41031 - Introdução à Ciência Política - (Apontamentos) Jorge Loureiro

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41031 – Introdução à Ciência Política Apontamentos de: Jorge Loureiro E-mail: [email protected] Data: 10.08.2008 Livro: Introdução à Ciência Política (Luís de Sá) Nota: Matéria referente ao ano lectivo 2007-2008 (Doutor Manuel Meirinho)

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41031 – Introdução à Ciência Política

Apontamentos de: Jorge LoureiroE-mail: [email protected]: 10.08.2008

Livro: Introdução à Ciência Política (Luís de Sá)

Nota: Matéria referente ao ano lectivo 2007-2008 (Doutor Manuel Meirinho)

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1. O poder político e o seu estudo1.1. A Ciência PolíticaÉ muito antiga a reflexão acerca da política. No entanto, encontra-se presente na generalidade dos autores, durante séculos, uma óptica essencialmente normativa, ética, prescritiva. Por vezes, surge mesmo a afirmação de que é isso que cabe à ciência. Este facto é especialmente claro em Aristóteles, que afirma que compete à ciência política, por exemplo, «examinar que forma de regime seria mais adequada a um certo tipo de cidadãos». Mesmo em Portugal, é fundamentalmente nesta óptica que encontramos as principais abordagens do fenómeno político ao longo de séculos. É o caso de Álvaro Pais, que em 1332 publicou De Plantu Ecclesiae Desideratissimi Libri Duo, do Infante D. Pedro, que em 1451 publica o Livro da Virtuosa Benfeitoria, do Infante D. Duarte, autor do Livro da Ensinança de Bem Cavalgar Toda a Sela e do Leal Conselheiro, dos autores da Restauração, como Carvalho de Parada e João Pinto Ribeiro.

É difícil e tardia a passagem à reflexão e investigação acerca da realidade política tal como é, sem as subordinar à pretensão de aconselhar a melhor escolher o regime político, dirigir o Estado ou exercer o poder. A História das Ideias Políticas, no entanto, embora não se identificando com a Ciência Política, continua a ser um suporte importante desta, para além do seu interesse cultural evidente.

Frequentemente, aliás, durante muito tempo e ainda hoje, as próprias visões que se pretendem estritamente descritivas são ainda prescritivas ou confundem as duas perspectivas. Tal significa que, aparentando ou até proclamando estar apenas a proceder a análises, na realidade estão ainda no campo das tentativas de apontar como se deve proceder ou que fins se deve visar no campo político.

A preocupação sistemática de abordar a política como ela realmente é, e sobretudo a diferença entre o que o poder proclama e o que o poder realmente faz, surge em Maquiavel, um florentino que, ao abordar a política tal como a viu quando foi segundo secretário do governo de Florença, ganhou o direito, até hoje, de ser considerado por muitos como que o fundador da ciência política. Significativamente, Maquiavel também surge, na linguagem vulgar, como sendo um símbolo da ausência de escrúpulos e de uma concepção baseada na defesa da validade de todo o tipo de meios e da sua subordinação à sua utilidade para prosseguir os fins políticos, quaisquer que aqueles sejam.

Apesar dos anos passados e dos grandes progressos feitos, continua a ser verdade que o longo tratamento frequente do nascimento, conteúdo e métodos de uma disciplina equivale frequentemente a uma relativa menoridade do seu desenvolvimento, traduzida na constante necessidade de afirmar a sua autonomia face a outras disciplinas.

Tende também crescentemente a triunfar uma tendência para equacionar com um menor dramatismo as tradicionais querelas metodológicas; mas os avanços e os consensos que progrediram não são tais que dispensem uma tentativa de maior clarificação dos pontos de vista que adoptamos, com a ideia de que é preciso estar sempre atento à procura de novas técnicas e novos métodos numa permanente «busca de cientificidade».

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Com efeito, recorde-se, foi o seguinte o quadro de rubricas estabelecido pela UNESCO em 1948 como campo de estudo da ciência política :

1.º - A teoria política:

a) A teoria política;

b) a história das ideias.

2.º - As instituições políticas:

a) A constituição;

b) O governo central;

c) O governo regional e local;

d) A administração pública;

e) As funções económicas e sociais do governo;

f) As instituições políticas comparadas.

3.º - Partidos, grupos e opinião pública:

a) os partidos políticos;

b) os grupos e associações;

c) A participação no governo e na administração;

d) A opinião pública.

4.º - As relações internacionais:

a) A política internacional;

b) A organização internacional;

c) O direito internacional.

Por outro lado, a ciência política aparece repartida entre ciência política interna ou do Estado e ciência política das relações internacionais, que é uma divisão que se torna cada vez mais difícil de estabelecer na nossa época com rigidez, sobretudo nos casos em que se verificam processos de integração económica ou político-económica.

A ciência política é «necessariamente multidimensional, mesmo que com isso tenha que parecer uma confederação de uma série de disciplinas que, entre si, não têm uma ciência arquitectónica nem obedecem a uma regra de classificação de ciências».

Em geral, aliás, estas controvérsias são em boa medida oriundas de os seus protagonistas serem originários de diferentes escolas e frequentemente terem diferentes formações de base que erradamente querem transformar em únicas e privilegiadas no novo campo que cultivam.

Partimos, portanto, do princípio de que as várias perspectivas não têm que se excluir e que «a maior parte das vezes apenas multiplicam e enriquecem os ângulos de análise de uma realidade fugidia que é a mesma para todos».

Como diz Burdeau, quanto mais os fenómenos são complexos, mais vantajoso é multiplicar os ângulos de abordagem. Todas as ciências são convidadas a fornecer o seu contributo, mas Burdeau destaca, no caso da ciência política, a sociologia, o direito e a história, como tendo especial vocação para colaborar com a ciência política.

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Para encontrar a óptica própria da ciência política impõe-se distingui-la da visão normativa, jurídica, ética ou instrumental.

O estudo do poder, e de um sistema político na parte respeitante ao modo como se distribui e exerce o poder, exige a avaliação de como se apresenta (forma), onde reside (sede) e a partir de que ideologia actua. A visão normativa do poder privilegia a primeira dimensão, excluindo outras. O conceito de falta de autenticidade do poder pode designar «a diferença ou falta de coincidência frequentes entre o modelo normativo de conduta que a lei proclama e o modelo de conduta que o poder adopta».

1.2. Os poderes e a especificidade do poder político

É constante a existência e a importância essencial das mais diferentes formas de poder em múltiplas sociedades. Daí que o conceito, a sua natureza e existência sejam um objecto de estudo privilegiado pelas mais diferentes ciências sociais.

Genericamente o poder é passível de ser definido como a capacidade de estabelecer qual deve ser a conduta alheia, seja qual for o processo utilizado, e de impor o que foi estabelecido, caso não seja voluntariamente acatado. Note-se, no entanto, que é corrente nas ciências sociais distinguir poder, definido como a capacidade de definir a conduta alheia, impondo se necessário o acatamento da definição, por via coerciva; e a autoridade, definida como a capacidade de suscitar a vontade de obedecer e que se situa no campo da organização do consentimento.

É fácil ver que o sentido e os objectivos destes diferentes espaços e destas diferentes formas de poder não são os mesmos.

O poder político caracteriza-se, desde logo, por se exercer a uma escala mais vasta, a qual permite obedecer a uma «abstracção», e em que os procedimentos para chegar à decisão estão regulados e legitimados, em vez de a parcela da espécie humana em causa estar perante um «dono» concreto e subordinado ao seu arbítrio.

Começa por se colocar a questão da política à escala da cidade, a polis : esta é uma expressão de origem grega que designa a Cidade-Estado e de que deriva a palavra política. Seja qual for a dimensão da comunidade em causa surge uma tendência crescente: quem exerce o poder, ou quem luta para o alcançar, afirma que vai prosseguir o interesse de todos os que são reconhecidos como membros da polis , designadamente os interesses de justiça, de segurança e de bem-estar.

Actualmente cresce a tendência para afirmar que é suficiente a condição humana para pertencer à polis . Mas, historicamente, dentro da polis existiam os que a integravam e também os que nela viviam mas não eram reconhecidos como seus membros (no caso da Cidade-Estado grega era o caso dos escravos e das mulheres, por exemplo).

Mais tarde acabou a escravatura, mas a exclusão foi um pensamento que impôs limitar o acesso a direitos como o direito de voto, de que foram privados os não proprietários, as mulheres, os analfabetos ou outras categorias. Esta perspectiva implicou uma intervenção e dimensão crescente do Estado, que muitos passaram a designar por Estado-providência. Este, porém, foi afirmado,

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mais tarde, como estando em crise, embora esta e as suas características e contornos não sejam inteiramente pacíficos.

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2. Conceitos essenciaisaDe entre os conceitos a utilizar na Ciência Política, tal como noutras ciências sociais, distinguem-se➢ os nominais «organizando grupos de características directamente observáveis»,

são «puramente descritivos»;➢ os operacionais, assentando na abstracção da realidade, justificam-se pela sua

«utilidade para as operações de classificar, comparar e qualificar» e desempenham, por isso, um papel essencial na aproximação à realidade e na sua compreensão científica.

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A leitura da realidade começa por assentar na intuição; mas a passagem à fase superior reclama conceitos claros. Limitaremos a referência aos que são fundamentais neste contexto, procurando que a clareza não conduza a escamotear a complexidade dos problemas em causa e dos debates que estão subjacentes.a

2.1. Política, «político»aAs várias definições conhecidas de política na ciência que a toma como objecto, a ciência política, ou noutros ramos das ciências sociais, colocam hoje no centro do conceito, como elemento essencial, na maioria dos casos, o Poder que é exercido numa determinada «unidade social», a polis, a polity, a «sociedade global», ou a «nação», bem como as lutas que se travam em torno do poder. É esta realidade que se constitui em objecto essencial – mas não exclusivo – do ramo do conhecimento que visa o seu estudo e investigação.a

Temos que ter em conta, entretanto, como um problema constante, que o próprio facto de a política ser «tarefa de todos» coloca em causa e exige cautelas quando consideramos qualquer definição estrita; ou, dito de outro modo, «ela não se compadece com o dramatismo fácil das definições, nem com o conflito das teorias».a

Assim, por exemplo, é corrente na ciência política a distinção entre « política » e «político», oriunda da distinção entre politics e policy. A primeira expressão designa essencialmente a competição pelo poder político, quer seja pela sua conquista, quer pela sua manutenção ou pela determinação do sentido em que é exercido. O «político» designa as medidas para prosseguir objectivos declarados como sendo de interesse comum, tais como a justiça, a segurança e o bem-estar: nesse sentido pode falar-se em política de educação, de saúde, de ambiente, etc..a

Mas temos imediatamente que observar que a interpenetração de campos é constante: a política mascara-se frequentemente de «policy» e apresenta-se como estando acima da competição pelo poder e querendo apenas o bem da «polis», para tentar obter maior credibilidade; por outro lado, a definição de politics pressupõe um quadro de um mínimo de liberdade e tem que ver com as situações de sistemas eleitorais minimamente competitivos, designadamente a partir do período liberal; não se adapta, por exemplo, a quadros totalitários ou em que toda a contestação do poder é reprimida.a

Enfrentaremos outras dificuldades ao tentar distinguir política de administração. É que, também aqui, o modo de fazer a distinção, ou de a negar, foi muitas vezes já em si um modo de fazer política...a0a

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2.2. Política e administração públicaaSão antigas as tentativas de estabelecer a distinção entre política e administração. Alexis de Tocqueville, pelo seu lado, apontou a importância de distinguir o que é da esfera do «gouvernement», isto é, do interesse público de uma sociedade considerado como um todo, que reclama uma autoridade política, soberania e capacidade de exercer a coerção, do que deve permanecer como sendo administrado por diferentes entidades. Nesta linha, a centralização poderia levar a confundir o que deve ser do campo estritamente administrativo com o que é do campo político e, portanto, a confundir política com administração ou, também aqui, o «governo dos homens» com a «administração das coisas».a

A distinção entre política e administração é mais significativa quando se parte do princípio de que as sociedades devem ser assentes em eleições competitivas. Nestas, o poder deve ser essencialmente político, legitimado pelo voto e submetido à crítica e controvérsia política. Daqui decorre que a administração pública, e a função administrativa em geral, teriam de ser vistas como instrumento da função política e de execução das leis: trata-se de um «direito da subordinação», caracterizado pela «desigualdade das relações jurídicas» (ao contrário da igualdade entre as partes que é suposto verificar-se no direito privado). A Administração Pública é um dos aspectos que revela actualmente o que alguns pretendem ser a «presença exorbitante do Estado»; mas nem por isso deixa de acontecer que a Administração, que pode subordinar o cidadão e as empresas a relações desiguais, também é teoricamente subordinada perante o poder político.a

A disputa eleitoral competitiva da titularidade dos vários poderes, quer políticos, como os parlamentos, quer «públicos», mas classificados como estritamente administrativos na teoria clássica das funções do Estado (como as autarquias), é um dos factores que levou a que se torne mais difícil estabelecer compartimentos estanques entre política e administração. No moderno «Estado de partidos» os aparelhos partidários esbatem as fronteiras entre campos que outrora se afirmavam como pertencendo a várias «funções do Estado». É o caso da disputa do poder a níveis considerados «menores» (ditos «executivos» ou «administrativos»), mas que se pode inserir na disputa do poder ao nível do Estado-nação.a

Por outro lado, em sociedades complexas, em que o chamado «poder executivo» detém amplos poderes e em que é larga a dimensão da Administração Pública, é absurdo afirmar que os órgãos administrativos e os serviços e funcionários públicos, mesmo quando se trata de figuras da chamada «alta administração», apenas teriam por função «executar» políticas emanadas do poder «político», resumindo este ao Governo e ao Parlamento.a

É certo que os cultores da ciência da administração sempre efectuaram uma distinção em termos bastante compartimentados entre administração e política. Como assinalam Felix A. Nigro e Lloyd G. Nigro há uma razão para tal: os chamados escritores sobre ciência da administração «estiveram ansiosos por manter a política fora do âmbito da administração, quer dizer, fora do âmbito do executivo; os legisladores representavam o poder político e, contando com os seus aliados dentro do sistema de partidos políticos e com a influência que possuem sobre a equipa que governa, podiam impedir a profissionalização do serviço público. Em consequência, foi-se desenvolvendo o conceito de uma burocracia neutral que não adoptasse decisões que supusessem a aprovação de uma política determinada». Por outro lado, há

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objectivos em matéria de administração pública que, na medida em que são fixados pelo poder político, só podem ser compreendidos com base no calendário e objectivos eleitorais; e o desempenho administrativo tem influência na realização desses objectivos. Por isso, mesmo quando se afirma, no âmbito da ciência da administração, que o objectivo é abordar «governance, not politics», é sempre difícil na prática manter os campos completamente separados.a

Qualquer deles é susceptível de ter em vista não só a «administração das coisas», mas também de servir de instrumento no sentido de contribuir para conquistar ou manter o direito de «governar os homens».a

Por outro lado, é usual afirmar-se que o governo ou um ministro podem exercer uma função classificável como eminentemente política, mas também participam no exercício de uma função administrativa. Mas as fronteiras entre uma e outra função também aqui nem sempre serão muito claras: a construção de uma auto-estrada ou de um grande hospital, por exemplo, são actos de administração, mas pode haver um acto político na sua inauguração e valorização intensa junto da opinião pública, enquadrada na luta pela conservação de poder.a

A questão torna-se mais complexa quando o fenómeno do Poder foi classicamente ligado, em grande medida, ao seu exercício pelo Estado ou à relação com outros Estados e hoje as decisões são tomadas ao nível «supra-estadual», pela Comunidade Europeia ou por organizações internacionais, e eventualmente impostas por um país ou grupo de países a outros Estados.a

As dificuldades da distinção entre política e administração não devem levar à renúncia de a fazer, ou a ceder à tentação de afirmar que a distinção entre política e administração sempre foi uma mera ficção ou que em democracias baseadas na disputa eleitoral se trata de campos que não são passíveis de distinção.a

A distinção entre política e administração por quem a admite surge, em geral, em termos aparentemente muito claros. Mas é mais difícil a sua operacionalidade em confronto com os factos. A pluralidade de critérios de distinção que são propostos e até a negação da possibilidade e interesse de estabelecer a distinção ilustram bem as dificuldades.c

Consideremos, por exemplo, os termos que utiliza Rivero para distinguir Governo e Administração (que reconhece, aliás, as dificuldades da distinção):a

(...) Governar, é tomar as decisões essenciais que comprometem o futuro nacional: a abertura de uma negociação internacional, uma opção em favor de tal política económica. A administração , por seu lado é tarefa quotidiana que vai até aos actos mais simples: a ronda do carteiro, o gesto do agente que regula o trânsito.

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Os exemplos utilizados por Rivero para caracterizar a actividade administrativa só confirmam que, na prática, podem ser muitos difíceis as tentativas de delimitar campos estanques. Desde logo, Rivero refere como exemplos os actos considerados «mais humildes» e, em relação a estes, não haveria dificuldades; é sobretudo ao nível dos actos do Governo e da «alta administração» que são passíveis de ser considerados «menos humildes» que as dificuldades podem surgir.A

Em sentido de algum modo aproximado situa-se Otto Heinrich von der Gablenz que, na linha de Max Weber, considera que «a administração é a configuração da vida pública no seu curso diário».a

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Também se pretendeu, na mesma linha, dizer que à função pública cabem as grandes deliberações de fundo para um país e a sua concepção de vida e à administração apenas executá-las. Mas os partidários da distinção concebida nestes termos são forçados a relativizá-la.a

Para Max Weber este era o tipo de relacionamento ideal entre política e burocracia. Mas não deixou de afirmar que um problema, por mais técnico que parecesse, poderia assumir significado político e a sua decisão acabar por ser influenciada decisivamente por critérios políticos. A partir do momento em que, em monarquias constitucionais, e mais ainda nas repúblicas baseadas em partidos organizados competindo pelo poder, os governos e os ministros emanam de uma maioria parlamentar, estes têm que governar no quadro da competição política e para derrotar a oposição; no entanto, ao mesmo tempo, estão no topo de uma máquina administrativa que lhes está sujeita, mas que é suposto guiar-se por princípios de isenção e independência.a

Daí a possibilidade de «politização» do que seriam apenas actos de administração e também a politização da «burocracia», no sentido weberiano, ao serviço da luta em torno do poder político, tornando mais difícil as distinções.a

Por outro lado, o estatuto da alta administração é diferente consoante os países, sendo conhecido o caso do spoils system dos EUA (substituição dos funcionários quando mudam as maiorias partidárias), diferente do estatuto de estabilidade noutros países ou das situações intermédias.a

Uma segunda tese, que Deter Sela caracteriza como sendo também parte da «perspectiva convencional» considera que a administração está relacionada com a transposição para a prática de «decisões políticas independentes derivadas de outras fontes». Esta parece ser «a teoria mais antiga sobre a relação entre políticos e burocratas» e também «em certa medida, a mais simples». Por exemplo, não pode ser ignorado o papel da Administração Pública na concepção e preparação de grandes decisões políticas, nem o facto de, com frequência, a administração constituir uma actividade com uma larga margem de autonomia e não como mera execução de decisões, orientações políticas ou leis.a

A politização da função administrativa e a influência dos «funcionários» na política, ou a transformação de políticos em algo de semelhante a «funcionários», é muito marcada em diferentes sociedades actuais.a

Também foram defendidos critérios orgânicos de delimitação da «política» e da «administração». Mas já referimos que o Governo é simultaneamente um órgão de exercício da função política, e também o órgão superior da Administração Pública do Estado; e entre os seus actos, pode nem sempre ser muito fácil distinguir o que é político e o que é administrativo.a

Num decreto-lei, por exemplo, podem coexistir medidas que correspondem inequivocamente ao exercício da função política e outras que materialmente se configurariam como sendo mais de natureza administrativa.a

Também não podem ser aceites sem reservas as teorias que distinguem política e administração com base na ideia de que quer os «políticos», quer os «funcionários públicos», estariam envolvidos no processo de decisão política, mas enquanto os segundos interviriam nesse processo com base em «factos e conhecimentos», com «neutral expertise», os primeiros interviriam com base em «interesses e valores» e com «sensibilidade política»; os «políticos» teriam como preocupação central a sua responsabilidade perante os eleitores,

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enquanto os membros de cargos administrativos teriam como preocupação «a eficácia técnica da política». No entanto, há numerosos cargos na Administração Pública cujos titulares, sobretudo de chefia, estão igualmente preocupados com a responsabilidade política perante o eleitorado. São abrangidos por deveres de solidariedade partidária. Estão preocupados com a sua carreira política futura.a

Por outro lado, a actividade política pode ser exercida com formação técnica por parte de pelo menos alguns dos titulares dos cargos políticos. As decisões políticas podem não depender necessariamente das informações dos serviços públicos. Mas essa não é a situação mais frequente. A actividade administrativa não é necessariamente imune nem aos «interesses» nem aos «valores», que supostamente seriam apanágio exclusivo da actividade «política».a

Herbert Simon, pelo seu lado, separa «elementos de facto e éticos nas decisões». Os primeiros seriam característicos da contribuição administrativa para a decisão e os segundos seriam característicos da contribuição política. Mas a política implica uma avaliação autónoma dos factos que a Administração apresenta e que, embora as escolhas éticas possam e devam ter maior campo na política, também têm que estar presentes na actividade administrativa, sobretudo em determinados escalões. A Administração Pública está, sublinhe-se, vinculada por princípios constitucionais, como a igualdade, a proporcionalidade, a justiça e a imparcialidade (artigo 266.º/2) que, sendo jurídicos, têm subjacente uma evidente base ética.a

Uma outra tese admite que quer os «políticos», quer os «funcionários administrativos» estão ligados à política, mas que a distinção entre uns e outros poderia ser feita pelo facto de os primeiros se articularem com os interesses grandes e difusos de indivíduos desorganizados, e os segundos se articularem com os interesses estreitos e localizados de clientelas organizadas.a

Assim, a intervenção dos primeiros tenderia a ser apaixonada, tomando partido, idealista, mesmo ideológica, enquanto a dos segundos seria prudente, centrista, prática, conciliadora, pragmática.a

Mas os titulares de cargos indiscutivelmente políticos ocupam-se, muitas vezes, de interesses do tipo dos que é dito por esta tese caber à administração. De acordo com a «hipótese neocorporativa», é mesmo sistemática a articulação da actividade de titulares de cargos políticos com os interesses organizados. Estaríamos, designadamente, perante o regresso à articulação e à negociação sistemática com entidades sociais, que fariam com que o Estado soberano se transformasse em Estado-parceiro ou Estado-interlocutor.a

Em primeiro lugar, o Estado negociador não deixa de ser soberano. O facto de negociar é a sua forma de ser soberano. Em segundo lugar, o facto de negociar não o remete para uma situação neutra e arbitral, acima de interesses sociais. Em terceiro lugar, a admissão de uma margem para governar mediante negociações, não exclui, no acto de negociar, e subjacente a ele, a conflitualidade social, o que significa que as próprias negociações podem ser atravessadas pelas lutas sociais. É a estes, bem como à comunicação social, mais do que aos interesses indiferenciados, que revelam frequentemente tendências abstencionistas e alheamento da intervenção política, que é dirigida em muitos casos a actividade dos «políticos». Por outro lado, há personalidades políticas que apresentam as características de

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prudência, «centrismo», pragmatismo, etc., que pareceriam ser mais próprias dos titulares de cargos administrativos de acordo com esta tese. Também há casos em que a actividade política pode ser mais rotineira e menos inovadora do que a actividade administrativa.a

Para Peter Self, a política, nas democracias, está relacionada com as actividades dos representantes eleitos ou não eleitos e também com as daqueles que os elegem ou os influenciam; a administração está ligada com as actividades dos funcionários e agentes administrativos profissionais e com os seus conselheiros.a

Mas este critério é relevante em bom número de casos, mas não é aplicável em todas as situações. Pode ser de aplicação mais delicada em sistemas que não são baseados em eleições competitivas, e em casos em que as funções políticas e administrativas se confundem frequentemente nos titulares de certos cargos. Este critério não seria operacional, por exemplo, para estabelecer uma distinção entre política e administração no regime político português que durou até 1974, nem o será igualmente em situações em que os cargos de alta administração são de nomeação governamental, embora eventualmente por um certo período de tempo, podendo a escolha recair em pessoas de confiança pessoal e partidária e que estão normalmente integradas na actividade política activa. É o próprio Peter Self que observa, com razão, que na Inglaterra, e ainda mais em França, os altos funcionários têm certamente mais influência nas decisões políticas do que a maioria dos membros do Parlamento.a

A natureza electiva ou não electiva de um cargo, bem como o facto de emanar ou não do Parlamento, não implica necessariamente que a sua influência no exercício do poder político, ou na sua disputa, seja maior ou menor.a

Um outro critério é a caracterização da política como o campo da actividade não racional, da mudança, da indeterminação e da instabilidade; e a administração como o campo da estabilidade e da rotina.a

Pode-se reconhecer os efeitos da luta, designadamente eleitoral, na política. E a Administração deve estar mais imune a essas situações e ser mais estável. Também se verificam situações em que há um partido dominante que se eterniza no poder e cria efeitos de rotinização e de estabilidade da vida política, quase semelhantes às que são atribuídas à vida administrativa. Para além disso, em particular nas situações em que vigora o spoils system, os cargos da Administração Pública podem estar sujeitos a consequências do que se passa no campo abertamente político. Um adepto desta tese, Karl Mannheim, reconhece que ela conduz a uma zona cinzenta (designada por administrative politics) que não pode com facilidade ser colocada num ou noutro lado da linha de separação.a

As dificuldades de estabelecer a distinção nítida levaram à tendência para a «burocratização da política e politização da burocracia». Esta tendência é fundamentada em estudos que demonstram o aumento do papel dos «staffs» ditos «técnicos» da confiança de «políticos» na tomada de decisões políticas. Por outro lado, os chamados «políticos» são muitas vezes forçados a dominar pormenores de carácter técnico em assuntos sobre que têm que decidir ou em que têm que intervir.a

É difícil estabelecer uma distinção material por natureza e de uma vez por todas. Naturalmente que é possível estabelecer uma distinção formal, como é frequente encontrar em obras jurídicas, que conduza a classificar um acto a partir da sua designação jurídica. Mas em ciência política o problema é mais

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complexo, tal como o é no próprio campo do Direito, quando este tenta adoptar critérios materiais de distinção.a

Se se tiver como base da classificação de um acto como inserido no campo da política o facto de produzir consequências ao nível da luta pelo poder, ou estar inserido nessa luta, é possível ter que reconhecer a transição de assuntos que se poderiam configurar como sendo exclusivamente do campo administrativo para o campo político consoante as circunstâncias do momento.a

A distinção entre política e técnica ou política e administração pode ser objecto de utilização na luta política. Um campo afirmado como técnico ou administrativo é apresentado como o que não é passível de controvérsia política exactamente porque se afirma que releva do domínio da técnica e não do domínio da política. A estratégia do poder político é frequentemente alargar tanto quanto possível o que é apresentado como «técnico», e por isso é afirmado como indiscutível; a estratégia da oposição, pelo seu lado, tenderá a tentar o alargamento do campo da política, questionando, por exemplo, a correcção e a regularidade da gestão ou decisões nos mais diferentes domínios, de modo a retirar daí efeitos políticos.a

Como se vê, parece-nos que nenhum dos critérios referidos é decisivo e que todos podem conduzir à dificuldade de estabelecer uma linha de separação absolutamente nítida entre política e administração. No entanto, é possível estabelecer uma distinção entre o campo político em sentido restrito e o campo administrativo, desde que não se pretenda a sua rigidez e se admita a existência de uma permeabilidade maior ou menor entre os dois campos. Essa distinção pode ser feita com base na ideia de que o primeiro é essencialmente o campo da organização e da definição da estratégia ao nível institucional do domínio de homens sobre homens e das acções para a conservação desse domínio, bem como o campo das lutas para a sua alteração; é o campo do exercício do «monopólio da violência legítima» (Max Weber), e que se auto-organiza para ser legítima, e das lutas que em torno dele se geram. O campo administrativo aparece como essencialmente subordinado a essa estratégia de dominação: situa-se mais ao nível da execução dessa estratégia, o que engloba as tarefas relacionadas directamente com a dominação violenta, mas também as actividades de satisfação directa das necessidades colectivas, incluindo da necessidade de exercício de funções de segurança, embora com carácter subordinado, e também das necessidades de «bem-estar e desenvolvimento». Nesse sentido podemos admitir, com as restrições já referidas, que a função política possa ser o campo da «inovação política essencial», como propõe Marcelo Rebelo de Sousa, e que a função administrativa lhe é subordinada, cabendo-lhe (diríamos em geral) «executar prévias escolhas políticas». Não é difícil configurar actos integrados na função política com uma tal repercussão, bem como actos integrados na função administrativa que não a têm, o que tornaria um tal critério de distinção bem pouco operacional. Estas são asseguradas em grande medida porque tal é imposto pela estratégia de conservação do poder político definida por quem o detém, bem como pelas lutas que se travam em torno desse poder. Esta satisfação directa de necessidades , embora reclamada, e em boa medida sendo o resultado das reclamações de quem está sujeito à dominação, converge para o exercício da estratégia do poder. Não se insere directamente nela, porém, ao contrário do que acontece com a actividade política em sentido restrito. No entanto, não deixa de ser intensamente utilizada pelo «poder simbólico» para afirmar e se fazer aceitar pelo maior número. A distinção assim concebida levará a que se enquadre na actividade administrativa a construção de uma estrada, de uma escola ou de um hospital;

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já será actividade política em sentido restrito o aproveitamento da sua construção, com discursos políticos, inaugurações, declarações na comunicação social, em suma, utilização política da função administrativa junto da opinião pública.a

Esta proposta de distinção é criticável desde logo por também não permitir sempre uma distinção de campos nítida e sem margem para dúvidas; mas a alternativa seria negar a viabilidade de uma distinção entre as duas realidades que, em casos extremos, não são exactamente idênticas.a

2.3. Sistema políticoaA expressão «sistema político» tem uma conotação acentuada com certas correntes e métodos da ciência política que já foram caracterizadas por pretender «suprimir tudo o que possa haver de político na política», na expressão de François Châtelet e Evelyne Pisier-Kouchner. A corrente começou por ter como cultores Robert Dahl, Karl Deutsch, David Easton e outros adeptos do american way of thinking. Proclama como sendo necessária à objectividade científica a rejeição de valores.

