty não recuaria da decisão de não negociar enquanto a belonaveestivesse em jogo. Por outro lado, o governo brasileiro começavalentamente a absorver os estragos do envio do Tartu, passando a contaraté com uma reação simpática por parte da opinião pública,eventualmente embalada pelos clamores da tensão enquantoembriagada pelo fato inusitado que temperara na última hora os enredosdo Carnaval.67 O governo de Paris considerava que já fizera apreciávelconcessão ao Brasil ao admitir limitar, por meio de modus vivendi, oque entendia ser o seu direito líquido e certo de pescar em alto-mar e aqualquer tempo. Concordava, entretanto, que o envio de vaso de guerrafoi erroneamente interpretado pelo Brasil. O Quai d’Orsay chegou aconcluir que a emoção a que esse pormenor dera lugar no Brasil talvezfosse fruto da novidade que era para os brasileiros a pesca por estrangeirosnas imediações do seu litoral... De fato, por essa lógica, o erro foi nãoter feito escoltar, desde o início, a frota que passara a operar ao largo doNordeste por vasos de guerra.68

Enquanto nenhuma solução era encaminhada, a Embaixadada França se ressentia das primeiras conseqüências do conflito,especialmente para a imagem do país e de seu governo, para o quecontribuía deliberadamente o próprio governo federal.69 Após reuniãode avaliação de emergência entre Goulart, Hermes Lima e o Gabinete

66 Telegrama confidencial urgente de Hermes Lima para a Carlos Alves de Souza Filho,25.2.1963, número 58 , AHMRE-B, CT’s-Telegramas Confidenciais Recebidos e Expedidos– Embaixada do Brasil em Paris, 1963, caixa 284.67 Telegrama de Sousa Filho para Hermes Lima, 25.2.1963, número 70, AHMRE-B,CT’s-Telegramas Confidenciais Recebidos e Expedidos – Embaixada do Brasil em Paris,1963, caixa 284.68 Telegrama Confidencial da Brasemb para o MRE, 26.2.1963, número 73, AHMRE-B,CT’s-Telegramas Confidenciais Recebidos e Expedidos – Embaixada do Brasil em Paris,1963, caixa 284.69 Telegrama secreto do Adido Militar junto à Embafrance para o Secretariado da Marinha,via MAE, 28.2.1963, número 282, Amae, Série B Amérique 1964 (...), Généralités (encours de classement), vol. 600 (Différend franco-brésilien des langoustes).

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Militar, a Presidência da República divulgou novo comunicado, ondese registrava a localização do Tartu a 90 milhas de Fernando deNoronha, e, portanto, se dirigindo aos locais de pesca contenciosos, ese lamentava a decisão de Paris, que o governo brasileiro entendia comoum inaceitável e hostil elemento de pressão, servindo tão-somente paradeteriorar as relações entre duas nações tradicionalmente amigas.

Os pronunciamentos chorosos das autoridades federaisprontamente contagiaram a imprensa, que não se furtou a inflamar aquerela. Uma visão alarmista e francamente fantasiosa era dividida porveículos jornalísticos de tendências opostas, que inclusive contribuíampara esfacelar as imagens de generosidade da França e dos ideais franceses,enquanto não eram poupados ataques nem mesmo à pessoa do Generalde Gaulle, que passara a ser retratado diuturnamente em caricaturasnos mais diversos veículos de imprensa, nem sempre em condiçõesdignas. O epíteto usual para qualificar o chefe de Estado francês tornou-se “a vedette da Praça Tiradentes”, expressão consagrada pelos jornaiscariocas de pequena circulação que rapidamente ganhou as páginas deveículos mais importantes (a propósito, um dossiê com recortes dascaricaturas de de Gaulle chegou a ser enviado ao Palácio do Eliseu, eteria provocado a consternação do presidente da República).70 Apesardos protestos veementes para que o governo brasileiro cuidasse decontrolar a verve da imprensa nacional, deve-se registrar que osdiplomatas brasileiros experimentaram um incontido sentimento desatisfação: afinal, o que poderia as autoridades brasileiras fazer se esteera um país livre? 71

70 Esta documentação está depositada nos fundos de Gaulle dos Arquivos Nacionais daFrança, sob a rubrica “privado”, e portanto inacessível aos pesquisadores. Souza Filho relataa audiência que teve com de Gaulle para se despedir do chefe de Estado, quando estava paradeixar o posto em Paris, poucas semanas depois do fim do episódio – nesta oportunidade, opresidente da República voltou a se referir ao dossiê, afirmando que “ele e a França tinhamse sentido ofendidos pelo governo e a imprensa brasileira. (...) Considerava o silêncio dogoverno brasileiro sobre as inverdades publicadas uma espécie de aprovação dessapublicidade”. Ver Souza Filho, Carlos Alves de. op. cit., p. 328-330.71 Telegrama de Baeyens para MAE, 25.2.1963, número 303, Amae, Série B Amérique 1964(...), Généralités (en cours de classement), vol. 600 (Différend franco-brésilien des langoustes).

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Para que o impasse fosse rompido, o Quai d’Orsay estimavaque seria fundamental saber o que se passaria se o governo francêsresolvesse fazer retroceder o Tartu, decisão a ser tomada celeremente,dado que o seu encontro com os lagosteiros fora fixado para o dia 28,a quase 100 milhas da costa. Além do mais, era necessário precisar asbases de uma negociação e concluir um primeiro acordo de princípioantes de emitir tal ordem ao vaso de guerra. A retirada do navio e apublicação de uma declaração comum deveriam se produzir no mesmomomento. Na eventualidade de o Itamaraty negar-se a negociar nessestermos, caberia ao Quai d’Orsay propor um novo compromisso derecurso à arbitragem, desta feita para estabelecer se o governo brasileiroteria ou não o direito de se recusar ao procedimento arbitral.72

Por esse momento, foi possível contemplar a questão docontencioso entre os dois países de forma completa:

a) uma primeira proposta de arbitramento deveria estabelecerse tem o Estado ribeirinho o direito de regular a atividadepesqueira sobre as águas adjacentes à plataforma continental,nos termos da Convenção de Genebra sobre a PlataformaContinental de 1958. Esta proposição foi rejeitada peloBrasil, por considerar pleno o seu direito de regular a atividadeexploratória, ainda que fora do limite das 12 milhas (marterritorial e zona econômica exclusiva), de crustáceos, seresque mantém vinculação orgânica íntima com a plataformacontinental;

b) a segunda proposição deveria estabelecer o mesmo objetodo item anterior, sendo que com base em outros dados e apartir da Convenção Franco-Brasileira de arbitramento de1909: as lagostas devem ser assimiladas aos recursos daplataforma continental (ou seja, elas andam), cuja

72 Nota da Direção da América para o secretário-geral do MAE, 26.2.1963, número 07,Amae, Série B Amérique 1964 (...), Généralités (en cours de classement), vol. 600 (Différendfranco-brésilien des langoustes).

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exploração é reservada aos nacionais do Estado ribeirinho,ou às espécies natantes (como os peixes), cuja pescapermanece livre aos estrangeiros? Por considerar que oponto em questão não dizia respeito exclusivamente aosdois países, o Brasil decidiu rejeitar igualmente estaproposta, por considerá-la incidindo em uma das exceçõesformalmente inscritas no próprio texto da convenção;

c) a derradeira proposta de arbitramento dizia respeito àprópria exceção levantada pelo governo brasileiro paraescapar ao arbitramento do item anterior – nos termos daconvenção de 1909, teria o Brasil o direito de se recusar àarbitragem? Tendo sido formulada ainda em fevereiro de1963 ao Itamaraty, permaneceu para sempre sem respostado governo brasileiro.

A última proposta fora entregue por Baeyens ao ChancelerHermes Lima no dia 26 de fevereiro de 1963. Depois dessaoportunidade, a Embaixada no Rio chegou a enviar em duas ocasiõescompromissos arbitrais que sendo firmados pelos dois governos,deveriam ser aprovados pelo Congresso Nacional antes de se solicitar àCorte Internacional de Justiça a instalação de um juízo arbitral. Comoo Itamaraty jamais respondeu a nenhum dos dois compromissos, enão há a possibilidade de arrastar um Estado contra a sua vontade anenhuma Corte Internacional, esta proposição configurou a saídahonrosa encontrada para a França para desmobilizar os vasos de guerrae voltar às negociações do modus vivendi.

A saída para o impasse na questão surgiu de uma proposta dogoverno brasileiro. Paris retiraria o navio de guerra estacionado ao largoda costa do Nordeste, e tão logo tivesse cessado o clamor público emtorno da questão, seriam reiniciadas as conversações para o estabelecimentode um modus vivendi.73 A proposição brasileira, formulada quando a

73 A proposta de Hermes Lima foi formulada em audiência concedida a Baeyens em 1º demarço. Telegrama secreto de Hermes Lima para Carlos Alves de Souza Filho, 1º.3.1963,número 64, AHMRE-B, CT’s-Telegramas Secretos Expedidos e Recebidos – Embaixada doBrasil em Paris, 1962-1964, caixa 24.

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Marinha de Guerra do Brasil já se aproximava do litoral do Nordeste,impunha uma decisão rápida ao Quai d´Orsay. Com esse fato, estimavaBaeyens que os lagosteiros não teriam mais condição de concluírem asua campanha de pesca sem que ocorressem incidentes entre o Tartu ea Marinha brasileira, enquanto estava fora de cogitação tentar obter doRio de Janeiro nova autorização especial de pesca.74

Paris tinha que se resolver por uma saída honrosa, considerandoque o vaso de guerra deixara de ter os efeitos manifestados nos primeirosdias da crise. O primeiro passo a ser dado seria a substituição docontratorpedeiro por um navio de baixa tonelagem, com o que seesperava dar a entender ao governo brasileiro que o governo francêsdecididamente não abrira mão de amparar as campanhas de pesca emqualquer lugar do mundo por belonaves.75 Assim, cuidou-se dasubstituição do Tartu pelo navio-tênder de aviação Paul Goffeny aindano dia 4 de março, recebendo a nova belonave instruções precisas parapermanecer no local de pesca por mais uma semana, enquanto oslagosteiros arribariam à razão de um barco por dia.76

Em seguida, admitindo que não existiam mais possibilidadesconcretas de se entabularem negociações, tendo em vista as negativasprontamente manifestadas pelo Rio de Janeiro em todas as ocasiões, oQuai d’Orsay resolvera paralisar os canais de comunicação com oItamaraty, vez que a França aparecera exclusivamente como demandanteem todo o episódio. Por esse motivo, se convocava Baeyens a Paris,para uma estada de duração indeterminada.77 Ao mesmo tempo, a

74 Telegrama urgentíssimo de Baeyens para Maurice Couve de Murville, 1º.3 .1963, número363, Amae, Série B Amérique 1964 (...), Généralités (en cours de classement), vol. 600(Différend franco-brésilien des langoustes).75 Telegrama secreto do adido militar junto à Embafrance para o Secretariado da Marinha,via MAE, 5.3.1963, número ilegível, Amae, Série B Amérique 1964 (...), Généralités (encours de classement), vol. 600 (Différend franco-brésilien des langoustes).76 Telegrama da Direção das Convenções Administrativas e das Questões Consulares para aEmbaixada da França no Brasil, 4.3.1963, número ilegível, Amae, Série B Amérique 1964(...), Généralités (en cours de classement), vol. 600 (Différend franco-brésilien des langoustes).77 Telegrama da Direção das Convenções Administrativas e das Questões Consulares para aEmbafrance, 4.3.1963, s/n, Amae, Série B Amérique 1964 (...), Généralités (en cours declassement), vol. 600 (Différend franco-brésilien des langoustes).

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embaixada era instruída para que, após a partida do chefe da missão, ascomunicações de qualquer ordem e sobre qualquer assunto com oItamaraty se ativessem ao necessário para a estrita manutenção dasrelações bilaterais.78

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A simples retirada do Paul Goffeny, no dia 10 de março, e oretorno dos lagosteiros que se reuniram em torno dos dois vasos deguerra desde o dia 28 de fevereiro marcaria pateticamente o final doconflito e evidenciaria, aos olhos da opinião pública francesa, a derrotada tese do Hexágono sobre a liberdade de pesca sobre as águas adjacentesà plataforma continental dos Estados riberinhos.79

Cumpria que o Quai d’Orsay adotasse uma última medidapara marcar definitivamente a sua posição sobre a questão e para desfazereventuais mal-entendidos na prestação de contas que certamente seseguiria com os segmentos interessados no âmbito doméstico. Assim,resolveu o governo de Paris denunciar o Brasil à Corte Internacionalde Justiça, ainda que se soubesse previamente que este organismo nãoseria competente para aceitar tal reclamação, uma vez que o Brasil nãoreconhecia a jurisdição obrigatória da Corte de Haia para arbitrar assuas eventuais diferenças com outros Estados.80 De todo modo, oMinistério dos Negócios Estrangeiros esperava que tal medida

78 Telegrama do Embaixador Carbonnel, secretário-geral do MAE, para Baeyens. 4.3.1963,número ilegível, Amae, Série B Amérique 1964 (...), Généralités (en cours de classement),vol. 600 (Différend franco-brésilien des langoustes).79 Telegrama da Secretaria-Geral do MAE Estrangeiros para a Embafrance, 7.3.1963, s/n,Amae, Série B Amérique 1964 (...), Généralités (en cours de classement), vol. 600 (Différendfranco-brésilien des langoustes).80 Tratava-se de procedimento por vezes empregado, mas que não havia encontrado atéaquela data a aceitação de nenhum dos Estados reclamados, que respondiam em geral quenão reconheceram a competência da Corte, sendo os casos mais lembrados a reclamaçãodos EUA contra URSS após incidentes aéreos e da Grã-Bretanha contra o Chile e aArgentina sobre a soberania de certas terras antárticas. Nota do Jurisconsulto para o ministrodos Negócios Estrangeiros, sobre “Le Caractère non obligatoire des engagements d´arbitrageentre la France et le Brésil”, 1º.3.1963, número 164, Amae, Série B Amérique 1964 (...),Généralités (en cours de classement), vol. 600 (Différend franco-brésilien des langoustes)

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emprestasse alguma publicidade à tese francesa, pois a reclamação, e amemória que iriam apoiá-la, seriam publicadas e remetidas a todos osEstados-membro das Nações Unidas. E assim foi feito: no dia 20 demarço o governo francês protocolava perante a Corte Internacional deJustiça reclamação unilateral contra o Brasil, que permaneceu parasempre sem resposta.

Guerra sem batalhas, o episódio que entrou para a história dasrelações franco-brasileiras como Guerra da Lagosta impõe um balançocircunspecto do que ganharam e do que perderam o Brasil e a França,uma vez que certamente do conflito nenhuma das partes saiu vencedora.Os dois governos perderam muito do débil capital de confiança quefora longamente posto à prova desde meados da década de 1950, recursoprecioso que deveria ter sido utilizado no encaminhamento das questõesprementes que sufocavam o pleno desenvolvimento das relaçõesbilaterais.

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Denis Rolland*

No século XX, a presença francesa no Brasil1 recuousignificativamente, em um primeiro momento com a diminuição donúmero de pessoas. Antes da Primeira Guerra Mundial, havia apenas14.000 franceses no Brasil, ou seja, 0,8 % da população estrangeira.Embora bem menos que na Argentina, com seus 106.000 franceses, oBrasil era a segunda “colônia” francesa na América Latina. A partir doinício do século XX, a imigração francesa quase se interrompeu. Desdeentão, ocorreu rápida assimilação dos grupos franceses.

O estatuto privilegiado, embora temporário, da representaçãofrancesa no Rio de Janeiro – uma das poucas “embaixadas” da Françana época2 – e as instituições criadas depois da Primeira Guerra Mundialdavam, à primeira vista, uma idéia positiva das relações políticas eculturais entre os dois países: a presença do Instituto Franco-Brasileirode Cultura Avançada (Institut français de Haute Culture) no Rio deJaneiro em 1922 ou a participação francesa na fundação da Universidadedo Estado de São Paulo. Também é relevante a presença de nomes dedestaque na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, como ClaudeLévi-Strauss ou Fernand Braudel, denominados de jeunes savants,segundo expressão comum nas fontes diplomáticas.

* Professor da Universidade de Estrasburgo III, e membro do Instituto Universitário daFrança.1 Cf. em perspectiva literária, Mario Carelli, Cultures croisées…, op. cit., e Interactionsculturelles franco-brésiliennes, France-Brésil, Bilan pour une relance. Paris : Entente, 1987.2 Cf. 2.2.

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Apesar das aparências e das instituições que formavam as relaçõesculturais, o laço cultural entre as duas margens do Atlântico, afrouxava-se. Essa situação é ainda mais nítida no setor econômico. Sabe-se que oBrasil, antes de 1914, era um dos focos de investimentos franceses(3.500 milhões de francos nominais), ocupando o primeiro lugar nosinvestimentos franceses na América Latina. Mas, após 1918, não foimais possível manter esta posição, uma vez que o esforço empreendidopela França durante a guerra fê-la vitoriosa, mas a enfraqueceuconsideravelmente.

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Os laços culturais que os dois países mantiveram construíram-se a partir da suposta ou aparente influência dos princípios da RevoluçãoFrancesa. A difusão dos princípios da Revolução e a presença francesaanteciparam o estabelecimento de instituições republicanas no país(1889).3 Onde situar a Revolução Francesa no Brasil do Estado Novo edos anos 30?

A tentativa de comemorar, em 1939, o sesquicentenário daRevolução Francesa é um exemplo que permitirá compreender, em umprimeiro momento, o que havia de inoportuno na referência à RevoluçãoFrancesa e, num segundo, o que representava uma referência estrangeirano âmbito da definição muito pragmática da neutralidade brasileira.

Em junho de 1939, às vésperas dessa celebração, o encarregadodas Relações Exteriores mostra-se pessimista. Na sua opinião, há “poucaschances” de que a proposta4 do governo francês encontre no Brasiluma “empenhada aceitação”. Isto por três motivos: (a) o caráterconservador e antiliberal do Estado Novo; (b) suas tendênciasnacionalistas, e (c) a posição tomada pelo governo brasileiro cujoprincípio é ir contra toda ideologia estrangeira.5

3 Essa predileção pela cultura francesa já distinguia o Imperador Pedro II.4 Feitas pelo ministério francês a todos os postos diplomáticos.5 Amae, Am18-40, Brésil, 108, Gueyraud (Rio), 16.6.1939.

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Capanema,6 ministro da Educação, responde e afirma que“certos títulos justificariam uma comemoração brasileira”, sobretudoquanto esta corrente de idéias havia levado as colônias ibero-americanasa se emanciparem. A herança presumida não é contestada. Mas oministro continua dizendo que a “apologia não pode naturalmenteestender-se a um grupo de doutrina desgastada e ainda menos a umnúmero de episódios inoportunos”.7 Depois, Capanema mostra-seevasivo pretextando ser essa questão da competência de outros ministros.

Francisco Campos, ministro da Justiça, jurista doutrinário donovo regime, mostra-se pouco favorável à comemoração proposta àsescolas. Considera “toda revolução nefasta”, não “reconhecendo à nossao mérito de ter legado os fundamentos de um regime autoritáriomoderno”. 8

Apenas o ministro das Relações Exteriores parece a priori nãoobjetar. Oswaldo Aranha reúne, de fato, “a uma primeira formaçãonitidamente liberal” e a “admiração bem conhecida pelas instituiçõesnorte-americanas”9 uma francofilia de boa qualidade.

Contudo, neste ínfimo assunto da política estrangeira, Aranha,que possui restrito campo de ação, é combatido pelos antiliberais. Porsua vez é evasivo quanto às chances de sucesso, por conseguinte, abstém-se de agir.

Finalmente, comemora-se o aniversário da Revolução Francesasem a presença de representantes do governo. Aulas sobre a revoluçãosão dadas nas escolas do Distrito Federal (Rio de Janeiro), e a imprensacobre o evento, inspirada em matéria preparadas pela embaixada.10

A comemoração do sesquicentenário do 14 de julho tampoucoprovoca entusiasmo e mostra poucos resultados no Brasil. Em 1889,nos últimos meses do império brasileiro, esta comemoração já haviasido circunscrita. Seria uma festa exclusivamente francesa. O governo

6 Cf. Schwartzman, Simon. Tempos de Capanema. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984.7 Amae, Am18-40, Brésil, 108, Gueyraud (Rio), 16.6.1939.8 Amae, Am18-40, Brésil, 108, Gueyraud (Rio), 16.6.1939.9 Amae, Am18-40, Brésil, 108, Gueyraud (Rio), 16.6.1939.10 Amae, Am18-40, Brésil, 108, Bertrand (Rio), 17.7.1939.

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imperial pediu “maior prudência” ao representante francês que, aliás,estava plenamente de acordo (a adesão desse aristocrata aos valores daTerceira República francesa é duvidosa). Também recomendou-lhe queneste dia não se admitisse às manifestações “jornalistas brasileiros” nem“políticos”, nem discurso que tratasse de política brasileira11 .

Ao se declarar a guerra, a neutralidade do Brasil é firmada emacordo juntamente com as decisões pan-americanas. Mas Aranha, emparticular, assinala ao satisfeito representante francês a “profunda simpatiade seu país pela França”. Embora tivesse que obedecer às decisões daConferência Pan-Americana da Havana e às proclamações do PresidenteGetúlio Vargas, que se mostrou bem mais reservado do que seu próprioministro.12

Em 1939, a opinião parece ser favorável à França e à Inglaterra.13

Aos diplomatas franceses, Aranha salienta que 90% da populaçãobrasileira é favorável as causas democráticas.14 Na sua correspondênciaparticular precisa:

No que diz respeito à guerra européia, a situação aqui éparecida com a do Estados Unidos. Posso assegurar-lhes que 90%da opinião pública não apenas é favorável à França e à Inglaterra,mas nítida e ostensivamente contrária à Alemanha e à Rússia.Seja aqui ou lá, a maior dificuldade está no controle da opiniãopública para evitar manifestações que, por seus excessos, poderiam

11 Amae, CP, vol. 53, Amelot de Chaillou (Rio), 24.7.1888 & 10.7.1889.12 Amae, Am18-40, Brésil, 108, Jules Henry (Rio), 15.9.1939.13 Em seguida à declaração de guerra entre a França e a Alemanha, segundo a diplomaciafrancesa, “pode-se dizer que a população inteira do Brasil está, sem distinção de classe, detodo coração conosco e com a Inglaterra”. É certo que “a elite deste país está, de fato,fortemente impregnada pela cultura francesa e nossa presença em todos os meios brasileirosé tão grande que os votos, formulados por toda parte, de vitória franco-britânica, sãoseguramente sinceros”. Mas falta lucidez à diplomacia francesa, ofuscada por um complexode superioridade cultural implícito e pelo reflexo especular que lhe apresenta uma parteimportante da elite cultural brasileira, ao afirmar que, por ocasião da declaração de guerra,que não haveria “personalidade oficial algum de destaque que, neste momento, fosse pró-alemão” (Amae, Am18-40, Brésil, 108, Gueyraud (Rio), 2.9.1939).14 Amae, Am18-40, Brésil, 108, Jules Henry (Rio), 15.9.1939.

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trair a neutralidade que deve ser mantida tanto pelo povo quantopelo governo.15

Segundo o ministro das Relações Exteriores, Vargas, “emboraintimamente favorável à França e à Inglaterra” fará “tudo para dissimularseus sentimentos pró-alemães”.16 Aqui e na sua ação diplomática,Aranha condiciona a predisposição favorável às democracias de algumastendências governamentais voltadas para a Europa autoritária. EntreAranha (muito mais simpatizante dos Estados Unidos do que dasdemocracias européias) e os militares favoráveis do Eixo (GóisMonteiro, Gaspar Dutra), Vargas parece pôr em jogo uma neutralidadeaberta, favorável ao comércio brasileiro, ao equipamento das ForçasArmadas e à implantação de uma indústria de base importante.Podemos, então, perguntar se uma parte da historiografia contemporâneabrasileira não estaria situando os objetivos econômicos, de modosistemático, no primeiro plano da conduta de Getúlio Vargas. Essapercepção – que neste caso seria a transformação de um empirismobem servido por uma avaliação precisa dos campos de ação externos einternos – não favoreceria (ou reforçaria) a apresentação de umnacionalismo brasileiro moderado, a construção de uma continuidadeda política exterior brasileira do Rio Branco até hoje, e umaindividualização da política brasileira em relação aos outros Estadoslatino-americanos (a Argentina estando em primeiro lugar)? 17

De qualquer modo, em 1940, conjugam-se alguns fatores quesuavizam a adesão às democracias. A aliança teuto-russa e a perspectiva

15 Em janeiro de 1940, durante a “estranha guerra”, Aranha “não crê, até hoje, que estejaocorrendo realmente uma guerra na Europa e que essa guerra coloque em jogo o destino dasdemocracias” (CPDOC/FGV, Fundo Aranha, 0A 40.01.02/3, 0875, O. Aranha a DrewPearson, s. d. /fin janvier 1940).16 CPDOC/FGV, Fundo Aranha, 0A 40.01.02/3, 0875, Oswaldo Aranha a Drew Pearson,s.d. (fim de janeiro de 1940).17 O empirismo e uma certa aptidão a perceber o espaço possível de negociação com asdiferentes correntes internas, assim como com os parceiros estrangeiros, parece-nos, porvezes, interpretada demasiado sistematicamente como uma condução firme da políticaexterior, sem que as fontes consultados o deixem claramente entender (cf. por exemploCervo, Amado Luiz. As relações históricas..., op. cit., p. 159 sq).

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da entrada da Itália ao lado da Alemanha fazem com que os democratasimaginem uma possível vitória do totalitarismo na Europa. Por outrolado, alguns fiéis do Estado Novo se preocupam com as fortuitasrepercussões sobre o regime autoritário varguista no caso de uma vitóriadas democracias principalmente se os Estados Unidos entrarem noconflito. Essa é a opinião assumida pelo embaixador em Berlim.Entretanto, recomendam-lhe “cultivar boas relações entre o Brasil e aAlemanha”. Corresponde-se diretamente com o Presidente Vargas18

sem recorrer ao Itamaraty. Enfim, a imprensa exclui qualquer declaraçãode personalidades ligadas ao Exército ou à Polícia19 em favor dos aliados.Diplomatas admitem que “em certos meios oficiais profere-se grandeadmiração pela Alemanha de Hitler”. 20

Segundo Amado Luiz Cervo, Vargas, ao manter aberta a portapara os Estados Unidos graças à política de Aranha, tenta, de fato,apresentar a neutralidade do Brasil. É por isto, pois, que seus discursosenérgicos elogiam a eficiência dos regimes totalitários e criticam a inérciadas democracias.21 Enquanto Aranha trabalha sobre o indispensável,Vargas orna a política brasileira, atribuindo-lhe soberania nacional edignidade, valorizando o interesse nacional. Lourival Fontes, responsávelpelo Departamento de Imprensa e Propaganda, exerce papel de porta-voz. Como no discurso de política exteriores, esta política devesubmeter-se à preservação de um futuro o mais aberto possível. Destemodo, para a política estrangeira conserva um espectro de ação apenaseventual. De certo modo alcança seu objetivo quando a diplomaciaitaliana dos anos 40 e 41 considera o Brasil de Vargas o baluarte daneutralidade da América Latina,22 contribuindo para a formação deum possível “ABC”, uma aliança de interesses entre a Argentina, oBrasil e o Chile.

18 CPDOC/FGV, Fundo Aranha, 0A 40.01.02/3, 0911, Cyro de Freitas-Valle à GetúlioVargas, 25.8.1940.19 Para Porto Alegre somente. O cônsul nesta cidade, em uma região na qual a presença dascolônias alemãs e italianas é mais visível, não se engana ao registrar “alguns elementoshostis”.20 Amae, Am18-40, Brésil, 108, Jules Henry (Rio), 23.9.1939.21 Cervo, Amado Luiz As relações diplómaticas, op. cit., p. 163.22 Cervo, Amado Luiz As relações diplómaticas, op. cit., p. 166.

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Em março de 1940, fracassam as diplomacias francesa e britânicana Finlândia,23 a crise ministerial na França enfraquece “a confiança daopinião brasileira em prol dos aliados” apesar dos dois assuntos seremconsiderados positivos para o Brasil. Por um lado, a formação dogoverno Reynaud na França e, por outro, o pedido de retorno doembaixador soviético a Paris24 feito pela França. Este apelo será vistopela imprensa como o primeiro sinal de uma ação diplomática maisfirme e mais construtiva25 que ecoa o anticomunismo do Estado Novo.

A lentidão de certas decisões das instituições francesas contribuipara sustentar a opinião negativa dos detratores da democracia. Julgam-nas inapropiadas às circunstâncias, atribuindo à aplicação dessa doutrinapolítica a responsabilidade pela falta de vigor no andamento da guerra.Idéia, aliás, inspirada, em parte, na imprensa parisiense. No Brasil, afalta de eficiência da democracia francesa, em certos jornais, é oposta àforça alemã, “que continua a causar forte impressão”. Nesse contexto,a evocação de uma possível vitória alemã, feita pelo Ministro Aranha,faz pensar que a França e a Inglaterra devem encontrar rapidamenteum entendimento com Hitler, aceitando a Polônia e a Boêmia reduzidase a restituição das colônias à Alemanha.26

Pode-se agora imaginar quais as questões levantadas no Brasilsobre a derrota francesa, sobretudo, sabendo que a censura fazdesvanaecer o antagonismo franco-alemão.27 A neutralidade brasileirase exprime nessa censura, vista pela diplomacia dessa forma. O Jornaldo Comércio28 (jornal econômico de tiragem limitada, destinadoexclusivamente ao público mais culto e dirigido, principalmente, a

23 Assinatura, em Moscou, em 13 de março, do tratado de paz soviético-finlandês que,mediante grandes concessões territorias finlandesas, põe fim ao conflito começado em 30 denovembro de 1939. Os planos franco-britânicos de intervenção militar não são levados acabo.24 Amae, Am18-40, Brésil, 108, Jules Henry (Rio de Janeiro), 30.3.1940.25 Ver os comentários, em fins de março, em especial do Diario Carioca e do Radical (Rio deJaneiro).26 Amae, Am18-40, Brésil, 108, Jules Henry (Rio de Janeiro), 19 et 27.3.1940.27 Le général Dutra, ministre de la Guerre, et un certain nombre de militaires développent dessentiments xénophobes, en général, et anti-Etats-Unis en particulier. Restes de propagande allemande(Amae, LCNF, Brésil, 235, Gros (Londres), 09.2.1943).28 Il ne présentait en septembre 1939 que des dépêches de l’agence Havas.

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elite) e o Correio da Manhã, junto com outros orgãos da imprensa,tentam discretamente mostrar sentimentos francófilos. Os serviços daimprensa francesa e britânica seguem passo a passo a ativa propagandaalemã, combatendo – sem, no entanto, dispor de logística comparável.29

Mas o quadro geral é marcado por uma neutralidade tão estrita quantopossível, na qual a censura e a autocensura desempenham poderosopapel. A diplomacia francesa, otimista, estima que a leitura dos jornaisoferece “vaga noção” do sentimento vivenciado pela maioria, de“animosidade contra a Alemanha”.30 Isto porque a censura recebeuordens rigorosas de não deixar passar qualquer apreciação severa sobrea conduta da Alemanha. Deste modo, se o número de vítimas dasofensivas alemãs, comunicado pelos orgãos de imprensa, é elevadoautomaticamente é censurado.

Em meados dos anos 40, o uso da imprensa diária e das notíciasque chegam das agências estrangeiras é um claro indicador daneutralidade brasileira. Apesar de a utilização depender dos fatoresespecificamente comerciais, fornece a medida da francofilia brasileira,da implantação alemã e da presença norte-americana ainda modesta.Com exceção da United Press, que é a agência número um da capital.

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Suspeitado, contestado ou denunciado pelos diplomatasfranceses o alinhamento do Brasil com a política de Washington emmatéria de política européia, em particular com a francesa, é muitasvezes atestado em Washington, nos arquivos do Departamento deEstado, e no do Rio de Janeiro, nos Arquivos do Itamaraty ou naFundação Getúlio Vargas.31 Constam solicitações feitas pelo ministro

29 Amae, Am18-40, Brésil, 108, Bertrand (Porto Alegre), 11.9.1939.30 Amae, Am18-40, Brésil, 108, Bertrand (Porto Alegre), 11.9.1939.31 Aranha escreve, já em janeiro de 1940, em sua correspondência particular (conquantodestinada a um correspondente norte-americano próximo do poder, o que o leva talvez acarregar um pouco nas tintas): “A verdade é que, mais do que qualquer outro presidentebrasileiro, ele (Vargas) está 100% a favor da política pan-americana e da cooperação com osEstados Unidos em todas as questões internacionais” (CPDOC/FGV, Fundo Aranha, 0A40.01.02/3, 0875, Aranha a Drew Pearson, fim de janeiro de 1940).

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das Relações Exteriores, Aranha, para que as decisões políticas sejamtomadas alinhadas com Washington e, se possível, de forma simultanea.Vários governos latino-americanos preocupam-se em não demonstraresse comportamento.32

Para compreender as razões desse alinhamento é preciso, antesde tudo, definir as modalidades. Compreende-se perfeitamente oalinhamento das relações com o que resta da França depois da derrota,nas questões do reconhecimento da soberania da França que combateo Reich, e no estatuto do Governo provisório da República francesa.33

Após o desembarque anglo-americano de 8 de novembro de1942 na África do Norte e a ocupação da zona livre pelo exércitoalemão no dia 11, o diplomata acreditado declarou não depender maisde Vichy, que até então representara com certa circunspecção.34 Massua atitude é incomum, pois deseja continuar representando os interessesfranceses. Ainda em comportamento inabitual, apresenta-se aoMinistério das Relações Exteriores brasileiro perguntando:

“Devo demitir-me ? Devo abandonar a embaixada ? Deveentregar a embaixada para outra pessoa ? Devo representar Darlan ?.”35

O Itamaraty rapidamente pede conselho ao embaixador dosEstados Unidos36 . O pedido é transmitido com urgência ao secretáriode Estado. A primeira resposta chega no dia 4 de dezembro. ODepartamento de Estado explica que a questão em torno da diplomaciade Vichy receberá, em breve, uma resposta global.37 Portanto, o quese deve fazer com a França de Vichy que, num primeiro momento,

32 No México, por exemplo. Cf. Rolland, Denis. Vichy et la France libre..., op. cit., p. 323-324 esp.33 Outros elementos serão postos em evidência na tese de Hugo Suppo (Paris 3 - IHEAL,Guy Martinière dir.).34 Por causa das concepções morais e do sentimento que o levam a favorecer a influênciacultural francesa, deixa de transmitir as cartas de denúncia anti-semitas ou antigaulistas doconsul-geral em São Paulo, responde muito evasivamente à consultas sobre os dissidentes,comunicadas pela embaixada de Vichy em Washington, solicita promoções para os professoresque considera merecedores (mesmo quando simpatizantes da França livre). Não parece,contudo, deixar transparecer qualquer inclinação gaulista.35 NAW, RG 59, 701.5132/70, Caffery (Rio) ao Departamento de Estado, 30.11.1942.36 NAW, RG 59, 701.5132/70, Caffery (Rio) ao Departamento de Estado, 30.11.1942.37 NAW, RG59, 701.5132/100, do Departamento de Estado a Caffery (Rio), 4.12.1942.

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deu ordens para resistir ao exército anglo-americano na África do Norte?E com a França de Vichy que se mantem na França metropolitana ecom a outra França, na África do Norte, que por fim juntou-se à causavitoriosa dos aliados?

Sabe-se que, segundo Robert Murphy, Roosevelt nunca pôdedecidir-se : “Liberamos ou ocupamos a África francesa ?” 38

Enfim, Saint-Quentin, representante de Darlan, decide ficarna legação com o acordo das autoridades brasileiras (e das autoridadesnorte-americanas) – opção de muitos diplomatas em atividade naAmérica até esse momento e que pedem demissão. Os enérgicos protestosdos franceses livres e de seus simpatizantes não alteram nada. Semdúvida, a personalidade conciliadora e “acima das paixões” de Saint-Quentin teve algum peso tanto em relação às poderosas amizadesbrasileiras (Aranha) quanto à colônia que denuncia muito mais o governorepresentado do que seu próprio representante. Em 16 de março de1943 o governo brasileiro noticiou, sem qualquer declaração oficial epor intermédio de Vasco Leitão da Cunha, seu enviado especial emArgel, reconhecer Saint-Quentin como representante das autoridadesfrancesas de Argel.

Quando Saint-Quentin pede a adesão da África do Norte,Aranha é pouco entusiasta. Solicita, então, novamente a Caffery aproposta do Departamento do Estado nessa circunstância. Diante deuma resposta norte-americana evasiva, Aranha declara sem ambigüidadeao embaixador de Washington :

“Vocês decidem. Se sua gente na África do Norte quer que euo mande, retirarei minha objeção”. 39

Saint-Quentin fica no Brasil nas instalações da legação francesa.Encontra-se ainda no Brasil quando, em 1943, o Brasil reconhece oComitê Francês de Liberação Nacional (CFLN). Tenta então colaborarcom o representante francês livre, Ledoux.40

38 Cf. Gerbet, Pierre. Le relèvement, 1944-1949. Paris: Imprimerie nationale, 1991, p. 19(cita Murphy, Robert. A Diplomat among Warriors, Londres: Collins, 1964. p. 184-190).39 NAW, RG59, 701.5132/100, Caffery (Rio) ao Departamento de Estado, 18.2.1943.40 Cf. Amae, G.39-45, Alger CFLN-GPRF, Brésil, 647 (143), Saint-Quentin (Rio) a Argel,27.8.1943. Ao voltar da África do Norte, Saint-Quentin é deixado de lado por Argel em

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No dia 15 de junho de 1943 a Grã-Bretanha pedira ao Brasilque não reconhecesse o CFLN recentemente constituído. O Itamaratyconsulta Washington41 e quando constata a inércia norte-americana,reconsidera. Quando a Grã-Bretanha preocupada em organizar orelacionamento e o apoio francês depois da guerra42 pensa ter chegadoa um acordo de reconhecimento do CFLN aceitável pelos EstadosUnidos, consulta o Brasil. O Rio responde: “visto o interesse principaldos Estados Unidos e da Inglaterra [esta ordem é importante] nesteassunto, o governo brasileiro aceitará o ‘acordo’ que concordarão fazer”.43

A seguir, os Estados Unidos rejeitam o acordo de reconhecimentobritânico, o Foreign Office parece ter pedido secretamente ao Brasilpara instigar os Estados Unidos a voltarem atrás.

Moniz de Aragão (embaixador brasileiro) confidenciou-meter visitado, sob instruções do Itamaraty, no dia 30 de julho, SirAlexander Cadogan. Informou-lhe que o governo brasileiro estavapronto para reconhecer o Comitê de Liberação e que, também,surpreendia-se pelos prazos dados a Londres e a Washingtonpara solucionar esta questão. Sir Alexander explicou quais eramas dificuldades encontradas pelo Foreign Office nas conversas com

1944. É o que escreve Jean Chauvel : Saint-Quentin était à son poste à Rio de Janeiro jusqu’aujour où le gouvernement brésilien décida de ne plus reconnaître la représentation de Vichy. Cegouvernement lui témoigna beaucoup d’égards personnels et le président le chargea d’un message - je ne sais plus s’il était oral ou écrit - pour le général de Gaulle. Ce message ne put être acheminé àdestination, le général ayant refusé de recevoir Saint-Quentin et n’étant jamais revenu sur ce refus.Il ne rentre en France que grâce à l’amitié de l’ambassadeur d’Angleterre (Jean Chauvel, op.cit., p. 4-5).41 NAW, RG 59, 851.01/2276, Caffery (Rio de Janeiro) ao secretário de Estado, 15.6.1943.42 Cf. Duroselle, Jean-Baptiste. Politique étrangère de la France, l’abîme, 1939-1944. Paris:Imprimerie Nationale, Points, 1986, p. 629.43 Eden a dit à l’ambassadeur brésilien à Londres que la «formule» destinée à prendre en considérationla situation française (...) serait acceptable par les Etats-Unis. Il a demandé à l’ambassadeurbrésilien les commentaires du gouvernement brésilien. (NAW, RG 59, 851.01/2551, Caffery(Rio de Janeiro) ao secretário de Estado, 23-07-1943). O General Eisenhower e o ministroamericano em Argel pressionam Washington publicamente este reconhecimento, enquantoa Grã-Bretanha, diretamente pela voz de Anthony Eden, sugere ao Brasil, caso esteja deacordo, de informar os Estados Unidos que seguiriam a Grã-Bretanha se esta reconhecesseo CFLN (Embaixada do Brasil em Londres, documento de 23.7.1943, anexado a NAW, RG59, 851.01/2367, Caffery (Rio de Janeiro) ao secretário de Estado, 24.7.1943).

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o State Department a respeito desse reconhecimento. Exprimiu odesejo de informar o governo brasileiro e apoiou, com uma atitudeisolada, a ação empreendida pelo Foreign Office em convencer oState Department de que era preciso, sem mais demora, reconhecero Comitê.44

Imediatamente, Aranha se abre com os Estados Unidos ecomenta sobre as pressões britânicas. Pede-lhes que guardem essasconfidências em segredo, assinalando que não se pronunciariam sobretal decisão.45 Washington agradece ao Rio e garante a Aranha quecomunicarão qualquer evolução. O que será feito.

Afirmando a solidariedade pan-americana e o respeito ao seualiado brasileiro, Washington diz a seu embaixador que o governobrasileiro será informado46 “se possível antes que os termos tornem-sepúblicos.” O subsecretário de Estado completa: “queiram, por favor,informar confidencialmente Aranha do que está acontecendo e exprimir-lhe todo meu reconhecimento pela sua elogiável cooperação” (alteradode próprio punho por Hull para “atitude cooperativa”).47 No dia 26de agosto de 1943,48 os Estados Unidos reconhecem parcialmente oCFLN; que também, no mesmo dia, será reconhecido com a mesmaprudência terminológica pelo Brasil. Os Estados Unidos admitem oCFLN “como organismo que governa os territórios ultramarinosfrancês reconhecendo sua autoridade”.49 O Brasil reconhece o CFLNcomo um “órgão qualificado a dirigir o esforço francês de guerra, aassegurar a cooperação interaliada e a gestão da defesa de todos os

44 Iniciativa confirmada por Amae, G.39-45, Alger-CFLN-GPRF, Brasil, 647 (140),transmitida por Dayet, 12.8.1943.45 NAW, RG 59, 851.01/2593, Caffery (Rio de Janeiro) ao Secretário de Estado, 31.7.1943.Washington informa ao governo brasileiro, em resposta, que, na realidade, contrariamenteao que teria sido declarado pelo embaixador brasileiro em Londres, nenhuma decisão teriasido tomada.46 NAW, RG 59, 851.01/2666A, Hull, subsecretário de Estado, a Caffery (Rio de Janeiro),6.8.1943.47 NAW, RG 59, 851.01/2666A, Hull, , subsecretário de Estado, a Caffery (Rio de Janeiro),6.8.1943.48 Cf. Jean-Baptiste Duroselle, Politique étrangère de la France, L’abîme, op. cit. p. 632.49 Cf. Jean-Baptiste Duroselle, Politique étrangère de la France, L’abîme, ouvr. cité, p. 613-614.

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interesses da França” .50 Os termos brasileiros são mais flexíveis do queos termos usados pelos Estados Unidos, mas estão bem longe daquelesescritos na nota de reconhecimento soviético. Esta é a margem deautonomia da política brasileira da época quanto aos interesses europeus.Sobretudo lhe é anexada uma amável declaração muito parecida como texto da nota britânica.51 Declaração do secretário-geral das RelaçõesEstrangeiras Francófilas, Velloso: o CFLN é reconhecido como “o únicoorganismo qualificado para representar os interesses da França”. 52 Em11 de outubro de 1943 é levantada a hipoteca de Saint-Quentin sobrea unidade da colônia francesa. Jules-François Blondel é nomeadorepresentante do CFLN.53

Examinando a relação com as autoridades francesas, percebe-se que os Estados Unidos estabeleceram com sucesso as relações Europa-América. O Rio de Janeiro, preserva oficialmente o segredo mantidocom Londres e transmite a Washington informações sobre a Europa.Assim, o Brasil manifesta solidariedade e preserva seus vínculospredominantes. Segundo os arquivos americanos, Aranha é o maisqualificado na cooperação entre Rio de Janeiro e Washington, enquantoVargas guarda alguma distância (em atitude complementária?).54 Comoa Grã–Bretanha informa aos Estados Unidos da posição dos aliadoslatino-americanos, Washington mostra-se o denominador comum entreEuropa-Brasil.

Outro exemplo confirma o caráter duradouro do alinhamentobrasileiro. Depois do desembarque na Normandia, é notificada ao

50 NAW, RG 59, 851.01/2773, Caffery ao Departamento de Estado, 27.8.1943 e anexo a851.01/2932 du 10.9.1943, Aranha a Caffery (Rio de Janeiro), s.d.51 Cf. Jean-Baptiste Duroselle, Politique étrangère de la France, L’abîme, op. cit., p. 614.52 Cf. Amae, G. 39-45, Alger CFLN-GPRF, Brésil, 647 (143), Saint-Quentin, 27.8.1943;(145), Vasco da Cunha (missão especial do Brasil na África do Norte) a Massigli, 28.8.1943& (148-157), 8.9.1943.53 Amae, Alger CFLN, 751, Ledoux à Massigli, 11 et 12.10.1943.54 Alguns sinais externos são, porém, comuns : Aranha convida para almoçar Saint-Quentin,antigo ministro de Vichy tornado representante de Darlan e, em seguida, de Giraud, antesde sua partida para Argel, onde se pôs à disposição do CFLN; Vargas o recebe em audiênciade despedida no palácio presidencial (NAW, RG 59, 701.5132/121, John F. Simmons (Rio)ao Departamento de Estado, 28.9.1943.

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Itamaraty, no dia 9 de junho, a criação do governo provisório daRepública Francesa (GPRF, ordem de 3 de junho de 1944). OSecretário-Geral Velloso indica ao embaixador norte-americano queserá preciso anunciar à imprensa este assunto “embora desejasse abster-se de qualquer ação fora da conduta política de Washington”.55 É oque Velloso insinua também ao representante de Argel. Entre os dias 8e 20 de junho os governos aliados em exílio (checoslovaco, polonês,belga, luxemburguês, iugoslavo, norueguês) reconhecem o GPRF. Ogoverno brasileiro, neste momento, enfrenta forte tensão interna.Assinala a Washington seu “total acordo” com a posição americana e“não admite qualquer mudança na nomeação do Comitê francês”. Ageem função disto.56 Por outro lado, apesar das primeiras declarações deVelloso e conforme à atitude desejada pelos Estados-Unidos, não háresposta oficial do governo brasileiro, nem qualquer declaração àimprensa. Em particular, afirma somente querer tratar o GPRF deacordo com a notificação que lhe fora feita em Argel.57 Em outraspalavras, uma vez mais o pragmatismo não exclui a cortesia.

O representante brasileiro reside em Paris.58 Em outubro, aembaixada norte-americana conversa com o novo ministro das RelaçõesEstrangeiras sobre como o governo brasileiro reconhecerá o CFLNcomo governo de facto. A resposta é clara “Deixamos a iniciativa dasrelações políticas européias aos Estados-Unidos. Esta sempre foi a nossapolítica”.59

Como no reconhecimento do governo italiano, o Brasil, únicoEstado latino-americano militarmente empenhado ao lado dos Aliadosna Europa,60 pede que seja informado com antecedência da decisão

55 NAW, RG 59, 851.01/3928, Caffery (Rio de Janeiro) ao Secretário de Estado,10-06-1944.56 NAW, RG 59, 851.01/4000, sans signature (Rio de Janeiro) ) ao Secretário de Estado,17-06-194357 Amae, G. 39-45, Alger CFLN-GPRF, Brésil, 647 (156), Blondel (Rio), 29.6.1944.58 NAW, RG 59, 851.01/9-2944, Donnelly (Rio) ) ao secretário de Estado, 29.9.1944.59 NAW, RG 59, 851.01/10-344, Translation of a cable received from acting Minister of ForeignAffairs.60 Em outubro, o General Dutra, ministro da Guerra, ao início das hostilidades suspeitadode tender para o Eixo, visita o corpo expedicionário em campanha na Itália.

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norte-americana para que possa tomar a mesma decisão.61 Assim, aosolhos da opinião pública, a comunicação mostra-se menos sujeita asuspeitas de subordinação. No dia 23 de outubro de 1944, no inícioda tarde, o CFLN é reconhecido de jure pelo Brasil, pela Grã-Bretanha,pelos Estados-Unidos e pela União Soviética como governoprovisório.62 No início de 1945, o Chile, o Peru, o Equador, a Colômbia,o México, Cuba, e o Brasil são os sete Estados latino-americanos quemantém missão diplomática em Paris (todos os países da América Latinareconhecem o GPRF com exceção da Argentina, do Paraguai e doPanamá).63

E fácil notar o alinhamento político brasileiro nas “relaçõeseuropéias”. Mas como explicá-lo ? Por que se alinhar ? Examinando asrelações bilaterais entre os Estados Unidos e o Brasil, o historiadornorte-americano Franck D. MacCann tratou numa perspectiva bilaterala questão da aliança brasileiro-americana no período de 1937-1945.64

Em um primeiro momento, o Brasil parece exprimir a vontadede desempenhar, ao lado dos Estados Unidos, o papel de potência sul-americana. Algumas explicações históricas (o caminho traçado pelapolítica do barão do Rio Branco entre 1902 e 1912) situam este anseionuma tradição brasileira. Algumas explicações geográficas (o Brasil,“trampolim para a vitória”) mostram que o Brasil é uma escala necessáriano começo da guerra, um ponto de auxílio às tropas britânicas que vãopara o Egito. É preciso considerar também os fatos que fazem comque a estabilidade brasileira faça parte dos projetos norte-americanos.Apesar do regime e da simpatia de certos dirigentes serem vistos comosuspeitos, tanto em relação aos Estados-Unidos, quanto ao resto domundo não americano, a partir de 1942-1943, os diplomatas de Vargasraciocinam em função de três principais pontos de referência65:

61 NAW, RG 59, 851.01/10-644, Norman Armour (Office of American Republics Affairs),6.10.1944.62 NAW, RG 59, 851.01/10-2244, 22.10.1944 e 851.01/10-2444, 24.10.1044, Donnelly.63 Février 1945. Cf. Amae, Am 45-52, d. gnx, 77 (01), s.n., 23.2.1945.64 Franck D. McCann, Jr., The Brazilian-American Alliance, 1937-1945, Princeton NJ,PUP, 1973.65 Cf. Franck D. McCann, op. cit..

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(a) a partir de 1943 e, sobretudo, de 1944, é preciso gerar opoder pela abertura democrática e conter a pressão popular,sobretudo a que diz respeito ao promotor da Carta Atlântica;

(b) é preciso preparar economicamente o pós-guerra,encontrando uma posição ótima no campo ocidental e nocampo dos vencedores;66

(c) o Brasil deve, enfim, transformar-se numa potência militarregional: os Estados Unidos fornecem armamento aoBrasil, esse, em contrapartida, apoia nas propostas norte-americanas.67

Entretanto, para compreender o alinhamento político brasileirocom os Estados-Unidos bem como a política externa é preciso tambémconsiderar que a França não tem mais peso. Até mesmo após alibertação, a França não desempenha papel signifitivo ao lado dos grandesda política internacional. Se de Gaulle consegue restaurar a políticaestrangeira por meio da idéia de uma potência francesa,68 Paris nãoparticipa das decisões dos três grandes sobre a conduta das operaçõesmilitares e sobre o futuro dos países vencidos. De Gaulle não éconvidado a Yalta (4-11 de fevereiro), nem a Potsdam (17 de julho a 2de agosto 1945). A prudência brasileira corresponde à conscientereavaliação do poder de um país. A França em 1944-1945 não temmeios econômicos, nem financeiros, nem militares para retomar suaantiga posição.

Para compreender o alinhamento brasileiro deve-se acompanharas explicações do pesquisador norte-americano cujos argumentos

66 Essa preocupação econômica pode ter influenciado, antes de 1942, no sentido dapreservação de uma neutralidade aparente : na correspondência do embaixador brasileiroem Berlim, a preocupação econômica, juntamente com o sentimento de uma provávelvitória da Alemanha no fronte ocidental, reforça a idéia da manutenção de boas relaçõescom a Alemanha (CPDOC/FGV, 0A, 400102/3, 0911, Cyro de Freitas-Valle a GetúlioVargas, 25.8.1941). Segundo os trabalhos de R.A.S. Seitenfus (op. cit.), de acordo com osarquivos alemães, o embaixador em Berlim parece, porém, não acreditar na vitória alemã.67 Moura, Gerson. Sucessos e Ilusões: Relações Internacionais do Brasil durante e apos a SegundaGuerra Mundial, Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1991, p. 12.68 Tratado de Aliança Franco-Soviético firmado por Bidault e Molotov en 9 de dezembrode 1944.

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afirmam que a intervenção dos Estados Unidos na guerra resultariadas estratégias relativas à América Latina e não à Europa.69 DavidG. Haglund, como outros, observa que a infiltração e a progressão, naAmérica Latina, das doutrinas e dos movimentos simpatizantes dofascismo europeu foi amplamente exagerada na percepção dos própriospaíses e dos Estados Unidos.70 A importância de sua conclusão parece-nos redutora, porque é dificil pensar que a doutrina continental expulsouda mente dos políticos norte-americanos todos os elementos de umacultura herdada da Europa, ainda que fossem indiferentes à tenazestratégia dos totalitarismos instalados na Europa e na Ásia mesmoconsiderando que a América Latina poderia representar uma terceirahaste, mais próxima e, portanto, menos suportável do que as outrasduas.

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Roger Bastide viveu no Brasil durante a guerra. Amplificandoos possíveis efeitos, constatou essa “marca” norte-americana na políticaexterior brasileira. Escreve: “O Brasil poderia desempenhar na Américado Sul o papel de líder como os Estados Unidos desempenham noNorte”. E “afinal o Brasil se sente política e economicamente maispróximo da América do Norte anglo-saxã do que do resto da Américado Sul”.71

Para o Brasil do Estado Novo, a relação com a França é útil.Oferece um pouco de latitude e torna possível algumas nuanças noque diz repeito ao alinhamento político com Washington. Proporcionaa afirmação hemisférica buscada e participa da prioridade dada aodesenvolvimento econômico: uma constante implícita na políticaexterna brasileira da época. Além dos sinais tradicionais de amizade

69 David G. Haglund. Latin America and the Transformation of U.S. Strategic Thought, 1936-1940, Albuquerque, 1984.70 Orazio Ciccarelli, “Fascism and Politics in Peru...”, art. cit., dá um bom exemplo dessarepresentação, dentre os comunistas mais perigosos, de Raúl Haya de la Torre, “un hommequi était tout sauf révolutionnaire”, no Peru.71 Bastide, Roger. Brésil, terre des contrastes. Paris: Hachette, 1957. p. 338-339.

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entre a França e o Brasil, e de modestas variações em função dosresponsáveis ministeriais, a referência à França pode constituir umargumento útil, numa diplomacia brasileira pragmática e na gestão desua opinião pública.

O Brasil pode, então, antes de tudo utilizar a França comoargumento concorrencial. A referência à França e às relações com ela são,de fato, utilizadas pelo Brasil como argumentos destinados a diversificaras relações exteriores do país. Washington e a França de Londres não seequivocam. Um informe da França livre destaca, ainda que a avaliaçãodo potencial francês pareça inadequada:

Toda a força de nossa posição no Brasil repousa agora noelemento de equilíbrio que representamos no futuro paracontrabalançar a influência dos Estados-Unidos. Numerososdirigentes brasileiros temem ver o Brasil se transformar numEgito da América do Sul. Na medida que, mantendo elementosculturais e tendo uma política de entendimento amistosa, serápossível dar a impressão de que o Brasil terá na França apoio nosajustes do pós-guerra, entendimento que parece fácil de seralcançado. A maneira anterior, um pouco protetora de nossaatitude para com o Brasil, deve ser totalmente esquecida.72

A utilização, a ativação das relações franco-brasileiras podetambém, em certos casos, servir como álibi, como derivativo para aopinião pública brasileira frente à presença crescente dos Estados Unidos.

A Companhia Teatral de Louis Jouvet realiza em turnê no Brasilem 1941 e em 1942, chegando ao Rio de Janeiro no final de junho1941. Alguns possuem passaportes diplomáticos e outrosadministrativos. Trazem cenários, figurinos e até iluminação do palco,mais de 40 toneladas de material.

Foram mandados em missão oficial de propaganda culturalsob o patrocínio oficial da França de Vichy. Além disso, não se trata de

72 Relatório do Professor André Gros ao Comissário Nacional da Instrução Pública (apropósito do projeto de criação de um cargo de conselheiro cultural residente em Montevidéu,Amae, LCNF, Brésil, 235, Gros (Londres), 9.2.1943.

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um assunto de menos importância, porque o governo de Vichy gastoucerca de 80% do orçamento nacional para essa ação cultural no exteriornos anos 41 e 42.

Para Vichy isso tem grande importância. Para o Brasil não épouca coisa. Jouvet passou um ano no Brasil, principalmente no Rio,com a proteção do DIP, que lhe proporcionou apoio considerável,desproporcional comparativamente aos demais espetáculos estrangeiros.

A ampla importância atribuída à Companhia Teatral de LouisJouvet pelo Estado Novo e à organização de uma segunda série deapresentações em 1942 sob o patrocínio direto da primeira-dama, como apoio de Lourival Fontes, tem a ver com dupla vontade de Vargas,externa, mas, sobretudo interna:

• externa: a França representa em 1941 uma forma mais oumenos intermediária (perto do Eixo, na atualidade, mascom um passado bem diferente, difícil de esconder) entreo Eixo e as democracias, como país parcialmente ocupado,no qual o regime tem claras tendências autoritárias e afirma,sem ambigüidade, sua vontade de colaboração. Prestar apoioa esse tipo de regime pode contribuir para marcar aindependência da política exterior do Brasil sem riscoporque, a França não é mais uma potência internacionalimportante.

• interna : isso é bem mais importante. Para o Estado Novo,no momento de mudar progresivamente, por pragmatismoregional, a posição internacional do Brasil em relação àsdemocracias, Vichy e sua delegação cultural oficial(a Companhia Teatral de Jouvet) desempenham papelimportante. Nesse mesmo período os Estados Unidos usamas bases aéreas do Nordeste para participar do esforço deguerra inglês; a cultura norte-americana entra com força noBrasil (ver o Zé Carioca) no quadro da Good Neighbourpolicy; as companias artísticas estrangeiras não vêm ao Brasildevido a guerra (músicos, balés, óperas, teatros, circos…não podem viajar da Europa para o Brasil) e ainda a presença

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dos EUA se reforça também por já não haver concorrência.Nesse ambiente, a companhia teatral fornece ao EstadoNovo uma distração para a opinião pública (tanto das elitesquanto do povo em geral) de muita importância. Diversãopara ocultar a negociação relativa às bases dos nacionalistas,que se manifestava na relação mantida com a Europatotalitária. Diversão para manifestar, em geral, aindependência cultural mantida pelo Brasil. Diversão,também, de grande importância para a opinião públicafavorável às democracias, porque uma companhia de teatrofrancês, mesmo com o apoio de Vichy, ainda simboliza acultura supostamente universal da França, das Luzes e daRevolução de 1789 (ainda que, anteriormente a RevoluçãoFrancesa não era bem-vinda no Brasil do Estado Novocomo se viu em 1939, no sesquicentenário dessa Revolução).Como Vichy recusou oficialmente toda a herença dessaRevolução e da República, tem-se também menosproblemas. O grupo de França livre no Rio e em São Paulodecidiu não tomar iniciativa alguma contra Jouvet, quecontava com o apoio oficial brasileiro, porque isso podiaser contraproducente, já que Jouvet era visto como aencarnação de uma França considerada imortal, queparticipava inevitavelmente das Luzes e dos princípiosfundamentais defendidos pela Revolução de 1789. Aomesmo tempo, o símbolo útil da França republicana, paraa diversificação das relações culturais do Estado Novo, juntocom a proteção inglesa, impediu uma reação forte do DOPScontra a França livre.

Por vezes argumento, por outras, álibi para a opinião publica, areferência da França na política brasileira pode ser também, maissimplemente, eco de uma amizade tradicional, a expressão de umafrancofilia difícil de definir precisamente.

Para Vichy, como amiúde para a França livre, o comportamentooficial brasileiro age de forma que “todas questões de ordem individual

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sejam decididas com o forte desejo de facilitar as coisas ou de prestarserviço”. À margem da política, a amizade oficial real e a simpatia sãodemonstradas o quanto possível, como no caso dos oficiais da missãomilitar francesa,73 ou dos professores franceses nas universidadesbrasileiras74 : após o armistício, o governo brasileiro oferece a essesúltimos a nacionalidade brasileira e, quando Vichy já não tem maiscomo financiá-los, assume os custos.75

Em fins de março de 1943, a imprensa publica um comunicadode Saint-Quentin: juntamente com os demais funcionários da legaçãoe dos consulados de São Paulo e de Porto Alegre, recusando-se a cumprira ordem de Vichy de se retirar do Brasil (sem romper relaçõesdiplomáticas). Saint-Quentin enfatiza as atenções pessoais que asautoridades brasileiras sempre reservaram aos funcionários franceses esua constante solicitude para com todos os franceses, em geral.76 Parapoupar a França, protege-se primeiramente o governo de Vichy,mediante a censura à imprensa brasileira. Informa-se que, a pedido dorepresentante de Vichy, o escritório da França livre local sofreu pelomenos uma diligência policial, na qual foram apreendidos documentos.Medida clássica de intimidação (as publicações das colônias estrangeirasde oposição a seus governos de origem foram reprimidas desde o iníciodos anos 3077), destinada sobretudo a indicar os limites a não seremultrapassados. Apesar das inúmeras observações oriundas de suaembaixada em Vichy, o Brasil busca proteger um governo que continuaa considerar legítimo. No mesmo espírito, quando a antiga embaixada

73 Dirigida, no início dos anos 20, pelo General Gamelin.74 Hugo Suppo indicou o itinerário desses professores franceses nas universidades brasileirasdurante a guerra (“Intelectuais e artistas nas estratégias francesas de ‘propaganda cultural’no Brasil (1940-1944)”, Revista de História, São Paulo: USP, p. 75-88).75 Em 1942, no Rio de Janeiro, Fortunat Strowski, Jacques Lambert, Francis Ruellan, RenéPoirier, André Ombredane, Antoine Bon, André Gros. Em São Paulo, Paul Arbousse-Bastide, Jean Gagé, Paul Hugon, Roger Bastide, Alfred Bonzon, Jean Maugüé et PierreMonbeig (MRE-B, 84-4-3, França, Notas recebidas, 7.11.42). Este último só conclui suatese sobre Pionniers et planteurs de São Paulo em 1949.76 Amae, G. 39-45, LCNF, Brésil, 235, Ledoux (Rio), 30.1.1943.77 Em 1934, a embaixada da Itália obtém o fechamento do jornal antifascista Il Corriere delPopolo d’Italia dirigido par C.A. Limongi. Cf Cervo, Amado Luiz. As relações históricas...,op. cit., p. 135.

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de Vichy, após o desembarque na África do Norte, se coloca à disposiçãode Darlan e, em seguida, de Giraud, as autoridades brasileiras buscam,em 1943, levar os simpatizantes brasileiros da França livre a associar-sea seus antigos opositores vichista.78 Essa intenção repercute de formaunânime na imprensa sem dúvida mais devido à amizade pela Françaidealizada do que por imposição da censura:

“Para o Brasil há uma única França e não se deseja que essaFrança deixe de ter aqui, na pessoa de seu embaixador, uma chamavigilante e amiga.”79

A diplomacia francesa estende o alcance dessa vontade deunânime:

Os brasileiros não desejam tomar partido, mas essa atitudetem um significado mais profundo. Os elementos afetivos sãofavoráveis à França livre; a elite (duas mil pessoas,aproximadamente), não quer causar incômodo a qualquer francêsporque não se critica um amigo e qualquer francês, por sua simplesnacionalidade, já é um amigo. Esse aspecto essencial explica ahistória das relações do Sr. de Saint-Quentin com o Itamaraty(discurso do Ministro Oswaldo Aranha sobre a impossibilidadede romper com a França – e a situação do Sr. Ledoux.80) Não sedeve esperar, pois, uma tomada de posição das autoridades.81

O elemento afetivo aparece, pois, como explicação da políticabrasileira, mesmo restrito aos limites do alinhamento com Washington:nenhuma tomada de posição à França livre é possível enquanto Vichye, depois as primeiras autoridades de Argel, dispõe de um representanteno Rio – o que “Washington, aliás, impediria”.

