4.1 Aluno Nao e Mais Aquele Antonio Favero

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ANAIS DO I SEMINÁRIO NACIONAL: CURRÍCULO EM MOVIMENTO – Perspectivas Atuais Belo Horizonte, novembro de 2010 1 O ALUNO NÃO É MAIS AQUELE! E AGORA, PROFESSOR ? A transfiguração histórica dos sujeitos da educação Antonio Fávero Sobrinho Faculdade de Educação Universidade de Brasília “O mundo mudou, os alunos também. Teremos de alterar nossas representações do mundo e do aluno.” (GIMENO SACRISTÁN, 2005)

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o aluno não é mais aquele

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    O ALUNO NO MAIS AQUELE!

    E AGORA, PROFESSOR ?

    A transfigurao histrica dos sujeitos da educao

    Antonio Fvero Sobrinho Faculdade de Educao Universidade de Braslia

    O mundo mudou, os alunos tambm. Teremos de alterar nossas

    representaes do mundo e do aluno. (GIMENO SACRISTN, 2005)

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    1. Problematizao temtica A problemtica suscitada pela charge a transfigurao do aluno de ontem no

    aluno de hoje tem amparo histrico, considerando que o corte temporal em questo 1969 a 2009 corresponde a uma verdadeira transio paradigmtica, marcada por um conjunto de transformaes culturais que alterou profundamente o nosso modo de pensar, de produzir, de consumir, de fazer guerra e de fazer amor. (CASTELS, 1999).

    Nesse cenrio histrico, os professores, por serem sujeitos existenciais, pessoas com suas emoes, suas linguagens e seus relacionamentos, quando entram em sala de aula para dar a mesma lio diante dos mesmos alunos, vivenciam, no dia-a-dia da escola, todas essas mudanas e diferenas histricas. (TARDIFF, 2002). Por essa razo, paira entre eles um sentimento coletivo de desassossego e um profundo estranhamento diante da mudana de comportamento dos estudantes: freqentes manifestaes de indisciplina, violncia, resistncia ao estudo, cenas de namoro, preocupaes com a moda, com os celulares...

    Todas essas questes j extrapolaram os muros da escola e esto presentes em estudos e pesquisas da literatura educacional, que discutem suas implicaes pedaggicas, bem como sua dimenso histrico-cultural. Green e Bigun (1995) tm se destacado por estabelecer a diferena histrica entre o aluno de ontem e o de hoje. Para eles, os alunos que esto em nossas escolas so radicalmente diferentes dos alunos de pocas anteriores por apresentarem uma historicidade ps-moderna, constituda por um conjunto de prticas culturais responsveis pela produo de sujeitos particulares, especficos, com identidades e subjetividades singulares. Para eles, o aluno de hoje

    ...um sujeito-estudante ps-moderno porque ele apresenta um novo tipo de subjetividade humana uma subjetividade ps-moderna que se caracteriza pela efetivao particular da identidade social e da agncia social, corporificadas em novas formas de ser e de tornar-se humano.

    (GREEN e BIGUN 1995).

    Para Mariano Narodowzky (2001), educador argentino, a idia consolidada pela educao moderna de que as crianas e jovens so obedientes e dependentes no corresponde mais realidade contempornea. Para ele, tanto a infncia quanto a adolescncia devem ser ressignificadas na perspectiva do cruzamento de dois grandes plos:

    Um o plo da infncia hiper-realizada, da infncia da realidade virtual. Trata-se das crianas que realizam sua infncia com a Internet, os computadores, os sessenta e cinco canais da TV a cabo, os videogames, e h tempo deixaram de ocupar o lugar do no-saber. (...) O outro ponto de fuga constitudo pelo plo que est conformado pela infncia des-realizada. a infncia que independente, autnoma porque vive na rua, porque trabalha desde muito cedo, a infncia no da realidade virtual, mas da realidade real. (NARODOWZKY, 2001).

    Marisa Vorrber Costa, em sua abordagem da cartografia contempornea da escola, enfatiza a complexidade do perfil dos alunos que esto em sala de aula, ao afirmar que as nossas salas de aulas esto cada vez mais povoadas de jovens do sculo XXI. A autora tambm nos instiga a reconhecer a nova historicidade dos sujeitos da educao no processo educativo:

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    Ns, professores e professoras, confusos ou mopes, continuamos a enxergar ou a fazer de conta que l esto os meninos e as meninas imaginados pelas teorias dos compndios dos sculos XVII, XVIII, XIX e parte do XX (...). J tempo de nos darmos conta de que o mundo mudou muito tambm dentro das nossas escolas. (COSTA, 2005).

    As diferentes constataes a crtico-satrica da charge, a dos professores a partir do cho da escola e a dos educadores evidenciam que a imagem clssica do aluno esgotou-se, histrica e conceitualmente, em face do cenrio cultural da sociedade contempornea. Diante de tais evidncias, ser problematizada, no decorrer do presente texto, a transfigurao histrica do aluno, acompanhando-se sua produo histrica, cultural e discursiva sempre em processo de reconstruo. (CARLSON e APPLE, 2000).