A noção engloba a componente sistema , que decorre da teoria geral de sistemas e é a mesma utilizada nas outras áreas das ciências sociais – «um conjunto de elementos identificáveis, interdependentes por um feixe de relações, e que se perfilam dentro de uma fronteira»; e o adjectivo político, que tem feito correr rios de tinta ao longo da História da Humanidade.

Os inputs são exigências de diferentes entidades e dirigem-se a destinatários – os que podem produzir as decisões. Os outputs traduzem-se em decisões políticas que condicionam a vida das populações. Em geral, este facto dá origem a novos inputs, ou novas exigências. Cria-se, assim, um fluxo infindável de exigências-resultados-exigências ou de inputs-outputs-inputs. Ao resultado de outputs através de novos inputs chama-se o efeito de retroacção (the feed-back loop). De entre todos, é político o sistema em que um conjunto de elementos estão organizados em torno do Estado e do «poder político» para o exercer, para o influenciar, para participar, para se submeter ao seu exercício ou para o combater. Daqui decorre que, ao contrário de certas teorias sistémicas que fizeram fortuna entre muitos cultores da ciência política, é necessário um «regresso ao Estado», mesmo se este conceito, e o de poder, forem compreendidos «num novo contexto mental». O Estado tem que ser visto como articulador e centro dos sistemas políticos; é em direcção a ele que é dirigida parte decisiva dos inputs , isto é, da «energia e da informação» proveniente do contexto em que o sistema se insere e que tanto se podem traduzir em exigências e reclamações como em apoios; é por ele que são produzidos grande parte dos outputs . Parece-nos, portanto, preferível reportar a definição de sistema político ao Estado em vez de definições como a de Easton que o consideram como «o conjunto de interacções pelas quais os objectos de valor são repartidos por intermédio da autoridade numa sociedade». É a centralidade do Estado que recorta decisivamente o político, na época moderna, entre os outros sistemas sociais.

Numa óptica funcionalista, é no Estado que têm que ser encontrados os elementos do sistema político que desempenham a função de assegurar a coerção e até mesmo boa parte dos elementos que têm a função de organizar o consentimento, ou, noutros termos, de exercer o poder e conquistar a autoridade. Por isso, o conceito de Estado é essencial e é um elemento central de sistemas políticos actuais.

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É fácil reconhecer que a distinção entre input-output e suas funções «resulta amiúde demasiado esquemática»; e que o tipo de funções proposto por Almond e Coleman não estão devidamente articuladas e que «ficam justapostas sem que se veja claramente em que relação mútua se encontram e como actuam reciprocamente».

Em síntese, se é útil o conceito de sistema político, é difícil negar a necessidade de um retorno ao Estado enquanto componente do sistema político; ou a vantagem da utilização deste último conceito como um método, entre outros, de reflectir ao nível científico a mobilidade social e a sua inevitável articulação em torno do poder.a

2.4. EstadoSendo adequada a afirmação de que a visão realista do processo de decisão política e da intervenção dos grupos na sua formação não pode prescindir do Estado torna-se necessária a definição do conceito de Estado e do seu lugar no sistema político que possam constituir uma base alternativa às teorias grupistas.

É assim que, na linha de Jellinek1, Marcello Caetano definiu o Estado como «um povo, fixado num território de que é senhor, e que institui, por autoridade própria, órgãos que elaborem as leis necessárias à vida colectiva e imponham a respectiva execução». Recorde-se a distinção frequente em estudos jurídicos entre o Estado «na acepção lata» que, dotado de soberania, se configura como «pessoa colectiva de direito internacional» e o Estado «na acepção restrita» que é uma «pessoa colectiva de direito público interno», o Estado-administração, ou «o que resta da organização político-administrativa depois de criadas ou reconhecidas por lei as pessoas colectivas de direito público cuja existência o legislador repute necessário à boa gestão dos interesses gerais».

Encontramos outra definição próxima desta concepção em Marcelo Rebelo de Sousa, para quem o Estado é «um povo fixado num determinado território que institui por autoridade própria, dentro desse território, um poder político relativamente autónomo. Este tipo de definição era, aliás, mais ou menos clássica na teoria jurídica do Estado.

Se esta abordagem é de discutível adequação do ponto de vista do Direito, mais ainda o é do ponto de vista da Ciência Política. Ficam escondidos os conflitos, as contradições, as forças que se movem em torno da elaboração de normas jurídicas, dos seus efeitos, do seu modo de aplicação e até da sua não aplicação; e, sobretudo, a diferença entre o que está legislado e o que é efectivamente vivido.

A abordagem do Estado ganha em conjugar a perspectiva jurídica – o Estado é normativamente regulado e produz normas – com a perspectiva sociológica – o Estado é um facto social e que está no centro de factos sociais, e de uma categoria especial deles, que é constituída pelos factos políticos.

Mas não é adequado proceder a uma análise do fenómeno e do processo de decisão política que se centre na análise de grupos, decompondo o próprio Estado para o tornar num conjunto de grupos, entre outros. Os órgãos do

________________________________1 Georg Jellinek, Teoria Generale del Estado, trad., Buenos Aires, Albatros, 1981, p. 133 e pp.295 e segs, em particular a «síntese»: «O Estado é a unidade de associação dotada originariamente de um poder de dominação, e formada por homens instalados num território» (p. 133. Sublinhado no original).

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Estado não podem deixar de ser tidos como tendo um papel essencial no modo como ocorrem e se articulam os factos políticos e como decorre o procedimento para a decisão política.

Com efeito, a luta política tem como objectivo essencial a disputa de posições em órgãos de poder ou a tentativa de grupos no sentido de influenciar o exercício de poder por parte de órgãos de Estado. Estes são decisivamente influenciados por grupos sociais; é certo que se desenvolve o papel dos «poderes invisíveis» de que fala Norberto Bobbio; por detrás dos órgãos de poder estão muitas vezes partidos políticos ou grupos e os seus leaders. Mas também é verdade que o Estado ocupa sempre um lugar central nas suas lutas. Ele é o destinatário maior das solicitações ou inputs dos grupos, bem como o principal «troféu da política». Também é fundamental o facto de o Estado ser «o regulador da luta de que se constitui troféu». Esta actividade reguladora não é isenta, mas influenciada por parte dos que participam na luta, sobretudo por parte de alguns deles, em posição de determinar, ou quase, o seu resultado. O Estado nunca é um mero «grupo» como qualquer outro, nem um conjunto de entidades ou grupos sem unidade conceptual relevante («chefe de Estado», deputados, regiões, eleitos regionais, autarquias, «burocracia», funcionários), lutando entre si para exercer ou influenciar o poder como quaisquer outros grupos.

É claro que se podem verificar conflitos entre órgãos de Estado. Existem organizações, aliás, que assumem a natureza de grupos de pressão, tais como as associações de eleitos autárquicos e outras (de professores, de magistrados judiciais, de magistrados do ministério público, de militares, de polícias) que são constituídas por pessoas que são titulares de órgãos do Estado ou trabalham para o Estado.

É necessário sublinhar ainda que o «povo» , referido como elemento do Estado, (e que é qualificado como mero conceito jurídico que abrange todos os que detêm uma nacionalidade) se reparte na realidade em «elite de poder» ou «classe política» e os que a ela não pertencem – para quem adopte estes conceitos – e em classes, camadas, categorias sociais, grupos de pressão e de interesse, que se situam de forma muito diferente em relação ao poder, quer nos custos que suportam, quer nos benefícios que extraem e na capacidade, ou falta dela, de o influenciar.

O poder político é atravessado por contradições e lutas mais ou menos intensas, mas visa prioritariamente e em última análise fazer funcionar e garantir o futuro de um certo modo de produzir, o que implica a coerção, mas também, sobretudo na época do «capitalismo tardio», a resposta mínima do Estado a problemas de toda a sociedade, capaz de permitir criar a imagem de que prossegue exclusivamente os «interesses gerais». Para tal impõe-se a complexa conjugação da prossecução dos interesses de classe com a prossecução efectiva de interesses gerais, para afirmar estes como sendo fins exclusivos do Estado e negar aqueles como existentes, ou afirmar que se identificam com os interesses gerais.

Assim, o Estado, embora o «monopólio de força legítima» de que fala Max Weber, implica também não só a força mas também a sua legitimação – que vai desde a forma de designação dos seus órgãos até à resolução mínima dos problemas que lhe são socialmente colocados.

Em resumo, o Estado é um aparelho que exerce o poder e a autoridade numa sociedade instalada num território com o fim de regular e assegurar um determinado modo de produzir bens e garantir a resolução de problemas

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gerais dessa sociedade na medida imposta pela correlação de forças e necessária para obter o máximo de consentimento imprescindível para assegurar a continuidade da dominação e organizar-unificar o bloco no poder e desorganizar-dividir o «bloco social» dominado.

Se atendermos ao modo como são designados os órgãos superiores do Estado (Presidente da República ou Rei ou raínha, Parlamento, Governo), aos seus poderes e modo como se relacionam entre si, teremos o conceito de forma de governo se analisarmos a questão em termos jurídicos; teremos o conceito de sistema de governo se analisarmos esta mesma questão em termos reais. É este tipo de análise que nos permitirá dizer, por exemplo, que os EUA têm uma forma e um sistema de governo presidencial, o Reino Unido é uma monarquia com uma forma de governo parlamentar e um sistema de governo de gabinete (ou de presidencialismo de Primeiro Ministro) e Portugal uma forma de governo mista parlamentar-presidencial (ou semipresidencial como outros preferem) e um sistema de governo que tende para o presidencialismo de Primeiro Ministro, sobretudo em situações de maioria parlamentar absoluta do partido do Governo.

Quanto ao método de designação dos órgãos superiores do Estado, é usual distinguir

➢ a sucessão,➢ a nomeação,➢ a cooptação e➢ a eleição.

A sucessão conduz a situações de monarquia, em que funciona a hereditariedade; a nomeação e a cooptação são hoje menos frequentes ao nível de certos órgãos superiores do Estado como o Chefe de Estado ou os membros de assembleias políticas, mas ainda se verificam por vezes, de facto e não de direito, sobretudo em países da periferia. A eleição é hoje o modo mais frequente de designação directa de órgãos como os parlamentos e indirectamente de outros, o que não significa que não existam modos muito diversificados de os sistemas eleitorais se organizarem e funcionarem, como teremos oportunidade de referir mais adiante.

O conceito de regime político atende aos métodos com que o poder político é exercido, à forma de dominação do Estado e ao modo como manifesta a sua força.

Quanto à estrutura, podemos falar em➢ Estados federais, nos quais, no caso das federações perfeitas, um

conjunto de Estados que eram independentes atribuíram a um Estado federal um conjunto de Competências consideradas de interesse comum, e desde logo a defesa e a representação externa;

➢ Estados unitários com regiões políticas ou político-administrativas, abrangendo nuns casos todo o território e noutros apenas uma parte;

➢ Estados unitários centralizados ou descentralizados, consoante o papel maior ou menor de entidades territoriais eleitas como as autarquias locais, etc..

O Estado português actual pode ser classificado como correspondendo a um tipo dominante capitalista, a uma forma de governo «mista parlamentar-presidencial», a um sistema de governo que tem evoluído, mas que se aproxima nos últimos anos do presidencialismo de Primeiro Ministro, a uma estrutura unitária centralizada mas parcialmente regionalizada (Açores e Madeira) e a um regime democrático.

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2.5. Partidos e sistemas partidáriosAs propostas de conceitos de partido político são relativamente abundantes, mas quase todas têm alguns elementos em comum. Mas são frequentemente criticáveis em alguns pontos se tiverem a pretensão de abranger toda e qualquer realidade que se autodesignou ou foi designada como partido.

Consideremos, por exemplo, a definição «mínima» de partido de Giovanni Sartori: «um partido é qualquer grupo político identificado por uma etiqueta oficial que se apresenta a eleições, e pode fazer eleger em eleições (livres ou não) candidatos a cargos públicos». São possíveis imediatamente algumas observações, nalguns casos formuladas pelo próprio Sartori: por exemplo, que o partido nazi nunca se submeteu a eleições após a tomada do poder. Não cabem também na definição «mínima» os partidos clandestinos de resistência, que não são reconhecidos pelo Estado e sim perseguidos, nem disputam eleições (embora possam estar por detrás de candidaturas a «eleições» não competitivas).

A definição de partido tem que ser suficientemente larga, mas é preciso ter em conta que o aparecimento dos partidos como realidades próximas das actuais coincide com a presença de grandes massas da população na vida política, e em particular com a conquista do sufrágio universal e com a organização de partidos de classe, nascidos no exterior do Parlamento a partir do mundo do trabalho. É com a necessidade dessa organização, que procura ser de massas, e com a sua presença no sistema político e na disputa do poder de forma competitiva que os partidos assumem plenamente o seu moderno papel. Como afirma Loewenstein, «o sistema de partidos foi obrigado a permanecer com uma forma rudimentar sempre e quando o parlamento, em virtude do sufrágio restrito, não era mais do que um clube fechado de dignatários representante de uma classe dominante homogénea».

O conceito de Adriano Moreira – «partidos são organizações que lutam pela aquisição, manutenção e exercício do poder» – foge a algumas das observações feitas à definição mínima de Sartori; mas poderá não estabelecer uma fronteira com «poderes invisíveis» que Norberto Bobbio refere e que visam os mesmos fins, embora negando e ocultando a sua actividade e procurando actuar por interpostos «poderes», incluindo através de partidos. Por isso, acrescentaríamos à menção a «luta pela aquisição, manutenção e exercício do poder» a exigência de a luta dever visar que essa aquisição, manutenção e exercício do poder tenham um carácter directo.

Segundo Marcelo Rebelo de Sousa, partido «é uma entidade dotada de personalidade jurídica, de tipo associativo; tem carácter duradouro; visa representar politicamente a colectividade e participar no funcionamento do sistema de governo constitucionalmente instituído; para esse efeito, dispõe da faculdade de apresentação de candidaturas às eleições dos órgãos de poder político do Estado».

J. La Palombara e M. Weiner propõem quatro condições para a existência de um partido político:• uma organização durável, quer dizer uma organização cuja esperança de

vida política seja superior à dos seus dirigentes em funções;• uma organização local bem estabelecida e aparentemente durável,

estabelecendo relações regulares e variadas com o escalão nacional;• a vontade deliberada dos dirigentes nacionais e locais da organização de

tomar e de exercer o poder, sós ou com outros e não apenas simplesmente de influenciar o poder;

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• o desejo, enfim, de procurar um apoio popular através de eleições ou de outra forma.

Dito de outra forma: visa a operacionalidade face às democracias representativas e não o enquadramento de toda e qualquer realidade existente na história ou no espaço que foi declarada como sendo um partido. É legítimo deste ponto de vista adoptar este critério; mas temos que ter em conta a sua limitação.

Segundo Karl Loewenstein «na moderna sociedade tecnológica de massas todo o governo é sempre governo de partidos, independentemente de se tratar de um sistema político autocrático ou democrático constitucional».

A atitude do Estado face aos partidos foi passando progressivamente da oposição à indiferença, depois à legitimação e por fim à incorporação2, como realidade política constitucionalmente relevante, ou, segundo outros, mesmo como parte do Estado. Em todo o caso, os conceitos de partido e de sistema partidário são essenciais para analisar quer os actuais sistemas políticos, quer o Estado e o poder, a sua disputa do poder e o seu exercício.

A candidatura de partidos, substituiu muitas vezes a candidatura individual aos lugares de deputados. Estes fenómenos tiveram consequências profundas no funcionamento do sistema, das relações entre os órgãos, da determinação da sede do poder: Ostrogorski apontava já em 1902 o fenómeno, salientando a passagem do tempo em que o leader do partido era o primus inter pares ao tempo em que se passou a transformar em «general comandante em chefe de uma armada».

Seja como for, não é concebível a actividade parlamentar, na generalidade das democracias contemporâneas, sem o papel essencial dos partidos políticos.

Dentro do conceito genericamente exposto, podemos encontrar diversos «planos de observação» e «dimensões de análise»:• «organização actuante no sistema político, usando meios políticos de

acção e de expressão»;• que desempenha uma «função de representação política»;• que é um «centro de decisão política»;• que pode exercer uma «função de dominação» e uma «função de

orientação»;• que pode ser um produtor de «estratégia»;• que pode gerir um «estatuto de diferenciação num contexto concorrencial

condicionado por um eleitorado de massa»3.Quanto à relação dos partidos com o Estado, há quem os integre teoricamente neste. A questão tem que ser equacionada face a cada sistema político. A natureza privada não diminui o seu papel: as importantes e decisivas funções no plano político e o estatuto constitucional que é conferido aos partidos distinguem-nos radicalmente de outras associações privadas.

Tendo em conta o carácter operacional dos tipos, podemos falar em• «partidos de quadros» e «partidos de massas», observando que o critério

proposto não é a dimensão ou o número de membros mas a estrutura;________________________________2 Georges Burdeau distingue o Estado partidário, em que o Estado é instrumento do partido único, e o Estado de partidos, existente «no regime de poder aberto que correspondem ao que se convencionou chamar democracias ocidentais».3 São estes alguns dos «vinte cinco planos de observação que correspondem a um igual número de dimensões de análise» que propõe Joaquim Aguiar, A Ilusão do Poder – Análise ao Sistema Partidário (1976-1982), Lisboa, Dom Quixote, 1983, p. 29 e segs.

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• «partidos de origem eleitoral e parlamentar» e «partidos de origem exterior»;

• partidos directos e partidos indirectos – sendo estes uma união de grupos sociais de base (profissionais ou outros) em que adesão ao partido decorre indirectamente da adesão ao grupo;

• partidos de individualidades, partidos de militantes e partidos de eleitores;• partidos abrangentes (catch-all-parties) e partidos de «representação de

classes, grupos ou ideologias» claramente definidas.

Quanto aos sistemas partidários, podemos defini-los como conjuntos de partidos, das relações que estabelecem entre si e com o Poder, das suas características, dimensões e funções que desempenham num determinado sistema político. Estão excluídos, portanto, os «one-party systems». Eckstein tem razão, à parte a tendência para a redução do sistema partidário à mera competição eleitoral, quando afirma que em sentido estrito não existem sistemas partidários de um partido porque se o sistema de partidos envolve as interacções entre partidos no processo de competição eleitoral então a ideia de sistema de um partido é logicamente absurda, porque não pode haver competição ou interacção com um actor apenas.

A classificação tradicional distingue sistemas bipartidários, multipartidários e de partido dominante. Mas tem razão de ser a observação de que é de substituir os dois primeiros termos por sistemas bipolares e multipolares, ou por outros conceitos como «multipartidarismo bipolar» (Alemanha) ou «multipartidarismo pluripolar» (Itália) que procuram ter em conta o número de partidos e o seu peso no funcionamento do sistema. Basta pensar que sistemas como o do Reino Unido, que são frequentemente apresentados como exemplo de «bipartidários», abrangem mais de dois partidos com peso eleitoral e representação parlamentar, incluindo o Partido Liberal, que já obteve significativas votações.

É de registar também a classificação de Schwartzemberg , que distingue, com base no critério fundamental da concorrência e, em função da sua regressão, entre os sistemas competitivos,• os sistemas de multipartidarismo (integral e temperado);• os sistemas de bipartidarismo (imperfeito e perfeito); e• os sistemas de partido dominante e, de entre estes, dominante e

ultradominante.

Têm também sido apresentadas outras classificações ou até uma «taxinomia» de Sartori, como este lhe chamou, por atender a vários critérios, «qualificando» os critérios quantitativos4, designadamente com base no «potencial de governo»5. Temos assim sistemas de partido único, de partido hegemónico, de bipartidarismo, de pluralismo e de atomização, que seria uma categoria praticamente teórica, em que nenhum partido tem influência apreciável em qualquer outro. É em função do «potencial de coligação» ou da distância ideológica (que permite distinguir a polarização da segmentação) que Sartori chega a classes e tipos de sistemas multipartidários como situações de «pluralismo moderado», de «pluralismo extremo», de «pluralismo polarizado». Note-se, em todo o caso, que é condição para que um sistema seja

________________________________4 Sartori afirma, designadamente, que «o critério numérico de classificação não permite apreender o que importa» (Partidos y Sistemas de Partidos, p. 153), embora este critério seja, obviamente, um dos que toma em consideração.5 Ibidem, p. 156. Em relação aos sistemas multipartidários, Sartori também conta com «a capacidade potencial de intimidação ou chantagem (blackmail potential), que abrange partidos sem potencial de governo, mas com influência relevante no sistema» (pensava em particular em poderosos partidos comunistas da época em que escreveu).

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multipartidário, segundo Sartori, que seja «provável que nenhum partido se aproxime, ou pelo menos que mantenha a maioria absoluta».

Dentro da preocupação de «qualificar» os critérios meramente quantitativos pode ter interesse a distinção entre• sistemas de partido rígido – os partidos são caracterizados pela forte

coesão interna e por um papel central no funcionamento dos sistemas políticos, e

• sistemas de partido maleável ou leve (souple) – os partidos têm uma estrutura menos coesa e mais débil, não existe sempre disciplina de voto e não desempenham por vezes um papel central no funcionamento dos sistemas políticos: é o caso dos EUA.

A grande importância dos partidos políticos fez com que fosse prestada especial atenção ao seu funcionamento. Levantou-se, em especial, a questão de o financiamento privado ser passível de conduzir a que os partidos políticos ficassem dependentes do poder económico, bem como a questão de se poder verificar uma grande desigualdade de meios entre os diversos partidos.

No caso português, o último diploma publicado sobre este assunto foi a Lei n.º 56/98 de 18 de Agosto. Aí se estabelece que os partidos podem ter como fontes de financiamento da sua actividade as receitas próprias e outras, podendo estas últimas serem provenientes de financiamento privado ou de subvenções públicas. Como receitas próprias são referidas• as quotas e outras contribuições de filiados do partido;• as contribuições de representantes eleitos em listas apresentadas pelo

partido ou por este apoiadas;• o produto de actividades de angariação de fundos desenvolvidas pelo

partido;• os rendimentos provenientes do património do partido; e• o produto de empréstimos.

Como receitas provenientes do financiamento privado são referidos• os donativos de pessoas singulares ou colectivas e• o produto de heranças ou legados.

Os donativos de natureza pecuniária que provêm das chamadas «pessoas colectivas», entre as quais se destacam empresas, não podem exceder o montante total anual de mil salários mínimos mensais nacionais, sendo

obrigatória a indicação de origem; no caso de se tratar de donativos de indivíduos os donativos estão sujeitos ao limite de 30 salários mínimos mensais anuais por doador. São admitidos donativos anónimos, desde que não excedam no total annual 500 salários mínimos mensais anuais. É excluída, entretanto, a possibilidade de donativos• de empresas públicas,• de sociedades de capitais exclusiva ou maioritariamente públicos,• de empresas concessionárias de serviços públicos,• de pessoas colectivas de utilidade pública ou dedicadas a actividades de

beneficência ou de fim religioso,• de associações profissionais, sindicais ou patronais,• de fundações e• de governos ou pessoas colectivas estrangeiras.

Quanto ao financiamento público, pode distinguir-se• a que se destina a actividades correntes dos partidos e• a que se destina a campanhas eleitorais.

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A subvenção é concedida aos partidos representados na Assembleia da República e deve ser requerida ao Presidente da Assembleia da República e corresponde a uma quantia em dinheiro equivalente a 1/225 do salário mínimo nacional mensal por cada voto obtido na mais recente eleição de deputados à Assembleia da República. É igualmente concedida uma subvenção aos partidos que não tenham obtido representação na Assembleia da República mas obtenham mais de 50 mil votos.

No caso de despesas em campanhas eleitorais, estão estabelecidos limites máximos às despesas admissíveis:• 5500 salários mínimos mensais nacionais na campanha eleitoral para a

Presidência da República, acrescidos de 1500 salários mínimos mensais no caso de se proceder à segunda volta;

• 35 salários mínimos mensais nacionais por cada candidato apresentado na campanha eleitoral da Assembleia da República;

• 20 salários mínimos mensais nacionais por cada candidato apresentado na campanha eleitoral para as Assembleias Legislativas Regionais;

• um quinto do salário mínimo mensal nacional por cada candidato apresentado na campanha eleitoral para as autarquias locais; e

• 180 salários mínimos nacionais por cada candidato apresentado na campanha eleitoral para o Parlamento Europeu.

Quanto às receitas de campanhas, só podem ser• a subvenção estatal,• a contribuição de partidos políticos,• as contribuições de indivíduos e de «pessoas colectivas», com excepção

das que não podem contribuir para os partidos políticos e• o produto de actividades de campanha eleitoral.

Os donativos de «pessoas colectivas» não podem exceder 100 salários mínimos mensais por cada «pessoa», sendo obrigatório indicar a sua origem; o mesmo limite está estabelecido para os donativos de indivíduos, sendo obrigatório titular por cheque quando o quantitativo exceder 15 salários mínimos mensais nacionais. São ainda, até este limite, admitidas doações anónimas.

Quanto às subvenções estatais a campanhas eleitorais, está previsto que tenham direito a ela os partidos que concorram a 51% dos lugares sujeitos a sufrágio para a Assembleia da República, para as Assembleias Legislativas Regionais ou para os órgãos municipais e que obtenham no universo a que concorram pelo menos 2% dos lugares e os candidatos à Presidência da República que obtenham pelo menos 5% dos votos. O montante da subvenção é de 2500 salários mínimos nacionais no caso da eleição da Assembleia da República e das autarquias locais; 1250 no caso da eleição do Presidente da República; e 250 no caso das Assembleias Legislativas Regionais. A repartição da subvenção é feita distribuindo 20% do montante total por igual entre os partidos e candidatos que preencham os requisitos referidos; e 80% na proporção dos resultados eleitorais obtidos.

2.6. Grupos de pressão e de interesseArthur Bentley, na obra The Process of Government (1908), «procurava, exactamente com a sua exposição polémica, chamar a atenção e o interesse dos politólogos das instituições jurídico-formais para as actividades informais desenvolvidas por vários grupos da sociedade. E é exactamente como tentativa de provocar o rompimento do predomínio das disciplinas jurídicas e parafilosóficas no estudo dos fenómenos políticos e de propor uma análise

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descritiva e empírica – embora apenas dentro de um critério restrito – que é compreensível a sua afirmação, de que a grande função «”o estudo de qualquer forma da vida social e á análise destes grupos. Quando os grupos são devidamente apresentados tudo é apresentado, e, se digo tudo, entendo tudo”». Mais recentemente, é importante a obra de David Truman (1951) que procuraram chamar a atenção da ciência política para a importância das actividades informais no processo de decisão política e como esta poderia mesmo ser maior do que a ctividade dos órgãos a quem do ponto de vista jurídico cabe decidir.

A definição de grupos de pressão e de interesse não é simples. David Truman, em especial, definia grupo de interesse como «qualquer grupo que, à base de um ou vários comportamentos de participação, leva adiante certas reivindicações em relação a outros grupos sociais, com o fim de instaurar, manter ou ampliar formas de comportamento que são inerentes às atitudes condivididas».