78 Jornal do Comercio: “Les hauts fonctionnaires français qui refusèrent de quitter notre payspeuvent être certains que leur geste trouvera dans chaque cœur brésilien une chaleureuse répercussion.La réaction patriotique commencée avec la virile et historique proclamation du général de Gaullese poursuit de jour en jour plus vive et poignante. La France se retrouve”. 2.2.1943: Jornal doBrasil (apoiou com regularidade o representant ede Vichy) : “Saint-Quentin a rétabli lavieille tradition de la France”.79 A Manhã.80 Primeiro delegado do CNLF para o Brasil, o Uruguai e a Argentina.81 Amae, LCNF, Brésil, 235 (169), nota sobre a situação política, Gros, 9.2.1943.

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Com efeito, as relações do governo brasileiro com a Françadependem também do ministro brasileiro das Relações Exteriores. Naprimavera de 1944, antes da invasão da Normandia, o CFLN tentafixar, com os aliados, as modalidades da administração da França apósa liberação. As tentativas de Koenig junto aos ingleses ficam semresposta. O apoio do governo brasileiro é então solicitado pelo CFLN.No seio desse governo, Aranha é mais favorável a essa negociação doque seu Secretário-Geral Velloso. Este declara preferir abster-se dequalquer iniciativa nesse sentido.82 Por força da hierarquia administrativa,o governo afinal passa para Washington, com nota de apoio, o pedidodas autoridades francesas de Argel.83

Sem jamais desejar prejudicar os Estados Unidos, Aranha praticauma política que, mesmo querendo que a França retome sua posiçãointernacional, prefere apoiar de Gaulle ou alimentar uma francofiliade boas lembranças do que fazer frutificar as vantagens obtidas porsuas posições pró-aliados e por sua participação efetiva na guerra. Firmarposição apenas em setores secundários, aproveitar da concorrência nocontexto em que se encontra e diversificar os interlocutores internacionaisno pós-guerra que se anuncia – eis o comportamento brasileiro. Aranhaafirma assim a área de autonomia da potência brasileira.

Oswaldo Aranha é, desde sua nomeação em março de 1938,mais favorável aos Aliados84 do que a maior parte das autoridades doEstado. Essa designação constitui, aliás, “uma espécie de contrapeso nointerior de um governo com integrantes simpatizantes das potênciasdo Eixo”85. No entanto, declara-se, por exemplo, em 1942: “A Françaestá unida aos brasileiros por liames seculares de cultura. Somos filhosespirituais da França»,86 como revela sua política, Aranha é sem dúvidamais americanófilo do que francófilo. Entende-se, assim, que Vargas

82 NAW, RG 59, 851.01/3732.83 NAW, RG 59, 851.01/3786, John F. Simmons (Rio de Janeiro) ao Secretário de Estado,3.9.1943 e texto da nota em anexo.84 A imprensa de Vichy admite sua francofilia. Cf. a descrição elogiosa publicada ao términoda Conferência Pan-Americana do Rio pelo Midi-Soir, 4.2.1942 e MRE-B, 38-2-13, 4.2.1942.85 Cervo, Amado Luiz. & Bueno, Clodoaldo. História da política exterior do Brasil. São Paulo:Ed. Ática, p. 226.86 Aranha à imprensa norte-americana, 11.11.1942, MRE-B, 84-4-3.

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tenha temido, ao mantê-lo nas Relações Exteriores, que os EstadosUnidos o colocasse no poder.

A imprensa e os arquivos conservam, todavía, declaraçõesfrancófilas públicas que não eram indispensáveis. Uma vez, ao menos,Aranha foi além da necessária “aliadofilia”, levado por seus sentimentosfrancófilos e por sua amizade pelo aristocrático representante de Vichy.87

Quando Saint-Quentin, logo após o desembarque na África do Norte,declara que já não mais representa Vichy, mas Darlan, com quem osAliados negociam, o Itamaraty dá a impressão de aceitar, de repente,essa decisão pessoal de transferência de legitimidade, sem queWashington tenha sido consultado. No entanto, após algumas críticasfavoráveis à França livre, a imprensa brasileira governava – isto é, nestecaso, próxima a Presidência – divulga rapidamente “de que não é lícitoa um embaixador transferir, por si mesmo, a legitimidade de representara soberania e reivindicar a continuidade como representante de umagente de fato.”88 A pedido, provavelmente da Presidência da República,Aranha deve retratar-se. O Ministério das Relações Exteriores dá aimpressão de “começar a se dar conta de ter dado um passo em falso ede querer voltar atrás.”89 Nenhuma comunicação sobre Saint-Quentin,nenhuma decisão publicada.

Esse passo em falso é, todavia, caso isolado. Em abril de 1944, oCFLN pressiona o governo brasileiro para obter seu apoio, poisWashington recusa a responsabilidade de administrar os futurosterritórios libertados na França. O ministério brasileiro responde: “nãoestamos convencidos das razões arroladas pelo Comitê”.

87 A leitura da correspondência diplomática conservada tanto no palácio do Itamaraty (38-2-7 a 13, 38-3-1, 39-1-10, 39-3-14 a 16) quanto na Fundação Getúlio Vargas (FundoAranha de l’Acervo CPDOC), os laços de estima e de amizade entre os dois homens, ambosantigos diplomatas em Washington, parecem desempenhar papel importante nessa“derrapagem” controlada com a idéia de não deixar este país, a França, sem representaçãooficial.88 Jornal do Comercio. 5.2.1943.89 “Je sais que dans une conversation à ce sujet avec l’ambassadeur des Etats-Unis il s’efforça deminimiser l’importance de l’acquiescement donné par le ministère des Affaires étrangères à ladéclaration de Saint-Quentin. De plus j’ai été informé confidentiellement que depuis sa démission,Saint-Quentin présenta une note verbale que le ministre refusa d’accepter” (Amae, LCNF, Brésil,235, Ledoux (Rio), 6.2.1943).

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90 Secretaria de Estado das Relações Exteriores (Rio de Janeiro) a Vasco Leitão da Cunha,representante brasileiro perante o CFLN, MRE-B, 39-3-16.

Como “a França recebeu toda a ajuda necessária dos Estados Unidose de seus aliados”, o CFLN deve submeter-se a uma decisão democrática,somente então será reconhecido como governo francês.90 O Brasil sealinha, pois, sem hesitações, com as posições norte-americanas.

Assim, ao final da primeira metade do século XX, o governobrasileiro emite, como a maior parte das elites do país, sinais deperseverança de seu liame sentimental com a França. Esse vínculo érevigorado pela figura do General de Gaulle, construida progresivamentecomo emblemática. Esse personagem é dinamizado pela libertação doterritorio francês e, em particular, de sua capital. Nada de muitodiferente do se pôde constatar nos parágrafos anteriores, exceto que seprecisa, na paisagem esboçada pelas relações internacionais dos paíseslatino-americanos, a idéia da transposição da França de um primeiroplano, que ela poderia pretender partilhar com outras potências, a umplano bem secundário, utilitário. A conduta da política exteriorbrasileira, articulada, pragmática e prioritariamente pelodesenvolvimento econômico, aparece, ao final da Segunda GuerraMundial, mais hierarquizada do que nunca: se a França não está excluída,a política françesa (e, para além dela, a européia) do Brasil estádeterminada, em suas linhas e limites principais, antes de mais nadapor um acordo, quanto aos pontos essenciais com a política dos EstadosUnidos. A passagem de uma dominante cultural e política para umaafetiva e cultural da referência à França acompanhada dois outrosfenômenos: a perda da relativa autonomia das relações franco-brasileiras,e a redução da França, à condição de um argumento. Esse argumentoestá destinado a manter uma pluralidade aparente das fontes da culturaerudita e, se usarmos termos diretos, a recorrer à concorrência – inclusive,ulteriormente, se necessário, em matéria econômica.

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Antonio J. Barbosa*

Porque não se estuda o Parlamento ignora-se sua atuação, e porque esta é ignorada, étida por irrelevante ou desnecessária.

Amado Cervo

Quando, em 1981, Amado Cervo publicou O ParlamentoBrasileiro e as Relações Exteriores (1826–1889), estava aberto o caminho,raramente percorrido, para o aprofundamento da investigação científicaem torno do papel do Legislativo brasileiro na formulação, execução eacompanhamento da política externa do país. Trabalho de fôlego que,por suas qualidades intrínsecas, tornou-se obra clássica na historiografiabrasileira das relações internacionais, ainda não encontrou quem desseprosseguimento a esse esforço de pesquisa e análise, na sempre bem-vinda direção da síntese, agora focalizando o período republicano.Todavia, começam a se multiplicar entre nós dissertações e teses que,abordando temas específicos ou épocas bem delimitadas, trazem à tonainteressantes estudos sobre a participação do Congresso Nacional napolítica internacional que o país tenta construir ao longo de sua maisque centenária república.

Examina-se, aqui, a forma pela qual um tema normalmenterelegado a plano secundário na história republicana brasileira – a políticaexterna – foi tratado pelo Congresso Nacional, entre 1961 e 1964, demodo a inscrevê-lo no primeiro plano da agenda política do país. Operíodo escolhido corresponde à etapa final do regime instaurado emfins de 1945, com a queda do Estado Novo de Vargas, assinalada pelacrise aguda que fez definhar o governo João Goulart.

* Doutor em História das Relações Internacionais, professor do Departamento de Históriada Universidade de Brasília e consultor legislativo do Senado Federal.

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A base documental sobre a qual assentou-se a pesquisa éconstituída pelos discursos, apartes e debates que, especialmente naCâmara dos Deputados, incandesceram o clima de viva discussão queenvolvia parcela expressiva da sociedade brasileira nos primeiros anosda década de 1960. Assim, foi possível situar a Política ExternaIndependente, implementada nos governos Jânio Quadros e JoãoGoulart, como protagonista de um tenso momento da históriabrasileira, cuja inédita participação popular conferiu-lhe inegávelsingularidade, que culminou com a ruptura de 1964.

Embora de reduzida dimensão temporal, o período estudadoé denso de significado. Um tempo cronologicamente curto, mas querevolve estruturas, crenças, práticas e interesses edificados ao longo dahistória brasileira. Embora tenha no golpe de 64 sua grande referência,este artigo almeja não mais que desvelar a forma pela qual se deu, nointerior do Parlamento, a discussão em torno da política externa, fatoque, além de inusitado, mostrou-se decisivo para fermentar ainda maiso debate político daquela conjuntura de acirrada polarização ideológica.

Nessa perspectiva, não busca dissecar a formulação e aimplementação da política externa brasileira desse período, o que levariaa análise para o campo de atuação dos responsáveis diretos por suaexecução. Aqui, quem assume o primeiro plano é o “olhar armado”que o Legislativo lançou sobre as questões de política internacional eas relativas à atuação da chancelaria brasileira.

Parte-se de uma hipótese central: a Política ExternaIndependente, esboçada no efêmero período de governo Jânio Quadrose consolidada nos tensos anos de João Goulart, prestou-seadmiravelmente aos embates que, em um contexto de enfrentamento,levaram ao colapso do regime inaugurado em 1946. A essa questãocentral agregam-se outras, conquanto insatisfatórias sejam muitas dasrespostas possíveis de serem dadas. Entre as indagações mais evidentes,salientam-se: como o Congresso Nacional entendia a inovadora políticaexterna apresentada por Jânio Quadros–Afonso Arinos? Que forçaspolíticas representadas no Parlamento, sobretudo após as emblemáticaseleições de 1962, aglutinavam-se para defendê-la ou para contestá-la?Como os parlamentares entendiam o contexto internacional da época

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e em que medida dispunham de informações a partir das quais pudessempropor ações de política externa?

O primeiro passo foi selecionar, nas inesgotáveis fontesprimárias produzidas pelo debate parlamentar, com centenas deintervenções de oradores que se revezavam na tribuna, o materialcomprobatório do papel desempenhado pelas questões internacionaise pela condução da política externa brasileira naquele conturbadocontexto que antecede a ruptura institucional. De seu exame, foi possíveldemonstrar, por exemplo, a manipulação ideológica do tema da políticaexterior praticada pelo Brasil na primeira metade da década de 1960pelas forças políticas que, no Congresso Nacional, combatiamtenazmente o reformismo que Goulart procurava simbolizar e conduzir.Fizeram-no de modo a acrescentar à crise final do regime novas e maispropícias condições ao desfecho golpista.

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Os acontecimentos que convulsionaram o país na primeirametade dos anos 60 e que culminaram com os atos de força quedepuseram Goulart, não podem ser adequadamente compreendidossem que se leve em conta o processo de transformação experimentadopelo Brasil desde 1930. Com efeito, a Era Vargas (1930-1945) haviainiciado o esforço de modernização nacional que, sob a ditadura doEstado Novo (a partir de 1937), atingira dimensão mais acentuada.Essa modernização foi bastante impulsionada na segunda metade dadécada de 1950: era o desenvolvimentismo dos “Anos JK”, sintetizadono Plano de Metas e consagrado pelo lema “50 anos em 5”.

Impressiona a rapidez com que o Brasil alterou sua fisionomia,a começar pela vertiginosa urbanização. O país essencialmente agráriode 1930, com uma sociedade tipicamente rural, chega à espantosa taxade quase 82% de população urbana em 2000, conforme números docenso realizado pelo IBGE. Também digna de registro é a expansãodemográfica: uma população de quase 52 milhões de habitantes, em1950, mais que triplica em meio século, girando em torno de 170milhões, em 2000. Para João Manuel Cardoso de Mello e Fernando

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A. Novais, “os trinta anos que vão de 1950 a 1980 – anos detransformações assombrosas, que, pela rapidez e profundidade,dificilmente encontram paralelo neste século – não poderiam apareceraos seus protagonistas senão sob uma forma: a de uma sociedade emmovimento”.1

Francisco Carlos Teixeira da Silva lembra, a propósito, que em1950 a população rural representava 64% da população total, sendode 36% a participação urbana. Apenas três décadas mais tarde, o quadrose inverte por completo: em 1980, o percentual de habitantes nas zonasrurais declinara consideravelmente, ficando em 33%, enquanto o dapopulação urbana quase duplica, atingindo a marca dos 67%. Entre1950 e 1970, nada menos que 39 milhões de brasileiros transferiram-se do campo para as cidades. Em meio ao intenso processo demodernização que altera profundamente a fisionomia social, econômicae política do país, Teixeira da Silva percebe que

transformações aceleradas verificam-se em todos os setores davida brasileira, com alterações estruturais importantes, e definitivas,como a relação campo/cidade e a reafirmação de estruturas jáimplantadas antes de 1950: a industrialização, a concentração derenda e a integração no conjunto econômico capitalista mundial.2

O deslocamento do eixo econômico do campo (“cenáriotradicional e secular da produção de riquezas”, na correta compreensãode Teixeira da Silva) para as cidades trouxe evidente desdobramentopolítico. É o que se observa na trajetória dos três maiores partidospolíticos brasileiros que surgiram por sobre os escombros do EstadoNovo. O Partido Social Democrático (PSD), de histórica vinculaçãocom o interior, em que vicejam os mecanismos tradicionais doclientelismo, como os “currais eleitorais”, vê seus votos definharem à

1 Mello, João Manuel Cardoso de. e Novais, Fernando A. Capitalismo tardio e sociedademoderna.In: Schwarcz, Lilia M. (org.). História da Vida privada no Brasil (4). São Paulo:Companhia das Letras, 1998, p. 584–585.2 A análise está presente no artigo A modernização autoritária: do golpe militar à redemocratização– 1964–1984. In: Linhares, Maria Yedda (org.) História Geral do Brasil. Rio de Janeiro:Campus, 1996, p. 301.

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medida que a urbanização avança. Ao contrário, o Partido TrabalhistaBrasileiro (PTB), de bases essencialmente urbanas, conhece notáveltrajetória ascensional nesse mesmo período. A própria União DemocráticaNacional (UDN), embora concorrente direta do PSD por sua ativapresença no interior, não acompanha seu principal rival na perda devotos, o que se explica por estar solidamente instalada em setores dasclasses médias urbanas.

Afora o extraordinário dinamismo interno, havia a poderosainfluência do cenário internacional pós-Segunda Guerra Mundial, queconvulsionara e subvertera o antigo quadro de dominação colonial,permitindo a emergência afro-asiática. Esgrimindo temas comosoberania nacional, autodeterminação dos povos e neutralismo, entretantos outros igualmente fortes, a luta de asiáticos e africanos ajudavaa abrir espaços para tentativas de implementação de políticas reformistase, no campo das relações internacionais, à execução de algo que, noBrasil, veio a se denominar Política Externa Independente.

Pode-se dizer que a modernização do Brasil, a partir dos anos30 e 40, ainda que bastante rápida, conheceu distintas etapas.Entretanto, foi justamente em começos da década de 1960 que esseprocesso ganhou inédita repercussão política, que alguns fatores ajudama explicar. Em primeiro lugar, o surto de industrialização da segundametade dos anos 50 impulsiona a urbanização e, em decorrência, ensejao aparecimento de novos grupos sociais, com forte tendência à expansão,sob o ponto de vista numérico, e a assumir crescente papel político nasociedade.

Esses novos protagonistas da cena política – operários,camponeses, estudantes, professores, profissionais liberais, militares,religiosos, entre outros – tendem a expor suas demandas de formacada vez mais organizada e enfática, utilizando-se dos mecanismos depressão que o regime liberal-conservador possibilitava. O fato novo,que era a inédita participação popular no debate nacional, na condiçãode protagonista, acabou por tornar nítidos os limites do próprio regime,o que acirraria a crise nele já instalada.

Nesse momento de crise, começam a ganhar contornos maisdefinidos dois projetos nacionais antagônicos: para as esquerdas, o

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caminho apontava para a verticalização das reformas, não descartada,para alguns de seus integrantes, a crença na inevitabilidade da revolução,alimentada pelo fascínio da experiência cubana; aos setores da direitainteressava interceptar a marcha das reformas, refrear o ímpeto daparticipação popular e conduzir a modernização de modo a não perdero controle dos pilares sobre os quais, historicamente, se sustentaram.

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Nessa conjuntura, a Política Externa Independente refletia umquadro internacional favorável à obtenção de margens mais amplas deautonomia por parte das áreas periféricas – com a consolidação dasindependências na Ásia, o surto de descolonização na África3 e o adventode novas posições (pan-africanismo, pan-arabismo, neutralismo,pacifismo) alicerçadas no conceito de Terceiro Mundo – e, ante aacentuada radicalização interna, passou a ser alvo da máxima atençãodos grupos em choque.

A fase inicial dos anos 60 envolve um período da históriarepublicana brasileira repleto de contradições, marcado por tomada dedecisões em clima de forte emocionalismo e emoldurado por umaconjuntura internacional de graves tensões, em especial no continenteamericano. Uma das características essenciais desse período foijustamente o fato de que, além de se viver sob o parlamentarismo –inédito na República – entre setembro de 1961 e janeiro de 1963, oque ampliava sobremaneira o campo de atuação e a influência políticado Congresso Nacional, respirava-se o ar de confronto nãoescamoteado. Esse ambiente pronunciadamente tenso já se tornaravisível com a adoção do parlamentarismo, aos moldes de uma “soluçãode compromisso”, em virtude da inesperada renúncia de Jânio Quadros,a 25 de agosto de 1961, apenas sete meses após sua posse na presidênciada República.

3 A propósito da emergência afro-asiática, ver Saraiva, José Flávio S. Formação da ÁfricaContemporânea. São Paulo: Atual, 1987; Linhares, Maria Yedda. A Luta contra a Metrópole(Ásia e África). São Paulo: Brasiliense, 1981.

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A manifestação dos três ministros militares, contrária à possedo Vice-Presidente João Goulart, que se encontrava em visita oficial àRepública Popular da China, mergulhou o país em grave crise. A reaçãoà tentativa de golpe foi liderada, em larga medida, pelo então governadordo Rio Grande do Sul, Leonel Brizola, que, à frente da Cadeia daLegalidade – unindo emissoras de rádio gaúchas e, a partir delas, deoutras regiões brasileiras – contou com vigoroso apoio popular e doIII Exército, à época o maior contingente militar do país.

A solução parlamentarista, aceita por Goulart, teve em TancredoNeves – que viria a ser primeiro-ministro – um de seus principaisartífices. Para muitos analistas que viviam aquela difícil conjuntura, aadoção do parlamentarismo, nas circunstâncias em que se deu, nãopassava de um “golpe branco”. Para outros, no entanto, era umatentativa válida de se estabelecer uma “trégua” naquele ambientecarregado de passionalismo, uma paz momentânea que teria na figurarespeitada e firme – mas de agudo espírito conciliador – de TancredoNeves seu grande fiador.

De todo modo, aos olhos dos setores direitistas e conservadores,Goulart assumia a Presidência da República sob suspeição, sentimentoque nascera de sua passagem pelo Ministério do Trabalho no governoVargas, na primeira metade da década de 1950, e que se consolidarapor suas íntimas vinculações ao movimento sindical. Para outros, comoMoniz Bandeira, o grave equívoco da solução parlamentarista consistiaem que Goulart assumia “um poder mutilado, enfraquecido, quandoa situação do Brasil mais exigia um governo forte, centralizado, paraefetuar as mudanças que o capitalismo reclamava”.4

Em suma, a polarização ideológica daqueles anos se dava emtorno de dois projetos antagônicos para o país. De um lado, o difusoprojeto reformista, centrado no modelo nacional-desenvolvimentista-estatista, defendido por forças políticas díspares e que nem semprecompartilhavam os mesmos métodos de ação política. No campooposto, a crescente coesão dos setores de centro e de direita, a conduzir

4 Bandeira, Moniz. O governo João Goulart – as lutas sociais no Brasil: 1961–1964. Rio deJaneiro: Civilização Brasileira, 1977.

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um projeto orgânico e sistematizado, em luta contra o governoreformista e comprometido com a edificação de um novo país,“moderno, capitalista e cristão”.

Nesse embate, a Política Externa Independente foi identificada,pelos integrantes do primeiro grupo, como instrumento de afirmaçãodo desenvolvimento nacional e da soberania do país. Essa tese adquiriadensidade ainda maior em face de um mundo ideologicamente divididoe que assistia a emergência à cena mundial de áreas secularmente periféricas,como a Ásia e a África. Nesse sentido, ela era vista como uma ação doEstado de grande valia na luta para vencer a históricas estruturas sociais,econômicas e políticas responsáveis pelo atraso ou, conforme aterminologia consagrada nos anos 50 do “subdesenvolvimento” brasileiro.Quanto à soberania, a meta era a formulação de um “ponto de vistainternacional do Brasil”, plenamente identificada com os “legítimosinteresses nacionais”, na conhecida expressão de San Tiago Dantas.

Não resta dúvida de que a Política Externa Independentetransformou-se em instrumento utilizado pelo Estado e pelas forçasque o apoiavam politicamente para a promoção do desenvolvimentocom reformas sociais. Não por outra razão, ela se viu alçada à condição– historicamente incomum na República brasileira – de estrela deprimeira grandeza na agenda nacional, sobretudo como temaprivilegiado nos debates parlamentares.

Ao se indagar sobre as percepções do interesse nacional e aspropostas da Política Externa Independente, Amado Cervo foi categórico:

O eixo de seu pensamento estava na subordinação da políticaexterior aos reais interesses do desenvolvimento nacional. Eraolhar para o Brasil e fustigar a visão simplista de bipolaridadeque recomendava priorizar as relações especiais com os EstadosUnidos(...) Era conceber e reivindicar uma nova ordeminternacional que promovesse a igualdade entre as nações.5

Para o bloco oposicionista, bem ao contrário, essa políticaexterna “agredia o sentimento majoritário da sociedade, ultrajava nossa

5 Cervo, Amado (org.). O Desafio Internacional – A política externa brasileira de 1930 aos nossosdias. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1994, p. 40.

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tradição diplomática, expunha o Brasil a uma situação de ridículo frenteaos demais Estados” e, por fim, mas não menos significativo, “abria asportas do país à ação insidiosa do comunismo internacional”. Essasexpressões estarão muito presentes nos discursos pronunciados noCongresso Nacional e em artigos publicados pelos jornais. Provavelmente,o parlamentar que mais insistia na tecla de que a política externa brasileira“contrariava o pensamento majoritário da sociedade” era o deputado esacerdote Pedro Maciel Vidigal (PSD–MG).

Já para Carlos Lacerda, ex-deputado federal e, entre 1960 e1965, governador da Guanabara, as posições assumidas pela chancelariabrasileira resvalavam para o ridículo. Ao apresentar seu programa dereformas para o Brasil, redigido em novembro de 1962, o udenistacarioca enfatizou a necessidade de se promover a “revisão da políticaexterior do Brasil, retomando a sua linha tradicional e ativando-a paraque se torne mais efetiva e mais presente”, exigindo o “abandonourgentíssimo das recentes leviandades que fizeram do Brasil objeto deescárnio internacional e de justa desconfiança dos seus aliados”.6

No fundo, na perspectiva das direitas e dos grupos conservadores,temia-se o fantasma do comunismo que o regime cubano de FidelCastro vigorosamente representava, especialmente a partir de 1961,quando se declara marxista e se aproxima efetivamente da UniãoSoviética. Para enfrentar o perigo, todas as armas seriam válidas, acomeçar pela utilização do mais incisivo discurso da Guerra Fria, comtoda sua carga de elevada dramaticidade a encobrir expressiva dose dehipocrisia. O Congresso Nacional foi o grande cenário da batalha retóricaque então se travou, e a Política Externa Independente, lado a ladocom a reforma agrária, seu alvo predileto.

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As eleições de 1962 foram decisivas para determinar oencaminhamento da crise do regime inaugurado em 1946. A escolhade alguns governos estaduais, de dois terços das cadeiras do Senado

6 Lacerda, Carlos. Idéias políticas. Rio de Janeiro: Record, 1962, p. 22.

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Federal e da totalidade das vagas da Câmara dos Deputados, naquelecontexto de profunda instabilidade institucional e de crise econômica,foi acontecimento marcante não apenas pelos resultados apresentados,mas, antes de tudo, porque explicitou com acentuada nitidez a existênciade um Brasil rigorosamente dividido.

Tudo leva a crer que, aos setores que defendiam as reformas,tenha sobrado otimismo para comemorar a ascensão do PTB naseleições para a Câmara dos Deputados. Ao mesmo tempo, faltou-lhea necessária dose de realismo para ler – e compreender – o conjuntodos resultados oferecidos pelas urnas, inclusive suas nuanças mais sutis.Com efeito, o PTB, no qual se alojavam diversas correntes políticas,inclusive as proscritas7, cresceram de forma admirável, encaminhando-se para se tornar a principal agremiação partidária do país.

Para que se tenha idéia de como evoluiu o quadro político-partidário brasileiro no período e, nele, quão indiscutível foi a expansãopetebista, basta atentar para os seguintes números: de 177 parlamentares,eleitos em 1945, o PSD, o maior partido, viu sua bancada no CongressoNacional reduzir-se, em 1962, para 141. No mesmo espaço de tempo,a UDN, cada vez mais assumindo o papel de firme oposição aoreformismo trabalhista, pulou de 87 para 110. Nada que se compare,todavia, ao prodigioso crescimento do PTB: de 24 para 136parlamentares.

A expansão eleitoral do PTB, firme e visível em todo o período,não se expressava apenas em termos numéricos. Na realidade, o grandedestaque era que, entre os parlamentares eleitos pela legenda, parteconsiderável representava uma espécie de “depuração” do velhotrabalhismo. Isso significa dizer que, embora existentes ainda emproporção nada desprezível, os políticos identificados com o“peleguismo”, ou seja, aqueles que não conseguiriam operar se nãofosse à sombra do clientelismo alimentado pela máquina do Estado,perdiam terreno. Esse espaço passava a ser crescentemente ocupadopor parlamentares “ideológicos” – como os denominava o Deputado

7 Salvo raras exceções, os comunistas, cujo partido tivera seu registro cassado em 1947, omesmo ocorrendo a seguir com o mandato de seus parlamentares, encontraram no PTB olocal de pouso para sua militância.

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Sérgio Magalhães, do PTB carioca, presidente da Frente ParlamentarNacionalista –, efetivamente comprometidos com as reformasestruturais de que o país, segundo eles, tanto carecia.

Com os demais partidos brasileiros, o PTB também se dividiaem correntes. Genericamente, pode-se falar de três grupos principais: adireita, de acentuado matiz fisiológico e que, quando do acirramentoda crise do regime, aproximou-se do núcleo conservador (PSD–UDN),era mais forte em São Paulo, onde o trabalhismo varguista sempreencontrou muita dificuldade para se firmar; o centro, que provavelmenteteve em San Tiago Dantas sua expressão máxima, buscou afastar-se deposições extremistas, até mesmo por senti-las perigosas para ademocracia e, em certa medida, antecipava o que, décadas mais tarde,poderia ser identificado como a social-democracia brasileira; a esquerda,ou grupo “compacto”, “ideológico”, principal sustentáculo da plataformadas reformas de base e da Política Externa Independente no CongressoNacional e na sociedade – promovendo comícios, palestras e debates,além de fazer uso da imprensa –, tinha em Sérgio Magalhães, EloyDutra, Almino Afonso e Leonel Brizola alguns de seus maiores expoentes.

A vitória alcançada pelo PTB em 1962, permitindo-lhe ampliarconsideravelmente sua presença em todo o país, sobretudo nas áreasmais urbanizadas, acabou por encobrir a outra face da verdade eleitoral,o que foi fatal para as correntes reformistas. Em primeiro lugar, à vitórianominal do PTB correspondeu a reorganização das duas mais poderosasforças conservadoras do espectro político-partidário brasileiro: PSD eUDN aproximam-se cada vez mais, na óbvia intenção de barrar atrajetória ascendente das esquerdas e de seu projeto reformista. É o quetorna mais fácil compreender, por exemplo, o fato de que, quando daimposição do bipartidarismo, em 1965, o partido de sustentação doregime militar – a Arena – tenha sido constituído, majoritariamente,por políticos egressos do PSD e da UDN, enquanto os remanescentesdo PTB, em grande parte, alojaram-se no MDB, o partido de oposição.

A grande novidade trazida pelo Congresso Nacional resultantedas eleições de 1962 era o desaparecimento, na prática, da aliançaPSD–PTB, que, desde 1945, garantira as vitórias presidenciais dosgrupos políticos nascidos sob a tutela de Vargas. O fim do pacto político

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que sustentara o regime liberal-democrata-conservador denunciava oesgotamento daquela experiência: o acúmulo de contradições, aprofunda alteração fisionômica da sociedade, a marcha da modernizaçãodo país e uma conjuntura internacional eivada de agudas transformaçõesapontavam para a superação histórica de determinadas práticas quehaviam sido tão comuns nos primeiros tempos do regime.

Assim, aquela tradição varguista de acomodar os contrários,promovendo um tipo de conciliação bem ao seu estilo – um homemda República Velha que inaugurou a modernidade no Brasil – nãomais se sustentava. Especialmente a partir dos começos de 1963, aimpressão que se tinha é que não seria possível contornar as divergências,tangenciar os interesses opostos; ao contrário, partia-se para o confronto.Encerrava-se, pois, um ciclo de coexistência política que propiciara,até então, as vitórias de Gaspar Dutra (1945), Vargas (1950) e JuscelinoKubistchek (1955).

O segundo aspecto decisivo trazido pelo resultado eleitoral de1962, com clara repercussão na nova configuração das forças políticasem cena, refere-se aos executivos estaduais. Enquanto as esquerdascomemoravam a significativa vitória de Miguel Arraes ao governo dePernambuco, acompanhada do êxito do PTB daquele estado na corridapelas cadeiras do Senado, ficando com as três, esqueciam-se de enxergaralgo que deveria preocupar-lhes: a direita vencera as eleições para ogoverno de estados importantíssimos – em São Paulo, com Ademarde Barros, e, no Rio Grande do Sul, com Ildo Meneghetti. Ademais,se adicionarmos a essas vitórias dois grandes vencedores de 1960 –Carlos Lacerda, na Guanabara, e Magalhães Pinto, em Minas Gerais –obtém-se um quadro por demais embaraçador aos planos reformistas:as quatro mais poderosas e influentes unidades da Federação estavamnas mãos de adversários das reformas que se pretendia implantar.

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Por mais paradoxal que possa parecer, o avanço eleitoral dasesquerdas levou o Congresso Nacional a assumir feições cada vez maisconservadoras e, desse modo, contrárias às reformas. Vozes

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oposicionistas da época costumavam dizer que o Congresso conservadorera controlado pelo PSD, pela UDN e pelos inesgotáveis recursosfinanceiros do Instituto Brasileiro de Ação Democrática, o Ibad. Emum contexto de crescente conturbação, mais importantes que ospartidos políticos tradicionais passam a ser os blocos parlamentares,reunindo, pela afinidade doutrinária ou ideológica, políticos egressosdas mais distintas correntes. Seriam os casos da Frente ParlamentarNacionalista – criada na década de 1950, mas que adquire notávelimportância a partir de 62, quando aprofunda seu compromisso dedefender as reformas no Congresso – e a Ação Democrática Parlamentar,porto seguro da nau direitista.

Há, nesse cenário, outro importantíssimo aspecto a considerar.Particularmente após o plebiscito de janeiro de 1963, que promoveu avolta do presidencialismo, aumentou o grau de impaciência dasesquerdas e dos defensores das reformas ante a morosidade com que otema era tratado por um Congresso a cada dia mais conservador. Pareceter havido novo equívoco de interpretação por parte das forçasreformistas e de esquerda, imaginando exclusivamente sua a vitória noplebiscito. Olvidava-se, nessa análise, o fato de que o retorno aopresidencialismo também interessava às lideranças oposicionistas quesonhavam com as eleições presidenciais, entre as quais, seguramente,estavam Lacerda, Magalhães e Ademar, sem falar em JK.

As fronteiras que eventualmente poderiam apartar PSD e UDNtornam-se acentuadamente frágeis; mais e mais, os dois maiores partidosconservadores, que, em 1962, detinham 54% da representação naCâmara dos Deputados, tendem, quer pelo discurso, quer pela açãolegislativa propriamente dita, a se fixar num ponto que se mostrouestrategicamente correto: a defesa da legalidade. Isso significa dizer quea bandeira empunhada por Brizola e outros em 1961, quando amanifestação golpista dos três ministros militares tentava rasgar aConstituição e impedir a posse na presidência do vice João Goulart,passava agora a outras mãos.

Para melhor compreensão desse processo é indispensável registrarque, tal como ocorria com o PTB, também entre pessedistas e udenistashavia divergência interna. No PSD, majoritariamente encaminhando-se

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para a oposição frontal ao reformismo de Goulart, havia a “Ala Moça”,grupo de dissidentes que combatia o crescente e visceral reacionarismodo partido, oferecendo seu apoio às “reformas de base” e a algumaspropostas nacionalistas, como a Política Externa Independente.

Na UDN, a ala denominada de “Bossa Nova” defendia asreformas – inclusive a constitucional –, a Política Externa Independentee a lei de remessa de lucros ao exterior. Após o golpe de 1964, osdissidentes de ambos os partidos tenderam à aproximação, muitos foramcassados e tiveram seus direitos políticos suspensos por dez anos e,com a imposição do bipartidarismo, a maioria foi alojar-se no MDB.

Os parlamentares direitistas, conservadores ou simplesmenteliberais, temerosos dos rumos que tomava o governo Goulart,articularam um mesmo discurso. Afora as costumeiras exceções, quandoa histeria anticomunista impedia que se falasse algo consistente, o tomdos pronunciamentos era semelhante: a democracia brasileira corriasérios riscos, ante a escalada da radicalização ideológica e a incapacidademanifestada por Jango de controlar seus aliados. Desse modo, salvar oregime democrático pressupunha a rígida defesa dos princípiosconstitucionais. Esse, o sentido essencial do discurso oposicionistadurante o ano de 63 e os três primeiros meses de 64.

A estratégia do bloco direitista-liberal-conservador parece terdado certo, especialmente se confrontada com a escalada de radicalismoverbal dos grupos esquerdistas-reformadores. Entre as inúmeraspossibilidades de análise do fato, pode-se imaginar que a estratégiatenha sido vitoriosa, entre outras razões, porque teve o apoio da grandeimprensa e porque soube atingir, com sua mensagem de defesa dalegalidade ameaçada, parcelas majoritárias da opinião pública brasileira.Em suma: havia significativa faixa da sociedade ansiosa por esse tipode discurso, que se contrapunha às teses reformistas.

Ao mesmo tempo em que se articulavam para o golpe, unindosetores militares, empresariais, políticos e religiosos, os gruposconservadores e direitistas souberam, no Congresso Nacional, tomarcomo sua a causa da defesa de uma democracia à beira do colapso.Simultaneamente, e facilitando o proselitismo direitista, as esquerdasimpacientavam-se com a morosidade do processo legislativo. Projetos

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de reforma agrária, por exemplo, arrastavam-se há mais de dez anos,sem sair do lugar. Acreditavam que o retorno do presidencialismopudesse agilizar a tramitação das reformas, até mesmo em função domaior poder de pressão com que o presidente da República passava acontar, superada a fase da “camisa de força” do parlamentarismo.

Como isso não ocorreu, graças à presença majoritária das forçasconservadoras no Congresso Nacional, alguns setores da esquerdaoptaram pela ação mais ousada, sustentada na seguinte premissa: se asinstituições políticas existentes são refratárias às reformas de que a naçãotanto carece, e não pode mais esperar, a solução virá do povo e daslideranças com as quais ele se identifica. Como corolário, teríamos: sea Constituição dificulta ou impede as reformas – nesse caso, a formapela qual se faria a indenização aos proprietários de terra que fosseutilizada para a reforma agrária era a questão central –, mude-se aConstituição; se o Congresso é reacionário e, como tal, é obstáculointransponível às reformas de base, dissolva-se o Parlamento.

Esse tipo de discurso, que encantou a alguns, mas,provavelmente, assustou a muitos mais, teve no Deputado LeonelBrizola seu mais famoso adepto. O slogan “reforma agrária já, na leiou na marra” foi utilizado pelas esquerdas como demonstração de quea sociedade não estava disposta a esperar mais pelas transformações dopaís; à direita, caiu como luva para delimitar, perante a opinião pública,quem estava a favor da “lei e da ordem”, da defesa da “normalidadedemocrática”.

Para uma classe média atemorizada com as greves nos serviçospúblicos e as manifestações de rua, além de sofrer no bolso os efeitosde uma crise econômica séria, uma frase do líder comunista Luís CarlosPrestes – “Nós não estamos no governo, mas estamos no poder” –causou o impacto de uma explosão atômica, sobretudo porque foiexemplarmente utilizada pela propaganda direitista como provairrefutável de que, se nada fosse feito, o Brasil cairia nas mãos doscomunistas. Nesse momento, a Política Externa Independente foi sendoidentificada, pelos que a combatiam, como inaceitável concessão aopior dos inimigos, o comunismo internacional. Não faltaram inflamadosdiscursos no Parlamento acenando com a iminente transformação do

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Brasil em “satélite da Rússia vermelha”. Mais que qualquer outro tema,a “Questão Cubana” fornecia o necessário combustível para incendiaro país.

À medida que o quadro se agravava e quanto mais seaproximava da UDN, mais o PSD ampliava o fosso que o separava doantigo aliado, o PTB. No geral, UDN e PSD se alarmavam – einundavam o país com suas teses – com a “agitação social”, a “desordem”e a “comunização crescente do Brasil”, promovidas, segundos eles, peloconluio espúrio de Goulart, PTB e as “forças vivas da subversão”, comoa União Nacional dos Estudantes (UNE) e a Central Geral dosTrabalhadores (CGT), entre outras.

Especificamente para o processo de “bolchevização” do Brasil,segundo a ótica conservadora, a Política Externa Independente davasua enorme contribuição ao reatar as relações com a União Soviética,ao estreitar os laços comerciais com o Leste Europeu, ao tentar preservarCuba, ao desenvolver uma política africana que desconhecia ou negavanossa “ancestral fidelidade” a Portugal. Todas essas questões seevidenciavam nitidamente no debate parlamentar do período, em largamedida suscitadas por políticos padres e pelos vinculados à poderosacolônia lusitana.

Entre março de 1963 e o mesmo mês de 64, o debate parlamentarapresentou uma característica essencial: com sinais trocados e papéisinvertidos, quem sempre suspirou por algum golpe que viabilizassesua chegada ao poder passava a monopolizar a bandeira da legalidade,último bastião da democracia em perigo: quem não tinha tradiçãogolpista, passava – perigosamente, viu-se depois – a identificar-se comotal. Nesse debate parlamentar, em que a Política Externa Independentee a reforma agrária apareciam como eixos em torno dos quais gravitavaa cena política, chama a atenção o fato de que, entre os que maisvigorosamente combatiam as propostas governamentais, estavam osparlamentares egressos do clero, o que remete à importância da IgrejaCatólica naquela conjuntura.

A forte presença da política externa e das relações internacionaisno debate político brasileiro dos primeiros anos da década de 1960explica-se pelo quadro interno de confronto e pela realidade mundial

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daquele momento. O panorama latino-americano era moldado peloespectro da Revolução Cubana, que, ao mesmo tempo em queestimulava movimentos similares ou de cunho reformista nos demaispaíses do continente, alertava os setores conservadores para a necessidadede combatê-la, impedindo sua propagação.

Nessas circunstâncias, transcorrem os primeiros anos da décadade 1960, no Brasil, assinalados pelo elevado grau de politização dosdebates em torno dos grandes temas nacionais, politização essa que dáo tom do comportamento do Congresso Nacional. A crise do regimeidentificava-se pelo choque de dois projetos antagônicos: aos setoresreformistas, interessava aprofundar as reformas propostas ou em curso;aos conservadores, convinha interceptar sua marcha. Nesse ambiente,em que questões como nacionalismo, desenvolvimento, imperialismoe reformas de base verticalizam o debate, inscreve-se e se desenvolve aPolítica Externa Independente.

Com ela, a política externa brasileira deixava de estar confinadaaos gabinetes governamentais e passava ao primeiro plano do cenáriopolítico. Suas diretrizes e execução eram debatidas no CongressoNacional, até por força do parlamentarismo, mas também nasassembléias legislativas, nas câmaras municipais, nas universidades, nossindicatos e na imprensa. Ademais, constituiu-se em experiência nãomuito comum na história brasileira, isto é, foi um momento em quea política internacional do país esteve profundamente vinculada aosembates que se travavam no interior da sociedade e do Estado. Comobem assinalou Tânia Quintaneiro, esse período foi

marcado por uma crescente mobilização social: estudantes,militares, operários, intelectuais, assim como partidos políticose outras entidades, manifestavam grande interesse em participardos processos decisórios, alimentando o debate que, de resto, sedava em toda a América Latina, sobre o desenvolvimento e adependência. Cuba passou a fazer parte do cotidiano brasileiro.8

8 Quintaneiro, Tânia. Cuba e Brasil: da revolução ao golpe (1959–1964) – uma interpretaçãoda Política Externa Independente. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1988. p.18.

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Para Almino Afonso, um dos mais destacados integrantes daFrente Parlamentar Nacionalista e líder do PTB, foi central o papelque coube à política externa naquela conjuntura. Realçando atransformação sofrida pelo Ministério das Relações Exteriores, Alminodestaca a ação de San Tiago Dantas:

O chanceler vai aos sindicatos, faz conferências nasuniversidades, debate, polemiza, está presente em toda a parte(...). Não posso dizer que o gabinete Tancredo Neves tenharepresentado a trégua política, como à época de sua instalaçãomuitos acreditavam, entre os que exigiam reformas sociaisprofundas e o conservadorismo rançoso. O grande confronto, detodo modo, deu-se em torno da ‘política externa independente’, comoentão se denominava o conjunto de diretrizes que orientavam adiplomacia brasileira.9 (grifo nosso)

A roupagem ideológica com a qual foi revestida a PolíticaExterna Independente ajuda a entender o elevado grau de tensão e deanimosidade que marcou o debate parlamentar a seu respeito. Em suatrajetória, nenhum acontecimento atingiu, no Congresso Nacional, arepercussão alcançada pela “Questão Cubana”, sobretudo em funçãode dois fatos ocorridos em 1962: a reunião de Punta del Este, quedecidiu pela exclusão de Cuba do sistema americano, e a crise dosmísseis. O exame dos discursos parlamentares, especialmente na Câmarados Deputados, entre 1962 e 1964, comprova a assertiva.

A posição do governo brasileiro em relação a Cuba, assentadana tese de que não havia sustentação jurídica para fórmulasintervencionistas ou punitivas contra aquele país, sofre ataque implacávelno Congresso. Ganhava densidade e crescente visibilidade a ação deum grupo de deputados que, doravante, não perderá chance algumade fustigar a Política Externa Independente, identificando-a como“nefasta ao país”, “traidora de nossas mais caras tradições diplomáticas”e “acintosa na defesa dos verdadeiros inimigos da pátria”.

9 Afonso, Almino. Raízes do Golpe – da Crise da Legalidade ao Parlamentarismo: 1961–1963.Rio de Janeiro: Marco Zero, 1988, p.9.

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Esses termos serão utilizados com freqüência cada vez maiorpor parlamentares como Padre Pedro Maciel Vidigal, MonsenhorArruda Câmara, Osvaldo Zanello, Abel Rafael Pinto, Herbert Levy,João Mendes, Othon Mader, Geraldo Freire, Último de Carvalho,Menezes Cortes, Eurípedes Cardoso de Menezes, Padre Calazans, entreoutros. O apoio à Política Externa Independente veio, como era de seesperar, da Frente Parlamentar Nacionalista. Embora surgida em 1956,foi em fevereiro de 63, em uma difícil conjuntura política, assinaladapela volta do presidencialismo e pelo acirramento da campanha pelasreformas, que a Frente Parlamentar Nacionalista resolver divulgar umtermo de compromisso que, envolvendo senadores e deputados dediversos partidos, unia seus esforços na defesa da “soberania nacional epela libertação econômica do país”. Pela primeira vez, de maneiraexplícita, a Frente expressava seu apoio à Política Externa Independente.10

Do exame dos discursos e dos debates ocorridos no CongressoNacional na tensa primeira metade da década de 1960 desvela-sea estratégia repetidas vezes utilizada pela bancada direitista:independentemente do tema em discussão, encontrava-se uma brechapara incluir a política externa. De assuntos explosivos, como a reformaagrária, a temas banais, tudo servia para a incursão do parlamentar nabem pavimentada via de combate à diplomacia que o Brasilimplementava. Assim, natural era a atitude do senador Padre Calazans,por exemplo, que, ao defender a necessidade de que fossem melhoradasas condições de tráfego da Via Dutra, achou espaço para denunciar“a política de mão estendida, seja ela no plano internacional, seja dentroda ordem nacional,”11 por parte do governo aos comunistas. Nessalinha, aliás, ninguém foi mais enfático do que o deputado Padre Vidigal(PSD–MG): na discussão do projeto que instituía a reforma agrária,fez que viessem à tona o “perigo da comunização do país” e a conduçãode uma política externa “simpática” à causa cubana. A rigor, foi dele omais bombástico pronunciamento que a Câmara dos Deputados ouviu

10 Ver Francisco Reinaldo de Barros, verbete “Frente Parlamentar Nacionalista”, em Beloch, Ie Abreu, A A (coord.). Dicionário Histórico-Biográfico Brasileiro: 1930–1983. Rio de Janeiro:Fundação Getúlio Vargas/Forense-Universitária, Finep, 1984, vol. 2, p. 1395.11 Diário do Congresso Nacional, Seção I, 23.2.1962, p. 23.

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contra a política brasileira em relação a Cuba e, por extensão, contra aPolítica Externa Independente.12

Do lado oposto, é provável ter cabido ao Deputado Eloy Dutra(PTB–GB) a oportunidade de pronunciar o discurso mais contundentena defesa da posição oficial do Brasil no episódio cubano e da própriaPolítica Externa Independente, justamente por ter tocado no pontoessencial: para ele, a direita estava utilizando a política externa comobiombo para esconder sua real intenção, qual seja, a desestabilizaçãodo governo Goulart e, com isso, interceptar a marcha das reformasestruturais. Dutra ressaltou a enorme hipocrisia dos que afirmavam serCuba um perigo militar para as Américas, esquecendo-se da formidávelforça bélica dos Estados Unidos. Irônico, confessou sua estranheza pelainexistência de qualquer protesto ao fato de que “estivessem votandocontra Cuba, ou contra ela propondo sanções, Stroessner, o ditadordo Paraguai, genocida que mantém uma das ditaduras mais repugnantesda América do Sul, ou Somoza e outros que tais.”13

Em suma, vivia-se um tempo em que, no Parlamento, apreocupação com a política internacional, em seu conjunto, passou aser muito mais visível. Talvez isso se explique pelo elevado grau depolitização que caracterizava o Legislativo brasileiro naquela conjuntura,além do próprio ritmo de acelerada pulsação da história mundial àépoca. Quando se analisa o tipo de assunto levado à tribuna pordeputados e senadores é que se percebe como a preocupação com osrumos da política mundial e das relações internacionais foi incorporadaao cotidiano do Congresso Nacional. Entre 1963 e 1964, com efeito,não foram poucas às vezes em que, além da questão cubana e dosEstados Unidos, outros temas internacionais ocuparam a atenção dosparlamentares.

Nessa perspectiva, comparecem, destacadamente:

a) Portugal, focalizando, sobretudo, sua política colonial. Atese de uma comunidade luso-afro-brasileira, que nãoalterasse o status das colônias portuguesas em África,

12 DCN, Seção I, 14.2.1962, p. 280–284.13 DCN, Seção I, 9.2.1962, p. 181–183.

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foi muito defendida pelos grupos conservadores. Osdefensores da Política Externa Independente, ao contrário,pronunciavam-se pela independência das colônias;

b) Vietnã, cuja guerra começava a ganhar dimensão maisprofunda, o que efetivamente ocorreria a partir de 1965.Nessa ocasião, uma hipotética participação brasileira noconflito, ao lado dos EUA, foi muito debatida noCongresso, tendo alguns parlamentares direitistas apoiadoardorosamente o envio de tropas do Brasil ao SudesteAsiático;

c) Leste Europeu, com os deputados mais claramente deesquerda sempre encontrando motivo para fazer algum tipode registro, como, por exemplo, a data nacional das“repúblicas populares”. Em contrapartida, à direita cabia,com insistência, exigir o rompimento de relações com essespaíses;

d) União Soviética, sempre identificada como a “Rússiavermelha” pela bancada da direita, que focalizava seu “regimeautoritário”, sobretudo referindo-se ao esmagamento daautonomia das repúblicas que a compunham. Exemplotípico desse comportamento foi o manifestado peloDeputado Plínio Salgado que, na sessão de homenagem aSan Tiago Dantas (24 de agosto de 1961), que se despediada Câmara para assumir a chefia da representação brasileirana ONU, lembrou o sofrimento a que estava sujeita apopulação da Ucrânia, “esmagada pelo império soviético”.

A decisão de nacionalizar a exploração do petróleo em seu paísfez do presidente argentino Arturo Illia alvo de homenagens de políticosbrasileiros, vinculados à Frente Parlamentar Nacionalista. Na sessãodo dia 21 de setembro de 1963, por exemplo, o Deputado MarcoAntonio comunicava ao plenário o envio de telegrama ao presidenteda Argentina, assinado por oitenta parlamentares brasileiros,cumprimentando-o pelo gesto que “amplia o campo de luta dosnacionalistas em todo o continente americano”.

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Na medida em que começava o ano legislativo de 1964ampliavam-se os níveis de tensão na sociedade e no Parlamento. Umavez mais, os temas afetos à política externa ocupam espaço privilegiadono debate político. Assim, a crise entre panamenhos e norte-americanos,em torno do Canal, foi motivo de discursos e debates exacerbados,que se estenderam por vários dias. Nesse mesmo período, o DeputadoGuerreiro Ramos, falando em nome da Frente ParlamentarNacionalista, a 29 de janeiro, apelava ao presidente da República nosentido de que fosse determinado ao Itamaraty retomar os estudospara o restabelecimento de relações diplomáticas e comerciais com aRepública Popular da China, assim como procurasse influenciar noprocesso de admissão daquele país nas Nações Unidas.

A temperatura política sobe ainda mais no final de fevereiro.Declarações de Luís Carlos Prestes, feitas quando de seu retorno deviagem à URSS, levam à tribuna da Câmara o deputado conservadorClemens Sampaio para protestar “contra a pretensão do Sr. NikitaKrushev de interferir na política interna do Brasil”. Por fim, já naantevéspera do golpe, o Deputado Braga Ramos pronuncia iradodiscurso, a 17 de março, comentando a conversa mantida entre oembaixador soviético no Brasil e o governador pernambucano MiguelArraes. Ramos protestava contra “a intromissão daquele diplomata emassuntos de nossa política interna”.

O golpe de Estado, sacramentado a 1º de abril de 1964, cessoumomentaneamente esse tipo de debate parlamentar. Quando o temada política externa volta à baila, a partir de 7 de abril, outras – e muitodiferentes – eram as circunstâncias a marcar a vida do Parlamento.

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Depois de percorrer a trajetória do Parlamento brasileiro, entre1961 e 1964, voltando a lente de investigação exclusivamente paraum alvo, o debate parlamentar em torno da política externa, chega-sea algumas conclusões. Do longo inventário de discursos pronunciadose dos apartes que os completaram, extrai-se algo singular na históriapolítica republicana do país: houve um tempo, no Brasil, em que política

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externa deixou de ser preocupação exclusiva de alguns poucosespecialistas e profissionais, chegando ao topo da agenda nacional,especialmente pela via do debate no Congresso Nacional. Esse tempocorrespondeu, também, à inédita participação política da sociedade,dando visibilidade a um Brasil diferente, “um país irreconhecivelmenteinteligente”, conforme arguta observação de Roberto Schwarz.

Da análise desse farto material produzido pelo CongressoNacional é possível concluir que, ao focalizar a política externabrasileira a partir de 1961, o discurso político transformou-se em fatosignificativo e, pela voz dos grupos direitistas e conservadores, virouinstrumento para barrar as reformas que o governo Goulart pretendiaimplementar. Reside nesse ponto, a nosso ver, a singularidade da PolíticaExterna Independente: ela que, na prática, jamais foi revolucionária,ganhou a roupagem ideológica que lhe quiseram impor – à esquerda,uma espécie de instrumento de libertação nacional e, à direita, a inocenteútil a serviço do comunismo internacional, logo, fantasma a serexorcizado.

Assim, a política externa deixou de ser tema periférico,deslocando-se para o centro das grandes discussões nacionais. Ademais,a maneira como foi utilizada, no Parlamento e na sociedade,especialmente a partir da crise da renúncia de Jânio Quadros, contribuiupara que a solução parlamentarista – imaginada como uma espécie detrégua entre reformistas e conservadores – não conseguisse refluir acrescente polarização ideológica que, naquele momento, tomava contado país.

Mais: conforme bem lembrou o Deputado Almino Afonso, aPolítica Externa Independente transformou-se em pólo central doconfronto ideológico da época, o que também se depreende dosdiscursos e dos debates parlamentares. Nesse sentido, ao contrário datradição republicana brasileira, o Parlamento constituiu-se em localprivilegiado de discussões em torno dos rumos da diplomacia brasileira.

Em termos de política externa, o Parlamento brasileiro não foimais que reativo, no período estudado. Pode-se, então, supor que, naperspectiva do Congresso Nacional, entre 1961 e 1964, a políticaexterna conduzida pelo Executivo serviu, muito mais que ao desejo de

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nela influir, ao embate ideológico que se travava no país e que teve seuepílogo na deposição de João Goulart. Assim, em meio a dois projetosdistintos e antagônicos de Estado, ostensiva ou veladamente, a políticaexterna – sobretudo a apropriação ideológica de que foi alvo –desempenhou papel fundamental no debate político. Em suma, tendosua importância ampliada – muito mais do que queria, muito alémdo que poderia ser –, a Política Externa Independente viu-se enredadanuma trama que, em muito, ultrapassava seus limites. Ela foi o panode fundo de uma luta política e ideológica bem maior: a “conquista doEstado”, na feliz expressão de Dreifuss.

Assim, talvez muito mais do que em suas propostas e ações, arelevância da Política Externa Independente seja encontrada na formapela qual ela se inscreveu na conjuntura histórica da qual foi protagonistadestacado. Aí se verá seu elevado grau de interação com o quadro internoe, se não pode ser acusada de responsável pela ruptura institucional de1964, seguramente exerceu forte influência na configuração de umcenário de encarniçada luta política.

Os pronunciamentos parlamentares examinados tambémmostram que, da mesma forma como a sociedade se dividiu em relaçãoaos dois projetos de Brasil que estavam em jogo, ela também sefracionou quanto às propostas de política internacional que lhe eramoferecidas. Uma prova a mais de que, nesse período, políticas interna eexterna achavam-se mutuamente ligadas, cabendo ao CongressoNacional expressar essa vinculação. Diferentemente do ocorrido emoutros momentos da história brasileira, inclusive na fase posterior do“pragmatismo responsável” do governo Geisel, a política externa doperíodo examinado não subsiste fora do ambiente interno em que foiformulada, executada e debatida, sendo fruto de uma época em queprojetos distintos para o país estão jogando sua partida decisiva.

Por fim, ao ser insistentemente identificada pelos setoresconservadores, liberais ou direitistas com o “comunismo internacional”,por meio de bem orquestrada campanha que, a partir do Parlamento,ganhou as ruas, a Política Externa Independente acabou por ser usada“como biombo, a esconder os interesses golpistas” de quem a combatia,como, à época, percebeu o Deputado Eloy Dutra. Desse modo, ainda

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que involuntariamente, ela serviu aos propósitos golpistas edesestabilizadores que atingiram o projeto reformista que João Goulartrepresentava. Com o golpe, derrotada estava a utopia reformistaque embalara os sonhos de muitos e se transformara em pesadelo deoutros tantos.

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Edmundo A. Heredia*

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Ante todo, debe precisarse el sentido con que se usa aquí lapalabra “emergente”; la referencia está dirigida a actores que puedenhaber estado presentes en la historia más remota, pero que no han sidoconsiderados debidamente hasta ahora en la historiografía de lasrelaciones internacionales latinoamericanas, y que en consecuencia noson conocidos o no son apreciados en su dimensión correcta. La idease completa con la advertencia de la presencia y notoria gravitación enlas actuales relaciones internacionales de actores no reconocidos comotales en las teorías vigentes, lo que conduce a indagar acerca de su presenciay gravitación también en el pasado. Esto nos lleva a introducirnos en elconocimiento del proceso transcurrido en el desarrollo y ejercicio deese rol, esto es como actores o en cierto sentido hasta como protagonistasde las relaciones internacionales, y aún a tratar de conocer las razonesque pudieron estar presentes en los historiadores para que ellos losignoraran o los eludieran en sus explicaciones de la realidad pretérita.

El reconocimiento y la caracterización de estos actoresemergentes implica reformular en buena medida el planteo desde elcual se han abordado hasta aquí los estudios sobre las relaciones entrelas naciones.1 Es decir, su incorporación no sólo representa enriquecerel cuadro representativo de estas relaciones, sino que puede incluso

* Professor de História das Relações Internacionais da Universidade de Córdoba (Argentina)e membro do Consejo de Investigaciones de Relaciones Internacionales.1 Sería interesante rastrear los orígenes de esta tendencia de considerar como propias de lasrelaciones entre las naciones a sólo aquéllas que caen en la incumbencia de los Estados y delos gobiernos, como así también la perduración de relictos de esas tradiciones en la actualidad.En la generalidad de los países latinoamericanos los cuadros diplomáticos aún tienen unacoloración aristocrática, que es posible observarla en quienes detentan los cargos más

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hacer cambiar el sentido profundo de estas interpretaciones. Enconsecuencia, en ese planteo innovador y reformador también se imponereplantear las visiones prospectivas acerca de las relaciones futuras, tareaque emprenden habitualmente los internacionalistas, los politólogoso los sociólogos, y a la que no debieran ser ajenos los historiadores.2

Esto último, en cuanto la historia es un continuum, y por tanto lasreconstrucciones del pasado constituyen de por sí un cuerpo deconocimiento sistemático que se prolonga y continúa necesariamenteen el tiempo, para el que no hay pasado ni futuro, aunque para los queviven en el presente ese futuro se presenta como un universo deinnúmeras posibilidades.

El crucial momento que vivimos no sólo parece oportuno paraacometer nuevas propuestas de interpretación de las relacionesinternacionales, sino también acuciante y desafiante. En efecto, nadieignora que estamos inmersos en una profunda crisis, tanto a nivel denuestras naciones latinoamericanas como en el orden internacional ymundial. En la dimensión mundo el siglo XXI se inició con unacontecimiento que se presenta, a priori, como suficiente para llenartodo el siglo, con indudables signos de enfrentamiento, de destrucción,de dominación, de fanatismo, de muerte y de terror instalados en latotalidad del planeta. Al terminar el siglo XX, Eric Hobsbawmreflexionaba así:

Hemos sobrevivido al siglo XX, una de las más negras épocasde la historia, un siglo que ha demostrado toda la capacidad de losseres humanos para la barbarie y que ha demostrado toda laincapacidad, los errores y los autoengaños, la falta de entendimientode sus dirigentes, las malas voluntades, la ignorancia, la ceguedadde sus pueblos. Pese a todo, hemos sobrevivido.3

encumbrados; estas personas son proclives a entender a las relaciones no sólo como unacuestión a ser tratada por individuos socialmente privilegiados, sino también cuyo objeto espropio de ese ámbito.2 Lamentablemente para el desarrollo riguroso de estos estudios se oponen las demandasmediáticas, que incitan a la improvisación y a la precipitación en el tratamiento de temas deextrema actualidad.3 Modesto optimismo, a fines del siglo XX. En Diplomacia. Academia Diplomática de Chile. 77.Santiago de Chile, octubre-diciembre de 1998. p. 7.

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Esta reflexión tiene el valor de una admonición, porque el sigloXXI ha comenzado peor que el XX. Los que estudiamos las relacionesinternacionales cargamos sobre los hombres una parte no despreciablede la responsabilidad que cabe a toda la humanidad en la difícil tareade lograr que nuestros descendientes también sobrevivan al términodel siglo XXI.

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En el caso de nuestras naciones, se agrega una crisis en cuanto asu identificación y a su destino, en tanto están incorporadas a ese ordeninternacional con una mínima o nula capacidad de participación, estoes de compartir las decisiones y, además, en una cuasi absoluta relaciónde dependencia determinada por la situación económica. Pero a AméricaLatina se le presenta también una alternativa promisoria para laarmonización, complementación y aún integración de los intereses desus regiones y de sus países. Y esa posibilidad ha sido abierta en virtudde haber finalizado, junto con el siglo XX, los más importantes conflictosque mantenían entre sí sus naciones, motivados fundamentalmentepor cuestiones limítrofes.

En efecto, Chile y Argentina han dirimido felizmente susprolongadas controversias, que han dejado – no podemos soslayarlo –secuelas en las mentalidades colectivas, para cuya completa superaciónes preciso aún recorrer un camino. Ecuador y Perú han resueltofinalmente su litigio y han emprendido un entusiasta proceso deaproximación, con un gran voluntarismo que – es de desear – seconvierta en hechos concretos.4 Otras diferencias menores aún semantienen, como las que existen entre Nicaragua y Colombia por lasIslas San Andrés y Providencia, entre Colombia y Venezuela por las

4 Los gobiernos de Perú y Ecuador acordaron crear una Comisión Binacional de IntegraciónFronteriza, que se reunió en cuatro ocasiones en Washington, decidiendo conformar trecegrupos de trabajo que en la actualidad elaboran bases para el desarrollo y cooperación entransporte, irrigación, salud, inmunología, sanidad, comercio, etc.

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Islas Los Monjes y el Golfo de Venezuela, entre Venezuela y Guyanapor territorios entre los ríos Esequibo y Cuyuni-Amakura, entreSurinam y Guyana por una porción de territorio deshabitado, entreBolivia y Brasil por la Isla Suárez, además de la cuestión tripartitaentre Venezuela, Trinidad-Tobago y las Antillas Holandesas por lacoincidencia de sus pretendidos espacios marítimos.5 De todosmodos, falta un importante camino a recorrer para terminar conlas suspicacias, los recelos y las desconfianzas; ese trayecto tambiéndebe ser transitado por los teóricos y los analistas de las relacionesinternacionales, muchos de los cuales contribuyeron a la formaciónde esas sospechas.6

De todos modos, si consideramos que el enorme cuerpohistoriográfico existente sobre nuestras relaciones internacionales hasido dedicado a sostener causas nacionales, referidas en su mayor partea reivindicaciones territoriales, es legítimo afirmar que aquellos quehan hecho de su vocación histórica una causa para defender posicionesnacionales contra los rivales vecinos, son ahora, felizmente, mano deobra desocupada. Tienen la oportunidad, sin embargo, de sumarse a

5 V. una síntesis de estas cuestiones pendientes en Doratioto, Francisco. Espaços nacionais naAmérica Latina. Da utopía bolivariana à fragmentação. São Paulo: Brasiliense, 1994.6 Dos ejemplos contrarios pueden exhibirse como puntos opuestos de estas actitudes. En1991, el Ministerio de Defensa de Bolivia presentó las Bases para un Plan Tutelar de Fronteras,que en su fundamentación decía: “El pecado original [de Bolivia] fue nacer grande, riquísimay con un porvenir esplendoroso y esto no podía ser tolerado por sus codiciosos vecinos que,sin excepción y permanentemente, medraron territorialmente a costa suya...”; el documentoreconoce que en sus fronteras persiste “ese desolador panorama de abandono, muy bienaprovechado en el pasado por depredadores violentos, y en el presente por invasores mássutiles, pero no por eso menos amenazantes...”. Cit. Seoane, Flores Por, Alfredo. Integracióneconómica y fronteras: Bases para un enfoque renovado. En Seoane, Flores, A, et al. Desarrollofronterizo: Construyendo una nueva agenda. La Paz: Universidad de La Cordillera, s/a. p. 110-111.