    2. Inveno e crise do sujeito da educao Contrapondo-se naturalizao da imagem clssica do aluno como sujeito da

    educao idealizado e a-histrico, desenvolve-se uma abordagem na qual se compreende que o aluno uma construo histrica inventada pelos adultos ao longo da experincia histrica. (GIMENO SACRISTN, 2005).

    Nessa perspectiva histrico-cultural, faz-se necessrio explicitar que cada sociedade tem uma dinmica sociocultural prpria de fazer sujeitos histricos e identidades culturais, isto , a formao social de sujeitos histricos se concretiza por meio de uma diversidade de instituies sociais e prticas culturais que, paralelamente produo das condies materiais de existncia, formatam os sujeitos em seus hbitos mentais e motores, em seus laos de pertencimento ao parentesco, ao meio ambiente, s instituies sociais, s normas, regras e leis e a um conjunto de prticas culturais singulares. (WARNIER, 2000).

    Nos primrdios da constituio histrica das sociedades, a construo das identidades culturais realizava-se por meio da convivncia comunitria entre pais e filhos, entre adultos e menores. Por meio dessa convivncia, as crianas, como sujeitos-aprendizes, incorporavam a lngua, os costumes, a religio, as normas da comunidade, suas tcnicas de sobrevivncia e, no contato direto com os membros mais velhos do grupo social, aprendiam tambm os papis masculinos e femininos, as lendas, os mitos e as crenas.

    Nessas sociedades, a formao de sujeitos-aprendizes tinha como referncia a troca e a socializao de conhecimentos pragmticos e operatrios. Sob a influncia e direo dos adultos,

    o ser juvenil aprendia as tcnicas elementares necessrias vida: caa, pesca, pastoreio, agricultura e fainas domsticas. Trata-se, pois, de educao por imitao, ou melhor, por co-participao nas atividades vitais. Assim, aprendiam-se tambm usos e costumes da tribo, seus cantos e suas danas, seus mistrios e seus ritos, o uso das armas e, sobretudo, a linguagem que constitui seu maior instrumento educativo. (LUZURIAGA, 1990).

    No entanto, o aparecimento da escrita alterou profundamente esse paradigma de aprendizagem social e propiciou mudanas significativas em relao construo de identidades culturais. Com a propagao da escrita por vrias sociedades do mundo antigo,

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    a transmisso da tradio, que se realizava por meio da oralidade e da imitao, ligou-se linguagem escrita, tornando-se cada vez mais transmisso de saberes discursivos, e no somente de prticas e processos predominantemente operativos

    A escrita, como instrumento social e educativo, teria cada vez mais centralidade na construo social e histrica das identidades culturais em diferentes sociedades, requerendo o desenvolvimento de uma conscincia mais racional, que se contrapunha predominncia da conscincia mtica. Tal processo foi mais intenso e perceptvel na sociedade grega porque ali houve a conjuno de dois movimentos histricos o desenvolvimento do comrcio, que representou uma interao cultural maior com outros povos, e a organizao da vida social e poltica, com a formao da plis grega. (CAMBI,1999).

    A conjuno dessas foras histricas contribuiu para que, na Grcia Clssica, ocorresse o primeiro grande descentramento teolgico da histria, na medida em que a referncia para todas as aes deslocou-se do plano metafsico para o prprio homem. Dessa forma, na plis grega, particularmente em Atenas, requeria-se a formao de um sujeito-cidado cuja referncia estivesse centrada na racionalidade, na ao e no discurso, exigncias fundamentais para o exerccio do poder social emergente.

    Para tanto, havia necessidade de uma educao que vinculasse formao social do sujeito-cidado a dimenso de ser sujeito epistmico, ou seja, que na ao e no discurso estivessem presentes o

    ...uso rigoroso da mente que se desenvolve na direo lgica (que demonstra) e crtica (que discute abertamente cada soluo) e que organiza cada mbito da experincia humana, submetendo-a uma reconstruo luz da teoria, ou de um saber orgnico estruturado segundos princpios e posto como valor em si mesmo. (CAMBI,1999).

    A partir dos sculos XVI/XVII, a concepo de sujeito epistmico foi apropriada pelo projeto sociocultural da modernidade, que assumiu como seu principal objetivo civilizatrio produzir o sujeito moderno tendo a racionalidade como referncia central. Esse objetivo teve uma importncia fundamental para a consolidao da representao clssica de sujeito do iluminismo:

    ...concepo da pessoa humana como um indivduo totalmente centrado, unificado, dotado das capacidades de razo, de conscincia e de ao, cujo "centro" consistia num ncleo interior, que emergia pela primeira vez quando o sujeito nascia e com ele se desenvolvia, ainda que permanecendo essencialmente o mesmo contnuo ou "idntico" a ele ao longo da existncia do indivduo. O centro essencial do eu era a identidade de uma pessoa.(HALL, 1998).