Poderemos tentar definir grupo de interesse como o conjunto de indivíduos que estão estavelmente ligados, ou pelo menos organizados para acções concretas, para prosseguir um ou mais objectivos comuns; o grupo de pressão existirá quando um conjunto de indivíduos estavelmente organizados procura prosseguir esse ou esses objectivos comuns através da tentativa de, por qualquer meio, intervir no processo de decisão política, de modo a influenciar a seu favor a decisão final de órgãos do Estado.

Daqui decorre que todos os grupos de pressão são grupos de interesse mas que nem todos os grupos de interesse são grupos de pressão. E decorre, por outro lado, que os grupos de pressão são objecto de estudo privilegiado da ciência política, sendo os grupos de interesse que não são grupos de pressão um campo de estudo que cabe a outras ciências sociais.

Quanto à classificação dos grupos, podem ser vários os critérios :• os interesses prosseguidos (económicos, culturais, sociais, ecológicos,

religiosos, etc.);• a pertença ou não a organismos públicos (admitindo que os magistrados,

os eleitos autárquicos, os funcionários públicos, etc., podem constituir-se em grupos de pressão);

• os processos utilizados (legais ou ilegais; persuasão ou chantagem);• a participação em estruturas de «concertação» ou não, etc..

Terá sido no Reino Unido que o termo lobby apareceu há um século e meio para designar os grupos de interesse que procuram influenciar as decisões do Parlamento. Mas a origem de um termo e a sua regulamentação não se identificam com o fenómeno em si mesmo, e por isso Michael Rush terá razão quando afirma que a pressão política é tão antiga como a própria política.

Hoje não é possível limitar-nos à perspectiva de conceber a actividade dos grupos como exterior ao poder: há representantes de grupos de pressão sentados nas bancadas do poder legislativo6.

Os grupos de pressão são tão importantes na opinião de alguns autores que há mesmo quem contraponha a eficácia dos grupos à influência supostamente em declínio de instituições tradicionais tais como partidos, eleições ou Parlamento ou fale da crise do mandato representativo em consequência do «regresso do corporativismo». A verdade é que os grupos de pressão não

________________________________6 A relação entre deputados e grupos de pressão é conhecida em vários países e já levou mesmo a criar «registos de interesses» em alguns casos.

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constituem necessariamente o centro do sistema político actual, mas este não pode ser concebido sem estes elementos.

A atenção prestada pela ciência política de alguns países aos grupos de pressão levou a que alguns politólogos fossem apelidados de «muckrakers» ou investigador do lixo, como aconteceu a autores norte-americanos. O que é certo é que hoje a influência dos grupos de pressão é genericamente considerada como essencial, quer em estudos de direito público, quer em estudos de ciência política.

De resto, de entre as próprias decisões políticas em democracias representativas haverá que distinguir as que são eleitoralmente compensadoras, ou politicamente atractivas para legisladores e decisores políticos; e é incontestável que o são mais as que agradam a poderosos e influentes grupos de interesse ou de pressão do que as que servem grupos desorganizados de beneficiários, que não transformam o seu agrado com as decisões em compensação eleitoral, capaz de mostrar a sua gratidão.

Por outro lado, é frequente os decisores políticos e os deputados prestarem mais atenção às repercussões do seu voto e posições entre os grupos do que entre o chamado cidadão comum. Não só estes têm influência na opinião pública como os deputados sabem que os trabalhos são seguidos frequentemente com mais atenção entre os «interesses organizados» do que entre o eleitor vulgar que não tem muitas vezes uma consciência tão nítida da repercussão das decisões parlamentares nos seus interesses pessoais.

Os grupos de pressão passaram a ser encarados, em muitos casos, com naturalidade e como uma componente do sistema político, a ponto de se falar na época do «corporativismo democrático ou liberal» ou em «neo-corporativismo»7.

Paralelamente a esta evolução, as expressões «grupo de interesse», «grupo de pressão», «lobby» ou «lobbying» deixaram de ter o sentido pejorativo que lhes estava associado tradicionalmente para serem naturalmente assumidas, e até organizada a participação de grupos como uma forma de «democracia

participativa», que aliás afecta e condiciona por vezes decisões posteriores do poder político, incluindo os parlamentos. Neste quadro, a acção de sindicatos ou associações de defesa do ambiente pode ser colocada no mesmo plano teórico de outras que procuram tratar de interesses estritamente privados e até eticamente discutíveis.

2.7. «Classe política» e «elite de poder»Quanto ao conceito de «classe política» a tentativa original parece dever-se a Gaetano Mosca. A imprecisão do conceito, porém, foi criticada desde o início por diversos autores. Conta-se entre os primeiros que o fizeram António Gramsci, que afirmou que o problema da classe política, tal como é apresentado nas obras de Gaetano Mosca, é não se compreender «com clareza o que Mosca entende precisamente por «classe política» de tal modo a noção é elástica e ondulante. Algumas vezes parece que a burocracia, inclusivé no seu estrato superior, está excluída da classe política na medida exacta em que deve ser controlada e guiada pela classe política».________________________________

7 Pierre J. Pararas, «Le Retour du Corporatisme en France – La Crise du Mandat Représentatif», p. 427, designa por estas expressões uma forte tendência de cooperação entre grupos de interesse e representantes de poderes públicos.

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Pierre Birbaum, por exemplo, distinguiu classe política em sentido lato e em sentido restrito. A primeira compreende tanto «o pessoal político» stricto sensu, profissionalizado, como seria o caso dos parlamentares ou ministros mas também os membros da alta administração, que exercem uma competência de outra natureza.

Joseph La Palombara identifica a classe política com «uma proporção relativamente diminuta da população, cujas opiniões e actos de participação têm mais importância, politicamente, do que seria o caso com respeito ao resto da população. A composição desta classe varia e seria extremamente difícil definir os limites da mesma. Para La Palombara, a elite política seria o subgrupo de classe política que, em qualquer momento dado, e por longos períodos de tempo, determina em maior ou menor medida as políticas públicas e as maneiras como serão implementadas.

Há certos factores de identificação que também são invocados, tais como a elevada situação social, sistemas de forte aceitação política e densidade de filiação organizacional que tornam determinados cidadãos mais relevantes politicamente do que outros, mas que não asseguram a orecisão e capacidade operacional que deve ter o conceito. A não ser que nos resignemos aos contornos imprecisos (e esta não seria a única questão). Com efeito, para além da delimitação por vezes pouco rigorosa do conceito de classe política, parece-nos pouco adequado aplicar o termo classe em sentido que não é coincidente com o utilizado normalmente nas ciências sociais – e na sociologia em particular – quer de inspiração marxista, quer quando se trata do conceito derivado da obra de Max Weber.

O conceito de elite política ou elite de poder, embora possa não ser igualmente isento de marcas e intenções não estritamente científicas, tal como aconteceu com o conceito de «classe política»8, é passível de ser recortado com um mínimo de precisão e evita a crítica de que representa a utilização do termo «classe» em sentido não rigoroso, como acontece com a proposta de conceito de «classe política».

A utilização do conceito para estudar as características dos detentores do poder não deve deixar de ter em conta os pressupostos políticos e ideológicos que lhe estiveram associados frequentemente e que Giovanni Sartori assinala quando refere que os teóricos clássicos da «classe política» e da teoria das elites tais como Mosca, Pareto e Michels foram «muito críticos em relação à democracia».

A intenção de as teorias da classe política e das elites, na origem, pretenderem contestar o marxismo é geralmente afirmada9. Outro autor, Schwartzenberg, assinala como aspecto essencial na obra de Pareto «a recusa da concepção marxista da luta de classes» e que foi em sua substituição que propôs a teoria da «circulação das elites», que explica a história como a «contínua substituição de um escol por outro». No mesmo sentido essencial, Norberto Bobbio, assinala a «fortíssima carga polémica antidemocrática e anti-socialista, que reflectia bem o grande medo das classes

________________________________8 Referimo-nos, naturalmente, às teorias elitistas mais recentes, e que pretenderam colocar-se no campo das ciências sociais. É usual invocar pergaminhos e percursores para as teorias elitistas, tais como Platão, que «apresentava o elitismo como estando na natureza da realidade biológica» ou como Aristóteles, que «fez ver que o avanço do conhecimento é estimulado por uma classe ociosa que tem tempo de pensar e governar» (Irving Louis Horowitz, Fundamentos de Sociologia Política, trad., México, Madrid, Buenos Aires, Fondo de Cultura Economica, 1972, p. 143).9 No caso de Michels, verifica-se um percurso que vai do marxismo até à colaboração com Mussolini na fase final da sua vida. Cfr. Maria da Conceição Pequito Teixeira, «Robert Michels: Democracia, Liderança e Oligarquia», separata de Elites e Poder, Lisboa, ISCSP, 1997, pp. 111 e segs.

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dirigentes dos países onde os conflitos sociais eram ou estavam para se tornar mais intensos».

Existe, portanto, o entendimento geral nas teorias das elites de que todas as sociedades comportam a distinção fundamental entre a massa e a elite, que esta é sempre uma restrita minoria e que o «carácter de uma sociedade» é, antes de mais, o carácter do seu escol, que é determinante das opções populares.

Quanto à definição de elites, podem registar-se definições sem a conotação antidemocrática, ou não democrática, e que ligam o conceito essencialmente à influência nas decisões, como é o caso da adoptada por João Bettencourt da Câmara: «Elites são grupos ou agregados sociais que, por deterem o poder e/ou a autoridade exercem influência criando, conservando, modificando ou extinguindo condutas sociais relevantes e/ou alterando as suas posições relativas no sistema de poder em que participam»10. Refira-se igualmente a definição de Guy Rocher, para quem «a elite compreende as pessoas e os grupos que, graças ao poder que detêm ou à influência que exercem, contribuem para a acção histórica de uma colectividade, seja pelas decisões tomadas, seja pelas ideias, sentimentos ou emoções que exprimem ou simbolizam».

A distinção entre as elites que correspondem a grupos e as que correspondem a agregados sociais contempla o facto de poderem existir elites que não são grupos mas meramente «elites simbólicas», como os desportistas profissionais. Estes apenas merecem referência na nossa óptica porque podem ser politicamente relevantes: por exemplo, por aparecerem no tempo de antena de um partido ou de um movimento, numa eleição ou num referendo, com a produção de efeitos políticos.

Sublinhe-se igualmente que, segundo esta construção existem elites em todas as classes sociais:

A ideia de elite tem (...) a ver com a superioridade dentro de um determinado grupo, não sendo necessariamente contraditória com o conceito de classe, como queriam alguns autores.

Noutros termos, é sugestiva a análise de Pierre Bourdieu, que se refere designadamente ao «corpo de profissionais» que, no campo político tem o «monopólio da produção», remetendo os outros cidadãos à categoria de consumidores afastados dos locais de produção, os quais «estão tanto mais condenados à fidelidade às marcas conhecidas e à delegação incondicional nos seus representantes quanto mais desprovidos estão de competência social para a política e de instrumentos próprios de produção de discursos ou actos políticos».

Importa sublinhar a distinção entre «o modelo pluralista» da teoria das elites, dominante na ciência política norte-americana e que tem um adepto na Europa em Raymond Aron, que acentua a diversidade das elites e a concorrência entre elas e o «modelo da elite de poder ou elite dominante» que não acentua a concorrência entre elites mas sim que o poder político está concentrado num grupo social estreito, com origens sociais, status económico e idêntica educação e cultura.

É de sublinhar que operar com o conceito de elite pode implicar objectivos ________________________________10 Este «conceito operacional construído por João Bettencourt da Câmara a partir da definição de elite de Adriano Moreira» é citado por Hermano Carmo, Os Dirigentes da Administração Pública em Portugal (Contributo para o seu estudo), p. 220.

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diversos:• crítica geral da democracia representativa, apresentada como uma fraude

(Pareto, Mosca e Michels);• crítica dos seus defeitos ou limitações num país concreto (Wright Mills,

nos EUA);• apologia de um sistema estabelecido como expressão de uma

democracia real, não utópica ou rousseauniana (Robert Dahl);• crítica por contraste dos regimes da Europa de leste (Raymond Aron).

É certo que há quem afirme que o marxismo não admite a teoria das elites. Existem igualmente autores de outras áreas, que se referem ao conceito, mas contestam igualmente teses que lhe estiveram historicamente associadas, como a teoria da circulação das elites. Assim, Miliband conclui que «há provas concludentes (de que) em termos de origem social, educação e situação de classe, os indivíduos que têm ocupado todas as posições de comando no sistema são na maioria, em muitos casos na esmagadora maioria, oriundos do círculo do negócio e da propriedade, ou das profissões liberais. Neste, como noutros campos, homens e mulheres oriundos das classes subordinadas, que constituem a vasta maioria da população, têm cumprido o seu destino de desfavorecidos, não só nos sectores do sistema que dependem de nomeações, como a administração, as forças armadas e o poder judicial, como igualmente naqueles sectores que estão sujeitos, ou assim parecem estar, às consequências do sufrágio universal ou à sorte da ocorrência política».

2.8. «Opinião pública», propaganda, marketing e persuasão política

A «opinião pública» é um fenómeno típico do Estado moderno que se reclama de uma legitimidade assente na representação política democrática. A Constituição de 1933 proclamava-a como sendo «elemento fundamental da política de administração do País», para logo fazer daí decorrer que incumbia ao Estado «defendê-la de todos os factores que a desorientam contra a verdade, a justiça, a boa administração e o bem comum». É bom de ver, portanto, que o relevo da opinião pública pode servir para o invocar a favor de actuações autoritárias, justificando-as com a «necessidade de a defender» dos factores que é suposto poderem «pervertê-la». Mas noutras situações, é um elemento fundamental da política em democracias conquistá-la de modo a poder assegurar a vitória em eleições competitivas ou obter o apoio, ou pelo menos o consentimento, em relação a medidas adoptadas.

Com efeito, o tratamento mais comum deste tema actualmente está ligado aos mecanismos da representação política baseada no sufrágio, designadamente com carácter universal, ou ao exercício do poder com vista a obter melhores resultados em eleições.

Em geral, afirma-se que o facto de o Estado assentar na soberania popular dá um sentido público às opiniões privadas, individuais, dos cidadãos sobre o exercício do poder, exactamente na medida em que o poder político deve emanar e, em princípio, deve ter em conta essa opinião, ou opiniões públicas, enquanto «o indivíduo é relegado para a esfera privada da moral».

Para além das referências mais ou menos comuns de carácter genérico aos pressupostos da opinião pública (existência de poder político que se baseia na soberania popular e designadamente que emana do sufrágio, liberdade, órgãos de comunicação social, centros de formação de opinião pública como partidos, associações, etc.), existem nos autores significativas diferenças de

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abordagem e de tratamento do conceito ou, por vezes, até uma contestação do seu interesse e validade científica, pelo menos nos termos em que tem sido colocado. Mais do que uma «colecção de opiniões individuais», parece incontestável que a «opinião pública» tem que ser qualificada, quer tendo em conta o seu objecto – os assuntos sobre que versa – quer tendo em conta o(s) grupo(s) social(ais) que a(s) partilha(m).

Do ponto de vista do objecto, a opinião pública tem que ser qualificada, em primeiro lugar, por dizer respeito à esfera do que é público, isto é, do que diz respeito ao poder político, ou do que visa influenciá-lo ou conquistá-lo. Esta restrição, naturalmente controversa, não impede que os domínios que a opinião pública abrange sejam na prática os mais diversos nas sociedades actuais. Habermas afirma, por exemplo, que «as reivindicações de ordem privada (automóvel, frigorífico) são abrangidas pela categoria de opinião pública tanto quanto os demais comportamentos de qualquer grupo social a partir do momento em que o poder e a administração do Estado-Social podem fazer uso disso no exercício das suas funções».

Tomada nestes termos, a opinião pública pode dizer respeito praticamente «a tudo o que é importante». Com efeito, mesmo que seja concebida como dizendo respeito apenas à vida pública, de carácter político, da respectiva sociedade, está ligada hoje a inúmeras aspirações de ordem privada.

A opinião pública não poderá ser, por outro lado, a opinião de um pequeno grupo. Pelo contrário, tenderá a ser, ou terá mesmo que ser a opinião dominante.

Naturalmente que esta opinião dominante é o resultado de múltiplas opiniões diferentes e múltiplas influências e do seu confronto, o que tem multiplicado o estudo do modo como se forma e dos factores que para isso contribuem.

Já tem sido estabelecida uma distinção entre público «em geral» e especialistas ou ainda entre grupos sociais atentos e grupos sociais desinteressados politicamente.

Há também autores que referem o uso do termo opinião pública para descrever a actividade dos grupos de pressão e a sua procura (e conquista) de apoios para os seus interesses. Esta utilização do termo não parece apropriada, sobretudo porque a opinião pública pode vir a ser (ou não) o resultado da actividade dos grupos de pressão, mas não pode ser identificada com o processo de conquista de apoios, que pode não ter êxito.

Já foi estabelecida também uma distinção entre a opinião pública e a vontade popular. A opinião pública não mobiliza nem se impõe com carácter de obrigatoriedade, é objecto de discussão e pode até sobreviver ao distanciamento de uma parte significativa da população. Um aspecto fundamental que a caracteriza é o anonimato e a natureza estatística da sua manifestação.

Podemos estar em situações em que há muito menos emissores de opinião do que receptores; o público é uma assembleia abstracta de indivíduos que recebem as suas impressões dos meios de comunicação de massa. Existe ainda uma diferença entre as situações em que há uma possibilidade imediata de responder a uma opinião expressa em público (por exemplo, uma sessão de esclarecimento), enquanto noutros casos as comunicações estão organizadas de tal modo que é difícil ou impossível para o indivíduo responder imediatamente ou com qualquer eficácia.

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Parece incontestável que «a autonomia na formação da opinião pela discussão» é dificilmente preservada e tende a ser relegada para a esfera da «opinião quase pública» (Habermas), que circula ao nível de organizações políticas e sociais, de jornalistas, intelectuais, dirigentes políticos, mas não se transforma em ponto de vista dominante. As opiniões individuais tendem a ser mais e mais integradas na «opinião pública», por definição passiva e não participativa.

Os estudos de opinião mostram o papel decisivo que a televisão, a rádio e os jornais têm em comparação com as conversas ou os contactos directos com a população. De resto, estes são valorizados frequentemente pelos líderes partidários em grande medida porque permitem o acesso à comunicação social e não tanto pelo seu valor em si.

A «opinião pública» não pode, entretanto, ser tomada como uma realidade abstracta.

Como diz Pierre Ansart, «(...) ela é sem cessar trabalhada, modelada, por essa gigantesca empresa de inculcação conduzida permanentemente por todos os órgãos de difusão».

Com efeito, os vários «líderes de opinião», os centros de poder e as entidades que estão interessadas em sê-lo (partidos, candidatos em eleições) ou em influenciá-lo (grupos de pressão, movimentos sociais) sabem que realizarão melhor os seus objectivos na medida em que meçam o estado da opinião pública e, em função disso, definam a táctica adequada para a ter em conta de modo a influenciá-la da melhor forma a seu favor.

Fala-se assim, e cada vez mais se pratica, na propaganda política e em técnicas de persuasão política. Estas foram definidas como a última etapa da estratégia política de conquista ou manutenção do poder. Esta expressão será originária da Bula Inscrutabile Divine do Papa Gregório XV, que remonta a 1622, e que instituiu a Sagrada Congregação para a Propaganda da Fé como instrumento de auxílio à Contra-Reforma.

Hoje fala-se igualmente em «marketing político», conceito que já foi definido como «um conjunto de teorias e de métodos de que podem servir-se as organizações políticas e os poderes públicos, simultaneamente para definir os seus objectivos e os seus programas e para influenciar os comportamentos dos cidadãos». Estes são assim concebidos como uma espécie de «consumidores» e o «mercado» constituído pelo eleitorado não seria substancialmente diverso do mercado de consumidores de produtos que as empresas visam conquistar.

O «marketing político» aparece como um instrumento recente da comunicação política, que seria especialmente necessário com a conjugação do sufrágio universal, da democracia e do desenvolvimento dos meios de informação.

Naturalmente que o « marketing eleitoral » , será uma parte do «marketing político» com objectivos especificamente eleitorais, isto é, de «ajudar os partidos e candidatos a conceber e pôr em prática uma campanha eleitoral eficaz».

A selecção da amostra é especialmente importante numa sondagem. Para além deste aspecto, quanto maior é a amostra maior é a probabilidade de a sondagem reflectir a realidade, porque a margem de confiança aumenta.

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A importância e a dimensão da amostra é uma questão que se coloca, de resto, quer para o «marketing» comercial, quer para o «marketing» político e para o «marketing» eleitoral.

Naturalmente que o conhecimento dos resultados de uma sondagem por um partido ou candidato visa permitir organizar ulteriormente as campanhas, determinar os comportamentos políticos e até adequar a linguagem política ao «consumidor». Como este é em muitas situações frequentemente apolítico, pouco interessado e pouco informado, decorre daqui uma tendência frequente, assinalada por múltiplos autores, para a espectacularização da política e para o «Estado-espectáculo».

As sondagens, ao mesmo tempo, podem ter uma grande influência na opinião pública e em sectores do eleitorado. Há, por exemplo, quem procure votar nos vencedores, ou em quem aparece na sondagem como podendo disputar a vitória, alterando, por isso o sentido do seu voto; há quem opte pela abstenção porque os partidos ou candidatos em quem votaria não têm possibilidades de vencer; por vezes, a sondagem pode levar a entender que o que está em disputa é uma determinada questão (quem é Primeiro Ministro, por hipótese), subalternizando inteiramente os deputados e a sua eleição. Este facto leva a que as leis eleitorais e a lei do referendo tenham fixado um período até ao qual é possível divulgar sondagens, embora este facto seja contestado frequentemente em nome da liberdade de informação.

No entanto, generalizou-se uma prática na comunicação social que vai no sentido de indicar números fixos em matéria de votações previsíveis e não percentagens máxima e mínimas que poderão ser obtidas. Ora, uma sondagem não pode, do ponto de vista técnico, conduzir a mais do que percentagens de votações previsíveis máximas e mínimas, por menor que seja o intervalo de confiança. Este facto é tanto mais verdadeiro quanto surgem sempre muitos entrevistados que declaram estar indecisos ou que «não sabem, não respondem». E muitas vezes são os que decidem nos últimos dias ou últimas horas antes de uma votação que determinam o seu resultado.

No entanto, quer em Portugal, quer lá fora, adopta-se a prática de ignorar ou dissimular as «não respostas», porque elas poderiam minimizar o alcance e credibilidade das sondagens junto das populações: é por isso que Pierre Bourdieu afirma que «as não respostas são a praga, a cruz e a miséria dos institutos de inquérito». Pelo contrário, em vez de assumir as sondagens no seu valor e nos seus limites, a prática vai mais frequentemente no sentido de os comentadores políticos e os analistas tomarem pequenas oscilações das percentagens de votos atribuída aos partidos ou candidatos, que as sondagens não podem garantir, como se fossem, na expressão de Roland Cayrol, «ouro contado». No entanto, se fossem assumidas no seu valor relativo, boa parte do investimento que os órgãos de comunicação social realizam com a encomenda e publicação das sondagens poderia desaparecer.

A verdade é que em cada eleição há uma dúzia de participações criminais contra órgãos de comunicação social por violarem a proibição legal de divulgarem os resultados de sondagens no período em que a divulgação já não é permitida. A verdade é que há quem questione se se justifica manter uma proibição legal que representa uma limitação da liberdade de imprensa, apesar de sondagens sobre a influência de sondagens feitas em vários países, incluindo Portugal, terem apontado para o facto de a divulgação de estudos de opinião terem grande importância na formação da vontade dos eleitores, mais do que outros meios como a imprensa, cartazes, folhetos, etc. Outros ainda afirmam que as influências são em sentido contraditório: uns querem votar no

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vencedor, outros nos que estão ameaçados de perder para evitar a dimensão dessa perda, ou conter a dimensão da vitória possível de um partido ou candidato.

O estudo sobre as possíveis influências de sondagens tem que ser feito com base nas culturas políticas e sistemas partidários concretos e em estudos empíricos. Assim, por exemplo, uma coisa é um sistema de tendência bipolar e bipartidário em que o peso da sondagem pode ser menos relevante, outra é a existência de sistemas multipartidários, com dimensões diversas, e em que a sondagem pode contribuir para a transferência de votos para os dois partidos maiores, que podem disputar a vitória.

O problema central não é a proibição (e o modo como tem sido sistematicamente ignorada), mas o de saber, dentro e fora do período de proibição, em que medida os resultados que se divulgam são fidedignos, e em que medida o modo como se divulgam é ajustado ao direito do leitor a ser correctamente informado. É sabido, por exemplo, que em função do número de entrevistas e outros factores varia a margem de segurança; mas a indicação das margens de erro, que em geral se aproximam ou ultrapassam os 5%, é substituída por manchetes em que as percentagens parecem rigorosas, com indicação de valores precisos até às décimas?

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3. O problema da legitimação do poderO poder político coloca invariavelmente a questão da sua legitimidade isto é, das razões que são apresentadas como devendo levar a que seja aceite e que a sua vontade deva ser acatada. A verdade é que ao longo da História política da Humanidade os fundamentos invocados para justificar o exercício do poder e a sua imposição no caso de ser acatado foram profundamente variáveis desde que a obediência deixou de ser o simples resultado da vontade arbitrária de um só para se colocar em questão o fundamento das decisões e a razão da escolha de quem as tomava.

Este é um problema que continua a ser fundamental no momento actual. Mantém-se igualmente actual a controvérsia entre os que entendem que a comunidade não pode deixar de delegar o poder em quem decida em nome dela e os que defendem que as comunidades em vez de serem objecto de exercício de poder o devem assumir directamente, designadamente por via do referendo.

3.1. Conceito e formas de legitimação do poder

O problema da legitimidade coloca essencialmente a questão de saber como é que o poder político reúne à sua volta o mínimo de consenso que lhe permite ser aceite sem um recurso sistemático e exclusivo à violência, quer pelos seus adeptos, quer pelos seus adversários. De um ponto de vista jurídico, na actualidade, é legítimo o poder que decorre de uma escolha efectuada nos termos da Constituição e que é exercido nos seus limites. De um ponto de vista social, será legítimo o poder que se faça aceitar, ou que não seja contestado, pelo maior número, seja qual for a razão em que esse facto se fundamente.

Temos que ter em conta a propósito da legitimidade a clássica tripartição weberiana:• o poder tradicional assenta na crença em que se deve respeito ao poder

consagrado pela tradição e à pessoa ou às pessoas que o detém nos termos dessa tradição;

• o poder legal implica a crença em que são legais as normas do regime, estabelecidas racionalmente e para legitimar o poder e os comandos que este emite ao abrigo dessas normas;

• o poder carismático assenta nas qualidades reais ou imaginárias atribuídas a um chefe, só sendo secundariamente relevantes as instituições;

por razões evidentes esta última espécie de legitimidade tem em geral existência efémera, coincidindo com a própria existência do chefe.

Refere-se igualmente situações de legitimação revolucionária do poder, ou por via militar, em que são frequentes situações que ou se transformam em formas de poder carismático, ou em formas de poder legal.

São, no entanto, colocados problemas (na legitimação por via legal) como o menor envolvimento do cidadão nas decisões e o escasso campo para uma democracia participativa alargada, a ausência de uma igualdade de oportunidades mínima, o peso crescente de técnicas de marketing e de persuasão política que pouco ou nada têm que ver com as escolhas políticas que realmente estão em causa, etc..

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3.2. Sobre a teoria da representação política em especial

O conceito de representação política é um elemento essencial da História moderna. A teoria da representação política está na base da construção do «Estado representativo moderno» e no centro da polémica acerca da sua natureza, sentido e limites. O Parlamento foi, e ainda é, ao menos formalmente, concebido como sendo o órgão representativo mais importante, ao qual cabe a função de realizar a conexão entre a sociedade e o Estado.

Na base do conceito de representação política está, teoricamente, o reconhecimento da cidadania, isto é, a diferença entre ser mero súbdito, simples «sujeito ao poder», ou ser cidadão e «verdadeiro sujeito do poder».

Dissemos teoricamente; mas esse percurso da condição de súbdito à de cidadão e a generalização desta a todos os que estão ligados a uma comunidade política foi tanto mais importante quanto atravessou séculos e imensas lutas. Mas, na prática, verificou-se que a relação de representação implicou a crescente separação entre os produtores de actos e discursos políticos e os «consumidores» destes, bem como o crescente «monopólio dos profissionais», facto que está definitivamente ligado à emergência dos partidos que assumiram a função de representação e, mais recentemente, ao papel da comunicação social que assumem igualmente a condição de profissionais da comunicação política.

À teorização sobre a representação política de Autores como Montesquieu, Sieyès e Benjamin Constant, ou Locke e Burke, respondeu de forma radical Jean-Jacques Rousseau em «Du Contrat Social», afirmando que a soberania não pode ser representada, pela mesma razão que não pode ser alienada. Esta consistiria na vontade geral e, a vontade geral não seria passível de representação. Daí resultaria que os deputados ditos do povo não são seus verdadeiros representantes, mas apenas comissários que nada podem concluir definitivamente: todas as leis teriam que ser ratificadas ou seriam nulas.