El ejemplo opuesto es la realización del V Seminario Internacional de Integración Sub-Regional, llevado a cabo en Iquique en setiembre de 2000, que dio la oportunidad para quese reunieran estudiosos chilenos y bolivianos en un diálogo franco, constructivo y promisorio,gracias a la iniciativa y decisión de las autoridades del Instituto de Estudios Internacionalesde la Universidad Arturo Prat. Puede haber sido un paso significativo en el camino hacia lamutua comprensión, que debe conducir a la solución de problemas cruciales de la regióncompartida y, esencialmente, a resolver satisfactoriamente la salida al mar de Bolivia.

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otras causas, ahora actuales, y que constituyen el desafío del siglo XXI.El camino ha sido iniciado ya por algunos internacionalistas.7

La toma de conciencia de la realidad actual nos obliga, anosotros que estudiamos las relaciones internacionales, a preguntarnoscuál es el grado de responsabilidad que tenemos en las explicaciones denuestros objetos de estudio. Esto, a su vez, nos obliga a preguntarnosen qué medida los estudios de las relaciones internacionales inciden oinfluyen con sus interpretaciones y explicaciones a formar las mentalidadesde quienes tienen en sus manos las decisiones. A veces, para hacer másexplícita y evidente esta situación, los estudiosos y analistas de las relacionesinternacionales son a su vez asesores o integrantes de los cuerpos dedecisión política de las naciones o de las organizaciones internacionales.

La tarea puede comenzar con una actitud de introspección, derevisión, de búsqueda hacia adentro de las explicaciones de la ubicaciónde cada una de nuestras naciones y del conjunto de ellas en el mundo;sería una posición contraria a la adoptada tradicionalmente, esto es lamirada hacia afuera para encontrar y explicar a quién nos parecíamos oa quién queríamos parecernos, esto es para determinar cuál era nuestromodelo desde el cual debíamos construir la nación en función de nuestraincorporación a un orden mundial; esa tarea se complementaba con ladedicación a marcar las diferencias con los vecinos, en la creencia deque así afirmaríamos soberanías e identidades, lo cual, a su vez ysupuestamente, afirmaría la nacionalidad propia. También debemosinterrogarnos –y, consecuentemente, dar una respuesta y dárnosla anosotros mismos – acerca de las cuestiones y fenómenos que la sociedadnos demanda analizar y explicar para satisfacer no sólo sus necesidadesde conocimiento sino también las actitudes y posiciones a adoptar.8

7 A la manera de propuesta de trabajo, Alberto Zelada Castedo, funcionario del Ministeriode Relaciones Exteriores de Bolivia, dice: “Superadas las cuestiones de límites, ahora lasnaciones sudamericanas enfocan las políticas exteriores a negociar y convenir reglas debuena vecindad con regímenes jurídicos para regular la cooperación transfronteriza”. EnSeoane Flores y otros, Alfredo. op. cit., p. 20.8 “...en una democracia, la decisión final sobre la investigación a hacer y los resultados quedeben ser enseñados corresponden a los ciudadanos, no a los expertos”, decía Paul Feyerabend.V. Adiós a la razón. Buenos Aires: Ed. Rei, 1990. p. 122.

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Esta recapacitación sobre la responsabilidad y el rol que cabe alos estudiosos de las relaciones internacionales incluye una revisión desus propios modelos, paradigmas, metodologías y procesos deelaboración del sistema de conocimiento que ha ido conformando ydando consistencia a la actual disciplina de las relaciones internacionales.Es reconocido que otras disciplinas más antiguas le han servido paraconformar ese cuerpo o materia intelectual que hoy constituye esadisciplina, en la que se colocan a la cabeza el derecho, la economía, lasociología, la filosofía, la historia, las ciencias políticas.9

Antes de considerar a las relaciones internacionales como unadisciplina autónoma o con mayoría de edad, cabría revisar los aportesde aquellas disciplinas y adecuarlos a las necesidades actuales; en estesentido, parece conveniente observar los avances de la historia entemáticas tales como las historias regionales, la vida cotidiana, lasmentalidades, las migraciones y otras que complementan las anterioresvisiones clásicas que privilegiaban las acciones de los Estados y de losgobiernos, el pensamiento y las acciones de los grandes hombres aquienes se consideraba artífices cuasi exclusivos de los cambios y de losmovimientos sociales y políticos. Pero también es necesario introducirlos aportes recientes de otras disciplinas modernas, tales como lageografía, la antropología y la psicología social, las cuales estudian ymuestran desde sus propias perspectivas de análisis los comportamientos,las actitudes y las conductas de los seres humanos, todo lo cual debieraser tomado en cuenta en el análisis de las relaciones internacionales.

La geografía es hoy base insoslayable para el análisis de lasrelaciones internacionales, en tanto éstas se dan en un espacio cada vez

9 Luis A. J. González Esteves incluye a la sociología, la historia, la psicología, la antropologíay la economía como las disciplinas de base que informan el conocimiento de las relacionesinternacionales. V. Algunas consideraciones sobre la teoría y el método en la ciencia de lasrelaciones internacionales. En Revista Argentina de Relaciones Internacionales. III, 7. BuenosAires, enero-abril de 1977. V. También al respecto Castells Mendívil, Adolfo. La concepciónclásica de las relaciones internacionales. En Revista de Política Internacional. 149. Madrid:Instituto de Estudios Políticos, enero-febrero de 1977. p. 99-119.

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más ocupado por el hombre, más amplio en sus proyecciones al espacioaéreo, más explotado por el creciente industrialismo, más utilizadocomo factor estratégico de poder, más transitado y recorrido porindividuos curiosos, expectantes o esperanzados, más transformado yalterado por la acción humana, y por tanto de más complejacomprensión desde la perspectiva de las relaciones entre los países yentre las naciones. La geografía, como disciplina, ha registrado avancestanto en sus planteos teóricos y metodológicos, como en el repertoriode sus contenidos, temas y objetos de estudio, y esto debe ser conocidopor los internacionalistas para servir a sus propias especulaciones, análisisy previsiones. Por su parte, la geografía se ha sumado a las explicacionestotalizadoras del presente, aproximándose para ello a la sociología, a lafilosofía, a la economía y a la propia historia.10

A partir de los avances de la geografía, el espacio ha adquiridootras connotaciones, más aún con el estudio del imaginario, que permiteobservar las diferentes maneras o concepciones del espacio según sea laperspectiva del análisis. La noción de territorio, aplicado a la superficiegeográfica que pertenece a una nación, y que es la base concreta en laque se asienta su soberanía, defendida y sostenida por el Estado nacional,muda notoriamente cuando se lo considera como el suelo en el que sedesarrolla la vida cotidiana, se practica una actividad socioeconómicaen directa correspondencia con la naturaleza, se desenvuelven lasrelaciones entre las personas, se conservan, forman y transformanprácticas culturales peculiares y distintivas; en que se configuran, enfin, identidades regionales.

En estas cuestiones no es necesario ser agoreros, ni dejar delado la realidad de la actual estructura planetaria dominada por la

10 Este año 2001 ha fallecido Milton Santos, un geógrafo brasileño que sus coterráneos hancalificado de filósofo de la geografía. Enfrentando a la globalización como generadora másde confusión que de esclarecimiento y favorecedora de la violencia y el empobrecimientomaterial, moral y cultural, Santos pensaba que todos los lugares son virtualmente mundiales,y que la imposición de la hora actual es el redescubrimiento del “lugar”. V. Campos Filho,Romualdo Pessoa. Cidadão do mundo, filósofo da geografia. En A tarde. Salvador, Bahia: 25de agosto de 2001.

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globalización y por los bloques regionales.11 La elaboración y laenseñanza de las nuevas concepciones del espacio constituyen llamadosde atención, especialmente dirigidos a los teóricos realistas o ultra-realistas de las relaciones internacionales, que deben recapacitar acercade la necesidad de pensar en otras formas de dimensionamiento de lasuperficie del planeta.

En cuanto a la humanidad que lo habita, podemos comenzarcon una generalidad, colocando la mirada en la totalidad de los hombresy mujeres que componen la población mundial como los obvios ynecesarios actores de toda la realidad humana, cualquiera sea el nivel ola disciplina de conocimiento desde los cuales se los observe. Laobviedad, sin embargo, no es tal cuando intentamos asignarle unnombre y por tanto adjudicarle un sentido a esa totalidad. Ayuda aalcanzar ese sentido recordar los conceptos asignados en el pasado, almenos en la edad contemporánea, aunque la visión sería aún máscompleta si nos remontáramos a tiempos más lejanos. En efecto, larevolución francesa reivindicó la individualidad de los seres humanos,y sostuvo la igualdad de sus derechos fundamentales; a partir de allísurgieron las modernas democracias y se organizaron los Estadosnacionales, en un complejo proceso con vicisitudes y altibajos en cuantoal efectivo respeto hacia estos valores individuales.

Paralelamente – y a menudo en colisión con estos principios yante notorias falacias de los sistemas políticos encargados deresguardarlos –, aparecieron movimientos que privilegiaron los valoressociales o colectivos, como superiores a los intereses y a los derechosindividuales. El avance de las comunicaciones, con el ferrocarril, lanavegación a vapor, el automóvil, el avión, fue un factor fundamentalpara la formación del cosmopolitismo, tanto a nivel de los individuoscomo de las sociedades. A su vez, el desarrollo económico, el avance dela tecnología y el progreso industrial dieron lugar a que cada vez unnúmero mayor de personas accediera a bienes de uso común, generando

11 En este sentido hay quienes, como Heinch Ohmae, que piensan en el fin del EstadoNación y del surgimiento, en su reemplazo, del Estado Región, como forma simbióticaderivada de la globalización y de los bloques regionales.

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también hábitos comunes, dando lugar así a una sociedad de masas,caracterizada por el consumismo, en la que las culturas profundasaparecían mediatizadas ante una cierta uniformidad y una relativasuperficialidad de la vida cotidiana. Los fenómenos de la concentraciónurbana, propios de la segunda mitad del siglo XX, contribuyeron a eseproceso.12 Más tarde, los medios cibernéticos de información, con sucapacidad de penetración en todos los niveles de la sociedad y dealteración de los modos de adquisición del conocimiento, profundizaronesa masificación y esa mediatización.

Por fin, la forma suprema de este fenómeno se ha dado con laglobalización, una de cuyas características paradigmáticas es la superacióno la anulación de las fronteras nacionales en numerosos aspectos de lavida, con lo cual queda instalada una cuestión esencial que es decompetencia de los estudiosos de las relaciones internacionales.

Ahora bien; ante el avance de corrientes que avasallan las culturas,las idiosincrasias o las identidades de los pueblos, la humanidad hademostrado su capacidad de reacción y lo ha hecho con la creación denuevas concepciones o con la revitalización de otras que habían quedadoen el olvido, y a partir de las cuales los hombres procuran recuperar elsentido de su existencia o alcanzar posiciones que les permitan cumplirel destino que se proponen. En la actualidad, a una sociedad de masas,

12 Aún antes d e la globalización, Braudel decía que “las ciudades son como transformadoreseléctricos: aumentan las tensiones, precipitan los intercambios, traman continuamente lavida de los hombres... son también formaciones parasitarias y abusivas... son también lainteligencia, el riesgo, el progreso y la modernidad... Prestan su vivacidad irreemplazable alEstado, siempre un poco lento y torpón...” V. Braudel, Fernand. Civilización material ycapitalismo. Barcelona: Ed. Labor, 1974.

La gravitación de las metrópolis en la vida nacional y social ha sido motivo de unaclasificación por Hanns-Albert Steger, que señala la existencia de una categoría de ciudadesde dominación intelectual, que él define como aquellas en las que el gigantismo industrial creaun poder económico transnacional, cuya característica es la ubicuidad de alcance mundial.Esto significaría la destrucción de la ciudad como síntesis social, con el predominio de los“barones de la velocidad” que viven en un mundo internacional aunque encerrados en susbarrios privados, en tanto la gran mayoria de los “lentos” viven la vida cotidiana y local en elresto de la ciudad. V. Metrópolis e ideologías. Síntesis y fragmentación en las grandes aglomeracioneshumanas. En Hardoy, Jorge E. (Comp.). Ensayos histórico-sociales sobre la urbanización enAmérica Latina. Buenos Aires: SIAP, 1978.

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a una sociedad mediática, a una sociedad globalizada, a una explotaciónde recursos devastadora de la naturaleza, se oponen otros tantosmovimientos que reivindican los valores contrarios, dando así laesperanza o la expectativa de un mundo diferente para el siglo XXI.

Una idea general desde la cual se intenta en la actualidad abrazarel conjunto de reacciones frente a este avasallamiento es la que concilialos valores individuales en tanto éstos son compatibles y respetuososde los valores sociales; la que rescata los derechos universales del hombre– y por tanto comunes para todos los habitantes del planeta –, y loscompatibiliza con los que son inherentes a las formas particulares devida de cada cultura; la que armoniza una sociedad humana universalcon la infinidad de culturas particulares; la que propone una utilizaciónracional y humana de la naturaleza, basada en su conservación y en sumejoramiento, y combate su destrucción o contaminación; la queadmite la multi-culturalidad de cada nación sin que ésta, por ese motivo,se fracture o destruya; la que reconoce, respeta y aprecia la legitimidadde las diferencias de los grupos étnicos y por tanto acepta suprotagonismo en la vida civil de las naciones; la que incorporaplenamente a la vida nacional, con sus particularidades propias, a lospueblos originarios, sean o no éstos minorías.

Un término ha comenzado a ser acuñado para denominar aesta sociedad, como una manera de entender al conjunto de lacomunidad concebida desde estas condiciones. Esa palabra es gente. Eltérmino gente se presenta como la intencionalidad de calificar los valoresindividuales y comunitarios a un tiempo, de concebir a un grupohumano como compuesto de individualidades que se identifican comotales en tanto se reconocen integrantes de un grupo o de una comunidadque a su vez los identifica y caracteriza. El término gente implica porsobre todo reconocer los valores culturales, que pertenecen tanto acada uno como al conjunto de una comunidad. El actor generalemergente es, en consecuencia, la gente; o, si se quiere en plural, lasgentes.

De esa humanidad general hay grupos que tienen o puedentener roles específicos, que constituyen por tanto actores emergentes

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peculiares, y que son citados aquí a manera de ejemplo. En efecto,habiéndose disipado los mayores conflictos fronterizos en AméricaLatina, las poblaciones de fronteras pueden pasar a cumplir el rolcontrario al que les fuera asignado compulsivamente en otros tiempos;esto es, de elementos que compulsivamente debieron actuar para laseparación, o que fueron utilizados para cumplir ese rol, pueden pasara ser factores activos de integración. El rol de las regiones de frontera –esto es, sus gentes – es decisivo en esta nueva propuesta de análisis yexplicación de nuestras relaciones y en una nueva agenda de lascancillerías. El primer paso es aprovechar los estudios ya realizadossobre los problemas, la dinámica y el desarrollo de estas regiones,intensificarlos y darles nuevo curso. Esto traerá como primeracomprobación la significación de los efectos producidos por la escasao nula atención que han merecido estos espacios en algunos países,como no sea el de mantener en ellos aparatos de seguridad y de controldel movimiento de personas y de cosas. Esto significa aceptar las nuevasvalorizaciones del espacio, tal como lo muestran las modernasinterpretaciones de la ciencia geográfica.

También implica la necesidad de reconocer las identidadespropias de los pueblos de frontera, muchos de los cuales constituyengrupos étnicos diferenciados de los modelos nacionales y concaracterísticas comunes para más de una nación, con sus patrones ypautas culturales singulares, para lo cual las visiones antropológicasrepresentan un aporte valioso y digno de ser incorporado a los estudiosde las relaciones internacionales.

Es claro que una más equitativa mirada a esos grupos étnicosdepende también de una mirada introspectiva del propio observador,hasta reconocer que él mismo pertenece a un grupo étnico; el resultadodeseado de esa observación y de esa comprobación es que deje dereconocer su propia cultura como paradigma, para ubicarla dentro dela contextualidad de las identidades culturales que observa. Esto significasuperar la idea de que los grupos étnicos son sólo aquéllos que poseenuna cultura diferente a la nuestra, esto es a la del observador; en unsentido lato, pueden ser considerados dentro de la categoría de grupos

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13 Levi-Strauss anotaba esta paradoja, al señalar que tenemos la tendencia de definir comogrupos étnicos sólo a aquéllos que son diferentes a nosotros. Samir Amin denunció laresponsabilidad de las prácticas de la dominación colonial en el proceso de creación de estas“realidades étnicas” como “diferentes”, particularmente en el continente africano. V. Elfracaso del desarrollo en África y en el Tercer Mundo. Un análisis político. Madrid: Iepala, 1994.

étnicos tanto los rioplatenses como los británicos, los hispánicos o losaimaras. Se trata, por tanto, de una manera determinada de observar yde analizar la realidad.13

En fin, los nuevos actores para estas relaciones internacionalesdel siglo XXI saldrán a la luz con esta aproximación e incorporación dela disciplina de las relaciones internacionales a las ciencias sociales, tantocon los nuevos aportes de aquellas que le sirvieron a su hora deplataformas desde las cuales construyó su propio sistema deconocimiento, como con los que puede obtener de otras disciplinas ode determinados aspectos de ellas en los que aún no ha reparado. Enese ámbito tendrá la oportunidad de considerar que muchos de losindividuos, tipos, grupos, comunidades y en definitiva muchas de lascategorías a nivel humano o espacial que cada una de ellas toma comointegrantes de sus propios campos de estudio, coinciden y forman partetambién del necesario ámbito de observación y comprensión de lasrelaciones internacionales.

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Raúl Bernal-Meza*

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Forma parte de los usos de la historia, recopilada por las fuentesde la historiografía de relaciones internacionales, que los autoreslatinoamericanos hayan apelado a los conceptos de tradición, principios,elementos ordenadores e, incluso, concepciones de mundo, en casos –incluso – originales, para la fundamentación de sus políticas exteriores;justificando con ellos sus constantes, cambios y rupturas.

Dada su histórica vocación extrovertida, la Argentina no esuna excepción. Sin embargo, además, constituye uno de los pocosejemplos de países que construyeron paradigmas de política internacional.

La importancia relativa asignada a esta calidad de fundamentacióny sostenimiento de una política exterior debe – no obstante – ser puestaen el análisis contra el telón de fondo de las respectivas estrategiasnacionales de desarrollo; en el entendido que una y otra no sonautónomas, sino que deben estar vinculadas por la estrategia global,esto es mejorar la calidad de la inserción internacional en los respectivossubsistemas, el económico y el político.

Derivado de esta preocupación, valdría entonces la penaocuparse de dos paradigmas1 : la “Tercera Posición” y el “Realismo

* Doutor em sociologia e professor titular de Relações Internacionais da UniversidadNacional del Centro de la Provincia de Buenos Aires e da Universidad de Buenos Aires,Argentina.1 Un tercero, la “Doctrina de la Autonomía Heterodoxa”, dada su matriz de origen – elperonismo y la Tercera Posición – no lo consideraremos de manera independiente ydiferenciada, sino como un aggiornamiento del primero de ellos.

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Periférico”. Cada uno de ellos, en su respectivo momento histórico,marcaría a hierro la política exterior argentina y tendría una relaciónespecífica con la política económica interna, cuyos impactos deberíanevaluarse entonces en términos del aporte al mejoramiento de la calidadde esa inserción y a la capacidad efectiva de aumentar los atributos depoder y de competitividad; de la reducción del nivel de vulnerabilidadexterna y en ganancias en autonomía.; todo lo cual debe llevar a evaluarcada modelo de política en términos de las “estrategias nacionales dedesarrollo”.

Ciertamente que, si a comienzos del siglo XX la Argentinaformaba parte del concierto de jóvenes naciones con promisorio futuro,virtual integrante del reducido grupo de exitosos en su camino hacia eldesarrollo, cuestión que se reflejaba en su participación del 3% en elcomercio mundial, similar a la porción que hoy ocupan países comoItalia o Corea del Sur; que registraba índices de pobreza cercanos al10%, con altos niveles de educación y casi pleno empleo, una lecturasomera de la realidad al comenzar el siglo XXI, cuando esos índicesmarcan respectivamente menos del 0,4% para el comercio mundial,pobreza en torno al 40%, aumento creciente del analfabetismo contasas preocupantes de abandono escolar y tasas de desempleo real ysubempleo a niveles jamás conocidos en el país, evidencia que algo dioerrado en la formulación de sus paradigmas y concluiremos ex-postque se fracasó en el diseño de la estrategia de desarrollo o de insercióninternacional.

Considerando que el objetivo de este texto no es el análisis dela política económica, sino de la política exterior, daremos por conociday aceptada una situación de “crisis estructural” por la cual atraviesa hoyla Argentina.2 El análisis que sigue, entonces, busca refrescar ideas parael necesario debate del cual deberían surgir elementos para laconstrucción de un nuevo modelo de Estado, sociedad y políticaexterior; coincidiendo con nuestras preocupaciones con aquellas deAmado Cervo, nuestro homenajeado, y de quien tomaremos sus

2 Para nuestra reflexión al respecto, cfr. Bernal-Meza (2001; 2001a; 2002).

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lecciones acerca de “la danza de los paradigmas”3, en relación a lasconcepciones de Estado y su evolución en la vida contemporánea deAmérica Latina.

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Haciendo una apretada síntesis, en un estudio reciente señalabaque la evolución de la política exterior argentina marca un proceso decontinuidades, cambios y rupturas significativas; que pasó por distintasetapas de alineamiento e inserción internacional subordinada – bajolas hegemonías de Gran Bretaña y luego Estados Unidos – y estrategiasde autonomización (Bernal-Meza, 2001). Para uno de sus másimportantes estudiosos – aun cuando olvidado bajo el manto ideológicode la comunidad epistémica4 que dominó el período menemista(Bernal-Meza, 2000) – debajo de estas incoherencias superficiales existíauna coherencia estructural que permitía explicarlas y comprenderlas(Puig, 1988). Durante la primera de las tres etapas por las cualesatravesarían las estrategias nacionales de desarrollo e inserción,5 el modelo

3 Aplicado al caso brasileño, Cervo, Amado, Luiz “Parte III. Do projeto desenvolvimentista àglobalização. A dança dos paradigmas”, In: Cervo, Amado L. y Bueno, Clodoaldo. História daPolítica Exterior do Brasil. Brasília: Editora UnB e Instituto Brasileiro de RelaçõesInternacionais, 2002; p. 455 y ss. Para el caso latinoamericano, Cervo, A.L. RelaçõesInternacionais da América Latina. Velhos e novos paradigmas. Brasília: Funag/Instituto Brasileirode Relações Internacionais, 2001; p. 279 y ss.4 Desarrollado por Peter Haas, bajo la denominación de “comunidades epistémicas” (cfr. P.Haas, “Introduction: Epistemic Communities and International Policy Coordination”(International Organization, 46, winter 1992), el concepto ha sido tomado por AmadoLuiz Cervo, para aplicarlo al conjunto de intelectuales, académicos y diplomáticos argentinosque con sus aportes ayudaron a formular la base de sustentación ideológica de la políticaexterior de Menem, que fuera implementada por lo cancilleres Cavallo y Di Tella (Bernal-Meza, 2000:353). Todos ellos, según Cervo, tenían en común una visión revisionista de lahistoria argentina. Estaba integrada, entre otros, por Tulio Halperin Donghi, Carlos Escudé,Felipe de la Balze, Jorge Castro y Andrés Cisneros. Cfr. Cervo, Amado, Luiz. A políticaExterior da Argentina 1945-2.000, Anuário de Política Internacional, Brasília, IPRI, mimeo,1999; también, Cervo (2000).5 Consideramos aquí como tales el modelo agroexportador, el de sustitución de importacioneso desarrollista y el neoliberal.

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agroexportador o primario-exportador (1880-1930),6 el proyecto dedependencia nacional se formaliza y afianza. Según Puig, la clave paracomprender la razón estaba en la imagen que las élites argentinas teníande un mundo euro-céntrico, liderado por Gran Bretaña, dentro decuyo sistema hegemónico el país debía desarrollarse en formadependientemente asociada. El libre cambio, imagen de la supremacíabritánica era para ellos la única política viable para un país despobladoy falto de recursos financieros; estrategia que se debía seguir mientrassu potencial de poder no aumentara. Obviamente, la aceptación deesta supremacía y su proyección hasta la década del treinta del siglosiguiente significarían la desconexión con Estados Unidos y su oposicióna éste, reflejada en diversas conferencias internacionales.7 Era evidenteque no tenía sentido para esas élites cambiar un modelo tan exitoso,dado el acelerado crecimiento y desarrollo alcanzados, particularmenteentre 1880 y 1915; por lo cual no sorprende que la clase gobernantemantuviera los lineamientos básicos de la política exterior (Puig,1988).La lógica comercial de la complementariedad centro-periferia con laeconomía británica dominaba y, tal como describe un autornorteamericano, “los sentimientos panamericanos, la política del buenvecino, la expansión del comercio, no sirvieron para que la Argentinapudiera poner un pie en el mercado estadounidense” (Tulchin,1984:107). Las diferencias en torno al panamericanismo, sobre lasintervenciones en centro y Sudamérica y la neutralidad argentinadurante las dos guerras mundiales – entre otras cuestiones – marcaríanlos aspectos políticos que reflejaban esa desconexión.

La crisis de los años 30 que llevarían al abandono dellibrecambio y el laissez-faire, abrió el camino al intervencionismo estatal

6 Según la opinión dominante, el período “exitoso” del modelo sólo se extiende hasta la crisisdel año 1916, aunque el mismo fuera proyectado hasta su abandono definitivo, en 1930.7 Detalladamente repertoriadas por Carlos Escudé (1992;1995) aún cuando su utilizacióncomo fundamento apuntaría a sostener su propio paradigma del “realismo periférico”,fuente doctrinaria de la política exterior del período neoliberal de la década menemista(presidencias de Carlos S. Menem, 1989-1994 y 1995-1999) y que con relativa continuidadse proyecta hasta el presente.

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en la economía, paradojalmente impulsado por los sectores conservadoresnacionales. A medida que el tiempo profundizaba la hegemoníanorteamericana en el hemisferio y en la Argentina se deteriorabanaceleradamente sus indicadores de crecimiento y desarrollo, el paíscomenzaría una nueva etapa, que se proyecta hasta hoy, en la cual hahabido, predominantemente, una política pro norteamericana, noexenta de contradicciones. Resultado de la crisis y sus efectos socio-políticos, Perón, con su “Doctrina Justicialista” llegaría para dominarla política argentina entre 1946 y 1955. Ésta sería la fuente inspiradorade su “Tercera Posición” – cuya dominancia coincidiría con el propiogobierno del líder y de su aggiornamiento, la “Autonomía Heterodoxa”,formulada por Juan Carlos Puig, presente entre 1973 y 1975.

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En un libro de hace unos años8 que analizaba estas cuestionesseñalábamos que era evidente – tal como la historia demostraría a travésde la práctica política de distintos países y que se hiciera más difundidadurante los años 60 en buena parte de la periferia – que ningún líder departido o movimiento que se preciara de conducir una etapa de“liberación nacional” podía escapar a la necesidad de exaltar la autonomíae independencia del país, en los asuntos internos e internacionales. Noobstante, para Estados Unidos, la estrategia de la Contención (en unmarco de hegemonía hemisférica), que implicaba en los hechosmantener la continuidad de un espacio geo-económico seguro para losintereses políticos, militares, estratégicos, económicos e ideológicosnorteamericanos, hacía que los asuntos internos de los Estadoslatinoamericanos fueran en buena forma relativos, en la medida que podíanafectar sus percepciones y esos intereses (Bernal-Meza, 1994:168).

En diversos trabajos (Bernal-Meza, 1994; 2001) concluimosque la Tercera Posición, no constituyó stricto sensu una política definida

8 Se trata de América Latina en la Economía Política Mundial, Buenos Aires, Grupo EditorLatinoamericano, 1994. En el mismo, este autor hizo un análisis de los tres paradigmasdominantes de la política exterior argentina, al que remitimos para una profundización del tema.

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de confrontación con Estados Unidos, aún cuando fuera leída así, tantopor el establishment norteamericano como por sus críticos locales.9

Era una concepción de la sociedad y del sistema internacional. Bajo suvisión, la Argentina aceptó las nuevas reglas que imponía el conflictobipolar y reconoció a Estados Unidos como líder del mundo occidental,pero distinguiendo entre los intereses de la comunidad occidental ensu conjunto y los propios de Estados Unidos, tal como lo haríanposteriormente algunas políticas exteriores europeas (caso de la francesa)y, más tarde, la propia política exterior argentina seguida por RaúlAlfonsín (1983-1989).

Rapoport y Spiguel recuerdan que,

A. Whitaker ha definido la política peronista de TerceraPosición en el plano internacional como la búsqueda de aumentarel poder de regateo o, más aún, la posibilidad de negociar conpropósitos nacionalistas, aprovechando la ruptura Este-Oeste ybalanceando el peso de las relaciones con Estados Unidos a travésde los vínculos con potencias no americanas.10 Orientado haciaHispanoamérica, en oposición a un panamericanismo rígidamentesubordinado al país del norte y practicando una política deacuerdos bilaterales contrapuesta al multilateralismo impulsadopor Norteamérica, Perón habría mirado, en una primera etapa,hacia Europa y, en particular, hacia Gran Bretaña, para balancearel peso de Washington en lo económico y diplomático (Rapoport& Spiguel, 1994:35).

Como señalan estos autores, el objetivo económico habría sidomantener el viejo esquema triangular Gran Bretaña – Argentina –EE.UU., para aprovecharlo en función de la industrialización: exportarhacia la vieja potencia con el fin de obtener de ella las divisas necesariaspara comprar los bienes y equipos que, en las condiciones mundialesde la inmediata postguerra, sólo los EE.UU podían proveer. Argentinano adhirió a los acuerdos de Bretton Woods y no aplicó el multilateralismo

9 Dos autores argentinos han explorado documentadamente esta cuestión. Cfr. Rapoport& Spiguel (1994).10 Whitaker, Arthur P., La Argentina y los Estados Unidos, Buenos Aires: 1956; p. 234-236;citado por Rapoport & Spiguel.

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en su comercio exterior, el que seguiría dominado por políticas bilateraleshasta iniciada la década de los 1960.

Por cierto, debía existir una vinculación ideológica, estratégicay programática entre el discurso y la práctica autonomista con la políticainterna; con la estrategia nacional de desarrollo y con los aspectos socialesy económicos de la política gubernamental. La base de todo esto fue laDoctrina Justicialista, que existiendo en su formulación desde 1946,toma ese nombre a partir de 1949. En sí, era una propuesta alternativa,entre los modelos capitalista y socialista (que no podía tener cabida enun orden rígidamente bipolar, aislado de otras alianzas internacionales);integrada con elementos del nacionalismo, la Doctrina Social de laIglesia, las tradiciones “geopolíticas” de la formación militar argentinae influencias del sindicalismo como fuerza movilizadora del trabajo,todo en una concepción corporativa. Esta sería la matriz de la TerceraPosición, el primer paradigma que teñiría con especificidad la políticaexterior argentina, porque, como diría el propio Perón, “en 1946,cuando yo me hice cargo del gobierno, la política internacional argentinano tenía ninguna definición”.11

El objetivo instrumental de la doctrina, en las palabras de suideólogo, era “hacer de la Argentina una patria socialmente justa,económicamente libre y políticamente soberana”. Como políticainternacional, se basó en los principios de la Tercera Posición, entendiendoésta como “la solución universal distinta del marxismo internacionaldogmático y del demoliberalismo capitalista, que conducirá a laanulación de todo dominio imperialista en el mundo.”12

Tal cual como lo evidenciaría más tarde el Realismo Periféricoen la cosmovisión de la comunidad epistémica del menemismo operonismo neoliberal, la doctrina tenía una clara connotación mesiánica.

Sin embargo, el espíritu autonomizante que impregnaba elparadigma de política exterior no se tradujo en una política de desarrollo

11 Discurso de Juan Domingo Perón en la Escuela Nacional de Guerra, Buenos Aires, 11 denoviembre de 1953, en Perón. J.D. Latino-América. Ahora o nunca. Buenos Aires: EdicionesRealidad Política, 1985. p. 70. Citado por Raúl Bernal-Meza (1994).12 Reseña de Perón, en Perón. Discursos completos. Buenos Aires: Editorial Megafón, 1987.Tomo I, p. 63; citado por R. Bernal-Meza (1994).

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económico que sustrajera a la Argentina de la crisis en que el agotamientodel modelo agroexportador la dejara. A pesar de que se nacionalizaronempresas clave para un crecimiento estratégico, se impulsaran nuevasáreas de industrialización y se hiciera una repatriación de la deuda públicaexterna, la Argentina continuó siendo vulnerable. Los objetivos de crearuna economía mixta serían condicionados por distintas variables,comenzando por la estrategia que buscaba sustituir el papel de lainversión extranjera por la inversión nacional. Así, las característicasdel desarrollo dependiente se continuaban proyectando al presente. Laproporción de manufacturas de origen industrial de la “industrializaciónsustitutiva”, respecto de la producción manufacturera total, siguió siendobaja y las exportaciones continuaron basadas esencialmente en losproductos primarios.

Diversos estudios dan cuenta de un importante nivel depragmatismo, presente en la interpretación de la Tercera Posición. Lapolítica económica expresó a partir de 1950 ese pragmatismo, cuyo“Segundo Plan Quinquenal”, previsto para el período 1953-1957profundizaba la apertura que se había insinuado ya desde 1949-1950,tanto en la captación de inversiones extranjeras como a través delaumento de las exportaciones, incluidas las de origen manufacturero(Paradiso, 1993:126). En 1953, el Congreso sancionó la Ley deInversiones Extranjeras, concebida con criterios francamente liberales.No obstante el modelo de sustitución “liviana” rápidamente puso demanifiesto sus limitaciones, lo que llevó al convencimiento – tanto delos industriales como al propio gobierno – de la necesidad de desarrollaruna base productiva más sólida como sustento del crecimientoeconómico, la que debía basarse principalmente sobre las exportaciones,dado lo restringido del mercado interno. Como los mercados másaccesibles eran los de la región latinoamericana, fue hacia allí donde sedirigió una de las líneas principales de la política de apertura,fundamentando el impulso a la integración económica de la región(Paradiso, 1993:128-129). Para ello, los acuerdos de “unioneseconómicas”, sobre bases bilaterales, fue la opción elegida, comenzandocon Chile, luego con Brasil, Ecuador y Bolivia, aún cuando los mismosno lograran implementarse, tal el caso de los dos primeros ejemplos.

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La expansión del consumo interno, generado por elmejoramiento extraordinariamente importante que tuvieron las clasespopulares bajo el gobierno de Perón (mediante las políticas de plenoempleo, salarios, previsión, vivienda, etc.), significó un fuerte respaldopara el crecimiento económico, pero al mismo tiempo, las reformasnecesarias en otros campos no fueron alentadas, mientras el proceso deindustrialización tenía sus propias limitaciones. Así, en un contexto defuerte y constante hostigamiento del gobierno norteamericano, queincluyó sanciones económicas y diplomáticas, la Argentina caería enuna nueva etapa de crisis económico-financiera.13

El “estatismo” que impregnó la política pública no evitó que elliderazgo industrial quedara en manos de las subsidiarias de lascorporaciones transnacionales, principalmente norteamericanas, quepara el último año del período (1955), contribuían con el 20% delproducto. Como señala Ferrer, el peronismo liberó el resentimientoantiimperialista. Bajo su influencia, el libre cambio fue totalmenterechazado y se justificó la intervención del Estado en un gran segmentode actividades: desde la regulación de los mercados hasta la producciónde bienes y servicios. Pero la doctrina no sólo era antiimperialista, sinotambién anticapitalista (Ferrer, 1998), y esto afectaría las lógicas deinversión privada. Así, la doctrina que también sostenía la políticaexterior contribuyó al fracaso que acumularía el Estado, durante el sigloXX, en su responsabilidad de asegurar los equilibrios macroeconómicosy sociales y no favoreció la consolidación de la presencia del capitalnacional en los sectores líderes de la industria y los servicios.

Es evidente que el paradigma de la Tercera Posición no fuefuncional a la inversión extranjera y tampoco a la inversión privadanacional. Frente a una “tenaz oposición de un sector de la dirigenciapolítica y de la opinión pública norteamericanas y el recelo debuena parte de las empresas e inversores hacia el gobierno de Perón,reforzados desde Argentina por aquellos que internamente jugaban al

13 Un pormenorizado análisis del período se encuentra en la monumental obra de MarioRapoport, Historia económica, política y social de la Argentina (1880-2000), Buenos Aires:Ediciones Macchi, 2000.

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derrocamiento del régimen”14, el Estado debía asumir el papel de Estadologístico15 – fortaleciendo el núcleo nacional –, transfiriendo a la sociedadresponsabilidades emprendedoras, además de asumir ese papelempresario o industrialista; pero esto no se cumplió.

El papel que jugarían los Estados Unidos fue clave en el fracasodel primer y más importante esfuerzo industrialista-desarrollista llevadoa cabo por un gobierno argentino. El límite para los modelos autonomistasde desarrollo en América Latina era la hegemonía dominadora de laeconomía norteamericana, cuyos defensores de lo que representaba lapotencia como doctrina contaban con importantes apoyos domésticos.Los sectores conservadores, fueran tanto del campo como de laindustria, coincidieron con la misma línea de críticas del Departamentode Estado al modelo argentino de desarrollo impulsado por Perón(Cervo, 2002).

Así, el paradigma de la Tercera Posición terminó por no serfuncional a la estrategia nacional de desarrollo y su espíritu autonomistaquedó restringido por las propias limitaciones, internas y externas delmodelo de industrialización conducido por el Estado. No obstante,en palabras de un autor, la confusión entre conceptos, tales como terceraposición, neutralismo, no alineación y política exterior independienteno ha facilitado la comprensión de las ideas y las prácticas diplomáticasdel primer peronismo. Perón, en sus dos primeras presidencias nuncaocultó su respaldo a las potencias occidentales y suscribió los puntosde vista de éstas respecto de las visiones sobre el expansionismo soviéticoy chino. No fue neutralista ni no alineado en el sentido en que sedefinirían esas políticas en los años 50 y 60 (Paradiso, 1993:134).

A pesar del hecho que la comunidad epistémica del peronismoconservador de los noventa cuestionó la doctrina, haciéndola responsabledel “aislamiento” argentino, según diversos autores (Paradiso, 1993;

14 Rapoport & Spiguel, p. 224.15 La categoría de análisis la tomamos de Amado Luiz Cervo, Do projeto desenvolvimentistaà globalização, In: Cervo, Amado Luiz & Bueno, Clodoaldo. História da Política Exterior doBrasil. Brasília: Editora da Universidade de Brasília/Instituto Brasileiro de RelaçõesInternacionais, 2. edição; Parte III, p. 457. Ver cita nº 3.

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Rapoport & Spinguel,1994: Bernal-Meza, 1994), no lo fue, salvo enmateria económica, durante el período en que predominó el paradigmasustitutivo de importaciones.

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La dinámica de cambios que se operaban en el sistemainternacional durante los primeros años de la década de los 1970 llevóa Juan Carlos Puig a formular una actualización de la Tercera Posición.Su diagnóstico partía de dos supuestos básicos: la percepción acerca deun nuevo equilibrio de poderes que se estaba gestando (crecientestendencias hacia la multipolaridad) y los procesos de transformaciónen curso en América Latina; buscando modificar las condiciones dedependencia que caracterizaban la inserción internacional de Argentinay que se habían profundizado durante el período posterior a los dosgobiernos de Perón. Su perspectiva se sostenía en la convicción de queno existía una teoría de relaciones internacionales que, por una partesupusiera una aproximación fidedigna a la realidad del sistemainternacional y que, por otra, sirviera eficazmente a los fines prescriptivosde los Estados medianos y pequeños para alcanzar formas másautónomas de inserción externa. Para este autor, el paradigma atomistahegemónico (concepción estado-céntrico) reflejaba estructuras de lacomunidad internacional atrasadas, que conformaban una imagen irreale ideologizada que favorecía a las grandes potencias, en detrimento delas pequeñas y medianas; en tanto que las interpretaciones sustentadasen el Derecho Internacional (juricistas), se basaban en una perspectivaesencialmente normativa, que dejaba de lado el examen de la realidadsocial y de la justicia.16 Al mismo tiempo, el paradigma tradicional(realismo), limitaba las perspectivas interpretativas de las propiaspotencias, ya que las mismas no advertían que su poder de destrucciónmasiva no podía traducirse en políticas concretas.17

16 La “Doctrina de la Autonomía” está ampliamente desarrollada por su autor en dostrabajos posteriores (Puig,1980;1984), que son complementarios a su vez.17 Puig fue quizás el primer analista que advirtió la no-fungibilidad del poder nuclear.

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En relación a la autonomía, Puig, continuando el pensamientode Jaguaribe,18 señaló que existían posibilidades autonómicas para losEstados miembros de un bloque, pero que aquellas no eran advertidas,por conveniencia o ceguera y que, aún en un marco de asimetría sistémicase podían llevar a cabo políticas o estrategias autonomizantes, manteniendouna lealtad estratégica con Occidente en cuestiones vitales.

El tránsito desde la dependencia a la autonomía podíaproducirse sólo en la medida que los países avanzaran en materia deviabilidad nacional. La capacidad de autonomización implicaba tresestadios: dependencia para-colonial; dependencia nacional y autonomíaheterodoxa. El factor “viabilidad” se transformaba en uno de losinsumos sustanciales de su teoría. Para su desarrollo, se requería contarcon elites nacionales funcionales, decididas al cambio y la implementaciónde auténticas estrategias autonomistas, lo cual implicaba, necesariamente,reconocer la condición de “dependiente” y la voluntad política paraconstruir una alianza (“solidaridad estratégica”) en contra de sudominante. Era aquí, por consiguiente, que una integración regional olatinoamericana, que tuviera objetivos autonómicos, apoyados enmodelos de desarrollo nacional congruentes, pasaba a ser instrumental.

Si bien – tal como señala un autor – en la evaluación de laexperiencia peronista no se deben subestimar las habituales brechasentre propósitos y logros, entre formulaciones de mediano plazo y elitinerario de la coyuntura, un propósito central del gobierno (hasta lasegunda mitad de 1974),19 fue reducir las ataduras a la esferanorteamericana y diversificar el sistema de relaciones políticas yeconómicas externas, aumentando el peso de Europa, América Latina,el bloque socialista y los países afroasiáticos (Paradiso, 1993:170).

El tercer gobierno de Perón, a partir de 1973, que siguiera aunos meses de gobierno peronista “sin Perón” (correspondiente a lagestión de Cámpora), se caracterizaría por una mayor heterogeneidad

18 Jaguaribe, Helio. Desarrollo político: sentido y condiciones. Buenos Aires: Paidós, 1972;también, más tarde, su profundización, Autonomia periférica y hegemonía céntrica In:Estudios Internacionales. Santiago: Instituto de Estudios Internacionales de la Universidadde Chile, Año XII, Nº 46, abril-junio de 1979.19 Juan D. Perón fallecería justamente el 1 de julio de ese año.

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en la vinculación entre modelo de política exterior y estrategia dedesarrollo. Perón buscó desde el inicio mayor correspondencia entreambas. El Plan Trienal 1973-1977 – inconcluso como consecuenciade la muerte de Perón y las diferencias que pasaron a expresar los gruposde poder en torno a la nueva presidente, María Estela viuda de Perón –resaltaba la importancia del papel de las empresas extranjeras y de laintegración latinoamericana en la transformación de la estructuraproductiva, aún cuando en el plano diplomático retomaría su antiguavocación por el alto perfil y el bajo alineamiento.

Apoyándose en esa visión autonomista y en la lectura sobre lasnuevas condiciones de multipolaridad, el gobierno argentino concedióuna línea de crédito al gobierno cubano, para la adquisición deautomotores y camiones. Si bien esta negociación fue posible por el“nuevo diálogo” que impulsaba el gobierno norteamericano, Puig –principal impulsor de la iniciativa, en su condición de canciller – exaltóel hecho de haber aprovechado la Argentina, económicamente, esasituación. Así, 15.000 vehículos fueron exportados a Cuba.

Sin embargo, la doctrina careció de una reflexión sobre ladesagregación del agente autonómico, aspecto que – situado en el debatede los años 90 – se traduciría en la cuestión acerca de quién, es decirqué sector o alianza política y social, debía dirigir el proceso dereestructuración del Estado, para transformarlo en el agente estratégicode la modernización, la industrialización, la creación de un gran mercadonacional impulsando la redistribución más equitativa de los ingresos,etc. Era necesaria una profundización del estudio de la vinculaciónentre sistema político doméstico y política exterior. Era esta relación,tal como se advertiría en las décadas siguientes, la que permitía explicarsepor qué las élites gobernantes – teniendo la posibilidad de elegir entreuna y otra estrategia – decidían por aquella que no conducía a laautonomía.

Obviamente, la Doctrina de la Autonomía fue diseñada paraun orden internacional dominado por el paradigma Este-Oeste y lavigencia de un conflicto permanente entre las superpotencias. Elloexplica que los criterios de “impermeabilidad intra-bloques”,autonomización intra-bloques”, y “permeabilidad extra-bloques”, a

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partir de los cuales una política exterior podía definir el carácter de suposicionamiento en el orden bipolar, se relacionaran a la existencia deesferas de influencia y que, al desaparecer una de ellas, cambiarafundamentalmente el carácter y sentido asignado a estos criterios.

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El abandono del paradigma desarrollista de Estado (empresario,intervencionista, también benefactor) ocurrió en Argentina mucho antesde que el nuevo modelo de política exterior – el “Realismo Periférico”– impulsara una alianza subordinada con los Estados Unidos, corolariode la implantación en el país de uno de los ejemplos más voraces deneoliberalismo, para el cual se acuñara la expresión de capitalismo salvaje.

Como se verá en el análisis, este modelo de política exteriorvino a complementar lo que en la economía había iniciado el régimenmilitar, en 1976.20 La convicción de la nueva alianza político-financiera-militar, que veía a la Argentina como un país pequeño en el escenariointernacional – dada su débil y limitada capacidad industrial y sincondiciones de seguir intentando una inserción económica internacionalpor vía de la promoción de un sistema exportador basado en dichosector – les llevó a buscar una inserción en el mercado internacional decapitales, ante la evidencia de que esos flujos eran fundamentales parasu ciclo económico. Este hecho puso a la cabeza del poder económicoal sector financiero, desplazando de allí al sector industrial nacional.Esta es la estructura de poder económico que dominaría al país durantelos siguientes 26 años: un sector financiero de fuertes ramificacionestransnacionales, asociada a un reducido número de grandes gruposeconómicos y empresas (que en buena medida son sus subsidiarias) yde la alianza de éstas con el capital internacional de acumulación intensivay del capital financiero móvil, a través de la propiedad de las empresasprivatizadas. Paralelamente, la ideología neoliberal, que hacía de la críticaal modelo desarrollista de sustitución de importaciones su eje articuladorpara fundamentar la aceleración de su implantación en la Argentina,

20 Para una visión más amplia del neoliberalismo en la Argentina, entre otros, cfr. Rapoport(2000), Ferrer (1998), Bernal-Meza (2001:2001ª).

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justificaría con ella el proceso de desmantelamiento de la industrianacional, retrotrayendo al país a una situación de productor primario.

Un grupo de académicos y diplomáticos se transformaría en lacomunidad epistémica del peronismo conservador, dando al gobiernode Carlos S. Menem el soporte ideológico-conceptual y cognitivo queel modelo neoliberal requería. De ese grupo, el aporte más significativo– desde el punto de vista de la creación de paradigmas alternativos a latradición de la política exterior argentina – fue el de Carlos Escudé.Este grupo construiría su cosmovisión recurriendo al revisionismohistórico para leer el pasado de la inserción internacional del país.

Como señalaría otro de los críticos del “realismo periférico”,esa singular versión de política exterior resignaría sistemática yvoluntariamente todo indicio de autonomismo. “Rápidamente, losactos y las palabras se pusieron en línea con un propósito casi excluyente:lograr el beneplácito de las autoridades norteamericanas, sobrepasandosus expectativas. La fórmula elegida no tenía nada de sofisticada.Simplemente se trataba de decir lo que se suponía que en el Nortedeseaban escuchar y hacer todo aquello que se suponía que desearanque se hiciese” (Paradiso, 1993:197).

La Argentina, dominada por el pensamiento de la comunidadepistémica, hizo suyo el discurso del Norte sobre la naturaleza históricay genético-formativa del mundo, poniendo así la atención sobre las“propias culpas de los latinoamericanos”. De esta forma, el paísabandonaba la visión dependentista21 sobre el desarrollo y el subdesarrolloy asumía un discurso subordinado sobre la responsabilidad propia enel fracaso histórico del camino hacia el desarrollo económico.

21 Sostenida sobre la tradición del estructuralismo latinoamericano. Como señaló Tomassini,“La única contribución importante que ha efectuado América Latina a la teoría de lasrelaciones internacionales – un área donde el tradicional rasgo de la disciplina se ha vistoagravado por el desalentador silencio – se inscribe dentro de este último contexto. Desdefines de los setenta un conjunto de intelectuales latinoamericanos como Fernando HenriqueCardoso, Helio Jaguaribe y Osvaldo Sunkel desarrolla la teoría de la dependencia, que másadelante es ávidamente asimilada por los Estados Unidos. La idea central de la teoría, de lacual existen numerosas versiones es la de que la evolución de los países ricos y de los paísespobres es parte de un mismo proceso que produce desarrollo en los centros y subdesarrolloen la periferia. En otras palabras la condición de los países subdesarrollados es un consecuenciadel capitalismo mundial. Cfr. Luciano Tomassini (1988).

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La lectura histórica de las relaciones argentino-norteamericanasconstituyó el núcleo central de las fundamentaciones que señalara elautor del Realismo Periférico para proceder al cambio de paradigma depolítica exterior y es, asimismo, el eje que articula su ontología.22 Setrata de un modelo que impulsa y sostiene la necesidad de abandonarlo que considera una tradición de políticas de aislamiento y confrontacióncon Estados Unidos, necesidad que es a-temporal – en el sentido deindependiente – de las condiciones derivadas del fin de la Guerra Fría.Su utilitarismo sostiene la construcción de una relación especial, unaalianza de largo plazo con la potencia, que se asienta en la argumentaciónde la “irrelevancia argentina para los intereses vitales de la potenciahegemónica.”23

Los principios básicos del realismo periférico pueden resumirseen los siguientes:24

• La política exterior de un país vulnerable, empobrecido ypoco estratégico debe ser del más bajo perfil posible, paraevitar la confrontación, salvo en aquellos asuntos materialesvinculados en forma directa con su bienestar y su base depoder; adaptando sus objetivos políticos a los de esa potenciadominante.

• Esta política exterior debe formularse teniendo en cuenta larelación costo-beneficios materiales y considerando los riesgosde costos eventuales.

• Ella requiere de una reformulación y reconceptualizaciónde la autonomía, en términos de la capacidad y costosrelativos de la confrontación.

22 Aquello que le pertenece esencialmente al paradigma.23 Carlos Escude desarrolló su modelo de política en dos obras principales. Cfr. Escude(1992;1995), si bien los antecedentes están en la presentación que el autor hizo en unseminario organizado por Flacso y llevado a cabo en Buenos Aires, para abordar las relacionesargentino-norteamericanas y que fuera posteriormente publicado. Cfr. Carlos Escudé (1989).Para nuestra crítica al modelo y de su implementación, cfr. Raúl Bernal-Meza (1994; 2000),respectivamente.24 Según la síntesis que realizamos; cfr. Raúl Bernal-Meza (1994:193).

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Para el autor del paradigma de política, la reducción de costos yriesgos debía ser el principal objetivo de la dimensión política de unEstado dependiente (Escudé, 1992:112), ya que enfrentar políticamentea los poderosos era contraproducente para el interés nacional de paísesdependientes, vulnerables y poco estratégicos.

La primera versión del paradigma apareció en una compilaciónde trabajos, correspondientes a un seminario sobre política exterior yrelaciones argentino-norteamericanas, editada en 1989. Su autorfundamentaba el alineamiento con las grandes potencias de occidente– y con Estados Unidos en particular – partiendo del supuesto que,dadas las relaciones de poder en el mundo actual, la única políticaposible era aquella basada en una aceptación realista de los límites ydiferencias entre ellas y un país dependiente, vulnerable y poco relevantepara los intereses vitales de los países centrales (Escudé, 1992:63).Adoleciendo el país de recursos de poder, lo que le resta es crecer ydesarrollarse, abandonando las confrontaciones en aquellos temas queno son relevantes para su propio desarrollo económico.

El realismo periférico es así la política exterior de un “Estadocomercial”. La dimensión política de la política exterior, según el modelo,debía tener como función primordial el reducir costos y riesgos demediano y largo plazo, limitando las confrontaciones con los grandesa los aspectos económicos, administrando la política exterior conprudencia y sentido de realidad (Escudé, 1992:122). La ecuación quedebía determinar la funcionalidad de esta dimensión “política” era:beneficios materiales vs. costos previsibles + ponderación del costo de lageneración de percepciones negativas + riesgos de costos eventuales (Escudé,1992:132).

En un libro que complementaba la fundamentación delrealismo periférico, Felipe A.M. de la Balze señaló los cinco objetivosque marcaban el cambio radical de la “nueva política exterior”:1) reinsertar a la economía argentina en la economía mundial;2) construir una relación “especial” con Estados Unidos; 3) profundizarla integración económica y la cooperación política con Brasil; 4) crearuna “zona de paz” en el Cono Sur de América, y 5) desarrollar unapolítica de prestigio internacional.

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Nuestra crítica a la visión revisionista y voluntarista quereflejaban algunos de estos objetivos fue desarrollada en otros trabajos.25

Vale aquí recordar la interpretación que Amado Cervo, desde unaperspectiva brasileña y contraria al neoliberalismo, expresaba sobre losmismos. En relación al primero, señalaba que

esse parámetro decisório surpreende o observador, já que não leva emconta o fato de que a desnacionalização da economia interrompe ageração e a apropriação de tecnologia pelo sistema produtivo nacional,a indicar a ruptura filosófica com o passado. Daí a ênfase no maisrelevante dentre os objetivos econômicos da política exterior, o deaumentar o fluxo de investimentos externos no país com o intuito deprovocar a modernização da estrutura produtiva local (Cervo,2001:287).

Este objetivo se relacionaba con la apertura unilateral impuestaal comercio internacional. Así as condições internas para tornar exeqüíveisos dois objetivos da política econômica externa foram as reformas estruturaise a estabilidade monetária. Fechou-se, desse modo, o círculo da políticaeconômica externa e interna (Cervo, 2001:288).

Sobre el segundo objetivo, lo que más llamó la atención de laperspectiva “externa”, expresada en la visión de Cervo, era lafundamentación acerca de la adopción de una estrategia conducente aconstruir una “relación especial” con Estados Unidos, según la cual, enel largo plazo, la Argentina podía llegar a conseguir que la potenciaconsiderara natural pedir su opinión en los temas claves de la políticalatinoamericana de Washington y que se sintieran incómodos deignorarla, una ficción propiamente ideológica, según Cervo. Por último,en relación al 5º de esos objetivos, Cervo llamaba la atención también,coincidiendo con el autor del presente capítulo, en que esa política deprestígio recuperaba la tradición principista del pasado peronista. Sinembargo, no tenía en cuenta el realismo, por lo cual –fundándose enotras experiencias de la historia – esa conducta fracasaría, dado queArgentina carecía de poder. En síntesis, la Argentina aplicó una“subordinación autoimpuesta” a la hegemonía norteamericana.

25 Cfr., Sistema Mundial y Mercosur, op. cit.

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Esta política exterior era sí la correlación estrecha con un modelode desarrollo dependiente y subordinado, que retrotraería a la Argentinaa una condición de país primario-exportador. Las políticasimplementadas desde 1976, extremadamente profundizadas durantelos años 1989 hasta el presente, llevaron al país al retorno a unaeconomía de fuerte fragmento dual, con un segmento social yeconómico asociado al mercado internacional, la inversión extranjeraen la industria y los servicios públicos y los grupos económicos asociadosa ésta en las actividades dinámicas de la industria y los servicios; por elotro, la mayor parte de las empresas medianas y pequeñas de capitalnacional, las fuerzas del trabajo y las economías regionales. En estecontexto, las ventajas relativas y comparativas, en relación a otros paíseslatinoamericanos, que caracterizaron por décadas a la Argentina, porsu mayor nivel general de educación de la población, una mayorproporción de clases medias, respecto de los sectores altos y bajos,mejores y más amplios servicios de salud y vivienda, se han diluido.De acuerdo datos del Banco Mundial, para 2001 el país tenía un 11%más de pobreza que en 1988 y, según Unicef y Naciones Unidas, existíaun 45% de niños pobres. Un informe con datos oficiales del Indec26 ydel Banco Mundial, publicado por la prensa argentina el 21 de mayode 2001, señalaba que, sobre una población de cerca de 37 millones,existían más de 6 millones de niños y jóvenes que vivían en hogarespobres, lo cual significaba que el 53% de los 11 millones y medio demenores de 18 años de todo el país eran pobres y en 1 de cada 5viviendas con menores pobres el jefe de familia estaba desempleado(Bernal-Meza, 2001:59). Con una tasa de pobreza actual de más del40%, desempleo del 26%, subempleo del 25%, analfabetismo superioral 10%, altas tasas de deserción escolar y desmantelamiento de suestructura universitaria, científica y tecnológica, el país caminóaceleradamente hacia el atraso. Contando con más de 50.000establecimientos industriales propios hacia 1929, hoy, de las 500grandes empresas, más de 300 son extranjeras.

El modelo rindió extraordinarios beneficios para ese sectorfinanciero (nacional e internacional) que se hizo con el poder económico

26 Instituto Nacional de Estadísticas y Censos, Argentina.

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a partir de 1976 y que se profundizaría a partir de 1989, a través de laimplementación de las políticas monetaristas del FMI, de la privatizaciónde empresas públicas, de la transferencia al sector privado del ahorro,por vía de los aportes jubilatorios27 y otras políticas, comerciales eimpositivas. Gracias a la estrategia neoliberal y de la destrucción delestado desarrollista, la Argentina pasó en 25 años (entre 1976 y 2001)de una deuda externa de 3.000 millones de dólares a cerca de 200.000millones; una fuga de capitales cercana a los 150.000 millones de lamisma moneda; la desaparición de sus empresas públicas, por las cualesel Estado recibió cerca de 40.000 millones de dólares, que se agregan ala apropiación reciente de los ahorros de particulares (“corralito”) por62.000 millones de dólares. La Argentina no tiene hoy ni barcos, niaviones, ni trenes, ni teléfonos, ni petróleo, ni gas, ni servicios públicos(electricidad; servicios sanitarios; metropolitanos, etc.) propios y queantes eran del Estado, es decir patrimonio de todos sus habitantes.Tampoco tiene siderurgia, y sus rutas están privatizadas por el sistemade peajes. Argentina es así el ejemplo de la más acabada involución y aello contribuyó, sin lugar a dudas, el pensamiento de aquella comunidadepistémica.

La situación por la que atravesaría Argentina al comenzar elsiglo XXI, abandonada a su suerte después de más de una década dealineamiento con Washington, refleja el fracaso del modelo de políticaexterior del peronismo conservador. Argentina se encontró sola, dejadade lado por la potencia líder y también por su propio gran vecino ysocio del Mercosur.

No obstante, durante la hegemonía del pensamiento de lacomunidad epistémica del menemismo, hubo un pensamientocontestatario. Como ha reconocido Amado Cervo, al hacer unseguimiento de las relaciones internacionales de América Latina bajo eldominio neoliberal,

outro grupo intelectual e acadêmico da Argentina, contrapôssistematicamente, por meio da cátedra, da investigação e daspublicações, uma oposição crítica a esta comunidade epistêmica. Seus

27 Aposentadurías, no caso do Brasil.

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membros mais conhecidos foram Atilio Borón, Mario Rapoport, AldoFerrer e o próprio Bernal-Meza. Estiveram a postos desde os primeirosmomentos. Prenunciaram os erros estratégicos da opção neoliberal enão necessitaram aguardar os resultados negativos para o país,provocados pela década menemista em termos de indicadores econômicose sociais, para expor suas interpretações (Cervo, 2000:14).

De la obra que esos años me ocupó,28 la línea de interpretaciónsobre la globalización es la que creo merece una atención especial, en lamedida que ella expresa una oposición crítica al “pensamiento único” yel neoliberalismo; basada en la visión histórico-estructural del sistemamundial.

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Para los autores que se encolumnarían tras esta perspectiva,uno de los aspectos esenciales era la necesidad intelectual de echar lucessobre la identificación de procesos, categorías y conceptos, vinculadascon las distintas interpretaciones sobre el vocablo “globalización”. Enla medida que la apelación al mismo justificaba políticas nacionales yestrategias de inserción, la necesidad se asociaba a la reconstrucción delpensamiento sobre el desarrollo.

Aldo Ferrer, Mario Rapoport y Raúl Bernal-Meza conformaron,durante los años 90, parte del grupo que buscó reescribir el pensamientosobre política internacional, a partir de una interpretación del procesohistórico que dio origen a la actual etapa de globalización.

El aporte de Ferrer (1996; 2000) actualizó y profundizó elconocimiento sobre los orígenes del mundo moderno y la configuraciónde los primero y segundo órdenes económicos mundiales; fundamentalespara comprender la gestación de la fractura desarrollo-subdesarrollo ycentro-periferia.

28 Entre ella, la vinculada a la interpretación del proceso histórico en el cual se dio laexperiencia neoliberal, cfr. Bernal-Meza, Raúl (1991; 1994; 1994ª; 1996; 1997; 1998y 2000).

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En su primera monumental obra (1996), fundamentó lainterpretación acerca de la configuración inicial de un sistema global.De su descripción se desprende cómo, a partir de los desembarcos deColón en América y de los portugueses en Calicut, ese orden mundialreflejó los cambios en la tecnología y la productividad, sobre cuyasbases posteriormente se transformaron tanto las prácticas de podercomo los sistemas de dominación que articularon las relacionesinternacionales.

Su argumentación sostiene que la historia de la globalizaciónpuede ser abordada a partir de una periodización, construida sobre labase de las características distintivas y de la naturaleza de las fuerzasoperantes en la formación de este sistema planetario. La primera etapa,o sea el Primer Orden Económico Mundial, comprendido entre 1500y 1800, fue objeto entonces del volumen I (1996). En su segundovolumen (2000), analiza como fenómeno dominante a la RevoluciónIndustrial, abarcando desde los albores de 1800 hasta el estallido de laPrimera Guerra Mundial. Este período, bajo la hegemonía británica,coincidiría con la imposición del corredor “centro-periferia”, quecaracterizó el comercio internacional y que él mismo había analizadoen una obra de los años 70 (1976).29

Paralelamente, en un estudio de 1997, señaló que sobre hechosy cambios estructurales del orden internacional, que constituían el ethosde esta globalización, se había construido una ficción de la realidad,cuya expresión era lo que él llamó como “la visión fundamentalista dela globalización”, Esas ficciones eran: 1) que la revolución tecnológicahabría conducido a vivir en una aldea global, unificada por la revolucióninformática y el dominio del espacio; 2) que el comando de los recursosde la economía mundial estaba en manos de los actores transnacionales(las corporaciones), que adoptaban las decisiones fuera de los espaciosnacionales, borrando las fronteras y reduciendo a la impotencia a losEstados en su esfuerzo por influir en las cuestiones cruciales; 3) que en

29 Se trata del capítulo América Latina y los países capitalistas desarrollados: una perspectivadel modelo centro-periferia.

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el mercado global competían empresas, no países, imponiendo undarwinismo económico donde sólo sobrevive el más apto; 4) que estefenómeno no tendría precedentes históricos (Ferrer, 1997).30

Mario Rapoport (1997), realizó un amplio, pero a la vezsintético, análisis sobre el concepto de globalización, rastreando su origenen la literatura de las ciencias sociales y señalando, para comenzar, locontradictorio de su sentido, para, seguidamente abordar la construcción“mitológica” del triunfo definitivo del libre comercio y de las supuestascaracterísticas novedosas del proceso de transnacionalización en curso;de la globalización financiera y de las relaciones existentes entre laglobalización y las integraciones regionales. En su trabajo, analizó suscaracteres distintivos y recurrió al estudio de la coyuntura mundial yde los factores históricos para comprender el real significado de laglobalización. Como proceso, lo abordó en relación con los cicloseconómicos y los aspectos financieros y comerciales de éstos,interpretando el papel de los movimientos de capitales y de las empresastransnacionales en el mismo, así como el efecto de las innovacionestecnológicas, los problemas de la distribución de los ingresos y el pesode las distintas corrientes ideológicas predominantes en la esferaeconómica. En una perspectiva histórico-sistémica, concluyódiscutiendo la visión de una etapa “contemporánea”, asignada a eseproceso de globalización, a la luz de la historia del capitalismo y de laexpansión del mercado mundial desde el siglo XV, cuestión en la queestos tres autores coinciden.