    Para que tal concepo se concretizasse historicamente, recorreu-se institucionalizao da escola como espao diferenciado das relaes sociais familiares e comunitrias e no qual cabia ao indivduo ser, nica e exclusivamente, sujeito do conhecimento escolarizado. Somente os conhecimentos selecionados pela nova ordem social e poltica deveriam ser abordados pela escola. Os demais conhecimentos ligados vida experiencial deveriam ser desconsiderados pedaggica e socialmente como no teis nova ordem social.

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    Consolidou-se, assim, a matriz histrica de ser aluno em uma tradio escolar ocidental, de tal forma que, nessa identidade cultural, agregaram-se, de forma conjugada, tanto a posio de sujeito do conhecimento, norteado pela razo, como a posio de sujeito disciplinado, que se submete a um amplo poder disciplinar escolar constitudo por prescries e normatizaes de comportamentos, atitudes, hbitos e habilidades.

    No decorrer dos sculos XIX e XX, diante da crescente complexidade do mundo moderno propagao dos ideais de liberdade, igualdade e fraternidade, avanos tecnolgicos e cientficos, renovao conceitual das cincias sociais e humanas , a concepo de sujeito do iluminismo foi profundamente questionada. Contrapondo-se a tal conceituao, surgiram ressignificaes do aluno, tendo como principal matriz discursivo-pedaggica a concepo de sujeito sociolgico, ou seja, o processo educativo se viabiliza atravs de um

    ...conjunto de processos interacionistas, onde a cultura tem um papel de mediadora de construo da identidade do sujeito. A identidade nessa concepo de sujeito histrico constitui-se por meio de um dilogo contnuo entre os mundos culturais exteriores e as identidades que esses mundos oferecem. (HALL, 1998).

    Com base neste pressuposto, diferentes correntes pedaggicas sistematizaram suas respectivas conceituaes de aluno, de tal forma que, tanto na literatura educacional quanto nos discursos escolares, foram e ainda so freqentes as referncias ao aluno como sujeito crtico, sujeito livre e autnomo, sujeito construtor do prprio conhecimento.

    No entanto, na virada para o sculo XXI, devido rapidez das transformaes histricas, a escola tornou-se uma instituio mais complexa, com a presena de um novo pblico escolar que traz para dentro da escola, juntamente com os valores tradicionais, os influxos culturais prprios da sociedade contempornea. A escola, a partir de ento, tornou-se, um espao ecolgico de cruzamento de culturas: cultura crtica, alojada nas disciplinas cientficas, artsticas, filosficas; cultura acadmica, que corresponde s definies que constituem o currculo; cultura social, constituda pelos valores hegemnicos do cenrio social; cultura institucional, constituda de um conjunto de prticas, rotinas e rituais prprios da escola. E, alm dos elementos tpicos da sua organizao curricular, a escola passou a contar, de forma cada vez mais desafiadora, com a presena de uma nova e diferenciada cultura experiencial dos alunos. (PEREZ-GOMES, 2001).

    3. A ressignificao histrica do aluno A presena da cultura experiencial dos alunos na escola requer que se olhem de

    perto as rotinas escolares. Estas, de acordo com Tardiff (2002), constituem-se em fenmenos fundamentais que permitem dar uma boa idia da conscincia prtica dos professores e tambm dos alunos, sobretudo porque elas tm um carter de temporalidade, ou seja, so um agir no tempo e com o tempo.

    Nos ltimos anos, vrias pesquisas tm se dedicado a dar voz aos sujeitos da educao, retirando-os da condio de excludos da histria (PERROT, 1992). Para tanto, a historiografia contempornea, particularmente a histria do cotidiano, abre possibilidades

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    de recuperao de uma diversidade de experincias presentes no cotidiano escolar e correspondentes a uma dimenso histrica do social que permite

    ...restaurar as tramas e experincias encobertas, desvelar as ambigidades e a pluralidade de possveis vivncias e interpretaes, desfiar a teia de relaes cotidianas e suas diferentes dimenses de experincia, fugindo dos dualismos e polaridades e questionando as dicotomias. (MATOS, 2002).

    O cotidiano, como categoria historiogrfica, vai alm do senso comum, porque possibilita captar o que escapa aos sujeitos individuais da histria, ao enfocar tanto os pensamentos e gestos coletivos como as singularidades e diversidades dos atores humanos. Nessa perspectiva, a construo da identidade no concebida como resultante de foras extra-histricas, mas de um processo cumulativo de experincias, saberes e prticas interligadas por meio da relao espao-temporal e pela dimenso relacional que os mais diversos sujeitos estabelecem entre si em seu dia-a-dia.

    Entre as diversas concepes de cotidiano, Certeau (1998) oferece um novo modelo de compreenso da realidade social e das aes que nela so desenvolvidas, de um lado, pelo sistema (social) e, de outro lado, pelos sujeitos praticantes em sua vida cotidiana. Certeau prope um olhar mais embaixo, direcionado para os praticantes ordinrios do cotidiano, para as operaes dos usurios e para a rede de escrituras que compe uma histria mltipla, sem autor nem espectador, formada por fragmentos de trajetrias que no vm superfcie, ou seja, a superfcie somente um limite avanado, um limite que se destaca sobre o visvel. O autor ressalta ainda que o olhar deve estar voltado para as prticas dos indivduos, seus modos de operaes, seus esquemas de ao e no diretamente para o sujeito que o seu autor ou seu veculo.