Está aqui colocado um problema central da representação política: o direito de voto que lhe está na base é um avanço no sentido do reconhecimento da qualidade de cidadão de quem está sujeito ao poder, na medida em que é chamado a participar na escolha dos titulares dos seus órgãos. Mas, simultaneamente, é um momento de afirmação de que existem os que governam e os que são governados e de separação de funções de una e de outros.

A teorização de Hobbes acerca do Estado absoluto terá, aliás, pesado na teoria que lhe é contrária, se lhe opõe e a supera, da mesma forma que pesou na teorização acerca dos direitos fundamentais. Se, na monarquia absoluta, para Hobbes, «o rei é o povo», porque é através da sua vontade que se manifesta o povo como unidade, na teoria da representação política é a assembleia que começa por dar corpo a essa «vontade». Mas esta vontade do povo é algo que é tomado em termos abstractos e exclui o «mandato imperativo», que concebe o deputado como o mero transmissor de uma vontade popular concreta e bem delineada. De resto, são frequentes os textos que não só assentam a representação na impossibilidade de reunir todos para decidir como afirmam que o «povo» pode saber escolher o representante mas não sabe o que ele deve querer. Desde logo, afirma-se, não dispõe da informação nem está preparado para dominar assuntos complexos e com uma

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dimensão técnica. Num momento em que o clima social permitiria e justificaria um certo tipo de franqueza, Montesquieu, por exemplo, teorizou a necessidade da representação política não só por razões de ordem prática, como o tamanho dos Estados, mas também pelos «muitos inconvenientes» que teria o «povo» ter a capacidade legislativa directamente: para ele, a grande vantagem da existência de representantes é que são capazes de discutir as questões, o que o povo não seria capaz de fazer, o que acarretaria grandes inconvenientes para a democracia.

Os poderes da assembleia representativa deveriam, mesmo assim, ser limitados, não só pelas razões normalmente aduzidas por correntes liberais, isto é, a preservação da liberdade, mas também por razões de capacidade. Com efeito, para Montesquieu o corpo representativo não deve ser escolhido para tomar qualquer «résolution active», mas sim para fazer leis ou para ver se foram bem executadas as que fez, o que está ao seu alcance fazer e que lhe deve caber fazer.

Mas mesmo estes poderes, no pensamento liberal, têm que ser limitados, tendo em conta o que poderia resultar do seu pleno exercício para o «corps des nobles» para quem a liberdade comum poderia ser a sua escravatura. Daí a defesa do poder de legislar a um parlamento bicamaral, em que uma das câmaras seria representativa da aristocracia.

À grande e decisiva característica da ruptura com o absolutismo monárquico e à teorização da monarquia liberal e da representação política soma-se, assim, com clareza, a definição do sentido e objectivos dessa representação: preservar um certo ordenamento social e assegurar que os que são tidos por incapazes de autogoverno se façam substituir no exercício do poder. Como diz Althusser, na sequência de Charles Eisenman, trata-se de obter a combinação do poder do rei, da nobreza e do povo, através das funções que são atribuídas ao «executivo», à câmara alta e à câmara baixa.

Foi longo e atormentado, entretanto, o caminho que levou ao princípio «um homem, um voto», aproximando a sociedade representada do número dos seus membros adultos.

A natureza e conteúdo da representação política demarca-se claramente da representação em sentido jurídico, própria do direito civil. Neste caso, o representante não só é escolhido pelo representado como o é para executar a vontade deste em acto(s) concreto(s), sendo os efeitos jurídicos imputáveis ao representado (o caso mais conhecido será talvez o dos casamentos por procuração). Pelo contrário, na relação de representação política «os parlamentares não são vinculados por nenhum mandato, não têm de cumprir nenhuma instrução do corpo ou colégio eleitoral»; estes não podem substituir o representante quando entendem; e os efeitos jurídicos dos actos do representante não se projectam na «esfera jurídica» do representado como se fossem por ele próprio praticados.

Dizer que a relação de representação política é distinta da relação jurídica de representação de direito privado, não significa que não tenha aí uma parte das suas raízes, designadamente no tempo em que imperava «a concepção do poder político como um facto patrimonial» (a idade Média).

Mas haveria de passar-se do tempo do mandato imperativo, em que o membro da assembleia tem que actuar de acordo com as instruções de quem o escolheu para o princípio moderno, em que o deputado «representa» toda a «nação» e não o círculo pelo qual foi eleito: disse-o a Constituição de 1791 em

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França, como o diz a Constituição portuguesa de 1976 (artigo 152.º/3), entre tantas outras.

A afirmação é extensiva à representação dos partidos: «os Deputados não representam juridicamente determinado partido ou coligação partidária mas sim o país, e esta representação política é global e não dos círculos pelos quais são eleitos».

Esta é uma das áreas, porém, em que o mundo jurídico vive em clara contradição com o mundo dos factos. É justo, por isso, num certo sentido, mas apenas de carácter jurídico, afirmar que o conceito de «mandato livre» em relação aos eleitos é característico da representação moderna, desde a revolução francesa até aos nossos dias.

Com efeito a afirmação da liberdade de consciência dos deputados tem que ser tomada mais em termos jurídicos do que do ponto de vista de facto, designadamente em face da relação do Deputado com o Partido a que pertence. Do ponto de vista dos factos, o mandato do deputado é concebido como propriedade partidária e entende-se que o deputado, ou outro representante, tem um dever de lealdade para com o partido em cujas listas foi eleito.

Seja como for, a «representação da nação», ou a representação política, não surge em termos derivados do direito privado mas sim em termos que são derivados do direito canónico – representação é praesentare, tornar presente um corpo ausente, que como que reincarna num «corpo» presente e que é livre de actuar interpretando o que alegadamente pensaria o corpo ausente.

No entanto, o fenómeno não se limita, com o moderno parlamentarismo a esse tipo de representação: o «corpo parlamentar é também um lugar onde «grupos e interesses» estão presentes e estabelecem compromissos. A ideia de representação passa a ser dificilmente concebida como sendo só de vontades e interesses individuais, convergentes para um abstracto conceito de «povo», «nação», «interesse geral», «bem comum» que «reincarnava» na assembleia parlamentar.

Qualquer destes conceitos só pode ser concebido como um resultado proclamado como tal pelo discurso do Poder: a vontade do «povo» ou da «nação», o «interesse geral», ou o «bem comum», são na realidade o resultado de complexos jogos de interesses individuais ou de grupo, de conflitos, de compromissos. Daí que seja inevitável a integração do conceito de representação política com o conceito de participação , raramente de indivíduos, em geral de grupos, movimentos ou interesses inorgânicos, que invocam justamente os limites da representação política global para fazerem valer esta representação sectorial e a sua intervenção no processo de decisão política.

Por outro lado, a visão do deputado eleito pelo seu círculo de que é mandatário e presta contas aos seus eleitores é proclamada mas na prática não é a predominante. Hoje, essa concepção está em geral ultrapassada, mesmo onde os sistemas eleitorais são baseados na maioria simples em círculos uninominais ou onde existe a «representação proporcional personalizada». Não quer dizer que não se verifiquem formas de relação do deputado com eleitores do círculo que o elegeu; mas essas relações são menos importantes do que a relação do deputado com o seu partido e eventualmente com interesses organizados, com autarquias locais, etc..

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Tem-se mesmo dito, com frequência, que é nítido que o membro do órgão representativo não tem um mandato imperativo do corpo eleitoral; mas sim que, de facto, participa na assembleia com um mandato imperativo do partido, muitas vezes preciso, do qual presta contas, com prioridade, não já ao «povo» ou à «nação», mas ao partido (ou ao grupo de pressão). Com efeito, independentemente de o mandato não ser, de facto, livre, os estatutos dos partidos consagram a dependência do Deputado das orientações partidárias. São factos como este que levaram Norberto Bobbio a afirmar que uma fórmula como a do artigo 67.º da Constituição italiana («todo o membro do Parlamento representa a Nação») – e que outras constituições, como a portuguesa, também consagram – «soa a falso, se é que não parece pura e simplesmente ridícula».

A representação política aparece simultaneamente como factor de legitimação do poder e como momento de afirmação da autoridade: no complexo jogo de coerção e construção do consenso ou do consentimento da maioria e de envolvimento e neutralização da minoria, as eleições, em que se fundamenta a representação, serão frequentemente invocadas como factor de legitimação de medidas coercivas, como base da autoridade de que se reivindica o Poder, como momento de afirmação fa hegemonia do partido ou partidos que controlam os órgãos essenciais do Estado. Se para Gramsci «o Estado = sociedade civil + hegemonia revestida de coerção» as eleições são um momento de penetração profunda na «sociedade civil», de afirmação da «hegemonia» e da capacidade de o Estado, com o «moderno príncipe» à cabeça, revestir de coerção a hegemonia afirmada nas eleições e em todo o processo político que as antecede e acompanha. Nesta linguagem poder-se-ia dizer que a representação política e o mecanismo em que fundamenta a sua legitimidade, as eleições, constituem o meio de a sociedade civil ser separada da sociedade política e de esta exprimir a sua hegemonia, abrindo caminho à coerção.

Sem prejuízo das notas ulteriores acerca dos sistemas eleitorais, podemos desde já afirmar que é indiscutível que a representação política tem uma forte componente convencional. As «maiorias construídas» ou «elaboradas» são em grande número, como assinala Douglas Rae ou Arend Lijphart: nas 239 eleições estudadas por este Autor (entre 1945 e 1980) aconteceram 50 casos de «maiorias construídas», 161 casos de «maiorias naturais» (não obtenção por nenhum partido da maioria de votos nem da maioria no parlamento) e só 28 casos de maiorias efectivas. Assinala-se ainda o caso das eleições austríacas de 1954, em que o Partido Austríaco do Trabalho foi derrotado, apesar de ter 50,1% dos votos.

Fica claro que, entre outros factores, a representação política assenta num complexo processo de aceitação social de um «jogo», que transcende a simples afirmação de que há uma maioria entre os eleitores e de que é essa maioria que está presente no Parlamento. É evidente que a «maioria elaborada» pode ser aceite, a partir da aceitação das regras do jogo, até um determinado limite máximo, se não ultrapassar um determinado grau de «elaboração», ou artificialismo; a partir daí, poderá pôr em causa o consenso minimamente necessário para que não seja posto em causa o sistema e, portanto, para que ele não entre em crise.

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3.3. Representação política e sistemas eleitorais

O caso das célebres «leis Duverger», formuladas em 1950 e ulteriormente reconsideradas, pretenderam estabelecer relações entre sistemas eleitorais e sistemas partidários e da relação entre os sistemas eleitorais e sistemas de governo.

Os termos desta influência dos sistemas eleitorais nos sistemas partidários e de alianças de partidos já foram acusados de serem esquemáticos e pouco rigorosos e mesmo de serem influenciados pela necessidade de revestir de credibilidade «científica» casos em que o que se visa é a intervenção na luta política.

A crítica dessa prática tem vindo a ser realizada em termos por vezes muito radicais. Foi o caso de Dieter Nohlen, para quem as ligações entre sistemas eleitorais e seus efeitos assentam numa «conceptualização antiquada», numa «base de material empírico muito estreita, reduzida a uns poucos sistemas políticos», numas «premissas sociais e teórico-democráticas não questionadas», numa «infravaloração das estruturas sociais, étnicas, religiosas e político-culturais assim como das condições funcionais históricas dos sistemas políticos em distintos países», etc. É particularmente severa a crítica de que se verifica a «instrumentalização da questão mais importante do ponto de vista da política do Estado para objectivos de política partidária, isto é, exercício da influência sobre as posições científicas e especializadas através de cálculos de poder político».

É importante determinar algumas das bases essenciais de uma teoria dos sistemas eleitorais, indicando alguns elementos capazes de situar o sistema de eleição do Parlamento Português e a sua influência no sistema partidário e no sistema de governo.

Uma nota desde logo é decisiva: o sistema eleitoral, ao contrário do que parece por vezes ser sugerido, não é a mera fórmula de conversão de votos em mandatos, que levaria sem mais a qualificar os «sistemas» ou princípios como de maioria simples, de maioria em duas voltas ou de representação proporcional. Note-se desde já que há quem afirme que é mais correcto, dado que a fórmula matemática da conversão de votos em mandatos é apenas uma das componentes do sistema eleitoral, falar em princípio e não em sistema. Por outro lado, é frequente serem referidos como «mistos» sistemas como o alemão que, na realidade, correspondem em regra a situações de voto proporcional ou de voto proporcional personalizado (os eleitos nos círculos uninominais são imputados ao número de candidatos a que o partido tem direito pela votação obtida no círculo nacional, que é uma votação em partidos).

O conceito deve integrar as normas jurídicas que constituem um novo ramo de direito, o direito eleitoral, e sobretudo as práticas verificadas ao abrigo de tais normas, compreendendo, entre outros aspectos, quem apresenta candidaturas, quem pode ser candidato, a dimensão dos órgãos a eleger, o grau de direitos, liberdades e garantias existentes, os círculos eleitorais e a sua dimensão, o recenseamento eleitoral e o financiamento dos candidatos e campanha dos partidos.

Do conjunto dos vários elementos, susceptíveis de diversas ordenações, pode resultar uma classificação, que é fundamental, em sistemas proporcionais ou

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maioritários. Esta classificação tem que ser feita, no entanto, ao contrário do que por vezes acontece, não tanto em função da fórmula matemática utilizada, mas mais em função do resultado final: em que medida se verifica a proporção entre os votos e os lugares obtidos; ou se se caminha, mesmo com uma fórmula matemática proporcional, para um acréscimo do grau de desproporcionalidade, até atingir um resultado equivalente ao de uma fórmula matemática maioritária.

A classificação de sistemas parece no entanto possível, embora seja verdade que «todos os sistemas eleitorais produzem resultados não proporcionais», ou, dito de outro modo, «reflectem uma proporcionalidade mais baixa do que é matematicamente possível».

Um elemento essencial e muito frequente da «desproporcionalização» do princípio proporcional é a delimitação de circunscrições eleitorais. Este factor sõ é minimamente limitado nos seus efeitos quando os partidos que são afectados numas circunscrições são beneficiados noutras, por terem uma repartição desigual da sua influência eleitoral em termos geográficos.

Seja como for, hoje parece crescentemente consensual em estudos da especialidade a importância da delimitação dos círculos eleitorais na caracterização de um sistema.

É crescentemente consensual, por outro lado, a ideia de que é essencialmente em resultado da repartição em círculos que se pode afirmar que pode ser maioritário um sistema formalmente proporcional. É também com base nesta questão que se pode questionar, no plano jurídico-constitucional, como já aconteceu em Portugal com acórdãos do Tribunal Constitucional, se a imposição de um sistema proporcional pela Constituição é respeitada quando é essa a fórmula matemática utilizada, mas se multiplicam pequenos círculos eleitorais que não permitem que a representação proporcional expresse as suas potencialidades representativas.

As experiências conhecidas de voto maioritário, nas suas diversas modalidades, e de voto proporcional, também variadas, (voto único transferível, média mais elevada nas suas variantes – Sainte-Lägue, Hagenbach-Bischof e d'Hondt) são objecto de vivas discussões, que se justificam face ao facto de nunca serem neutros os seus resultados e ser generalizado que os diferentes sistemas favorecem sempre diferentes partidos e interesses.

No caso português, foi adoptado logo a seguir ao 25 de Abril, por uma Comissão a que presidiu José Magalhães Godinho, o método do jurista belga Victor d'Hondt. Este método foi aplicado na eleição da Assembleia Constituinte e veio a ter ulteriormente consagração constitucional. A Lei Eleitoral refere este método nos seguintes termos: apura-se em separado o número de votos obtidos por cada lista no círculo eleitoral respectivo; o número de votos obtidos por cada lista é dividido sucessivamente por 1, 2, 3, 4, 5, etc., sendo os quocientes alinhados pela ordem decrescente da sua grandeza numa série de tantos termos quantos os mandatos atribuídos ao círculo eleitoral respectivo; os mandatos correspondem às listas a que correspondem os termos estabelecidos pela regra anterior, recebendo cada uma das listas tantos mandatos quantos os termos da série; no caso de restar um só mandato para distribuir e de os termos seguintes da série serem iguais de listas diferentes, o mandato cabe à lista que tiver obtido menor número de votos (Lei n.º 14/79 de 16 de Maio).

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A conjugação de uma fórmula de média mais elevada na variante d'Hondt, que favorece os partidos mais votados, com um número significativo de pequenos círculos eleitorais pode introduzir um grau significativo de desproporcionalidade num sistema dito de representação proporcional, como é o caso do português.

Uma das questões que tem sido colocada é que a representação proporcional tende a privilegiar o voto despersonalizado em partidos em relação ao voto em deputados. Mas a verdade é que entre as várias fórmulas proporcionais algumas conduzem, ao menos teoricamente, a uma significativa personalização do voto nos deputados. É o caso do voto único transferível, praticado na Irlanda, na Câmara Alta australiana (Senado), nos Parlamentos de Malta e Tasmania, para a eleição dos membros do Conselho dos Estados da Índia escolhidos pelas assembleias dos Estados. Esta variante permite, pelo menos nos objectivos proclamados, que o eleitor não esteja vinculado a listas de partidos e possa entrecruzar preferências, dedicando-as a candidatos de partidos diferentes: a quota necessária para obter um lugar é igual à divisão do total de votos emitidos pelo número de lugares em disputa mais um sobre; primeiro conta-se os que têm a quota necessária para ser eleitos; os eventuais lugares vagos são distribuídos pelos candidatos não eleitos à primeira que sejam indicados pelos eleitores como devendo ser beneficiários da transferência dos seus votos no caso de não serem necessários para os candidatos imediatamente eleitos. É através das somas das segundas preferências que se verifica se um candidato alcançou a quota necessária.

Outro sistema «proporcional personalizado» (que já foi preconizado para Portugal como sendo «misto») é o alemão: parte dos candidatos são eleitos em círculos uninominais e parte em um círculo de um Estado federado, mas a fórmula maioritária só serve em princípio para assinalar que candidatos de cada partido ocuparão os lugares assinalados pelo método proporcional. Com efeito, metade dos membros do Parlamento Federal é eleita em listas de partidos, em circunscrições correspondentes aos Estados, com recurso ao método de Hondt e outra metade em circunscrições uninominais definidas por uma Comissão Permanente. Do número total de deputados que caberia a cada partido é subtraído o número de candidatos vencedores nos círculos eleitorais uninominais. Os lugares que sobram são distribuídos pelas listas de candidatos ao Estado federado com base nos segundos votos a ter em consideração. Daí que a fórmula seja só aparentemente mista na maior parte dos casos apesar de o erro ser muito frequente. Esta fórmula só pode ser qualificada como tal em situações marginais, em que o número de deputados da câmara baixa do parlamento alemão (Bundestag) tem que ser aumentado para incluir os deputados eleitos em círculos uninominais que excedam o número de deputados eleitos por cada partido nos círculos correspondentes aos Estados federados. Com efeito, existe uma previsão de que o Bundestag seja composto por 656 deputados, dos quais 328 são eleitos nos círculos uninominais, sendo os restantes eleitos segundo as listas de candidatura do Estado federado; mas, no caso de o número de candidatos eleitos num círculo uninominal ultrapassar o número de deputados a que o partido tem direito no estado federado respectivo segundo o método de representação proporcional não deixa de obter esses mandatos. Daí que se possa dizer que o sistema nesta parte não é proporcional, o que o tornaria incompatível com a Constituição portuguesa que impõe a proporcionalidade sem admitir excepções.

Um outro sistema de representação proporcional personalizada que foi igualmente preconizado para Portugal por um grande número de estudiosos e

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personalidades políticas foi o sistema eleitoral da Dinamarca. Existe um total de 179 deputados no Parlamento (Folketing), dos quais dois são eleitos nas ilhas Faroé e dois na Gronelândia. Dos 175 deputados eleitos no território continental há 135 mandatos que são «de círculo» e 40 que são mandatos compensatórios. Os deputados são distribuídos pelos círculos com base proporcional, recorrendo a três critérios:• censo populacional,• número de eleitores na última eleição geral e• área em quilómetros quadrados multiplicados por vinte para a região em

causa ou do círculo plurinominal respectivo.O método utilizado é o de Sainte-Lague modificado, que implica usar sucessivos divisores, tal como no método de Hondt, mas diferentes: 1, 4, 3, 5, 7, etc.

Existe ainda uma divisão dos círculos em «circunscrições de nomeação de candidatos». Esta designação, em vez de círculos nominais, explica-se por não se destinarem verdadeiramente a determinar quantos deputados tem cada partido, mas sim a determinar quem é o deputado concreto que deve ser eleito. No boletim de voto constam os «partidos políticos que acolhem os candidatos» e os próprios candidatos, sendo também admitidos candidatos independentes. O apuramento da distribuição dos 135 candidatos é feita através da representação proporcional, mas a determinação de quem são os deputados depende de quem obteve mais votos nas «circunscrições de nomeação de candidatos». Deste modo, temos mais um caso em que o método de apuramento é proporcional, mas o eleitor intervém, ou pode intervir, na escolha do candidato que prefere.

São atribuídos mandatos compensatórios a partidos que obtenham pelo menos um mandato de círculo, ou que em duas das três regiões referidas obtenham pelo menos um número de votos equivalente ao número médio de votos válidos por mandato de círculo na região; ou obtenham pelo menos dois por cento dos votos válidos em todo o território da Dinamarca. A existência de um tal número de deputados compensatórios assegura que não tenham de ser acrescentados deputados ao parlamento como pode acontecer na Alemanha e garante a proporcionalidade do sistema em matéria de conversão de votos em mandatos.

Seja como for, a diferença entre variantes mais ou menos personalizadas da eleição de deputados e as que privilegiam o voto em partidos não é por si uma garantia de menor peso dos partidos e de maior peso de deputados na opção dos eleitores. Não há, sobretudo, qualquer garantia de que será abandonada a estratégia de apresentação de candidatos a Primeiros Ministros e a discussão de soluções de Governo em vez da discussão das qualidades dos vários candidatos a deputados.

Com efeito, nos vários casos é frequente avultar uma tendência para personalizar escolhas políticas, mas em torno das primeiras figuras dos partidos, apresentadas ou não como candidatos a chefiar os governos, ficando desvalorizados não só os deputados mas também os próprios parlamentos. A tendência para, nas campanhas eleitorais, proceder como se se estivesse a votar em governos e não em parlamentos e nos seus membros parece, com efeito, não ser exclusivamente portuguesa. Seja o voto formalmente em partidos, seja em candidatos, avulta fortemente em numerosos casos a tendência para o voto em «candidatos ao governo» em detrimento dos candidatos aos parlamentos, mesmo em sistemas formal e realmente maioritários.

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Por outro lado, as possibilidades de o voto em partidos ser acompanhado do direito de o eleitor ordenar os candidatos segundo as suas preferências não parecem ter sido na prática muito amplamente utilizadas, onde existem, nem parecem alterar radicalmente o facto de predominarem as situações em que o voto é prioritariamente no «candidato a Primeiro-Ministro». É que as pessoas sentem que é aqui e não nos parlamentos que está a sede essencial do poder, além de que os próprios partidos personalizam a campanha em torno dos seus líderes, favorecendo o clima de apagamento das candidaturas a deputados.

Por outro lado, tem surgido igualmente preocupação quanto ao facto de a renovação dos eleitos que as reformas eleitorais propiciam poder por vezes privilegiar sistematicamente os candidatos de certas origens e camadas ou sectores sociais, com preterição sistemática dos que pertencem a outros (seria o caso das mulheres).

Há ainda quem afirme que a secundarização dos deputados em face dos directórios partidários resulta não tanto do sistema eleitoral, mas mais do facto de estes estarem sujeitos a uma rígida disciplina de voto no parlamento e ainda do facto de o Estatuto dos Deputados apontar para a possibilidade da sua entrada e saída do parlamento por conveniência das direcções dos partidos em vez de restringir a substituição apenas a casos de doença, gravidez, ou de participação no Governo.

Uma outra preocupação tem sido o facto de, com frequência, se poder manifestar o fenómeno da manipulação de círculos eleitorais para favorecer um partido ou sector político, sobretudo quando estes não assentam em divisões administrativas estruturadas para outros efeitos. É uma prática que assumiu uma designação própria: «gerrymandering», expressão forjada pelo cartoonista Elkanah Tisdale a partir do nome do Governador norte-americano do Estado de Massachusetts, Elbridge Gerry, que a adoptou em 1812 em termos particularmente ostensivos, de modo a potenciar as possibilidades eleitorais do seu partido.

Parece existir, entretanto, um grande consenso no sentido de que nenhum sistema eleitoral é neutro e de que todos podem produzir reflexos maiores ou menores nos comportamentos dos eleitores. Por isso, não é cientificamente legítimo fazer cálculos sobre as consequências de um sistema eleitoral com base na distribuição de votos existente com outro sistema eleitoral: todos os sistemas alteram os comportamentos eleitorais.

Em geral, os sistemas eleitorais são difíceis de alterar, estão muito ligados à cultura política e aos hábitos de cada comunidade política. No entanto, têm-se verificado em diversos países situações de crise política e de representação, que levaram a alterações importantes. Foi o caso da Itália e do Japão; e em numerosos países a questão está em aberto.

O caso italiano é especialmente curioso por o sistema eleitoral ter sido paresentado por muitos autores e no próprio debate político como uma fonte de grandes males e razão principal para a grande crise política que o país atravessou. Referia-se especialmente o sistema de representação proporcional como a razão que estava na base de um elevado número de partidos, do domínio destes da vida política, da acentuada instabilidade política, do afastamento dos deputados dos eleitores, da subalternização do parlamento e da própria crise da democracia representativa. Foi adoptado em substituição um sistema misto, com o qual se procurou facilitar a formação de governos, personalizar em muitos casos a relação dos deputados com os

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eleitores e se procurou restringir o número de partidos. A situação do Val d'Aosta é especial porque é um círculo que só tem um candidato.

No caso do Senado, foi aprovada uma lei eleitoral em 1993, na sequência de um referendo realizado no mesmo ano a 18 de Abril. Neste caso, dos 315 senadores 232 são eleitos em círculos uninominais a uma volta e 83 em círculos regionais a uma volta.

A vida mostrou, entretanto, uma clara desproporção entre o que foi esperado como sendo as potencialidades da alteração do sistema e o que foi realmente alcançado. A própria expectativa de diminuição do número de partidos foi restringida com alianças pré-eleitorais. De qualquer modo, pode encontrar-se uma estreita relação, neste caso como noutros, entre as posições defendidas e os sistemas preconizados por cada partido e o que julga serem os seus interesses eleitorais.

Entretanto, tem-se verificado que a alteração dos sistemas nem sempre é uma panaceia para as crises de legitimidade de representação. Por outro lado, há situações em que os sistemas maioritários, sobretudo a uma volta, conduzem a maiorias artificiais, isto é, em que o partido maioritário no parlamento é minoritário nas urnas (como aconteceu, por exemplo, duas vezes na Nova Zelândia).

Em geral, com sistemas maioritário são muito frequentes as situações em que há uma subrepresentação ou sobrerepresentados de partidos no parlamento em confronto com os resultados obtidos. Por isso, é frequente afirmar-se como virtude do sistema facilitar a «governabilidade» e como defeito levar a situações de distorção de representatividade e a distorções ou restrições do pluralismo político. Claro que nos sistemas maioritários com duas voltas é possível o argumento segundo o qual se mantém o pluralismo, só que os partidos são obrigados a alianças eleitorais; mas este facto só é verdadeiro nos casos em que existe predisposição do próprio partido e de outros para estabelecer alianças; não é verdadeiro quando o próprio partido não tem propensão para se aliar com outros ou quando os outros não admitem aliar-se com ele.

Em compensação, tem sido frequente a afirmação de que a representação proporcional pura, não personalizada, conduz a um excessivo peso dos directórios partidários e coloca os deputados mais longe dos eleitores e das suas aspirações.

No caso específico de Portugal, tem-se apontado o facto de a proporcionalidade real do sistema ser cada vez menor devido à desertificação do interior do país, em que os círculos têm cada vez menos deputados, e à existência de pequenos «círculos da emigração», com dois deputados cada. De qualquer modo, a representação proporcional está consagrada na Constituição, embora tenha sido aberto caminho para a representação proporcional personalizada na revisão constitucional de 1987.