A diferencia de mi visión, Rapoport entendió los conceptos de“mundialización” y “globalización” como similares, señalando ladistinción que yo hacía en una primera obra31 dedicada a analizar deconjunto la economía política mundial bajo las nuevas condicionesdel sistema mundial.

30 Hechos y ficciones de la globalización. Buenos Aires: Academia Nacional de CienciasEconómicas.31 Cfr. Bernal-Meza, Raúl (1994).

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El punto central fue distinguir entre el proceso que caracterizabala actual etapa de la dinámica del capitalismo, identificada comomundialización y la ideología que, como concepción del mundo, ahoraacompañaba a aquella. La globalización no era, por tanto, un procesodistinto, diferente, autónomo de la historia social y económica delsistema mundial; eslabón de un largo proceso, iniciado con elmercantilismo, seguido por la internacionalización y luego latransnacionalización de las economías y de las actividades económicasy productivas. La existencia de la globalización era posible sólo y dentrode un sistema mundial. Un sistema mundial cuya característicaestructural era el modo de acumulación dominante (capitalismo-liberalismo). El punto de partida estructural era que mundialización –tal como la entienden en términos de globalización mis colegas Ferrery Rapoport33 – existía desde la configuración del primer sistemamundial, entre final del siglo XV y comienzos del XVI (Bernal-Meza,2000:51).

La actual etapa, que los colegas – en distintas latitudes –denominan “globalización”, identificada como mundialización delcapital, se inscribía en este proceso constante de expansión delcapitalismo. Opté por designar el concepto de mundialización paraidentificar el proceso económico, que daba cuenta de las nuevas formasque estaba asumiendo la acumul ación capitalista, en la producción, elcomercio, los desarrollos científico-tecnológicos, las inversiones, etc.,y dejar el concepto de globalización para comprender tanto a éste comoal complejo de ideas que se integraban en una particular “concepcióndel mundo”.

32 Este fue el título que utilicé para la presentación de mis ideas en el “Segundo CongresoNacional de Ciencia Política” (Facultad de Ciencias Políticas y Sociales, Universidad Nacionalde Cuyo, Mendoza, 1-4 de noviembre de 1995; cfr. Globalización, entre el conflicto y laintegración. Resúmenes de ponencias, Publicación Especial Nº 7, 1995, p. 20-21). El texto fueposteriormente publicado in extenso por Realidad Económica. Cfr. Bernal-Meza (1996).33 Así como toda la traición de pensamiento sistémico e histórico-estructural (desde los másclásicos, como Braudel y Polanyi, hasta los más contemporáneos, como Wallerstein o Arrighi).

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La globalización era la “nueva visión del mundo” del capital.Un paradigma que –como tal – expresaba un marco conceptual,eidético, interpretativo y prescriptivo, cuyo origen estaba en lassociedades, grupos y poderes dominantes y se difundía hacia lassociedades que integran el sistema mundial; desde el centro hacia laperiferia. Desde este punto de vista, ella era un fenómeno reciente, queformaba parte del proceso de mundialización capitalista, pero con unsistema de ideas y una concepción del mundo que no existían en lasetapas anteriores.

La mundialización de la economía capitalista supone que hayuna profundización de la interrelación, simétrica y asimétrica, de laseconomías, por vía de las corrientes de comercio, bienes, flujos decapital e inversión extranjera directa, en un marco de crecientepredominio de las corporaciones transnacionales en el control de estasoperatorias. En tanto, la globalización, como perspectiva ideológica,impulsa la aplicación de políticas, por parte de los países en desarrollo,tendientes a que sus políticas económicas y sociales se ajusten a estasrealidades de la mundialización, cuestión que se traduce en demandaspor la apertura, desregulación y eliminación de trabas al ingreso debienes, servicios, movimientos de capitales y las transferencias detecnología, asociados a profundos cambios en la naturaleza y lasrelaciones entre sociedad, Estado y gobierno34 (Bernal-Meza, 2000:63).

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Gracias al recurso ideológico, durante los últimos lustros,“expertos”, comunidades epistémicas y gobiernos contribuyeron demanera decisiva para imponer un nuevo conjunto de creencias causalesy normativas, cuyo núcleo duro lo constituía la idea de que el problemaclásico (y no resuelto) del desarrollo, como consecuencia de la dualidadproducida por el capitalismo, caracterizada en la morfología centro-

34 Este proceso lo hemos seguido durante la década de los 1990 en distintos estudios; cfr.Bernal-Meza, Raúl (1991;1993;1994 y 2000).

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periferia, ya no existía.35 Bajo esta nueva visión el Estado debía dejar ala fuerzas dinámicas del mercado conducir la economía y las relacionesentre la estructura económico-social nacional y el mercado mundial.Ya no cabía a los Estados o sus gobiernos, sino a los agentestransnacionales, el poder de decisión sobre el destino de las economíasnacionales y sus finanzas, donde la inserción de estos países en el sistemaeconómico mundial se daría ahora en forma pasiva, a través o pormedio de la adopción de políticas neoliberales, las que asignaban alEstado una reducida intervención en los mercados. Esta nueva formade inserción era posible – dentro de la adopción del modelo neoliberal– a través del proceso de privatizaciones, la apertura y desregulacióneconómica, de los mercados financieros y de bienes transables. Estapolítica formaría el núcleo de medidas y políticas amistosas hacia elmercado mundial, caso contrario los países se verían en riesgo de sufrirfugas masivas de capitales especulativos de corto plazo, reducidos susniveles de credibilidad externa y, por ende, disminuidas sus posibilidadesde captar nuevas inversiones.

Estas políticas se acompañaron de una amplia flexibilizaciónde los sistemas de seguridad social, del mercado laboral y de los salarios;además del equilibrio macroeconómico y reducción del gasto socialpúblico. Todas estas medidas pasaban a ser vistas como un test sobre la“gobernabilidad democrática” de los países en desarrollo. En la medidaque los gobiernos las aplicaran pasaban a contar con un aval de“estabilidad y gobernabilidad”; en caso contrario, eran ejemplo de laingobernabilidad democrática.

Esta visión del fenómeno de la globalización, considerada comofundamentalista36 y parte de la estructura ideológica de esa nueva visióndel mundo, según mi perspectiva, se transformaría en una formidable

35 Como ejemplo, recuérdese el Mensaje del presidente Carlos S. Menem en la Cumbre delMovimiento de los No Alineados, en Belgrado: “…No llego para reafirmar la peor denuestras dependencias: la dependencia de pensar que nosotros mismos no tenemos culpaalguna de nuestros propios destinos”. Como señala J. Paradiso, “El mensaje era muy claro:Argentina hacía suyos los argumentos con que habitualmente las potencias del Norte habíandesestimado las razones del Sur” (Paradiso: 1993:198).36 Según la interpretación de Aldo Ferrer (1997).

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herramienta de la nueva colonización política y cultural que se impusosobre los países en desarrollo (Bernal-Meza, 2000:64-65).

En el caso argentino, esa concepción fue la que impuso elmenemismo, siendo el realismo periférico su instrumentación ideológico-práctica en política exterior.

Como sucede generalmente, existe en los países una significativadiferencia entre las propuestas de política – y las definiciones que losfuturos gobiernos aspiran a llevar adelante en materia de política exterior– y la realidad.

Los ejemplos de paradigmas aquí analizados constituyerondiseños y análisis en tiempos de democracia. Aquellos que fueronimplementados, “Tercera Posición”, “Autonomía Heterodoxa”, “RealismoPeriférico”, lo hicieron en períodos de gobiernos constitucionales. Estehecho de la realidad señala la inexistencia de una vinculación entrerégimen político y política exterior para la comprensión de cambiostan radicales y contrapuestos en sus fundamentos y praxis.37

Paradojalmente, los gobiernos constitucionales del pasadoanterior a Menem, moderaron su vocación “independentista”, mientraslos gobiernos de facto morigeraron su vocación por el “alineamiento”,tradición que se rompería gracias al impacto del paradigma construidopor la comunidad epistémica del menemismo. Éste constituye así lagran excepción. Como señala un autor, “precisamente, en la discusiónde los años 80 (estuvo) implícito el interrogante acerca de si un paíscomo Argentina debía o podía tener una política exterior. Siguiendo lalógica de muchas de las argumentaciones y ejemplos mencionados enrespaldo de la combinación de bajo perfil y alineamiento, debía arribarsenecesariamente a una respuesta negativa. Esta es la tendencia que se haimpuesto en los primeros 90.38 Tanto en el plano de la política exteriorcomo en el de la estrategia de desarrollo. En definitiva, se trata de notener ni una ni otra (Paradiso, 1993:205). Así, como ocurrió duranteel período agroexportador, cuando los grupos gobernantes decidieron

37 Tal lo que sí se pudo advertir en otros momentos de la historia contemporánea y, tambiénen el ejemplo de otros países. Cfr. Roberto Russell (1988;1989). Para el ejemplo chileno,cfr. Bernal-Meza (1989, 1989ª).38 Que en nuestra perspectiva se extiende hasta el presente; cfr. Bernal-Meza (2001).

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por un modelo de desarrollo subordinado, con una política exterior,adscripta a una visión europeo-céntrica de un mundo liderado porGran Bretaña, ahora, por primera vez, durante el siglo XX, una políticaexterior subordinada constituyó el complemento de una estrategia de(sub)desarrollo dependiente.

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Frank R. Pfetsch*

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The image is imposing: The devastating two World Wars ofthe past century, the Korean War, the Vietnam War, the war in Bosnia-Herzegovina or in Kosovo make the last century appear warlike. Ifone calculates that there were about 100 million dead (WW I 7.9m,WW II 37m), 20 million refugees and exiles and figures the costs ofwars to be about $7.74 trillion (exchange rate Aug. 30th 2000), thecentury takes on almost dreadful proportions. Is this image of massacresof nations and exodus the label of the last century or can other namesbe applied to the century?

The outstanding events in Europe naturally are the two WorldWars, the proclamation of the Soviet Union following the Bolshevikrevolution, the world economic crisis, the seizure of power of Mussoliniand Hitler, the Iron Curtain, the foundation of two German states,the building of the Wall and the fall of the Wall followed by Germanunification. The years of the student revolt are still present in ourmemory as well as the murder of presidents and religious leaders.Natural and human catastrophes are present on TV screens and shapeour memories of the century.

The 20th century has received two contrasting designations:On the one hand, it has been called “the most dreadful century in thehistory of the West” (Isaiah Berlin), “the century of massacres andwars” (René Dumont), “the most violent century” (Ploetz) or the“century of disasters”. The “century of extremes” has brought “the mostterrible increase in world population” (Ernst Gombrich) and has“destroyed all illusions and ideals” (Yehudi Menuhin).

* Professor de Ciência Política na Universidade de Heidelberg, Alemanha.

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On the other hand, it has also been the century of “revolutionsto the better”, with “the advancement of the fourth estate and theappearance of women after centuries of suppression” (Rita LeviMontalcini), and the century of “technical progress” (Severo Ochoa)and “electrical technology” (Raymond Firth) and it is connected withthe “victory of the ideals of justice and equality” (LeoValiani); finally,the century left behind a legacy of speechlessness and “the always newattempt to understand” (Franco Venturi) (quotes from Hobsbawn1998, p. 15-16).

No wonder that the past century has received quite differentdesignations and classifications. The following periods can beidentified: The “Thirty Years War”, meant as the period from thebeginning of World War I to the end of World War II, 1914 to 1945;the “Golden Age” (Hobsbawn) of economic prosperity in Westerndemocracies as well as in Eastern planned economies, lasting from theyears of the “economic miracle” starting in the 1940s up to 1973(collapse of the Bretton Woods system in 1971 and the first OPECcrises in 1973). Reinhart Koseleck (1999) identifies the East-Westconfrontation as the most dominant constellation of the century. This“worldwide civil war” seized most parts of the globe. The period ofcontrasting ideologies, also known as the ideological civil war of the20th century, starts with the foundation of the Soviet Union in 1917and ends in 1989/1990 with the implosion of the Soviet system. HansUlrich Wehler identifies the century in the trade off between democracyand market economy and suggests an epoch designation: “era of socialdemocracy”. The American historian Charles S. Maier talks about the“long 19th century” from 1789 until 1914 and the “short 20th century”from 1914 to 1989. Here, nation state, democracy and industrialisationbecome important criteria for the modern age. Maier also suggestsusing the development of geopolitical and politico-economical spheresas criteria. According to this, the epoch of global territorial developmentcame to an end in the 1980s (FAZ 20.1.2000). The fascist andcommunist regimes of the century allow us to designate the century as“Century of Totalitarianism” or “Ideologies of Totalitarianism”. DanDiner (1996: p. 3-10) identifies the time before and after totalitarianism

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as a continuation of traditional national power politics as practiced inthe 19th century. The 20th century has also been called the “German”century that begins with German aspirations for world power in thepost-Bismarck era and ends with the defeat of Nazi Germany.

Such divisions in periods describe the century from verydifferent points of view, coined by economical, social, ideological orpower conflicts. This enumeration shows that a calendar is aquestionable measure for a historical chronology. Historical events andprocesses do not conform to the Julian calendar.

The point of view in my analysis of the 20th century focuseson conflict and co-operation in their extreme characteristics of warand peace. In doing so, states and their understanding of politics arecrucial. Additionally, international organisations and non-governmentalactors came along to influence conflicts.

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How does the 20th century appear in the light of warlikeconflicts, keeping in mind that the century has been characterised bywars and massacres, violence and civil wars? What theoretically groundedand empirically assured statements can be made?

First of all, a definition of war should help. According toNiccolo Machiavelli’s ‘History of Florence’ war is related to violenceand destruction: “… one cannot speak of wars, if no men are killed,no cities are raided, no states are destroyed” (Machiavelli: History ofFlorence V, 1). The Heidelberg project of conflict research, KOSIMO,uses the following description to collect its data: “Wars are conflictswith fighting of at least two opponents with organized, regular militaryforces that last for a considerable period of time and lead to victimsand destruction, and in which the number of victims and the scope ofdestruction is high” (Pfetsch/Rohloff 2000). Using this empiricalinquiry it can be shown in a first overview that a global analysis ofconflicts leads to a more differentiated view than is the case from aEuropean or Western outlook. During the 20th century there havebeen changes at least in parts of the world regarding the perception of

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war and peace. Also the handling of warlike conflicts has changedaccordingly.

According to the Western perspective1 the observable conflictssuggest that we divide the century into two halves. Until the end ofWorld War II the style of political action was dominated by the politicsof national power and prestige, i.e., countries believed that politicalcontrasts had to be dealt with by military means. According to thisso-called ‘Realpolitik’ war was considered to be a tolerable means ofpolitics, even though the Briand-Kellog-Pact proscribed war. The mythof indivisible national sovereignty did not make it possible for thoseinvolved to abandon this myth in favour of peaceful solutions. Thelast major war in Western Europe after 1945, the Greek civil war, wasdominated by these thoughts. Since then, a new pattern of conflictcoverage has won recognition in this part of the world. The integrationof states and their involvement in a new mutual system of politicshave led to a peaceful solution to centuries-old conflicts. Hand inhand with the establishment of intergovernmental patterns of politicscame the establishing of democracy in Western states. No more warshave been fought since. The change of paradigms from confrontationalnational power politics to co-operative regional politics and politicsof integration has been brought on by the failure of the zero-sumpolitics of two World Wars and has led to the success of positive-sumpolitics with its gains through co-operation instead of losses throughconfrontation.

Regarding conflicts on a global scale, the century seemed to bedominated by the imperial politics of the European colonial powers,and these politics were indeed global. The world empires of GreatBritain and France as well as the colonies of the Dutch, the Belgians,

1 In modern times, at least ten major wars have taken place: the Italian Wars 1494-1516,the Netherlands War of Independence 1572-1578, the Thirty Years War 1618-1648, thewars of Luis XIV 1667-1714, the wars of the League of Augsburg 1688-1697, the SpanishWar of Succession 1701-1714, the Austrian War of Succession 1740-1748, the Seven YearsWar 1756-1763, the Napoleonic Wars 1792-1812, World War I 1914-1918 and WorldWar II 1939-1945 (Levi: 1985). The decade following the end of the East-West-Conflictwith 15 new wars, most of them in Europe, can be regarded as relatively violent.

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the Spanish and the Portuguese included almost all countries of thelater so-called Third World. Until the end of World War II imperialismand rivalry between Western-European great powers have been thedominant formation in these countries. Afterwards, the United Statestook over the dominant role from Western-European countries. TheSoviet Union came along after gaining influence beyond the Euro-Asian continent. This formation, however, has been far less extensivethan the era of imperialism. Numerous former colonies, which becameindependent, have not been directly influenced by the East-Westconflict. The Organisation of Non-Aligned Nations (even though theywere closer to the Eastern superpower) aimed to be independent fromany bloc. Whether this has been successful or not is another question.The Non-Aligned movement found its organisational form in theGroup of 77, which to date has more than 130 members. These nationshave not been a direct part of bloc-building between East and West,and explicitly did not want to. This means that a great number ofstates has not been involved in the northern hemisphere’s conflictbetween East and West.

The confrontations of the superpowers provide additionalinformation about the range of the East-West conflict. During theCold War they faced each other in 49 conflicts, most of theminternational and violent disputes (cf. Pfetsch/Rohloff 2000, p.160).If these conflicts are restricted to the same territory, the superpowers“only” 33 times confronted each other in conflicts among thirdcountries or in their territories. Five times they have been directlyconfronted in air and see clashes. Compared to the total number ofnearly 700 conflicts in the post-war period, superpower conflicts havebeen limited. The superpowers even stood on the same side in fiveconflicts: in the conflict of Indonesian independence, in the conflictbetween Saudi-Arabia and Abu Dhabi, in the conflict between SriLanka and Rhodesia as well as in the war between Kuwait and Iraq.The direct confrontation as well as the indirect support of opposingparties through superpowers do not establish the only determiningconflict pattern. Even if counting the so-called representative wars thepicture does not change that much. In such dependent replacement

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wars the superpower itself stays in the background. The most familiarexamples are the eleven interventions of the Soviet ally Cuba in Africa(i.e. Ethiopia, Angola, etc.) or the US-allied groups of the Contras inNicaragua. The behaviour of the superpowers in the Security Councilof the United Nations proves that the antagonistic rivalry hasdiminished since the 1970s, at a point of time when spheres ofinfluence have been almost established and respected.

How limited the European perception is can be seen by thenumber of warlike involvements during times that the Europeansgenerally consider peaceful. The era between 1815 and 1914, whichHenry Kissinger has praised as the era of European equilibrium, saw420 wars. That means more than four wars per year. In the short timespan of 18 years between the two World Wars (1920 to 1938) 145wars have been counted. That is twice as much as in the era of Europeanequilibrium. These periods were not as warlike for Europe, but werefor the rest of the world. This statement does not at all contradict thecalculations of Pitirim Sorokin, who labelled the 19th century,compared with preceding and succeeding centuries, as being verypeaceful (cf. Table 1). His index, describing the extent and importanceof wars and based on 100 of them for the 15th century, amounts to370 for the 18th century, 120 for the 19th century and for the first halfof the 20th century to 3080 (Sorokin 1937, in Wright 1942: p.237).Quince Wright, another important American war researcher, confirmsthat according to his calculations the 19th century was not the mostwarlike with 215 wars compared to the 17th century (239 wars) and18th century (149 wars). The inter-European wars declined during thelast centuries but the imperial wars increased (Wright 1942: p.654,638, 640). The 19th century shows clearly its imperial character with60 wars outside of and 29 within Europe (Wright 1942: p.651). Thisdata proves that the European view and the here perceived violence arehighly selective and do not represent the wide spectrum of violence inthe world. The same holds for the East-West conflict, which, as a bigsociety formation, surely has included Europe and many other partsof the world; but there have been many countries outside the spheresof influence of the superpowers.

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Table 1Sorokin (violence index, basis 15th century = 100)

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Calculations per century show that during the first threecenturies of modern times there was a total of 227 wars (1500-1599 =60, 1600-1699 = 100, 1700-1799 = 67). This lies below the twosubsequent centuries with a total of 854 wars (1800-1899 = 394,1900-1999 = 460). The distribution over the two halves of the 20th

century is admittedly uneven: while counting 362 wars in the firsthalf only 98 wars have occurred in the second half (cf. Graph 1).

Graph 1Distribution of wars according to centuries

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The 20th century saw more wars than the preceding centuries,but the first half was much more violent than the second. This is evenmore astonishing, if one considers that the number of countries morethan quadrupled after 1945 and that this means more possible attackersand defenders.

The 19th century shows an unequal distribution as well, but ininverted order: in the second half twice as many wars took place thanin the first half. According to this statistic the 20th century is linked(eventually connected) to the 19th century. The violent second half ofthe 19th century is followed by the even more violent first half of the20th century. During the second half of the 20th century even fewerwars took place than during the first half of the 19th century. A decreasein the number of wars can be clearly seen since the mid-20th century.The conflicts suggest that the first half of the 20th century is to be seenas a continuation of the 19th century and the preceding centuries.National power politics dominated the thoughts of politicians untilthe end of World War II. The conflict calendar should span from themiddle of the 19th century to the middle of the 20th century and notfrom century to century. It can be said that the span of time betweenthe Crimean war of the 19th century and World War II in the 20th

century was the most warlike hundred years of the last millenniumand, therefore, this period can be labelled as the era of European warsor era of wars fought by European states. Subsequently, the Westernhemisphere was dominated by the so-called democracy or OECDpeace. The periphery of Europe, Africa, Asia and the Islamic world isstill dominated by traditional national power politics.

Some striking empirical results characterise the second halfof the 20th century:

• The number of conflicts has increased, but not at such arate as the number of states increased. Secondly, the numberof new conflicts is declining and thirdly, violence tends tobe receding.

• Most frequently involved in conflicts have been GreatBritain, the USSR, the USA, France and China; mostfrequently involved in wars have been Great Britain, India,

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China, France, and Iraq. Intervening external powers havemost frequently been the USA, the USSR, France, GreatBritain and China.

• Most conflicts have been counted in the Middle East,followed by sub-Saharan Africa and Asia. Wars have beennoticed most frequently in Africa, Asia, the Middle Eastand the Maghreb. More than half of the conflicts with highlyviolent potential occurred between countries in the southernhemisphere.

• The type of war has altered: Until the end of the 1960sinternational conflicts have predominated (cf. graph 2). Sincethe 1970s, domestic conflicts have replaced internationalconflicts. For this reason classic border and territorialconflicts have lost importance. Minority conflicts anddemands for religious and cultural self-determination havecharacterised the modern type of conflict. Non-governmentalactors have taken over government positions. In general,violent conflicts declined and non-violent conflicts increased.

Graph 2Violent Domestic and Interstate Conflicts

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• The number of casualties is substantial: About 30 million(highest estimate) lost their lives including an ever-highernumber of civilians. Their share of war victims increasedfrom the end of the 1970s from about 53 percent to about74 percent in the 1980s and finally to about 90 percent inthe 1990s; during the Kosovo war hardly any soldier died,only civilians.

• Militarily, wars have most frequently ended indecisively; avictory of the aggressor occurred only in 18 percent of thecases, whereas 28 percent of the wars ended with defeat.

Thus, the 20th century can be seen as having two sides: Thefirst half of the century was dominated by national power and controlpolitics based on the dogma that power interests of each country arethe highest of all goals and that this can only be reached throughconfrontation (Morgenthau 1993: p.4-16). The desolate results ofthis behaviour led to a rethinking at least in Western Europe forprimarily three reasons: Firstly, the understanding has grown thatnational welfare cannot be increased through confrontation but throughco-operation. Not confrontation but co-operation has brought welfaregains. Secondly, European integration as a new order is a result of theunderstanding that no European state involved in the World War –neither winner nor loser – could have played a dominant role. Thirdly,the readiness to give countries their sovereignty resulted in the exerciseof influence by an external actor: The economic re-construction ofEurope and the inclusion in the liberal free-trade system are foremostand above all a result of American aid. The Europeans followed byfounding the European organisations.

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Numerous theories explain the violent behaviour of the lastcentury, which is not surprising in such a complex field. I will nowdifferentiate the causes of war following Aristotle’s scheme ofaccountability of causes. Besides general explanations such as “human

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aggression” or “foolishness of statesmen” one can identify four categoriesof causes:

Firstly, there are the causa materialis. These theories focus onstructures of the international and national political systems and theypoint to the absence of a dominant international power (break-up ofbi-polarity) or national power (weak state). Non-consolidated regimesand non-successful nation-building could lead to crises of identity,participation, distribution of horizontal legitimacy (ethnics, minorities)and vertical legitimacy (acceptance of political leadership) and therebyto conflicts or wars. Historically, this situation occurred after thecollapse of the Habsburg Dual-Monarchy, the Ottoman and tsaristempires, the colonial empires of the British, the French or the Dutchas well as the Soviet empire. The collapse of empires leaves a vacuumthat can be filled by competing states. In addition to political structuresnumerous theories of war are based on economical or ecologicalstructural realities such as deprivation due to poverty (“war arises outof pots”), the difference in the north-south divide both inside states(endeavours for autonomy in developed regions of, i.e., Spain,Yugoslavia or the Soviet Union) and between states of the North andstates of the South. Environmental disasters such as drought or shortageof water could provoke conflicts such as the one currently raging inOgaden between Ethiopia and Eritrea.

Secondly, the causa formalis or the putative existing orsubsequently rationalised realities with numerous theories of miss-perception and theories of threat. Huntington’s Clash of Civilisationsand ideological rivalries belong here as well.

Thirdly, the causa efficiens or instrumentalis identifies the causeof wars as the actually existing or putatively given existence ofarmament and military technology. The means of destruction becomeindependent and their momentum disregards any political goal. Theestimation or false estimation of the capability of mass destructionopens up successful calculations that point to a victory. The arms raceis based upon the perception of a threat posed by the arms on theother side. The implication to the militarisation of whole societies

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(i.e. the German Empire) belongs in this category as well as the claimsto political leadership resulting from economical strength.

Fourthly, the causa finalis identifies the causation of wars inthe objectives of national behaviour. The classic pattern of powerpolitics with the absolute dominance of power as the highest goal innational politics is deeply linked to the thinking of leading politiciansand has determined the system of states since the era of absolutism.The 20th century experienced such claims of power (expressed in theforeign policy doctrines of the great powers) and the quest for powerof states that have lost their position. These kinds of deprivationtheories can be applied to Germany (place in the sun, grasp for globalpower), Italy or Japan. The great ideologies of the century, nationalism,socialism and racism, made for such expansive claims and had thepotential for aggression. Those and more theories certainly provideimportant explanations and can be put into concrete forms for anyindividual war.

However, the theories included in these explanations of thecauses of wars have only limited validity: the theory of weak states orabsence of an international power affects only a small number of states.The theory of the Cold War, whereby international conflicts can becontrolled, can refer to the non-warlike status between the superpowers,but it can be challenged by the great number of wars in the ThirdWorld. The theory of the wars of civilisation, identifying the newdivision in the clash of civilisations, neglects recognizing the state asstill the most important actor. The theory of liberal institutionalismwhereby war could be controlled by international organisations hascontributed to the fact that barely any wars have occurred betweencountries. However, the international community of states was notable to cope with ethno-political wars. The theory of democratic peacewhich states that democracies do not fight wars with each other hashigh empirical evidence in the countries of the OECD. But on theone hand, the road to democracy can lead to conflicts. On the otherhand, democracies do not behave differently from any otherauthoritarian regime regarding their external affairs: The position ofpower inside the international system is the determining factor.

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To explain the violent behaviour in the 20th century I wouldlike to offer a theory of undone peace agreements following Kant’stheory of peace and to extend his considerations regarding the transitionfrom peace to war or war to peace. According to the Königsbergphilosopher peace is not necessarily a preferential situation in thedevelopmental history of mankind, and it only becomes possible andneeded at a certain stage of development, which remains yet unspecified.The development of mankind tends to a status of peace that resultsfrom mainly three reasons: the obligation to the rule of law, the principalof publicity and the personal concernment in wars.

In his work “Eternal Peace” (1795) Kant set up conditionsbeneficial for peace. Wilful deception while concluding a contract,annexation of someone’s territory, purchase of mercenaries, indebtednessof a state for martial purposes, intervention and interference in otherstates and finally the impossibility of mutual confidence in a futurepeace have to be forbidden. A status of peace could only be broughtabout by republican states commonly forming a “peace league or leagueof nations” and allowing the free right to travel.

About 200 years after Kant’s work was published the questionis whether or not mankind has reached a level of civilisation in whichit does not need wars for higher evolution and in which it can savour“eternal peace”. What empirical findings are available to verify Kant’sconditions? The recent research in conflicts and peace has extensivelyused Kant’s conditions and made further differentiations. ParticularlyKant’s republicanism (theory of democracies) and his idea of thefederation of states (international institutionalism) stimulated thediscussion of international relations.

Today’s perspective shows that sporadic or permanent offencesagainst these conditions have taken place: peace agreements or ceasefireshave been concluded with the purpose of non-compliance (Mr.Milosevic agreed to at least 30 ceasefires and broke them all), statesstill, but less frequently, try to annex other states; the annexation ofKuwait by Iraq has probably been the last attempt at doing so.

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Mercenaries can still be hired and military expansion is especially highin threatened states (i.e. Pakistan, India, Israel, etc.). The principal ofnon-interference in domestic matters is actually established in the UN-charter but has been broken in many cases, sometimes using a deputy.During the 50-year-old history of conflicts in the post-war period,206 governments intervened in neighbouring countries in a politicalor military way (Pfetsch/Rohloff 2000, 182), whereby interventionwas often requested by domestic elites. Finally, peace agreements areseldom concluded to prevent future conflicts. The consecutive conflictsin one and the same country show that previous peace agreements arenot concluded in the spirit of mutual confidence.

To prove the thesis of arbitrary peace that leads to war, Kant’sfirst and sixth condition of his preliminary articles play a role andshow that all controversial subjects have to be solved amicably andthat peace agreements have to secure confidence in the future. It is mycentral thesis that non-compliance of these conditions explains themajority of wars in the 20th century. Here, Kant’s conditions shouldat first be interpreted from today’s point of view. Kant’s wording inthe first preliminary article: “No peace treaty [as a condition of eternalpeace] shall be held to be such, which is made with the secret intentionof a future war.” And the sixth preliminary article formulates: “Nostate at war with another shall permit such acts of warfare that makemutual confidence in future peace impossible.” Kant emphasizes thisdemand by claiming that these conditions together with the prohibitionof annexations should be complied with promptly. In addition heappends in his “Reflexions”: “Thus, every peace presumes that all claimsraised by one state against another at a certain point of time that couldprovoke any hostility should be dismissed and nullified. Therefore,peace starts a new episode between two states beyond which nothingshall be taken out that has been agreed upon.” (Reflexion Nr. 7837).Kant says no more than that the actions of war and peace agreementshave to be shaped in a way that they eliminate the causes of war andpermit a peaceful co-existence with the former enemy. Peace agreementsmust not be the means of revenge or pay back and they have to bebrought about by negotiations and not by war. As Jean Monnet, the

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co-founder of the counter model of classic power politics, namely theEuropean Union, said: “The spirit of discrimination has been the reasonof the biggest misfortunes in the world.” (Monnet: 1976, 413). As itis generally known, President Wilson, acting in the Kantian sense,could not win recognition with his postulation of a “peace of justice”and of the “right of self-determination of peoples”.

What are the conditions for a permanent peace? Mutualconfidence has to be based on fair treaties and they, so my conclusions,are possible in an ideal case subjected to five conditions. Firstly, peacenegotiations have to include all concerned parties (Kant speaks of“states” as the only actors); secondly, they have to be negotiated freelyand in mutual understanding (“claims … should be …nullified”);thirdly, negotiations have to be conducted regarding all relevant conflictissues (“alle Ansprüche”), fourthly, consensus has to be brought aboutwithout any secret proviso (“reservatio mentalis”) and fifthly, agreementsmust apply to the conditions of the prevailing historical circumstances.

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Since these conditions are rarely fulfilled or can hardly befulfilled – peace not war is the case of emergency – it has neither cometo peace agreements in the above-stated sense or such peace agreementsdid not hold, or have been revised or caused other conflicts. Ourstatistics show: of the 104 wars between 1945 and 1979 led to otherconflicts, and 65 of them wars as well. In many cases a war ofindependence was followed by fights for nation-building or state-building. Likewise, ethnic wars have been followed by other wars.The unfinished and unaccepted agreement of Alger in 1975 betweenIran and Iraq did not detain Saddam Hussein from his aggression againstKuwait. Also, the agreements of Dayton and Paris did not detain Mr.Milosevic from executing ethnic cleansings in Kosovo. The bottomline could be: War is over, but conflicts are still going on. Neither thefive Parisian peace agreements that ended World War I nor the Potsdamagreement after World War II nor the Dayton agreement for Bosnianor the military agreement for Kosovo fulfilled the conditions of a

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permanent peace and, in the aftermath, they did not bring peace. TheWest did win the Kosovo war militarily but so far it has lost the peace.With the creation of two protectorates (Bosnia, Kosovo) and twosemi-protectorates (Montenegro, Macedonia) one cannot speak ofpeace. Rather, war has been transformed into new conflicts. The long-term effects of the Parisian peace agreements support the thesis thatpeace agreements dictated by power politics in 1919/22 explained orat least influenced the subsequent wars in Europe. In the aftermath ofWorld War I the victorious powers signed six peace agreements. Theywere subjected to the defeated states of Germany (Versailles,28.6.1919), Austria/Hungary (Saint-Germain-en-Laye, 10.9.1919),Bulgaria (Neuilly-sur-Seine, 27.11.1919), Hungary (Trianon,2.6.1920), Turkey (Sèvres, 10.8.1920) and again Turkey (Lausanne,23.4.1922). These contracts and their secret protocols, concludedwithout participation of the affected states, have to be seen as dictatingand forcing an agreement, the more so because they violated animportant, even though not the most important principal of the 20th

century, namely the right of self-determination of peoples (it was evenspurned after the referendum in Upper-Silesia). The revision of thesecontracts often led to violent conflicts. The milestones on the wayfrom the arbitrary peace of Versailles (also termed “final crime”,Economist 31.12.1999) to the next World War were the Rhinelandoccupation, the Italian invasion in Ethiopia in 1935, the German andItalian intervention in the Spanish civil war in 1936/39, the annexationof Austria in 1938 and the partition and later occupation ofCzechoslovakia (again a result of force) as well as the German territorialclaims against Poland that led to World War II. This leads EricHobsbawm to talk of the thirty-one-years war from 1914 to 1945(Hobsbawn 1998: p.75).

The Parisian peace agreements founded former non-existingstates as separate states on a relatively arbitrary basis2 . Most of the

2 Hungary (with numerous Hungarian minorities in other countries), Czechoslovakia(recently disintegrated), Yugoslavia (today dispelled) and Poland (today with different borders)have been founded within new borders. Territorial adjustments from one country to anotherhave been made: Alsace-Lorraine from Germany to France (remained with France after the

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sold-off territories are today independent. Thus, the territorial changesagreed upon in the peace agreements have been revised in the processof history. In some of the transferred territories, i.e. the Burgenland orFiume, rebellions took place. Referenda were held in some territorieslike Kärnten or Silesia; the latter in favour of Germany but not acceptedby the allied states and turned in favour of Poland. The treaty of Sèvreswas replaced by the treaty of Lausanne and reversed Kurdish self-determination. Above all, the dictate of the Versailles treaty significantlystrengthened the Nazi movement and provoked World War II. Theagreement of Munich is another example of a forced arrangement thatcould not be maintained in time. Finally, in the 1990s, there werewars flaring in the aftermath of the Cold War: The Bosnian wars, theKosovo war or the Kurdish conflict in Turkey, Iran and Iraq are allrooted in the arbitrary Parisian peace agreements.

The territorial successes of Nazi Germany against formerCzechoslovakia were all revised after the war, not to speak of theconquests during the war. In 1945, the Potsdam agreement revisedthe annexations and the treaties between Germany and theCzechoslovakian Socialist Republic (CSSR) in 1974 and the Czech-Slovakian Federal Republic (CSFR) in 1991 regarding the dictate of1938 as “Nil ex tunc”; these treaties agreed upon the former borderlineson an international basis. These examples show that a forced peaceagreement will either be revised or violently changed as soon as thecircumstances permit so or it is believed that they do so.

Numerous cases provide evidence for the thesis that amicableagreements fulfilling the five criteria mentioned above can bepermanent. Some examples should prove the thesis, even though asystematic analysis of the cases is still lacking. The Camp David Accords

annexation in World War II) and Posen and West Prussia to Poland (where they still remain).South Tyrol, Trieste, Istria, Dalmatia and parts of Kärnten and the Krajina moved fromAustria to Italy (apart from South Tyrol today in other countries). Macedonia moved fromBulgaria to Yugoslavia (today independent). Hungary gave Slovakia to Czechoslovakia(today independent) and the Burgenland to Austria. Croatia, Slovenia and the Banat wereunified with Yugoslavia (today again separated) and Siebenbürgen went to Romania. Turkeylost great parts of its territory to Greece (Thrace, Aegean islands, Dodekanes).

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of March 26th, 1979 between Israel and Egypt mediated by the USagreed to the return of conquered territories. It has been fulfilled andis being upheld today. The same is true for the 13 decisions reached bythe International Court until 1995 (i.e. the affiliation of islands[Minquirs and Ecrehos], borders [Honduras vs. Nicaragua] or fishingrights [Great Britain vs. Norway]) that were accepted by the involvedparties and are still being upheld. Even the revision of unfair peaceagreements could be consensual and non-violent if circumstances changeadequately. Examples are the border adjustment between theNetherlands and Germany dated April 8th, 1960, the solution of theSaar question by integrating the Saar area into the Federal Republic ofGermany on January 1st, 1957 following a referendum or the Germanreunification on October 3rd, 1990 following the conclusion of the2+4 negotiations. These agreements show that forced agreements canbe revised by consensus.

However, there are examples of permanent losses by war suchas the territorial losses of Germany in both World Wars as the pricefor military aggression or the loss of the Karelyens by Finland in theFinish-Russian war in 1940. Such results caused by war can bepermanent if either the defeated population is expelled, eliminated orunable to retaliate; or if national and/or international actors keep upthe status quo; finally, the defeat can be accepted by involved partiesover the years and/or recognised as justified.

With regard to Kant’s conditions of government it can be saidthat “republicanism” has won recognition in certain parts of the world– even though only in small parts covering about 70 states. After 1945,no more wars between democracies have occurred. The UnitedNations, the European Union and other regional organisations can beregarded as “peace leagues” in the Kantian sense. Inter alia, theycontributed to the fact that there are barely any wars between states.The recent cross-national conflicts, i.e., between India and Pakistan orbetween Ethiopia and Eritrea, result from incomplete wars ofindependence. The “Besuchsrecht” in the form of the “right to travel”is widely realised in the era of globalisation. The politics of the states isbeing transformed to a world domestic policy.

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The government action of Western politicians has realisedKant’s six conditions, admittedly in a painful learning process. ThePotsdam treaty and its realisation differ substantially from the Versaillestreaty of the victorious powers. Aids for reconstruction and integrationin the world economic system have been offered. Barely any mercenaryarmies exist, but some militias and professional armies do. Militaryexpanses have been gradually reduced by a substantial amount, especiallyafter the Cold War, and military intervention did not take place in theWestern part of Europe (but in the Eastern part). Finally, the union ofWestern European states is characterised by the spirit of confidenceand co-ordination of interests and not based on veiled purposes.Confidence-building measures have been advanced to create a principleof collective security since the Helsinki Conference (1975). The projectof European integration can be regarded as the plain model of peace inthe spirit of Kant. Since Robert Schuman’s (former French foreignminister) declaration 50 years ago (May 9th, 1950) no more wars havebeen conducted between member states and other democratic states.The authors have been absolutely aware of the revolutionary characterof this model. Schuman spoke of a “brave act”, about a “founding act”and the spiritus rector. Jean Monnet explained: “We are here to achievea common plan, not to negotiate advantage but to search our advantagein the common advantage.” (Mémoires, p.378). The overcoming ofconfrontational diplomacy of the old style led by national egoism andthe thoughts of international equilibrium should be brought aboutby a “transfer of sovereignty in limited but important domains” andby the creation of common institutions to effectuate peace andprosperity within the European states. This successfully continuingproject has had an extremely beneficial impact, but only on the Westernpart of the world. As stated earlier, the above-mentioned peaceconditions are barely or inadequately fulfilled in the remaining partsof the world. The “Konfliktbarometer” shows that beyond the regionsof democratic peace numerous violent conflicts have been counted,but not in the scale of the pre-war era.

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In particular, Kant’s first and last conditions offer an explanationfor the repeated occurrence of wars following wars. Peace agreements,which lay the foundation for future confidence, were not taken intoaccount in the electrified nationalism at the beginning of the 20th

century, and it provoked most of the wars of the 20th century. Thenumerous wars caused by arbitrary territorial divisions implementedby the colonial and imperial powers fit in this image. Borderlines havearbitrarily divided peoples and tribes and led to wars after independence,partly because these treaties often did not include any provisions forpolitical reconstruction. Primarily, the “Agenda for Peace” of the formerUN secretary general Boutros Boutros Ghali formulated an extensivenotion of peace, regarding the consolidation of political order as themost important task after wars. This is particularly important becauseat the end of the territorial development of the world future wars willoccur inside states.

In particular, the political change from traditional nationalpower politics to co-operative negotiations and politics of integrationin Western Europe can be reconciled with Kant’s idea of political order.National power politics and violence still dominate the handling ofconflicts in south-eastern Europe, the Caucasus and Russia.

The answer to the question posed at the beginning, that iswhy the 20th century was so warlike, is as follows: Because the treatiesconcluded at the beginning of and during the 20th century were forcedby the power politics of the victorious powers and, thus, were seen asunjustified and did not allow confidence in the future, new warsemerged and lasted until the end of the 20th century. The lesson learnedby the 20th century is that not war but peace is the case of emergency.The transition period from war to the post-war era is crucial for thequestion of war and peace. Consequently, the task of politics and scienceis to organise peace in a way so that confidence in the future is possibleby including all concerned states or people in the negotiations and byestablishing amicable agreements covering all controversial issues. These

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negotiations are actually posed and await settling in Kosovo and Bosnia,in Chechnya and the horn of Africa.

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Wolfgang Döpcke*

Even if we put a baboon in Chivu, if you are ZANU-PF, you vote forthat baboon. Whoever we put, you vote for him ... (Simon Muzenda,vice-presidente do Zimbábue, num comício eleitoral na Província deMasvingo, Zimbábue)1

The gay government of the gay United gay Kingdom (Robert Mugabe,presidente do Zimbábue, referindo-se ao governo de Grã-Bretanha,depois de ter sofrido uma tentativa de citizen’s arrest por ativistashomossexuais na Inglaterra).2

Have they forgotten Florida? Who won in Florida? Was it Bush or AlGore? They must answer that question. Did we interfere? No, we didn’t,because it was an American affair. So why should America want tointerfere? We seek no quarrel with America but if the Americans want aquarrel, then of course we will defend ourselves. (Robert Mugabe,presidente do Zimbábue, comentando sobre a ingerência norte-americana nas eleições presidenciais no Zimbábue em 2002).3

The call for Africa’s renewal, for an African Renaissance is a call torebellion. We must rebel against the tyrants and the dictators, those whoseek to corrupt our societies and steal the wealth that belongs to the people.

* Doutor, especialista em História da África, e professor do Departamento de História daUniversidade de Brasília.

O autor agradece ao seu colega e amigo Estevão de Rezende Martins pela indispensávelajuda com a língua portuguesa neste texto.1 Mail & Guardian (Johannesburg), 22.12.2000.2 “Britain’s troubles with Mugabe”, BBC News, 3.4.2000.3 “US, Britain Double Standards Slammed”, The Herald (Harare), February 27, 2002.

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(Thabo Mbeki, então vice-presidente da África do Sul, explicando afilosofia de “African Renaissance”).4

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Dois momentos cruciais simbolizam, melhor do que quaisqueroutros exemplos, a trajetória da inserção internacional do Zimbábueao longo dos últimos vinte anos. O primeiro momento é representadopelas comemorações da independência do país no dia 18 de abril de1980. Prestigiado por inúmeros dignitários, presidentes, chefes deEstado e outras celebridades, Robert G. Mugabe recebeu, em cerimôniapública no Estado Rufaro em Harare, as insígnias do primeiro chefede governo democraticamente eleito neste país. A cerimônia culminouno ato, encenado por Mugabe, de acender a Chama da Independênciaem reverência aos heróis mortos na Chimurenga, Guerra de Libertação.Seguiram-se a esse evento anos de lua-de-mel com a comunidadeinternacional. Mugabe e seu Estado projetaram-se rapidamente àpreeminência internacional. O Estado, pequeno e, na época, commenos de oito milhões de habitantes, adquiriu alto prestígio político,projeção diplomática internacional e posição estratégica no contextoda África Austral. O Zimbábue estabeleceu-se como âncora econômicada SADCC (Southern African Development Coordination Conference)e seu primeiro-ministro se tornou primus inter pares nas lideranças dosub-continente. Os governos ocidentais ficaram muito satisfeitos comMugabe porque seu governo manteve certa distância diplomática dospaíses do bloco comunista. Mas, também, a esquerda internacionalista,e os movimentos de solidariedade, grupos anticoloniais, anti-apartheide pró-direitos humanos, consideravam ter o que comemorar. Mugabe,admirado e venerado por seu carisma, sua determinação incorruptívelem prol da causa africana, seu comportamento quase ascético e suaretórica populista, afirmou garantir a realização das promessas de justiçasocial e de igualdade humana – implícitas e explícitas – feitas na Guerra

4 “The African Renaissance”, Statement of deputy president Thabo Mbeki. SABC: GallagherEstate, 13.8.1998.

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de Libertação. O apogeu do prestígio internacional do Estado e oreconhecimento institucional de Mugabe como um dos líderes mundiaisdo “terceiro-mundismo politizado” deu-se quando, em 1986, aAssembléia Geral do Movimento dos Não-Alinhados (NAM) ocorreuem Harare, pela segunda vez na África, depois de Lusaka em 1971, eMugabe assumiu a presidência do grupo durante os três anos subseqüentes.

O segundo momento aconteceu no dia 30 de outubro de 1999,quase vinte anos depois das comemorações da independência. OPresidente Mugabe, realizando uma visita particular em Londres, foiabordado por ativistas do grupo afirmativo homossexual OutRage!,em uma tentativa de prendê-lo sob acusação de ter comedido atos detortura. O ataque dos militantes homossexuais e pró-direitos humanosrepetiu-se em 2001 em Bruxelas, Bélgica.5 Desta vez o presidente estavaprevenido e seus guarda-costas repeliram os ativistas.6 Estas abordagens,que em si parecem cômicas, simbolizam, melhor do que nada, adecadência do herói da Guerra de Libertação, homenageado pelomundo inteiro, transformado em pária da comunidade internacional,que corre risco de ser preso por ativistas de direitos humanos que elecostuma de chamar de “gay gangsters”. O declínio do prestígiointernacional e o isolamento internacional do país culminaramrecentemente com sua suspensão do Conselho da Commonwealthpor um ano e a decretação de smart sanctions contra Mugabe e 19colaboradores pela Comunidade Européia, Estados Unidos e outrospaíses ocidentais, alegando graves violações de direitos humanos edemocráticos básicos na realização das eleições presidenciais de marçode 2002. A maneira e o tom da resposta mugabista evidencia aindamais a decadência do prestígio internacional do país. Notoriamentehomofóbico (ele costuma xingar homossexuais de “piores que porcose cachorros”) e decerto profundamente horrorizado pela ação, ele decaiuda postura de estadista e rebateu grosseiramente também as demais

5 Informa o jornal oficial (de propriedade do governo), The Herald: British gay gangster PeterTatchell was yesterday severely beaten up by President Mugabe’s security in Brussels when he madehis second attempt to embarrass the President, at the start of an official visit to Belgium to discuss thepeace process in the Democratic Republic of Congo, The Herald, Harare, 6.3.2001.6 Readers’ Forum: “Zimbabwe’s President Mugabe Detained”, 9.11.1999.

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acusações de violação de direitos humanos, em discursos focalizadosjustamente na questão das preferências sexuais. Mugabe chegou a insultara Grã-Bretanha como “reino homossexual” e acusar seu governo, ealém de tudo o Primeiro-Ministro Tony Blair, de liderar uma campanhainternacional baseada numa “filosofia homossexual” contra o Zimbábue,e de insuflar os “gay gangsters” contra um chefe de Estado.7

Como se explica esta decadência de um líder aclamado evenerado da libertação da África Austral e uma das figuras maisproeminentes do Movimento dos Não-Alinhados para uma paródiade potentado africano?8 E como se explica o isolamento de um paíscuja política exterior dos anos 80 chegou a ser caracterizada como“robust, activist and daring” e como uma demonstração da capacidadede os pequenos países desempenharem um papel construtivo eimportante nos cenários mundiais?9

A primeira vertente explicativa destaca as características e ostraços duvidosos da personalidade de Mugabe e as conseqüências desua idade avançada (ele acabou de completar 78 anos). Alega-se“obstinação senil“, “megalomania”, “vaidade ferida”, “insanidade”,“amnésia”, ou sofrimento traumático causado pela morte do filho e,mais tarde, da primeira esposa Sally.10 Sem dúvida, o atual confrontodo Zimbábue com a comunidade internacional inclui elementosparticulares que se explicam pela personalidade do chefe de Estado.Ademais, mesmo que se trate de um conflito sobre princípios e pontosprecisos, esse se manifesta de forma muito personalizada. A obstinaçãode Mugabe pelo poder e a profunda convicção de sua “missão” sedestacam entre suas qualidades desde o início da carreira nos movimentos

7 Mugabe renews ‘gay philosophy’ attack, BBC News, 28.3.2000.8 O Arcebispo Desmond Tutu chegou a chamar Mugabe de uma a caricature of all the thingspeople think black African leaders do. He seems to be wanting to make a cartoon of himself. Mail& Guardian (Johannesburg), 22.12.2000: Verbatim: 2000 in Quotes.9 Nkiwane, S. M. Zimbabwe’s Foreign Policy. In: Wright, St. (org.): African Foreign Policies,Boulder (Col.), Westview Press 1999.10 Melchers, K.: Mugabe ist kein Militarist, In: Zimbabwe Netzwerk Rundbrief 37, junhode 1999, p. 18. Africa News Network (Copenhagen): “Zimbabweans are wondering if theirpresident, Robert Mugabe is still sane”, 16.3.1999. Zimbabwe Independent (Harare):”The Emperor Shows Signs of Amnesia”, 26.2.1999.

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nacionalistas dos anos 60 e lhe renderam tanto forte determinaçãoquanto pouca receptividade a críticas e conselhos.11 Durante os maisde vinte anos no poder, ele se mostrou, com poucas exceções, infensoà influência tanto da cúpula do Estado e da burocracia quanto de seupróprio partido. De certa maneira, ele internalizou o próprio culto depersonalidade criado em torno dele e, certamente, acredita nas visõeshagiográficas propagadas por este culto. Mas a comunidade internacionaltambém, em seu relacionamento com o Zimbábue, concentrou-semuito na pessoa de Mugabe. Comparações entre as personalidades deMandela e Mugabe são freqüentes.12 O atrito de Mugabe com TonyBlair ou com o grupo OutRage!, embora se tratasse de um confrontosobre significado de valores como soberania, democracia e direitoshumanos, caracteriza-se por um choque de personalidades e por mútuodesprezo pessoal. Mugabe virou símbolo negativo na luta da comunidadeinternacional em prol dos direitos humanos na África. Ironicamente,tal se deu da mesma maneira como seu predecessor, Ian Smith, tornara-se a antítese das lutas anticoloniais e anti-racistas nos anos 60 e 70. Ospróprios chefes de Estados africanos, envolvidos numa diplomacia deacomodação com o Zimbábue, sobretudo o sul-africano T. Mbeki,exibem certo desconforto com relação à pessoa de Mugabe, seja emfunção de sua idade seja por causa da sua teimosia.

A segunda perspectiva acerca do Zimbábue focaliza a classedirigente e sua luta pela permanência no poder. Embora o poder noEstado esteja altamente concentrado nas mãos de Mugabe e de seu clã,especialmente depois da emenda constitucional de 1987, que oestabeleceu como presidente executivo, os alicerces do Estado, como

11 Spring, W.; The Long Fields: Zimbabwe Since Independence, Basingstoke (Pichering)1986. Kreile, R.; Zimbabwe: Von der Befreiungsbewegung zur Staatsmacht, Saarbrücken(Breitenbach Publishers) 1990. The Making of a Revolutionary. An extract from RobertMugabe: Power, Plunder and Tyranny in Zimbabwe by Martin Meredith, (publ. Jonathan Ball),Electronic Mail & Guardian, 6.3.2002. International Crisis Group; Africa Report No. 40:All Bark and No Bite? The International Response to Zimbabwe’s Crisis, 25.1.2002, p. 11.12 Statement of Chairman Ed Royce: “The Zimbabwe Democracy and Economic RecoveryAct of 2001”. U.S. House of Representatives, Subcommittee on Africa (Washington, DC)Document: 28.11.2001 (all.africa.com).

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um todo, são mais amplos. O alto escalão do Partido e de seussubgrupos, do funcionalismo, do exército e dos órgãos de segurança,do corpo diplomático, das empresas paraestatais, de uma boa parte dojudiciário, da mídia controlada pelo Estado – tudo isto constitui umgrupo político-social estratégico, ou classe em formação, que dominao país e se beneficia, em termos financeiros e de prestígio, do regimemugabista, e que se empenha por sua manutenção. Especialmente osórgãos de segurança (polícia-ZRP, inteligência-CIO e exército-ZNA)abandonaram a neutralidade política, desistiram de suas obrigaçõesconstitucionais e atuaram abertamente e com força contra a oposição.O alto comando do exército chegou a ameaçar um golpe no caso devitória do candidato oposicionista nas últimas eleições.13 Poder políticoe acumulação pessoal são elementos sistematicamente interligados, quenecessitam um do outro e se reforçam mutuamente, construindo, assim,as bases sociais de uma classe dirigente cleptocrática. As estatizações deempresas, a redistribuição da terra, a decisão sobre licenças deimportação, as grandes empreitadas do Estado, o fornecimento dematerial para o Estado e especialmente para o exército e inúmeras outrasocasiões servem para transformar sistematicamente o poder políticoem riqueza particular. Estima-se que, somente entre 1996 e 2001,cinqüenta bilhões de $ Zim foram roubados.14 A comunidadeinternacional reconheceu estes antagonismos internos na sociedadezimbabuana – embora só parcialmente – ao decretar sanções contraMugabe e 19 de seus colaboradores – como se constituíssem um cartelde mafiosos.

A terceira perspectiva sobre o Zimbábue reúne elementos darecente transformação da sociedade internacional em conseqüência dofim da Guerra Fria. Argumenta-se que, além de representar um lutadesesperada pela manutenção no poder de uma oligarquia cleptocrática,trata-se de uma disputa sobre regras, normas e convenções de coabitaçãoentre Estados. Nesta briga, Mugabe está insistindo nos princípios de

13 “US Won’t Tolerate Military Coup”, Zimbabwe Standard (Harare), 20.1.2002.14 International Crisis Group (ICG); Zimbabwe in Crisis: finding a Way Forward (ICGReport no. 32), Bruxelas:13.7.2001.

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uma soberania “negativa” e absoluta que havia protegido os governosdo Sul da ingerência do Norte durante os anos da Guerra Fria. Acomunidade internacional, de outro lado, questiona crescentementeeste conceito absoluto de soberania e articula-se em prol do direito – edever – de ingerência para promover e proteger valores, agorasupostamente aceitos como universais, como os dos direitos humanos,da democracia e da “good governance”.

Estas três perspectivas sobre a crise no Zimbábue não sãomutuamente excludentes – pelo contrário. São necessárias, na suatotalidade, para compreender esta surpreendente transformação do paísde exemplo de inserção internacional em um pária da comunidadeinternacional. Entretanto, o presente trabalho focalizará a crisezimbabuana sob o ângulo das relações internacionais e como problemade inserção internacional sem ignorar, contudo, suas origens domésticas.

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Quando nasceu, em 1980, o novo Estado de Zimbábue – frutode uma prolongada luta de independência contra um regimeminoritário de colonos brancos – não herdou nem uma tradição nemas instituições de uma política exterior.15 O Estado colonial dos brancos,que tinha declarado unilateralmente a sua independência da Grã-Bretanha em 1965, sofreu sanções políticas e diplomáticas, quecortaram o país da comunidade internacional de Estados e o isolaramcompletamente. A Rodésia sobreviveu todos estes anos como páriainternacional, sem uma política exterior no sentido tradicional. Osmovimentos de libertação – a Zanu e a Zapu –, porém, se articularamno plano internacional com muito mais eficácia e contribuíram bastantepara o isolamento dos colonos rebeldes. Foram atores políticosprincipalmente em contextos multilaterais da África e conseguiram,com êxito, formar uma rede internacional de apoio externo à libertação

15 Veja: Tamarkin, M.; The Making of Zimbabwe: Decolonization in Regional andInternational Politics, London: Frank Cass, 1990.

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do país.16 Embora esta tradição internacionalista e as relações específicassurgidas da Guerra de Libertação representassem uma das vertentesprincipais da política exterior do novo Estado, este, em termos globais,tinha que reconstruir, começando do zero, sua inserção internacional.E conseguiu, em pouco tempo, superar a herança negativa da épocacolonial e estabelecer-se como membro respeitado da comunidadeinternacional, praticando uma política exterior muito profissional,ativa, com perfil definido e coerência ideológica, continuidade eprevisibilidade.17

A política exterior do jovem Estado durante os primeiros dezanos de sua existência foi guiada, segundo a literatura especializadarelevante, por cinco princípios ideológicos básicos: o não-alinhamento,o anticolonialismo, o anti-racismo, o socialismo, e a soberania.18 Osocialismo, embora representando, internamente, uma forte opção paraa nova elite política, era, externamente, o menos relevante destesprincípios. A retórica socialista, de cunho até estalinista, e a campanhapelo Estado monopartidário não excluíam, na prática, o desenvolvimentode relações frutíferas com países capitalistas.19 Os princípios deanticolonialismo e de anti-racismo projetaram o país como o principaladversário da África do Sul no palco conflituoso da África Austral. Aforte noção do princípio de respeito à soberania e a defesa de umconceito de soberania absoluta, se direcionaram também, inicialmente,contra a África do Sul e sua múltipla política de desestabilização.Somente a partir do final da década de 1980, com a presença mais

16 Reed, W.C.; International politics and national liberation: Zanu and the politics ofcontested sovereignty in Zimbabwe. In: African Studies Review, v. 36, nº. 2, p. 31-59, 1993.17 Engel, U.; The Foreign Policy of Zimbabwe. Hamburgo: Institut für Afrikakunde 1994.Good, K.; Zimbabwe, In: Shaw, T.M. & Aluko, O. (eds.); The Political Economy of AfricanForeign Policy. Comparative Analysis, Aldershot, Gower 1984. Davidow, J.; Zimbabwe is asuccess, em: Foreign Policy, no. 49, 1982/1983, p. 93-106.18 Nkiwane, S. M.; Zimbabwe’s Foreign Policy. In: Wright, St. (org.): African ForeignPolicies, Boulder (Col.), Westview Press 1999. Engel, U.; The Foreign Policy of Zimbabwe,Hamburgo, Institut für Afrikakunde 1994. Klotz, A.: Race and nationalism in Zimbabweanforeign policy, em: Round Table, 327, 1993, p. 255-279. Schwartz, R.; The foreign policyof Zimbabwe, Paper presented at the British International Studies Association Conference,London, 1989.19 Veja, Engel, op.cit., capítulo. 4.

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forte das Instituições Financeiras Internacionais (IFIs) na formulaçãoda política econômica do Zimbábue, a questão da soberania adquiriuuma dimensão econômica adicional. Como partidário resoluto doprincípio do não-alinhamento, o Zimbábue alcançou uma posição dedestaque entre os países do Terceiro Mundo e no palco das NaçõesUnidas. Em 1986, o Zimbábue hospedou a VIII Cúpula doMovimento dos Não-Alinhados e Mugabe presidiu a organização entre1986 e 1989. Em 89, ele se tornou primeiro vice-presidente da OUAe em 1992 substituiu Kenneth Kaunda como o líder dos Estados daLinha de Frente (FLS). Em 1991 o Zimbábue recebeu a 28a. Assembléiados Chefes de Estado da Commonwealth e Mugabe foi designadopresidente deste grupo nos dois anos seguintes.

Durante os primeiros dez anos, o Zimbábue teve que enfrentarcinco principais desafios oriundos do ambiente internacional: (1) apolítica militar e econômica de desestabilização da África do Sul,(2) as repercussões para o Zimbábue desta política em Moçambique,(3) a ação internacional de estabelecer sanções mandatárias contra aÁfrica do Sul; (4) a cooperação econômica regional e (5) o confrontocom os países ocidentais e as IFIs sobre ajuda financeira e transferênciade recursos.

O confronto com a política do apartheid da África do Sul, eprincipalmente com as ameaças graves decorrentes da política dedesestabilização deste país, representam o fator formador maisimportante da política exterior do Zimbábue durante a década de1980.20 Uma das heranças mais significativas do Zimbábue foi suadependência econômica e infra-estrutural, principalmente noescoamento das exportações, da África do Sul. O país do apartheidtransformou esta dependência em arma no início dos anos 80, causando

20 Para a política de desestabilização veja: Johnson, P. & Martin, D.; Destructive Engagement:Southern Africa at War, Harare (Zimbabwe Publ. House) 1986. Hanlon, J.; Beggar yourNeighbours: Apartheid Power in Southern Africa. Bloomington: Indiana Univ. Press 1986.Döpcke, W.; Uma nova política exterior depois da apartheid? – Reflexões sobre as relaçõesregionais da África do sul, 1974-1998, RBPI, nº. 1, 1998. Evans, M.; The security threatfrom South Africa. In: Stoneman Colin (org.): Zimbabwe’s Prospects: Issues of Race, Class,State and Capital in Southern Africa. London: Macmillan 1988, p. 218-235.

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uma grave crise de transporte no Zimbábue. A África do Sul tambémse aproveitou do surgimento de uma oposição contra o novo regime,denominada oficialmente como dissidentes, incentivando-a e apoiando-a no início dos anos 80. A política de desestabilização se manifestouainda em sabotagens e assassinatos, principalmente de representantesdos movimentos anti-apartheid residentes no Zimbábue. Mas apesardeste confronto e da forte ação zimbabuana em favor de sançõeseconômicas contra o regime do apartheid, as relações econômicas ecomerciais entre os dois países permaneceram relativamente estáveis.21

O segundo palco do conflito com a África do Sul foiMoçambique, país que conseguiu sua independência de Portugal em1975 e que subseqüentemente ofereceu apoio decisivo à libertação doZimbábue. Após 1980, o Moçambique tornou-se tanto alvo da políticasul-africana de desestabilização quanto uma das principais alternativasdo Zimbábue para reduzir sua dependência infra-estrutural do vizinhodo Sul. A questão da segurança militar e econômica do Zimbábue sevinculou intimamente com a sobrevivência do governo da Frelimoem Moçambique em sua luta contra a Renamo, grupo guerrilheiroapoiado e até comandado pela África do Sul. O Zimbábue investiufortemente na recuperação e na proteção militar do Corredor de Beira,rota alternativa à da África do Sul para o escoamento de seus produtosde exportação e para a importação de petróleo. Mas o engajamentomilitar zimbabuano no Moçambique foi muito além da mera proteçãodas rotas de transporte. Tropas de combate zimbabuanas atuaramdiretamente e representaram o fator militar decisivo na defesa do Estadoda Frelimo contra o avanço do grupo terrorista em meados dos anos80. A contribuição zimbabuana do lado do governo na guerra civilmoçambicana lhe rendeu uma declaração de guerra da Renamo e aampliação da guerra para suas províncias orientais.