    Nesse sentido, a teoria do cotidiano de Certeau uma importante indicao na anlise das relaes pedaggicas desenvolvidas no espao da sala de aula. Nesse espao, professores e alunos constroem suas respectivas identidades, recorrendo a um repertrio de mil maneiras da arte de dizer, da arte de fazer e da arte do pensar. Com base nesse repertrio, tanto os professores como os alunos tm a possibilidade de inventar-se e reinventar-se cotidianamente como sujeitos, pois a sua identidade no a-histrica, mas construda a partir do referido repertrio.

    A escola, portanto, reveste-se de uma complexidade bem maior, pois em seu interior tambm est presente um conjunto de operaes quase microbianas que proliferam no seio das estruturas tecnocrticas e alteram o seu funcionamento por uma multiplicidade de tticas articuladas sobre os detalhes do cotidiano e que so constitudas por processos de disputa, de negociao, conflito, concesso, ou seja, de diferentes tticas, estratgias e astcias. (CERTEAU, 1998).

    No espao-tempo escolar, alm das artes de dizer, das artes de pensar e artes do fazer de carter pedaggico ensinar, avaliar, disciplinar, pesquisar, estudar manifestam-se mil outras artes do dizer, do fazer e do pensar inerentes cultura contempornea e motivo de estranhamento dos educadores que tm como referncia o imaginrio pedaggico de carter iluminista.

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    3.1. Escola contempornea: territrio existencial coletivo Nessa perspectiva histrica, as diferentes concepes de aluno herdadas da

    tradio iluminista j no so mais suficientes para problematizar a historicidade contempornea do sujeito da educao que est em sala de aula. Nos ltimos anos, vrios autores desenvolveram anlises histricas para abordar a relao entre o ser e o tempo na contemporaneidade, e estabelecer relaes com o conjunto de novas foras histrico-socioculturais, tais como a globalizao, a predominncia da esfera do mercado em relao ao Estado e sociedade, a mundializao da cultura, a intensificao do processo comunicacional.

    Stuart Hall (2002) destaca a questo da centralidade da cultura na sociedade contempornea, considerando que:

    ...a cultura agora um dos elementos mais dinmicos e mais imprevisveis da mudana histrica do novo milnio. No devemos nos surpreender, ento, que as lutas pelo poder deixem de ter uma forma simplesmente fsica e compulsiva para serem cada vez mais simblicas e discursivas, e que o poder em si assuma, progressivamente, a forma de uma poltica cultural. (HALL, 2002).

    Para alm de sua dimenso conceitual, a centralidade cultural permeia a cotidianidade contempornea, considerando, sobretudo, segundo Fredric Jameson (1986), que o atual estgio tardio do capitalismo caracteriza-se por ser marcadamente cultural, colonizando tudo, da natureza ao inconsciente. A arquitetura, as imagens, os sons, os alimentos, nas suas verses shopping center, vdeo, MTV, Big Mac, entre outros artefatos culturais, so exemplos da cultura transformada em mercadorias que vo moldando nossas maneiras de ser e de viver. Elas vo conformando o gosto, os sentidos, os desejos, os relacionamentos, os eus privado e pblico, enfim, vo modelando as subjetividades e fabricando as identidades destes tempos.

    Nesse quadro histrico de centralidade da cultura, a questo do sujeito se sobressai, pois a concepo de sujeito do Iluminismo foi abalada pela metamorfose sociocultural hoje vivida. Hall prope a tese de que tem ocorrido uma mudana estrutural nas sociedades modernas e que estas tm modificado e fragmentado o entendimento do que seja classe, gnero, sexualidade, etnia, raa, nacionalidade, assim como nosso modo de ver, de entender e de nos relacionar com as identidades pessoais dos indivduos. Segundo esse autor, essa mudana estrutural tem abalado a idia que fazemos de ns mesmos. essa perda de um sentido estvel, que tem provocado, pois, o deslocamento e o descentramento do sujeito. Deslocamento de seu lugar no mundo social e cultural (a globalizao seria uma das causas disso) e deslocamento de si mesmo. (HALL, 1998).

    Felix Guattari (1992) considera que estamos em meio a uma mutao existencial coletiva na qual coexistem e se articulam um apego arcaizante s tradies culturais e uma aspirao modernidade tecnolgica e cientfica, constituindo, assim, o coquetel subjetivo contemporneo. Nessa mutao existencial coletiva, manifesta-se uma verdadeira polifonia de modos de subjetivao, na medida em que cada indivduo e cada grupo social desenvolvem suas respectivas cartografias feitas de demarcaes e delimitaes cognitivas, mticas, rituais e simblicas, por meio das quais buscam se posicionar em relao a si prprios e ao mundo.