Em conclusão, poderemos talvez colocar a hipótese de trabalho de o funcionamento dos sistemas eleitorais reflectir, também ele, uma certa crise do parlamentarismo, através do peso decisivo nos processos eleitorais, da escolha e legitimação dos governos e de uma relativa secundarização da escolha dos deputados. Naturalmente que esta afirmação não é verdadeira para o voto que procura apenas protestar ou influir na vida política – não necessariamente de forma prioritária através dos parlamentos – de que é exemplo em certos casos o voto comunista e o voto ecologista, ou noutro extremo, o da Frente Nacional em França ou dos «republicanos» (neonazis)

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na Alemanha. Mas é verdadeira nos casos em que a preocupação do eleitor é a efectiva escolha de quem deve governar.

3.4. Legitimidade, unicamaralismo e bicamaralismo

São muitos os parlamentos do mundo que se dividem em duas câmaras, que em geral recebem o nome de «câmara alta» e «câmara baixa». A excepção à tendência para considerar a «câmara baixa» como a câmara directamente eleita, e »câmara alta» como a cãmara que não é em geral directamente eleita ou tem outro tipo de legitimidade, é constituída pela Hoalanda.

Dentro dos casos estudados, Lijphart chega à conclusão, que poderá ser polémica, sobretudo se o estudo das «democracias contemporâneas» for mais alargado do que tanto as dimensões do país como o federalismo estão claramente com o unicamaralismo. Todos os grandes países e todos os sistemas federais dispõem de parlamentos bicamarários.

No entanto, nem todas as causas de bicamaralismo cabem nesta enumeração; há casos, por outro lado, que também parecem não caber na «regra» de que todos os grandes países são bicamarais. Por outro lado, em países bicamarais com dezenas de milhões de habitantes esta opção tem sido frequentemente questionada, mostrando que não basta o tamanho de um país para que o bicamaralismo seja óbvio e que esta pode não ser a motivação central.

Nesta matéria Montesquieu foi de uma particular clareza.

A redução dos poderes da Câmara dos Lordes britânica foi um dos exemplos que levou Lijphart a propor a categoria do «bicamarelismo assimétrico», em que uma das câmaras tem consideravelmente mais poderes que a outra.

A verdade, no entanto, é que a presença do bicamarelismo no mundo é muito acentuada, quer entre os casos estudados por Lijphart, quer nos diversos países cujos parlamentos fazem parte da União Interpalamentar. Sublinhe-se também a situação especial, a que Lijphart chama «parlamentos híbridos», em que os chamados «órgãos legislativos» são eleitos unitariamente, cindindo-se seguidamente em duas «câmaras» distintas. É o caso da Noruega e da Islândia. Não se trata de um verdadeiro bicamaralismo: para além da unidade da fonte de legitimidade, há um trabalho conjunto que leva a que não seja adequado assimilar estes casos ao «bicamaralismo».

No caso dos Estados federais, enquanto uma câmara representa a unidade do Estado federal, outra representa os Estados federados, que têm frequentemente um número de representantes que não depende da sua população: os pequenos Estados federados estão, em geral, sobre-representados.

Mas também há situações de Estados federais, como a Austrália, em que «a disciplina de partido em condições que são ignoradas pelos Estados Unidos tornam pouco verosímil que o Senado australiano desempenhe um papel tão activo como o Senado americano enquanto defensor dos interesses dos Estados». Por outro lado, em situações como as do Canadá, a tendência foi no sentido de passar de uma representação igual das «províncias», aquando da criação da Federação, para o fim do equilíbrio regional, aquando da adesão dos territórios do Norte; também na Índia, a representação dos Estados no Conselho de Estados depende do seu tamanho. Laundy, porém, afirma que a Índia não é um exemplo típico de federação, dado que o governo central é

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muito poderoso e dispõe do poder de suspender as constituições de Estados membros.

Em geral podemos apontar as seguintes tendências para o bicamarelismo actual:

● a câmara baixa é mais numerosa na sua composição;

● tem um mandato temporalmente menor;

● não é eleita simultaneamente, isto é, a sua eleição é escalonada;

● predominam situações em que a «câmara baixa» dispõe de maiores poderes, sendo em menor número as situações de equiparação do ponto de vista formal;

● só as câmaras altas com legitimidade democrática tendem, nas democracias actuais, a desempenhar um papel mais relevante;

● é frequente as câmaras altas conduzirem a uma sobre-representação das minorias políticas por vários processos.

Este conjunto de critérios leva a classificações do bicamaralismo, tais como «sólido e consequente» e «mais atenuado», dependendo a solidez de as câmaras serem «incongruentes» quanto a sua composição política (isto é, esta não ser a mesma) e «simétrica ou moderadamente assimétrica no que diz respeito aos poderes legislativos».

As razões invocadas para isso podem ser diversas, incluindo a participação de regiões ou outros órgãos de poder local, de intelectuais e artistas destacados, concessões ao neocorporativismo, etc..

Aparte situações federais, por detrás do bicamaralismo estão quase invariavelmente formas de controlar e limitar o alcance da representação política dos cidadãos. Daí que, quando o bicamaralismo é polémico, seja invocado com frequência o velho argumento: ou a «câmara alta» coincide na sua composição com a câmara baixa e é supérflua, ou não coincide e desrespeita a vontade popular tal como se manifestou.

3.5. Legitimidade: eleição de deputados ou de «candidatos a primeiro-ministro»

Em todas as eleições «legislativas» os candidatos sujeitos ao voto são formalmente os candidatos a deputados ou membros das câmaras. Sendo, do ponto de vista jurídico, os candidatos a deputados que são eleitos, deveria ser neles que, teoricamente deveriam votar os eleitores. A tendência geral terá sido, porém, para caminhar do voto em deputados para o voto em partidos e, progressivamente, para um voto personalizado nos seus leaders. Na verdade, já se referiu que no tempo de Maquiavel o Estado tinha um rosto na pessoa do Príncipe, enquanto o Estado moderno não tem rosto, é uma entidade abstracta.

Em geral, dependendo o governo a formar do apoio do Parlamento, pode ocorrer a possibilidade, ou pelo menos a verosimilhança, da maioria de um só partido favorecer a personalização individual do voto; essa situação pode também verificar-se quando há uma possibilidade de criação de coligações em que o partido que apresenta o «candidato a Primeiro-Ministro» é um candidato verosímil ou assumido à liderança da coligação.

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A dinâmica partidária e a escolha da maioria e do seu leader não deixam de ser dominantes, seja qual for o tamanho do círculo eleitoral e o grau de personalização das escolhas que o sistema tenta favorecer.

A emergência do fenómeno partidário e do Estado de partidos esbate irremediavelmente o papel do deputado nas eleições; só se o papel real do Parlamento viesse a aumentar poderia ser combatida com uma eficácia mínima a tendência para passar do esbatimento do papel do Parlamento e do deputado no sistema político ao seu esbatimento nas eleições, seja qual for o sistema eleitoral.

De outro modo, tal como a evolução do voto em deputados para o voto em partidos é um efeito característico da sedimentação do «Estado de partidos», a evolução do voto em partidos para o voto nos seus leaders é característica das tendências de evolução de sistemas políticos e de governo, quer devido à sua dinâmica própria, quer devido ao peso do fenómeno mediático, que leva nas suas consequências políticas, ao que Aeterton chamou a «teledemocracia».

A personalização do voto em candidatos a Primeiros Ministros é acompanhada • da espectacularização da política,• da perda do esclarecimento político em benefício do marketing e• da procura de adequação das mensagens ao consumidor-eleitor.

Estas situações são acompanhadas da tendência para os partidos com «candidatos a Primeiros Ministros» se configurarem como «partidos abrangentes» ou como catch-all-parties (Kircheimer), que perdem em identidade e clareza de mensagem o que procuram ganhar em ambiguidade para atrair eleitores, com tendências diversificadas.

São conhecidos os três tipos de «dominação legítima» de Max Weber: racional, tradicional e carismática. Frequentemente, o que cria condições para a personalização do voto e da vida política não é a habilidade, carisma ou génio dos leaders, mas as imagens concretas dos modelos conscientemente ou inconscientemente enraizadas na psicologia dos indivíduos e dos grupos.

Com efeito, poder-se-ia dizer que estaríamos apenas perante comportamentos eleitorais, sem efeitos duradouros no funcionamento dos sistemas políticos. Mas estes têm um efeito em todo o funcionamento ulterior: o Parlamento poderá sempre reivindicar a legitimidade especial de órgão de soberania directamente eleito; mas a distribuição de poderes fica, sem dúvida, influenciada por, durante a campanha eleitoral que antecede as eleições que são fonte de legitimidade parlamentar, avultar fortemente a questão da chefia do Governo ou do voto no partido. Deixar na sombra a escolha de quem deve ser deputado no momento da eleição pesa negativamente em todo o papel e estatuto ulterior do Parlamento e dos seus membros.

3.6. Representação política e democracia directa

É verdade que as grandes lutas travadas foram para ampliar e para generalizar o sufrágio (às mulheres, aos não proprietários, aos mais jovens...) e não para substituir a representação política pela democracia directa, colocando o eleitorado a decidir em vez dos parlamentos ou dos governos.

Este facto coloca de forma crescente a questão de distinguir o conceito de referendo do conceito de plebiscito, embora existam consideráveis dificuldades de o fazer. É mesmo possível encontrar quem entenda que devem ser tomados como sinónimos (Gladio Gemma).

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Julgamos, porém, que é possível delimitar os conceitos, desde que não sigamos algumas vias propostas que não se afiguram adequadas. Mas o que é verdade é que há actos assumidamente plebiscitários que foram apresentados como destinando-se a ratificar decisões estatais prévias (caso da Constituição de 22 de Brumário do ano VIII ou da anexação prévia de territórios); e há referendos que não são antecedidos de prévias decisões estatais.

Temos casos assumidos como plebiscitários em que estiveram em causa normas, como o da Constituição de 1933.

Tentou-se igualmente distinguir os conceitos na base de o plebiscito ter a ver com homens (com apelos carismáticos, etc.) e o referendo com a apreciação de problemas; mas somos confrontados com plebiscitos que se centraram em problemas como a anexação de territórios.

O critério que nos parece preferível é o de caracterizar o referendo e o plebiscito como representando um apelo ao voto dos eleitores inscritos, mas sendo o primeiro no quadro de um sistema e de uma ordem constitucional vigente, com uma disciplina previamente definida, enquanto o segundo tem carácter excepcional e rompe em geral com a ordem constitucional.

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4. Sobre a organização do poderGrande parte das visões habitualmente apresentadas nesta matéria, mesmo com pretensões de universais, na realidade são essencialmente eurocêntricas ou quando muito ocidentais.

4.1. Formas e sistemas de governoOs conceitos de formas e sistemas de governo são muito diferentes consoante os Autores, o que leva a tornar oportuno acentuar o carácter convencional da terminologia utilizada.

Assim, a título de exemplo, para Jorge Miranda «forma de governo é a forma de uma comunidade organizar o seu Poder, o seu governo (em sentido lato) ou estabelecer a diferenciação entre governantes e governados». O sistema de governo, por sua vez seria «o sistema de órgãos da função política; apenas se reporta à organização interna do governo e aos poderes e estatuto dos governantes».

J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, pelo seu lado, acentuam que a parte organizatória da Constituição «é tradicionalmente entendida como a parte onde se define a forma de governo, ou seja:a) a estrutura e posição jurídico-constitucional dos vários órgãos de

soberania com funções de direcção política do Estado;b) a distribuição do complexo de competências e funções atribuídas aos

órgãos constitucionais na definição de vontade política do Estado e na condução da política do País».

A « forma de Estado » seria o complexo de estruturas económicas, sociais e políticas que caracterizam globalmente a articulação entre o poder político e a sociedade». Este último conceito parece-nos demasiado abrangente, ultrapassando os aspectos que integram o conceito de forma de Estado tal como tem sido mais frequentemente considerado.

Quanto ao sistema de Governo, têm sido apresentados conceitos que, assentes numa óptica predominantemente jurídica, o tornariam praticamente equivalente ao conceito de forma de Governo. Assim, Marcelo Rebelo de Sousa propõe que sistema de governo seja «a forma a que obedece a estruturação dos órgãos do poder político do Estado, envolvendo o elenco desses órgãos, a sua composição, o processo de designação e o estatuto dos respectivos titulares, a sua competência em geral e a sua inter-relação funcional em particular, o modo de funcionamento e as formas de controlo da sua actuação».

A terminologia deve, para ser operacional do ponto de vista científico, ter em conta, por um lado, as normas que regulam as relações e situação específica dos vários «órgãos de soberania»; por outro lado o facto de a realidade não se conformar frequentemente com o modelo normativamente delineado. Para o problema da repartição horizontal de poderes e sua articulação pode reservar-se o conceito de sistema de governo, se se averiguar qual é a efectiva sede do poder; e de forma de governo, se se discutir como está organizada jurídico-constitucionalmente a repartição de poderes e a sua articulação sem investigar, no concreto, quem é efectivamente poder, quem decide. Assim, por exemplo, o estudo do sistema de governo levar-nos-á provavelmente a concluir estarmos, no caso português, entre 1987 e 1991 (início do segundo mandato presidencial) perante um «presidencialismo de Primeiro-Ministro». O estudo da forma de governo levar-nos-á a concluir estarmos perante uma

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forma mista parlamentar-presidencial ou, como preferem outros, perante «semipresidencialismo» ou «semiparlamentarismo».

Por vezes, é utilizado o termo regime político em sentido amplo, para designar a forma de governo e os métodos de dominação do Estado.

Mesmo utilizando um conceito restrito de regime, no sentido de abranger apenas os métodos de dominação estatal, é inquestionável que estes estão correlacionados com o de forma e sistema de governo. Com efeito, um regime autoritário tenderá a concentrar o poder e a excluir a divisão e controlo entre órgãos, enquanto um regime democrático liberal tenderá a coexistir com formas e sistemas de governo que consagrem a separação de poderes, com ou sem interdependência, embora também aconteça que uma forma de governo que as contemple acabe por dar origem a sistemas de governo concentrado, em particular no «Estado de partidos», quando o partido está por detrás dos «poderes» que tinham sido constitucionalmente separados.

4.2. O «parlamentarismo» e o «presidencialismo de primeiro-ministro»

A forma de governo «parlamentar» pura caracteriza-se pelo apagamento relativo do Chefe de Estado em relação ao Parlamento, pelo condicionamento da nomeação do Primeiro-Ministro e do Governo pela composição parlamentar, pela inexistência do poder de dissolução do Parlamento ou pelo seu condicionamento muito estrito, pela responsabilidade do Primeiro-Ministro e do seu gabinete perante o Parlamento, podendo ser destituídos por um voto de censura ou desconfiança, e pela carência de capacidade de intervenção do Governo, designadamente na fixação da ordem do dia do Parlamento. A primeira figura formal do Estado ou é um monarca, ou não é eleito directamente e o governo não responde perante ele. Por outro lado, nestes sistemas parlamentaristas é, de um modo geral, ao chefe do Estado que compete a tarefa formal de nomear o chefe de Governo, embora a verdadeira selecção do primeiro-ministro e do seu gabinete seja da competência dos chefes dos partidos com assento parlamentar. Na prática, esta forma de governo conduz na época do «Estado de partidos» a sistemas de governo de gabinete ou de presidencialismo de Primeiro-Ministro, porque este é o leader do partido maioritário do parlamento e a maioria parlamentar como que se funde com o governo para efeitos do processo de decisão política11.

É importante a distinção entre forma de governo parlamentar pura e forma de governo parlamentar racionalizada, mitigada ou de gabinete, em função designadamente do grau de dependência do Chefe do Estado em relação ao Parlamento, da existência ou não do poder de dissolução do Parlamento e da capacidade de intervenção do Governo junto do Parlamento, em especial na fixação da ordem do dia. Na distinção entre parlamentarismo clássico e o chamado «parlamentarismo racionalizado», cabe segundo alguns Autores a introdução, neste último caso, da moção de censura construtiva. Trata-se de um mecanismo em vigor na Alemanha e Espanha, que impede a aprovação de uma moção de censura e consequente destituição do Governo sem indicação e perspectiva de investidura de uma solução alternativa.

Outras formas de racionalização, características das Constituições posteriores ________________________________11 Arend Lijphart, As Democracias Contemporâneas, p. 100, salienta que «um outro processo de realçar as diferenças existentes entre o presidencialismo e o parlamentarismo consiste em estabelecer um confronto entre separação dos poderes executivo e legislativo e fusão destes dois domínios».

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a 1945, são a exigência de maiorias qualificadas na aprovação de moções que impliquem a responsabilidade governamental.

O parlamentarismo traduz-se essencialmente, na sua evolução, não tanto no predomínio dos parlamentos mas na «estreita união e (n)a quase completa fusão dos poderes executivo e legislativo» a que Walter Baghot atribuía em 1867 o que considerava ser «o eficaz funcionamento do governo britânico». Mas o governo é formado com o leader do partido maioritário como Primeiro-Ministro e as principais figuras do partido como ministros e controla uma maioria parlamentar disciplinada, impedindo o êxito de moções de censura e garantindo a aprovação de iniciativas legislativas. Por isso, nas formas de governo parlamentares acaba por ser o gabinete a ter um largo predomínio. Daí que estas formas de governo tenham manifestado a tendência para serem mitigadas de várias formas, para serem racionalizadas e convertidas em sistemas de governo de gabinete.

Esta tendência é clara no modelo britânico e, em geral, no chamado «modelo de Westminster»: proclamação da soberania parlamentar e enfatização da representatividade do Parlamento, mas supremacia real do gabinete.

Note-se que usamos a expressão parlamento no sentido habitual no Continente. Não é este, porém, o sentido técnico jurídico utilizado no Reino Unido. Com efeito, o termo designa os «três órgãos legislativos»: a Câmara dos Comuns, a Câmara dos Lordes e a Coroa, embora só a primeira tenha competências verdadeiramente de decisão política, já que a oposição da Câmara dos Lordes pode ser sempre superada e a Coroa nunca nega a sua sanção. A tudo isto acresce a prática de eleição directa, de facto, não só do Parlamento, mas também a tendência para a selecção dos leaders do executivo por via eleitoral, o que é comum no sempre citado caso do Reino Unido, mas acontece também noutras situações como a Alemanha.

É certo que são tentadas distinções entre «governo parlamentar» e «governo de gabinete», que é corrente ser considerado como «uma versão específica do governo parlamentar» e um conceito que Loewenstein entendeu que deve ser reservado para a manifestação institucional britânica.

Mas «a busca de uma fórmula mágica para criar e manter um equilíbrio estável entre o governo e o parlamento» tem sido, como o próprio Loewenstein reconhece, «até agora bastante infrutífera». Na prática, o facto de as características do autêntico «governo parlamentar» implicarem a chefia do governo pelo leader do partido maioritário levam a que procurar o equilíbrio entre o gabinete e o parlamento seja como procurar a quadratura do círculo.

Esta tendência é favorecida, aliás, pelo facto de a forma de governo parlamentar estar distante da teoria da «separação de poderes», ou de funções.

Por outro lado, embora haja quem afirme que o quadro natural do parlamentarismo é a monarquia constitucional e que metade dos regimes parlamentares contemporâneos retiveram a forma monárquica, o sistema parlamentar tende, pelo menos na prática, para a menorização da instituição monárquica, através do esvaziamento dos poderes da Coroa ou da figura real12. Quanto ao Presidente da República, não é directamente eleito, não dispondo portanto de legitimidade própria. Os seus poderes são, em grande

________________________________12 Como se disse, a prática constitucional vai no sentido da diminuição e do esvaziamento dos poderes da instituição monárquica moderna, mas estes não deixam de ser juridicamente relevantes. É mais um caso de diferença entre o «mundo normativo» e o mundo real.

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medida, formais: compete-lhe frequentemente designar o chefe do governo, mas o poder real cabe ao(s) partido(s) maioritário(s); pode competir-lhe dissolver o parlamento, mas é ao governo e ao Primeiro-Ministro que cabe frequentemente a proposta e decisão real.

As situações são, porém, diversificadas, havendo sistemas em que se verificam casos e momentos de maior intervenção presidencial mas apenas com carácter excepcional e em momentos de crise, como aconteceu em Itália. Na mesma linha de afirmação do Parlamento como única fonte de legitimação democrática, não só está excluída a eleição directa do Presidente da República, mas são suprimidos os contactos directos do poder executivo com o eleitorado mediante a via do referendo, que aparece como um factor perigoso para o regime parlamentar. Note-se que as situações excepcionais em que tal acontece foram controversas e cautelosas (carácter meramente consultivo e autorização prévia da «Câmara Baixa», como aconteceu em Espanha).

O sistema parlamentar pode ser marcado também pelo sistema partidário: Lijphart afirma que «os governos de coligação se revelam mais débeis e os parlamentos com que se defrontam relativamente mais fortes do que os gabinetes unipartidários»; estudos relativos ao Reino Unido apontaram para que os «gabinetes de maioria estrita» dispunham de um apoio parlamentar mais sólido, enquanto os gabinetes apoiados em amplas maiorias tinham um apoio mais discreto do seu grupo parlamentar.

Não é possível, porém, estabelecer qualquer correlação estreita entre o sistema parlamentar e o sistema eleitoral. Se a fórmula da maioria relativa é característica do modelo de Westminster, isto é, o modelo do Reino Unido e aparentados, já existe toda uma série de outros casos em que são adoptadas outras fórmulas eleitorais, em particular a proporcionalidade: pense-se, por exemplo, na Espanha, Itália anterior à reforma recente ou a Alemanha.

4.3. A forma de governo presidencial e o presidencialismo

A forma e o sistema de governo presidencial podem identificar-se, em primeiro lugar, por uma eleição do Presidente da República directamente pelo povo, mesmo quando assim não é do ponto de vista formal: é o caso dos EUA, em que o Presidente é eleito por um colégio eleitoral cujos membros são directamente eleitos em função do seu apoio a um ou outro candidato, levando a que o sistema de eleição presidencial nos EUA já foi apresentado como sendo de sufrágio universal «quase directo». Com efeito, é prática do colégio nacional limitar-se actualmente a uma transmissão meramente automática das opiniões do eleitorado. Tal sistema torna possível que um candidato seja escolhido por uma minoria, mesmo existindo apenas dois candidatos: o candidato que obtenha a maioria num Estado recolhe o apoio de todos os delegados desse Estado. A Câmara dos Representantes pode ser chamada a decidir em situações de escrutínio indeciso.

A evolução do sistema de eleição do Presidente levou, porém, a que o colégio eleitoral fosse formado por membros escolhidos em função do seu apoio a tal ou tal candidato presidencial, aproximando-o das eleições directas. O título de legitimidade directa explica que não seja possível a demissão do Presidente por parte do Parlamento por razões de confiança política. Em segundo lugar, o «chefe de Estado» é o primeiro titular de poder executivo, a quem compete nomear e dirigir directamente o governo, o qual é, portanto, independente da

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investidura e confiança parlamentar e não pode ser demitido pelo Parlamento. Burdeau diz mesmo, acerca do que chama «regime presidencial» que é o que assegura ao máximo a independência dos poderes e realiza a sua separação mais completa. Expressão desse facto é não só o Parlamento não poder demitir o Presidente, como o Presidente não pode dissolver o Parlamento.

A forma de governo presidencial caracteriza-se ainda por um sistema de cheks and balances, expresso na possibilidade de o Presidente poder vetar os actos do «legislativo» e na possibilidade eventual de superação do veto, em geral por maioria de dois terços.

Já foi também invocado como característico do presidencialismo o facto de a ele corresponder uma situação de «democracia com leader», em que o Presidente estabelece uma relação directa com a opinião pública: à «soggetivitá politica» do presidente corresponderia uma acrescida «sovranitá» dos cidadãos. Tem-se objectado, porém, que os sistemas de «imperador eleito» (Kelsen) podem degenerar e transformar-se em sistemas de forte espectacularização da luta pelo poder; e que é no contacto com o espectáculo e com o seu controlo pela grande comunicação social que se esgota em muitos casos a alegada relação personalizada do cidadão com o poder.

Pode dizer-se, por outro lado, que a personalização da vida política é uma consequência entre outros factores, da presença e papel da comunicação social, em particular nas campanhas eleitorais, e que não é criada exclusivamente pelas regras institucionais em vigor em cada sociedade.

De resto, como já vimos, há formas de governo parlamentar, como é o caso do inglês, em que o Primeiro-Ministro é, na prática, como que eleito directamente pelo povo, A personalização e espectacularização, em todo o caso, podem ser levadas mais longe pelos sistemas presidenciais. Este facto pode envolver riscos que encontraram alguns «antídotos» no caso dos EUA, relacionadas com a sua cultura, como é o caso do parlamento forte, do Supremo Tribunal de Justiça poderoso, das competências dos Estados. Mas alguns destes «antídotos» podem não ser reproduzíveis ou «exportáveis» para outros sistemas.

Seja como for, o sistema presidencialista não é muito vulgar entre as democracias ocidentais. Num estudo realizado, por exemplo, avulta o facto de, entre 21 democracias analisadas, apenas ser claro o caso dos EUA. Outros casos, por vezes referidos, não têm razão de ser: é o que acontece com a V República francesa e da Finlândia. Estes, com efeito, são casos mais próximos das formas mistas.

Assim, por exemplo, Karl Loewenstein afirma:O presidente não está em absoluto obrigado a prestar contas ao Congresso. Independentemente da opinião que lhe mereça o presidente – e em certos casos pode ser muito pouco favorável – o congresso não pode destituí-lo do seu cargo (...) Impeachment, a acusação que nunca foi um controlo eficaz, tornou-se perfeitamente antiquada.

Sem discutir a actualidade e correcção das afirmações de Loewenstein acerca do impeachment, designadamente à luz do caso do Presidente brasileiro Collor de Melo ou do caso mais recente do Presidente Clinton, há que observar que, no quadro da irresponsabilidade política do presidente e do executivo, existem, no entanto, importantes relações entre os poderes presidencial e parlamentar que importa sublinhar.

É perante as duas câmaras, reunidas em sessão conjunta que o Presidente pronuncia o discurso sobre o estado da União. Por outro lado, são submetidos

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às comissões competentes um largo número de relatórios sobre a actividade dos departamentos ministeriais.

O papel legislativo do Congresso em comparação com outros parlamentos é maior do que noutros sistemas em que o Parlamento se limita a aprovar as leis propostas pelo executivo.

O Presidente, pelo seu lado, dispõe do direito de veto, incluindo o pocket veto; obtém apoios individuais de congressistas, devido a não existir uma disciplina partidária estrita; utiliza o spoils system ou outras relações clientelares para obter votos no Congresso a troco de postos na Administração; apela à opinião pública contra as posições parlamentares.

É frequente que nas mid-term elections (as que se realizam a meio do mandato presidencial) o partido do presidente perca a maioria numa das câmaras. Em todo o caso, são constantes as votações cruzadas, em que deputados do partido do presidente votam com a oposição e deputados do partido da oposição votam com o partido do presidente.

Há dois grandes tipos de situações em que se verifica a existência de sistemas presidenciais.• Uma é o caso dos Estados Unidos, em que a grande crítica tem sido que o

sistema implica a dificuldade de gerar governos responsáveis politicamente e capazes de assentar na compatibilização das «duas soberanias», a resultante da eleição presidencial e a resultante das eleições parlamentares.

• O outro tipo de situações corresponde a casos de democracias frágeis, em que se torna difícil estabilizar o sistema e institucionalizar os conflitos sociais e políticos.

Sobre o primeiro caso, o dos EUA, o presidente é eleito de quatro em quatro anos por um eleitorado nacional, a câmara baixa é renovada de dois em dois anos, os representantes são eleitos por um eleitorado de distrito; o senado é renovado integralmente de seis em seis anos, sendo um terço de lugares rotativamente substituído de dois em dois anos, em coincidência com eleições nacionais, pelo eleitorado dos Estados federados.

Os conflitos institucionais que que verificam com frequência são resolvidos (ou não) através de invocações constantes da(s) legitimidade(s) resultante(s) da vontade popular, em particular pelo Presidente, que joga a seu favor com o processo que o «deifica».

Sem subestimar a influência de factores económicos e sociais, entre as razões de instabilidade pode contar-se o facto de, nestes países, existirem divisões consolidadas, que tornam difícil resolver o problema da dupla legitimidade (do Presidente e «executivo» por um lado e do «parlamento» por outro), através de práticas de construção de «maiorias transversais», como as que têm por vezes sido possíveis nos EUA devido ao carácter pouco coeso dos partidos.

Por outro lado, o facto de o Presidente ter simultaneamente o papel de Presidente de uma parte, a que o elegeu, e de Presidente de todos, de encarnação da unidade nacional, faz com que possam mais facilmente aparecer e ser apontados como antinacionais os comportamentos da oposição.

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4.4. Os «sistemas mistos» e o seu pendorA necessidade ou vantagem de evitar a contradição entre a representação nacional e a representação de uma parte foi um dos factores que contribuiu para que tenha sido tentada a conciliação entre as formas de governo parlamentares e as presidenciais através de formas de governo mistas, em que o Presidente tem poderes mas não dirige o executivo.