A partir dos anos 85 e 86, depois de agir inicialmente de formamuito moderada nesta questão, o Zimbábue embarcou na campanhainternacional em favor de sanções mandatárias contra a África do Sul.Esta luta diplomática nos palcos internacionais e multilaterais não

21 Ver: Engel, op.cit., p. 282.

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somente confrontou o país com interesses vitais do regime doapartheid, mas também com a política de constructive engagement,conduzida pelo governo dos Estados Unidos, na administração deR. Reagan, perante os brancos da África do Sul. A idéia norte-americana,de iniciar mudanças na África do Sul mediante um dialogo com osbrancos encontrou em R. Mugabe um feroz adversário, que não secansou de denunciar em várias ocasiões a postura supostamente“imperialista” da política internacional dos Estados Unidos. O choquecom a superpotência certamente aumentou o prestigio de Mugabe entreos terceiro-mundistas, mas causou também uma redução da assistênciafinanceira que o Zimbábue estava recebendo deste país. Malgrado isso,os Estados Unidos permaneceram sua principal fonte de recursosfinanceiros nos anos 80. Na perspectiva dos Estados Unidos, e dosoutros países ocidentais, o Zimbábue estava dotado de duplacaracterística. De um lado, projetara-se, com sucesso, como defensorde uma linha dura contra o regime branco na África do Sul e, assim,contra a política de rapprochement favorecida pelo Ocidente. De outrolado, apesar da retórica anticapitalista e do apoio que tinha recebidodos países comunistas, especialmente da China, durante a guerra delibertação, Mugabe nem alinhou seu país ao bloco comunista nemquestionou seriamente os direitos de propriedade e as prerrogativasconstitucionais prescritas no Tratado de Lancaster.22 Mais ainda, osucesso da política de reconciliação com os ex-colonos brancos emZimbábue e a retórica de harmonia racial do governo africanorepresentavam um elemento importante na política norte-americanajunto aos brancos sul-africanos. O “modelo Zimbábue” demonstravaum possível futuro, pós-apartheid, para a África do Sul e seu sucessotinha, portanto, amplas implicações subcontinentais. Por isto, o

22 O Tratado de Lancaster, celebrado no dia 21 de dezembro de 1979, entre os adversáriosna Guerra de Libertação do Zimbábue (Zanu, Zapu, Sithole e delegados do governo“interno” de Smith e Muzorewa) encerrou as hostilidades e as sanções contra o país eestipulou a realização de eleições num prazo de seis meses. Delineou também os traçosprincipais de uma constituição transitória e prescreveu algumas restrições para mudançasconstitucionais. Garantiu uma representação mínima para os brancos no parlamento, isto é,relativizou a proporcionalidade do sistema democrático. Estabeleceu também amplasgarantias para propriedade, especialmente à terra.

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Ocidente nunca “abandonou” o Zimbábue ou permitiu o mesmo graude desestabilização que Moçambique ou Angola tinham que enfrentardurante os anos da “estratégia total” da África do Sul.

A política exterior do Zimbábue durante os primeiros dez anosde independência foi aclamada, tanto por observadores acadêmicosquanto pelo terceiro-mundismo politizado, como sendo altamentebem-sucedida em representar e defender os interesses nacionais do paíse os princípios éticos nas relações internacionais. No entanto, asperspectivas e abordagens realistas ou neo-realistas tendem a ignorar osvínculos entre a inserção internacional e a política doméstica, junçõescruciais para compreender a trajetória do Zimbábue na década de 1980e no período subseqüente. A inserção bem-sucedida do país noambiente internacional da Guerra Fria e na situação conflituosa daÁfrica Austral serviu como uma espécie de escudo, que abriu enormeespaço de liberdade à nova elite em seu projeto doméstico de estabelecere consolidar um regime autocrático. A comunidade internacional optoupor ignorar as tendências autocráticas do regime, as perseguições políticase as violações de direitos humanos.

Já em 1983, o fio condutor da política do regime contraopositores – a violência excessiva praticada pelos órgãos de segurança –ficou plenamente perceptível. Nesse ano, com a cisão no governo de“união”, entre a Zanu de Mugabe e a Zapu de J. Nkomo, causada pelaresistência de Nkomo ao Estado monopartidário, e com o surgimentode grupos minúsculos – de origem obscura – de banditismo políticoarmado, supostamente apoiado pela Zapu, Mugabe mandou a mal-afamada 5a Brigada conduzir uma guerra de terror contra a populaçãocivil da Matabelelândia. Esse contingente militar étnico (dos Shona),treinado por norte-coreanos, praticou matanças arbitrárias, torturas euma série de violações de direitos humanos contra a população civil.23

Entre 15.000 e 20.000 civis foram mortos em Matabelelândia, ondea Zapu tem seu reduto político e étnico. Estas matanças no sul,

23 Report on the 1980s Disturbances in Matabeleland and in the Midlands, Compiled bythe Catholic Commission for Justice and Peace in Zimbabwe, March 1997. Werbner, R.;Tears of the Dead. The Social Biography of an African Family, Melksham, Wiltshire(Edinburgh UP for the International African Institute) London: 1991.

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acompanhadas por severas perseguições pelos órgãos de segurança noresto do país, esfacelaram a Zapu, único partido que articulava umapostura oposicionista ao governo de Mugabe.

Embora a Zapu não representasse uma ameaça direta aodomínio então absoluto da Zanu, os líderes, e, sobretudo, o próprioMugabe, não se cansaram enquanto não destruíssem o partido rival.Recorrendo publicamente a uma suposta tradição africana, que nãoconheceria oposições, e lembrando os Ndebele (o reduto étnico daZapu) que somente tinham chegado “recentemente” ao país (aliás, emtorno de 1840), Mugabe tentou aniquilar o concorrente. Em 1987,finalmente, a Zapu foi “engolida” (ato que foi oficialmente denominadode “unificação”) pela Zanu e, terminou, assim, sua existênciaindependente. Entretanto, embora tenha realizado agora de facto umEstado monopartidário, Mugabe não abandonou seu projeto de mudara Constituição e, assim, assegurar o regime monopartidário da Zanuconstitucionalmente. No final, foi seu próprio partido que o obrigoua desistir do Estado monopartidário constitucional em 1991, isto é,dois anos depois da queda do Muro de Berlim. Porém, durante todadécada de 1980 e também durante boa parte dos anos 90, a Zanu semanteve no poder sem efetiva contestação. A principal maneira, duranteesses anos, de demonstrar rejeição da política de Mugabe, era a crescenteabstenção do exercício do direito de voto nas eleições. A Zanu, commuita eficácia, aproveitou-se do inteiro aparelho do Estado parafortalecer seu domínio. Utilizou-se de amplas verbas públicas, dosórgãos de segurança (que tinham caído sob o comando de Mugabequando, em 1987, ele aboliu o cargo de primeiro-ministro e se instaloucomo superpoderoso “presidente executivo”), e da mídia que (compoucas exceções entre os jornais) acabou por tornar-se propriedade dogoverno. Mas a ameaça e a prática de violência contra adversários nuncapartiu exclusivamente dos órgãos de Estado. O partido sempre dispunhade suas “tropas de choque”, mobilizadas principalmente nas ocasiõesde eleições. Durante os anos 80 e 90, até o surgimento dos chamados“veteranos de guerra”, foi principalmente a Juventude do Partido (ZanuYouth League) que intimidou opositores nas zonas rurais e nos bairrospobres das cidades.

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Mas não é suficiente explicar a permanência da nova elite nopoder, pouco contestada, pela instrumentalização do Estado e pelarepressão. A estas razões se junta a capacidade da Zanu de manter umreduto de apoio quase incondicional no campesinato da etnia Shona.Esta proximidade explica-se pelo carisma de Mugabe e pela eficáciaduradoura de um culto universal que transmite a mensagem centraldo fundamento ideológico do Estado: aquela da união, até orgânica emitológica, entre o campesinato, a guerrilha e a Zanu, de início na lutacontra o colonialismo e os brancos e depois contra todos os inimigosinternos e externos. No entanto, também a incompetência e a falta decredibilidade por parte das oposições explica o sucesso prolongado doregime. A primeira onda de democratizações na sub-região, no iníciodos anos 90, passou sem atingir o domínio da Zanu. Mesmo assim, asrepercussões do fim da bipolaridade e, principalmente, das transformaçõesna África do Sul, começaram se manifestar na segunda metade da décadade 1990. No final dos anos 90, o regime começou a desmoronar. Surgiufinalmente, com o MDC, uma oposição séria e efetiva que, nas eleiçõesparlamentares de 2000 conquistou, apesar da campanha de extremaviolência praticada pelo Estado, quase a metade dos votos no país.

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Desde o início dos anos 90 convergem diversas vertentesassincrônicas na política e economia internacional que, formando umpoderoso conjunto, transformaram profundamente não somente asociedade internacional, mas, como parte desta transformação, a inserçãointernacional dos países africanos. Ao contrário do início dos anos 90,quando os analistas ainda apresentam apenas vagas especulações emvez de análises e previsões aprofundadas24, as repercussões da nova

24 Veja por exemplo: Harbeson, J.W.; Rothchild, D. (orgs.); Africa in World Politics,Boulder/Cal. & Oxford: 1991. Review of African Political Economy; Africa in a New WorldOrder, 1991. Kühne, Winfried; Afrika nach dem Ende des Ost-West-Konfliktes. DieNotwendigkeit eines “neuen Realismus”, Ebenhausen 1990. Wright, S. (org.); The ForeignPolicy of Africa, Englewood Cliffs (Prentice-Hall) 1992. Zartman, I. W. (org.); Europe andAfrica: The New Phase, Boulder (Lynne Rienner) 1993.

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ordem global para os países africanos são agora claramente perceptíveis.Ainda assim, trata-se de um processo em formação, parcialmente emaberto. Esta transformação da sociedade internacional atinge a inserçãotanto política quanto econômica do continente africano, e reflete-senas relações entre África e o “Primeiro Mundo” bem como nas relaçõesentre os Estados africanos. “Aposentou” velhos valores, temas, enfoquese discursos que nortearam as relações entre África e o resto do mundoe trouxe novos temas, atores e fóruns da política internacional. Astransformações não se limitam às relações internacionais. Difundem-se nas sociedades africanas, criam novas oportunidades políticas eeconômicas e novas dinâmicas sociais. Apesar de enfocar os elementosinovadores da inserção internacional da África, é necessário sublinhar,porém, que existem grandes continuidades com o passado recente. Aprofunda crise econômica e a crise de governabilidade na África estãoentre elas. Além disso, algumas das vertentes consideradas característicasdos anos 90 têm suas raízes temporais bem antes do ano mágico de1990. Por exemplo, as intervenções das IFIs para reestruturar aseconomias africanas em prol de um novo liberalismo experimentaramum certo apogeu já nos anos 80.

Apesar de tudo, a perda de prestígio internacional do Zimbábue,o isolamento diplomático do país e a luta solitária de Mugabe contra a“conspiração homossexual internacional” são fenômenos que refletemuma batalha defensiva do regime do Zimbábue contra a nova ordemglobal que se espraia a partir de 1990 – e que, aliás, chegou com umcerto atraso ao Zimbábue. O abalo da inserção internacional do paísdemonstra a falta de capacidade e vontade da elite política de enfrentarcom criatividade estes novos desafios vindos do ambiente internacional,desafios que são considerados altamente ameaçadores à sobrevivênciano poder da elite.

Embora se trate de um conjunto integrado de momentospolíticos, econômicos, ideológicos e culturais, as transformaçõessão abordadas aqui por uma perspectiva política que examina asrepercussões do fim da Guerra Fria nos Estados africanos, especialmenteno Zimbábue.

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A Guerra Fria na África costuma ser considerada como elementodesestabilizador e como ameaça à paz no continente.25 A ideologizaçãode conflitos entre Estados, o fornecimento de armamento e asfreqüentes intervenções das grandes potências e de seus aliados são,sem dúvida, o motivo desta visão profundamente negativa do impactoda bipolaridade mundial no continente africano. É especialmente oenvolvimento das superpotências nos dois cenários principais da assimchamada “segunda Guerra Fria” na África, entre 1975 e 1985 (na ÁfricaAustral, principalmente em Angola, e no “Chifre da África”), quejustifica esta avaliação crítica. No entanto, visto sob a perspectiva dehoje, talvez fosse mais relevante destacar o impacto conservador daGuerra Fria sobre a ordem diplomática e política dos Estados africanos.O interesse das superpotências na África reforçou os princípios básicosque fundamentaram os Estados africanos: a soberania “jurídica” – eabsoluta no que concerne a política doméstica –, a integridade territoriale a não-intervenção nos Estados vizinhos.26

O continente africano como um todo nunca foi um campo debatalha importante entre as duas superpotências. Os Estados Unidos ea União Soviética envolveram-se em confrontações – ainda indiretas –de força somente em regiões e conflitos específicos, notadamente naÁfrica Austral e no chamado “Chifre da África” (Somália, Eritréia eEtiópia).27 Mesmo assim, a África tornou-se, desde as independências,

25 Veja por exemplo, Weiss, T. G. (org.); The Suffering Grass: Superpowers and RegionalConflict in Southern Africa and the Caribbean, Boulder (Lynne Rienner) 1992.26 Veja: Jackson, R.H.; Quasi-States: Sovereignty, International Relations, and the ThirdWorld, Cambridge, CUP 1990. Jackson, R.H. & Rosberg, C.G.; Sovereignty andUnderdevelopment: Juridical Statehood in the African Crisis, 1986. Clapham, Chr.;Rethinking African States, African Security Review, vol. 10, No. 3, 2001. Clapham,Christopher S.; Africa and the International System: the Politics of State Survival, Cambridge,CUP 1996.27 Veja: Coker, C.: Nato, the Warsaw Pact and Africa. Basingstoke, Macmillan, 1985. Marte,L. F.: Political Cycles in International Relations: the Cold War and Africa 1945-1990. Amsterdam:VU UP, 1994. Weiss, T. G. (org.), op.cit.. Laïdi, Z.: The Superpowers and Africa: the Constraintsof a Rivalry, 1960-1990. Chicago & London: The University of Chicago Press 1990. Young,C.: African Relations with the Major Powers, em: Carter, G.M. and O’Meara, P. (eds.), AfricanIndependence. The First Twenty-Five Years, p. 218-248, Bloomington (Indiana UP) 1986.Somerville, K.: Foreign Military Intervention in Africa. London: Pinter 1990. Lyon, P.: The

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objeto de competição política entre as superpotências e os Estadosafricanos se aproveitaram bastante desta situação. Eles mantiveram, nasua grande maioria, a retórica da neutralidade como parte do bloconão-alinhado para aumentar o fluxo de apoio material, financeiro assimcomo de meios bélicos e de repressão. A bipolaridade mundial foitratada pelos Estados africanos em termos instrumentais – nãoideológicos –, isto é, como recurso, tanto para aumentar a segurançainterna e externa dos regimes e das suas classes dirigentes quanto paramanter segura a ordem internacional dos Estados africanos. Claphamdemonstra com muita clareza porque os Estados africanos foram capazesde manipular a ordem internacional em seu favor. Ele destaca um“paradoxo da impotência”: exatamente por causa da falta de importânciacrítica nos desígnios estratégicos das grandes potências não era necessáriocontrolar os Estados africanos da mesma maneira como, por exemplo,os Estados do Sudeste da Ásia. Era interessante e vantajoso, porém, tê-los como aliados na competição global. A posição de serem vistoscomo um objeto cobiçado, sem ser considerados, contudo, como“vitais” ou essenciais, deu aos Estados africanos a liberdade de barganhar,isto é, de utilizar a possibilidade de trocar de alinhamento, fosse realizávelou não, como meio de atrair recursos.28

Com certas exceções, a Guerra Fria na África não se travou nocampo ideológico ou por causa de orientações profundas nos sistemasdomésticos dos Estados africanos: as questões do alinhamento e deestratégia dominaram as perspectivas de ambas as superpotências.Thomas afirma que elas teriam firmado um tipo de “barganhafaustiana”. O Ocidente atribuiu mais relevância à aliança do que avalores como democracia, direitos humanos e até desenvolvimentoeconômico. Correspondente a esta “erosão” do ideal democrático doOcidente, a União Soviética abandonou o ideal do socialismo e buscou

Ending of the Cold War in Africa, em: Furley, O. (org.); Conflict in Africa. London & NewYork: Tauris Acade, 1995. McGowan, P.: Africa and Non-alignment: A Comparative Study ofForeign Policy, International Studies Quarterly, 12, 3, p. 262-295, 1968.28 Clapham, Chr.; International Relations of Africa after the End of the Cold War, em: Hale,W. & Kienle, E. (orgs.): After the Cold War. Security and Democracy in Africa and Asia,London (Tauris) 1997, p. 101.

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alianças na África, independentemente da orientação destes Estados napolítica doméstica.29 Certamente, a barganha ideológica não se restringiuà África e representa um marco importante na política da Guerra Fria,especialmente na dos EUA, cujos pactos em nome do anticomunismocom regimes ditatoriais e não-democráticos no “Terceiro Mundo” eno Sul da Europa sublinham a falta de orientação democrática napolítica exterior desta superpotência.

O impacto conservador mais importante da Guerra Fria naÁfrica certamente é seu efeito sobre o sistema de Estados. A competiçãodas superpotências fortaleceu um principio básico, fortementedefendido pelo multilateralismo africano (por exemplo, pela OUA),que ordenou a existência dos Estados africanos desde as independênciasnos anos 60: o de fazer prevalecer critérios jurídicos de soberania (statuslegal sob a lei internacional) sobre critérios empíricos (monopólio deforça, território e fronteiras definidas, legitimidade interna do Estado).30

O sistema internacional se empenhou pela integridade territorial“nacional” dos jovens Estados africanos e pela inviolabilidade de suasfronteiras. Mais ainda, o conceito formal e absoluto de soberania,defendido pelos Estados africanos, e o abandono pelas superpotênciasdos ideais éticos (como democracia) na competição por aliados, fizeramcom que a interferência nos processos políticos nos Estados africanostenha sido mínima durante os trinta anos de Guerra Fria. As elitespolíticas (com a notável exceção da África do Sul) conseguiram protegersua esfera doméstica contra pressões externas e governaram seus paísescom amplas liberdades. Assim, houve poucas tentativas sérias de intervirno espaço considerado como “jurisdição interna” para induzir ou forçara prática de direitos humanos ou princípios democráticos.

29 Thomas, S.; Africa and the End of the Cold War: an overview of impacts. In: Akinrinade,S. & Sesay, A. (orgs.): Africa in the Post-Cold War International System. London and Washington:Pinter. 1998.30 Veja: Jackson, R.H.; Quasi-States, op.cit.. Jackson, R. & Rosberg, C.G.; Sovereignty andUnderdevelopment, op.cit.. Clapham, Chr.; Africa and the International System, op.cit. verGrovogui, S.N.; Sovereignty in Africa: Quasi-Statehood and Other Myths in InternationalTheory. In: Dunn, K.C. & Shaw, T. (orgs.); Africa’s Challenge to International RelationsTheory, Basingstoke (Palgrave) 2001.

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Portanto, a Guerra Fria não somente “congelou” e consolidoua ordem africana de Estados, mas criou também um tipo de escudosob cuja proteção não era essencial para o Estado enraizar-selegitimamente em suas sociedades respectivas. Entretanto, este presenteda sociedade internacional bipolar, isto é, o congelamento das ordensexternas e internas dos Estados africanos, revelou-se um verdadeiroCavalo de Tróia. Criou um espaço político protegido e a ilusão deEstados consolidados. Em vez de utilizar o tempo “emprestado” pelaGuerra Fria para criar um Estado legítimo e desenvolver as sociedadesafricanas econômica e socialmente, as novas elites, protegidas peloprincipio da soberania jurídica da ordem internacional pós-SegundaGuerra Mundial, desestruturaram os países num amplo projeto deformação de classe, enriquecimento particular e desgoverno. A políticade exclusão do neopatrimonialismo africano, a pilhagem das riquezaspelas novas elites, a destruição sistemática da participação democrática,o declínio dos níveis de legitimidade e integração nacional em vez depromover a “national building” – eis uma série de circunstânciasimensamente facilitada pelas características da inserção internacionaldos novos Estados africanos. As repercussões do congelamento da ordemafricana se revelaram no momento em que o escudo de proteção sedesfez, com o fim da Guerra Fria.

Quais são as conseqüências políticas do fim da Guerra Fria naÁfrica? Esta questão muitas vezes leva à elaboração de longas listas,acarretando repercussões de ordem muito diversa.31 Incluem itens comoa fragmentação do Estado e o colapso de Estados clientes dassuperpotências, a erosão dos princípios básicos dos Estados africanos(soberania, integridade territorial, não-intervenção), a hegemoniaideológica do liberalismo e da democracia, o fim dos fóruns e dasideologias do “terceiro-mundismo”, o declínio dos temas e discursosque orientaram a inserção internacional durante a Guerra Fria(anticolonialismo, anti-apartheid, não-alinhamento, luta por uma nova

31 Veja por exemplo: Thomas, S.; Africa and the end of the Cold War: an overview ofimpacts. In: Akinrinade, S. & Sesay, A. (orgs.): Africa in the Post-Cold War InternationalSystem. London and Washington: Pinter 1998.

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ordem econômica internacional), o surgimento de novos temas e denovas perspectivas de segurança como migração, Aids, terrorismo, fome,direitos humanos, a regionalização da segurança dos Estados, a crescenterelevância de atores não-estatais nas relações internacionais, o surgimentode novos conflitos intra-africanos e lutas por hegemonia regional entreos Estados do continente. Queria focalizar aqui dois fatores queconsidero relevantes para compreender a situação zimbabuana: (1) ocolapso dos fóruns de “lateralização” e harmonização da política exteriordos Estados africanos (e do “Terceiro Mundo”) e das ideologiasacompanhantes, isto é: o fim efetivo do Movimento dos Não-Alinhadose a reestruturação das Nações Unidas em detrimento da AssembléiaGeral; (2) o questionamento dos conceitos de soberania absoluta e aquestão da ingerência democrática.

O primeiro aspecto da nova ordem internacional, relevantepara a inserção internacional do Zimbábue, a ser discutido aqui, refere-se ao declínio dos fóruns e das ideologias do “Terceiro Mundismopolitizado”. O Zimbábue se destacou claramente, no movimento dosNão-Alinhados (NAM), grupo que, no momento da independênciazimbabuana, já havia ultrapassado seu apogeu em poder e projeçãointernacional, especialmente no que concerne as reivindicações de umanova ordem econômica internacional (NIEO). Mas, no contexto africano,os princípios de não-alinhamento e a raison d’être do grupo permanecerammais vivos, em função do conflito regional decorrente do regime daapartheid e das múltiplas intervenções das superpotências em meadosdos anos 70, durante a assim chamada “segunda Guerra Fria”.

A retórica e política do não-alinhamento são filhos da GuerraFria. Representam a tentativa dos países subdesenvolvidos e periféricosde explorar a bipolaridade, criando espaço político para atuar eutilizando-a como recurso ideológico e material para atrair o fluxo deassistência desenvolvimentista dos dois lados. Ideologicamente, o NAMassumiu um forte compromisso com os princípios básicos do sistemade Estados africanos: soberania “negativa”, não-interferência nos assuntosda política doméstica e integridade territorial.

Nos anos 70, o lobby do Sul nos fóruns internacionais (o NAM,o Grupo dos 77, o grupo afro-asiático na ONU) alcançou seu zênite

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de influência ao reestruturar as relações Norte-Sul e ao questionarespecialmente a ordem liberal nas relações econômicas. The Gramscianhegemony, escreve Krasner, enjoyed by liberal doctrines in the immediatepost-war period had been totally undermined.32 O Sul conseguiumodificar a ordem liberal de comércio, embora levemente, em seufavor.33 Mas também em relação a muitos temas da ordeminternacional (colonialismo, apartheid), o Sul conseguiu exercer umacerta hegemonia nos órgãos internacionais. Os países líderes domovimento conseguiram transformar sua presença nos fóruns do“Terceiro Mundismo politizado” em prestígio e status. A Tanzânia,por exemplo, um dos mais pobres países do mundo, had developed aninflated international status built around its commitment to non-alignment and its leadership of the NAM, the Group of 77 and theNorth-South lobby.34

O declino do NAM se iniciou já durante a Guerra Fria com apolítica de détente entre as superpotências e, nos anos 80, quando oNorte, especialmente os EUA, atribuíram muito menos importânciaaos órgãos multilaterais com alta representação do Sul. O fim da GuerraFria, porém, causou um efeito irreversível sobre a idéia do não-alinhamento e suas manifestações institucionais. O fim da bipolaridadepunched gasping holes in the rationale of non-alignment as a foreignpolicy goal for the developing states of Africa (and) eroded both the moraland the philosophical platforms upon which the NAM was constructed.35

Sesay continua argumentando que seria difícil imaginar um papelsignificativo para o NAM no mundo pós-Guerra Fria, uma vez que asprimeiras reações do grupo frente às transformações mundiais, naocasião da reunião em Jacarta em 1992, demonstraram sua falha em

32 Krasner, St. D.; Structural Conflict, The Third World Against Global Liberalism. Berkeley,L.A.: London: Uni of Cal. Press. 1985, p.9.33 Michalopoulos, C. The Role of Special and Differential Treatment for DevelopingCountries. In: Gatt and the World Trade Organization. WB Working Paper, s.d.34 Nzomo, M. The Foreign Policy of Tanzania: Form Cold War to Post-cold War. In:Wright, St. (org.): African Foreign Policies. Boulder: Westview Press, 1999, p.195.35 Sesay, A. Africa, non-alignment and the end of the Cold War. In: Akinrinade, S. & Sesay,A. (orgs.): Africa in the Post-Cold War International System. London and Washington: Pinter,1998, p. 153.

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encarar a situação e em conduzir a organização a uma reformaprogramática. O NAM, ao insistir no conceito absoluto de não-interferência e de soberania “negativa” não responderia criativamenteaos desafios da nova ordem internacional, especialmente para os paísespobres da África, ameaçados pela desintegração das suas sociedades.36

Junto com a desintegração de um dos seus países fundadores, aIugoslávia, o NAM desapareceu como força relevante da políticainternacional. Os outros fóruns do Terceiro Mundismo (por exemploo Grupo dos 77) sofreram o mesmo destino. Ainda mais, o fórummais importante da atuação combinada dos Estados africanos, NaçõesUnidas – e especialmente a Assembléia Geral –, experimentou o mesmodeclino em importância. A Assembléia Geral perdeu a posiçãoestratégica para os países africanos e o processo de tomada de decisõesse concentra agora no Conselho de Segurança, dominado pelosvencedores da Guerra Fria. As potências ocidentais mandam agora naONU de maneira semelhante à do início dos anos 60. Os paísesafricanos que, durante os anos 70, influenciaram os temas e debates,viraram agora meros objetos da política do órgão (como espaços deintervenções humanitárias), sendo excluídos dos processos decisórios.

Finalmente, o que nos anos 70 se destacava como marca daatuação internacional dos Estados africanos, a “lateralização” eharmonização de suas políticas,37 parece cada vez mais difícil de realizar.Fortes tendências dividem os Estados africanos e dificultam a articulaçãode posições em comum. Interesses econômicos opostos e visõesantagônicas acerca do modo de inserção na economia mundial abalaram,por exemplo, uma postura comum entre os Estados africanos na recenteConferência Ministerial da OMC em Doha, no Catar. A África doSul, que, juntamente com a Nigéria, é um dos líderes do continente,abandonou rapidamente a postura comum, negociada anteriormente,de bloquear uma nova rodada de liberalização do comérciointernacional, e levou consigo seus vizinhos da SADC à dissidência,

36 Ibid.37 Nweke, G. Harmonization of African Foreign Policies, 1955-1975: the Political Economyof African Diplomacy. Boston: African Studies Centre 1980.

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causando um confronto com a Nigéria e com os países da ÁfricaOcidental. Esta perspectiva distinta da África do Sul pode ser explicadapelo nível diferente de desenvolvimento econômico e de capacidadetécnica deste país, de dar conta de uma nova rodada de negociações emassuntos tão complexos como os de Singapura.38 Adicionalmente, umregionalismo crescente e a tendência dos países ocidentais de não tratarmais a África como entidade homogênea, mas de distinguir os paísesem função do nível diferente de desenvolvimento (por exemplo, nonovo Tratado de Cooperação entre os países ACP e a União Européia)enfraquecem ainda mais as perspectivas comuns no nível continental.

A segunda transformação nas relações internacionais pós-GuerraFria envolve os conceitos de soberania e ingerência. Muitos autores,observando as modificações na inserção internacional provocadas pelofim da Guerra Fria, especificamente dos países pobres e fracos do Sul,destacam a erosão de princípios de soberania “vestfaliana”39 como umdos traços mais marcantes do mundo pós-Guerra Fria. SeverineRugumanu, intelectual conceituado da Tanzânia, por exemplo, fala dofim do conceito absoluto de soberania e da rápida aceitação do direitode interferência na política doméstica de um Estado, em nome dosnovos valores consensuais como good governance, direitos humanos,reformas econômicas ou em caso de catástrofes humanitárias:

38 Veja: Döpcke, W.; A África e a OMC – quem venceu no Catar? In: Meridiano, 18, 2001.39 Soberania vestfaliana, embora pouco ligada ao próprio Tratado de Paz de Vestfalia de1648, normalmente se refere à norma internacional da exclusão de atores externos doterritório de um outro Estado e das suas estruturas de poder e autoridade. Veja entre outros:Krasner, St.; Sovereignty. Organized Hypocracy, Princeton UP 1999. É importante ressaltarque muitos autores rejeitam a idéia de que a noção de uma soberania absoluta teriahistoricamente guiado o sistema internacional. Argumentam que se trata de um mito, e quea ingerência em assuntos “internos” fazia parte das relações de poder e subjugação nasrelações entre Estados. Assim, a relativização do conceito de soberania depois do fim daGuerra Fria representaria pouca novidade. Ver: Krasner, Sovereignty, op.cit,. Grovogui,S.N.; Sovereignty in Africa: Quasi-Statehood and Other Myths in International Theory. In:Dunn, K.C. & Shaw, T. (orgs.); Africa’s Challenge to International Relations Theory, Basingstoke(Palgrave) 2001. Entretanto, para o argumento ora desenvolvido, que destaca a diferençanas prerrogativas “soberanas” dos Estados africanos num período historicamente curto, istoé, entre os anos 60 e o fim da Guerra Fria, estas críticas, que se baseiam num contextohistórico muito mais amplo, parecem ter pouca relevância.

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In fact, the traditional norms of sovereignty, consent and non-interference in internal affairs are no longer defined in absoluteterms. (…) As would be expected, the norm of sovereignty has beendeliberately redefined and broadened, in order to the new andemerging principles of ‘good governance.40

Rugumanu identifica cinco momentos principais queimpulsionaram esta mudança no conceito de soberania: 1) a políticado Conselho de Segurança da ONU de ampliar seu mandato paraintervenções humanitárias com o objetivo de proteger os direitoshumanos e políticos em determinados países, sem necessariamentecolher o assentimento do país em questão; 2) a erosão gradual dasoberania absoluta dos Estados africanos mediante a imposição decondicionamento econômico pelas IFIs; 3) o surgimento de novo tomno discurso dos intelectuais e das instituições multilaterais, ampliandoo significado de soberania (para incluir, por exemplo, o conceito desegurança humana) e questionando o vínculo absoluto com o Estado41;4) o processo de reflexão sobre soberania e ingerência no âmbito daOUA e o surgimento de posições, e práticas, mais permissivas acercade intervenções justificadas por razões humanitárias nas esferas internasde Estados formalmente reconhecidos; e 5) a prática, agora muitocomum, de monitorar eleições em países africanos.

Devem ser acrescentados mais elementos, que são, porém,menos “consensuais”. Os mais importantes são, sem dúvida, astransformações no discurso internacional das potências ocidentais esua política de promover mundialmente, mas principalmente nos paísesdo Terceiro Mundo, democracia, direitos humanos e good governance,e de aplicar um amplo instrumental de mecanismos de ingerência paraalcançar este objetivo. Estas pressões em prol da democracia e dos direitoshumanos, comumente apostrofadas como “condições políticas” – parapôr em evidência o paralelo com seus predecessores, as assim chamadas

40 Rugumanu, S.M. State Sovereignty and Intervention in Africa. In: Conflict Trends,nº 4, 2001.41 Veja por exemplo: Deng, F.: Sovereignty as Responsibility. Washington, DC: BrookingsInst., 1996.

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condições econômicas, impostas pelas IFIs – tomam várias formas emanifestações. Fazem parte, o que é talvez a vertente mais importante,do cotidiano diplomático e estão presentes em quase todas as interaçõesdiplomáticas entre os países africanos e os ocidentais. Entraram comoparte essencial nos acordos bi – ou multilaterais de assistência financeirae de cooperação, como no Tratado de Cotonou (entre os países dogrupo ACP e a União Européia) ou nos acordos baseados no AfricanGrowth and Opportunity Act dos EUA. As IFIs inseriram cláusulassobre governo e princípios democráticos nos seus pacotes econômicos.Em resumo: assistência financeira e outras formas de cooperação, paraos países africanos, estão sendo crescentemente vinculadas a questõesde ordem política, ou diretamente, na forma de condições, ouindiretamente, como parte de um “diálogo político” mais amplo.

Condições políticas nas relações de assistência entre a África eo Ocidente já existiam antes do fim da Guerra Fria. Por exemplo,cláusulas com este conteúdo fazem parte dos Tratados de Lomé desde1985, muito mais como recurso decorativo do que dotadas de relevânciaprática. Antes do fim da Guerra Fria, questões como os direitoshumanos já constavam nas agendas internacionais, sem lograr, contudo,efeitos práticos notáveis. Por exemplo, a Charter on Human Rightsand People´s Rights da OUA data de 1985, mas a adesão ao sagradoprincípio de não-interferência tornou-a letra morta. The real change inthe post-Cold War period, argumenta F. Olonisakin, lies in thedevelopment of positive trends dealing with these human rights violations– calls for enforcement of human rights laws and new methods ofpromoting and protecting these rights.42 No pós-Guerra Fria, as questõesde direitos humanos, democracia e good governance se projetaram nocentro ideológico da relação Ocidente-África, não somente comovalores éticos, mas, também, por que chegaram a ser considerados comoparte do próprio desenvolvimento, que está sendo visto cada vezmais pelo Ocidente como um processo de criar um ambiente – social,

42 Olonisakin, F. Changing perspectives on human rights in Africa. In: Akinrinade, S. &Sesay, A. (orgs.): Africa in the Post-Cold War International System. London and Washington:Pinter, 1998, p. 95.

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político e administrativo – propício ao desencadeamento das forçasprodutivas.43 Enquanto antes questões do regime político ou de direitoshumanos foram percebidas separadamente da questão dodesenvolvimento econômico, hoje se tornam conditio sino qua non.Como argumenta o importante Green Paper de 1996, que veio areformular a política européia para os países do grupo ACP:

There is a high degree of political, as well as economic instability,which adversely affects investment conditions and economic activitiesin general. Government’s ability to do its job is limited by the lack oftransparency in public affairs, rentier mentality and the clientelismpractice by ruling elites. Bad governance jeopardizes social developmentefforts, which demand policy continuity and long-term vision … .44

Conseqüentemente, o novo tratado, firmado entre a UniãoEuropéia e os países ACP em 2000, enfatiza o respeito aos direitoshumanos, às liberdades fundamentais, à democracia, ao governo pormeio de leis, à transparência e responsabilidade no ofício de governocomo elementos “essenciais e fundamentais” da relação norte-sul e prevêum procedimento de consultas e medidas punitivas, caso um paísdesobedeça a estas regras.45

Ingerência no sistema internacional no pós-Guerra Fria, emborase baseie em valores universais como democracia e direitos humanos,na prática reproduz e reforça as hierarquias e desigualdades entre osEstados. Na prática, representa um discurso forte, uma linguagem eum instrumento do Ocidente em suas relações com os países do Sul ena realização de seus interesses. Com efeito, especialmente os EUArejeitam a possibilidade de ingerências externas, ao menos para si, soba alegação de interferência em assuntos soberanos, em particular a de

43 Para as mudanças nos paradigmas de desenvolvimento veja entre outros: Hillebrand, E. &Maihold, G.; Von der Entwicklungspolitik zur globalen Strukturpolitik. Zur Notwendigkeitder Reform eines Politikfeldes. In: Politik und Gesellschaft on line, 4, 1999 .44 European Commission; Green Paper on relations between the European Union and theACP countries on the eve of the 21st Century - Challenges and Options for a new Partnership,Bruxelas (European Commission) 1996, Art. 9 e Art. 96.45 European Community; The Cotonou Agreement, 2000, art. 9.

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órgãos multilaterais cujo controle remanesce democraticamente coma maioria da comunidade internacional.46

A ingerência ocidental na África em prol de democracia, direitoshumanos e good governance a partir de 1990 gerou uma prática políticacheia de inconsistências, imperfeições e resultados bem diversos e atécontraditórios. Os critérios, que pareciam ser universais, variarambastante de país a país. Alguns Estados gozavam de enormes liberdadesinternas e da aceitação de práticas políticas nada democráticas. OOcidente, sobretudo a Grã-Bretanha e os Estados Unidos, por exemplo,não se cansaram de homenagear e apoiar o regime autocrático(oficialmente foi denominado de no party state) de Muzeweni emUganda.47 De outro lado, alguns países foram selecionados para servircomo exemplo da nova determinação democrática do Ocidente.O Quênia foi um destes países. Sofreu de repente, após 1990, umareviravolta fundamental em suas relações com o Ocidente, principalmentecom os EUA. Tradicionalmente um dos mais importantes e fiéis aliadosdos EUA na África durante a Guerra Fria, ideologicamente firme ecom uma certa relevância estratégica (proximidade do Oriente Médioe do Mar Vermelho com as rotas marítimas internacionais), o Quêniafoi subitamente confrontado com um discurso modificado, que sefaz, agora, acerca de valores democráticos ao invés da relevânciaestratégica. Submetido a forte pressão em todos os níveis de suainteração internacional (do cancelamento da assistência financeira aoapoio aberto do embaixador norte-americano Hempstone à oposiçãoao regime), exercida por uma ampla coalizão pró-democrata, que inclui,entre outros, os EUA, os países escandinavos e as IFIs, o regimequeniano se rendeu, adotando, contra sua própria vontade, um sistemamultipartidário e realizando eleições gerais. Mas ao final, conseguiu,de certa maneira, calar o Ocidente. Fez valer seu argumento contra ademocracia e o multipartidarismo, baseado na suposta imaturidade

46 Veja como último exemplo a decisão dos Estados Unidos de se retirar do tratado queestabeleceu um Tribunal Internacional Penal (TPI) e de não reconhecer jurisdição destacorte sobre cidadãos norte-americanos. The New York Times online; “U.S. rejects allsupport for new Court on Atrocities”, 7.5.2002.47 Veja: Mugaju, J. & Oloka-Onyango (orgs.); No-Party Democracy in Uganda. Myths andRealities, Uganda 2000.

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política das sociedades africanas, provocando uma onda de violênciaétnica durante as eleições.48

Tanto quanto a abordagem ocidental não seguia o dogma puro,pois estava condicionada a uma série de considerações (interessesestratégicos, a existência de uma oposição no país africano, a capacidadehistórica e institucional do país de realizar as transformações democráticas,hierarquias e preferências entre os assuntos da política internacional numadada época), assim também à vontade e a capacidade dos países africanosde lidar com estas pressões variava bastante. Clapham diferencia – emanalogia às reações às condições econômicas das IFIs – entre obediência,subversão/manipulação e oposição/contestação.49 Mas, na realidade,ele aceita que as opções eram mais complexas e menos claramentecategorizáveis. Alguns países, liderados pelo Benin, experimentavamjá no início dos anos 90, eleições e transferência pacífica de poder (porexemplo, Zâmbia e Malaui). Outros regimes aplicaram amplo lequede medidas e artifícios para se manter no poder, mas cedendo parcialmenteàs pressões ocidentais para realizar eleições (por exemplo Costa deMarfim, Quênia, Togo, Nigéria, Zaire). Um terceiro grupo de Estados,chamado de “autocracias reconstruídas” por Clapham, recebeu umtratamento diferenciado do Ocidente. Para países que acabaram de sairde um estado de colapso, a governabilidade parecia mais importantepara o Ocidente do que reformas democráticas (Gana, Etiópia, Eritréia,Uganda, Ruanda, Zaire/RDC). Em outro conjunto de países (Namíbia,Angola, Libéria, Moçambique) eleições democráticas forampromovidas como saída principal de uma guerra civil. Finalmente,argumenta Clapham, contestações diretas das pressões ocidentais emprol de democratização eram raras (Nigéria, Serra Leoa, Gâmbia, Sudão,e agora Zimbábue) e não muito duradouras. Somente o Sudãoconseguiu se proteger efetivamente contra as pressões ocidentais.

O resultado do novo discurso ético e das pressões do Ocidenteem favor da democratização parece, à primeira vista, impressionante e

48 Rono, J.; Kenyan Foreign Policy, em: Wright, St. (org.): African Foreign Policies, Boulder(Westview Press) 1999.49 Clapham, Christopher S.; Africa and the International System: the Politics of StateSurvival, Cambridge: CUP 1996, p. 187.

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convincente. As Africa entered the final year of the 1980s, argumentaJohn Wiseman,

only five states could seriously claim to be democratically governedeven if the relatively minimalist definition of democracy, involvingfree elections with competing parties, was used. (…) Six years laterthe situation had been transformed. To say that democratic systemspredominated in Africa would be an exaggeration but to say thatthere had been a quite remarkable movement in that direction wasincontestable (…).50

Em torno de 1995, 36 Estados africanos praticavam ademocracia multipartidária. Alguns dos doze Estados ainda autocráticos(como Nigéria e Serra Leoa) viriam a se transformar até o final da década.

Este renascimento do pluralismo político na África, comemoradocomo a “segunda independência” do Continente, leva a uma série dequestões. Em primeiro lugar, questiona-se a profundidade dastransformações. Alega-se que as democratizações são superficiais,limitando-se a eleições (ainda personalistas) e à substituição de umaelite por outra. Akinrinade, citando o cientista político Claude Ake,destaca que “there is no single pro-democratic struggle in Africa whichhas the dismantling of the inefficient, corrupt, repressive and undemocraticstate as part of its priority agenda.” 51

O segundo questionamento se refere às causas destastransformações democráticas. Contrariamente às argumentaçõescorrentes, que atribuem a redemocratização da África ao ambienteinternacional e às pressões do Ocidente, questiona-se seriamente o valordestas intervenções externas e vinculam-se as democratizações ao colapsode legitimidade dos regimes, do Estado neo-patrimonial e das elites,bem como às lutas internas em prol de democracia.52 Argumenta-se

50 Wiseman, J.A. The New Struggle for Democracy in Africa, Aldershot, GB (Ashgate)1996, p. 1.51 Akinrinade, S. The re-democratization process in Africa: plus ça change, plus c’est la mêmechose?, In: Akinrinade, S. & Sesay, A. (orgs.): Africa in the Post-Cold War International System.London and Washington: Pinter, 1998, p. 80.52 Ibid., p.78.

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que as medidas internacionais diretas demonstraram pouco resultadoe que o ambiente internacional representou oportunidade e ocasião,mas não causas e forças profundas das lutas democráticas. Estas devemser procuradas num ciclo interno de protestos populares e reformapolítica, encaminhado já bem antes do fim da Guerra Fria.53

Mas, seja como for, para o regime mugabista as pressões, internase externas, se tornam o principal desafio ao final da década de 2000.Uma boa parte do eleitorado do país, para lembrar a citação em epígrafea este artigo, se revoltou contra a perspectiva de ter que votar embabuínos e o ambiente internacional, de repente, também, começou ase preocupar com o destino da democracia no país. O cenário para aingerência, embora inicialmente tímido, estava pronto em 2000.

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Ao longo dos anos 90, todos os cinco princípios norteadoresbásicos da inserção internacional do Zimbábue ou perderam relevânciaou sofreram modificações significativas de sentido, criando um vácuoideológico e de alinhamento para o país e sua elite política. Os fórunsmultilaterais e os temas chaves, que renderam ao país um alto perfilinternacional, tornaram-se vítimas do fim da Guerra Fria. A partir dofinal da década de 1990, os novos assuntos, norteadores do discursointernacional pós-Guerra Fria, chegaram ao país. As questões dademocracia, dos direitos humanos e da governabilidade se projetaramno centro do confronto político interno e chegaram, assim, a dominaras relações do país com a comunidade internacional. O Zimbábueperdeu a iniciativa de esboçar os termos de sua inserção internacional.

53 Bratton, M.: International versus Domestic Pressures for Democratization in Africa. In:Hale, W. & Kienle, E. (orgs): After the Cold War. Security and Democracy in Africa andAsia, London Tauris, 1997, p. 179. Veja também: Alao, A. S.; The Role of Elections andElectoral Systems in the Process of Democratization in Africa. Münster & Hamburg (LIT)1994. Bratton, M & van de Walle, N.; Democratic Experiments in Africa. Regime Transition inComparative Perspective. Cambridge: CUP, 1997. Diamond, L. Promoting Democracy inAfrica: U.S. and International Policies in Transition. Boulder: Westview Press, 1995. Joseph,R.; Democratization in Africa after 1989: Comparative and Theoretical Perspectives, In:Anderson, L. (org.): Transition to Democracy.

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A política exterior do país se tornou reativa e defensiva. A defesa contraingerência externa virou seu objetivo principal. Enquanto, nos anos80, a interação com a comunidade internacional fortaleceu o domíniodoméstico da classe dirigente, agora esta classe se sente ameaçada porum ambiente internacional que destaca cada vez mais o valor dos direitoshumanos e democráticos. O confronto entre o regime mugabista, lutandopor sua permanência no poder, e as forças contestadoras culminaram,por enquanto, nas eleições presidenciais de março de 2002.

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A primeira onda de democratização no continente africano ena sub-região, no início dos anos 90, passou sem muito impacto noZimbábue. Este atraso em relação às democratizações no resto daÁfrica se explica pelo demorado processo de transformação na Áfricado Sul, que de certa maneira paralisou a política doméstica noZimbábue e, mais importante, pelas imensas dificuldades emtransformar descontentamento em estratégia eleitoral e em costuraruma oposição eficaz ao regime de Mugabe.54

Foi somente no final dos anos 90, que o regime veio a sercontestado mais seriamente. A partir de 1998, a oposição ao regimemugabista alcançou novas formas organizadoras, num processo queculminou na formação do partido MDC (Movement for DemocraticChange) em setembro de 1999, que, nas eleições parlamentares de2000 conquistou, apesar da campanha de extrema violência praticadapelo Estado, quase a metade dos votos no país.

As causas “profundas” do surgimento desta oposição são: (1) acrise econômica que chegou a dimensões cataclísmicas e que acarretouuma pobreza generalizada entre a população comum e politizou ossindicatos; (2) ironicamente, as repercussões da grande expansãoeducacional (a única verdadeira realização do regime ao longo de vinteanos) que criou, nas cidades, uma nova geração de jovens formados e

54 Moyo, J.; Voting for democracy: a study of electoral politics in Zimbabwe. Harare: Universityof Zimbabwe Publication, 1992. Sylvester, C.; Unities and disunities in Zimbabwe’s 1990election, In: Journal of Modern African Studies; vol. 28, no. 3, p. 375-400, 1990.

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esclarecidos, mas sem emprego, formando uma importante base socialda oposição; (3) o fato que Mugabe, no final das contas, não tevesucesso em isolar o país do impacto das democratizações na sub-regiãoe no resto do mundo. A nova África do Sul, bem como o discursodemocrático internacional renovado, proveram a oposição democráticano Zimbábue dos contatos e ligações necessários, de um contexto eacompanhamento estimulador, mas, lamentavelmente, ainda não daproteção contra a violência do Estado.

A crise econômica tem sua causa no péssimo manejo daeconomia pela elite governamental e no seu enriquecimento por meiode corrupção e pilhagem sistemática dos recursos públicos. Para mantero fluxo de empréstimos internacionais, em 1991, o governo lançouum programa de ajuste estrutural, que desmontou completamente oserviço público e abalou principalmente os setores de educação e saúde,sem inibir, contudo, o crescimento das redes de patronagem política emilitar, acabando com os poucos recursos que restavam.55 Embora oajuste estrutural tivesse liberalizado em certo grau a economia do país,seus resultados ficaram muito aquém de sua modernização. O elevadodéficit orçamentário continuado, conseqüência da guerra no Congo eda rede mugabista de patronagem e enriquecimento, a insistência emtaxas de câmbio fixas e as ameaças abruptas de reviravoltas na políticaeconômica causaram muita desconfiança e marginalizaram a economiado país internacionalmente.56 O colapso do sistema público de saúde

55 Mhone e Bond caracterizam o impacto da política de ajuste estrutural da seguintemaneira: “The results of orthodox policies, especially the trade/financial liberalization andconditionality associated with ESAP [programa de ajuste estrutural], included andamplification of existing high levels of inequality. As a direct result of funding cuts and cost-recovery policies, exacerbated by the Aids pandemic, Zimbabwe’s brief 1980 rise in literacyand health indicators was dramatically reversed. Mhone, G. & Bond, P.; Botswana andZimbabwe. Relative Success and Comparative Failure. In: United Nations UniversityDiscussion Paper nº. 2001/38.56 Em outubro de 2001, por exemplo, Mugabe ameaçou publicamente conduzir o seu paíspara um socialismo rígido, com controle dos preços e nacionalização de empresas particulares.“Mugabe Panics At MDC’s Second Coming”, Financial Gazette (Harare), 19.10. 2001. Em2001, o país caiu dramaticamente na avaliação da sua competitividade feita pelo WorldEconomic Forum’s Global Competitiveness Programme, do 56º lugar para o 75º. A Áfricado Sul foi classificada em 34º e Mauritius em 32º. “Nation Hits Bottom of World Rankings”,The Insider (Harare), 31.10.2001.

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teve conseqüências catastróficas, considerando especialmente a alta taxade infecção da população do país com o vírus HIV.57 O engajamentomilitar de Zimbábue na guerra no Congo (1996-1997 com apoiomaterial e a partir de 98 com tropas de combate) ultrapassa imensamenteas capacidades financeiras do país, acelerando enormemente a decadênciaeconômica. O envolvimento nesta guerra ilustra bem o funcionamentoda acumulação particular de recursos públicos. Os altos custos dacampanha militar, estimados em US$ 30 milhões por mês, são pagospela sociedade, enquanto as amplas oportunidades de enriquecimentono Congo, principalmente pela pilhagem dos recursos naturais eminerais deste país, são apropriadas pela cúpula do exército e do partido,entre eles parentes do Robert Mugabe.58

A partir da segunda metade dos anos 90, a economia entrouem um abismo absoluto. Todos os indicadores econômicos e sociaisdespencaram.O nível de vida da pessoa comum e o PIB per capita nofinal da década de 1990 foram estimados muito mais baixos do queno momento da independência em 1980. O PIB declinou 2% em1998, 3% em 1999, 6% em 2000 e mais de 7% em 2001. Em termosper capita, o PIB baixou de US$ 710 para US$ 480 entre 1996 e2000. A participação da formação de capital no PIB declinou de 19%para 2%.59 O desemprego gira em torno de 60% e a taxa de inflação,de 90% em 2001, atinge 113% em 2002. Para 2002, estima-se que oPIB cairá ainda algo entre 9% e 12,5%.60 As instituições financeirasinternacionais se recusam a fornecer mais empréstimos e os investimentos

57 Veja: HIV/Aids as a Security Issue; ICG Report, Washington/Bruxelas, 2001. Haacker,M.; The Economic Consequences of HIV/Aids in Southern Africa, IMF Working PaperWP/02/28, Feb. 2002. A taxa de infecção é estimada em 25% da população e as mortes,relacionadas à Aids, ultrapassaram a marca de 100.000 em 2000.58 United Nations. Security Council. Addendum to the Report of the Panel of Experts onthe Illegal Exploitation of National Resources and Other Forms of Wealth of the DemocraticRepublic of the Congo, S/2001/1072, nov. de 2001. Global Witness. Briefing Document:26th August 2001; Zimbabwe’s Resource Colonialism in the DRC. Global Witness; BranchingOut. Zimbabwe´s Resource Colonialism in Democratic Republic of Congo, London 2002.59 World Bank; World Development Indicator Database, abril de 2001.60 Irin; “Zimbabwe: Bleak economic future”, 21.3.2002.

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externos tendem a zero.61 Comparando o Zimbábue com os seusvizinhos, o declínio zimbabuano fica até mais acentuado. Num estudocomparativo entre o Botsuana e o Zimbábue, concluiu-se simplesmenteque Botswana has prospered while Zimbabwe has fallen into a deepcrisis.62 Quando, finalmente, por ocasião das eleições parlamentaresem 2000, Mugabe mandou sua milícia, os chamados veteranos daGuerra de Libertação,63 atacar os fazendeiros brancos, seus trabalhadorese a oposição nas zonas rurais, foi também atingida a produtividade daagricultura comercial, ainda o maior empregador e gerador principalde renda e divisas do país. A contribuição da agricultura para o PIBcaiu de 22% em 1996 para 15% em 2000. Como conseqüência dasinvasões das fazendas, os fazendeiros demitiram os trabalhadores emmassa.64 Instalou-se um círculo vicioso entre decadência econômica eluta pelo poder. Em 2002, as repercussões econômicas das ocupaçõesdas fazendas foram agravadas por uma severa estiagem, deixando cercade 7,8 milhões dos 13 milhões de habitantes do país sob o risco depassar fome.65

O primeiro passo concreto da oposição foi a mobilizaçãopública, por parte de um conglomerado de grupos civis, de direitoshumanos e sindicatos (a National Constitutional Assembly – NCA),em favor de uma Constituição mais democrática e contra a propostaconstitucional do governo. Em fevereiro de 2000, uma boa maioriarejeitava a proposta governamental e o referendo sobre a nova Constituiçãofoi vencido pela oposição. O segundo momento da articulação dasforças oposicionistas foi a formação do Movement for Democratic

61 Imf Country Report No. 1/13; Zimbabwe. Recent Economic Developments, SelectedIssues and Statistical Appendix, jan. 2001. World Bank Press Release: World Bank PlacesZimbabwe on Non-Payment Status, 3.10.2000. Por exemplo, em 2001 o FIM, o Bancomundial e o African Development Bank suspenderam suas assistência financeira. The DailyNews (Harare); “Targeted Sanctions Will Hurt the Poor More, Analysts Say”, 22.2.2002.62 Mhone, G. & Bond, P.; Botswana and Zimbabwe. Relative Success and ComparativeFailure, In: United Nations University Discussion Paper no. 2001/38.63 Trata-se, na sua grande maioria, de jovens desempregados que nem tinham nascido naépoca da Guerra de Libertação.64 World Bank; World Development Indicator Database, abril de 2001. ICG Report;Zimbabwe in Crisis, op.cit..65 BBC News, 30.4.2002; “Zimbabwe ‘disaster’ as famine looms”.

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Change – MDC, em setembro de 1999, principalmente pelos sindicatose outros grupos da sociedade civil urbana. Tal como no país vizinho deZâmbia, os sindicatos politizaram-se contra as conseqüências desastrosasdas políticas de ajuste estrutural, que o governo vem realizando desdeo início dos anos 1990. O MDC, porém, é mais um movimento, politicae socialmente heterogêneo, e unido somente na rejeição do governo ede suas políticas.

A derrota do governo no referendo constitucional, a primeirade Mugabe em uma consulta pública em 20 anos, já condicionou umadas vertentes principais da abordagem do Estado pela oposição. Emboraa Zanu tivesse perdido o referendo na população pobre das cidades,Mugabe direcionou a resposta do Estado contra a minúscula minoria(menos do que 1% da população) dos fazendeiros brancos. Poucos diasapós a derrota no referendo, os “veteranos” começaram a invadir fazendasde propriedade de brancos. Os órgãos de segurança pactuaram com amilícia e ignoraram, incentivados por declarações públicas de Mugabee da cúpula do Partido, as sentenças de desocupação dadas pela CorteSuprema do país. No total, quase 2.000 fazendas foram ocupadas evários fazendeiros brancos e seus trabalhadores foram assassinados.66

Esta focalização nos ex-colonos, que tinham optado por ficarno país em 1980, já antecipava, como objetivo estratégico, as duaseleições seguintes, que foram consideradas vitais para a sobrevivênciado regime: as eleições parlamentares de junho de 2000 e as eleiçõespresidenciais de março de 2001. De um lado, parece que Mugabedesistiu da reconquista eleitoral das cidades, frente a uma oposiçãoquase unânime. Embora no espaço urbano também tivesse aplicado aestratégia da repressão violenta pelos órgãos de segurança do Estado epelo mob das milícias, a tática principal foi a da exclusão de muitoscidadãos das eleições e a criação de caos nos momentos de votação,para inibir assim a participação do maior número possível de eleitores.Inversamente, as zonas rurais foram transformadas em zonas de guerraonde ameaças, destruição de casas e outras propriedades e violência

66 International Crisis Group (ICG); Zimbabwe in Crisis: finding a Way Forward (=ICGReport no. 32), Bruxelas, 13.7.2001.

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física, de tortura até assassinato (foram assassinados cerca de 40 pessoasna “campanha eleitoral” de 2000 e mais de 10.000 tiveram que fugirde suas casas) deveriam dissuadir a população de votar na Zanu.Especialmente na Matabelelândia, o regime de terror dos veteranoscontra a população civil foi tão brutal que provocou lembranças doterror da 5a Brigada do início dos anos 80.67

Mas Mugabe não escolheu os fazendeiros brancos como alvosomente em função do nexus rural, de supostas repercussões do terrorentre os trabalhadores rurais nas fazendas e da importância deles noMDC. O ataque aos ex-colonos foi guiado por um duplo cálculomaquiavélico, que permitia tanto a canalização do desespero popularpara um bode expiatório de outra raça, quanto a instrumentalizaçãodo anseio profundo da população rural por terras.68

Desde o início da colonização nos anos 80 do século XIX, aluta pela terra representa a vertente principal da revolta rural noZimbábue. A recuperação das terras alienadas pelos colonizadoresmotivou os camponeses a apoiar a guerrilha nos anos 70 e estabeleceuum elo íntimo entre Mugabe e a população rural na Mashonalândia.Mas as esperanças suscitadas pela Zanu na população rural não serealizaram. Vinte anos depois da independência a reforma agrária aindanão decolou e a distribuição das terras entre a população africana rurale os fazendeiros comerciais continua tão desigual como em 1980 – sóque as fileiras dos fazendeiros comerciais foram engrossadas pelosmembros da nova elite política.69 Mugabe culpa publicamente as forças

67 “Matabeleland – The Terror Returns”, Zimbabwe Standard (Harare), 18.11.2001. AmnestyInternational; Report 2001 – Zimbabwe.68 “A perspectiva racial foi reinventada para desviar a atenção das divisões fundamentais nasociedade, que são de classe”, argumenta o Mail & Guardian. “Racism lingers on, but classis the real divider”, Mail & Guardian, 26.3.1999 (Andrew Meldrum).69 Riddell, R.C.; The Land Problem in Rhodesia. Alternatives for the Future, Gwelo (MamboPress) 1978. Palmer, R.; Land Reform in Zimbabwe: constraints and prospects, em: AfricanAffairs; vol. 89, no. 355, p. 163-181, 1990. Moyo, S.; The Politics of Land Distribution andRace Relations in Southern Africa, UNRISD, Conference Paper, Durbam 2001. Stoneman,C. & Bowyer-Bower, T.A.S.; Land Reform in Zimbabwe: Constraints and Prospects, (=SOASStudies in Development Geography), Aldershot (Ashgate) 2000. Kinsey, Bill H; Landreform, growth and equity: emerging evidence from Zimbabwe’s resettlement programme,em: Journal of Southern African Studies; v. 25, nº. 2, p. 173-196.

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“imperialistas”, acima de tudo a Grã-Bretanha, pela inércia na reformaagrária: os países ocidentais, que teriam prometido recursos para financiara redistribuição das terras como parte de um pacote de desenvolvimentonegociado no momento pós-independência imediato, nunca honraramsua responsabilidade histórica nesta questão. A Grã-Bretanha e osEstados Unidos justificam a suspensão do apoio em função da falta dacontrapartida zimbabuana e por causa do desvio das amplas verbastransferidas, no início dos anos 80, para aquisição de propriedades pelaelite política.70 Depois de assentar cerca de 70.000 famílias (de 160.000projetadas no início da década de 1980), a reforma agrária foi de fatoabandonada no final dos anos 80, e somente ressurgiu, junto com osveteranos, que haviam sido esquecidos e marginalizados durante quasevinte anos, depois do referendo perdido. A estratégia mugabistaapresenta dupla face: internamente a questão da má distribuição dasterras servia para intimidar a oposição, e externamente tentava-se desviara atenção das questões principais do conflito no Zimbábue (direitoshumanos, democracia) e criar a impressão de que se trataria de umconflito social entre latifundários brancos, sonhando ainda com ostempos coloniais, e trabalhadores sem terra. Inicialmente, Mugabelogrou certo sucesso com esta estratégia, especialmente no ambientemultilateral e africano.71 Quando em setembro de 2001, sob ainsistência dos países da África Austral e da Nigéria, os ministros doExterior da Commonwealth se reuniram em Abuja, na Nigéria, numatentativa de resolver a crise zimbabuana, e aceitaram a versão mugabista,de que se tratava de um problema de justiça social.72 Nessa ocasião, a

70 Chitiyo, T.K.; Land Violence and compensation. Reconceptualising Zimbabwe’s Landand War Veterans’ Debate, CCR v. 9, nº. 1, maio de 2000.71 “Zimbabwe: Visiting Cuban women’s group voices support for land reform program”, TheHerald, 27.8.2001. “Zimbabwe: UN, EU, World Bank plan mission in ‘last bid’ to resolveland issue”, The Financial Gazette, 19.7.2001. “President Mogae says Botswana supportsZimbabwe’s land reform program”, The Herald 27.4.2001. “Sudan ‘supports’ Zimbabweland reform program, opposes sanctions”, The Herald 20.3.2001. “Zimbabwe: HeraldCites Libyan Leader’s Support for Land Reform Program”, The Herald, 1.9.2000.72 O texto do Acordo de Abuja reitera: “Land is at the core of the crisis in Zimbabwe andcannot be separated from other issues of concern to the Commonwealth such as the rule oflaw, respect for human rights, democracy and the economy. A programme of land reform is,therefore, crucial to the resolution of the problem.” BBC News – Text of ZimbabweAgreement, 7.9.2001.

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Commonwealth, liderada pela África do Sul e pela Nigéria, obrigaramMugabe a assumir o compromisso de terminar com as ocupações ilegaisdas terras, de obedecer às leis no processo da reforma agrária e de terminarcom a violência e as intimidações nas áreas rurais. Mugabe assinou, masnão honrou esse acordo.73

Esta volta da reforma agrária e dos veteranos à preeminênciamáxima, na política zimbabueana (em 1997, isto é, quase vinte anosdepois do fim da guerra, Mugabe pagou uma indenização bilionária aeste grupo, levando-o, assim, a uma fidelidade cega)74, e a ressurreiçãode Mugabe como campeão dos sem-terra, certamente representa umacínica tentativa de manipular o anseio popular por uma distribuiçãomais justa do recurso terra.

Desde a derrota do governo no referendo constitucional, emfevereiro de 2000, o embate político entrou em uma nova fase, naqual o terror do Estado não permitiu mais eleições justas e livres. Asduas eleições (2000 e 2002) são inseparáveis neste sentido, e o fato deque, por ocasião da recente eleição presidencial, o Estado tenha exercidoum pouco menos a repressão violenta e direta, não muda esta avaliação.75

A tática principal do Estado nessa última eleição consistiu, além daintimidação contínua da população, na exclusão sistemática do processode registro e votação de possíveis apoiadores da oposição. Os artifíciosempregados pelo governo foram muitíssimos e enchem longas listasdos observadores imparciais.76

73 BBC News; “Zimbabwe. Land Reform breakthrough”, 7.9.2001. “Govt to implementAbuja accord after review by cabinet, ZANU-PF“, The Herald, 10 Sep 2001. “Zimbabwe:Herald reports on SADC leaders’ ‘fact-finding mission’ on land issue”, The Herald, 11 Sep2001. International Crisis Group; Africa Briefing: Zimbabwe’s Elections: the Stakes forSouthern Africa, Harare/Bruxelas 11.2.2002.74 Veja: International Crisis Group (ICG); Zimbabwe in Crisis: finding a Way Forward(=ICG Report no. 32), Bruxelas, 13.7.2001. Chitiyo, T.K.; Land Violence and Compensation.Reconceptualising Zimbabwe’s Land and War Veterans’ Debate, CCR vol. 9, No. 1, maiode 2000.75 Segundo organizações de direitos humanos, durante a “campanha eleitoral”, 26 pessoasforam mortas, 162 torturadas e 62 seqüestradas. Cerca de 70.000 fugiram de suas casas.“Political Violence Claims 26 Lives”, Financial Gazette (Harare), 21. 2. 2002.76 As acusações contra o Estado de ter “roubado” a eleições incluem inúmeros exemplos deviolência e intimidação contra a oposição, a manipulação do cadastro de eleitores em favor

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Mugabe e a Zanu venceram as duas eleições, embora compequenas margens. Nas eleições parlamentares de 2000, a Zanu conseguiu62 cadeiras contra 57 do MDC. Isso aparece como resultado apertado,e embora interpretado como uma vitória moral da oposição, nãoimpediu a formação de uma sólida maioria da Zanu no Parlamento,dada a prerrogativa presidencial de nomear mais trinta deputados. Naseleições presidenciais de março de 2002, Mugabe ganhou com 54%dos votos, contra 40% de Morgan Tsvangirai do MDC.