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    Para Canclini (1996), as monoidentidades modernas esto dando lugar s identidades ps-modernas que, alm de serem transterritoriais e sciocomunicacionais, estruturam-se pela lgica dos mercados; em vez de se basearem nas comunicaes orais e escritas que cobriam espaos personalizados e se efetuavam atravs de interaes prximas, operam mediante a produo industrial de cultura, a comunicao tecnolgica e o consumo diferido e segmentado dos bens.

    Do ponto de vista da tica, Lepovetski (2005) considera que a sociedade tornou-se ps-moralista na medida em que repudia a retrica do dever austero, integral, maniquesta, e que, paralelamente, exalta os direitos individuais autonomia, ao desejo e felicidade. Com o enfraquecimento do poder simblico das instituies sociais tradicionais (Estado, Igreja, famlia, escola), a religio do dever, que se baseava na relao de centralidade de pertencimento a essas instituies, foi substituda pela celebrao dos direitos subjetivos da vida livre e da realizao individual. O modelo tradicional de verticalizao das relaes de pertencimento esgotou-se, tendo sido sendo substitudo por uma multiplicidade de referncias conjunturais efmeras e temporrias e com caractersticas de horizontalidade e de proximidade.

    E toda essa mutao existencial coletiva tambm se estende ao cotidiano do ensino mdio brasileiro, constitudo predominantemente por jovens que, em suas vivncias e experincias, apresentam demarcaes prprias por meio da formao de grupos que desenvolvem smbolos e estilos particulares, inclusive nos casos em que h coincidncia tnica, de classe, gnero e localidade. (ABRAMO, 1997).

    A complexidade e as diferenas entre os prprios jovens so tais que, segundo Groppo (2000), nos ltimos anos, usa-se o termo juventudes para que se possa dar conta da diversidade e pluralidade de experincias presentes na vivncia juvenil. Essa mudana conceitual tem por objetivo captar, na realidade dos grupos sociais concretos, a existncia de uma pluralidade de juventudes, uma vez que, para alm de cada recorte sociocultural classe social, estrato, etnia, mundo urbano ou rural, gnero etc. , possvel perceber a existncia de subcategorias de indivduos jovens, com caractersticas, smbolos, comportamentos, subculturas e sentimentos prprios. Cada juventude pode reinterpretar sua maneira o que ser jovem, estabelecendo diferenas no apenas em relao s crianas e adultos, mas tambm em relao a outras juventudes.

    3.2. Os alunos e suas mltiplas posies de sujeito A cultura escolar instituda ao longo da modernidade, ao se tornar uma tradio

    inventada (HOBSBAWN, 1997), concebeu a formao do sujeito da educao de uma forma idealizada, distanciado de suas experincias cotidianas. No entanto, essa concepo de aluno, diante da velocidade das transformaes histricas, no se concretiza mais de acordo com as idias pr-concebidas pelas teorias pedaggicas. O aluno que est em sala de aula j no corresponde a nenhuma das representaes propostas pela cultura escolar de natureza iluminista, porque, hoje, na posio de sujeito do conhecimento, ele , sobretudo, um sujeito histrico, que traz para a sala de aula um repertrio de experincias constitutivas da cotidianidade da sociedade contempornea.

    Nessa perspectiva histrico-cultural, a escola deixou de ser uma comunidade de ouvintes, centrada no discurso pastoral dos professores. As escolas de hoje, recorrendo-se expresso de Guattari, so verdadeiros territrios existenciais coletivos, devido presena de alunos que so os praticantes do cotidiano contemporneo e que trazem

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    para dentro das salas de aula as suas prticas culturais. Os estudantes, portanto, so produtos dirios da cultura, de uma cultura-ao, de uma cultura no sentido antropolgico, que encara todo e qualquer ato social como uma forma de construir culturalmente e socialmente a realidade.

    Com a presena dos jovens, a escola constitui-se tambm em um espao de convivncia, pois a ordem, a disciplina, o silncio cederam espao comunicabilidade, sociabilidade e interatividade. Para Lopes (2005), os jovens apostam na escola como um local de convvio intragrupal, pois ter um grupo na escola fundamental, e quem no est integrado no ningum. O grupo na escola acaba por funcionar como um aporte ativo de rituais, de smbolos, de imagens e de cdigos comunicativos, com sentidos e significados para seus praticantes. Dessa forma, no cotidiano juvenil, h intenso processo de comunicao, produo de sentidos e significados, histrias que os estudantes contam a respeito de si prprios e das suas vidas e que no devem ser entendidos como cotidiano de alienao. (LOPES, 2005).