As formas e sistemas de governos «semipresidenciais» ou, como preferirmos, formas de governo mistas parlamentar-presidencial, são as que mais têm sido estudadas e debatidas em Portugal, sobretudo antes e imediatamente após a revisão constitucional de 1982.

Não são estas, porém, as únicas categorias utilizadas para designar estas complexas formas de governo. Já se falou em• «parlamentarismo presidencial», em• «presidencialismo parlamentar»; em• regimes parlamentares com «correctivo presidencial»; em• semiparlamentarismo; e em• parlamentarismo dualista em «forma de governo parlamentar com

tendência presidencial».

Houve, aliás, quem pretendesse atribuir ao conceito de presidencialismo um conteúdo capaz de identificar esta terceira categoria, concebida não como sendo mista mas sim reagrupando um elemento de cada um dos tipos puros, e que se contraporia ao «regime presidencial» e ao «regime parlamentar». Esta prposta tem subjacente, porém, uma definição do sistema presidencial como sendo identificado meramente pela eleição directa do Presidente da República, não considerando necessário que este dirija directamente o executivo.

Julgamos preferível utilizar a terminologia «sistema misto parlamentar-presidencial», indicando que se trata de uma forma de governo misto de pendor parlamentar ou de pendor presidencial. Esta terminologia parece preferível a outras, como o «semipresidencialismo», que não indica a outra componente da forma de governo, nem o seu carácter misto, e que pode escamotear o facto de, em muitos casos, o elemento dominante não ser o presidencial, mas sim o parlamentar – ou melhor, em muitos casos, o Gabinete e o Primeiro-Ministro que emanam do parlamento e do(s) partido(s) nele maioritário(s).

É também preferível à proposta de Arend Lijphart que pretende resolver o «problema de classificação» das situações em que existem dois «chefes de executivo» (um presidente directamente eleito e um «primeiro ministro eleito através da legislatura e dependente dela») preconizando que se averigue «quem será efectivamente o chefe do executivo » – o Presidente ou o Primeiro-Ministro. Daqui decorreria que a França da V República e a Finlândia seriam «governos presidencialistas».

O conjunto de casos incluídos no conceito de formas de governo «mistas» é suficientemente homogéneo para permitir esta designação genérica. Mas é também suficientemente diverso para evitar o termo semipresidencialista, que inculca a ideia de predomínio do Presidente da República, ou de tendência nesse sentido, embora se possa verificar antes uma tendência para um peso maior do Primeiro-Ministro, Governo e maioria parlamentar em comparação com o «chefe de Estado»; ou então pode verificar-se uma situação de equilíbrio instável entre as duas componentes.

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A categoria tem em comum com os sistemas presidenciais a eleição directa do chefe de Estado, ou por um colégio de delegados eleitos em função do seu apoio a um candidato, como é o caso da Finlândia; mas tem em comum com as formas de governo parlamentares o facto de o governo só se poder manter com a confiança do Parlamento e ser constituído em função da composição deste e não das orientações e escolhas pessoais do Presidente. Trata-se, portanto, não de uma «deformação» do modelo presidencial mas sim, como diz Benoît Jeanneau, do seu cruzamento com o modelo parlamentar, o que os naturalistas chamariam um «híbrido». Daqui decorre a possibilidade de situações de «coabitação política» do Chefe de Estado e de maiorias parlamentares com outra orientação, como tem acontecido em Portugal e aconteceu em França entre 1986 e 1988: são situações de relacionamento entre um Presidente da República emanado de uma área partidária e um Governo apoiado parlamentarmente por outra. Esta é uma situação típica e que pressupõe um sistema de governo misto.

Há, no entanto, uma diferença muito grande entre os sistemas, como será o caso do francês, em que, mesmo em situações de coabitação, o Presidente da República é a chave e figura central do sistema, fazendo amplo uso dos seus poderes de intervenção e cabendo-lhe o «indirizzo politico generale», e as situações em que o seu papel é relativamente esbatido, avultando mais a figura do Primeiro-Ministro e do governo e podendo haver teoricamente mais espaço para o Parlamento. Daí que se possa falar em pendor dos sistemas mistos no sentido presidencial ou no sentido do governo/parlamento.

No primeiro caso, é ao Presidente que cabe definir as grandes linhas do rumo político do País e preside, ou pode presidir se o entender, ao Conselho de Ministros. Por outro lado, na Comunidade Europeia, como expressão deste facto, o Presidente da República de um sistema misto de pendor presidencial, o francês, participa no Conselho Europeu, enquanto que no caso português, como se sabe, é o Primeiro-Ministro que participa; este facto, sobretudo num quadro de integração europeia cada vez mais profunda, exprime a quem cabe o papel fundamental no funcionamento do sistema, salvo em situações de crise.

Seja como for, o sistema de «águia de duas cabeças» (Duverger) embora estas possam ser desiguais, evita a situação em que o chefe de Estado é, simultaneamente, o «representante de toda a nação», e uma parte dela, a que venceu a oposição. É o que acontece quando se verifica o seu envolvimento total do Presidente na direcção política governamental e nos confrontos com os partidos que não apoiam o governo. Nos sistemas mistos de pendor presidencial, como o francês, gera-se, em contrapartida, uma situação do Presidente da República: este é menos exposto à crítica e à controvérsia política. Sobre ele já foi dito que é ao mesmo tempo Rainha de Inglaterra, Primeiro-Ministro e Chefe da Oposição:

Chefe de Estado simbólico, chefe efectivo do governo quando lhe convém, chefe da oposição qunado entende ser a ocasião. Quem renunciaria a uma acumulação tão deliciosa?

Do ponto de vista do papel do Parlamento no sistema político, é evidente que o predomínio no governo de um Presidente da República directamente eleito e que não é responsável perante ele conduz a uma menorização do peso real dos parlamentos, que pode ser, em teoria, tendencialmente maior do que nos sistemas mistos de pendor parlamentar, em que o parlamento tem maior capacidade potencial de controlar o governo. Só que este facto pode ser diminuído quando existe uma maioria parlamentar sólida e coesa no apoio ao

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governo e uma liderança forte do chefe do partido maioritário e Primeiro-Ministro, que tende a liderar o governo, do ponto de vista jurídico e de facto, e a maioria parlamentar do ponto de vista de facto.

A tendência dos sistemas mistos pode ser diversa consoante exista ou não a coincidência da maioria com o governo e o presidente. No caso de haver consonância, a situação é a inversa, podendo diminuir o papel de fiscalização e esvaziar-se a efectiva separação horizontal de poderes em favor do mesmo partido ou bloco de partidos, que podem estar por detrás dos vários poderes.

Perder-se-á assim em fiscalização e «balanceamento de poderes» o que se poderá ganhar em harmonização e em evitar «conflitos institucionais». Estes, porém, podem não dever ser dramatizados, mas sim considerados como tendo virtualidades importantes. Pense-se, sobretudo, em situações em que a capacidade legislativa autónoma e fiscalizadora dos parlamentos fica diminuída pela mesma dominância partidária aí e nos governos que deveriam ser fiscalizados. Nesses casos pode ser um risco real o esvaziamento da função presidencial, se o Presidente estiver abrangido por mecanismos de disciplina e coesão idênticos aos da maioria parlamentar e se não houver lugar para os «freios e contrapesos» classicamente invocados como necessários para prevenir os abusos de poder.

Problema diferente é a influência dos sistemas eleitorais nos sistemas mistos, sobre a qual se verifica a necessidade de ponderação e prudência.

Parece-nos apressada a afirmação de que a experiência de conjugação do «regime semipresidencial», com a eleição directa do chefe do Estado, e o sistema eleitoral proporcional «produz a longo prazo uma instabilidade endémica», como teria acontecido na Finlândia e em Portugal. A evolução portuguesa demonstrou, aliás, a ligeireza destas apreciações, designadamente ao gerar duas maiorias absolutas de um só partido numa situação que parece que teria que ser de «instabilidade endémica», e em que o sistema proporcional parece que teria que gerar sistemas multipartidários sem potencial estável de coligação entre partidos e sem qualquer perspectiva de estabilidade política.

4.5. Influência dos sistemas partidários nos sistemas de governo

Na análise de como funciona (ou não) a separação ou divisão de poderes, das tendências para a interdependência ou fusão dos poderes, do sentido real dos sistemas de governo, é particularmente pertinente perguntar qual é a sede do poder do ponto de vista factual, superando, como tem sido salientado, uma visão normativa do problema e tendo em conta que «a mesma forma pode corresponder a conteúdos diferentes do poder».

Para determinar qual é a sede real do poder e a configuração dos sistemas de governo é fundamental averiguar qual é a influência dos partidos e do sistema partidário no sistema de governo, bem como a sua relação com outras entidades públicas e privadas.

Não considerou o aparecimento do «novo príncipe», o partido, que pode simultaneamente estar por detrás do Presidente da República, do parlamento e do governo, ou, nos casos em que o «chefe de Estado» tem uma posição marcadamente simbólica, por detrás do parlamento e do governo.

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A irrupção e lugar central do papel dos partidos modernos está indissoluvelmente ligada ao crescimento do papel dos assalariados na vida política e à conquista do sufrágio universal por estes, bem como pelas mulheres.

Embora esse papel seja diferente nos vários sistemas, obrigando a um estudo concreto das relações entre o governo e a maioria parlamentar, o partido aparece quase sempre reivindicando-se do papel de mediador entre os órgãos de poder e a opinião pública. Mesmo quando o «Chefe do Estado» tem um papel sobretudo simbólico, o partido é maioritário no Parlamento e está sozinho no governo, havendo um só órgão real de poder, está obrigado a manter minimamente as aparências a vários níveis: por exemplo, o discurso acerca do papel autónomo do Parlamento, designadamente no plano legislativo e fiscalizador é inerente ao partido do poder, mesmo se os factos o desmentem.

Mas existe uma diferença importante entre a situação de sistemas em que existem partidos coesos e disciplinados, em que há campo para o «mandato imperativo de partido», como tende a acontecer na Europa, e as situações em que o deputado mais facilmente vota segundo a sua consciência e vontade individual, ou segundo o aliciamento que é feito de várias formas pelos titulares do «poder executivo», ou por grupos de pressão, como acontece no caso já referido dos EUA.

Seja como for, em caso algum é dispensável na abordagem dos sistemas de governo o estudo do partido maioritário, das relações que mantém com o poder e da influência que daí resulta para os sistemas de governo: esse estudo pode levar à conclusão de que uma sede esencial de poder, o partido e o seu leader, limitam a distribuição de competências entre os vários órgãos de soberania.

É certo que tem surgido a afirmação de que o sistema eleitoral proporcional com exclusivo partidário na apresentação de candidaturas ao Parlamento teria como consequências a «crescente intermediação partidária, a centralização dos partidos políticos, um relativo apagamento dos candidatos e o seu afastamento quanto aos eleitores».

Consideramos, porém, que a afirmação é aplicável a diferentes sistemas políticos com diferentes sistemas eleitorais.

Em todos os casos, é real a personalização das eleições em torno do Primeiro-Ministro e de quem vai ser governo e a menorização do papel do Parlamento, tal como nos sistemas presidenciais é decisivo o papel da eleição presidencial, porque o Presidente da República vai chefiar o executivo. Neste caso a eleição dos membros do Parlamento individualmente considerados pode ter um papel não devido ao sistema eleitoral, mas sim porque os partidos são menos coesos e disciplinados e, portanto, podem deixar maior campo para o peso e características de cada membro do Parlamento na campanha eleitoral e no exercício do mandato.

O sistema eleitoral pode não ser decisivo na determinação do sistema de governo. Podem ser mais importantes o carácter coeso e disciplinado dos partidos ou a tendência para o exercício sem condicionamentos do mandato de deputado. Pelo contrário, o sistema de governo pode influenciar o funcionamento concreto do sistema eleitoral, determinando ou influenciando quem ou o quê vai estar em jogo na eleição (a eleição do Primeiro-Ministro ou dos deputados). No fundo, são muitos os eleitores que, mesmo que inconscientemente, se determinam pela pergunta: como influenciar a escolha

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de quem vai ser a «sede do poder» no sistema político. Quando não há uma coincidência entre quem vai ser votado (membros do Parlamento) e quem vai ter decisivamente o poder (Primeiro-Ministro e Governo), muitos eleitores preferem possivelmente votar nestes últimos (o que não significa que não haja eleitores – em geral minoritários – que querem votar em partidos em função do seu papel reivindicativo, de «intimidação», da «capacidade tribunícia»).

Em conclusão, a influência do sistema eleitoral no sistema de governo é mais restrita do que tem sido, por vezes, afirmado. Ao contrário, tem sido subestimada a influência do sistema de governo (quem tem ou vai ter o poder) no modo como funciona o sistema eleitoral (quais são as motivações decisivas nas escolhas de grande número de eleitores).

A personalização em torno dos candidatos a Primeiros-Ministros não é menor nos sistemas eleitorais maioritários do que em sistemas proporcionais como o português.

O fenómeno de «deslocamento de uma parte considerável do poder real para fora do quadro formal institucional», influi, assim, nos comportamentos eleitorais. Pode contribuir para secundarizar a eleição dos deputados em relação à discussão de quem vai ser a sede do poder.

A experiência mostra que se é verdade que o entendimento das relações entre sistemas eleitorais e sistemas partidários que têm sido apresentadas é por vezes simplista e linear, a relação entre sistemas partidários e sistemas de governo, não deixa de merecer ponderação. Assim, por exemplo, a transformação de formas de governo parlamentares ou mistas parlamentar-presidencial em sistemas de «presidencialismo de primeiro ministro» é favorecida por sistemas partidários bipolarizados ou de partido dominante, sendo de mais difícil aplicação – pelo menos – em sistemas multipartidários ou de «pluralismo extremo» ou mesmo «moderado». Noutros termos, esta é uma via para conter a conhecida tendência para desvalorizar os parlamentos. Assim, por exemplo, na IV Legislatura, em que o Primeiro Governo de Cavaco Silva era minoritário no Parlamento, o papel deste foi maior, tendo mesmo aprovado múltiplos diplomas sem o apoio do partido do Governo e tendo legislado com frequência sem ser por iniciativa do «executivo».

É justo afirmar, em geral, que «a instituição parlamentar, ainda venerada em muitos países – porventura se se pudesse falar com as palavras de W. Bagehot, mais como «dignified part» que como «efficient part» da Constituição – é, as mais das vezes, desvalorizada e subalternizada quer no plano do processo político (ou praxis constitucional) quer no plano da «lógica» constitucional». Mas é necessário que são muito diferentes os termos e os caminhos pelos quais os parlamentos são mais ou menos desvalorizados e que é diversa, no concreto, a influência que os sistemas partidários podem ter nesse fenómeno.

Por outro lado, os partidos podem, através da revisão constitucional, conformar a forma de governo, introduzindo alterações fundamentais: assim, por exemplo, com a segunda revisão constitucional foi diminuído o pendor presidencial no caso português, acentuada a margem de actuação dos partidos e, na prática, as próprias candidaturas presidenciais passaram a ser inseparáveis das posições dos partidos.

Outro exemplo: a permissão de governos minoritários foi facilitada pela Constituição pelo facto de não exigir a aprovação expressa do Programa do Governo. Este facto foi, seguramente, fruto de um sistema partidário concreto e destinou-se claramente a viabilizar um sistema de governo compatível e de

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acordo com esse sistema partidário, isto é, um governo monopartidário minoritário.

O sistema de governo pode tender a ser significativamente diverso no seu funcionamento consoante as maiorias parlamentares, de apoio ao Governo e de apoio ao Presidente da República; se por detrás da Assembleia da República, do Governo, e do Presidente da República estiver a mesma maioria partidária, no quadro de um sistema de partido dominante, com maioria absoluta, a tendência será mais claramente para um sistema de governo de presidencialismo de Primeiro-Ministro, sobretudo se este for o leader do partido maioritário.

4.6. Sobre o Parlamento em especialO termo Parlamento engloba, se nos reportarmos, por exemplo, às entidades que são membros da União Interparlamentar, um conjunto muito diverso de realidades. A diversidade será ainda maior se olharmos para os antecedentes históricos que são sistematicamente citados pelos Autores que se debruçam sobre a realidade e o conceito de Parlamento: «Estados Gerais», «Cortes», «Estamentos»; as Curia ou os Consiglium Regis; o Model Parliament, surgido em 1295 na Grã-Bretanha em detrimento do Consiglium ou Curia e a imposição do nome de Parlamento neste País a partir do século XIV.

É claro que se pode tentar encontrar elementos ou princípios comuns, com algum fundamento: o princípio medieval quod omnes tangit ab omnibus probetur e o princípio moderno da participação dos que «representam» os eleitores nas decisões fundamentais.

Mas se é evidente o interesse do estudo e discussão de realidades históricas que antecederam os parlamentos modernos, já é mais duvidoso o interesse e a operacionalidade de um conceito de Parlamento que pudesse, pela sua amplitude, abranger todos esses antecessores. Ora, também neste aspecto, é duvidoso o interesse científico de um conceito de parlamento que englobe simultaneamente as assembleias dos Estados cuja legitimidade assenta em eleições competitivas e, decisivamente na actualidade, no sufrágio universal, e outras assembleias que se reivindicam de outros títulos de legitimidade (eleições não competitivas, «sufrágio corporativo», representação nobiliárquica, etc.). Estas poderão ser uma das partes dos modernos parlamentos bicamarais, mas com um papel apagado e subordinado.

O conceito de parlamento pode, por isso, ser reservado para as assembleias políticas de sociedades organizadas segundo modelos derivados da revolução de 1688 no Reino Unido, da revolução francesa, da revolução norte-americana e de outras revoluções, como a portuguesa de 1820. Em todo o caso, para os parlamentos modernos é decisiva a conquista do sufrágio universal. Daí decorre que consideramos elemento fundamental do conceito de Parlamento o princípio da representação política assente em eleições concorrenciais, conjugado ou não, no caso de o Parlamento ser uma união de assembleias, com outros títulos de legitimidade (por exemplo, a representação de Estados federados e estruturas locais, ou regionais).

Quanto às funções do Parlamento enquanto assembleia unicamaral ou bicamaral o problema é complexo. Com efeito, consideramos duvidosa a correcção científica, face às realidades actuais, da afirmação, no quadro da definição de Parlamento, de que este se caracteriza por lhe serem «essencialmente atribuídas funções político-legislativas». Com efeito, quer do ponto de vista da ciência política, quer do ponto de vista jurídico, são hoje

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essenciais outras funções, com destaque para a fiscalização dos governos e da administração. A própria competência financeira, a mais antiga e a que foi originada na conhecida reivindicação e aforismo inglês no taxation without representation só numa óptica formal(ista) pode ser reconduzida à função legislativa.

Assim, na óptica própria da ciência política, o Parlamento possa ser definido como uma assembleia, ou sistema de duas assembleias articuladas entre si para o exercício das suas funções em que, pelo menos a assembleia determinante, assenta a sua legitimidade na representação política decorrente de eleições competitivas e que participa em processos de decisão política ao nível estadual, fiscaliza os governos e a administração pública, debate os actos do poder e discute soluções alternativas, e com a qual, em muitos casos, o Governo tem que manter, ou não romper, uma relação de confiança.

Nos actuais parlamentos tem especial importância os grupos parlamentares, o que leva mesmo a que se afirme que hoje em dia os parlamentos funcionam mais como conjunto de grupos do que como conjunto de deputados. Expressão deste facto é a existência da chamada «Conferência de Leaderes», ou Conferência dos Representantes de Grupos Parlamentares, a quem cabe uma real direcção política do parlamento e fixar a ordem do dia, facto que pode ter especialmente importância, em especial para garantir os direitos da oposição.

As actividades das comissões do parlamento podem ser legislativas ou de fiscalização.

4.7. A questão do governo, da administração e da «burocracia»

No plano jurídico e da ciência da administração, é usual teorizar as funções do Estado distinguindo uma função política, uma função legislativa, eventualmente concebida como um dos modos de exercício da função política, e uma função administrativa, essencialmente executiva. Hoje, no entanto, é cada vez mais claro que existem profundas ligações entre os vários campos e poderes (os estritamente «políticos» e os ditos «administrativos»); e que o Governo passou a participar no exercício das várias funções. Com efeito, o partido que lidera o parlamento é o mesmo que lidera o governo e, frequentemente, o Primeiro-Ministro é o líder partidário e, indirectamente, da maioria parlamentar. Aliás, com frequência, a própria actividade dos parlamentos é estreitamente baseada na actividade dos governos, mesmo quando aparece como sendo formalmente parlamentar.

Ligado ao Governo está o problema de grande parte da Administração e da burocracia, termos que muitos associam e cuja relação convém clarificar.

O termo burocracia está longe de ter um sentido unívoco. Neste contexto é mais discutível, mas compreensível, a opinião daqueles que se perguntam se não seria melhor «considerar o vocábulo burocracia como um exemplo das incertas formulações das ciências sociais primitivas e eliminá-lo do léxico científico moderno».

A Grande Enciclopédia Luso-Brasileira acrescenta: «toma-se geralmente em má parte, ou sejam, as dificuldades que levantam os empregados ao público, opondo-lhes as complicações dos regulamentos administrativos, as exigências abusivas na observação dos mesmos, a má vontade em dar rápido andamento ou despacho às questões que lhe são cometidas». A referência aos «agentes

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administrativos» como burocratas (no sentido de integrarem o «modelo burocrático») e como grupo social específico é frequente noutros Autores. Podemos encontrar igualmente uma diversidade de sentidos que não é radicalmente diferente noutras fontes mais recentes: poder do aparelho administrativo (de um Estado, de um partido, de uma empresa; conjunto dos funcionários, dos burocratas, considerados do ponto de vista do seu poder abusivo, rotineiro13.

Esta é, na verdade, a acepção vulgar da palavra burocracia: designa o que é incómodo, repetitivo, paralisante, negativo para quem quer ou tem que fazer coisas, um acervo de rotinas, formalidades e papéis julgados inúteis, é o peso de encargos desnecessários, é antipatia no acolhimento de interessados, é a incomodidade e a distância do «guichet», é, mesmo, na memória dos mais velhos, a fealdade e o anacronismo da «manga de alpaca».

Mas se atribuirmos um sentido não pejorativo ao termo «aparelho burocrático», como acontece com muitos autores, na esteira de Max Weber, o termo burocratização passará a indicar «degeneração da estrutura e funções dos aparelhos burocráticos», envolvendo o «advento de elementos de não-racionalidade». Este elemento é tanto mais importante quanto existe uma estreita ligação entre o conceito weberiano de burocracia e o papel central que no seu pensamento têm conceitos como racionalidade, racionalização, racionalismo.

Em textos de Marx, Engels, Gramsci e outros Autores marxistas o termo «burocracia», e termos derivados como «burocratismo e burocratização» são utilizados para designar um estilo de funcionamento do «aparelho de Estado» que, podendo estar ligado a um grupo social, se caracteriza por certos efeitos, afinal característicos do sentido vulgar de «burocracia».

Robert Michels já havia estendido a categoria de «burocratismo» aos partidos, como fenómeno inevitável, mesmo quando são partidos de esquerda.

À referência à «burocratização» e ao «burocratismo» por outros marxistas (e que abrangem, com o tema, a discussão do fenómeno em Estados não capitalistas – como é o caso do «Estado de Transição» na URSS e dos textos de Lénine, Rosa Luxemburgo ou Trotsky sobre ele) opõe-se a utilização do conceito, designadamente por sectores neoliberais, para descrever e criticar o facto de o Estado assumir funções que, segundo afirmam, ameaçam a «iniciativa privada». Quem acaba por ser criticado com a crítica da burocracia é o próprio «Estado-Providência», as responsabilidades sociais que assume e o modo como lhes faz face através da criação de um aparelho administrativo. A verdade, no conjunto, é que hoje a acentuação dos males da «burocracia» e a necessidade de «desburocratização» constituem temas caros para os mais diferentes sectores, «desde a arqui-reacção até ao extremo radicalismo».

Este sentido pejorativo da «burocracia» esteve presente igualmente na URSS e noutros países da Europa de Leste, sobretudo nos últimos anos, como um dos aspectos negativos do «modelo» de sociedade adoptado, no primeiro caso depois de 1917 e, nos outros depois da Guerra de 1939-1945.

O sentido vulgar está tão enraizado que acaba por ser determinante da________________________________13 Nova Enciclopédia Larrousse, Lisboa, Círculo de Leitores e Larrousse, Vol. 5, p. 1276. Nesta fonte dá-se ênfase igualmente, porém, ao sentido weberiano: «organização formal, de grande dimensão, muito diferenciada e eficientemente organizada através de regras formais e de departamentos de especialistas altamente treinados, cujas actividades são coordenadas por uma cadeia hierárquica de comando. Este tipo de organização é também caracterizado por uma centralização da autoridade e uma ênfase na disciplina, racionalidade, conhecimento técnico e procedimentos impessoais».

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linguagem política, desde os programas de partidos e governos até à própria linguagem de diplomas legais, além de encontrar larga projecção na própria linguagem científica.

Diferente, porém, é o sentido de burocracia que consta do estudo de Max Weber de 1922, a partir da observação da administração prussiana. É um sentido que se tornou universalmente conhecido na ciência administrativa e entre os sociólogos, sobretudo a partir da publicação em 1947 da tradução inglesa da sua obra.

Grande parte das características e vantagens da burocracia tal como é descrita por Max Weber aparecem, aliás, em contraposição com sistemas anteriores: o titular de um cargo administrativo não é seu proprietário, não o transmite aos seus herdeiros, tem que o abandonar, se for o caso, nas condições legais; a obediência é devida porque a lei obriga e não por razões de prestígio ou carisma; as funções são atribuídas a quem tem qualificação e não por privilégios de família ou outros.

O modelo de burocracia de Max Weber tem, nas palavras do próprio, um carácter superior:

A razão decisiva para o progresso da organização burocrática foi sempre a superioridade puramente técnica sobre qualquer outra forma de organização.

Mas esse modelo não deixa de ser na actualidade objecto de numerosas críticas, entre as quais se destaca a alusão ao predomínio da atenção aos meios em prejuízo dos objectivos, o elevado grau de formalismo, a criação da organização como sistema fechado e concebido como propriedade dos seus membros, o carácter marcadamente centralizador, a estrutura mecanicista e de grande porte, em vez da adopção de soluções organizativas assentes em estruturas flexíveis.

Os próprios elementos de previsibilidade, generalização e uniformização de procedimentos, susceptibilidade de cálculo, inerentes à racionalidade atribuída ao modelo weberiano aparecem como podendo ser prejudiciais perante a necessidade de respostas novas e criativas.

Modelos como o prussiano, aliás, são talvez modelos próximos, ao nível da administração pública, da organização taylorista que Charles Chaplin tão bem caracterizou em «Tempos Modernos».

Seja como for, o pensamento de Max Weber continua a ser uma referência indispensável em matéria de organização administrativa pública. Embora marcadas por tendências e sensibilidades diversas, as suas teses fundamentais são analisadas, para as reter ou para as superar em mais ou menos aspectos, por muitos dos que se debruçam sobre temas da ciência política e da ciência da administração.

A nosso ver Michel Croizier tem parcialmente razão quando afirma:Toda a literatura post-weberiana sobre a burocracia está, com efeito, marcada por uma ambiguidade fundamental. De um lado, a maior parte dos autores pensam que o desenvolvimento das organizações burocráticas corresponde à chegada da racionalidade ao mundo moderno e que a burocracia é deste modo intrinsecamente superior a todas as outras formas possíveis de organização. De outro, muitos autores, e frequentemente os mesmos, consideram as organizações como espécies de Leviathans através das quais se prepara a redução da raça humana à escravatura.

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O outro lado da verdade, a nosso ver, torna necessário verificar que a relação estabelecida entre o modo como esta questão é tratada e as posições ideológicas dos autores se tornou muitas vezes evidente.

O discurso acerca da «burocracia» é, neste contexto, por vezes mais do foro da política e da ideologia do que do campo da técnica e da ciência.

Com efeito, apesar das múltiplas críticas ao pensamento de Max Weber nesta área e de o seu «modelo» ser tido por grande número de Autores como ultrapassado, há importantes aspectos a sublinhar, e que são de reter e de procurar conciliar com inovações próprias de outros modelos.

É de sublinhar, em particular, a afirmação do valor das normas gerais de procedimento, capazes de proteger o cidadão contra a arbitrariedade e de garantir a igualdade de direitos dos utentes e a imparcialidade da Administração, ao menos do ponto de vista formal, bem como de permitir o combate ao arbítrio e até à corrupção.

É certo que se a Administração, sobretudo quando se relaciona com os cidadãos e os particulares, se orientar por normas gerais e abstractas, pode perder algo no plano da flexibilidade. Mas pode haver domínios em que o conhecimento das regras pelos cidadãos, suas organizações e empresas pode ser uma contribuição importante para assegurar a protecção dos seus direitos contra arbitrariedades. É de salientar, aliás, que esta constituía uma das preocupações importantes de Max Weber ao abordar a questão da burocracia.