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Como reagiu a comunidade internacional a estas violações dedireitos humanos e democráticos, praticada pelo Estado zimbabuanona luta pela permanência no poder dos mugabistas e de seu partido? OZimbábue virou um caso de ingerência em prol dos novos valoreséticos da comunidade internacional? Dois aspectos se destacam no queconcerne a reação da comunidade internacional com respeito à situaçãozimbabuana. Embora tenham sido adotadas, a partir das eleições de2002, várias medidas punitivas contra o governo, a reação internacionalse caracteriza por timidez, indecisão e demora. Em segundo lugar,observam-se divergências fundamentais na avaliação das eleições e dalegitimidade de seus resultados, e com isto, do direito de ingerência,entre a maioria dos Estados africanos de um lado e a União Européia eos EUA de outro. Esta divergência permanece até hoje, emboraprincipalmente os EUA tenham pressionado bastante os Estadosafricanos a demonstrar uma postura mais crítica e firme.

das áreas rurais, negação sistemática do direito de voto de redutos eleitorais da oposição(trabalhadores rurais com descendência “estrangeira”, fazendeiros brancos), uso de alimentoscomo arma na campanha eleitoral, restrição severa do direito a livre palavra, reunião einformação junto à oposição e finalmente ameaças abertas de violência e golpe militar nocaso de uma vitória oposicionista. ICG Africa Report No. 41: Zimbabwe at the Crossroads:Transition or Conflict? 22.3.2002. Bond, P. & Patel, R.; Zimbabwe’s Rip-off Poll, ForeignPolicy in Focus, 15.3.2002. “Commonwealth Observers Sharply Critical of Election”,allAfrica.com, 14.3.2002. “Observers Slam Election, Count Underway”, allAfrica.com,12.3.2002.

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As pressões sobre o governo do Zimbábue por parte da UniãoEuropéia começaram tarde e aumentaram só aos poucos. A MissãoObservadora da UE nas eleições de junho de 2000 concluiu que, thescale of violence and intimidation in the run-up to the campaign andduring the election period marred the final results. Mas ainda não sugeriumedidas punitivas, ao não ser um monitoramento intensivo da situaçãono país e a discussão sobre a futura cooperação.77 Em março de 2001,quando ficou evidente que as violações de direitos humanos e de direitosde propriedade dos fazendeiros brancos continuaram, a UE iniciou oprocedimento de consulta (political dialogue) previsto no Tratado deCotonu.78 Em vários pronunciamentos, a UE lamentou falta deprogresso no diálogo e ameaçou possíveis sanções contra o país.79 Nodia 6 de setembro de 2001, o Parlamento Europeu emitiu uma severacondenação do governo zimbabuano e insistiu em medidas punitivas.80

Nas vésperas das eleições presidenciais, finalmente, econfrontada com a rejeição dos observadores da UE81 e com a expulsãodo país de Pierre Schori, chefe da Missão Observadora da UE, aComunidade Européia decidiu agir. Declarou encerrado o processo deconsulta do artigo 96 do Tratado de Cotonu e concluiu que oselementos essenciais do Acordo tinham sido violados pelo governo doZimbábue, cuja política foi considerada insuficiente para garantiro fim da violência, a realização de eleições livres e justas e oacompanhamento destas eleições por observadores e a mídia

77 European Community. Elections in Zimbabwe on 24-25 June 2000. Report of the EUElection Observation Mission.78 European Community; The Cotonou Agreement, Art. 8 e Art. 96.79 ICG Africa Report No. 40; All Bark and No Bite?, op. cit., p.14.80 Official Journal of the European Communities, 6.9.2001, C72E/342.81 Não fica absolutamente claro, devido aos pronunciamentos de conteúdo variado, se ogoverno do Zimbábue rejeitou observadores da UE ou somente os observadores britânicos,integrantes da missão européia. Veja por exemplo: “EU gives Mugabe a Week to Reform, orFace Sanctions”, Business Day, Johannesburgo, 29.1.2002. “EU Agrees On Sanctions” TheHerald (Harare), 19.2. 2002 (pronunciamento de Jonathan Moyo, ministro de Informação.No dia 18 de fevereiro, dia da decretação das sanções, Mugabe declarou que tinha convidadoobservadores da França, Bélgica, Itália, Espanha, Grécia, Luxemburgo, Irlanda, Portugal eÁustria. Porém, e que não admitirá os seguintes países entre os observadores: Grã-Bretanha,Dinamarca, Finlândia, Suécia, Alemanha e Holanda. “Africans Should Judge Poll: Mugabe,The Herald (Harare), 18.2.2002.

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internacionais.82 Retirou os observadores eleitorais e decretou medidaspunitivas, denominadas smart sanctions. Estas sanções, além desuspender assistência financeira para alguns projetos de desenvolvimentoe a assistência orçamentária83 e de banir a venda de armas e outrosequipamentos de “repressão interna”, visavam principalmente membrosindividuais do primeiro escalão do Estado. Como medida principal, aUE decretou, inicialmente por um período de 12 meses, o congelamentodos depósitos bancários e de outras fontes de renda, nos países da UniãoEuropéia, de vinte zimbabuanos, que aparecem em uma lista encabeçadapor Mugabe, anexada ao documento de decisão da UE.84 Seguindo adecisão da UE, a Suíça aplicou as mesmas sanções.85 Foram tambémdecretadas restrições de viagem para os países da União Européia, depoisadotadas também pela Suíça, pela Nova Zelândia e pelos EstadosUnidos, para este grupo de pessoas.86

Entre as possíveis medidas – o artigo 96 do Tratado de Cotonuprevê até a possibilidade de suspensão do Tratado –, a União Européiacertamente optou por um grau de ingerência leve, que dificilmentepode ser caracterizado como sanção. A restrição das sanções “pessoais”a apenas vinte membros da cúpula do Estado, considerados responsáveisfor the violence, for the violations of human rights and for preventing theholding of free and fair elections in Zimbabwe, transforma esta medidanum ato de caráter principalmente simbólico.87 Também os analistas

82 Council Decision of 18 February 2002 concluding consultations with Zimbabwe underArticle 96 of the ACP-EU Partnership Agreement (2002/148/EC).83 Council Decision of 18 February 2002 concluding consultations with Zimbabwe underArticle 96 of the ACP-EU Partnership Agreement (2002/148/EC), Anexo: Comissão Européia:“Letter to the President of Zimbabwe”.84 EU; Council Regulation (EC) No. 310/202 of 18 February concerning certain restrictivemeasures in respect of Zimbabwe. EU; Council Common Position of 18 February 2002concerning restrictive measures against Zimbabwe (2002/145/CFSP).85 “Zim Suspended, Switzerland Imposes Sanctions”, The Daily News (Harare), 20. 3.2002. A Nova Zelândia, e depois o Canadá, adotaram medidas semelhantes. BBC News;15.4.2002: “New Zealand bans Mugabe”.86 Financial Gazette (Harare); “Mugabe Faces Travel Curbs in US”, 9.5.2002.87 “EU Slaps ‘Smart Sanctions’ on Mugabe, Recalls Election Observers”, allAfrica.com,19.2.2002. No dia 11 de março, a União Européia ameaçou ampliar a lista das pessoassancionadas, incluindo, entre outros o vice-presidente S. Muzenda. “EU Threatens toExtend List of Targeted Sanctions”, The Daily News (Harare), 11.3.2002.

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duvidam que seja possível realmente atingir as pessoas listadas por estasmedidas, uma vez que elas, há muito tempo, ter-se-iam preparadopara esta eventualidade.88

A justificativa oficial, de que sanções econômicas penalizariama população comum e não o “regime” explica parcialmente estaabordagem moderada.89 De outro lado, reflete também divergênciasentre os membros da Comunidade acerca da conduta no caso doZimbábue. A Grã-Bretanha, que sentia uma responsabilidade maiorpara com os fazendeiros brancos, muitos deles ainda com cidadaniabritânica, pressionou por uma postura mais determinada. A França e aBélgica, de outro lado, advogaram cautela. Pensa-se que os interessesdestes países no Congo-RDC, onde as tropas zimbabuanas sustentamo governo de J. Kabila, levaram a uma certa aproximação entre Mugabee os governos destes dois países. Pelo menos Mugabe tentou seriamentedividir a União Européia e “jogar a carta francesa”.90 Outros paíseseuropeus duvidaram também das medidas, considerando que a retiradados observadores prejudicaria o esforço democrático no país.91

A postura dos EUA começou de modo semelhante à da UniãoEuropéia e caracteriza-se também por uma reação demorada emoderada. Em dezembro de 2001, as duas câmaras do CongressoAmericano aprovaram o Zimbabwe Democracy and Economic RecoveryAct of 2001, um projeto de lei apoiado pelo Departamento de Estado,que estava sendo articulado principalmente pelo presidente daSubcomissão da África, na Câmara dos Deputados, Ed Royce. Apesardo grande esforço de lobby de representantes do governo do Zimbábue,

88 The Daily News (Harare); “Targeted Sanctions Will Hurt the Poor More, Analysts Say”,22.2.2002. UN Integrated Regional Information Networks; “Mugabe Dismisses Sanctions”,21.2.2002. The Guardian, 20.2.2002; “US to match EU sanctions on Zimbabwe”. “US,EU Hunt Mugabe Assets”, Zimbabwe Independent, 23.1.2002.89 “EU Slaps ‘Smart Sanctions’ on Mugabe, Recalls Election Observers”, allAfrica.com,19.2.2002.90 ICG Africa Report No. 40; All Bark and No Bite?, op. cit., p.15. EU Slaps ‘SmartSanctions’ on Mugabe, Recalls Election Observers”, allAfrica.com, 19.2.2002. BBC News;7.3.2001: “Mugabe: ‘Excellent meeting’ in Paris”.91 “EU Slaps ‘Smart Sanctions’ on Mugabe, Recalls Election Observers”, allAfrica.com,19.2.2002.

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especialmente junto aos membros do Black Caucus, a lei foi aprovadaquase por unanimidade e promulgada pelo Presidente Bush.92

O Zimbabwe Democracy and Economic Recovery Act prevêsanções “pessoais” contra Mugabe e seus colaboradores, semelhantes àsda União Européia. Adicionalmente, abre a possibilidade de suspendero comércio e os contatos governamentais entre os dois países e autorizao presidente dos Estados Unidos a vetar concessões de assistênciafinanceira ao país pelas IFIs. De outro lado, compromete-se a apoiar ademocratização do país e promete retomar a ajuda financeira e o apoioa um programa de reforma agrária, quando a democracia e o Estado deDireito forem restabelecidos. Ademais, já no ano de 2000, o Zimbábuehavia sido excluído da lista dos possíveis beneficiários do AfricanGrowth and Opportunity Act de Bill Clinton.93

Entretanto, até agora, e apesar da condenação do resultado daseleições presidenciais como não legítimo, o governo dos Estados Unidosnão aplicou todos os instrumentos disponíveis de ingerência contra oregime de Mugabe. Foram decretadas restrições de viagem para osEstados Unidos contra Mugabe e seus 19 colaboradores e as vendas dearmas para o país foram proibidas.94 Mas, além disto, a política norte-americana consistiu muito mais em anúncios de possíveis medidas doque em ações concretas.

O terceiro ator – não-africano – no cenário internacional, alémda União Européia e os Estados Unidos, foi a Commonwealth,associação da Grã-Bretanha principalmente com suas ex-colônias. Apesarde não dispor de um potencial forte de ingerência – a suspensão dogrupo sendo a maior arma – este fórum multilateral virou umimportante palco de confronto porque se trata de um conjunto depaíses ocidentais (Grã-Bretanha, Austrália, Canadá, Nova Zelândia) e

92 ICG Africa Report No. 40; All Bark and No Bite?, op. cit.. Office of US Representative,Ed Royce (Washington, DC), Press Release, 4.12.2001: “Democracy Bill Passes House”.US House of Representatives; Press Release, 28.11.2001: “Democracy Bill Passes Keyhouse Committee”. all.africa.com, 12.12.2001: “Unanimous Senate Votes to SanctionMugabe”. Zimbabwe Standard (Harare), 2.12.2001; “US to Discipline Mugabe”.93 “Zimbabwe Booted Out of US Trade Pact”, Zimbabwe Independent (Harare), 13.10.2000.94 Channel Africa, 18.4.2002; “U.S. bans Sales of defense equipment to Zimbabwe”.

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de países do Terceiro Mundo, principalmente da África (dos 54 Estados-membro da Commonwealth, trinta são africanos). Foi um dos fórunsmultilaterais principais em que o governo do Zimbábue tentouconvencer principalmente os países africanos de que a ingerênciademocrática no Zimbábue seria, na verdade, um ataque ilegítimo deinteresses neocoloniais contra a soberania e a independência do país,um ataque que cada um dos países africanos poderia também sofrer.

A opinião dos Estados-membro da Commonwealth sobre oZimbábue e sobre as possíveis atitudes do grupo sempre estava dividida,principalmente entre os países ocidentais e os africanos. Nas vésperasdas eleições, a Grã-Bretanha, a Austrália e a Nova Zelândia intensificaram– porém em vão – seus esforços por decretar a suspensão do Zimbábue,medida que até então somente fora aplicada contra regimes golpistas.Na reunião dos ministros do Exterior do grupo em Londres, no finalde janeiro de 2002, a maioria rejeitou as reivindicações inglesas,infligindo uma derrota diplomática a este país. Na cúpula dos chefesde Estados (CHOGM), que aconteceu na Austrália imediatamenteantes das eleições zimbabuanas (2 a 5 de março de 2002), a Grã-Bretanhae seus aliados tiveram de enfrentar de novo a oposição organizada dosEstados africanos – denominada pela imprensa como African conspiracy–, que mobilizou até adversários de Mugabe, como o presidente deUganda, Yoweri Museweni, em defesa do Zimbábue.95 O Zimbábueobteve um certo sucesso em dividir a Commonwealth, insistindoofensivamente num discurso de conflito entre membros brancos e não-brancos, acusando Tony Blair de praticar um “colonialismo desgraçado”,chamando-o de “racista” e advertindo a Grã-Bretanha para não meter“seu nariz rosa” nos assuntos internos do país.96 Confrontada com apersistência africana, a Grã-Bretanha optou por um compromisso, que

95 “Mugabe and the African ‘Conspiracy’ At Commonwealth Meeting”, The Monitor(Kampala), 18.3. 2002.96 “Museveni Accuses UK of Bad Motive in Anti-Mugabe ‘War’”, The Monitor (Kampala),14.3.2002. Mugabe and the African ‘Conspiracy’ At Commonwealth Meeting”, The Monitor(Kampala), 18.3.2002. BBC News, 3.3.2002; “Commonwealth leaders reached acompromise”. all.africa.com; “Commonwealth Suspends Zimbabwe for 12 Months”,19.3.2002.

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adiou a decisão para depois das eleições presidenciais. Foi decididoconstituir uma “tróica”, formada pelos presidentes da África do Sul eda Nigéria e pelo primeiro-ministro da Austrália, que deveria chegar auma decisão depois das eleições, baseada no relatório do grupoobservador da Commonwealth.97

Quando às delegações observadoras dos dois países-chave, aÁfrica do Sul e a Nigéria, e a do Conselho Ministerial da SADCpublicaram avaliações legitimando a processo eleitoral e seu resultado,parecia que também que a Commonwealth estaria disposta a endossaresta perspectiva, uma vez que a Nigéria e a África do Sul representavama maioria na “tróica”.98 No entanto, quando o Grupo Observador daCommonwealth publicou um relatório altamente crítico, argumentandoque the conditions in Zimbabwe did not adequately allow for a freeexpression of will by the electors99, a “tróica”, inclusive os presidentesMbeki e Obasanjo, decidiu suspender o país da Commonwealth por operíodo de um ano.100 O que explica esta reviravolta e o fracasso daestratégia mugabista junto à Commonwealth?

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Durante o crescente confronto entre o governo do Zimbábuee os países ocidentais, boa parte dos Estados africanos, principalmenteos da região, se posicionaram explicitamente. Já na questão dosobservadores eleitorais, Mugabe conseguiu atrair muita solidariedadeafricana.101 A postura dos trinta Estados africanos membros daCommonwealth demonstra que a grande maioria apoiava a posiçãomugabista, especialmente sua defesa do princípio de uma soberaniaabsoluta e sua denúncia das pressões ocidentais como interferênciailegítima e neocolonialista nos assuntos internos de um Estado soberano.

97 BBC News, 5.3. 2002; “Analysis: Acid test for Commonwealth”.98 “‘Presidential Poll Free, Fair’”, The Herald (Harare), 14.3.2002. “Respect Poll Outcome:SA Observer Mission”, The Herald (Harare), 14.3. 2002.99 “Commonwealth Observers Sharply Critical of Election”, allAfrica.com, 14.3 2002.100 “Commonwealth Suspends Zimbabwe for 12 Months”, allAfrica.com, 19.3.2002.101 “OAU Endorses Mugabe’s Rejection of Foreign Observer Teams”, South African PressAssociation, 15.2.2002.

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Alguns Estados apoiaram oralmente as imprecações mugabistas. OPresidente Mkapa da Tanzânia, por exemplo, comparou as medidaseuropéias contra o Zimbábue com a partilha colonialista da África nofinal do século XIX: “As you have heard about Zimbabwe and the EU’sdecision to impose sanctions. It seems they want to divide Africa at Brusselsin 2002 just as they did in Berlin in 1884, Africa must be prepared tosay no”.102 Também o adversário, até militar, de Mugabe na Guerra doCongo, o Presidente Museveni de Uganda, tomou o partido doZimbábue e acusou os “países brancos” da Commonwealth de “motivosilegítimos” na sua censura ao país.103

A primeira reação africana, por ocasião das eleições presidenciais,também resultou em apoio a Mugabe e demonstrou uma ampladisposição de endossar o resultado. O grupo observador da OUA,bem como o da Comesa, elogiaram as eleições como “transparentes,livres e justas”.104 Os presidentes do Quênia e da Tanzânia parabenizaramMugabe pela vitória “merecida”.105 O Presidente T. Mbeki, em umprimeiro pronunciamento, indicou a aceitação do resultado, reiterandoque “the will of the people of Zimbabwe has prevailed”.106 As duas missõesobservadoras da África do Sul (a do governo e a do Parlamento) bemcomo a missão nigeriana caracterizaram as eleições como legítimas eapelaram à oposição para aceitar a derrota.107 Tanto o CNA, partidodo T. Mbeki, quanto o PAC e outros grupos políticos da esquerdasul-africana aceitaram as eleições como legítimas.108 Talvez o avalmais importante tenha vindo da Força Tarefa da SADC, compostapor observadores dos países vizinhos (Angola, Namíbia, Malaui,

102 “President Mkapa Supports Mugabe, Condemns EU”, TOMRIC News Agency (Dar esSalaam), 20.2.2002.103 “Museveni Accuses UK of Bad Motive in Anti-Mugabe ‘War’”, The Monitor (Kampala),14.3.2002. Presidente Mbeki se pronunciou de maneira semelhante: “Mbeki Strikes Back”,UN Integrated Regional Information Networks, 8.3. 2002.104 ‘“Presidential Poll Free, Fair’”, The Herald (Harare), 14.3.2002.105 BBC News; Divisions grow over Zimbabwe poll, 14.3.2002.106 The Herald (Harare), 16.3.2002.107 “Mbeki Endorses Election”, Mail & Guardian (Johannesburg), 22.3.2002. “RespectPoll Outcome: SA Observer Mission”, The Herald (Harare), 14.3.2002.108 “PAC, ANC Accept Zim Election Result – Others Say It’s a Sham”, East Cape News(Grahamstown), 13.3.2002.

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Moçambique e Botsuana), declarando que “the elections weresubstantially free and fair, and were a true reflection of the will of thepeople of Zimbabwe”.109 Em suma, Mugabe conseguiu angariar umaampla e impressionante demonstração de solidariedade por parte degovernos do continente. As implicações da postura africana vão alémdo caso do Zimbábue e do resultado de uma eleição. Com estasdeclarações de apoio, os Estados africanos explicitamente rejeitaram aingerência ocidental no processo eleitoral do Zimbábue e, comoprincípio, no continente africano.

Entretanto, depois destas declarações de princípios, os Estadoscomeçaram a cair na realidade das relações de poder na sociedadeinternacional. A suspensão do país da Commonwealth, que na práticafoi uma decisão da Nigéria e da África do Sul, não provocou declaraçõesde repugnância e a cerimônia de posse de Mugabe em seu quintomandato como presidente de Zimbábue forneceu a oportunidade paraexpressar certo distanciamento: somente cinco dos 21 chefes de Estadosconvidados apareceram no evento.110

Por que esta volta “à realidade” e por que os líderes doContinente, a África do Sul e a Nigéria, finalmente apoiaram a posiçãodos “países brancos” da Commonwealth e suspenderam o país deMugabe? A resposta é que, aparentemente, os países ocidentais,principalmente os Estados Unidos e a Grã-Bretanha, conseguiramconvencer os presidentes Mbeki e Obasanjo que a aceitação do grandeprojeto de regeneração do continente africano (New Partnership forAfrican Development – Napad) estaria ligada à questão das eleições noZimbábue, e que este seria o primeiro “caso de teste” (Ed Royce) dacredibilidade da proposta africana.111 Os dois líderes, temendo oenfraquecimento de sua iniciativa junto aos potenciais paísesfinanciadores, cederam às pressões.

109 “‘Presidential Poll Free, Fair’”, The Herald (Harare), 14.3.2002.110 “Where Were the Africans at Mugabe’s Inauguration?”, Zimbabwe Independent (Harare),Editorial, 22.3.2002.111 BBC News; 19.3.2002: “Africa ‘passes’ Zimbabwe test”. “Mbeki Strikes Back”, UNIntegrated Regional Information Networks, 8.3.2002.

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A New Partnership for African Development – Napad nasceu,por volta de 1996, ainda sob o nome de “African Renaissance”, comoconceito norteador da nova política africana da África do Sul. Em doisdiscursos chaves de 1997 e 1998, o então Vice-Presidente T. Mbekiapresentou a noção de um “renascimento” do continente africano e,desde então, tornou-se seu principal protagonista.112 A AfricanRenaissance, que Mbeki compreende como resposta genuinamenteafricana tanto à globalização, à crescente marginalização econômica docontinente e ao “afro-pessimismo” quanto aos males domésticos comodesgoverno e corrupção, mescla perspectiva “africanistas” e “globalistas”,e até permite leituras opostas seguindo estes dois paradigmas. Pode servista como proposta africanista, na medida em que glorifica o passadopré-colonial do continente, atribui o subdesenvolvimento ao tráficode escravos e ao colonialismo, fala em restauração da auto-estima epretende resgatar valores, virtudes e culturas africanas pré-coloniais parasuperar a presente miséria do continente. Neste sentido, a AfricanRenaissance faz parte do ideário da Black Consciousness, filosofialibertadora da luta anti-apartheid da África do Sul.113 De outro lado,com sua ênfase na reintegração do continente na economia mundialde livre mercado e de iniciativa privada, insere-se no discurso globalistaliberal, que chegou à hegemonia a partir dos anos 90.

No final da década de 1990, Mbeki chegou a concretizar suafilosofia da African Renaissance num plano de desenvolvimentocontinental, intitulado “Millennium Partnership for the African RecoveryProgramme – MAP”. A Comissão Econômica para África (ECA)contribuiu para esta tarefa de operacionalizar as idéias da AfricanRenaissance e de traduzi-las em itens de uma política de desenvolvimento.114

112 Vale, Peter and Maseko, Sipho; South Africa and the Africa Renaissance, em: SouthAfrica and Africa: Reflections on the African Renaissance, p. 3-15 , FGD Occasional Papernº 17, The Foundation for Global Dialogue, Braamfontein, South Africa, Series Editors 1998.113 Landsberg, Ch. & Mackay, S.; Wake up Africa! The Meaning and Content of the“African Renaissance”, em: Mekenkamp, M. et. al. (orgs.): Searching for Peace in Africa,pp.17, Utrecht (European Centre for Conflict Prevention) 1999.114 United Nations Economic Commission for Africa; Compact for African Recovery.Operationalising the Millennium Partnership for the African Recovery Programme, AddisAbaba, 20.4.2001.

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Associaram-se ainda à MAP os presidentes da Nigéria, Obasanjo, e daArgélia, Bouteflika, transformando-a numa iniciativa multilateral,ancorada nos três principais pólos de poder do continente.

Simultaneamente, o Presidente Wade do Senegal, também umdos líderes reconhecidos da África, tinha desenvolvido seu próprio planopara o desenvolvimento continental, intitulado de “Omega Plan”.115

Este plano difere da MAP por seu caráter meramente técnico/econômico,enfatizando a infra-estrutura, enquanto a MAP dispõe de um fundamento“filosófico” e propõe uma visão de desenvolvimento que inclui política,democracia, direitos humanos e governabilidade. Durante um certotempo estas duas iniciativas concorreram, embora a MAP gozasse deamplas vantagens em termos de aceitação mundial. Para terminar estaconcorrência e as fricções diplomáticas decorrentes, os dois planosforam fundidos em um, batizado agora de “New African Initiative(NAI)”.116 A Reunião dos Chefes de Estados Africanos em Lusaka emjulho de 2001 adotou formalmente a New African Initiative,inaugurando-a como a principal estratégia da OUA, em tempos deglobalização, para recuperar economicamente o continente e redefinirsua inserção internacional, especificamente as relações de assistênciafinanceira com o Ocidente. Daqui para frente, o plano foi novamentebatizado, mas sem mudar o conteúdo, como New Partnership forAfrican Development – Nepad e ganhou um site na internet.117 Emboratendo agora quatro ou até cinco chefes de Estado como “pais” oficiaise a sua formalização como projeto da OUA, a Nepad está sendoarticulada, na prática, pelo “eixo estratégico“ africano, formado pelosdois maiores países do continente, a África do Sul e a Nigéria.Internacionalmente, os dois países, principalmente a África do Sul,

115 Republic of Senegal. One People – One Goal – One Faith. Omega Plan for Africa.Prepared by H.E. Mr. Abdoulaye Wade, s.d.116 Republic of South Africa, Department of Foreign Affairs; A New African Initiative:Merger of the Millennium Partnership for African Recovery Programme (MAP) and OmegaPlan, Julho de 2001. Embora se trate formalmente de uma mesclagem dos dois planos, otexto da New African Initiative reflete principalmente as idéias e as formulações da MAPsulafricana.117 New Partnership for African Development (Nepad), Abuja, outubro de 2001. O site é:www.nepad.org.

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são associados à proposta e são também vistos como responsáveis porela. De certa maneira, a iniciativa de Mbeki ganhou reconhecimentomundial e teve uma vasta projeção internacional. Ao contrário dosmuitos planos anteriores,118 o mundo, e principalmente os paísesocidentais, levam esta iniciativa africana a sério. A cúpula dos paísesG7 em Tókio, em 2000, bem como a reunião dos países G8 emGênova, em 2001, expressaram apoio à proposta da MAP/NAI. Chefesde Estados ocidentais individuais endossaram a iniciativa e a cúpulados países G8, que acontecerá em junho de 2002 no Canadá,comprometeu-se com uma discussão em profundidade da proposta ede suas implicações financeiras. Alguns países ocidentais já anunciaramapoio financeiro à Nepad.119

Esta sucessão de planos, que culminou na formulação da Nepad,já recebeu avaliações altamente críticas desde várias perspectivas,especialmente por causa de sua plena aceitação e incorporação do discursohegemônico liberal da globalização.120 Embora a Nepad sejacomemorada como uma resposta africana ao desafio da globalização,trata-se, na realidade, de uma “africanização” das propostas liberaisocidentais, que tinham se infiltrado, já há tempo, nas relações entre aÁfrica, de um lado, e os países industrializados e as IFIs de outro. Amesma apropriação do novo discurso hegemônico, embora certamente

118 No passado, houve uma série de “planos” para superar o subdesenvolvimento africano,que nunca saíram do papel. Veja, por exemplo, o Lagos Plan of Action (1980), o AfricanPriority Programme for Economic Recovery (1986), a Industrial Development Decade forAfrica (1985-1995), a United Nations Transport and Communications Decade for Africa(1978-1988).119 “Nepad Not Just About Money says G8 official”, South African Press Association(Johannesburg), 16.2. 2002. “Drums Are Beating for Nepad”, BuaNews (Pretoria), 12.2.2002.“G-8 Leaders Show Support for Nepad”, Business Day (Johannesburg), 12.2.2002. “NextThree Months Crucial for Nepad: Deputy President”, South African Press Association(Johannesburg), 10.2.2002.120 Veja por exemplo: Bond, P.; Thabo Mbeki’s New Partnership for Africa’s Development.Breaking or shining the chains of Global Apartheid”, Foreign Policy in Focus, DiscussionPaper, março de 2002. Vale, Peter and Maseko, Sipho; South Africa and the Africa Renaissance,op.cit. Le Pere, Garth; The African Renaissance: A new theology of the possible?, GlobalDialogue, Vol. 2, 3, 1997. “Senegal: Economist suggests modifications to Omega Plan”, LeSolei (Dakar) 25.6.2001. Por uma apresentação apologética veja: Landsberg, Ch. & Mackay,S.; Wake up Africa! The Meaning and Content of the “African Renaissance”, op.cit.

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com aprovação e convicção profunda, é perceptível no que concerneao conjunto dos itens de democracia, direitos humanos e goodgovernance. Com a mesma clareza com que o novo paradigma dedesenvolvimento se expressa, por exemplo, no Tratado de Cotonu,também a Nepad define a política democrática como parte e pré-condição do desenvolvimento econômico. Já na apresentação das idéiasbásicas da African Renaissance, Mbeki destacou enfaticamente anecessidade de uma transformação política do continente africano: “Thecall for Africa’s renewal, for an African Renaissance is a call to rebellion.We must rebel against the tyrants and the dictators, those who seek tocorrupt our societies and steal the wealth that belongs to the people”.121

O texto da NAI/Nepad também destaca o vínculo entredemocracia e desenvolvimento122 e o compromisso com a promoçãoe proteção da democracia, que os governos africanos assumiram com aaprovação do plano em Lusaka.123 Foi este compromisso comdemocracia, direitos humanos e governabilidade, mas também comoutros valores estimados pelo Ocidente – que os países africanosassumiram explicitamente para afastar qualquer elemento decondicionamento prévio, tão característico nas relações entre a África eo Ocidente nos anos 80 e 90 – e no qual os países industrializados

121 “The African Renaissance”, Statement of deputy president Thabo Mbeki. SABC: GallagherEstate, 13.8.1998.122 Os respectivos parágrafos são: “ii) Democracy and Political Governance Initiative.79. It is now generally acknowledged that development is impossible in the absence of truedemocracy, respect for human rights, peace and good governance. With the New Partnership forAfrica’s Development, Africa undertakes to respect the global standards of democracy, which corecomponents include political pluralism, allowing for the existence of several political parties andworkers’ unions, fair, open, free and democratic elections periodically organised to enable thepopulace choose their leaders freely.80. The purpose of the Democracy and Governance Initiative is to contribute to strengthening thepolitical and administrative framework of participating countries, in line with the principles ofdemocracy, transparency, accountability, integrity, respect for human rights and promotion of therule of law. It is strengthened by and supports the Economic Governance Initiative, with which itshares key features, and taken together will contribute to harnessing the energies of the continenttowards development and poverty eradication.”123 O Parágrafo 49 do plano destaca o compromisso assumido. “To achieve these objectives, Africanleaders will take joint responsibility for the following: (…) Promoting and protecting democracy andhuman rights in their respective countries and regions, by developing clear standards of accountability,transparency and participatory governance at the national and sub-national levels; (…)”

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insistiram ao escolherem o caso do Zimbábue como teste de credibilidadedas intenções africanas. As pressões, principalmente sobre T. Mbeki,para interferir no processo político no Zimbábue em nome da Nepad,ou para preservar a estabilidade política e econômica na África Austral,foram imensas e não vieram somente dos governos dos paísesindustrializados, mas também das IFIs, dos interesses econômicosdentro e fora da África do Sul, da oposição liberal na África do Sul, eda imprensa e sociedade civil de vários países africanos.124

Por uma série de razões, ligadas às relações históricas e atuaisentre o Zimbábue e a África do Sul, à complexa situação políticadoméstica e à imagem da inserção internacional da África do Sul, Mbekinão fez pressões unilaterais muito fortes sobre seu vizinho do Norte.Limitou-se a repetidos encontros e conversas e a uma tímida ameaçade pressão econômica.125 Internacionalmente, as lideranças africanas seempenharam fortemente em desvincular o caso do Zimbábue daNepad.126 Não tiveram sucesso nesse esforço. Na impossibilidade deuma ação unilateral sul-africana e na ausência de um mecanismoinstitucional de ingerência da própria Nepad,127 optou-se pela suspensão

124 BBC News; 19.3.2002: “Africa ‘passes’ Zimbabwe test”. “Mbeki Strikes Back”, UNIntegrated Regional Information Networks, 8.3. 2002. “‘SA Must Help to Topple Mugabe’”,Moneyweb (Johannesburg), 15.2.2002. “Former US Official Says SA Will Lose If It DoesNot Tackle Mugabe”, Business Day (Johannesburg), 11.2. 2002. “Economic Decline aThreat to Neighbours – IMF”, Zimbabwe Independent (Harare), 23.1.2002. “Time forAfrican Sanctions Against Mugabe”, The Nation (Nairobi), 13.3.2002. Rotberg, R.I.; Africa’sMess, Mugabe’s Mayhem, Foreign Affairs, Set./Oct. 2000. IRIN; “South Africa-Zimbabwe:Crisis threatens African recovery”, 25.3.2002.125 BBC News, 10.10. 2001: “South Africa to deport Zimbabweans”. “Mbeki’s Dilemma inDealing With Mugabe”, Financial Gazette (Harare), 28.6.2001. “Mbeki Issues VeiledWarning to Mugabe”, the Daily News (Harare), 27.3.2002.126 “Harare Risks Missing Out On Nepad Assistance”, The Daily News (Harare), 13.5.2002.“Failing Harare”, Mail & Guardian (Johannesburg), 15.2.2002.”’Africa’s Firm Commitmentto Credible Poll Critical’”, Business Day (Johannesburg), 14.2. 2002. “Harare Not LitmusTest for Nepad: Pahad”, South African Press Association (Johannesburg), 13.2.2002. “WeCan’t Be Held Hostage to Threats – Lekota”, BuaNews (Pretoria), 13.2.2002.127 Reagindo a esta falta de um instrumento que obrigasse os Estados africanos a seguirem asnormas de democracia e governabilidade, compromisso assumido pela assinatura do documento,os países chaves participantes da Nepad estão desenvolvendo um mecanismo de acompanhamentoda política interna dos países, chamado de “African Peer Review Mechanism” (APRM). Maioresdetalhes sobre os poderes e prerrogativas deste órgão não se conhecem por enquanto.

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do Zimbábue da Commonwealth como um compromisso entre todosos interesses e forças envolvidos. O Zimbábue sofreu significantederrota diplomática, porque, ao final, os países atores chaves na África,e com estes, a maioria dos países africanos na Commonwealth,concordaram com a ingerência democrática neste país, uma políticaque até então era exclusivamente defendida pelos países ocidentais.

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Este trabalho busca explicar a fulminante decadência da políticaexterior e da inserção internacional do Zimbábue durante os últimosvinte anos. Elogiado por sua política exterior afirmativa, ativista e bem-sucedida nos anos 80, o país e seu presidente se tornaram párias dacomunidade internacional com o fim da Guerra Fria. Depois de 1989,a política exterior do Zimbábue perdeu a qualidade de ativismo. Tornou-se defensiva e reativa, tendo como objetivos principais os de defenderespaço e poder regional e de inibir uma ingerência externa no processopolítico doméstico e na política econômica do país. Ficou longe dealcançar estes objetivos. A queda do prestígio do país e seu isolamentoculminaram na decretação de smart sanctions contra sua cúpula pelaUnião Européia e na suspensão da Commonwealth no início de 2002.

Esta queda da preeminência para o isolamento reflete bem afalta de capacidade e vontade do regime de se adaptar aos desafios que,percebidos como ameaçadores para a sobrevivência da classe dirigenteno poder se puseram ao país a partir de 1989. O fim da Guerra Fria“roubou” os fóruns e os temas onde a política exterior do Zimbábue,durante os anos 80, conseguiu-se projetar com tanto sucesso. OZimbábue também se tornou vítima do fim do apartheid, sistema dediscriminação racial na África do Sul, que o país enfrentou com muitadeterminação durante a década de 1980. Com a libertação da Áfricado Sul em 1994, o Zimbábue não somente perdeu a liderança nosubcontinente e sua valorização estratégica, mas começou a sentirtambém a concorrência política e econômica – muito desigual – dovizinho gigante e onipotente. As tentativas de reconquistar espaçopolítico regional terminaram em fracasso. A briga com a África do Sul

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sobre as prerrogativas do órgão de segurança da Sadc foi perdida e oenvolvimento militar no Congo (RDC) ultrapassa imensamente osrecursos do país, acelerando o desmoronamento da sua economia.

O Zimbábue fracassou também radicalmente na tentativa demanter o controle sobre as decisões de sua política econômica junto àspressões e intervenções das IFIs. Enquanto no final da década de 1980e durante boa parte dos anos 90 a submissão parcial às exigências doFMI levou o país a uma grave crise social, sem levar, contudo, àmodernização da economia, o confronto com as IFIs e os paísesocidentais no final da década somente agravaram a crise econômica ediminuíram até mais o espaço de manobra na política econômica.

No final da década de 1990, o regime tinha que enfrentarcrescentes pressões em prol da observância dos direitos humanos e daspráticas democráticas no plano político. Sem muitas alternativas, oregime decidiu enfrentar o Ocidente nestas questões e criticar o direitode ingerência no processo político de um país soberano. Mugabe seprojetou como o adversário principal e muito articulado da nova ordemmundial e de seus valores, que denunciou como um desmembramentoda soberania “vestfaliana” dos países subdesenvolvidos pelos vencedoresda Guerra Fria. Em certo momento, Mugabe conseguiu polarizar acomunidade internacional e criar atrito entre os países ocidentais eafricanos nesta questão. Ele conseguiu explorar o sentimento,principalmente dos Estados africanos, de estarem crescentementemarginalizados no mundo globalizado e “privados” de suas prerrogativassoberanas, que lhes serviram tão bem durante os tempos da GuerraFria.

Mas foi uma postura africana mais emocional do que realista.Tentou-se defender algo que obviamente era indefensável no mundopós-Guerra Fria. Por isto, a solidariedade africana com Mugabeencontrou seus limites não somente nas realidades do poder no sistemainternacional e nos discursos hegemônicos, que ordenam a sociedadeinternacional pós-Guerra Fria, mas também no caráter duvidoso doraciocínio mugabista. Defender o princípio de soberania para podermassacrar a oposição, sem censura internacional, parece também, pelomenos para os Estados líderes do continente, como a África do Sul e a

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Nigéria redemocratizada, um desvio do caminho do “renascimento”africano, integrante do plano New Partnership for African Development(Nepad). Portanto, a hesitação de muitos Estados africanos em condenaro Zimbábue deixa certas dúvidas sobre a seriedade e credibilidade dasdeclarações em favor de democracia, direitos humanos e governabilidade.

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Argemiro Procópio*

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Pretende-se acompanhar, na presente análise sobre a China,alguns passos do seu processo de desenvolvimento rompendo cominsistentes mitos ocidentais construídos em volta da sociologia daquelacomplexa organização social, a começar pela quimera do propaladorompimento com o socialismo e as ditas “núpcias” com o capitalismo.Por meio de um olhar introspectivo nos problemas da sociedade chinesa,pretende-se observar como foram e são implementadas as medidascontra a miséria e as desigualdades.

A tradição milenar congregando sentimentos na resistência àsbrutalidades do colonialismo japonês e inglês, do autoritarismo bipolare das injustiças amparadas pelo poder hegemônico capitalista unipolaré respeitada neste trabalho. As referências e as análises apresentadas sãofruto de informações coletadas na fonte, ou seja, na China mesma.Resultam de observações e de diálogos, iniciados há cerca de vinte anoscom especialistas da Associação para a Compreensão Internacional, doMinistério das Relações Exteriores, das universidades de Beijing e Fudame do Instituto para a América Latina da Academia de Ciências.

Buscando explicações no seio da sociedade estudada, cheia desoluções, problemas e potencialidades, o presente texto é parte de umaanálise para aprofundar e ampliar as opções no estudo das relaçõesinternacionais. Quebra estereótipos sobre a sociedade chinesa, presentesna monolítica interpretação acadêmica estadunidense, que tantoinfluencia o estudo do relacionamento internacional contemporâneo.A complexidade e riqueza da política, da economia e da tradição nasociedade do Império do Centro, com seus contínuos cinco mil anos

* Professor titular do Departamento de Relações Internacionais na Universidade de Brasília.

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de história, oxalá desperte a atenção pelo país mais populoso do mundoe seu papel nas relações internacionais.

Estruturada em três capítulos, a presente análise busca osprolegômenos das reformas examinando aspectos do modelo dedesenvolvimento político-econômico dissociativo no período maoísta.A questão da autodeterminação, elemento básico na política de Estado,permeia praticamente todo o primeiro capítulo transparecendo maisna segunda parte dedicada a aspectos da política externa, em que seensaia explicar a persistência na dialética e o porquê da oposição àmetafísica.

A parte concernente ao Tibete, com certeza das primeirasescritas por um brasileiro baseada em documentação e entrevistascolhidas in loco, apoia-se em dados e realidades propositadamenteesquecidas pela interpretação ocidental da fenomenologia tibetana.Apoiado em estudos dos historiadores Wang Jiawei, Nyima Gyaincain,1

Wang Gui, Wu Wei e Yang Gyai,2 focalizou-se a evolução política doTibete, lugar em que o poder unipolar ameaça restaurar a antiga ordemsustentada no casamento do trono com o altar.

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A consolidação, os reajustes permanentes da reforma econômicaprocessados nos últimos anos do século passado geram efeitomultiplicador de benefícios criando consciência coletiva de confiabilidadena economia. Tal fenômeno significa tanto segurança para osinvestimentos externos, quanto manutenção do nível de emprego.

O fluxo contínuo da entrada de capital estrangeiro leva a crerque o sistema socialista, pela lógica capitalista, é bom e seguro para seinvestir. Realmente a República Popular da China rompendo mitos aotransformar a estabilidade em instrumento social, levando a populaçãodesfrutar das benesses do seu processo de desenvolvimento e os

1 Jiaewi, Wang, Gyaincain, Nyma. The Historial Status of China´s Tibet. Beijing, China:Intercontinental Press, 1997.2 Wang Gui Wu Wei Yang Gyai. Comments on the Historical Status of Tibet. Beijing, China:Nationalities Press, 1995.

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investidores estrangeiros a saborear seus lucros, estilhaçou preconceitose tabus político-ideológicos em favor do fortalecimento de seu regimesocialista.

O socialismo livrou a então União das Repúblicas SocialistasSoviéticas da tremenda crise capitalista que assolou o mundo, depoisde 1929, com a quebra da Bolsa de Nova Iorque. No passado, talmodelo conseguiu expressivas vantagens. Tanto assim, que os paísesdo então chamado Leste Europeu, em termos de desenvolvimento,durante toda década de 1950, concorriam em pé de igualdade com ospaíses ricos da União Européia de hoje.

Efetivamente, extraordinário o progresso soviético logo apóso término da Segunda Guerra Mundial, refletido nas elegantes estaçõesdo metrô de Moscou, nos audaciosos projetos ferroviários, nos avançoscientíficos oceânicos e nos espetaculares passos na conquista do cosmos,etc. A industrialização na URSS e em outros membros do Comecomserve como prova nada silenciosa da consistência do comunismo nosanos 50 e 60. Tal modelo livrou os países socialistas da crise do petróleode 1973, abaladora das economias periféricas capitalistas.

A estratégia brasileira de crescimento vigente durante o regimemilitar, nos anos 70, alcançou elevados índices. Todavia, a desconsideraçãopara com o social, a renda extremamente concentrada nas mãos daselites oligárquicas e a produção industrial jamais planejada para atenderas necessidades das maiorias, transformou o milagre brasileiro emfenômeno frágil, de duração relâmpago indo a pique na primeira crisecom que se deparou, ou seja, a crise de 1973.

A convulsão econômica e social recaída sobre toda a AméricaLatina coloca em xeque modelos de desenvolvimento sustentados emfarta mão-de-obra barata, em exportação de produtos agrícolas e emminerais que não dão duas safras, com custos ambientais extremamentealtos. Este cataclismo abriu chagas doloridas, sentidas hoje mais doque nunca nos países periféricos e continua com os ameaçadoresdumping social, ecológico e dumping energético entrando na guerracomercial do Norte versus Sul.3

3 Ver: Procópio, Argemiro (org.). Ecoprotecionismo: Comércio Internacional Agricultura eMeio Ambiente, Brasília: Ipea/Pnud/Bird. 1994.

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Se os países socialistas não padeceram com a mesma intensidadedas nações capitalistas, quando da crise do petróleo de 1973, se perguntapor quê, dentre os regimes comunistas saídos quase ilesos da crise, tãosomente a República Popular da China abraçou a prosperidade refletidaem ganhos de tecnologia e em qualidade de vida.

O modelo socialista chinês parece de fato ter sido o primeiro aconseguir desvencilhar-se das amarras e arapuca em que caíram a URSSe os países sob sua órbita de influência. A caótica administração, ocorrupto gerenciamento das economias nacionais inspiradas no estiloda administração militar soviética, proporcionava enormes privilégiospara minorias oportunistas, aliás, quase as mesmas que agora mandamna sofrida Rússia. Encasteladas nos partidos comunistas do então LesteEuropeu, dopadas em mordomias, as elites perderam a noção daimportância das políticas públicas comparadas entre socialistas ecapitalistas. Privilégios desfrutados pela burocracia comunista levarama população a duvidar da honestidade dos ideais socialistas apregoadospelos que usufruíam do poder.

O distanciamento, ainda na era Mao Tsetung, da China com aUnião Soviética iniciou explícita recusa à camisa de força que os russosqueriam vestir na sociedade chinesa. Graças a tal repúdio, a RepúblicaPopular evitou perversos efeitos no corpo da nação, cuja engenhariasocial possuía características distintas da soviética. Promovendo o“Grande Salto à Frente”, no final dos anos 50, o maoísmo deu provade flexibilidade tomando iniciativa de pedir verificação dos erros “deesquerda”. Tal gesto abriu precedentes: menos de três décadas depois,ventos de profundas reformas sopraram por toda a China.4

A ex-República Democrática da Alemanha, a Polônia, aHungria, a Bulgária e a Tchecoslováquia, vítimas em escalas diferenciadasdos equívocos da burocracia e do autoritarismo soviético, nãoconseguiram reagir a tempo como fez a República Popular da China.A teimosia da nomenklatura da URSS em obrigar os países socialistasa bailarem segundo o ritmo dos acordes de sua balalaica causou

4 Cabral, Severino. Lima, Haroldo. China, 50 anos de República Popular. São Paulo: EditoraAnita Garibaldi, 1999. p. 89.

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atrapalhadas. A insurreição da Hungria em 1956 e da Tchecoslováquiaem 1968 receberam como resposta às tentativas de renovação do seusocialismo a brutalidade das forças do Pacto de Varsóvia. A Primaverade Praga e posteriormente o movimento operário Solidariedade naPolônia, nos primeiros anos da década de 1980, soavam como alarmesignorados pela nomenklatura no poder.

A República Popular da China desde sua implantação em 1949,boicotada pelos Estados Unidos da América e por países sob sua esferade influência, no caminhar do seu processo revolucionário, acabouvítima, na década de 1950, de equívocos da engenharia diplomáticasoviética. Restou então como única alternativa partir para a política deauto-sustentação, acompanhada do processo de fechamento para ocampo externo. Essa alternativa, conhecida como modelo econômicodissociativo, estratégia aplicada nas décadas de 1960 e 1970, verdadeseja dita, jamais significou iniciativa maoísta de isolamento. Traduziu,sim, forte reação e descontentamento da sociedade chinesa para com oclima internacional controlado pelas duas grandes superpotências.Constituía clara demonstração de reprovação à bipolaridade, naquelaépoca, hostil ao processo de desenvolvimento da China.

O poder bipolar, dividido entre as forças imperiais, sustentadode um lado pela Organização do Tratado do Atlântico Norte e, deoutro, pelo Pacto de Varsóvia, colocava os países periféricos em diferenteposição de subalternidade em que se encontram, sob o poder unipolar,sem a opção oferecida no passado. Por razão necessária, a geopolíticados anos 60 e 70 conduziu a República Popular para a política dedissociação.

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Verdade seja dita, a dissociação veio a contragosto da tradiçãouniversalista da China. Entretanto, a sabedoria oriental, ciente dahistória, repleta de exemplos, ensina que, às vezes, existem males quevêm para bem!

O dolorido boicote dos países sob a esfera de influência dosEstados Unidos da América e da União das Repúblicas Socialistas

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Soviéticas nas décadas de 1960 e 1970 estrangulou o setor da economiachinesa dependente de importações e exportações. Obrigou, mais doque nunca, o socialismo chinês a contar, antes de tudo, com suas própriasforças. Era o começo de três perplexas metas: saber até que ponto sepode permanecer dependente do exterior, saber a hora de arrumar acasa para hóspedes e saber como abri-la aos estrangeiros.

A construção da ideologia maoísta da autoconfiança e da auto-suficiência rompeu grilhões históricos: soterrou complexos deinferioridade que o colonialismo europeu impiedosamente plantou láe em outros países da periferia mundial.

Extremamente difícil era a tarefa de soerguer a sociedade dasruínas deixadas pelo colonialismo. A mentalidade pessimista e derrotistadestruída por meio do processo revolucionário significou enorme passoadiante. Todavia, o controle, a mão-de-ferro na condução da produçãofabril, a política de produção exclusivamente sob as diretrizes daburocracia estatal e o rigoroso monopólio por parte do Estado, se nocomeço dos anos 50, deram positivos frutos, pouco a poucomostraram-se fracos e contraproducentes. O Estado, por exemplo,comprava a produção agrícola, porém mostrava-se lento e incompetenteno processo de distribuição.

O baixo nível de consumo, a reduzida produtividade, a péssimapolítica de distribuição dos estoques e as enormes amarras burocráticasno processo da venda para o consumidor, longe de trazer riqueza,aumentava a pobreza. Resultado da excessiva interferência estatal, osintermediários, a mesma grande desgraça do capitalismo vestiam naChina a roupagem da burocracia. Isto prejudicou a dinâmica daeconomia porque tolhia iniciativas. Em conseqüência, sentia-se faltade entrosamento, de entusiasmo e de calor empresarial por parte dostrabalhadores.

A ausência da iniciativa privada e a lentidão por parte das forçasprodutivas, qualquer visitante as constatava. Até início dos anos 80,seja no hotel em que se hospedava, nos restaurantes, nos aeroportos ouna compra de algum remédio na farmácia, tudo dependia da boa oude má vontade da burocracia. O insuficiente desenvolvimento, o brutaldéficit de moradias, a escassez de alimentos, a pouca água tratada e os

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avanços tecnológicos extremamente modestos mostravam a necessidadede novas e profundas mudanças.

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A emblemática explosão da primeira bomba atômica em 1964,quinze anos depois da fundação da República Popular repercutiu internae externamente.

Dentro, provou do que era capaz a inteligência da nação, até1949 colocada entre as mais pobres, miseráveis e exploradas da face daTerra. Além de transbordar autoconfiança no espírito dos cientistas,dos estrategistas e dos militares, a entrada no restrito clube dos detentoresde tecnologia nuclear surpreendeu o mundo ocidental. Assustou demaisantigos aliados, como os soviéticos. Lembrou que construir bombaatômica é menos difícil do que acabar com o subdesenvolvimento.

Passado o medo dos chineses de não ter como se defender dosinvasores, ainda que não possam despreocupar-se com orçamentosmilitares destinados à manutenção e reaparelhamento das ForçasArmadas, o prioritário combate à pobreza impõe limites aos gastoscom tropas e material bélico. A título de comparação, não obstante aextensão territorial e o número de soldados, orçamento militar da RPC,para o ano de 2001, de USD 17 bilhões,5 se comparado aos USD45 bilhões do Japão, comprova que a defesa nacional por meio dodesenvolvimento, na ótica dos chineses, é melhor do que a empreendidacom o uso de armas. A França ou a Grã-Bretanha exporta muitíssimomais armas que a RPC. Entretanto, poucos no ocidente falam deincompatibilidade do armamentismo com os direitos humanos.

Com um quinto da população mundial, é responsável por4,5%, dos gastos globais com defesa enquanto que os EUA respondempor 33,9%. A China, em 1997, respondeu por 2,2% do total dasexportações de armas. Foi superada, entre outros, por países comoIsrael, França, Rússia e pelos Estados Unidos da América, que detêm

5 Ver: China: Hechos y Cifras 2001. Editorial Nueva Estrella, 2001.

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quase metade do mercado mundial de armamentos. Apenas o ReinoUnido possui 18% deste bolo que envenena e mata o mundo.6

A expulsão do exército imperial japonês da Manchúria e deoutras partes do território, custando aproximadamente 20 milhões devidas, ceifadas pela fúria das armas, da fome e do frio durante a SegundaGuerra Mundial, número equivalente às perdas sofridas pela URSS naguerra contra o nacional socialismo, sem dúvida ressuscitou a consciêncianacional. Mas, nem mesmo a entrada desse país no restrito clube daspotências nucleares dissipou o temor de a história se repetir.

Outros dois velhos inimigos dos chineses são a miséria e acorrupção. A luta contra ambos, depois de 1949, recebe tanta prioridadequanto a própria defesa nacional. O exemplo acima, comparando oorçamento militar entre sinos e nipônicos comprova como se diferenciaa política de defesa da China tanto dos países capitalistas ricos quantodos antigos socialistas. Isso porque o passado de escassez ainda não seapagou de sua memória. A crise alimentar no final do milênio, navizinha e aliada Coréia do Norte soprou na Ásia inteira o velho pavorda fome. Ainda existem enormes bolsões de carência pelo país afora; aprioridade número um do governo é a sua erradicação.7 Esta pobrezaainda identifica o outrora conhecido como Império do Centro comos problemas e as aspirações de países da periferia mundial, entre osquais o Brasil.

Na conferência de Bandung, na Indonésia, entre 18 e 24 deabril de 1955, vinte e quatro nações asiáticas e africanas lançaram osprincípios políticos do não-alinhamento. A República Popular da Chinatrabalhou intensivamente na criação do Movimento dos Não-Alinhados. Demonstrou, assim, estar entre os primeiros a alimentarsonhos de prosperidade fora da tutela bipolar então vigente, gestosque agora repetidamente se manifestam mostrando discordâncias arespeito dos abusos do presente poder imperial unipolar.

6 Segal, Gerald. A China não é tão importante. Foreign Affairs – Edição Brasileira. GazetaMercantil, 2001.7 Ver: Bettelheim, Charles. Charriére, Jacques. Marchisio, Hélène. La construction du socialismeen Chine. Paris: Collection Maspero, 1972.

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Os avanços militares, a organização, a disciplina dos soldadose sua contribuição diária na vida do povo como, por exemplo, nasaúde, na construção civil, na abertura de rodovias e ferrovias, na limpezadas cidades, nas colheitas e até na alfabetização das massas contribuíramno passado e contribuem ainda no presente, mas não resolveram todosos problemas. A boa distribuição geoestratégica das tropas e suasuperioridade numérica enchem de confiança os cidadãos sob o pontode vista da política de defesa. Entretanto, não aportam melhoria geralno padrão de consumo nem progresso no nível de vida da população.Esta é, dentre outras, a razão que leva o governo chinês a apelar para apaz no cenário internacional. Ainda que pareça, aos olhos das grandesagências internacionais de notícias, mero jogo demagógico, o clamorpela paz no mundo é, na China, sábia estratégia de sobrevivência.

As desvantagens e vantagens do espelho soviético refletiram-seao lado das fronteiras chinesas, ajudando enormemente na construçãode políticas para evitar os grandes equívocos perpetrados na URSS emnome do socialismo. Viram os chineses o formidável poderio militarda União Soviética mostrar-se incapaz de eliminar as causas dainsatisfação popular. Uma sociedade cheia de cultura, repleta de dinheirono bolso, porém sem produtos nas prateleiras de suas lojas e sem comidanos restaurantes e nas casas.

A baixíssima qualidade de vida de população com alto níveleducacional como a russa, descreditava o socialismo, primeiramenteentre os russos mesmos e, depois, entre os estrangeiros. Esta realidadeserviu de alarme, de advertência aos formuladores da política interna eexterna da República Popular da China. Daí o fortalecimento dacapacidade de autocrítica ligada à vontade férrea de ver bem sucedidoo comunismo chinês.

O respeito às teorias fundamentais do marxismo-leninismopassou a valer segundo a interpretação dada pela sociologia doconhecimento chinês. As lições do marxismo-leninismo ali respeitaramprofundamente a história e particularidades da nação refletidas na célebrefrase de Deng Xiao Ping “não importa a cor do gato. O importante éque o gato coma o rato”. Ou seja, que se valorize a vocação do felino,intrínseca a sua capacidade de sobrevivência. Noutras palavras, é

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importante o comunismo alcançar suas metas independentemente defatores conjunturais.

A milenar vocação dos chineses para o comércio exteriorcomprova-se por meio da audácia dos seus mercadores construtores damonumental rota da seda. A vocação universalista da China não podiaentão se aprisionar nem nas alianças com os países- membro do Pactode Varsóvia, nem limitar-se apenas a vizinhos como o Vietnã, Mianmá,Laos, Nepal, Afeganistão, Mongólia e Coréia do Norte.

Restos humilhantes do colonialismo europeu precisavam serextirpados de vez. Idem no que diz respeito às trágicas conseqüênciasda invasão pelas forças imperiais japonesas. Mas, apesar das feridas, oschineses resolveram encarar o Japão e o mundo como são e não comogostariam que fossem. Analisaram o sucesso do até então bem sucedidoprojeto capitalista de desenvolvimento nipônico. Buscaram, também,exemplos de prosperidade dentro do seu próprio território separadopela tragédia das guerras, vale dizer, Taipé e Hong Kong.

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No início dos anos 80, membros do Partido Comunistaesbravejavam e perguntavam como era possível Hong Kong ter maisaparelhos telefônicos que a China inteira! A qualidade das moradias nailha de Taipé, superior às do continente, acompanhava-se da beleza dasroupas. A população dessas partes da China vestia-se melhor. Oconsumo de gêneros alimentícios em Macau apresentava-se maior doque no restante do país e assim sucessivamente.

Ao contrário da União Soviética, o brilhantismo nos esportese as fantásticas conquistas olímpicas não doparam, não emudeceramas bases do Partido Comunista em sua indignação contra a baixaqualidade de vida de sua população. O sucesso na política de segurança,na luta contra o analfabetismo, em que a leitura exige pelo menos oconhecimento básico de três mil caracteres, programas de televisão sema violência dos filmes Made in USA, o desfrute de bens culturais comoo acesso a patrimônios históricos, templos arqueológicos de altíssimovalor, visita a museus, bibliotecas, música erudita, espetáculos de danças

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folclóricas e clássicas, melhoria na qualidade do ensino e popularizaçãoda medicina tradicional apresentavam-se constantemente como vitóriasdo socialismo. Diziam muito, é verdade, porém não preenchiam outrasnecessidades básicas como habitação, roupa e comida farta.

O fato de ser impossível fechar-se para si mesma, isolar-se deseus próprios membros, cerrar os olhos para não ver o que aconteciaem Hong Kong, Macau e Taipé, obrigou autoridades a encarar não sóprogressos comparados ao seu passado recente, mas, também, acompreender o presente relacionado simultaneamente com realidadesdentro de casa e no além-mar. Os chineses, ao contrário do comunismodo Muro de Berlim, construíram caminhos e abriram espaços. Comcoragem cívil derrubaram muros criados pelo imperialismo britânicoe norte-americano erguidos por meio do boicote que murava a China,isolando-a do resto do mundo.

Na RPC, o veneno acabou transformado-se em remédio.Repetindo, a presença imperialista em Hong Kong e Macau forçou osdirigentes a confrontar diferentes realidades domésticas com realidadesno exterior. Suas políticas públicas comparadas, apontando para oJapão, levaram à adoção de diversificadas e amplas estratégias de açãoem favor do desenvolvimento integral. O equívoco do período daRevolução Cultural manifestou-se no esquecimento voluntário deencarar avanços em outros lugares, porque quer queira, quer não, todasas nações fazem parte de um mundo de todos que deveria ser paratodos.

A elevação do padrão de vida das massas, questão prioritárianas últimas duas décadas, é tarefa hercúlea considerando-se a gigantescamassa populacional de 1.295.330.000 de vidas. A política de aumentara qualidade de vida da população significou profundo desejo eimpaciente aspiração. Obteve total consenso. Todavia, sabem quenenhum aumento da qualidade de vida advém de boas intenções, debelos discursos ou cai do céu. Neste clima político cultural realista,apresentou-se no início dos anos de 80 a necessidade da reformaeconômica, numa verdadeira razão de causa e efeito.

As adversidades climáticas, enormes áreas desérticas, montanhase a existência de pouca terra cultivável para atender necessidades básicas

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de um quinto da população mundial contaram com a vontade coletivapara transformar obstáculos em vetor de desenvolvimento. O PartidoComunista soube aproveitar este desejo popular, implantando reformasque, por sua vez, suplantariam gigantescas dificuldades. O primeirogesto era o de cortar a cabeça da serpente do burocratismo estatal;colocar o povo imune ao veneno do capitalismo especulativo e dacorrupção, sepultador de esperanças em grande número de paísesperiféricos.

O baixo preço do petróleo oferecido no mercado internacional,do carvão e de outras matérias-primas, no passado produtos essenciaisda pauta de exportação da República Popular da China, obrigou seusdirigentes a buscar lições, tanto nos países em via de desenvolvimento,quanto nos países detentores de tecnologia de ponta.

Na década de 1980, constataram que de vinte navios entrandonos portos nipônicos 19 deles voltavam vazios. Viram que o valoragregado em produtos com tecnologia de uma única embarcação valiamais que dezenove embarcações com produtos típicos da pauta deexportações da periferia mundial.

O recente passado comercial da China assemelha-se à atualeconomia do Brasil, primeiro exportador mundial de suco de laranja,de café não beneficiado, farelo de soja e ferro. Enviando tambémlingotes de aço, automóveis, aviões com turbinas produzidas no exterior,madeira, açúcar, cacau, couro e grande quantidade de frangos, carnebovina de primeira qualidade, o Brasil tem pauta de exportaçãosemelhante à da maioria dos países pobres. Deixa de ganhar enormessomas porque a má distribuição da renda não leva ser nem consumidorrespeitável, nem exportador expressivo. O café brasileiro, por exemplo,beneficiado, industrializado e reexportado pela Alemanha, Itália eBélgica rende cerca de dez vezes mais do que pagam ao Brasil,outorgando-lhes o título de grandes exportadores mundiais desseproduto. Os navios que transportam minério brasileiro regressam vazios.Poderiam trazer carvão chinês para aumentar a diversificação de nossasfontes energéticas. Por desinformação, produtos brasileiros não entramna China por causa de barreiras fitossanitárias. O enorme marasmo norelacionamento bilateral Brasil-China tem que ser revertido uma vez

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que a pauta do comércio entre ambos está extremamente aquém desuas potencialidades.

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A reforma econômica acompanhou-se de radical modernizaçãodo parque industrial, executada para enfrentar novos desafios da inserçãochinesa na economia mundial. Isso exigiu o não abandono dosocialismo, mas coragem civil para vencer barreiras e respeitar a memóriahistórica dentro de tradições milenares, das quais a China, enquantoChina, jamais poderá se afastar.

Um dos pilares profundos do movimento de aproximação dospovos na história da humanidade, depois da globalização pela religião,8

é a aproximação dos povos por meio do comércio. A já mencionada efamosa rota da seda, as fantásticas caravanas do passado unindo a Ásia,a África e a Europa, ressuscitam-se após séculos, nos modernos jatos enavios abarrotados de produtos Made in China. Tais mercadorias,concebidas para usufruto das massas, não importando em qual partedo globo, são resultado do enorme sucesso da reforma premeditadamentefavorável à competência empresarial e gerencial. Reforma que previu aabertura para o exterior como instrumento poderoso de reativação daeconomia interna. Isto porque os múltiplos reajustes da aberturaobjetivaram introduzir tecnologias passíveis de serem absorvidas erecriadas pela sociedade num todo, e não apenas por segmentosconsumistas minoritários.

A luta contra a exclusão social é seguramente o feito que aChina, em termos de conquistas sociais, pode apresentar na comunidadedas nações como trunfo do seu processo revolucionário. Essa luta contraa exclusão social, no plano interno, levou o país a ocupar lugar dedestaque na comunidade das nações. Para se fazer respeitada no reduzidogrupo das benesses do relacionamento internacional, a inteligêncianacional esforça para que experiências avançadas em termos tecnológicos

8 Ver: Boff, Leonardo. Fundamentalismo: a globalização e o futuro da humanidade. Rio deJaneiro: Sextante, 2002.

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sejam igualmente usadas a favor do bem-estar coletivo. Para isso, éessencial a formação, a reciclagem e o aperfeiçoamento dos recursoshumanos. Sem isso, jamais abandonaria o triste status de montadora,incapaz de aproveitar a contribuição dos investimentos estrangeiros.