    O convvio com os amigos um dos aspectos mais significativos do cotidiano dos jovens, e um dos mais valorizados, mesmo como forma de prazer. com os amigos que os jovens partilham as suas opinies, demonstram maior vontade de interao, o que se constitui em um importante papel de integrao social. De acordo com Pais (1993), para os jovens, o grupo fundamental, pois ele produz solidariedade e identidade grupal. O convvio com os amigos faz parte significativa do tempo despendido pelos jovens no seu cotidiano. nesse tempo/espao que o jovem desenvolve a maior parte das suas atividades de tempos livres, como ouvir msica ou partilhar certos gostos, nem que seja atravs do emprstimo de bens culturais, como discos, CDs, livros, filmes em vdeo etc. H um reforo da coeso grupal, uma deciso de grupo.

    Por outro lado, por meio das ritualidades grupais que os jovens evadem-se do cotidiano escolar, ao incorporarem o consumo de drogas, a violncia, o bullying, bem como inmeras outras prticas culturais que contribuem para potencializar o pnico moral diante dessa nova realidade escolar. No cotidiano escolar, cada vez mais os grupos e tribos juvenis esto presentes. Por essa razo, percebe-se, entre os estudantes, fortes resistncias ao currculo formal, pois seus interesses esto voltados para temas no-escolares, tais como namoro, sexualidade, moda, festas, passeios etc.

    Tais temas, em grande parte, so alimentados pela cultura juvenil veiculada pelos meios de comunicao, que tm uma relevante centralidade na produo de uma grife identitria singular: a juventizao. (PAIS,1993). Se no passado uma das caractersticas marcantes da identidade dos jovens era a seriedade, a ordem e a disciplina, atualmente predomina o esprito de ludicidade, que tem contribudo para a massificao do lazer e, sobretudo, para a intensificao de uma nova tica sexual.

    Essa questo emergiu com grande fora no decorrer do sculo XX, quando as amarras com as tradies e com as imposies de uma sociedade disciplinar permitiram uma ampla liberao de valores e tambm de liberdade para o individuo assumir suas respectivas identificaes. H um consenso entre os vrios cientistas sociais de que os jovens de hoje, ao recusarem os constrangimentos impostos pelos formalismos tradicionais, pautam-se por uma nova tica sexual.

    Nas escolas, os alunos, alm da sua posio de sujeitos da razo, revelam-se tambm sujeitos desejantes, por terem assumido o amor experimental, a aventura, o sentimento espontneo e extremamente ntimo como elementos constituintes de suas

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    identidades. A sexualidade constitui-se em uma das marcas mais distintivas em relao s outras geraes. E a maioria dos jovens no a identifica de forma absoluta com as relaes sexuais, mas como uma forma de comunicao entre duas pessoas. (PAIS, 1993).

    Toda essa permeabilidade a temas no-escolares tem relao com a circularidade cultural contempornea potencializada pela sociedade semirgica, responsvel pela proliferao de signos, simulacros e imagens. As narrativas contemporneas (o vdeo, a imagem, a linguagem virtual), juntamente com as narrativas tradicionais (a escrita, a impressa e a oralidade), de um lado, intensificaram as trocas culturais; de outro, desestabilizaram o processo lgico, linear, seqencial e estruturado de sistematizao dos conhecimentos, reordenando a sua distribuio e socializao em redes. (KELNNER, 2005).

    Sob o impacto da sociedade semirgica, os jovens passaram a experienciar uma temporalidade saturada de agoras, pois o cotidiano contemporneo, segundo Santos (2000), se desdobra em vrios nveis contextuais: o contexto domstico, que corresponde ao conjunto de prticas culturais responsveis pela construo da identidade familiar; o contexto do trabalho, que vincula o indivduo s diferentes relaes de produo; o contexto da cidadania, constitudo pelas relaes sociais da esfera pblica, dispersas pela cidade e entre os cidados e o Estado; e, por fim, o contexto da mundialidade, constitudo pelas relaes sociais que permitem interagir com o sistema mundial.

    Com essa dinamicidade do cotidiano contemporneo, os jovens, dentro e fora da escola, vivem simultaneamente em uma dimenso espao-temporal materializada pela territorialidade, pelas relaes sociais mais comunitrias e, em outra dimenso, desmaterializada pelos processos mediticos da videoesfera constituda pelo rdio, cinema, internet; eles circulam tanto pelas ruas de seu bairro, que o espao-tempo tpico da modernidade, como pelos bairros audiovisuais e virtuais que so os no-lugares, o espao-tempo ps-moderno. (AUG, 1998).

    A multiplicidade de tempos e espaos atinge diretamente o corao da escola, isto , o processo de ensino-aprendizagem. A escola continua tendo como eixo de referncia as narrativas cientficas apoiadas no livro didtico e no uso intensivo da pedagogia hierrquica, na qual o professor tem o monoplio do discurso. O estudante, por sua vez, tem um grande envolvimento com as linguagens e narrativas de carter virtual, acessando e interagindo com as comunidades virtuais disponveis nas diferentes redes sociais MSN, Orkut, Facebook, Twitter etc.