Naturalmente que outros princípios da burocracia weberiana estão hoje postos em causa. É o caso da hierarquia, entendida como «um sistema firmemente ordenado de mando e subordinação» que perdeu terreno em favor de sistemas flexíveis que frequentemente assumem a forma de estruturas temporárias para realizar certas tarefas. É o caso, igualmente, da tendência para a contratualização da actividade administrativa, em detrimento da aplicação unilateral de normas gerais e abstractas pela Administração, atribuída por alguns Autores a causas como o alargamento da intervenção económica do Estado e «a procura de um novo estilo de administração, mais marcado pela participação dos particulares e por uma maior procura do consenso, flexibilização e particularização das decisões». Esta tendência corresponde, em especial, a uma procura de articulação estreita entre a actividade da Administração Pública e os grupos sociais, em especial dos que são detentores do poder económico.

Seja como for, a teoria da burocracia de Max Weber é uma contribuição decisiva para a teoria clássica da organização: Fremont E. Kast e James E. Rosenzweig consideraram-na mesmo o terceiro pilar dessa teoria ao lado do taylorismo (Escola da Administração Científica) e da obra de Fayol e Gulick (Escola Fisiologista e Anatomista da Organização).

Numa acepção, aliás influenciada pela teoria weberiana, a burocracia «representa uma busca incessante de racionalidade e eficiência; está voltada para a prevenção e correcção de erros e possíveis disfunções; a sua realização concreta pode ser mais ou menos perfeita, em conformidade até com os fins pretendidos».

Este sentido do termo burocracia parece ser muito pouco utilizado na teoria e na ciência da administração. Ainda o é menos na linguagem corrente ou no discurso político.

O termo burocracia é usado, como se disse, também para designar não um fenómeno – as características de uma organização ou do seu funcionamento –

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mas sim uma categoria de homens e mulheres ou uma camada social e eventualmente o poder e/ou a influência social de que dispõem.

Por vezes o termo foi também usado para designar formas de governo nos Estados complexos. Herbert Spencer, aliás, defendeu que as formas de governo se reduzem a duas:1.ª – a burocracia, na qual o poder pertence à administração e aos

funcionários;2.ª – a democracia, na qual os eleitos do povo controlam a administração e

decidem entre as grandes opções políticas.

É neste sentido que o termo burocracia terá sido empregue pela primeira vez, em meados do século XVIII por Vincent de Gournay, «para designar o poder do corpo de funcionários e empregados da administração estatal, incumbido de funções especializadas sob a monarquia absoluta e dependente do soberano.

Em autores com outro tipo de formação o termo burocracia é igualmente utilizado em sentido sociológico; assim, por exemplo, a escola conhecida como adepta da «Teoria das Elites» refere as «cúpulas da burocracia» como uma elite entre outras. É o caso de Mosca, Wright Mills ou Burnham. Esta acepção do termo burocracia tem curso na linguagem vulgar, também ela em sentido pejorativo: «burocratas» são os funcionários da Administração Pública com mentalidade e comportamentos que estão na origem das suas disfunções: lentidão, formalismo, más relações com o público, etc..

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5. Liberdade e poder: as tentativas de limitação de poder

A evolução da História da Humanidade foi-se traduzindo na transformação do Ser Humano de súbdito do poder em cidadão, o que significa que sejam definidas regras gerais que limitam, e em última análise excluem, o arbítrio do poder. Implica igualmente que os que pertencem a uma comunidade na qual o poder se exerce sejam titulares de direitosa fundamentais e de liberdades e garantias pessoais que têm condições mínimas para fazer valer. Para tal, tem que existir um pressuposto: o de que toda a pessoa é cidadão e de que esse facto implica dispor de uma esfera pessoal de direitos que tem que ser respeitada (ou concretizada) pelos órgãos de poder.

No período e no pensamento liberal, de resto, os direitos de cidadania são directamente derivados do direito de propriedade, incluindo em aspectos como o direito de voto, que é negado aos não proprietários. E é através de um lento caminho que se vai progredindo para a proclamação jurídica da justiça e da igualdade e, ulteriormente, para a problematização da sua efectiva realização.

Este caminho, porém, é contraditório e com constantes avanços e recuos. O próprio facto de se reconhecer a necessidade de limitar o poder, de assegurar o seu controlo, de prevenir abusos e de respeitar direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, tem como pressuposto uma perspectiva pessimista, que não considera que o poder (ou certo tipo de poder) é bom por natureza, quer se trate de encontrar o fundamento para essa alegada bondade na sua legitimação divina, carismática, hereditária ou aristocrática ou em qualquer «perfeição» alegadamente atingida com qualquer pretenso fim da história.

5.1. Sobre os direitos fundamentaisEntre as tentativas de limitar o poder conta-se com um papel determinante a definição dos direitos do homem e dos direitos fundamentais: os primeiros são concebidos como inerentes à natureza humana e como devendo ter um carácter inviolável, intemporal e universal; os segundos seriam os direitos vigentes como tal numa determinada ordem jurídica concreta.

Na evolução histórica assiste-se,1.º a uma passagem da «liberdade dos antigos» à «liberdade dos modernos»,

para usar a célebre expressão de Benjamin Constant: para os antigos, liberdade é participação na vida da cidade, para os modernos é, antes de mais, realização da vida pessoal, para o que teria contribuído o Cristianismo;

2.º a uma passagem de privilégios, imunidades e regalias de corporações, grupos, ordens e categorias na Idade Moderna para Direitos do Homem e Cidadão, em relação directa com o Estado, sem excluir relações e direitos de grupos e comunidades;

3.º ao enriquecimento dos direitos fundamentais com direitos económicos, sociais e culturais, e mais tarde com o direito ao ambiente, gerando a passagem (ou projectos de passagem) do Estado liberal ao Estado social e socialista;

4.º à passagem, sobretudo a partir da aprovação da Declaração Universal dos Direitos do Homem em 7 de Dezembro de 1948, da questão das liberdades e dos direitos fundamentais essencialmente do campo nacional e estadual para o campo internacional.

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Os direitos fundamentais podem ser concebidos como direitos de liberdade e de defesa dos cidadãos face ao Estado e ao poder público, no sentido de limitarem e condicionarem a acção do poder político. Foi essencialmente assim que foram concebidos durante o período liberal. O direito à vida é o mesmo com que deparamos quando falamos do direito ao ambiente, embora este tenha surgido como direito fundamental séculos mais tarde.

Em geral, podemos dizer que os direitos fundamentais colocam hoje permanentemente o problema de nuns casos obrigarem o poder político a agir, noutros a abster-se de agir; e este é um dos pontos sobre os quais se levantaram algumas das grandes controvérsias políticas da nossa época.

Na verdade, frequentemente os direitos fundamentais apontam para uma abstenção do poder político face a uma esfera de liberdade do indivíduo que não pode deixar de ser respeitada. No entanto, os direitos fundamentais também podem ser concebidos como direitos a prestações do Estado, designadamente em planos como o ensino, a saúde, a habitação, a cultura, o ambiente, etc.. Estes direitos estão consagrados na Constituição, mas a sua tutela e garantia efectiva é restrita. No sentido da possibilidade de recurso a tribunal para manter o «nível de realização que os direitos fundamentais tenham adquirido, se fala também de cláusulas de proibição de evolução reaccionária ou de retrocesso social (ex: consagradas legalmente as prestações de assistência social, o legislador não pode eliminá-las posteriormente «retornando sobre os seus passos»; reconhecido, através da lei, o subsídio de desemprego como dimensão do direito ao trabalho, não pode o legislador revogar esse direito)».

Por vezes é a própria Constituição que estabelece que incumbe ao Estado apelar para as iniciativas de organizações de cidadãos e apoiá-las devidamente. É o caso, a título de exemplo, do artigo 65.º da Constituição da República Portuguesa, que dispõe que «para assegurar o direito à habitação, incumbe ao Estado• «(...) incentivar e apoiar as iniciativas das comunidades locais e das

populações, tendentes a resolver os respectivos problemas habitacionais e a fomentar a criação de cooperativas de habitação económica e a auto-construção» (alínea d); ou

• estimular a construção privada com subordinação ao interesse geral e o acesso a habitação própria ou arrendada (alínea c)).

Há outros casos em que a contribuição do Estado para realizar os direitos fundamentais pode ser essencialmente de regulação e fiscalização de actividades privadas.

Parece poder afirmar-se, portanto, que não estamos perante uma visão segundo a qual o Estado teria que assumir proporções desmedidas para realizar os direitos económicos, sociais e culturais. Antes se pode dizer que a democracia participativa se projecta na própria realização dos direitos fundamentais desta natureza, sem que possa, no entanto, legitimar a desresponsabilização do Estado com o pretexto de que com esta se está a estimular o desenvolvimento da «sociedade civil» e a sua responsabilização.

Estas questões levantam, porém, outra ordem de problemas: saber se um Estado eventualmente com uma dimensão menor, mas que tem ligadas a si um vasto número de organizações, que apoia e subsidia discricionariamente (ou não), eventualmente com o pretexto de que está a realizar a «democracia participativa», não pesa mais na vida e quotidiano dos cidadãos que um Estado que assume directamente as suas funções.

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No conjunto, os direitos fundamentais integram o conceito de cidadania: esta configura-se como um status que, mesmo em situações de desigualdade social e de classe, tende a diminuir essa desigualdade e está em conflito com ela.

O Tratado da União Europeia consagrou uma «cidadania europeia» que muitos afirmaram como um bom princípio, mas insuficiente. Mas trata-se de um problema cujo sentido é mais geral.

5.2. A teoria da separação dos poderesÉ inquestionável que a teoria da separação dos poderes – «um dos dogmas políticos mais famosos que constitui o fundamento do constitucionalismo moderno» – tem sido considerada uma base essencial da teoria de governo: entre outros critérios, é a partir da identificação dos vários órgãos, da definição dos seus poderes e da sua maior ou menor «separação» que se arquitecta a forma de governo, embora o sistema possa alterar – e altere – essa arquitectura.

A separação de poderes é um «tema recorrente do pensamento ocidental, desde a Antiguidade clássica». Se se tiver em conta uma preocupação essencial, a de que o poder não deve ser absoluto, que deve ser repartido e controlado e a ideia de um certo equilíbrio de poderes no plano político, que reflicta um certo compromisso a nível social, pode admitir-se esta afirmação. Está associado a ela, com frequência, o objectivo de proceder a uma certa repartição política de poderes , mas também o objectivo de garantir uma certa repartição social desses mesmos poderes. Esta ideia aparece com nitidez em textos como o de Montesquieu no século XVIII; mas já aparecia na «Política» de Aristóteles, que queria constituir a república como meio termo entre a oligarquia (governo dos ricos) e democracia (governo dos pobres). Terão sido também preocupações subjacentes às magistraturas de Roma e ao Estado estamental. No fundo, como afirma Norberto Bobbio, a teoria da separação de poderes pode ser considerada como a interpretação moderna da teoria clássica do governo misto. Com efeito, há uma unidade de inspiração entre uma e outra, já que ambas derivam da convicção de que é preciso prevenir o abuso de poder, de que o poder deve ser distribuído de modo que o poder supremo resulte de um sábio jogo de equilíbrio de diversos poderes parciais, em vez de ser o produto da sua concentração nas mãos de um só ou em poucas mãos.

A separação de poderes acaba por ser dignificada no pensamento liberal com a sua transformação numa condição, a par dos direitos fundamentais, para que haja uma verdadeira Constituição. Com efeito, nos termos da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1791: «Qualquer sociedade em que não esteja assegurada a garantia dos direitos, nem estabelecida a separação dos poderes, não tem constituição» (Artigo 16.º).

Note-se que o poder de julgar é em Montesquieu um poder especial: o Juiz para ele «é um homem cuja função consiste exclusivamente em ler e dizer a lei». Com efeito, Montesquieu afirma que o poder de julgar, «terrível entre os homens», deve ser «invisível e nulo».

Mas foi na versão dos «três poderes» que a teoria da separação foi conhecida e mil vezes repetida – e por vezes deturpada – sobretudo com recurso, nem sempre atento, à obra do Castelão de la Brède, o senhor de Montesquieu.

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A teoria clássica da separação de poderes atravessou por vezes um «processo de dogmatização» que a converteu numa «proposição acrítica da fé», numa perspectiva mítica ou simbólica que constituiria um «vestigium trinitatis», «uma secularização do mistério da Trindade».

O Parlamento, na teoria clássica da separação de poderes, é o único detentor do poder legislativo, mas deve perder quaisquer poderes judiciais. Mostrando que a «separação de poderes» é relativa, os nobres, no pensamento de Montesquieu devem ter o direito de ser julgados pelos seus pares, através da Câmara Alta. Este é um dos aspectos que já levou a afirmar que «não se tratava tanto de separação de poderes, mas de combinação, de fusão, e de ligação dos poderes»14. Por outro lado, os deputados devem ser escolhidos pelos eleitores, mas uma vez escolhidos devem decidir segundo o seu saber e consciência. Está excluído o mandato imperativo (transmissão da vontade dos eleitores: o povo, para estes autores, tem capacidade para escolher os representantes, mas não para decidir dos assuntos públicos. Montesquieu reconhece que se os representantes recebessem uma instrução particular para cada assunto, como se praticava nas Dietas da Alemanha, «a palavra dos deputados seria mais a expressão da voz da nação»; mas logo combate esta ideia com vários argumentos, designadamente de que isso conduziria a infinitas demoras.

Por outro lado, é decisivo, no quadro da teoria da separação dos poderes, o facto de a legitimidade do «executivo» não depender da aprovação do Parlamento: o Governo tem uma legitimidade própria, está ligado ao rei. Montesquieu há-de mesmo afirmar que o poder executivo deve estar entregue a um monarca, porque esta parte do governo, que necessita frequentemente de acção rápida, é melhor administrado por um do que por vários. Afirma ainda, mais radicalmente, parecendo criticar o que serão as formas de governo parlamentares, que se não houvesse o monarca e o poder executivo fosse confiado a um certo número de pessoas tirado do corpo legislativo, não haveria mais liberdade, porque os dois poderes estariam unidos, podendo as mesmas pessoas por vezes, e mesmo sempre, participar num e noutro.

Daqui resulta uma consequência importante e nem sempre devidamente sublinhada: a monarquia limitada, tal como a concebe Montesquieu, ao prever que os ministros estão subordinados ao rei e que não existe responsabilidade política perante o Parlamento, não aponta para um regime parlamentar mas para um modelo de independência de poderes: é sobretudo com Benjamin Constant que se criam condições a nível teórico para o nascimento do regime parlamentar.

A teoria da separação de poderes, por outro lado, está indiscutivelmente marcada na sua génese pelas opções aristocráticas e pela monarquia. Os poderes reais devem ser moderados, mas são poderes importantes, bem mais do que nas monarquias parlamentares da actualidade.

De qualquer modo, Loewenstein tem razão quando afirma que a separação de poderes «não é senão a forma clássica de expressar a necessidade de distribuir e controlar respectivamente o exercício do poder político». Este facto leva-o a afirmar que é errónea a designação de separação de poderes estatais, porque esta é na realidade a distribuição de determinadas funções estatais a diferentes órgãos do Estado.

________________________________14 Montesquieu, a Política e a História, p. 132, sublinhados no original. Neste sentido, é também de referir o direito de veto do rei e o controlo do «executivo» pelo legislativo, quer da aplicação das leis, quer através da prestação de contas dos ministros perante o parlamento [(sem envolver responsabilidade ministerial), Ibidem, pp. 130 e segs].

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Convém, entretanto, sublinhar que a defesa da «separação de poderes» não implica a exclusão de uma colaboração entre eles. Esta ideia é atribuída com frequência, aliás erroneamente, a Montesquieu. Com efeito, a «faculté de statuer», definida como o direito de ordenar por si mesmo ou de corrigir o que foi ordenado por um outro e a «faculté de empêcher» (o direito de anular uma resolução tomada por qualquer outro) implicam que o «poder legislativo e o poder executivo se encontravam ligados por uma comunicação permanente e uma influência recíproca, e que eram mesmo obrigados a actuar concertadamente» – o que é válido também para as duas câmaras. Daí que a «separação de poderes» seja afinal em Montesquieu, em grande medida, um conjunto de combinações, fusões e enlaces entre os poderes.

O «legislativo» tem sido afirmado como superior, porque se reivindica de uma legitimidade democrática directa. O poder «executivo» passou a ser, nas formas de governo parlamentares e mistas, o resultado de uma relação fiduciária com o parlamento e responde perante esse parlamento. Mas, de facto, foram muitas as situações em que se verificou uma intensa articulação, e mesmo quase a integração, do executivo e da maioria existente no poder legislativo.

Onde o rei foi substituído à cabeça do Estado pelo Presidente da República directamente eleito criou-se um título de legitimidade eleitoral paralela e nem sempre convergente com o parlamento eleito e o governo que emergiu dele e do(s) partido(s) maioritários. Em algumas situações por detrás do «executivo» e «legislativo» surgiu o partido que quase os unificou e levou a disciplina partidária a originar um verdadeiro «mandato imperativo de partido», sem existência legal mas com real consagração prática. Esta integração nem sempre é clara, mas por vezes, como apontam alguns autores, esta é a melhor forma de a garantir; além disso, estende-se em alguns casos ao próprio aparelho judicial. Neste quadro, a suposta oposição entre o governo e o parlamento é substituída pelo dualismo partido(s) da maioria-partidos da oposição, a que Giuseppe De Vergottini chama «um novo dualismo funcional»: a máxima garantia que consistia no controlo interpoderes legislativo e executivo transformou-se no controlo exercido pela minoria da oposição em relação à maioria.

Este facto leva a definir um Estatuto da Oposição, de que consta um conjunto de direitos que os Governos, ou mesmo os executivos a outros níveis, não podem deixar de respeitar. Assim, por exemplo, neste âmbito está consagrado:• o direito à informação regular e directa pelo governo e pelos outros órgãos

executivos das regiões autónomas e das autarquias locais sobre o andamento dos principais assuntos de interesse público relacionados com a sua actividade.

• o direito de consulta prévia sobre um conjunto de matérias, tais como, no caso dos partidos da oposição representados na Assembleia da República, a marcação da data das eleições para as autarquias locais, a orientação geral da política externa, a orientação geral das políticas de defesa nacional e de segurança interna, as propostas de lei das grandes opções dos planos nacionais e do Orçamento de Estado.

• o direito de participação , que se traduz no direito de os partidos de oposição se pronunciarem e intervirem pelos meios constitucionais e legais sobre quaisquer matérias de interesse público relevante, bem como o direito de presença e participação em todos os actos e actividades em que se justifique e o direito de se pronunciarem no decurso dos trabalhos preparatórios sobre iniciativas legislativas do Governo relativamente a eleições e associações e partidos políticos.

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• a garantia de liberdade e independência dos meios de comunicação social e o direito de os partidos de oposição intervirem para questionar o Governo sobre a sua observância.

O Governo e os órgãos executivos das regiões autónomas e das autarquias locais são obrigados a elaborar até ao fim de Março do ano subsequente aquele a que se refiram relatórios de avaliação do grau de observância do respeito pelos direitos e garantias consagrados na Constituição, os quais devem ser enviados aos titulares do direito de oposição a fim de que sobre eles se pronunciem. Os relatórios podem ser objecto de discussão pública na respectiva assembleia.

Apesar dos fenómenos que marcaram a evolução das formas e sistemas de governo, a teoria da separação de poderes permanece como uma importante realidade na história das ideias, e também como uma referência com a qual são confrontadas as diferentes formas e sistemas de governo. Impõe-se verificar em cada caso concreto qual é a medida em que se mantém o princípio da separação de poderes tal como foi originariamente preconizada.

Entretanto, é corrente a afirmação de que hoje a separação de poderes é, com frequência, meramente tendencial. Já são raros os casos em que se verifica o monopólio total de cada tipo de funções por um órgão separado. O fundamental, em todo este processo, é ainda encontrar as formas de limitar e controlar o exercício do poder numa situação que é hoje diferente mas em que este problema continua a colocar-se.

Nesta análise, tem interesse o conceito de divisão de poderes, que designa o facto de as várias funções do Estado estarem cometidas a diversos órgãos de soberania, sem que tal implique o exclusivo do exercício de cada «função» por cada órgão.

Foi conferida especial importância à separação vertical de poderes, isto é, entre o Estado-nação e os poderes existentes noutras parcelas territoriais, como as autarquias locais, as regiões político-administrativas, os Estados federados, etc..

Foram especialmente referidas experiências como o «orçamento participativo» e outras.

Por outro lado, gerou-se a tendência para falar num «quarto poder», para aludir ao papel da comunicação social. Muitas vezes, as acções políticas são dirigidas essencialmente para ela. É frequente algumas funções parlamentares, como a fiscalização do poder e até a de tribuna de debate político serem exercidas pela comunicação social. Mas esse facto não impede que sejam apontados outros factores que impedem este «quarto poder» de exercer as suas funções, tais como a ligação profunda que muitas vezes se verifica entre a comunicação social e outros poderes, tal como o poder económico ou o poder político. De qualquer modo, a comunicação social está longe, em geral, de ser mais do que informação, se compreendermos por esta publicidade, persuasão, propaganda, sem participação do destinatário, e se entendermos por comunicação a possibilidade de diálogo e influências recíprocas entre «destinador e destinatário». Temos, pelo contrário, um enorme poder acerca do qual muitos consideram em aberto o problema colocado por Montesquieu e pelo pensamento liberal: é preciso que o poder trave o poder. O problema que se coloca é se este não é um poder que se sobrepõe a outros poderes e sem que em relação a ele se coloque o problema da legitimação democrática.

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6. Espaços de exercício do poderO poder político e administrativo, seja qual for a sua natureza, exercia-se tradicionalmente num determinado espaço e em relação às pessoas que residiam nesse espaço ou estavam ligadas a ele por laços de qualquer natureza, reconhecidos por lei. Esta situação foi evoluindo, sobretudo em situações em que se verificaram fenómenos de integração económica ou política e igualmente em face de tendências para a globalização de determinados poderes.

Os espaços de exercício de poder têm diferente natureza, tal como são diferentes os aglomerados humanos que vivem nesses espaços e sobre os quais se exerce o poder. Este facto é especialmente importante quanto se sabe que a ciência política deixou de poder ser o estudo da política no interior das nações ou dos Estados e o estudo das relações políticas internacionais para ter que se desenvolver aos mais diferentes níveis e de se debruçar sobre a interpenetração de todos, desde o nível local ao central e internacional.

A natureza de diversos grupos sociais sobre que se exerce o poder foi tomada frequentemente como factor central de legitimação. A existência de uma comunidade, como a família, a nação, a região, o município, significava a necessidade de um poder de determinada natureza e uma acentuada partilha de valores e justificava a partilha de uma perspectiva dominante acerca de como devia ser designado quem exerce o poder.

Marie-Françoise Durand, Jacques Lévy e Denis Retaillé referem que o mundo não é uma sociedade; talvez esteja em vias de se tornar uma.

Os conceitos de sociedade, comunidade, povo, nação, população e território continuam a ser relevantes. Muitas vezes, porém, o próprio poder político desempenha um papel essencial no aparecimento destas realidades que depois justificam o exercício dos poderes que são invocados. Alguns destes termos são frequentemente utilizados por quem exerce o poder e, por isso, podem tornar-se conotados com certos regimes e deixar de ser utilizados, ou ser menos utilizados durante certos períodos, designadamente a seguir à derrota de quem mais os utilizava: pense-se, por exemplo, no termo volk (povo) , e em como passou a ser de utilização pouco afortunada após a queda do regime de Hitler. Pense-se também no termo «nação», que após a queda do regime de 1928-1974 e da ampla utilização que nesse regime tinha sido feita de tal termo. Este facto teve, aliás, alguma projecção no próprio texto constitucional, que preferiu, por exemplo, falar em «cidadania» em vez de «nacionalidade» (artigo 4.º) e optou por ser, em geral, bastante parcimonioso no uso do conceito de nação. J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, por exemplo, chamam a atenção para a substituição do termo «nacionalidade» (que era a designação tradicional nas constituições anteriores) pelo de «cidadania» e afirmam que a Constituição «parece ter evitado cuidadosamente utilizar o termo Nação, ao qual o regime do Estado Novo conferiu um sentimento antidemocrático, como entidade diferente e superior ao povo e ao conjunto dos cidadãos (...)».

O facto mais característico na nossa época, entretanto, é a frequente alusão a uma época «pós nacional» que estaríamos a viver.

Esta, porém, é uma das matérias em que as ciências sociais e a ciência política em especial estão subordinadas frequentemente a projectos de intervenção política. A análise de que estamos numa época pós nacional, por exemplo, é especialmente partilhada por quem entende que a integração comunitária se teria que fazer não só à custa da soberania, tal como era classicamente entendida, mas também à custa

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do próprio princípio das nacionalidades e da autodeterminação, do «Estado-nação» e da própria relevância política da ideia de nação.

Trata-se sempre de definir um espaço de exercício de poder, de dominação de homens sobre homens, mas a sua dimensão e características são diferentes: a polis grega, a respublica romana, a comunidade do Infante D. Pedro ou a commonwealth dos clássicos ingleses, têm em comum serem aglomerados humanos mas correspondem a diferentes realidades políticas, que vão da cidade aos grandes impérios.

Os Estados actuais continuam a ser a forma política dominante, mas já não têm um carácter quase exclusivo. Há quem afirme que a União Europeia vai no futuro substituir o Estado, tal como o Estado no passado substituiu a cidade. Mas a tendência provável será no sentido de um quadro de grande complexidade, com coexistência de formas diversas, embora com o estatuto alterado, e não para a substituição de umas fórmulas por outras.

A «identidade» e a criação de «laços de pertença» entre os cidadãos e o espaço de exercício do poder é um objectivo central do poder político.

A ideia de que a afirmação da identidade é geralmente também um projecto de poder é verdadeira para o Estado e para a(s) «unidade(s) social(is)» subjacente(s) ao Estado. Mas também o é, por exemplo, para a União Europeia.

A distinção entre comunidade e sociedade foi particularmente debatida em sociologia e talvez a sua utilização para este efeito seja difícil. De acordo com a proposta de Friedrich Tönnies, na sua obra Gemeinschaft und Gesellschaft (1887), a comunidade envolveria designadamente laços de sangue e de lugar (família, aldeia), e assentaria num sentimento afectivo e de pertença conducente à participação espontânea, por imperativos profundos e não racionais, numa «vontade orgânica». A sociedade resultaria, pelo contrário, de conveniências, da racionalidade conscientemente assumida, de uma vontade deliberada e reflectida dos seus membros, sem que existam laços reais entre eles.

Também para Max Weber, que procura sistematizar e também relativizar estes conceitos, a comunidade implicava o sentimento de pertença a um todo enquanto «a acção societária, por sua vez, é orientada no sentido de um ajustamento de interesses racionalmente motivado».

A «comunidade» definida à maneira de Tönnies já só abrange de forma mais segura, e de modo que se tem atenuado, a família, as aldeias ou pequenas comunidades rurais e determinados aglomerados urbanos de pequena dimensão, já que em muitos dos outros aglomerados urbanos os «laços de pertença» e participação espontânea estarão bastante diluídos e avultam traços que relevam mais da caracterização das realidades societárias.

A diluição destes laços é verdadeira igualmente para muitos dos aglomerados urbanos em que assentam os próprios órgãos autárquicos, sobretudo nas áreas urbanas e suburbanas, e em particular nas áreas metropolitanas, em que não há por vezes total correspondência entre a autarquia e um substracto humano bem identificado que suscite ideias fortes de pertença e vontade de participação. De resto, Tönnies já distinguia a cidade de negócios, a cidade capital, marcada pelo Estado-nação e a cidade cosmopolita, marcada pela opinião pública, como estando integradas no fenómeno societário e não no fenómeno comunitário. Esta distinção entre comunidade e sociedade tem que ser flexibilizada. Com efeito, há um conjunto de fenómenos políticos que podem atenuar fenómenos de desenraizamento, de alheamento, de ausência de laços de pertença e de uma unidade fraca do aglomerado populacional sobre o qual se exerce o poder. Estão entre esses factores

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o facto de o centro de poder assentar num determinado substracto populacional e este exercer a democracia representativa, através da realização de eleições competitivas baseadas no sufrágio universal, em que decorrem campanhas eleitorais com promessas que exaltam a identidade da realidade social que vai «escolher pelo voto» e são produzidas mensagens que apelam à participação e assentam no estímulo aos sentimentos de pertença dos cidadãos ao aglomerado humano em causa. Outro factor é a existência de interesses e de grupos de interesse movimentando-se em torno desse centro do poder e disputando-o, também com base na exaltação da sua identidade e apresentando como comuns interesses particulares. É assim que a existência de um Estado, que aparece em muitas destas concepções como um dos exemplos de uma realidade que tem subjacente uma sociedade, pode favorecer o aparecimento ou consolidação do fenómeno nacional, e por isso dar origem a uma realidade próxima da Comunidade. Podem igualmente assinalar-se fenómenos como o aparecimento, em momentos de crise, da contestação da existência de comunidades e da sua unidade, que em momentos anteriores pareciam estar perfeitamente consolidadas.