A difícil competência para absorver e usufruir transferências detecnologias forâneas rende resultados positivos, porque a revoluçãoinveste no capital humano. Graças ao seu capital humano, as relaçõescom o exterior se pautam por princípios da igualdade e repartição doslucros, tanto para quem investe quanto para quem recebe investimentos.

A independência na escolha dos investimentos estrangeiros e orespeito para com a autodeterminação são princípios mencionados emdiscursos que do papel passam para a prática. As autoridades jamaisabrem mão do apelo à boa ética em sua política de Estado amparadorado processo de abertura para o exterior e nas negociações internacionaisde geometrias variadas.

Países como Portugal, Grécia, a ex–Iugoslávia e a Turquiacontaram, com principal fonte de divisas, durante décadas, com aspoupanças de seus cidadãos trabalhando no exterior. Até mesmo oBrasil, tradicional acolhedor de imigrantes, em sua prolongada criseeconômica nos anos 80 e 90 beneficiou-se de dólares enviados do Japãopor brasileiros de origem nipônica que lá trabalham.

Se na China o fenômeno do “gastarbeiter” deixa de existir talcomo é conhecido na União Européia, nem por isso lá se deixa de ganharcom patrícios vivendo no exterior, conhecidos como chineses do ultramar.Estima-se que 60 milhões deles espalham-se pela Malásia, Coréia doSul, Indonésia, Vietnã, Filipinas, Estados Unidos da América e Peru.

Fortes vínculos culturais atrelados a uma bem arraigada tradiçãounem os chineses distantes da pátria ao berço de origem em busca desentimentos comuns, inclusive de segurança. Tal fato leva os chinesesricos da comunidade no exterior a aplicar, na terra de seus antepassados,parte de seus investimentos. Ao contrário de Portugal e de paísesanteriormente citados, cujos cidadãos que partem em busca de trabalhoe melhoria de vida no exterior são pobres, os “chineses de ultramar”constituem a elite econômica em várias partes da Ásia. Suas empresas,estruturadas em vínculos familiares e étnicos comportam-se dentro da

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tradição gerencial da China. Não poucas dispõem de fundos bilionáriose parte substantiva dos mesmos aplicam-se na RPC. Até críticosconfessos do modelo de desenvolvimento chinês, como Gerald Segal,diretor do Instituto de Estudos Estratégicos em Londres, e Barry Buzanmencionam que “cerca de 80% dos USD 45 bilhões que entraram nopaís, foram enviados por chineses residentes no exterior”, principalmentedos países chamados de Tigres da Ásia.9

Singapura tem 2.710.000 habitantes, sendo que aproxima-damente três quartos é de origem chinesa. Na Malásia, entre os seus21.200.000 habitantes, uma quarta parte é oriunda do Império doCentro. Lugares onde os chineses constituíram a elite econômica, vezpor outra, acabam vítimas de tumultos como os ocorridos em 1998 eem 1999 na Indonésia. Esta é mais uma razão para depositar parte deseus ovos de ouro no cesto seguro da mãe pátria.

O capital humano, a disciplina de trabalho e a organização,diga-se de passagem, até certo ponto inspiradas no modelo nipônicode desenvolvimento, foram e é o que se oferece como garantia aosinvestidores. É claro, garantia acompanhada de estabilidade política esocial, há décadas respirada naquela parte do mundo. Quase meio séculoantes de o Ocidente pensar no princípio da segurança humana, noinício do novo milênio, palavra moda na Organização dos EstadosAmericanos, o processo revolucionário na República Popular da Chinajá aplicava esse princípio.

Justiça social e o enorme cuidado para evitar contradiçõessufladoras de disparidades como a brutal concentração da renda e acorrupção impedem os países da periferia mundial de decolarem rumoao desenvolvimento integral. A luta contra a corrupção e contra asdrogas ilícitas a China, nunca se descuidou dela, inclusive porque estas“pestes” persistem.

Os bons resultados dos investimentos humanos em sociedadesem as grandes diferenças sociais ajudaram o país a transforma-se emmercado para tecnologias dos países avançados. Vale dizer mercadosque, por sua vez, necessitavam de mercados. Tal realidade, “o casamento

9 Foreign Affairs. Edição Brasileira, publicação da Gazeta Mercantil, 10.9.1999

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do útil com o agradável,” é a união do céu com as estrelas, para usaruma imagem poética oriental. Neste processo, a China compartilhaexperiências tecnológicas avançadas, porém não conseguiu distribuirconquistas científicas e industriais por todas as suas regiões. Para tanto,necessita de formação e treinamento de pessoal altamente qualificado.O sistema educacional mostra-se competente no suprimento de taisdemandas, mas não consegue, sozinho, eliminar as disparidadesregionais existentes.

O tamanho êxito do processo industrial transformou o país,em poucos anos, em prestador de assistência técnica ao exterior e nãoem mero exportador de inteligências que nunca retornam. O brain-drain, saída de cérebros, drena recursos e capacidades da periferiamundial é duramente reprimido por causa da “virulência com que essaenfermidade” ataca o processo de desenvolvimento sustentável.

A absorção de recursos estrangeiros se fez acompanhar daestratégica política de recriar e aperfeiçoar tecnologias. Graças a tal métodoconcede-se espaço que atrai, do estrangeiro, técnicos altamente habilitados,como no caso dos cientistas russos. Mais importante ainda é a políticade promover, incentivar e manter dentro do país a inteligência nacional.

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O relacionamento externo nunca deixou de se pautar nosprincípios de respeito à igualdade, aos benefícios mútuos, à independênciae à autodeterminação. Para tornar o país atraente ao capital estrangeiro,empreenderam-se esforços na criação de infra-estrutura sob o guarda-chuva dos princípios anteriormente citados. Mais do que isso, é a garantiade mercado interior para tecnologias oriundas do exterior e vice-versa.

O pagamento dos altíssimos juros da dívida externa, extenuandoeconomias nacionais, como as da Argentina, do Brasil, da Rússia e daVenezuela, é perigo evitado por responsáveis das finanças. Sabe-se quealtos juros resultantes do endividamento externo “engordam o credore gangrenam o devedor”. O superávit do comércio, questão deimportância vital para a China, praticamente anula as dívidas contraídas,estimadas no ano de 2001 em aproximadamente USD 145,73 bilhões.

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Os USD 165,57 bilhões em reservas internas impedemdificuldades de caráter financeiro. A China integra o clube de naçõesque não encontrou, como os Estados Unidos da América, a varinhamágica da fada madrinha transformadora de coisas em ouro. O casodo dólar é o melhor exemplo. Nenhum país consegue, como os EUA,transformar a celulose em notas verdes sem lastro em ouro e, mesmoassim, disputadas por todo o orbe. Sem o privilégio de emitir a moedatão cobiçada internacionalmente, sem possuir bancos que empresta aaltíssimos juros para subdesenvolvidos, resta aos chineses, como únicaalternativa, o trabalho: produzir, produzir muito, vender e consumirbem.

As volumosas necessidades de importação só podem sersupridas por exportações. Isto, de alguma maneira, transforma oschineses em reféns de sua própria prosperidade. Prosperidadedisseminadora de efeitos criadores de novas interdependências tecidaspelo comércio internacional. Tal complementaridade evita a economiade mão única, “que tantos acidentes causa na estrada esburacada daseconomias subdesenvolvidas”.

A particularidade do modelo econômico estudado é que, damesma forma como este se amarra aos centros mundiais de poder, taiscentros também se amarram a ele. Para apertar, até o limite, o nó dainterdependência, tornando a nação cúmplice da prosperidade,promovem-se audaciosas políticas de equilíbrio entre produção econsumo para as massas. Comporta-se de maneira quase oposta à dospaíses latino-americanos de minorias com alto poder aquisitivo,inspirados no neoliberalismo, torrando reservas nacionais para atenderàs falsas necessidades do chamado consumo supérfluo, importandoprodutos de sobremesa.

A oferta crescente de produtos essenciais à vida e à melhoriadas condições de existência da população exigem concentrados esforçosde planejamento. Sob essa perspectiva, entendem que para taisobjetivos, antes de tudo, devem contar com suas próprias forças.Inclusive porque sabem que, além da China, nenhum outro país domundo, por melhor que sejam suas intenções, conseguirá a prosperidadepara um quinto dos homens no planeta Terra.

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Não atrapalhar, não boicotar e não interromper o processo embusca da compreensão internacional significa colaborar com odesenvolvimento. Por isso, a busca da paz, mais do que ideal, é concretanecessidade. Sem a paz mundial, os chineses dificilmente continuarãosua trajetória de prosperidade. Sem paz a China se transformará emlenha nova na perigosa fogueira da globalização das desigualdades.

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A utilização de princípios e de causas éticas manipuladaspoliticamente, por países ocidentais ricos, como os direitos humanose a liberdade religiosa, não constitui novidade nenhuma na história dasrelações internacionais. O estudo da missiologia cristã certamente mostraisso.10 Infelizmente, por detrás do biombo dessas nobres causasfreqüentemente escondem-se obtusos interesses. A falta de escrúpulospolíticos leva à intromissão de organizações não-governamentais e atémesmo de governos em assuntos internos de outros países, para desviara atenção da opinião pública de podridões, de problemas criados porsuas próprias desigualdades e injustiças. Denunciar, no exterior, mazelasinternamente amparadas é concordar com a política de duas caras dasrelações internacionais.

No que tange aos direitos humanos, o mundo caminha devagardemais para que eles sejam de fato respeitados. A sociedade internacionalparece preguiçosa na concentração de esforços para que a paz e odesenvolvimento integral sejam de fato fenômenos abrangentes eincludentes. Nas relações internacionais, no que diz respeito aos direitoshumanos, praticamente todos os países têm telhados de vidro. Associedades em que maiores formadores de opinião pública e a mídiamoldam a maneira como se deve ver e pensar o mundo precisamlembrar que os direitos humanos devem ser considerados sob a óticadas sociedades e não da ideologia dominante.

10 Ver: Procópio, Argemiro. L´Amazonie et la Mondialisation. Essai d´ecologie politique. Paris:L´Harmattan. 2000. p. 48-67.

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A mídia ocidental é praticamente cega, surda e muda quandose trata de divulgar a questão do desrespeito aos direitos humanos nosEstados Unidos da América. Esquece-se, por exemplo, que dos 2milhões de presos daquele país, dois terços constituem minorias étnicas.Mais especificamente, negros e latinos.

A luta contra as drogas nos EUA parece mais guerra contranegros e latinos do que contra as drogas. A violência e a intolerânciacrescem, chamando atenção para as conseqüências do hedonismo, tãoincentivado e presente em culturas como a dos Estados Unidos daAmérica. O hedonismo ensinado no american way of life é verdadeiraerva-daninha para culturas em que o ideal do coletivo fala mais alto doque o ideal do indivíduo.11 A noção do dever coletivo no Japão, naChina, na Índia e em dezenas de países muçulmanos mostra-se maisviva do que nos Estados Unidos da América ou na União Européia.

Um quinto da população mundial aceita defender os direitoshumanos no âmbito de sua cultura e de seus valores essenciais. Jamaisfora deles. Neste particular, não se combate a violência divulgandodiuturnamente valores que ferem a fraternidade humana como ospropalados pela produção cinematográfica de Holywood, verdadeiroatentado aos direitos humanos. Diferentemente dos Estados Unidos,para os chineses lutar a favor dos direitos humanos é lutar contra asdesigualdades sociais presentes no individualismo egoísta e contra acorrupção. A justiça social, o direito das maiorias, o equilíbrio nadistribuição da renda, a rigorosa atitude contra as drogas ilícitas e ascampanhas coletivas em favor da honestidade são orgulhos nacionais.

O pacto social hobbesiano, ou seja, a troca da liberdade porsegurança, funciona ao pé da letra na República Popular.12 Isto porqueé rigorosa a política de prevenção da criminalidade. Ao se comparar onúmero de crimes pelo número de habitantes, constata-se que,proporcionalmente, o Império do Centro situa-se entre os mais segurosdo mundo. Isso, indiretamente, é incentivo para o investidor e técnicosestrangeiros.

11 Ver: Procópio, Argemiro. O Brasil no Mundo das Drogas. Petrópolis: Vozes, 1999.12 Ver: Hobbes, Thomas. O Leviatã, ou Matéria, Forma e Poder de um Estado Eclesiástico eCivil. São Paulo: Nova Cultura, 1998.

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A justiça social, traduzida na radical distribuição da rendaimplantada depois do processo revolucionário iniciado em 1949 dápreciosos frutos. Graças, também, ao seletivo aumento do consumoamparado na crescente melhoria da capacidade de produção, o investidorestrangeiro aposta no Império do Centro. O exemplo da melhoria daexpansão do consumo, além de aumentar a qualidade de vida dapopulação, aquece e renova as máquinas do processo da industrialização,obrigadas a produzir mais e melhor.

A introdução do sistema de empresas mistas foi a maneirainteligente encontrada para utilizar bem os empréstimos estrangeiros eacabar com a tentação dos desvios por meio da corrupção. Issotransformou o investidor em parceiro, ou seja, ganhador, se houverlucros, e perdedor, se houver prejuízos.

Quem concede empréstimos à China se envolve e secompromete com o processo de desenvolvimento. Bem diferente doque ocorre com empréstimos concedidos à América Latina, onde aoemprestador pouco importa em que ramo será aplicado seu dinheiro.As garantias para os escorchantes juros inviabilizam, na base, qualquertentativa de desenvolvimento. Na América Latina empréstimosexternos para estatais, quando davam bons resultados, tinham comoprimeiros beneficiários suas próprias elites de funcionários. Quandodavam prejuízos, o contribuinte cobria o rombo, por meio desubvenções públicas. Na RPC, a constante reaplicação dos lucros, pelosestrangeiros, a diferencia de outros da periferia, onde o emprestadorquase nunca administra, mas, simplesmente, retira o lucro. Outraparticularidade da política econômica chinesa reside no fato de inexistir,naquele país, controle sobre a remessa de lucros para o exterior. O quese faz é zelar com rigor pela aplicação de regras ditadas pelo Estado eaceitas pelo investidor estrangeiro.

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A palavra autocrítica, cheia de conotações ideológicas, mereceser repetida várias vezes quando se quer aprender estudando a China.

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Assim, a problemática populacional, a pobreza, a escassez de recursosflorestais, as enormes áreas desérticas, o êxodo rural, a falta de moradia,de saneamento e a baixa qualidade da água, levam políticos e cientistassociais à constante procura da mencionada autocrítica.

Apesar do ininterrupto crescimento econômico nas últimasduas décadas, existe opinião generalizada de que, na China, odesenvolvimento está atrasado. Na América Latina a situação se inverte:o subdesenvolvimento está adiantado.

A política de reativação da economia nacional iniciada em 1980continua. No exterior, pouco se fala que a economia agrícoladesempenhou protagônico papel no processo de modernização emcurso. A renda per capita de 417 yuan no ano de 1980, saltou para6.534 yuan em 2001. O país, de exportador de cereais beneficiados,frutas em conserva, roupas de algodão, seda, sofisticadas cerâmicas,em parte produzidos na zona rural, passou a exportar produtos de altovalor agregado e tecnologia de ponta.

O fato de se coibir a ação do intermediário retém expressivaparte do lucro nas mãos do produtor, seja ele rural ou urbano. Issoincentiva a produção; libera agora, capital para investimento emprodução ecologicamente razoável, até porque o processo produtivopassa a ser co-responsável. Finalmente, sente-se por lá que airresponsabilidade ecológica é desgraça que atinge a todos. Assim, se ainterferência do Estado, tanto na produção rural quanto no processoindustrial é propositadamente discreta, na formulação das políticasambientais, o Estado mostra-se dinamicamente propositivo.

As famosas brigadas de produção substituídas pelo trabalhofamiliar parecem coisa do passado. A terra, entretanto, continua a serbem coletivo. A produção industrial exige cuidados ambientais. Idempara aumento do consumo de bens duráveis, que caminha a passosrápidos. Bicicleta, relógio, gravador, rádio, televisão, aquecedor e,recentemente, até computador, não são raridades nas residências, cujopequeno tamanho aproxima-se do padrão japonês.

Graças ao êxito das mudanças processadas na sociedade ruralnos anos 80, a reforma propalou-se igualmente para o meio urbano.As unidades de produção industrial conseguiram incentivos iguais aos

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anteriormente concedidos só para o meio rural, o que indiretamenteprovoca o preocupante inchaço das cidades.

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Tão complexa quanto a rural, a reforma industrial-urbanademandou modificações na estrutura administrativa das empresasestatais. A primeira separou o governo da empresa. As autoridadesabandonaram o mal costume de influenciar na nomeação defuncionários, prática ainda corriqueira nos países em desenvolvimento.O governo, empenhado na macroestrutura, deixa à empresa os cuidadosda auto-administração.

Cessando de intervir diretamente, o Estado tirou suas mãosdas empresas, implementando paralelamente políticas de controle.Simplificou instituições e emagreceu o aparato governamental, fatoque lhe custou, no início, grande e perigosa oposição da burocracia.Escandalizou parte dos saudosistas que não aceitavam sequer parte dopoder de decisão estatal abdicado. Desde então o quadro de altosfuncionários se preenche, não por meio de indicações políticas guiadaspela fidelidade partidária mas, sim, por competência administrativa emérito profissional. Tal estratégia privilegiou capacidades. Houveascensão de gente nova; técnicos jovens provocaram inovações tantona estrutura produtiva quanto na filosofia da distribuição, agora menosburocratizada.

Pelas razões acima, quem pensa que o Estado desaparece naRepública Popular se equivoca. Melhor é lembrar que o governo centralagora, inteligentemente, reconhece o seu lugar. De 1949 para cá, existeapenas uma propriedade: a propriedade do Estado presente no urbanoe no rural. O que se percebe com as reformas é melhor coexistênciaentre os interesses da produção e os interesses do Estado.

Pelo fato de o prejuízo ser sempre do Estado e, aparentemente,não doer no bolso de ninguém, a responsabilidade compartida com ainiciativa privada transformou-se em solução para os problemasadministrativos. Quem trabalha, por exemplo, com exportação, comtecnologia ou em simples restaurantes, salões de cabeleireiros, pequenas

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fábricas de cerâmica ou artesanato, guarda parte do lucro. Em troca,liberaram o Estado da administração e do pesado fardo dos prejuízos.Essa estratégia diminuiu rombos financeiros causados por negóciosmal gerenciados. Solução extremamente comum nos países periféricos,a de retirar do bolso do contribuinte para cobrir negócios malfeitos, éprática não tolerada. O conceito de cidadania, interpretado ao pé daletra, impede o governo de socorrer banqueiros e especuladores, inimigosdas atividades produtivas.

A falta de pontualidade, filas para atendimento e serviços depéssima qualidade existem, contudo, menos aceitos. A remuneraçãovaria de acordo com a quantidade e qualidade dos serviços prestados.O salário não é mais fixo e tampouco existe isonomia salarial. Aprodutividade é o que conta. Mesmo assim, existe caminho a percorrer,para que, em futuro próximo, a China alcance o nível e eficiência dosserviços oferecidos no Japão.

O Estado, pouco a pouco, abandona a supervisão dos serviços,mas orienta, pela informatização, onde estão os produtos. Interferemenos na fixação e na cotação do preço determinado pelas leis domercado. Por outro lado, a cobrança eficiente de impostos, alcança,aos poucos, partes da portentosa economia informal.

A margem de manobra do produtor cresce. O fato de nopassado o Estado coibir iniciativas querendo controlar tanto a aquisiçãode material, sua transformação e comercialização final, transformou oprocesso produtivo em máquina pesada e ineficiente. O Estado mandavaem tudo, inclusive na gerência de mão-de-obra. Roubava assim adinâmica do processo empresarial. Pior do que isso foi a burocracia terditado as regras do processo produtivo, com freqüência uma burocraciamais política do que técnica. As leis de oferta e procura colocaram oaparato burocrático em seu devido lugar.

No passado, os superintendentes das indústrias tinham poucaforça. Os salários aumentavam só quando o Estado permitia. Aprodução seguia os ditames da burocracia, ainda que bem intencionada,alheia aos problemas do mundo empresarial. Com as reformas, arepartição do lucro conforme a produção executa-se de forma maisjusta porque é feita de perto. Antes, sua execução estabelecia-se de longe,

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ou seja, de Beijing. O aumento do poder de decisão, planejamento,dinamização da produção, fixação dos preços das mercadorias, comprade materiais e de matéria-prima, utilização de recursos, prêmios, apolítica salarial, gerência, administração dos quadros e manejo dosrecursos, tudo isso gradativamente fugiu da alçada da burocracia estatal.

O Estado, inicialmente temeroso com o perigo social queprovocam as demissões, concordou com a política de remanejamento.Soube, a tempo, que engessar a economia em nome do emprego seriaestratégia equivocada. Melhor, então, criar indústrias incentivando aconcorrência. Apoiar a diversificação da produção e premiar o bomtrabalhador pareceu o sensato.

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A formação de quadros para atender a demanda exigida peloprogresso industrial é em parte suprida pelas universidades. Ao contráriodo Brasil onde instituições de ensino superior respondem poraproximadamente 90% da pesquisa científica, na China, as ForçasArmadas e as próprias indústrias criam e desenvolvem ciência etecnologia.

A Universidade de Beijing, fundada em 1898, uma das maisantigas, ocupa importante lugar na sociedade. O movimento estudantilde 1919, por exemplo, é marco na história do século passado. Mesmosendo a maior universidade chinesa, com 12 mil estudantes, 2.800docentes e pesquisadores, 1.200 estudantes de pós-graduação, 500assistentes, além de 160 professores titulares, se comparada aogigantismo das universidades brasileiras, é pequena. A Universidade deBrasília, por exemplo, longe de ser a maior do Brasil, tinha 25 milestudantes em 2001.

A estrutura do ensino superior chinês lembra a estrutura deensino superior japonês. A Universidade de Beijing tem vinte e cincodepartamentos: doze de ciências naturais e treze de ciências sociais eletras. O número de estrangeiros cresce a cada ano, provenientes dedezenas e dezenas de países. A presença de professores visitantes expressa-se no intercâmbio acadêmico. Japoneses, norte-americanos, holandeses,

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canadenses e alemães foram pioneiros, entretanto, nas Américas, aUniversidade de Brasília destacou-se como uma das primeirasinstituições científicas a firmar acordo de cooperação com a China,em 1988.

A Universidade de Beijing nos anos 80 contava com 72 áreasde especialização. Línguas orientais, mais o russo e o inglês, eram oforte do Departamento de Letras. No campus universitário, de 150hectares há dez restaurantes. A Universidade paga moradia e alimentaçãopara seus estudantes. Fechada durante a revolução cultural, seusprofessores de sociologia rural foram obrigados a viver com ocampesinato. Os antropólogos especialistas em minorias étnicas tiveramque aprender a língua e os costumes das minorias estudadas por eles,por meio do trabalho e da convivência. Professores de engenharia civilforam enviados para construções; os de pedagogia para escolas; os demedicina para hospitais e assim sucessivamente. A revolução cultural,extremamente criticada por quase todos da comunidade acadêmica,deixou marcas profundas por seu radicalismo. Mas, quer queira, quernão, com seus equívocos e suas doutrinações, transformou-se em páginaindelével da fantástica história da revolução chinesa.

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Exigüidade de solo cultivável em todo território e suaconcentração em poucas mãos levaram a reforma agrária, sob a bandeirada revolução socialista, a ser reconhecida pelo seu radicalismo eeficiência. Os senhores feudais, por meio do monopólio do poder,exploravam o campesinato, seja recebendo metade dos frutos dacolheita, seja cobrando pela moradia e uso da terra, seja exigindotrabalho gratuito em suas lavouras.

Especialistas calculam que, no passado, havia 1.200 impostosexplorando o campesinato. O resultado visível das desigualdades era amorte pela fome. Por isso, a primeira medida adotada após a fundaçãoda República Popular, em 1949, chamou-se Reforma Agrária. O radicalconfisco de bens em mãos dos que não trabalhavam teve grande impactosocial para os sem-terra. As medidas implantadas entre 1950 e 1952

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fizeram renascer o campesinato. Trouxeram responsabilidades coletivasda produção. Isto, posteriormente, abriu as portas para a economiaagrícola na pequena propriedade familiar. O desenvolvimento das forçasprodutivas rurais, em 1953, passou por processo de educação cooperativa.Surgiram então os grupos de ajuda mútua, escolas rurais, cooperativaspara pequenos produtores e o trabalho familiar coletivo nas terras.

Até junho de 1956, 990 mil cooperativas abrigavam 91% dasfamílias camponesas. No cooperativismo, os camponeses recebiam deacordo com a produção que, por sua vez, relacionava-se à extensão daterra cultivada. Na grande cooperativa, remuneravam o camponês pelotrabalho, porque ela mesma comercializava a produção. A partir de1959, enorme número de cooperativas transformou-se em comunaspopulares. Estas se subdividiram em três níveis: administrativo, brigadae equipe de produção. As comunas populares seja por causa da políticade modernização, seja pela desideologização do trabalho e do aumentoda responsabilidade da produção individual agora significam, conquistasdo passado.

As equipes de produção, base da unidade de planejamento,coordenavam as atividades produtivas. Seu trabalho, somado ao dascomunas e das brigadas populares, ajudou a criar disciplina, a organizare a educar as massas camponesas. A renda das comunas e das brigadasera oriunda da própria produção. Seu processo educativo marcouconquistas, apesar de equívocos corrigidos ao longo do processo.

O Estado possuía grandes fazendas, ultimamente absorvidaspor cooperativas. O problema da concentração de terras, fenômenoque tanto aflige a periferia capitalista, acabou-se com a reforma agrária.O temor de os ricos ficarem mais ricos e os pobres, mais pobres, lembraaos ideólogos da modernização que a economia coletiva, responsávelpor inúmeras e pequenas atividades, é instrumento essencial para evitaro desemprego.

Projetos de irrigação, construção e de melhoria das estradas,conjuntos habitacionais e obras de infra-estrutura para o benefícioimediato da coletividade recaem sobre os ombros do trabalho coletivo.A quase totalidade dos números de reservatórios de água para viabilizar,

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tanto a vida nas cidades quanto na agricultura, deve, igualmente, suaexistência ao trabalho grupal. Graças a isso, boa parte da terra cultivávelé irrigada.

A economia agrícola, criada em bases organizacionais coletivas,capacitou a sociedade rural para retirar melhores e maiores vantagensda tecnologia. O uso intensivo do solo, quando bem orientado, dánotáveis resultados. A demanda por produtos agrícolas cresce,completando assim o fenômeno da bola de neve do progresso. Todavia,se grandes são as vantagens da coletivização agrícola, grandes são osproblemas. Nela o agricultor contribui mais com o trabalho do quecom a responsabilidade pelo ganho ou perda. Noutras palavras,recebendo salário, o resto tanto faz. É a chamada falta de compromissomútuo, fenômeno parecido ao existente na propriedade rural capitalista:o trabalhador recebe o salário, mas o lucro, ou o prejuízo é problemado patrão. Entretanto, no Brasil, ao contrário da China, quando existemganhos, estes tampouco se repartem com o trabalhador.

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Invertendo o descompromisso comodista, estabelece-se umasérie de critérios: o primeiro cotizou de forma fixa a produção. Nãodeu tanto certo. O fiasco creditava-se a fenômenos exógenos, osclimáticos, por exemplo. Custou ver a engrenagem da produção agrícolacomo peças variadas, mas dependentes umas das outras. Vale dizer,semeia-se bem mais, se a colheita for mal feita, o resultado não prestará.

Na economia coletiva, salários iguais pagos tanto para quemtrabalhava quanto para quem não trabalhava, revoltavam. Eliminou-se esta isonomia salarial porque corroia a eficiência socialista. Sabe-seque entre humanos não é igual o interesse de todos pelo trabalho.Quem se esforçava muito acabava ganhando tanto quanto quem nadafazia, fenômeno esse idêntico ao ocorrido no serviço público brasileiro,em que professores de universidades que produzem mais ganham tantoquanto os de universidades que produzem menos.

O incentivo à atividade familiar, fruto do labor repartido comjustiça, foi a solução encontrada. As grandes máquinas agrícolas como

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tratores e colheitadeiras do Estado, em sistema de rodízio, servem aosagricultores. O lucro e os prejuízos não são mais do Estado e, sim, dafamília. A ordem coletiva só interfere para solucionar problemasimprevistos, como os causados por calamidades naturais.

Prevenida, a comunidade fixa imposto específico para fundoscoletivos. A grande parte do bolo voltando para a família deu massivaaprovação a esse sistema com remuneração vinculada à produção. Emcaso de quebra de safra, por causa de nevadas, geadas, enchentes ousecas, o camponês recebe ajuda dos referidos fundos.

Maneira encontrada para eliminar a apatia parasitária nascidacom o igualitarismo ideológico refletido na economia dos anos 70 foiestimular o lucro pelo trabalho. Repetindo: o fato de não receberconforme o produzido, de ganhar independentemente da quantidadee qualidade do trabalho, passou a ser considerado como vulgar deturpaçãodo privilégio maoísta de dar a cada um segundo suas necessidades.

Encarado como processo deseducativo, conhecido na periferiamundial como paternalismo estatal, o assistencialismo, sempreobjetivando votos é praticado no Brasil, por meio das bolsas educação,bolsas saúde, bolsas alimentação, bolsas habitação, etc. Depois dareforma na agricultura, com medidas contra a preguiça e prêmios parao trabalho, a República Popular vê na auto-suficiência grande conquistaem favor da segurança nacional, porque depende menos da importaçãode grãos. A renda do camponês aumentou. Cresceu a demanda porroupas, sapatos, viagens e material de construção. Este fenômeno, semdúvida, iniciou a multiplicação das porções de arroz, o milagre chinêsde desenvolvimento.

A modernização da agricultura adequada à realidade social surtiuseus efeitos, porque, na China, não existe o abismo das diferenças declasse. O desperdício encontrado em sociedades em que a riquezaexcessiva vive às custas da pobreza inviabiliza o desenvolvimento. Issoaconteceu no Brasil com o esfacelamento dos altos índices decrescimento conhecidos durante ditadura militar nos anos 70.

Os encarregados do macroplanejamento, conscientes de que amodernização do campo liberaria mão-de-obra, cuidaram para que ela

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pudesse ser absorvida nas diferentes fases da modernização da infra-estrutura. A praga do desemprego, encontrada em todas nações da faceda Terra, acarreta devastadores furacões. Daí, a estratégia de empregar,na construção civil e no campo, a mão-de-obra excedente.

O sucesso da tecelagem, da malharia e da indústria de corte ecostura desenvolvida pelo trabalho familiar na economia informalitaliana, impressiona enormemente as autoridades chinesas que, agora,a incentivam na zona rural de acordo com as tradições artesanais locais.Assim, fomentaram a produção de porcelanas decoradas, produtosalimentícios como frutas secas e conservas, utensílios domésticos feitosde bambu, com grande aceitação no Japão, etc. Em família, trabalha-se com bordados finos para o consumo de mesas sofisticadas na Europa.Exploram a metalurgia, fabricando tesouras e cortadores de unha, etc.Fantasia e criatividade não faltam na manufatura de produtos baratos,consumidos pela população de menor poder aquisitivo espalhada pelosquatro cantos do mundo.

A construção de infra-estrutura no meio rural implantou escolastécnicas. Profissões como a de marceneiro, pedreiro, cozinheiro,costureiros, técnicos agrícolas, tintureiros, sapateiros, técnicos emréplicas de objetos antigos, escultores, hoteleiros, mecânicos deautomóveis, enfim, centenas de ofícios são ensinados nas escolasprofissionalizantes. A mão-de-obra liberada das atividades agrícolasencontra aí, com freqüência, novo universo profissional.

Reter e impedir o êxodo dos mais competentes e produtivos éoferecer preço justo para incentivar o camponês a permanecer no campo.Os obstáculos colocados na vida dos intermediários constituem medidaseficazes que levam o consumidor e o produtor a melhorarem o nívelde vida.

O processo contínuo da política de reforma ataca simultanea-mente várias frentes. Abre as portas para as relações internacionais,mesmo sabendo que tais relações constróem interdependência de difícilreversão entre o externo e o interno. Por isso, a dinamização da economianacional não pode parar.

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Planejamento, preparação da infra-estrutura, educação, ciênciae tecnologia a serviço do progresso industrial, emprego e saúde para asmassas, tudo isso se não fossem função do Estado, não haveria processode construção do socialismo. Experiências positivas no interior e noexterior ganham relevância. O princípio de se apoiar nas próprias forças,trabalhar intensivamente em favor do desenvolvimento integral e auto-sustentável leva em conta a necessidade de persistência na dialética e deoposição à metafísica.

Não exagerar sucessos, nem esconder fiascos. Estudar modelosavançados, como os existentes nos EUA, na Alemanha e no Japãosignifica aprender. Igualmente, modelos tradicionais, podem ter seusméritos, já que, para os chineses política às vezes se confunde commedicina. Nem sempre os antibióticos caros e modernos são os maisindicados.

A política externa, instrumento auxiliar do Estado, colaborana implementação do desenvolvimento. Luxo, salários abusivos,representações de superficialidade e ócio diplomáticos comuns em paísesonde a cidadania não recebe o valor que merece, contrastam com aausteridade e o profissionalismo da diplomacia chinesa cujosembaixadores não recebem em dólares o que é pago a um diplomataitaliano ou brasileiro, em início de carreira, no exterior.

Os princípios de independência, soberania nacional eautodeterminação buscam a paz mundial. As atitudes contra ohegemonismo constituem os princípios em que se assenta a propositivapolítica externa. Não-alinhada, a política chinesa respeita a independênciae a autodeterminação dos povos.

Sente-se com preocupação, a intervenção em assuntos internosde outros países, por colocar em risco a paz entre nações. A queda doMuro de Berlim não trouxe a tão esperada concórdia. Com o fim dabipolaridade, os conflitos internacionais pipocaram. Em 2002,aproximadamente, meia centena deles enlutavam o mundo comincontáveis vítimas. A China acabou igualmente sacrificada na guerracontra a Iugoslávia, país que já não existe mais. O bombardeio, causador

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de mortos e feridos à sua embaixada em Belgrado, executado paraprovocar, é visto em Beijing, como ação premeditada contra acontinuidade do empenho socialista na realização de suas modernizações.Sabe-se, vale repetir, que tais modernizações necessitam de paz no planointernacional.

Melhoria do consumo interno, como peça fundamental nagarantia de adequado nível de vida para a população, resulta do sucessodas vendas de produtos industrializados para o exterior. Entendem osestrategistas chineses que o desenvolvimento econômico dependeenormemente da atmosfera positiva no cenário internacional.Conforme dito anteriormente, os riscos contra a paz mundial não sãoconsiderados mera retórica a favor da segurança coletiva. Opor-se àGuerra Fria e à guerra quente significou, no passado, forte oposição àcorrida armamentista. No presente, vê-se “o escudo antimísseis”, deGeorge W. Bush, como versão moderna do projeto “guerra nas estrelas”,de Ronald Reagan.

Nas Nações Unidas, a oposição chinesa ao poder hegemônicocontinua. Os cinco princípios da coexistência pacífica permanecemválidos, porque neles a política externa chinesa deposita suas esperanças.Dentro de tais princípios desenvolvem-se relações de amizade e boavizinhança, tanto com países socialistas como Vietnã, Coréia do Nortee Cuba, quanto com países capitalistas centrais e periféricos. O casodas tropas estadunidenses estacionadas na Coréia do Sul foi semprepercebido como grave fator de instabilidade. Mesmo assim, adiplomacia chinesa promove diálogo com os Estados Unidos daAmérica, torcendo pela unificação da Coréia do Norte com a Coréiado Sul.

Da mesma forma que o mundo capitalista percebia contristadoa divisão da Alemanha, considerada injustiça histórica contra seu povo,sentimento parecido ocorre na China em relação a Taipé. Daí, a coerênciaem sua ajuda ao processo de reunificação do Vietnã e sua atual oposiçãoà divisão da Coréia.

Relembre-se que, para o Império do Centro, responsável,historicamente falando pela introdução da civilização no Japão por

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meio do budismo, o estabelecimento de boas relações com os nipônicostraduz tranqüilidade. Apesar das cicatrizes históricas, indenizações deguerra não pagas pelo governo japonês, este Estado vizinho é, apesarde suas crises, referência. As conquistas tecnológicas, a disciplina notrabalho e o alto grau de desenvolvimento por ele abraçadas são metasque os chineses julgam igualmente capazes de conquistar para desfrutarda prosperidade, infelizmente, usufruída por poucos povos.

O alto nível tecnológico e as condições de vida presentes sejaem Hong Kong, seja nas zonas especiais ampliou-se gradativamente apartir de 1980 para as cinco zonas econômicas especiais de Shenzhen,Zhuhai, Shantou, Xiamen, Haiman. Em 1984 as cidades litorâneas deDalian, Qinhuangdao, Tianjin, Yantai, Qindao, Lianyungang,Nantong, Shanghai, Ningbo, Wenzhou, Fuzhou, Guangzhou,Zhanjiang e Beihai abriram-se para o exterior. Outras zonas econômicasna faixa do litoral, como Shanghai desempenham, importante papelpara o desenvolvimento.13

Ser desenvolvido não é ter um carro para cada membro dafamília, nem uma piscina por casa. O modelo estadunidense,extremamente desperdiçador e anti-ecológico, não tem serventia paraos chineses. Isso porque ser parte do mundo desenvolvido significabuscar novos paradigmas e elevar a novos patamares o usufruto daprosperidade. Dá-se, então, à qualidade de vida, conotação diferenteda imposta pelo consumismo hedonista. Tudo isso, amparado pelacoerência da tradição confucionista que privilegia o coletivismo e encararespeitosamente o mundo e a natureza como bens de todos e para todos.

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O deterioramento da política de boa vizinhança entre UniãoSoviética e China, refletido em parte nas disputas fronteiriças, teve seuponto crítico em agosto de 1969. A invasão soviética do Afeganistãodisparou o apoio logístico dos EUA, via Paquistão, à guerrilha afegãaproximando Beijing de Washington. Graças ao golpe militar em abril

13 China. Beijing: Editora Nova Estrela. 1999. p. 180-181.

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de 1968 e a assinatura de um Tratado de Segurança afegão-soviético,as relações sino-estadunidenses se intensificaram.

O sólido bipolarismo começou a apresentar sinais de rachaduracom a desenvoltura independente da política externa da China. Aaproximação iniciada por Richard Nixon e aceita por Chu En-laimovia-se suflada pela dúvida de Washington quanto ao seu futurocom Moscou. Em contrapartida, a presença soviética no Oriente Médioaumentava. Cuba, respaldada pela URSS, desafiava apoiandomovimentos guerrilheiros na América Latina, tradicional reduto dosinteresses ianques. A Cortina de Ferro dividindo a Europa pareciaduradoura e impenetrável. Nesse clima, em 25 de outubro de 1971, aAssembléia Geral das Nações Unidas recebia de volta, ao seio daorganização em lugar de Taipé, com dezessete abstenções, trinta e cincovotos contra e setenta e seis a favor, a República Popular da China.

Três foram as condições impostas pela China para orestabelecimento das relações com os EUA: a retirada das tropas dailha; o término do acordo de segurança entre Taipé e os EUA; a extinçãoda embaixada estadunidense em Taipé. Os norte-americanosformalmente honraram tais compromissos. Isso, entretanto, nãosignificou o rompimento das relações econômicas e dos milionáriosacordos comerciais entre os dois países.

O ano de 1971 traz ainda o término do bloqueio de vinte eum anos contra a China. A partir de então, começa o delicado processode liberação de exportações de tecnologia. O boicote de décadas porparte dos EUA não surtiu os efeitos desejados, porque os chinesescresceram industrial e militarmente, sustentados por um processotecnológico, extremamente autônomo e peculiar.

Na visita do presidente Jimmy Carter, solicitaram que asexportações bélicas para Taipé fossem reduzidas. Enquanto isso nãoconcretizar, o relacionamento sino-estadunidense permanecepotencialmente conflitivo. Desta feita, o contínuo aumento das vendasde armas, deixando o lobby da indústria bélica falar mais alto que adiplomacia dos EUA não favorece a paz regional.

A morte de Mao Tsetung, em 9 de setembro de 1976, jamaissignificou o abandono do anti-hegemonismo. Restabelecidas as relações

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diplomáticas com os EUA no dia primeiro de janeiro de 1979, oimpacto da medida teve conotação, sobretudo política. Isto porque astrocas comerciais com os EUA, como se sabe, iniciaram-se bem antese estavam em franco processo de expansão.

Quanto ao Brasil, sua diplomacia acordou estabelecer relaçõescom a China em 15 de outubro de 1974, depois que dezenas de paíseslevaram suas embaixadas da ilha para o continente. Apesar da demora,ainda assim a diplomacia brasileira conseguiu deixar o Paraguai paratrás, país que até 2002 mantinha relações diplomáticas com Taipé.

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O maior problema dos Estados Unidos com a diplomaciachinesa ainda resta sendo Taipé porque autoridades norte-americanasrecusam-se a abrir mão do controle econômico-militar exercido nessaparte do mundo. Esquecem a Declaração do Cairo e a Proclamação dePotsdam favoráveis ao retorno de Taipé à China. Guardando a ilhacomo um coringa, uma carta para jogadas futuras, os EUA torpedeiammínimos gestos de aproximação, mesmo sabendo que Taipé, com asarmas nucleares de hoje em dia, deixou de ser o inexpugnável porta-aviões.

As modernizações socialistas têm a ver com a política em favorda futura e almejada reintegração. A China, por exemplo, aberta paravisitas de familiares, não importando onde residem, incentiva empresáriosde Taipé a investir na República Popular. Engrossa, assim, os expressivosmontantes financeiros aplicados na pátria mãe pela comunidaderesidente no exterior. O cidadão da ilha visita a RPC munido de simplescarteira de identidade. Exigi-se passaporte só para os estrangeiros!

A política de salvaguarda da paz atende plenamente à estratégiada prudente reaproximação, passo a passo, porque sabem que aresistência contra a unificação não provém somente dos Estados Unidosda América. Por isso, a diplomacia incentiva políticas de boa vizinhançacom os países asiáticos. Os mencionados conflitos fronteiriços com oVietnã, logo depois da guerra contra os EUA, se no ocidente parecemcoisas de passado distante, na China não; sempre que necessário, são

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recordados por causa do enorme apoio fornecido durante a guerravietnamita, para expulsar os invasores estadunidenses.

Principalmente depois do esfacelamento da URSS e da trocade embaixadores entre os EUA e o Vietnã, a China trabalha em favorda intensa aproximação com os vizinhos Vietnã, Laos e Mianmar. Oestabelecimento de relações diplomáticas entre os ex-inimigos mortais,Estados Unidos e Vietnã, surpreendeu no ocidente, mas não àdiplomacia chinesa. Logo após vencer a guerra contra os Estados Unidos,inclusive com ajuda de armas fornecidas pela China, a ocupação doCamboja por tropas vietnamitas, com apoio soviético, significouempecilho no relacionamento sino-vietnamita.

A República Popular, radicalmente contrária à política de duasChinas, não aceita interferências estrangeiras em assuntos internos. Deabril de 1984 até a viagem de George W. Bush, em fevereiro de 2002,são tecidas diferentes avaliações sobre as visitas dos mandatários norte-americanos. Oficialmente, se alega que graças a tais jornadas, odesenvolvimento das relações se aperfeiçoa; a política externa dos doispaíses exibe profundas divergências, apesar de convergências, como,por exemplo, as relacionadas ao Afeganistão.

A China continua criticando o estocamento de bombasnucleares pelos militares norte-americanos em pontos da Europa, noJapão e Coréia do Sul. A política estadunidense para os países emdesenvolvimento é observada com apreensão e reservas. Apesar disso,o comércio sino-americano avança em ritmo acelerado, ainda queresistências do governo dos Estados Unidos à exportação de ciênciaavançada continuem. Mas a recusa em repassar tecnologia de ponta ecertos bloqueios científicos, longe de inviabilizar avanços, terminaramdando prejuízos a exportadores dos EUA.

Sabendo da importância da China para suas exportações e porcausa da independência do desenvolvimento científico chinês, e daexistência de outros parceiros, os Estados Unidos da América agoraatendem à maioria dos pedidos de importação envolvendo tecnologiade ponta. Impedem, porém, a seus aliados, como, Israel de vendertecnologia de última geração.

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O Vietnã, reunificado em 1976, contava nos anos 1980 comimpressionante contingente de, aproximadamente, 1 milhão desoldados. A permanência do exército vietnamita no Camboja, depoisda queda do regime de Pol Pot em 1979, continuava apoiada pelossoviéticos, azedando o relacionamento entre China e Vietnã. Terminadoo conflito com os EUA, a URSS forneceu apoio militar ao Vietnã,usando bases abandonadas pelos EUA no Camboja; substituiu, assim,a presença estadunidense naquela parte do mundo. Entendendo oschineses a hegemonia soviética no sudeste asiático tão nefasta quanto àdos Estados Unidos na América Latina, reforçaram sua oposiçãodiplomática à ordem do poder bipolar.

A intervenção norte-americana no Chile, com o apoio ao golpecontra Allende em 1973, com as manobras sujas contra os sandinistasna Nicarágua, na Ilha de Granada com a derrubada de Maurice Bishopapoiada por dois mil soldados dos EUA, ou no boicote a Cuba, recebeuprotestos e condenação explícita de Moscou. Por essa razão, ou, talvez,porque autoridades em Beijing na época estivessem envoltas emgravíssimos problemas de guerra em sua vizinhança geográfica, acondenação chinesa parece não ter tido a ressonância que a esquerdalatino-americana de inspiração maoísta esperava. Do outro lado domundo, os conflitos na península do Hindustão reforçavam a rebeldiachinesa contra a ordem bipolar. Demonstraram a oposição chinesa aprojetos soviéticos que pretendiam transformar essa região eminstrumento da ampliação hegemônica.

Para a diplomacia chinesa, o perigo da guerra nuclear, por seupoder autodestrutivo, transforma todos em perdedores. A guerraconvencional, renascida sob novas modalidades, pode também significaraquecimento para intervenções mais ferozes e letais. Tome-se comoexemplo desse aquecimento as intervenções ditas cirúrgicas quando dainvasão dos EUA no Afeganistão, no Iraque, durante a Guerra do Golfoe na ex-Iugoslávia.

A crise social vivida na Federação Russa, causada pelodeterioramento constante das condições de vida das massas, depois doabandono do socialismo, a queda do prestígio e o atual papel secundário

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da diplomacia russa na arena internacional, não impedem esforços paramelhoramento progressivo de suas relações com a China. Semcomplexo de superioridade e com prudência para não causarsusceptibilidades num país hoje politicamente fraco, porém, até passadorecente tido como superpotência mundial, consultas realizam-seperiodicamente entre Beijing e Moscou. O comércio dos dois aumentasignificativamente. O intercâmbio acadêmico, econômico, militar ecomercial é intenso. Obstáculos do passado, como a presença de tropassoviéticas no Vietnã, nas fronteiras com a China, intervenção noAfeganistão, não existem mais. As relações com a Rússia, apesar do seuestoque de armas nucleares, não significando a ameaça apresentada nopassado, estão livres de arestas igualmente para projetos de cooperaçãotransfronteiriça em suas gigantescas linhas divisórias.

O número de comerciantes ou de simples cidadãos russosbuscando, na China, gêneros alimentícios, roupas e utensíliosdomésticos para revender na economia informal de suas cidades,representa um comércio-formiga de grande volume. A China vê nestecomércio um saudável intercâmbio...

Não existe, como antes, a presença da URSS impedindo aexpansão da influência chinesa na Ásia. A necessidade contínua demodernizar suas Forças Armadas, sua economia, sua política científicaleva à busca de boas oportunidades com Moscou. Isso impede de ver aex-União Soviética como poço seco e esgotado. Tal visão aporta efeitossob múltiplas formas. É esperança na política externa atrelada e conjugadaa estratégias externas e internas. Lembra a releitura que os chinesesfazem de seu socialismo em ininterrupta atualização de princípiosadaptados aos diferentes desafios nas relações internacionaiscontemporâneas.

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A glasnost e a perestroika, tão aplaudidas pelo ocidente quantoculpadas pelo desmantelamento da União das Repúblicas SocialistasSoviéticas significaram enorme ameaça ao processo de renovaçãoadotado pelo socialismo chinês. Subestimadas pelos especialistas emrelações internacionais, a glasnost e a perestroika, arquitetadas pela

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nomenklatura comunista soviética, sopraram como um vendaval emBeijing. Não tivessem sido contidas a tempo, levariam a RPC aomesmo cadafalso em que a URSS se enforcou.

Inclusive a morte, em 1989, do presidente do Partido ComunistaChinês, Hu Yaobang, de tendência liberal, foi usada nas disputas emBeijing influenciadas pelas reformas que implodiram o comunismoem todo o Leste Europeu encabeçadas no vizinho país por MikailGorbatchev.

As idéias ocidentais de democracia, menos em favor do bemcoletivo que a tradição de organização social oriental, cristalizaram-seem grupos estudantis, notadamente entre universitários da Universidadede Beijing. Apoiados, provavelmente financiados pela CIA, segundoinformações obtidas na Associação para a Compreensão Internacionalda China, não apenas construíram réplica em gesso da Estátua daLiberdade no coração simbólico da capital, ou seja, na Praça da PazCelestial. Sabotaram também linhas férreas e de transmissão de energiaelétrica, para provocar o desabastecimento e o caos urbano em favorde uma revolta popular.

A inicial tolerância ao movimento, no Ocidente chamado dePrimavera de Beijing, a tempo percebeu-se como o advento perigosodo caos: o mesmo caos que aniquilou a União Soviética. De acordocom a tradição do comunismo chinês, optou-se pela manutenção daordem pública em favor da segurança humana de um quinto dapopulação mundial. Por causa disso, o então Primeiro-Ministro LiPeng e Deng Xiao Ping afastaram o presidente do Partido ComunistaChinês Zao Ziang, tido como espécie de “Gorbatchev chinês”, massem a fama que gozava o russo no exterior. Reprimiram severamentelutas faccionais e manifestações que, se prosseguidas, seguramenteprovocariam guerra civil interrompendo o processo de desenvolvimentoem curso em favor das massas.

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O retorno de Hong Kong sem os tropeços previstos pelosprofetas do apocalipse e o sucesso na recuperação de Macau, preparamos espíritos para a realização do sonho cada vez mais acalentado que é

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a reunificação com Taipé. Da mesma forma que a prosperidadecapitalista não fugiu de Hong Kong, acreditam os chineses dos doislados, também não fugirá da ilha. A população de ambas as partescontinuará administrando seu presente e seu futuro. O partido comunistanunca falou em alterar o modo de vida e o sistema econômico-social deTaipé. As leis que lá vigoram seriam fundamentalmente mantidas,conservando sua posição de importante centro industrial internacional,respeitando-se os interesses dos Estados Unidos da América, do Japãoe da União Européia.

Com o sucesso demonstrado, a reintegração de Hong Konginjustifica o medo de Taipé, inflado por meio de diuturna e intensapropaganda em favor de duas Chinas. As zonas econômicas especiaisem cidades litorâneas, inclusive Hsiamen, atraem multidões de turistasda Ilha. A reaproximação seja por meio do comércio, por meio deintercâmbio cultural, ou de troca de tecnologias, há anos mina as basesdo muro, muito mais rígidas na unipolaridade que aquelas do Murode Berlim, símbolo emblemático da bipolaridade.

A volta de Taipé à China e o somado poderio econômico deambas mostrar-se-ão, nas relações internacionais. Sabe-se que a soberaniachinesa sobre a ilha pode ser restabelecida em questão dias. Todavia, aforça bruta não é a melhor conselheira da diplomacia chinesa. O casode Hong Kong, apossado em 1898 pelo Império Britânico, é exemplovivo. Até a água que lá se bebia vinha das nascentes chinesas. Em vez deboicotá-la, usaram a cidade como válvula de escape econômica, numainteligente estratégia de rompimento com o feroz isolamento perpetradopor países capitalistas, inclusive socialistas. Hong Kong constitui típicocaso de paciência como bom remédio. Fora isso, terminado o séculode dominação britânica, ficou a prova de que a perseverança chinesa nabusca de seus ideais permanece a melhor aliada da sua diplomacia.

A paciência chinesa cuida de administrar, com cuidado, suasreivindicações pelas ilhas Spratlys, também reclamadas pela Malásia,Brunei, Vietnã e Filipinas. A posição conciliativa de Beijing sinalizavontade de, ao invés de transformar Spratlys em barril de pólvora,iniciar ali um trabalho conjunto com os países da região, para melhorara exploração dos recursos minerais e pesqueiros.

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A palavra China, aqui tão presente, significa Império do Centro.Estar no meio obriga a ser o fiel da balança, a optar pelo equilíbrio epela inserção ativa no âmago do cenário das nações constituído dericos e de pobres, de globalizadores e de globalizados. Equivale à vocaçãopela condenação permanente dos desequilíbrios internos e externos.Estando a virtude no meio, como reza o velho adágio, a balança chinesa,durante a vigência da ordem bipolar, não se inclinou nem para a Uniãodas Repúblicas Socialistas Soviéticas, nem para os Estados Unidos daAmérica.

A natureza desigual e as brutais injustiças no relacionamentointernacional prejudicam a comunidade das nações. No caso dos paísesperiféricos a experiência histórica demonstra que estes só serãorespeitados, no exterior, depois de, eles mesmos, se auto-respeitarem ea seus povos. Desse respeito advém a indispensabilidade de o Estadoser o promotor da união nacional e do desenvolvimento. Foi exatamenteisso que ocorreu na China depois de 1949, cuja projeção ativa epropositiva no palco das nações exigiu ações concretas. Um dos maisimportantes continua sendo o incentivo à justiça social, melhor remédiocontra o apartheid econômico e social interno e externo.

A unipolaridade coadjuvada pela mumificação do podermundial, concentrado nas mãos de uma única superpotência, forçouredefinições geoestratégicas em curso nas relações internacionais. Aportadesafiantes realidades para leituras originais de peso representado porpaíses como a China e, por que não, também, do Brasil, na correçãodo desequilíbrio vigente no cenário internacional14 .

O intercâmbio científico-tecnológico, comercial e culturalassociado à valorização do respeito mútuo, sem dúvida, aprofundarálaços preexistentes e cuidadosamente traçados pelo ideal de paz nacomunidade das nações.

O legado cultural chinês a serviço do mundo, como o semprelembrado caso da invenção da bússola, da pólvora, da seda, da

14 Procópio, Argemiro. Narcotráfico e Segurança Humana. São Paulo: Editora LTr, 1999.p. 15-107.

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acupuntura, do macarrão, ainda constrói notável espaço de costumescomuns. Os navegantes enfrentando novos mares15 , criando novastecnologias marítimas e os mercadores, cruzando desertos, abrindo arota da seda, no passado espetaculares agentes da globalização, ressuscitam,no presente por meio da força, criatividade, vigor do comércio e dastelecomunicações.

A enorme ojeriza manifestamente devotada, desde 1949, pelaexclusão, pela opressão e pelas desigualdades sociais, conduziu os chinesesa ciclo vigoroso de prosperidade. Sabedores de que a corrupção setransforma em ameaça à soberania de qualquer país, o investimentoem leis justas e aplicáveis é prioridade constante do Estado. A vigilânciacívica, o processo de resistência em passado recente contra a ordembipolar, vale dizer, a divisão do mundo em dois blocos projetaram adiplomacia chinesa que agora desempenha papel protagônico na lutacontra a monocultura do poder mundial. Inclusive, porque a sabedoriaensina não colocar todos os ovos em um único cesto. Prova disto é aabertura de seu leque procurando estreitar laços com o maior númeropossível de nações: nações ricas e pobres, desenvolvidas e subdesenvolvidas.

A diversidade do comércio, conseqüência da diplomacia debons resultados, associada a esforços concentrados na promoção humanade 1.295.330.000 de pessoas, demonstra ser a política em prol dosdireitos humanos, necessariamente a mesma política simpática aoplanejamento familiar. Direitos humanos significam políticas em favordo pleno emprego, da segurança e da construção de moradias. Lutarpelos direitos humanos é torcer pela paz, ser contra a fome e contra aviolência, seja ela a violência da corrupção, ou a violência do narcotráfico,entre outras.

Sem mitigar esforços na perseguição aos corruptos, robustecendoa economia nacional, criando e redistribuindo riquezas, os chinesesreforçam a filosofia de ação em prol do desmonte dos mecanismos doconflito e da dominação. Em resumo, direitos humanos, na suaconcepção, significam paz e prosperidade. Para os chineses, mais

15 Ver: Shixiu, Zhou. Medeiros dos Santos, Corcino. O Descobrimento da América pelosChineses. Porto Alegre: Edipucrs, 1992.

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importante do que votar, organizar eleições às custas de milhões dedólares para satisfazer o voraz apetite da indústria das eleições, éproporcionar ao povo o acesso aos benefícios da saúde, da educação, dasegurança, do emprego e da certeza de se ter à mesa o arroz de cada dia.

Essas prerrogativas traduzem o direito inalienável e intrínsecoà condição do usufruto da cidadania. Cada país tem sua cultura, seusvalores e sua visão de mundo. O tempo da conversão a ferro e a fogopassou. Mas, a política fundamentalista estadunidense ainda teima emforçar o mundo inteiro a adotar a democracia de seu paraíso ideológico,ensinando que “cada povo tem o governo que merece”.

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O modelo de organização política nascido na França, no ReinoUnido e, posteriormente, readaptado nos Estados Unidos da América,descrito na obra de Alexis de Tocqueville “Democracia na América”16,útil para sociedades com história e bases em que a democracia dariacerto, ao ser transformado em receita para todas as nações, insistentementeesquece as particularidades culturais e filosóficas presentes no espíritode cada povo. Neste sentido, demonstram coragem civil as sociedadesque se batem pela salvaguarda das especificidades culturais e salvaguardado respeito às tradições.

Países asiáticos e islâmicos com freqüência acusados pela mídiaocidental de desrespeitar direitos humanos, na verdade, costumamresguardá-los mais do que na capital da democracia globalizadora, queé a cidade de Washington. Tudo depende da ótica como são vistos osdireitos das gentes. O respeito aos mesmos deverá deixá-los fora doalcance da camisa de força que lhes reserva a ideologia dominante.

O dinamismo na sustentação de interesses nacionais no planointerno e externo, a interdependência, o trabalho conjunto e o intensocomércio com países dos cinco continentes criam imunidades aprovocações de natureza exógena. Por exemplo, a agressão à Embaixadada China, em Belgrado, e o incidente aéreo nas proximidades da ilha

16 Ver: Tocqueville, Alexis. Democracia na América. São Paulo: Ed. Martins Fontes, 1998.

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de Hainan, graças à prudência dos formuladores da política externa daRepública Popular impediram o alastramento da guerra desejada pelosinimigos da paz.

Poucos imaginavam que o covarde bombardeamento e asatrapalhadas estadunidenses ao enviar a aeronave EP-3 para tão próximodo espaço territorial chinês, resultariam na insigne coesão internadaquela sociedade. As pressões mal feitas, os obstáculos colocados contrao crescente desenvolvimento da economia chinesa esfarelam vastossentimentos pró-americanos na juventude até poucos anos atrássimpática aos Estados Unidos da América. É por isso que o prestígiodos EUA corre o risco de se esfacelar, como o gesso, sob a chuva, dacópia da Estátua da Liberdade erigida quando dos acontecimentos napraça Tiananmen, em 1989.

No calor da crise dos vôos espiões, eufemisticamenteadjetivados como de reconhecimento, a maciça votação na Câmarados Representantes dos EUA condenando a China por violações dosdireitos humanos, interpreta-se como “embirrância” perigosa. Issoporque mescla direitos humanos a politiquismo paroquial. Amesquinharia de se misturar direitos das gentes com a inescrupulosapolítica do poder leva a perpetração de calúnias em nome da liberdade.17

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A mídia, abastecida por um punhado de conglomerados comoa United Press Internacional, Associated Press e France Presse, entreoutras, transforma a informação em instrumento de guerra ideológica.Essas agências defendem e zelam por interesses de seus governos e deempresas transnacionais, sabendo muito bem transformar verdades emmentiras e vice-versa; são as maiorias responsáveis pela ditadura dopensamento único que tanto intoxica e envenena o sistema democráticono seu todo. A alienação e a apatia impedem sociedades de libertarem-se dos grilhões da tão trágica ditadura do pensamento único.

17 Procópio, Argemiro. Da Amazônia ao Tibete. Correio Brasiliense, Brasília, 15 de maio de2001, p. 5.

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Qualquer governo ou instituição que ameacem a ordemestabelecida, ou interesses abraçados por tais conglomerados dainformação, dificilmente sobreviverão na guerra suja da imagem. Poresta razão, saber separar o joio do trigo, para construir arquétipo deinformação a serviço da paz e da compreensão mundial, é para osserviços de imprensa, de documentação e de divulgação da RPC tarefaprioritária.

Os interesses da poderosa máquina da indústria cultural dopoder unipolar agem por detrás do biombo do poder, usando em seufavor a banalização dos direitos humanos. A bandeira da justiça comfreqüência se levanta não em defesa do homem, mas como instrumentode ampliação de áreas de influência.

Os países da periferia mundial, por exemplo, são vítimasconstantes da inescrupulosa guerra da imagem. Emblemáticas, asindústrias da formação de opinião, como as editoras, fundações departidos políticos, certas igrejas e organizações não- governamentaissão o braço forte da globalização a serviço dos detentores do podermundial.

Sabedores da gravidade da dominação cultural e econômicaem tempos anteriores e posteriores aos atentados contra as duas torresem Nova Iorque, símbolos da prosperidade capitalista, e do ataquecontra o Pentágono em Washington, para os chineses as violaçõesao conceito de soberania nacional e o direito de ingerência pelomundo afora mostram velhos e novos problemas no agitado mar daglobalização.

Sob os ventos da unipolaridade as diplomacias dos países emvias de desenvolvimento, intencionando lutar pelas conquistas eespecificidades culturais de seus povos, no afogamento globalizante,precisam se unir, trabalhando em conjunto, estabelecendo aliançacultural na defesa das tradições que lhe são muito caras, atualmenteameaçadas. A coragem cívica e o respeito mútuo na comunidade dasnações construirão bases para políticas sem subalternidade. Assim, sepodem ver os esforços chineses na arquitetura de uma políticaindependente, sem aceitação de injustas regras impostas pelo poderinternacional dominante.

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As abstenções ou os votos geralmente alinhavados aos interessesdas grandes potências desprestigiam até mesmo a existência daOrganização das Nações Unidas, um organismo que precisa recuperaro respeito da comunidade das nações. Lembra a China as rivalidadesque levaram o mundo a ser dividido em blocos da então União dasRepúblicas Socialistas Soviéticas e dos Estados Unidos da América.Repartiam o globo em áreas de influência para saciar a sede de poder.O alinhamento automático e a resignação, característicos nos temposda Guerra Fria e da bipolaridade, parecem ressuscitados no poderunipolar.

A unipolaridade e sua força militar e econômica-cultural espalhainsatisfações, temor, inclusive porque criam na comunidade internacional,cidadãos de primeira e de segunda classe. Na comunidade internacionalas reações no passado, quando o grupo dos 87 era mais forte, ao menosse faziam ouvir. Hoje poucas vozes se levantam contra a unipolaridade.A maioria comodista torce, quando muito, para que tal poder sucumbasob o peso de suas próprias ambições.

Realidades aparecem pelo mundo afora levando à necessidadede novas decisões na política externa. Neste sentido, precisa-se cunharcaráter propositivo e ativo às determinações tomadas na ONU paraque sua existência se transforme em frutos da paz. Todos os paísesressentem do pouco dinamismo e da importância decrescente creditadapelo poder unipolar à Organização das Nações Unidas.

A cooperação sino-latinoamericana transcorre independente doapoio de instituições financeiras internacionais. Ainda embrionáriapouco prosperará, enquanto permanecerem problemas básicos comoo terrorismo da subnutrição, das pestes, do analfabetismo e da violência.As relações bilaterais e multilaterais, no campo da cooperaçãotecnológica e comercial entre os países em vias de desenvolvimento,são insuficientes. Por dar certo o modelo chinês de desenvolvimento,pelo fato de ele nascer em país com problemas parecidos aos dos pobres,acredita-se que a China se transformará em espécie de catalisadora dasesperanças da periferia mundial.

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Na tradição da compreensão internacional, as intenções nãopodem vir desacompanhadas de ações concretas. São ainda tímidos osresultados da parceria dos países periféricos com a China. Seu volumeapresenta-se incondizente com o conteúdo histórico e com os desejosde seus povos. A pauta de importações, de exportações, a permutaacadêmica, científica e cultural, ontem e hoje, permanece extremamenteaquém das potencialidades. O intercâmbio, por não crescerproporcionalmente à expressão geográfica e populacional, desvalorizaa filosofia da cooperação.