    Os efeitos e desdobramentos da sociedade semirgica j se fazem sentir no cotidiano escolar, sobretudo em relao questo da leitura, que se tornou um dos pontos crticos da escola contempornea. A crise da leitura est instaurada na escola, em razo do impacto significativo da comunicao audiovisual no modelo tradicional de decodificao da lectoescrita. Ou seja, se o modelo tradicional de leitura e acesso ao conhecimento requer concentrao, abstrao, conceituao, reflexo e simbologia, a sociedade semirgica e a sociedade do espetculo priorizam a percepo, o sensitivo, a forma e o concreto. (PEREZ-GOMES, 2001).

    3.3 As prticas culturais e a questo da cidadania As transformaes histricas tambm alteraram profundamente a questo da

    formao do sujeito-cidado no cotidiano escolar. At os anos 50 do sculo passado, a

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    formao do cidado tinha um forte apelo cvico-patritico; a partir dos anos 60, a questo da cidadania esteve identificada com a revoluo, os movimentos estudantis, as contestaes e crticas sociais.

    Os estudos mais recentes sobre a juventude, tendo como referncia os movimentos estudantis dos anos 60 do sculo passado, caracterizam-na como aptica, individualista e hedonista. A mudana de postura em relao poltica, longe de ser um fato isolado e restrito aos jovens, corresponde a um fenmeno que tem se constitudo em objeto de preocupao por parte dos mais diversos analistas que abordam a crise da poltica na sociedade contempornea.

    Os diversos analistas tm assumido posturas diferenciadas em relao questo da cidadania. Jair Ferreira dos Santos (1999), em sua anlise sobre as implicaes e desdobramentos da condio ps-moderna, considera que as transformaes histricas do final do sculo XX foram responsveis pelo processo de desero. O envolvimento dos jovens em grandes causas cedeu lugar desero social, mediante a desmobilizao e despolitizao de vrios laos de pertencimento social. O comprometimento com a revoluo, com o progresso e com a continuidade histrica cedeu lugar desero da histria, por meio de um intenso presentesmo, que se manifesta atravs da pouca valorizao dos vnculos com o passado e da ausncia de um projeto de futuro. Por fim, haveria uma desero do poltico e do ideolgico, de tal forma que as intensas mobilizaes polticas perderam a sua fora.

    Michel Mafesoli (1997), por sua vez, considera que a poltica como esfera reguladora da sociedade no est mais capacitada para enfrentar os desafios do momento e se tornou objeto de desconfiana geral. Para ele, a poltica perdeu a fora de atrao porque os jovens no querem mais adiar o gozo, numa espera messinica do paraso celeste ou da ao poltica que se realizar em um amanh distante, ou por meio de outras formas de sociedades futuras reformadas, revolucionadas ou mudadas.

    O comprometimento poltico do jovem com a mudana e com a revoluo esgotou-se. O jovem contemporneo caracteriza-se muito mais por aceitar o mundo como ele do que por agir. Ele no valoriza mais uma utopia exterior, mas, sim, o aqui e agora. Para Maffesoli (1997), a imploso do poltico est ligada saturao da lgica de identidade sustentada pelo patriarcado no decorrer da modernidade. O sistema social contemporneo est cedendo lugar a uma lgica mais mole, da identificao, que ele chama de matriarcado, e que se caracteriza pela valorizao de um estado civilizacional mais frouxo, diverso, estilhaado, mais prximo da vida em suas diversas potencialidades. Est surgindo uma nova ordem: a fuso das emoes comuns est sucedendo distino das representaes separadas.

    O exerccio da cidadania alterou-se profundamente com a revoluo eletrnica, na medida em que a socializao no se realiza mais exclusivamente por meio das relaes primrias famlia e comunidade local. Com isso, houve uma mudana significativa na concepo de esfera pblica, na medida em que o sujeito no participa mais politicamente tendo como referncia o espao pblico. O espao pblico vive um processo de virtualizao com o aparecimento de outras formas de manifestar a sua subjetividade poltica. (CANCLINI, 2000).

    Nessa perspectiva, deve-se considerar que os jovens reinventaram o modo de fazer poltica. Para eles, o lcus poltico pulverizou-se em outros espaos e tempos polticos. Um exemplo concreto so os movimentos hip-hop e os rappers, grupos

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    formados por jovens da periferia urbana, que recorrem msica para expressar a sua condio social de excludos dos bens sociais e culturais. Para Abramovay (2002): Eles falam em nome de uma gerao sem voz, perifrica, estigmatizada, denunciando de maneira crua a realidade em que vivem, seus problemas locais, e expressam a sua revolta contra a ordem estabelecida e um destino de contnua excluso que parece predeterminado.

    Nesta perspectiva, a concepo de cidadania em perspectiva cultural nos permite fazer uma leitura mais complexa das lutas simblicas que esto presentes em sala de aula, uma vez que na cotidianidade das escolas pblicas manifesta-se um jogo de poder entre professores e alunos. Enquanto os professores pretendem desenvolver junto aos seus alunos uma conscincia crtica da realidade, os alunos, por sua vez, pautam-se pelo imaginrio ps-utpico, isto , por

    ...modelos de comportamento que transitam pelo consumismo, pelo desencantamento, pelo nihilismo, pelo hedonismo e pelo cinismo, mas tambm pela lgica do estar-junto, pela morte das falsas iluses do passado, do paraso socialista, e pela riqueza cotidiana que faz e refaz a vida contra todos os argumentos da racionalidade fechada e dos sistemas hermticos de explicaes da errtica aventura das sociedades. (MACHADO, 1996).

    Com base nestes princpios, os jovens no se pautam mais pelas grandes utopias e pelas promessas de realizaes sociais e polticas no futuro. Para eles, a referncia o presente como medida em todas as coisas. Neste sentido, para esses jovens, o presentesmo, segundo Machado (1996), tem um significado relevante para suas vivncia e experincias, pois corresponde a um

    ... comungar em torno de um objeto, de uma imagem, de um plo agregativo: transitrio, mutvel e plural. Comunho de sentimentos atravs da roupa, do sexo, da msica, mesmo da religio ou das idias, mas menos em nome da transcendncia do que do calor obtido na partilha. Sabedoria cotidiana, hedonista, e tolerante. Reencantamento do mundo a partir do presente multifacetado, estranho contestao das representaes futuristas clssicas, e satisfeito de aproveitar o tempo que passa.(MACHADO, 1996).

    4. E agora, Professor?

    J tempo de nos darmos conta de que o mundo mudou muito tambm

    dentro das nossas escolas. (COSTA, 2005)

    A historicidade contempornea dissolveu o aluno inventado pela tradio pedaggica. H que se reconhecer que, diante da mutao existencial coletiva e da presena da cultura experiencial dos alunos, faz-se necessrio propor uma ressignificao do professor diante da sociedade semirgica.

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    Para Foucault (1988), no cabe mais ao intelectual continuar exercendo o seu poder pelo saber, considerando-se dono da verdade e da conscincia de todos. Com as mudanas significativas ocorridas na ligao entre teoria e prtica, o papel do intelectual tradicional, fundamentado em prticas do universal, desloca-se agora para pontos precisos da sociedade. onde se situam as condies concretas de trabalho, de condies de vida, as lutas mais concretas e mais imediatas.

    Estendendo-se essa proposio docncia, cabe ao professor estabelecer ligaes transversais de saber para saber, ponto fundamental de um novo tipo de interao educativa entre o saber cientfico, do qual o professor o agenciador, e os saberes dos alunos, quaisquer que sejam eles, sejam quais forem as suas condies de historicidade em sala de aula. Cabe, portanto, ao professor problematizar os registros experienciais e culturais presentes no cotidiano escolar e articul-los aos registros epistmicos prprios da educao escolar e para os quais ele, como sujeito epistmico, recebeu uma formao pedaggica (TARDIF,2002).

    Os principais passos metodolgicos para tal postura so 1. A escuta sensvel: saber ouvir o que os alunos, como sujeito coletivo, tm a

    dizer. a partir desse momento que o professor pode estabelecer um dilogo com o universo simblico dos alunos, desvelando as suas falas, as suas narrativas, a sua utopia, os seus sonhos, as suas necessidades, as suas possibilidades e seus limites. Na condio de gestor/mediador de identidades e subjetividades, o professor deve estar aberto a vrios nveis de escuta dos sujeitos da educao:

    a escuta socioidentitria : reconhecer a presena das diversidades culturais que se manifestam e esto presentes na sala de aula, valorizando os modos de pensar, agir e sentir;

    a escuta das narrativas silenciosas, gestuais, no-verbais. Muitos alunos, por motivos os mais diversos, consideram a escola como sendo exclusivamente uma comunidade de ouvintes;

    a escuta potico-existencial: reconhecer as mltiplas narrativas oral, escrita, virtual, artstica, performtica etc.;

    a escuta espiritual-filosfica: valorizar a escuta dos valores ltimos que atuam no sujeito (indivduo ou grupo): medos, angstias, esperanas, frustraes, esquizofrenias, paixes, decepes coletivas.

    2. Agir pedaggico comunicativo: os diferentes saberes populares, cientficos, econmicos, sociais, polticos, culturais e simblicos devem ser considerados em uma perspectiva de circularidade cultural. A cultura escolar no pode mais ser considerada de forma descontextualizada em relao ao complexo cultural em permanente circulao nos mais diversos espaos de aprendizagem contemporneos os meios de comunicao social (rdio, tv, internet).

    3. Ressignificao reflexiva dos saberes: s h apropriao significativa dos saberes escolares se eles estiverem profundamente relacionados s identidades culturais dos sujeitos individuais e coletivos presentes na escola, o que, se evidenciado, dever concorrer para uma significativa elevao cultural da sociedade como um todo.

    Diante desse novo cenrio histrico-cultural, cabe aos professores assumir posturas inerentes a uma pedagogia cultural, ou seja, reconhecer que os nossos alunos

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    so, ao mesmo tempo, sujeitos do conhecimento e sujeitos experienciais e que essas duas dimenses devem ser constantemente religadas por uma ao mediadora do professor.

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