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Interesses nacionais da República Popular da China aproximam-se dos interesses dos países em via de desenvolvimento. Ambos sabemque as desgraças ecológicas advêm igualmente do desenfreadoconsumismo nos países ricos, que exaurem a natureza tanto quanto amiséria. Conforme já lembrado anteriormente, a banalização de seinvocar os direitos humanos, misturados a mesquinhos interessespolíticos, tira mérito da importantíssima luta em favor de umasociedade justa e habitável.

Para complicar ainda mais o cenário da manutenção dasdesigualdades na atual ordem mundial, vale repetir, criam-se desonestosobstáculos contra os produtos dos países pobres por meio doecoprotecionismo, do dumping social, do dumping energético e dasbarreiras fitossanitárias.18 A falta de adequado tratamento desses temasna Organização Mundial do Comércio, em que a China tornou-semembro em 2001, limita demasiadamente a entrada dos produtos daperiferia no comércio internacional. Pressões internacionais sofridaspelos países subdesenvolvidos quer sejam referentes aos direitoshumanos, quer as barreiras no comércio internacional, substantivamente,assemelham-se às impostas à China.

Em desfavor dos globalizados, broslam ameaças tambémcontra a soberania. Na América do Sul, por exemplo, quem preservou

18 Ver: Procópio, Agemiro (org.). Ecoprotecionismo – Comércio Internacional, Agricultura eMeio Ambiente. Brasília: Ipea/ Pnud/ Bird, 1984

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até hoje florestas tropicais na região amazônica, como o Brasil, a Bolívia,a Colômbia, o Equador, a Guiana, o Peru, o Suriname e a Venezuela,vive atormentado pelo permanente receio da perda de sua soberaniapolítica nesta área geográfica. Região em que a quantidade e qualidadede água doce, biodiversidade, recursos florestais e subsolo são tesourosincalculáveis para o presente e futuro da humanidade. Por esta razão,urge atuação político-diplomática coordenada no plano bilateral emultilateral a favor do diálogo entre os periféricos. Conscientes dascoincidências da cobiça internacional pairando sobre suas fronteiras,para os países em via de desenvolvimento, o melhor caminho é acooperação na solidariedade19 .

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Repetidamente apresentados como dois mundos antagônicos,um, capitalista, ocupando quase metade da América do Sul e outrosocialista, tomando boa parte do extremo oriente, Brasil e Chinapossuem convergências, apesar da cultura, língua, política, raças eeconomia diferentes. Olhando pelo lado humano, a história da Chinae da América Latina está mais próxima do que se imagina. Que selembre, por exemplo, a presença do colonizador português durante opassado colonial chinês. Das décadas e décadas em que os inglesesroubavam e pilhavam a economia, seja a nossa, seja a deles.

Obstáculos colocados tanto lá quanto cá, contra o processo deemancipação, existem até hoje. As barreiras comerciais já mencionadas,as sobretaxas encarecendo os produtos dessas partes do mundocomprovam a existência de entraves. Isso sem falar das drogas ilícitasque, no passado, arruinaram a China e no presente, eliminam e banalizamo que na América Latina havia de mais caro e precioso: o amor à vida.

A contribuição chinesa, pouquíssima estudada, no domínioda técnica da construção, na introdução de hábitos alimentares, comoo consumo de arroz, foi igualmente neglicenciada no terreno das artes

19 Ver: Procópio, Argemiro. Tratado de Cooperação Amazônica e suas Implicações Ecológicas.In: Ibero – Amerikanisches Archiv. Berlim, 1991.

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no Brasil colonial. Por exemplo, raramente se fala da influência doscoolies, os escravos amarelos trazidos da China na tentativa desubstituição do escravo africano. A lembrança do seu trabalho se fazpresente até hoje. Impressiona pela riqueza. Seus finos detalhesembelezam antigas igrejas das Minas Gerais. Em Sabará, os dragõesfolheados a ouro se misturam aos santos europeus encravados nasmadeiras dos altares. Com a marca dos artesões chineses, orgulha-se obarroco mineiro da contribuição artística dos quatro continentes. Ouseja, do nativo, do escravo africano, dos coolies da Ásia e do colonizadoreuropeu.20

Todavia, a exclusividade dada aos valores da chamada civilizaçãoocidental cristã, nos estudos do processo de formação histórico-socialdo Brasil, esconde a rica visão da influência asiática na construção dasociedade brasileira e latino-americana em geral. É omitido, quasesempre, o aporte dos próprios vizinhos geográficos e das nações africanasna formação do Brasil. O escassamente mencionado, lastimavelmenterestringe-se ao domínio da culinária, dança, artesanato, religião, música,pintura, moda e algumas influências lingüisticas. Esquece-se da variadae rica contribuição de caráter técnico. A filosofia de vida africana eindígena, a contribuição por meio dos conhecimentos técnicosaportados por indígenas, negros e pelos coolies enriqueceram asagriculturas nas Américas, que, generosamente, retribuíram. Graças aseus produtos nativos, como a batata, o milho, a mandioca e o tomate,as Américas estão presentes nas mesas pelo mundo afora.

Ainda que o modelo de desenvolvimento da China, obedecendoa características próprias e inerentes àquela sociedade, não tenha comoser transplantado, o significado do processo de emancipação chinesatransforma-se em referência histórica mundial. Por quê? Por causa dasua serventia ao amparar um quinto da população mundial, comprovandoa viabilidade da construção do socialismo em universos sociaisextremamente problemáticos.

20 Ver: Procópio, Argemiro. Modelo Dissociativo: uma saída para a crise brasileira. Jornal deBrasília, 5.12.1982.

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A lição aplicada pelos chineses na luta contra o subdesenvol-vimento, contra a fome e contra colonialismo, que jogou a nação, nopassado, em verdadeiro mar de lama, não tem porque permanecerignorada e pouco estudada no Brasil. O modelo chinês inicialmentepriorizou a solução dos problemas internos, isto é, produzir e dar decomer ao povo, antes de acumular divisas geralmente queimadas nopagamento de juros de dívidas moralmente injustas. Honrarprimeiramente a vida, o compromisso com a cidadania e, depois, asobrigações assumidas com o estrangeiro, para de cabeça erguida, ingressarna comunidade internacional. Ingresso esse não na qualidade dopedinte, status infelizmente reservado à periferia.

Não custa repetir a imagem da casa construída com basessólidas. Ter o seu controle, para só, depois abrir as portas e negociar deigual para igual com os outros. Isso não é fácil: demanda tomada deconsciência, educação e redimensionamento de prioridades, pontossempre ressaltados na filosofia de ação maoísta.21 Exige banimento detodo um complexo fantasioso que a tantos ilude como filhos daprosperidade capitalista.

A contradição na educação, que ensina a gastar e desperdiçar,fazendo de conta que se vive em paz em oásis de prosperidade cercadopor mar de miséria, limita alternativas e passos para se sair dosubdesenvolvimento.

O caminho chinês resultou de estreita combinação entreestratégia econômica e ideologia revolucionária. Ideologia que mobilizoua nação por meio de políticas públicas com ação comunitária empenhadana eliminação da miséria, não por meio do paternalismo ou dopopulismo. Isso ocorreu, conciliando-se as metas de desenvolvimentocom objetivos da justiça social. Este ponto fundamental da estratégiarevolucionária chinesa superou insuficiências de capital por meio doinvestimento em trabalho.

21 Ver: Citações do Presidente Mao Tsetung. Beijing. Edições em Línguas Estrangeiras, 1972.

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As fases do processo de desenvolvimento chinês, depois de1949, refletem correções e aperfeiçoamentos feitos ao longo do processohistórico, o que evidencia o poder de adaptação do povo diante denovas realidades. Mas, na China, ao contrário da América Latina, nãose deram passos maiores que as pernas. Não foram modernizadas partesdo país em prejuízo de outras porque se combate a dualidade estrutural.Lá evita-se repetir o desequilíbrio do processo de desenvolvimento demodelos como o brasileiro e o russo, entre outros. Modelos quetransformam esses dois países em oásis de prosperidade cercado pormiserável e gigantesco deserto cheio de excluídos.

O despertar, a longa marcha, começa com a queima dos mitosda justiça injusta do poder unipolar. Queima das fantasias da sociedadedo consumo abusivo para poucos da terra mãe dadivosa e, para a maioria,madrasta impiedosa. Concluindo, o desenvolvimento adentrando asportas de um quinto da população mundial significa gesto substantivoem favor do mundo.

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A Sociologia ensina que, quando o desenvolvimento aparece,a onipresença divina encolhe-se. Restringe-se às quatro paredes das igrejase monastérios. Hoje o doente busca o médico antes de pedir cura aDeus. Quem quer emprego, busca trabalho. O pretendente aocasamento, parte para o namoro sem preocupação com promessas edoações em dinheiro que, antigamente, se faziam aos santoscasamenteiros.

Os efeitos do progresso econômico-social implantado no Tibeteincomodam profundamente os defensores das velhas estruturasmedievais da oligarquia religiosa. Oligarquia esta permanentementeinsatisfeita com os resultados do processo revolucionário que cortouas bases de sustentação da integração do poder civil com o poderreligioso. A gesta social chinesa, repleta de mártires e de heróis, ensinae aprende em relação aos atores da evolução histórica. Em todas as

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partes da Europa, a luta férrea e árdua contra a opressão da ditaduraeclesiástica, notadamente do século XI ao XIV da era cristã, deixoulições.

Na Idade Média, a Igreja Católica moldava e dominava oEstado. Hoje, no Tibete, as forças políticas com fachada religiosa, noexílio, pretendem recuperar o poder que detinham até meio séculopassado. O Estado, menos de uma década após a Revolução de 1949,criou políticas públicas. Retirou das mãos dos latifundiários, aliadosda aristocracia monástica, o privilégio da posse da terra. Acabou,simultaneamente então com o monopólio da criação do gado. Issovaleu como ponto final na tradição dos privilégios usufruídos peloalto clero e pelas elites dominantes locais. Estes dois grupos impediam,inclusive, o fim da abominável exploração da mão-de-obra dos servos,que em 1950 compunham 90% da população.

Por causa do processo revolucionário em ação, a economia e asriquezas produtivas deixaram de se concentrar em certas castas do clero.Saudosista dos velhos tempos, a aristocracia religiosa, atualmente noestrangeiro, insiste em transformar a espada da fé na espada do poder.

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A mídia ocidental, injusta e propositadamente, omite asvirtudes da atitude laica do modelo de desenvolvimento chinês aplicadono Tibete. A sabedoria de arrumar a casa antes de abrir a porta paravisitas transformou-se em regra básica dos bons princípios dehospitalidade e da boa vizinhança.

Os conhecimentos da vivência sob rigorosas condiçõesclimáticas com baixa densidade de oxigênio ajudaram a criar políticasde desenvolvimento sustentável. Tais políticas disciplinam o fluxoturístico para a região. Atualmente, alimentam-se de investimentosextremamente selecionados para fortalecer a economia tibetana.Inversões adaptadas tanto à cultura quanto ao meio ambiente local.Graças, por exemplo, à luta contra a pornografia e contra a prostituiçãoempreitada pela ética comunista, o Tibete não corre o risco de setransformar em prostíbulo para turistas oriundos de países ricos.

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Livre da poluição visual dos painéis, lá quase não existepropagandas da coca-cola, de cigarro e de bebidas alcoólicas que sujamas lindíssimas paisagens montanhesas. As cadeias de McDonald´s, PizzaHut e outras coisas do gênero fast-food ainda não invadiram Lhasa enem outras cidades da região. Graças a essas medidas tão condenadasno ocidente, as paredes do Monastério Potala, limpas, ainda não forampichadas.

Nos templos, respiram-se tradições, respeitadas e mantidas vivasque causam inveja a outras religiões e igrejas no Ocidente transformadasem vítimas do seu próprio processo de globalização.

Graças à rigorosa política do governo central, apoiada pelotradicionalismo da população tibetana, inexiste lá o mercado de sexoinfantil que atormenta países asiáticos, com as Filipinas, por exemplo.Anda-se em qualquer lugar, a qualquer hora sem o perigo de serassaltado. Desconhecem-se casas noturnas com o som ensurdecedorda poluição sonora da techno-music, heavy metal, roubando o silênciodas montanhas ou interferindo no ritmo piedoso da musicalidade dasorações nos templos.

Nas cidades ainda se desconhece o turismo regado a drogas, talcomo o conhecido nos Países Baixos, México ou Tailândia. Em resumo,essa parte da China tão bem conservada culturalmente falando, é hojeo que é graças ao respeito que os tibetanos guardam por sua história.Acrescente-se a isso, sua determinação de zelar e lutar por suas tradiçõesainda não afetadas pela visão de mundo da democracia estadunidense.A religiosidade popular é exemplo da liberdade religiosa usufruída egarantida naquela parte da China, livre da decadência capitalista que,no ocidente, afugenta fiéis de igrejas e esvazia vocações os conventos.

A ajuda dos Estados Unidos da América aos separatistas parteda clássica estratégia geopolítica dos dominadores de dividir paraimperar. A intensidade desse apoio transformou-se em problema nasrelações internacionais, envolvendo, inclusive, a Índia. Essa intromissãopode aportar destruições e desgraças, abrir chagas incuráveis em umdos recantos da terra onde a religiosidade popular, das mais autênticas,repassa-se em seculares rituais religiosos budistas mantidos e respeitados.

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Tudo isto porque se luta contra a massificante interferência do poderunipolar. Poder faminto por novos espaços para globalizar, massificare abrir novos mercados para sua dominação econômica e cultural,inclusive por meio de seus filmes violentos e da sua arte.

Manipular a religiosidade popular, semear intriga e discórdiacomo instrumento político em prol do separatismo, é falta de escrúpuloe gesto de desrespeito. Isto porque o separatismo incentiva guerras,coloca em risco vidas humanas. Usar o nome de Deus, o nome daliberdade e os direitos humanos para defender interesses do poderhegemônico, não importa em que país, prova que a políticainternacional, em pleno início do século XXI, despreza as lições dopassado. Toleram-se, infelizmente, crimes hediondos cometidos emnome da democracia contra a paz duradoura, contra os direitoshumanos e contra o direito de autodeterminação dos povos porque,nas relações internacionais, não existe o pacto social. Ainda estamostodos na lei da selva sob o mando do mais forte.

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Há mais de meio século afugenta-se a participação da força detrabalho do menor no mercado. Procede-se desta forma, não por imitarbons gestos de países como a Suécia, Alemanha ou Dinamarca, masporque o socialismo chinês encara como desleal a concorrência dotrabalho do menor ao roubar o emprego do adulto num contexto emque a oferta de trabalho é menor que a procura.

A prática da rigorosa política demográfica proibindo mais deum filho por casal reflete pesadamente na psicologia e na sociologia dafamília. No Tibete, tal medida é extremamente flexível por causa dearraigados valores religiosos desfavoráveis à contenção da explosãodemográfica.

Os cientistas sociais da Academia de Ciências da Chinamostraram que os ganhos na política do pleno emprego correm orisco de evaporar-se no individualismo crescente e na falta dasolidariedade tradicional familiar prejudicada pela lei do filho único.

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Neste particular, antes mesmo desta estratégia de contenção demográficater transformado o herdeiro solitário em “pequeno príncipe”, aRevolução Cultural manifestou-se extremamente enérgica. Mostravao lugar do menor na escola e não no campo ou nas fábricas.

Nova preocupação dos educadores e pedagogos chineses é oque chamam de “tirania” do filho único. Para evitar isso, nas crechessão ensinados os deveres antes dos direitos, fato impensável em certospaíses da periferia capitalista, que tudo exige do Estado, semcontrapartidas. Teme-se que na RPC, não repassando ao filho ou àfilha a obrigação da ajuda em casa e no trabalho, como se procediaanteriormente, se estraçalhe a tradição de sustento e de respeito,obrigatória na proteção dos progenitores na velhice.

Rompendo tradições milenares e feudais de exploração da forçade trabalho da criança e do adolescente na agricultura tibetana,fortaleceram-se políticas públicas em favor do emprego do adulto.Vale repetir, a proibição do trabalho do menor, permitida no budismo,relaciona-se diretamente à garantia do emprego para o maior de idadeem um contexto de mecanização ou informatização das atividades,em que a oferta abundante de mão-de-obra nem sempre se fazacompanhar da procura.

A proibição da exploração da força de trabalho infantil tibetanaconstitui estratégia política inteligente, porque minora a tendência desaída do adulto do campo em procura do emprego nas cidades.Procedendo assim, postergam e apoucam as dimensões do tão temidoinchaço urbano. O capitalismo atrasado na América Latina não faznem uma coisa nem outra: deixa simplesmente suas crianças na rua.

Com freqüência, se esquece da histórica incompatibilidade daescravidão com o capitalismo mais avançado. A razão é simples: oescravo por não receber salário, jamais pode comprar. Fenômenoparecido ocorre nas sociedades em que o ganho do trabalhador nãopreenche as necessidades básicas da sobrevivência. A justa distribuiçãoda renda ganhou, no contexto da revolução social tibetana, substantivaimportância para alavancar processos de desenvolvimento de longaduração.

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Os historiadores Wang Jiawei e Nyma Gyaincain22 apresentamo Monastério de Xalhu, com mais de dois mil anos de história, comoprova milenar da coexistência e do trabalho conjunto entre etnias. Lá,elementos técnicos e estéticos próprios das culturas tibetana e han dão-se as mãos. Esta última é a mais numerosa das cinqüenta e seis outrasetnias da nação chinesa. Xalhu comprova, de alguma maneira, ocasamento de culturas e intercâmbio entre tribos. Prova o quanto émútua a influência entre sociedades no desenho do que hoje é o Tibete.

Também os contatos do reino Tubo com a dinastia Tang, noséculo VII, prolongaram-se por aproximadamente trezentos anos.Abriram espaço para penetração do budismo juntamente com ocomércio de cavalos tibetanos, do chá, de armas, porcelanas, lã,medicamentos, incensos, bronze, etc. Tributos em troca de apoio militare segurança, cobrados dos tibetanos pela dinastia Song, demonstram aforça do Império do Centro no período em que a Europa se debatianas trevas do medievo. Todavia, somente durante a dinastia Yuan de1271 a 1368, do líder mongol Khan Kublai, a região tibetana acabaincorporando-se à China.

A expansão do budismo por quase toda a Ásia, misturandopoder temporal ao espiritual, lembra os privilégios da nobreza medievalcristã na compra e venda de indulgências. Também os imperadoreschineses ofereciam riquezas em troca de promessas e serviços religiososprestados por lamas tibetanos. A palavra choyon descreve relações entrelideranças religiosas com o poder imperial, que se alternavam, ora emprivilégios, ora em subordinação com pagamento de tributos. OImperador Ming, por exemplo, mandava e desmandava articulado coma aristocracia religiosa do Tibete, seja distribuindo títulos de príncipe alíderes locais, seja presenteando terras e incentivando o comércio. Nocaso, a religião e as atividades comerciais aproximavam os povos han,tibetano e outras minorias.

22 Jiawei, Wang; Gyaincain, Nyma: The Historical Status of China’s Tibet Beijing. China:Intercontinental Press, 1977.

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Dentro do campo fértil para alianças entre os povos tibetano ehan, também o povo mongol pouco a pouco fincou raízes. Em 1576,o imperador chinês, atendendo o pedido da tribo Tumet, enviou lamastibetanos para pregar o budismo na Mongólia. Disputas internas entremonastérios e monges por área de influência, brigas por espaço ondese disputa a coleta de esmolas e se explora a devoção popular, não sãomonopólios do catolicismo.

Na região tibetana, pelejas entre lideranças religiosas budistaspela seleção de crianças candidatas a menino-alma, na cobrança deimpostos pelo uso da terra ou pastoreio do gado, na disputa de poderentre os Geloons, espécie de administradores, existem e, no passado,eram manipuladas para servir aos interesses da nobreza no Império doCentro. Desta maneira, a Dinastia Quing ganhou do V Dalai Lamasuporte para o domínio das planícies centrais.

Em 1729, o Imperador criou dois altos-comissariados emLhasa, apaziguou conflitos entre lideranças religiosas cuidando dasegurança do VII Dalai Lama no Monastério de Huiyan Taining. Apóso assassinato de comissários da Corte Imperial, concederam-se poderesextraordinários para o mesmo VII Dalai Lama. No século XVIII, oTibete e outras províncias do império cunhavam moedas de ouro,prata e pagavam pesadas taxas impostas pela corte para que estasustentasse seus luxos e desperdícios. O relacionamento do Dalai Lamacom o imperador não deixava de ser o de súdito, não obstante toda aprática religiosa budista no choyon. Nenhum menino-alma eraconfirmado sem a aprovação do Império do Centro por meio de editoimperial. Isto comprovava que a simbiose do poder espiritual com otemporal é particularidade tanto da história tibetana quanto da históriaocidental européia.

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O século XIX abre décadas de desgraças para o Império doCentro sangrado pelas derrotas sofridas nas duas guerras do ópio. OImpério Britânico, após a conquista da Índia, ampliou seu poder noNepal, Sikkim, Butão, adentrando a China inclusive através da porta

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tibetana. A estratégia de dominação britânica lá perpetrada difere poucodas demais espalhadas pelo mundo: fomentando desavenças, semeandodiscórdias entre a nação han e a nação tibetana, dividindo para governar.Com o avanço do colonialismo, o poder do Imperador se extinguiaem todas as partes da China, inclusive no Tibete.

A preocupação geopolítica dos britânicos em relação aodesiderato de manter a Índia sob seu jugo colonial levou-os a formarno Afeganistão, nas costas do oceano Índico e no Tibete espécie dezonas-tampão, para, de um lado, proteger suas conquistas das eventuaispretensões do czarismo russo e, por outro, conter eventuais rebeliõesinternas dos povos dominados. O poder imperial britânico, destrutivoe arrasador, tentava aniquilar a cultura dos povos dominados, com adestruição de culturas sofisticadas e complexas, tanto filosóficas quantoartísticas. Tentou até apagar a mística dos sufis apoiada no respeito aoamor, mística que teve no afegão de nome Rumi um de seus expoentes.

Os ingleses conquistaram enormes áreas no Himalaia, Butão,Nepal, Noroeste da Índia, Sikkin e Ladak, no Tibete. Tratados desiguaisimpostos pelo colonialismo tornaram a China quase “terra de ninguém”,invadida por russos, ingleses, portugueses, franceses, holandeses,japoneses, entre outros.

Tropas inglesas entraram em Lhasa, um ponto geográficomístico e sagrado do budismo tibetano. Lá o belíssimo, bem conservadoe imponente, palácio de Potala exibe o custo de sua construção emnome da fé. A penetração inglesa deixou em seu rastro um número demortos em combate impossível de contabilizar. Em 1906,involuntariamente mostrando o Tibete como parte da China, inglesesobrigaram a corte imperial a aceitar todas as cláusulas do Tratado deBeijing, nas bases do Tratado de Lhasa.

O distanciamento devido à posição geográfica do Tibete,incrustado no chamado “Teto do Mundo”, os custos, os obstáculosgeográficos de acesso e permanência em terras com poucas condiçõesde cultivo e pastoreio, frio e neve, impedem o trânsito, em boa partedo ano, pelas montanhas. Esses fatores dificultavam a permanênciaprolongada das tropas britânicas no lugar. A solução encontrada foi oclássico processo de corromper, comprar, subornar elites transformando-

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as em representantes das ambições colonialistas. Tal processo, conhecidona trajetória da dominação em outras partes da Ásia, África e AméricaLatina implementou-se igualmente no Tibete.

A teimosia britânica de fomentar a independência do Tibetenão arrefeceu nem com a revolução republicana de 1911, interrompendo2000 anos de história feudal. Pelo contrário, os ingleses usaram eabusaram das falhas e debilidades da recém nascida república, para darcontinuidade aos projetos em favor da separação do Tibete da pátriamãe. Em 1912, os ingleses exigiram cinco condições em troca doreconhecimento do novo governo republicano. Entre elas estava amanutenção da autonomia econômica, a expulsão de oficiais, desoldados e de famílias chinesas do território tibetano.

É desta época a arrogância de autoridades inglesas afixandoplacas em determinados logradouros públicos com os dizeres “proibidaa entrada de chineses e de cachorros”. Pode-se perfeitamente deduzir otipo de democracia e que espécie de direitos humanos ensinavam porlá os cristãos ingleses, impedindo contradizer uma vírgula sequer detratados sustentados pela força de armas. Apesar disso, no dia 23 dedezembro de 1912, a diplomacia chinesa declarava que nenhum país,exceto a própria China, possuía o direito de intervir em assuntos internostibetanos.23 Esta resposta corajosa, na conjuntura internacional daépoca, pôde ser dada porque naquele momento a coroa inglesamostrava-se mansa, temerosa das intenções de assédio dos czares russos.

No mês de maio de 1919, a Inglaterra exigiu do GovernoChinês sentar-se à mesa de negociações, para tratar de matéria pertinenteàs fronteiras tibetanas e chinesas. O parlamento de Sichuan assimrespondeu: “Sendo o Tibete parte do território chinês, inexistemfronteiras entre a China e o Tibete. Aceitar redefinir a fronteira é consentirtacitamente que o Tibete se separe da China”.24

Na primavera de 1921, aproximadamente 20 mil Lamas, dostrês maiores monastérios de Lhasa, em rebelião, procuraram expulsar

23 Jiawei, Wang; Gyaincain, Nyma: The Historical Status fo China’s Tibet. Beijing, China:International Press, Sept, 1997. p. 11924 Idem, ibid. p. 139.

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os ocidentais, fechar escolas britânicas e proibir o uso de roupas ecostumes à moda ocidental considerados não apropriados à moralreligiosa budista. Mesmo assim, a contínua guerra civil espalhada pelaChina no final dos anos 20 e década seguinte, abre espaço para certosgrupos da elite tibetana pró-Inglaterra. Todavia, com a eclosão dachamada guerra da resistência contra a agressão do exército imperialjaponês, de 1937 a 1945, o governo central, aliviado das pressões inglesas,conseguiu dinamizar trabalhos da comissão para assuntos mongóis etibetanos. Noutras palavras, a normalização das atividades de Beijingcom o Tibete e demais regiões manifestou-se nesse período de guerra,porque os ingleses tinham como preocupação a doutrina da contenção.Queriam conter a expansão do imperialismo nipônico. Em face de talprioridade, a questão tibetana entre os ingleses e seus aliados norte-americanos praticamente desapareceu durante a Segunda GuerraMundial, época da aliança da China contra as potências do Eixo.

Terminado o conflito mundial, vitoriosa a luta contra o nacionalsocialismo e contra o expansionismo nipônico, voltam de novo osinteresses britânicos à tona, plaudindo a independência do Tibete.Pagaram para que membros da elite tibetana se fizessem representar naConferência de Relações Asiáticas, em Nova Délhi, munidos de bandeirae de um novo mapa, retirando o Tibete das seculares fronteiras dentrodo Império do Centro.

A derrocada do nacional socialismo e de seus aliados japoneses,em 1946, ecoou mais tarde, na vitoriosa Guerra de Libertação do povoliderada pelo Partido Comunista da China. A contragosto dos interesseseconômicos do decadente Império Britânico, a revolução de 1949 abriucaminho para banir, de vez, a nefasta influência colonial britânica,francamente a favor do separatismo tibetano. Tanto é assim que, jána primavera de 1950, o governo central em Beijing planejou aexpulsão dos ingleses e de seus aliados do Tibete, medida concretizadaem 1951.

Resolução da Assembléia Geral das Nações Unidas previa queconflitos armados por civis eclodidos internamente, não se caracterizariamcomo invasão. Esta é a argumentação das autoridades chinesas pararefutar o que norte-americanos e britânicos anticomunistas, em revide

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à expulsão de seus compatriotas, passaram a qualificar como invasãocomunista do Tibete.25

Lideranças religiosas de destaque, como o X Panchen Erdeni,enviaram representantes a Beijing. Em audiência com Mao Tsetung,expressaram seu apoio e concordância com a política do PartidoComunista para o Tibete. O mesmo ocorreu por parte do Buda vivo,Geda, que também viajou para Beijing. O Decreto de MobilizaçãoPolítica e Militar para a marcha de libertação do Tibete rezava em seuartigo 50 que “as nacionalidades da República Popular da China, alémde iguais, seguem o princípio da unidade, da ajuda mútua. Opor-se aoimperialismo significa construir na China grande família de váriasnacionalidades, irmãs dentro do espírito da cooperação”.26

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A marcha da libertação, historicamente, jamais se descuidoude transformar a população na maior aliada do processo de paz. Pormeio da colaboração esperava-se minimizar a inclemência do frio e dasdificuldades de abastecimento em áreas montanhosas, responsáveis pelamorte de número elevado de soldados. Daí a obrigatoriedade de astropas respeitarem costumes, hábitos e crenças religiosas dos tibetanos.A prática do saque e do estupro era encarada como indisciplina e punidacom pena de morte.

O alívio com a proibição das práticas de tortura infligidas pelanobreza tibetana contra a oprimida e religiosa população levou-a a sereferir às tropas de libertação, engrossadas pelos próprios tibetanos,como “soldados enviados por Buda”.27

O Buda Geda, antecessor do atual Dalai Lama, envenenadodia 22 de agosto de 1950, era visto pelos ingleses como colaboradordo Partido Comunista Chinês e responsável pela aceitação dos dez

25 Ver: Decreto de Libertação Política e Militar. Beijing, 1951.26 Ver: Xingsheng Xu. Regulations of the Republic of China Concerning Rule Over Tibet (1912-1949). Compiled by China National Center for Tibetan Studies. China, nº 2. HistoryArchives, Beijing, 2000.27 Ver: Departamento Nacional de Arquivos. Arquivo Nacional nº 2, Nanjing.

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termos propostos que sustentavam a política de paz na região. Depoisdo assassinato do XIII Dalai Lama, um rapaz de dezesseis anos, LhamaDondrup, o sucedeu. Em carta datada de 18 de janeiro de 1951, ojovem relatava a Beijing suas novas responsabilidades oferecendo suacolaboração para resolução pacífica das controvérsias.

As relações da cúpula do partido comunista com o XIV DalaiLama e X Panchen Erdeni inicialmente não poderiam ser melhores.Prova disso é que, em 1954, ambos participaram da seleta e importanteConferência Consultiva Política da População Chinesa. Eleitos,respectivamente, vice-presidente da Conferência e deputado diretor,exerceram a mais alta posição até então jamais alcançada por qualquertibetano.28

Não tardou, porém, a eclosão de graves conflitos dos defensoresdo comunismo com os nobres e com a elite religiosa tibetana por causado corte dos seculares privilégios. O processo revolucionário deparou-se com dura realidade: ou partia para reformas na sociedade tibetanaou se desmoralizava, negando os princípios da sua própria razão de ser.

Os donos dos servos e os servos compunham as duas classesexistentes no Tibete. Os primeiros, também donos do poder local,eram minoria, cerca de 5% da população. Possuíam a quase totalidadedas terras produtivas. A estrutura agrária daquela sociedade permitia aessa minoria a posse de praticamente todos os meios de produção. Osservos, além do trabalho forçado, eram punidos com espancamento,corte de orelhas, mutilação de partes do corpo como mãos, pés e olhosarrancados, até execução, tudo dentro da tradição feudal29. Estaverdadeira barbárie, tolerada até meados do século XX, era comparávelao tratamento dispensado, até um século antes, aos negros trazidos daÁfrica para servir ao processo capitalista de produção nas Américas.

O sistema servil tibetano, controlado pela hierarquia religiosae por nobres, amparava-se em códigos canônicos, em leis e em todoum aparato jurídico, respaldado por tradições, dividindo o ser humano

28 Ver: Documentação Fotográfica. História Social do Tibete. China Documentada e Ilustrada.Beijing: Editora Internacional da China. 2001. p. 49.29 História Social do Tibete, China Documentada e Ilustrada. Editora Intercontinental, Beijing:2001. p. 83

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em classes e categorias, vale dizer, entre dominados e dominadores.O julgamento se processava segundo o critério dispensado à classesocial do envolvido. Qualquer servo que se rebelasse contra a ordemestabelecida era condenado à morte. O senhor que matasse o servo, sedesejasse, dava algum dinheiro à família do morto.

A posição da mulher na sociedade civil tibetana não poderiaser pior: além do trabalho servil, recebiam surras, sendo forçadas aosexo com o senhor. O transporte de mercadorias, dependendo detrilhas montanhosas, onde nem cavalos passam, com cargas de até 50kg,fazia-se por humanos. Vez por outra, ainda encontram-se corposcongelados por trilhas altas e afastadas nas montanhas com neveseternas. Além de exploradas no lar, arcando a responsabilidade de todasas tarefas domésticas, a mulher tibetana ajuda a cuidar do gado e dasplantações. A revolução comunista colocou homens e mulheres em péde igualdade, iniciando programa de alfabetização até hoje em curso.Pelo fato de os monastérios budistas privilegiarem o ensino para criançasdo sexo masculino, as escolas públicas dão exemplo não discriminandomeninas.

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Quando as ondas da Reforma Agrária atingiram o Tibete, areação das elites soou imediatamente. Não perderiam, de braçoscruzados, suas garantias e privilégios históricos. Da mesma forma queos senhores feudais europeus lutaram para manter seus castelos eprerrogativas, também no Tibete os nobres e monges em seus paláciose monastérios partiram para o ataque com armas fornecidas pelosanticomunistas ingleses e norte-americanos.

Eclodiu, no ano de 1959, uma rebelião armada. Em favor dosnobres e do alto clero existia a ojeriza internacional por causa da açãorevolucionária do Partido Comunista. Passando pelo território indiano,a Central Intelligence Agency, CIA, levava armas e suprimentos,formando exército, o mais treinado possível. Equipamentos como riflessemi-automáticos, rádios transmissores Made in USA, e pára-quedasapreendidos integram acervo do Museu de História da luta tibetana

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contra a ordem servil. Ainda que sejam imprecisos os números,estimam-se em 100 mil os mortos e feridos, nos dois lados do conflito,que durou três anos.

O suporte fornecido pelos indianos na formação do “Governode Exílio”, em mão de lideranças religiosas conservadoras, contrárias àsreformas comunistas e em favor da separação do Tibete da China,partia da sua estratégia chamada de política do pêndulo, presente nosnegócios exteriores de Nova Délhi, no outrora mundo bipolar.Buscando vantagens em qualquer situação, independente de fidelidadeideológica, a Índia pendia para o vento que lhe trouxesse benefícios:ora para o lado da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, ora parao lado dos Estados Unidos da América.

O apoio ao separatismo tibetano, seguido do íntimo desejo deque ele jamais se concretizasse, assim ocorria por causa da sua serventiana conquista de vantagens financeiras e tecnológicas, principalmentedos EUA e seus aliados.

A resposta chinesa à política indiana relacionada ao Tibete veiomais dura que a esperada: Beijing empreendeu vigorosa política decooperação científica, econômica e militar com Islamabad, o maiorcomprador de armamentos chineses. Tal colaboração ajudou atransformar o Paquistão em potência nuclear; quebrou vantagensestratégicas até então detidas pela Índia, complicando em desfavor deNova Délhi as acirradas disputas na Caxemira.

Com o fundamental apoio logístico fornecido aos EUA peloPaquistão na invasão do Afeganistão depois dos acontecimentos de11 de setembro de 2001, a China redobra suas atenções para com assuas minorias islâmicas, principalmente na província de Xinjiang.Atualmente, direta ou indiretamente contribuindo para a aproximaçãoentre Paquistão e Estados Unidos, os chineses, mestres no jogo de xadrezdiplomático, arrefeceram o entusiasmo indiano pela causa separatistatibetana, orquestrada a partir de Washington e Londres. Causa, essadiga-se a bem da verdade, que dá sinais de esgotamento desde adesaparição da URSS. Isso porque, inviabilizada a política pendularindiana, o Tibete perdeu o valor que tinha no passado no jogo diplomáticoda Índia.

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Não esquecem os EUA, que em 1979, sua grande aliada, afamília do xá Reza Pahlevi, inesperadamente perdeu o poder. Da noitepara o dia, assumiu o comando político do Irã um religioso xiita aserviço da causa islâmica do chamado Ayatolá Khomeini. Nada podegarantir que a nobreza saudita pró-americana não leve ao mesmo fim.Sendo assim, em substituição ao petróleo saudita, as gigantescas reservasdo Mar Cáspio prometem ser a solução. Só que é inviável seuescoamento sem oleodutos que passem pelo Afeganistão. Sabendo sermelhor prevenir do que remediar, os estrategistas estadunidensespensam em opções.

Impossível a penetração no Afeganistão sem o apoio doPaquistão. Improvável o apoio do Paquistão sem o consenso chinês.Até o ano de 2001, a RPC foi a maior fornecedora de armas e a maisimportante aliada do Paquistão nos conflitos com a Índia. Em resumo,hoje a questão tibetana não pode ser trabalhada só pela ótica do ativismoseparatista. Deve ser considerada na complexidade dos interesses porenergia relativamente escassa, como o petróleo, dentro da política desegurança do sistema mundial, desenhado em nova geopolítica.

Por essa e outras razões, Dalai Lama passa mais tempo viajandopelas Américas e pela Europa do que propriamente pela Índia. Maisimportante que isso foi o aparecimento do promissor mercado chinês,de tanto interesse para o processo de desenvolvimento indiano e vice-versa. Mercados transformados em instrumentos alternativos mútuospara frutífera cooperação científico-tecnológica e comercial.

O já não tão viçoso quanto antes apoio de Nova Délhi à causaseparatista tibetana tende a levar a China a ampliar relações com aÍndia, sem romper a cooperação militar com o Paquistão. A estratégiade inviabilizar o apoio ao separatismo tibetano em áreas fronteiriçasindianas removerá, definitivamente, o maior obstáculo para formaçãode novo eixo de poder entre Índia, China e Rússia. Se formado tal eixosurgirá como contrapeso às ambições do poder unipolar estadunidensenaquela parte da Ásia. Daí a razão de Beijing nunca subestimar aaparentemente inocente solidariedade capitalista ao separatismo noTibete!

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Consolidado o irreversível processo que, em 1965, criou aRegião Autônoma do Tibete e concluídas a reforma agrária e outrasreformas democráticas radicais, sepultou-se de vez a ordem serviltibetana. O princípio de autodeterminação das minorias étnicas égarantido pela Constituição Chinesa no Artigo 14, aos mongóis, huis,tibetanos, miaos, lis e korais.30

O separatismo, excelente negócio para forças ocultas, onera obolso da população na construção do arcabouço burocrático estatal.No mundo subdesenvolvido, a criação de novos municípios, provínciase países, todos eles com suas câmaras de vereadores, assembléiasestaduais, seus prefeitos, governadores, secretarias, embaixadores epresidentes desviam dinheiro. Se, bem investido em educação e saúde,certamente contribuiria mais para o processo de desenvolvimento.Quando se trata da construção de novo estado nacional, a estrutura decriação se faz mais cara, pesada e complexa. Enquanto os desenvolvidosse unem, enxugando a máquina administrativa, a criação da UniãoEuropéia é o melhor exemplo, países como a Iugoslávia e a União dasRepúblicas Soviéticas Socialistas esfacelaram-se. Ressurgem fracas einexpressivas em dezenas de republiquetas criadas para satisfazerambições, orgulhos de oligarquias políticas e aspirações paroquiais.

Voltando ao caso tibetano, mesmo nenhum país do mundotendo reconhecido esta parte da China como Estado independente nasquase quatro décadas de existência do chamado Governo de Exílio, ojogo de apoio às intenções separatistas envenena a atmosfera obstruindoesforços em favor da compreensão internacional. Tal apoio é fornecido,principalmente, por meio da criação de poderoso lobby nascido dentrode centenas de associações, organizações não-governamentais financiadaspelos cofres públicos, ou também por doações descontadas do impostode renda em países como Estados Unidos da América, Reino Unido,Canadá, França e Japão, entre outros.

30 Chen Ran. Tibet: from 1951 to 1991. Beijing: New Star Publisher, 1991.

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Instituições de ensino superior, a mídia, igrejas, o meio artísticoem geral, a exemplo da World Artist for Tibete e a Miralepa Fund,buscam apoio político e recursos para o Governo de Exílio.Transformam a nobre bandeira da liberdade de culto no catalisadordos interesses capitalistas no Tibete.

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Devido à impossibilidade de desmentir a história e as reformassubstantivamente melhorando as condições de vida da populaçãotibetana depois de sua libertação da ordem servil, nos EUA e em váriosde seus aliados, manipula-se a opinião pública em favor das cruzadasdo Free Tibete. Usa-se a causa dos direitos humanos na construção deimagem negativa dos chineses da mesma forma que, rotineiramente,mancham a imagem dos países da periferia mundial. Por exemplo, ospaíses amazônicos, entre os quais o Brasil, por causa das ambiçõesmundiais visando as riquezas da hiléia, também caíram na mira deataques de organizações não-governamentais que atuam com verbaspúblicas e doações descontadas dos impostos.31 Povos indígenasacabaram transformados em nações indígenas. Aos ianomaniscontabilizam-se territórios já apresentados como separados das fronteirasnacionais do Brasil e da Venezuela.

A facilidade de comunicação na arena internacional viabilizadapelos avanços da internet, mais a portentosa indústria cultural deHolywood servindo à ideologia dominante veiculam mentiras que, milvezes repetidas, passam a ser verdade. A maior vítima é o público quenão tem no conhecimento da história mundial seu forte, limitadopelo aprendizado da história do ocidente escrita por ocidentais dentrode uma visão de mundo, se não ocidental no seu todo, particularmenteeurocêntrica. Igualmente os interesses econômicos e os egoísmosnacionais falando mais alto deturpam a verdade histórica dando a versão

31 Ver: Procópio, Argemiro. L’Amazonie et la Mondialisation: Essai d’Ecologie Politique.Paris: L´Harmattan, 2000.

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que querem das relações internacionais. Sacrificam assim o compromissopara com a justiça na comunidade das nações.

Apesar das difíceis condições geográficas do planalto tibetano,apresentando altitude média superior a 3.500 metros, o progresso láobservado, graças em parte à cooperação de especialistas de outras partesdo país, surte efeitos. Este tipo de trabalho, cuja metodologia de açãoestá na extensão rural, transformou o Tibete em exportador de maçãsproduzidas em Nyingh e Mainling. O chá tibetano cultivado em Yi’onge Zayu por causa da sua fama e qualidade superior, é produto aceito edisputado no exterior. A produção de grãos em 2001 ultrapassou800.000 toneladas. O PIB apresenta taxas sucessivas de crescimento.

A Argentina, Brasil, Uruguai e o Paraguai, países que compõemo Mercosul, possuem o maior rebanho bovino do mundo, porém,parte do couro é exportada praticamente sem nenhum tratamento,perdendo o valor agregado do seu beneficiamento. No Tibete, indústriasdo couro prosperam.

Em várias partes da Ásia, técnicas do curtume foram ensinadaspor desempregados altamente capacitados da Argentina, Brasil eUruguai, convidados por empresários orientais para repassar as técnicasde beneficiamento, até passado recente, segredo de falidas fábricasprodutoras de sapatos caros, de qualidade e fama reconhecidasmundialmente.

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Quando da visita de estudos ao Tibete, no ano de 1999, notava-se aproveitamento aquém da excelente capacidade da infra-estruturamontada a serviço do visitante. Mesmo tendo saltado de 30 mil para90 mil o número de estrangeiros na região, de 1996 a 1999, era baixaa cifra se comparada à infra-estrutura a serviço do turismo.

Roma e o Papa, atrativos essenciais do turismo religioso cristão,durante séculos mantiveram-se como as principais fontes de divisas daagora poderosa e quinta economia mundial, que é a italiana. Israel, damesma forma, ganha dinheiro por causa de Jerusalém, cheia designificado para os judeus do mundo inteiro. O mesmo ocorre com a

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Arábia Saudita, guardiã de Meca e Medina, cidades sagradas dosmuçulmanos e, por preceito religioso, visitadas pelos que podem, aomenos uma vez na vida.

Estão cientes os especialistas em turismo que também Lhasa eo Dalai Lama, como os outros exemplos citados, constituem formidávelfonte de renda devido a seu atrativo para os seguidores do budismotibetano e de outros grupos místicos. Tanto assim que, apesar dasdificuldades de trabalho no teto do mundo, ampliaram e melhoraramas pistas do aeroporto internacional que atende Lhasa. Oferecem agoracondições técnicas de segurança para pousos e decolagens em grandesaltitudes, inclusive para aviões de grande porte que servem linhasintercontinentais.

Bons comerciantes que são, os chineses estão muito mais deolho nos benefícios econômicos aportados pelo turismo e pelo comércioda fé do que pelo esforço sincero para incentivar sentimentos religiososem favor do budismo. Autoridades em Beijing, há anos, garantem esustentam a política de portas abertas, em qualquer hora do dia ou danoite, para o XIV Dalai Lama. Todavia, propostas feitas para abandonarseu “exílio de ouro” e voltar para Lhasa acabaram recusadas.

Sabe-se que a indústria da auto-ajuda, o ocultismo, o xamanismo,o ensino da busca do nirvana como aspiração final movimentam cifrasmilionárias na televisão, em jornais, revistas e livros. Parte de taisnegócios usa e abusa do carisma criado pela mídia ocidental em tornodo Dalai Lama que, certamente, não é pobre e nem vive na miséria.Daí, a expressão “exílio de ouro” no suporte a um movimento político-ideológico que utiliza o religioso como fachada.

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A condição imposta à Sua Santidade, o Dalai Lama, é a devoltar a viver no Palácio de Potala como líder e mestre religioso. Comonão se pode, ao mesmo tempo, servir a dois senhores, o desejo expressode Beijing é o de que ele atenda aos fiéis budistas, abandonando suacondição de homem político financiado por forças anti-China na parterica do mundo ocidental.

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Poucos fatos comprovam tão bem a liberdade religiosa noTibete quanto os quase 47 mil lamas e religiosos existentes, contabilizandodois por cento do total da população. Os templos tibetanos, quasesempre repletos, as intermináveis filas de fiéis esperando pacientementea hora de, gratuitamente, saborear o chá misturado com leite gordo,servido por monges, comovem a quem presencia tais cenas. Faz pensara quem viu, nos anos de 1970, as igrejas lotadas na Polônia. Cheiasdurante o período socialista, agora rapidamente esvaziam-se. Tal tempodá saudade em muitíssimas autoridades eclesiásticas, agora arrependidasdo seu anticomunismo no passado. Tudo isto, com certeza, leva aentender que o maior inimigo da religião, tida como o ópio do povopor Karl Marx, não é o socialismo, porém o capitalismo consumista.32

Ao visitar Lhasa, impressionou a este autor andar a sós sem amínima preocupação ou risco de ser assaltado. A quantidade enormede monges pelas ruas parece suplantar em número, proporcionalmente,vocações religiosas em qualquer nação cristã na Europa e AméricaLatina. Continentes, esses em que o hedonismo se encarregou de reduzirnumericamente conventos, seminários, juvenatos de freiras e irmãos.Esvaziou monastérios, abadias, ordens e congregações religiosas comséculos e séculos de história. Reduziu drasticamente o número, entreoutros, dos dominicanos, beneditinos, franciscanos, mercedários,trapistas, carmelitas, salesianos, redentoristas, maristas, vicentinos,capuchinhos e oblatos. Por falta de fiéis, missas, vésperas e outrascerimônias religiosas em catedrais, igrejas e templos transformaram-seagora em atrativo para turistas amantes da arte sacra e de riquezasarquitetônicas. Banalizou festividades religiosas. Transformou acomemoração do nascimento de Cristo em dia de se comer leitão ouperu assado com frutas e farofa, em salas decoradas com árvores cheiasde bolas coloridas. A Páscoa, maior festa da cristandade, símbolo daressurreição, vitória da vida contra a morte, representa-se deturpadamentepor coelhos e ovos de chocolate. Triste da vida religiosa tibetana se tivero mesmo destino que o capitalismo hedonista reserva ao cristianismo.

32 Procópio, Argemiro: A Questão Tibetana. In: Renmin Ribao. Beijing, 14 de março de2001. p. 11.

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Na China, jamais tradições religiosas acabam tão poucovalorizadas como a manifestação de fé cristã na parte rica do ocidente.Os exemplos acima mostram a ponta do iceberg da corrosão dos valorescristãos denunciada por adeptos da teologia da libertação. Tal denúnciaencontra ouvidos surdos, principalmente entre o clero de países católicosricos e prósperos.

Queiram ou não seus críticos, o socialismo chinês, com suaestratégia de abertura controlada e seletiva do turismo no Tibete, protegea religião, ao afastar narcotraficantes e visitantes estrangeiros em buscade sexo barato, exótico e da prostituição infantil.33 Procedendo assim,ao menos por lá, tradições religiosas permanecem a salvo da voracidadedestruidora do capitalismo, perpetrada em quase todo mundo contraislâmicos, católicos e outros. Neste particular, a China encontra-se asalvo da contra-reação dos que professam valores religiosos. Isso no afãde destruir o que covardemente destrói a alma religiosa pelo mundoafora, ou seja, o capitalismo hedonista.

As medidas práticas concretas em defesa dos direitos e dadignidade da pessoa na RPC não são divulgadas por movimentos comoFree Tibet e ONGs envolvidas em arrecadação de milionários fundospara amparar realização de campanhas ao gosto da ordem vigente. O járeferido Miralepa Fund, criado em 1994, possui escritórios em váriascidades, dedicando-se à promoção de shows tipo Tibetan FreedomConcerts. De 1992 a 2001, eventos apresentados em São Francisco,Chicago, Nova Iorque, Washington, Tóquio, Sidney e Amsterdãaportam dividendos bilionários. Na capital dos Países Baixos, aapresentação contou com a participação de grupos internacionalmenteconhecidos como U2, Radiohead, Red Hot Chili Peppers e Beastie Boys.

O jornalista Marc Fisher, do Washington Post, rotulou omovimento pró-Tibete como Tibet Chic, um modismo que consegueobter, na mídia, espaço superior ao dedicado a problemas da fome,

33 Ver: Nuevos Avances de los Derechos Humanos en la Region Autonoma de Tibet. Oficinade Información del Consejo de Estado de la Republica Popular China, Beijing, 1988.

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dos conflitos raciais e da discriminação contra minorias e estrangeiros34.Por esta razão, a luta empreitada no conforto, na música, nas drogas eno delírio coletivo das delícias do capitalismo consumista transformouo Dalai Lama em espécie de ícone da despolitização e da alienaçãocapitalista. Tal modismo contagia, além de artistas de Holywood e decantores famosos, universitários, grupos de parlamentares e entidades,todos servidos pela facilidade da rede mundial de computadores. É overdadeiro ativismo individualizado online, fácil de ser empreendido,típico do fenômeno da globalização.

Ao contrário do cristianismo de libertação nascido na AméricaLatina e da mística de engajamento do povo judeu depois do holocaustoao retirar a Terra Prometida do domínio colonial inglês e diferente deteólogos islâmicos identificados com o germe libertário do Alcorão, acampanha pelo separatismo tibetano, amparada na manipulação doesoterismo e de coisas outras sagradas para o budismo, serve a princípiosinescrupulosos postos a serviço do poder unipolar.

Na União Européia, nos EUA e inclusive no Brasil, a propagandamassiva pró-separatismo mostra ter atrás de si a força do podereconômico. Todavia, como todo e qualquer modismo, crescerá tãorápido quanto promete ser sua duração. Como toda e qualquer notíciapela televisão e pela internet, tais notícias, duram um dia só. Semconteúdo social, ignorando que o budismo serviu como cimento naconstrução e sedimentação das bases históricas e culturais do Impériodo Centro, criou-se o mito do Tibete desligado da terra China. Mitoscultivados na interpretação eurocêntrica e parcial da história. Históriacaricata que parece retirar dos asiáticos o direito de interpretação dafenomenologia do seu próprio espírito e destino.

Resumindo, da mesma forma que o progresso econômicoseparou a Igreja do Estado, acelerou os conflitos religiosos dos séculosXVI ao XX no mundo ocidental, tolhendo enormemente o poder dahierarquia eclesial cristã, também o processo sino-revolucionário tornouirreversível a tendência de queda da ditadura eclesiástica tibetana.

34 Fisher, Marc: Faraway Tibet: Peak of Chick. Washington Post, 7 de junho de 1998.www.washingtonpost.com/wp-srv/style/museums/photogallery/dalailama/tibetchic.htm.

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A abominável exploração dos servos pelo alto clero budista, detentordo monopólio da criação de gado e das terras cultiváveis,definitivamente abolida pela revolução maoísta é mancha indelével.Afortunadamente, no processo de secularização da Europa e tambémno da China, as revoluções sociais feriram mortalmente interesses dasaristocracias religiosas. A diferença é que o Papa João Paulo II, humildee contritamente, suplica perdão pelos crimes perpetrados no passado,pela Igreja Católica.35 Do Dalai Lama não se conhecem ainda taisgestos.

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No processo em curso da hegemonia capitalista que,praticamente torna intransponível o fosso entre países globalizados eos que globalizam, a visão ocidental do mundo arroga em seu favor omonopólio da verdade no forjamento da interpretação das relaçõesinternacionais. Ressumbra outras realidades à sua própria imagem esemelhança.

Propositalmente, o presente estudo afastou-se das percepçõeseurocêntricas e estadunidenses acerca da realidade chinesa. Porparadigmas independentes adentrou-se pela organização social de umanação entre as mais representativas na tão fascinante, quantodesconhecida, sociedade oriental.

A superação dos gigantescos problemas e a constante lutaempreendida em favor do desenvolvimento na China, país maispróximo ao Brasil e à América Latina do que geralmente se acredita,servem como reflexão. Valem como referência para o tão sonhadomomento político da eliminação da fome e das injustiças estruturaisperpetuadas no subcontinente americano.

Em rasgos gerais, a presente reflexão analiticamente abraçapilares da evolução social chinesa, pronta para políticas públicascomparadas e para um debate interparadigmático sobre a mesma.

35 Procópio, Argemiro. Da Amazônia ao Tibete. Correio Braziliense, Brasília, 15 de maiode 2001.

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Registra, do passado ao presente, esperanças daquele povo. Povo queentende ser ainda possível, por meio da compreensão internacional, ofortalecimento dos processos de cooperação em favor do diálogo Sul-Sul. Esta possibilidade existe, porque a sociedade chinesa, por meio deseus referenciais teóricos, conseguiu transformar-se no país onde ainteligência nacional permanentemente se articula, em invejávelsimbiose, às massas populares. Isso se faz em respeito ao Estado e emrespeito à coragem cívica de superar adversidades.

Em várias partes do mundo, inclusive no Tibete, tal qual asempresas transnacionais, também lideranças religiosas, nada leigas empolítica, freqüentemente tomam partido em favor do poder dominante.Poder esse geralmente arquitetado fora das fronteiras nacionais emantenedor, entre outras, de ambições econômicas e de rivalidadesgeoestratégicas. No realismo político-social do ocidente, tais conflitostransbordam.

Cabe lembrar, no Brasil-Colônia, século XVIII, o Marquês dePombal expulsando os jesuítas e, noutra parte do mundo, Bismarck,da capital prussiana, Berlim, reprovando a visão transalpina do clero.Ambos denunciavam a fidelidade religiosa católica apostólica, acimade tudo. A obediência às leis ditadas pela chamada Roma Eternaprovocou ferrenhas guerras e disputas entre os poderes espiritual etemporal.

Apesar de nadar contra a correnteza da história, o separatismoinsuflado por interesses do poderio econômico-ideológico imperantepretende afogar em rivalidades étnicas a vitalidade do processo sino-revolucionário, em marcha desde 1949. Ameaças separatistas no Tibete,se efetivadas, deixarão, como na África e na Europa, rios de sangue emseu rastro. Aniquilarão com a paz e com a harmonia necessárias aoandamento dos projetos de desenvolvimento. A primeira e maiorprejudicada, como sempre, será a população civil. Por estas e outrasrazões, longe de ignorar o papel da religião na análise introdutória deuma sociologia da China, este estudo em nenhum momento colocaem dúvida a fé como importantíssimo elemento da vida tibetana.

A presença do autor naquela região, as viagens realizadas a Lhasa,a Nedong e a Xigazê permitiram voltar a um universo de religiosidade

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resguardado pelo socialismo. Universo em processo de extinção noutraspartes do mundo por causa da voracidade com que o hedonismocapitalista destrói tradições e valores religiosos. Por isso, em busca dasindérese na análise sobre a sociedade chinesa, mostra-se que não serácom campanha anti-China e nem com Governo de Exílio que a pazreligiosa se unirá com a paz política.

Concluindo, a revolução chinesa, eliminando oprobriososprivilégios medievais do fundamentalismo religioso da aristocraciabudista tibetana, incomoda aos saudosistas da antiga ordem sustentadapela classe dominante. Em revanche, a união entre o alto clero e olatifundiário desapropriado reforça do exterior campanhas contra asreformas comunistas, visando exumar ou reencarnar o mortório pactodo incenso com a espada.

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3.8 Brasil e Argentina: convergência de desígnios e diferenças de estilo,1945-1955. In: Lladós, J. M. e Guimarães, S. P. (orgs.), Perspectivas:Brasil e Argentina. Brasília: IPRI-CAPES, 2000, p. 335-358.

3.9 Las relaciones internacionales en el Cono Sur. In: Recondo, G.(org.). Mercosur: Una historia común para la integración. Buenos Aires:CARI, 2000, p. 133-138.

3.10 Entre l’Europe et l’Amérique, la Politique Extérieure du Brésilau XIX Siècle (1808-1912). In: Rolland, D./Cervo, A. L./Saraiva, J.F. S. (orgs.). Le Brésil, l’Europe et les Équilibres Internationaux. 1. ed.Paris: Presses de l’Université de Paris-Sorbonne, 1999, p. 193-208.

3.11 Politique Extérieure d’une societé pluraliste: le cas du Brésil. In:Savard, P. e Vigezzi, B. (orgs.). Multiculturalism and the History ofInternational Relations from the 18th Century up to the Present. Milão;Ottawa : Unicopli: Les Presses de l’Université, 1999, p. 291-302.

3.12 A Dimensão Regional e Internacional da Independência. In: Cervo,A. L e Rapoport, M. (orgs.). História do Cone Sul: relações regionais einserção internacional. Rio de Janeiro: Revan, 1998, p. 77-120.

3.13 Vers un nouveau paradigme de politique extérieure: les années1990 au Brésil. In: Roland, D. (org.). Le Brésil et le monde; pour unehistoire des relations internationales des puissances émergentes. Paris:Harmattan, 1998, p. 217-224.

3.14 Apresentação. In: Menezes, A. M./Kothe, M. (org.). Brasil-Alemanha (1827-1997). Brasília: Thesaurus, 1997, p. 3-5.

3.15 Políticas Exteriores: hacia una política común. In: Rapoport, M.(org.). Argentina y Brasil en el Mercosur; políticas comunes y alianzasregionales. Buenos Aires: Grupo Editor Latinoamericano, 1995,p. 21-28.

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ESTEVÃO CHAVES DE REZENDE MARTINS (ORGANIZADOR)

3.16 Política Exterior e Desenvolvimento: Estados Unidos, Brasil eArgentina nos dois últimos séculos. In: Cervo, A. L. e Döpcke, W. Relaçõesinternacionais dos países americanos: vertentes da História. Brasília: LinhaGráfica, 1994, p. 358-367.

3.17 Relações Internacionais do Brasil. In: Cervo, A. L. (org.). O desafiointernacional. Brasília: Universidade de Brasília, 1994, p. 9-58.

3.18 Dos tendencias de la política exterior del Brasil desde los añostreinta. In: Sanchez, J. N. (org.). Política exterior y proyectos deintegración. Quito: Editora Nacional, 1992, p. 171-184.

3.19 As Relações Diplomáticas entre o Brasil e a Itália desde 1861. In:Boni, L. A. (org.). A Presença Italiana no Brasil. Porto Alegre: EST,1990, p. 21-36.

3.20 Archival Materials and Manuscripts in Brazil on United StatesHistory. In: Guide to the Study of United States History Outside theU.S. Nova Iorque: Kraus International Publications, 1985, v. I,p. 233-250.

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4.1 Relações Internacionais do Brasil: um balanço da era Cardoso.Revista Brasileira de Política Internacional. Brasília: , v. 45, n. 2,p. 5-35, 2002.

4.2 A Venezuela e seus vizinhos. Cena Internacional. Brasília: v. 3,n. 1, p. 7-201, 2001.

4.3 Latin America and the Cold War. Via Mundi. Brasília: v. 2,p. 1-14, 2000.

4.4 Sob o signo neoliberal: as relações internacionais da América Latina.Revista Brasileira de Política Internacional. Brasília: v. 43, n. 2,p. 5-27, 2000.

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4.5 A contra-revolução do desenvolvimento. Carta Internacional. SãoPaulo: v. 71, n. 6, 1999.

4.6 Hesitações de uma política periférica. Network, v. 8, n. 2, p.3 - 16,1999.

4.7 Multilateralismo e Integración: Evolución del PensamientoDiplomático Brasileño. Revista Ciclos. Buenos Aires: v. 8, n. 14,p. 205 - 226, 1998.

4.8 Os Grandes Eixos Conceituais da Política Exterior do Brasil. RevistaBrasileira de Política Internacional. Brasília: v. 41, p. 66 - 84, 1998.

4.9 Política de Comércio Exterior e Desenvolvimento: A ExperiênciaBrasileira. Revista Brasileira de Política Internacional. Brasília: v. 40,n. 2, p.5 - 26, 1997.

4.10 Diplomacia Presidencial Cultiva Parcerias Estratégicas. CartaInternacional. Brasilia: v. 35, n. 8, p. 12 - 13, 1996.

4.11 Multiculturalismo e Política Exterior: O Caso do Brasil. RevistaBrasileira de Política Internacional. Brasília: v. 38, n. 2, p. 129 - 142,1995.

4.12 Novos Estudos de Relações Internacionais. Revista Brasileira dePolítica Internacional. Brasília: v. 38, n. 2, p. 167 - 173, 1995.

4.13 A Ordem Internacional. Humanidades. Brasília: v. 9, n. 2,p. 129 - 136, 1994.

4.14 Socializando o desenvolvimento: uma história da cooperaçãotécnica internacional do Brasil. Revista Brasileira de PolíticaInternacional. Brasília: v. 37, n. 1, p. 37 - 63, 1994.

4.15 A Periodização da História da Política Externa Brasileira. Textosde História. Brasília: v. 1, n. 1, p. 49 - 57, 1993.

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4.16 A Cooperação Econômica entre o Brasil e a Itália. Uma perspectivahistórica. Quaderni. Roma: v. 3, p. 189 - 197, 1992.

4.17 A historiografia brasileira das Relações Internacionais. Inter-American Review of Bibliography. v. 42, n. 3, p. 393 - 409, 1992.

4.18 Due secoli di politica estera brasiliana. Relazioni Internazionali. v.56, n. 5, p. 86 - 95, 1992.

4.19 L’historiographie des relations internationales au Brésil. Travauxet Recherches. Institut Pierre Renouvin. v. 4, p. 95 - 108, 1992

4.20 Renascimento e Descobrimento. Humanidades. v. 8, n. 2, p.139 - 145, 1992

4.21 L’histoire de relations internationales au Brésil. Newsletter. v. 4,p. 48 - 48, 1990.

4.22 A política brasileira de limites no século XIX. Revista Brasileirade Política Internacional. v. 28, n. 111, p. 49 - 61, 1985.

4.23 Intervenção e Neutralidade: Doutrinas Brasileiras para o Pratanos Meados do Século XIX. Revista Brasileira de Política Internacional.v. 26, n. 101, p. 103 - 119, 1983.

4.24 Fontes Parlamentares Brasileiras e os Estudos Históricos. LatinAmerican Research Review. v. 16, n. 2, p. 172 - 181, 1981.

4.25 Minas Gerais in the Brazilian Federation. Inter-American Reviewof Bibliography. v. 23, n. 3, p. 319 - 320, 1978.

4.26 Os primeiros passos da Diplomacia Brasileira. RelaçõesInternacionais. v. 3, n. 3, p. 43 - 62, 1978.

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RELAÇÕES INTERNACIONAIS: VISÕES DO BRASIL E DA AMÉRICA LATINA

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5.1 Revista Brasileira de Política Internacional (desde 1993: ano 36).

5.2 Coleção Relações Internacionais. Editora Universidade de Brasília(desde 1994).

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7.1 Vinte dissertações de mestrado concluídas.

7.2 Seis teses de doutorado concluídas.

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Título Relações Internacionais:visões do Brasil e da América Latina

Coordenação editorial Ednete Lessa

Capa Izabel Carballo

Editoração eletrônica e projeto gráfico Samuel Tabosa

Revisão Jeanne Sawaya

Formato 160 x 230 mm

Mancha 110 x 210 mm

Tipologia AGaramond (textos) e Gill Sans (títulos, subtítulos)

Papel Cartão supremo 250g/m2, plastificação fosca (capa)

Offset 75g/m2 (miolo)

Número de páginas 480

Tiragem 3.000 exemplares

Impressão e acabamento PAX Gráfica e Editora Ltda.