Recorde-se que, como Max Weber assinala, Tönnies recorre a «tipos puros», de carácter abstracto; mas a verdade é que a realidade nunca é tão pura como os «tipos puros» que são forjados com vista à sua abordagem.

6.1. A nação como base do Estado e do poder

A nação e os conceitos dela derivados desempenham ainda hoje um lugar central na ciência política, embora por vezes, em alguns autores, como elemento de referência a uma época supostamente ultrapassada, ou em vias de o ser. De qualquer modo, é pacífico o grande papel histórico desempenhado por esta realidade e por ideias que a têm subjacente, como o princípio da nacionalidade, segundo o qual todas as nações teriam o direito de se constituírem em Estados, ou pelo menos o direito de autodeterminação, no sentido de optarem pelos seus destinos.

Em relação ao conceito de Franco Goio afirmou que «é difícil de tratar, se não é intratável».

Mas, apesar de todos os esforços, não é possível em muitos casos distinguir com clareza qual a natureza e a intensidade das várias «identidades» que se reivindicam como base para o exercício do poder e qual deve ser a natureza deste em função dessa identidade.

A preocupação e acção do poder em favor da identidade do espaço social em que se exerce tende a ser de uma intensidade inversamente proporcional à força dessa identidade. Assim, quanto menor é a identidade existente, maior tende a ser a acção do poder no sentido de a criar. Por outro lado, importa obviamente analisar «contra quem» é afirmada a identidade, quem são as entidades cujo poder é disputado através das acções de afirmação da identidade.

É interessante o facto de o alargamento da investigação coincidir com a frequência das vozes que referem a existência de uma «crise do Estado-nação», ou mesmo de uma crise da própria ideia de nação. Não deixa de haver, entretanto, vozes que afirmam que o Estado-nação, sobretudo no caso de ser heterogéneo, não só tem futuro como deve tê-lo: é o caso de Ralf Dahrendorf, para quem o Estado nacional heterogéneo é uma das grandes conquistas da civilização. Até hoje pelo menos, afirma, não se encontrou

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nenhum outro quadro de conjunto no qual os direitos de todos os cidadãos possam ser estatuídos, isto é, formulados e garantidos. No entanto, como reconhece, o Estado-nação é condição necessária, mas não suficiente, do direito e da liberdade. No entanto, distingue, na linha de Michael Ignatieff, as ethnic nations das civic nations, isto é, as nações que assentam sobre uma alegada homogeneidade étnica e as que assentam sobre a igualdade de direitos dos diversos grupos, para concluir que só a civic nation é uma conquista da civilização: o Estado nacional pretensamente homogéneo estaria constantemente exposto à tentação de agredir as minorias e os vizinhos; o Estado nacional heterogéneo está constantemente colocado perante o desafio da igualdade de direitos para os «desiguais». Importa, no entanto, ter em conta que a homogeneidade étnica de muitos Estados é uma ficção criada pelo poder e não uma lealidade existente; e que, por outro lado, não é contornável em todos os casos o facto de o regime político e os seus valores serem essenciais para determinar a atitude do Estado:• pode existir uma relativa heterogeneidade étnica no Estado e este tentar

enfrentá-la com perseguições e não com a organização da convivência cívica; e

• há Estados com uma relativa homogeneidade étnica que não a transformaram num factor de agressividade em relação a vizinhos.

As dificuldades, porém, não deixam de existir. Manifestam-se desde logo no facto de a «luta em torno das identidades» resvalar frequentemente para o debate e a intervenção política: no Reino Unido, por exemplo, a ideia de identidade nacional foi introduzida pela Nova Direita como parte do «programa de regeneração nacional», numa situação de declínio industrial, desaparecimento do império, crise da coesão social, afirmação de novas lideranças na Europa.

Na própria Europa ocidental as nações são, muitas vezes, uma realidade criada a partir do próprio poder político na base de uma forte diversidade e de unidades sociais intermédias entre comunidades de base e o Estado, a que alguns não hesitam em chamar nações quando existem identidades culturais marcadas15.

Há quem defenda, por outro lado, que «o Estado-nação tem vindo a ser corroído e a sofrer uma erosão, de cima e de baixo, pela supranacionalidade e pela regionalização». Pelo contrário, o fim do século XX se caracteriza, a nível internacional e também na CE, por uma multiplicação dos particularismos e pela complexificação das lealdades: a nova ordem internacional parece tender a multiplicar e a tornar cada vez mais complexos os particularismos.

A questão consistirá, pois, em assumir as lealdades múltiplas como base de uma nova ordem ao nível de cada país, ao nível comunitário e ao nível internacional, sem pretender substituir absolutamente cada uma das existentes por outra, proclamada como sendo central e até a única, seja a nação, como aconteceu no passado, seja o «governo mundial», seja o governo comunitário.

Não parece, com efeito, que esteja á vista, um horizonte de sucessão do campo mundial ou continental às nações enquanto base central de construção de relações de dominação política. Estamos, pelo contrário, em parte do mundo, numa via de regresso a nacionalismos em vez da sua morte anuncia-

________________________________15 Ver, por exemplo, Robert Lafont, La Nation, l'État, les Régions, Paris, Berg International Editeurs, 1993, sobretudo pp. 57 e segs. É corrente falar, por exemplo, mesmo em relação a Estados unitários, em fenómenos como o «nacionalismo escocês» e mesmo no «lesser extent Welsh nationalism», que poderia colocar problemas de identidade nacional para a base social do Estado existente (Bhikhu Parekh, «Discourses on National Identity», p. 493).

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da. Em qualquer caso, verificam-se fenómenos de reactualização dos patriotismos, embora não sejam unânimes as opiniões acerca dos seus caminhos e processos.

A reactualização de patriotismos em torno do fenómeno nacional é obviamente diferente de país para país, mas não é necessariamente incompatível com o desenvolvimento de um «patriotismo constitucional» (verfassungspatriotismus) no sentido preciso que Jürgen Habermas dá a esta expressão: desenvolvimento de uma cultura política comum entre povos nos quais se enraízam os mesmos princípios constitucionais, sem que existam as mesmas origens étnicas, linguísticas e culturais: será a situação dos EUA, da Suíça; poderia vir a ser, noutros termos e com outro figurino, a situação europeia futura. Se assim for, «os mesmos princípios jurídicos deverão ser interpretados a partir de diferentes tradições nacionais, de diferentes histórias nacionais». Este patriotismo constitucional de que fala Habermas é uma realidade diferente do patriotismo propriamente dito: desenvolver-se-ia essencialmente ao nível da cultura política (e jurídica). No fim de contas, teremos aqui uma tendência para a desvinculação entre o espaço-nação e o poder político; mas este fenómeno de desvinculação relativa entre nação e poder político tanto se pode encontrar ao nível do Estado federal (ou do Estado multinacional que Karl Renner preconizou no início do século, e cuja teorização foi já retomada a propósito do futuro da União Europeia), como pode verificar-se noutro quadro, de maior ou menor originalidade, de partilha de poderes entre Estados, uns mais correspondentes a nações do que outros.

Por vezes assiste-se à aproximação dos conceitos de povo e de nação, embora o conteúdo e tratamento de um e outro conceito não tenham que ser necessariamente os mesmos.

O fenómeno federal, e por vezes mesmo o fenómeno da regionalização em sentido político, como acontece em Espanha e no Reino Unido, também pode assentar na ideia de que há povos no seio de um Estado que devem ser dotados de instituições autónomas próprias.

O conceito de povo, porém, pode também acarretar dificuldades, se não nos circunscrevermos a uma óptica estritamente jurídico-formal. Esta última também pode não ser simples, mas resolve os problemas com relativa facilidade, ao menos numa interpretação normativista: o povo é constituído pelos que como tal são considerados pelo direito, designadamente pelo direito constitucional, por serem titulares da nacionalidade ou da cidadania.

Nos diversos ramos das ciências humanas, de qualquer modo, nem sempre é idêntico e inequívoco o tratamento do conceito de povo.

Refira-se, antes de mais, o conceito clássico de povo («uma multitudo que vive em communio de interesses e fins, com juris consensus»), e o conceito funcionalista («um grupo de pessoas que compartilham hábitos complementares de comunicação»). Para a teorização marxista, pelo seu lado, deveria haver uma distinção entre o sentido vulgar de povo, que se identifica com a população de um Estado, de um país; e o sentido afirmado como científico: povo é a comunidade de pessoas, que se modifica historicamente, formada pela parte da população, camadas e classes, que pela sua situação objectiva estão em condições de participar na resolução dos problemas concernentes ao desenvolvimento revolucionário de um dado país num dado período.

No fundamental, a nação é o povo visto na sua permanência e na sua continuidade histórica. O povo, portanto, refere-se a uma «unidade social»

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culturalmente diferenciada, que controla ou aspira a controlar o poder de um Estado, que dispõe de um sistema de comunicação, de um feixe de direitos e deveres e de um sistema simbólico comum, e que é considerado tal como existe em cada momento; a nação corresponde, em boa medida, à perspectivação temporal e continuada, historificada, dessa unidade social.

6.2. Nação: sentido objectivo e sentido subjectivo

É frequente encontrarmos a distinção entre um conceito objectivo e um conceito subjectivo de nação.

A concepção objectiva procura essencialmente identificar a nação a partir de distinções no seio da espécie humana de natureza racial ou étnica. Temos aqui não uma visão de natureza racionalista, que assente na vontade dos membros de uma nação, mas sim uma concepção orgânica e cultural, que concebe a nação como sendo obra divina.

No trabalho do Conde J. A. Gobineau, intitulado Ensaio sobre a Desigualdade das Raças Humanas (1853-1855), aparece uma fundamentação «objectiva» nesta linha que levou a que Gobineau viesse a ser apresentado por vezes como «pai das teorias racistas». Mas houve casos anteriores, tais como textos sobre os judeus de Appio (a sua impureza biológica seria causa da propagação da lepra) e Tácito (as suas supostas taras, físicas e morais). Mais tarde, encontramos em autores adeptos do «nacionalismo totalitário», como Charles Maurras, um traço essencial, associado a correntes deste tipo de nacionalismo, a xenofobia: os próprios ingleses são bárbaros e os alemães meros aspirantes à civilização.

Pelo contrário, a concepção subjectiva de nação baseia-se na ideia de que a distinção entre as nações não deve assentar numa suposta diferença de «raças» puras, mas sim numa base cultural e numa certa sedimentação histórica. É uma concepção de tipo essencialmente voluntarista, que concebe a nação como um produto da história, assente numa opção consciente dos indivíduos e na adesão a princípios de convivência colectiva aceites por todos.

Um dos defensores desta tese foi Ernest Renan (1882), apesar de ter defendido posições racistas e anti-semitas (Renan considerava os judeus inferiores face à raça «indo-europeia»). Mas orienta o seu pensamento no sentido de um «utilitarismo pragmático» que está estreitamente ligado às suas posições políticas. É a partir destas que defende a ideia de «nação electiva» e de nação como plebiscito de todos os dias, designadamente numa conferência na Sorbonne que ficou célebre. Aí afirma que a consideração etnográfica não significou nada na constituição das nações modernas e que não há raça pura e fazer assentar a política na análise etnográfica é fazê-la construir sobre uma quimera.

A nação aparece, assim, para esta concepção, como um «plebiscito de todos os dias», é vista como um resultado directo da vontade dos povos.

Existem também concepções mistas, que recorrem simultaneamente a elementos de uma e outra natureza.

A existência de uma nação não significa, porém, que a única forma política a ela correspondente seja o Estado. Surge, assim, no caso de Espanha, a ideia de que existe uma nação e de que no seio desta coexistem «nacionalidades».

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Não é inteiramente claro o que distingue uma e outra do ponto de vista cultural e social (a não ser o tipo de poder que se exerce em cada caso).

Hoje, segundo as palavras de Ernest Gellner, os candidatos especialmente promissores para o efeito da definição de nação são a vontade e a cultura.

As respostas, também nesta matéria são diversas. Para Gellner, a cultura erudita ( high culture ) é essencial e é o «segredo do nacionalismo», embora esta tenha que ser alargada das elites para as populações inteiras, designadamente através da educação.

O processo cultural e educacional de afirmação da ideia de nação, em todo o caso, é frequentemente inseparável da detenção do poder, quer no plano do monopólio da educação, quer da violência, quer da fiscalidade.

O poder, entretanto, tanto pode forjar uma identidade nacional, como pode vir a esbatê-la, procurando a integração maior ou menor das unidades sociais em que era exercido o poder numa entidade mais vasta.

Existe um elemento essencial de afirmação de uma identidade nacional e que a distingue de outras unidades sociais portadoras de culturas próprias: a vontade partilhada de aceder à construção de um Estado ou ao controlo de um certo tipo de instituições políticas próprias. Há, assim, uma relação necessária entre nação e poder ou aspiração ao poder: a nação existe de forma duradoura para ser uma base do exercício do poder, eventualmente para lutar pelo corte com um sistema de poder existente e pela afirmação de um novo poder.

É neste contexto que surge o papel histórico do princípio das nacionalidades, isto é, da ideia de que a cada nação deveria corresponder um Estado, com o direito a ser – ao menos na aparência jurídica – soberano e independente, ou pelo menos exercer o direito à autodeterminação.

Em síntese, a «nação» e o poder político que lhe corresponde procurando na sua existência a legitimação, implicam a existência de um «sistema central de valores» e este sistema não é alheio a relações de poder. Pelo menos desde a Revolução francesa, que proclamou a nação como titular da soberania em substituição do Rei, e da Revolução americana que incarnou na nação a vontade de independência dos povos colonizados, é impossível deixar de pensar o fenómeno do Estado e, na nossa época, a integração europeia, sem ter presente a realidade que é a nação. Não é a nação que está a desaparecer ou em crise, mas sim a soberania enquanto atributo do Estado, nos termos absolutos tradicionais.

A internacionalização de muitos problemas, a necessidade da sua regulação internacional, a transferência de poderes dos estados para instituições como a União Europeia, não extingue a nação, antes conduz a um processo complexo em que os povos sentem a necessidade de revalorização, como se fossem ainda mais necessários, espaços diferentes de cultura e participação, que vão desde a nação a outros, como a cidade, a autarquia, etc.

6.3. Poder e territórioO conceito de povo está, na teoria clássica do Estado, de algum modo ligado à territorialização do fenómeno político, traduzida na correspondência mínima entre a unidade do exercício do poder e autoridade e o substracto humano sobre o qual ela se exerce. Em todos eles podem constituir-se aquilo a que o Direito chama «pessoas colectivas de população e território» ou «pessoas

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colectivas territoriais», para exprimir o facto de o exercício de poder e a comunidade humana sobre que se exerce serem delimitados em função da residência numa determinada área territorial.

Tem-se dito que esta territorialização é, porém, cada vez manos passível de generalização, sobretudo se tivermos em conta numerosas organizações não territoriais, que procuram interferir em diferentes procedimentos de decisão política; realidades como a comunidade política do Islão, em que a Umma é uma unidade de crentes sobre a qual se exerce uma autoridade não territorial, embora com efectiva projecção e relevância que transcende o domínio religioso e abrange o campo da política; a cultura hinduísta, por sua vez, baseia-se em castas ou seitas em que o território não se configura como um elemento dominante na sua estruturação; também é conhecida a falta de correspondência em África entre unidades culturais e identidades étnicas e o território delimitado como base para o Estado, depois de o ter sido como base para as possessões coloniais16; de algum modo, na Europa de leste também se acumularam casos de falta de correspondência entre os limites do Estado e da nação, levando a que, por vezes, as unidades étnicas possam funcionar como uma real projecção política, por cima das fronteiras dos Estados e criando problemas, por vezes difíceis, de convivência de minorias étnicas no seio de um território em que há uma nação dominante. Pelo contrário, há como que uma «desterritorialização» do exercício do poder, traduzida na aplicação de normas no território de Estados e, simultaneamente, na intervenção de representantes destes em decisões que não dizem respeito só ao território que, em princípio, seria o único que lhes caberia administrar.

O conceito de população é um conceito particularmente adequado numa época de internacionalização da mão-de-obra e de existência de grandes fluxos migratórios.

Nos casos em que prevalece o critério do ius sanguinis como base da cidadania, como que se verifica uma desterritorialização do elemento «povo» que corresponde, de algun modo, a uma antecipação de uma característica que há quem atribua ao poder político moderno, sobretudo em situações de integração: em vez de ser exercido essencialmente num território, o poder é frequentemente negociado fora do território, designadamente através da participação nos órgãos de organizações de integração.

6.4. Federalismo e regionalismoA atenção ao fenómeno regional justifica-se quer por Portugal ser um país parcialmente regionalizado (caso dos Açores e da Madeira), quer devido ao facto de o fenómeno regional ter uma grande importância na União Europeia. Este facto leva mesmo Manuel Braga da Cruz a afirmar que se assiste hoje à «passagem da concepção da Europa das pátrias para a ideia da Europa das regiões»; ou Jean Labasse a prever a lenta formação de «uma identidade pós-nacional, respeitadora das especificidades culturais, com base nesses espaços, vividos no quotidiano, que são as regiões».

________________________________16 Ver Bertrand Badie e Marie-Claude Smouts, Le Retournement du Monde. Sociologie de la Scène Internationale, pp. 44-45. Os Autores mostram que, apesar das aparências em certos momentos, por detrás dos vários nacionalismos africanos não estavam perspectivas de afirmação universal do movimento nacionalista mas, sobretudo, influências políticas e estratégias de poder e a influência dos colonizadores sobre as elites dos países que contestaram a colonização. De resto, na nova situação criada pela derrocada da URSS e dos regimes do leste da Europa, há um amplo campo para «revivalismos culturais», por vezes aproveitados para contestar os Estados (e as nações que entretanto foram afirmadas como existentes): cfr. Samir Amin, L'Éthnie à l'Assaut des Nations, Paris, Harmattan, 1994 (com a colaboração de Joseph Vansy), passim.

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Há situações em que o que está em causa é essencialmente a afirmação de uma nacionalidade, atribuindo-lhe um estatuto político e um certo grau de autonomia no quadro de um Estado soberano. A «descolonização» deveria ser feita não por meio da independência e da concretização do princípio das nacionalidades, mas sim através da criação de estruturas regionais, embora estas possam ter diferente natureza e um grau maior ou menor de autonomia política e administrativa.

No caso português nunca ninguém pôs o problema nestes termos em relação às «regiões» do continente que estão previstas na Constituição e sobre as quais se debruçou o referendo de 8 de Novembro de 1998. Mas o problema já foi colocado pelos dirigentes políticos regionais mais relevantes dos Açores e da Madeira, em termos semelhantes a estes. Entre outros aspectos, procura-se um estatuto no quadro da integração, até porque já foi defendido que as unidades essenciais componentes de uma federação europeia fossem as regiões e não os Estados nacionais.

A CE pode funcionar como factor de pressão, embora de peso relativo, para que sejam instituídas regiões onde não existem, bem expressa em documentos como a Carta Europeia da Regionalização e na opção pelo «partenariat» com as regiões eleitas em matéria de política regional comunitária e na criação do Comité das Regiões. Entretanto, os princípios que a CE consagra no seu «estatuto jurídico», como o princípio da subsidiariedade, são invocáveis na «estruturação interna das nações» para instituir as regiões e dotá-las de meios e poderes.

Mas não é correcta a ideia, que por vezes de algum modo aparece, de que, de algum modo, a região é um fruto do processo de integração europeia.

É certo que a institucionalização, com o Tratado de União Europeia, de um Conselho das Regiões demonstrou a importância desta questão na integração comunitária. Já foi mesmo referida a possibilidade de se tratar de um embrião de uma segunda câmara. Mas o papel da CE na regionalização não deve ser exagerado.

As razões que levaram à regionalização são diversas e fundamentalmente de carácter interno. Por outro lado, existem diferentes modelos de regiões que pouco têm a ver uns com os outros:

● há casos em que o objectivo é resolver o problema da coexistência de várias nacionalidades no quadro de um Estado unitário, como acontece em Espanha em alguns casos;

● noutros casos, trata-se de ter em conta realidades particulares de carácter cultural, étnico e linguístico, como terá sido o caso do complexo processo da Bélgica;

● noutros casos, entende-se que se verifica a existência de «interesses específicos» decorrentes de particularidades geográficas e culturais que geraram aspirações de autonomia, como acontece em Portugal, com as regiões autónomas dos Açores e da Madeira e eventualmente com as Canárias: são as «regiões ultraperiféricas da CE», que deram origem a programas específicos tendo como fundamento o seu afastamento e a sua insularidade;

● noutros casos existe apenas um propósito de criar estruturas legitimadas pelo voto, capazes de desenvolverem determinadas actividades com maior participação e intervenção popular e

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reequilibrando a distribuição de poderes entre eleitos e funcionários e o espaço para a política face ao aparelho administrativo central;

● pode eventualmente pesar também, em certos casos, a necessidade de organizar a Administração de forma descentralizada, aliviando o Estado-Administração Central de certas tarefas. Pode ter sido, eventualmente e em alguma medida, uma das motivações mais importantes para a regionalização em parte dos casos da França.

As razões que estão na base da regionalização são muito diversificadas consoante os países e mesmo, por vezes, no seio de um mesmo país. Luisa Torchia, por exemplo, enumera quatro causas para a regionalização que podemos tentar resumir:

1) Reequilibrar a responsabilidade entre eleitos e funcionários, garantindo mais órgãos eleitos;

2) Existência de identidades culturais, étnicas, linguísticas, geográficas;

3) Aliviar a sobrecarga do Estado-Administração Central;

4) Procurar a melhor localização das decisões.

Note-se, entretanto, que a segunda ordem de razões não é de verificação obrigatória, e por vezes não se verifica mesmo; que a terceira e a quarta estão muito ligadas (como, aliás, a Autora aponta).

A verdade é que existem nos diversos países vários níveis intermédios de exercício de poder entre os municípios ou comunas ou outros níveis de base de exercício do poder (como as freguesias ou os «arrondissements»), que são diferentes das regiões: os condados, as províncias, os distritos, os departamentos e, a outro nível, os Estados federados.

No entanto, não é possível definir a região a partir de uma determinada dimensão, ainda que média ou aproximada, apesar de a ideia de «espaço médio» como elemento caracterizador da região aparecer numa definição do Conselho da Europa:

Um território de dimensão média susceptível de ser determinado geograficamente e que é considerado como homogéneo.

No entanto, a referência a um espaço ser homogéneo é desde logo discutível, sobretudo tendo em conta que existem regiões que se caracterizam pela heterogeneidade em relação a vários parâmetros.

Para definir região e Estado federado teremos que recorrer a outros critérios, de que se pode destacar quatro:

1) Os Estados federados foram historicamente Estados soberanos, que decidiram criar o Estado federal (nas federações em sentido próprio), enquanto as regiões são criadas ou reconhecidas por um Estado unitário;

2) Os Estados federados estão representados numa das câmaras do parlamento, geralmente com um número de representantes (frequentemente senadores) que é independente do seu número de habitantes, enquanto nos Estados unitários podem existir segundas câmaras formadas a partir de órgãos regionais e locais (como acontece em França), mas sem que os senadores sejam, como nos Estados federais, representantes de Estados que têm assento por direito próprio;

3) Os Estados federados possuem em geral o poder jurisdicional próprio, o que não se verifica nas regiões políticas ou administrativas;

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4) O Estado federado dispõe, em geral, de uma margem de auto-organização que as regiões políticas não possuem, já que os aspectos essenciais relativos aos seus órgãos, forma de eleição, e competências são estabelecidos pela Constituição do Estado unitário e pelo Estatuto aprovado pelo Parlamento no exercício de um poder soberano.

Assim, por exemplo, os limites da autonomia do Estado federado são estabelecidos na Constituição através da definição da competência do Estado federal, o que pode acontecer ou não com as regiões políticas, mas não acontece em geral no caso das autarquias locais, sejam ou não regiões: a descentralização pode estar consagrada, mas tal não significa em geral que venha a ser estabelecido um elenco taxativo de competências. Por outro lado, este tipo de regiões está sujeita a tutela nos termos constitucional e legalmente determinados (inspecções de legalidade de actuação, por exemplo), o que não acontece com os Estados federados.

Não é aceitável, entretanto, a distinção entre região e Estado federado em função de a região ser um fenómeno inserido em processos de descentralização de natureza meramente administrativa, enquanto o federalismo seria um fenómeno político; este critério só é válido para a distinção entre Estados federados e autarquias locais, (incluindo nestas as regiões administrativas), partindo do princípio que a definição do que se deve entender por «político» assenta em ter ou não ter capacidade legislativa. Mas este critério não é válido para distinguir o federalismo das regiões políticas, porque estas têm poderes legislativos tal como os Estados federados.

A dificuldade de distinguir (des)centralização política de (des)centralização administrativa é de tal ordem que já surgiram teses que põem em causa a possibilidade de distinguir regiões políticas e regiões administrativas, afirmando que se trata de «graus quantitativos diversos de um mesmo fenómeno, a centralização ou descentralização de funções estaduais». Quanto à região administrativa, é uma das categorias de autarquias locais.

Regiões como espaços de descentralização política, político-administrativa ou administrativa caracterizam-se por terem órgãos que resultam do sufrágio universal, como é inerente ao próprio conceito de descentralização territorial; as «regiões» como espaço de desconcentração de serviços do Estado a nível periférico correspondem a uma utilização do conceito de região em sentido lato, que consideramos impróprio e não rigoroso (pense-se, no caso português, nas Comissões de Coordenação Regional e direcções regionais de numerosos ministérios, entre outras). Este facto não significa que não possa verificar-se a existência de uma identidade regional forte, e mesmo de uma nacionalidade, sem existir uma região entendida como pessoa colectiva descentralizada. Foi o que aconteceu durante muitos anos, por exemplo, na Escócia e no País de Gales no caso do Reino Unido até há pouco tempo.

Destas considerações resulta que o conceito de região tem que ser um conceito operacional. Por isso, adoptamos o seguinte conceito: região é a pessoa colectiva pública de população e território cujos órgãos são legitimados pelo sufrágio universal, cujo âmbito territorial corresponde ao maior espaço de exercício do poder abaixo do Estado-Administração Central e cujos poderes e meios financeiros não resultam essencialmente de um poder de auto-organização, mas sim de normas e deliberações emanadas dos órgãos de soberania. Daqui decorre que tanto são regiões, para efeitos operacionais, as que se configuram formal e juridicamente como tais, como as que são a mais ampla pessoa colectiva pública de população e território abaixo da

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Administração Pública central, mas que se podem configurar mais como «províncias» ou «distritos», no caso de acima de umas ou de outros não haver uma região e de os seus órgãos serem eleitos.

O critério aparece, assim, como sendo de carácter predominantemente jurídico, mas com atenção à componente sociológica. Esta distinção é importante porque é diferente a situação de um órgão de poder que pode legislar e a situação de um órgão que tem competência meramente regulamentar, quer do ponto de vista jurídico, quer do ponto de vista da sua situação no sistema político. Quando se afirma, com frequência, que o «Estado-nação» estaria não só em crise, ou mesmo condenado, ou em vias de o ser, pelos processos de integração, através dos quais perderia poderes para as instâncias transnacionais, mas também devido à existência de um nível de exercício de poder inferior ao «nacional», a região, é essencialmente neste tipo de região «forte» que se está a pensar.

6.5. Da política no interior das nações à crise das fronteirasOs países constituem a base territorial dos Estados-nação e, frequentemente, a maior das «unidades» que é objecto de investigação por parte de muitos estudiosos da área das ciências sociais.

É certo que nos parece que se tem verificado um certo «regresso ao Estado» na investigação em ciências sociais e na ciência política em particular.

Na época actual, com as tendências para a integração comunitária, e com outros processos de integração, e mesmo para o «globalismo», é cada vez mais difícil forjar um conceito de Estado tão abrangente que permitisse incluir os fenómenos e as realidades políticas crescentemente importantes e que não podem deixar de ser inseridas no campo da investigação da ciência política.

No caso específico dos Estados-membros da Comunidade Europeia, tem razão de ser a observação de Oberdorff segundo a qual precisamos de nos habituar a um modelo inovador construído a partir de uma interpenetração dos níveis de decisão na Europa. Nesse caso, mais ainda que outros, é desadequado centrar o estudo da política nas fronteiras de um país e, em separado, nas relações que os países estabelecem a nível internacional.

Ora a verdade é que grande parte do estudo e a investigação acerca dos sujeitos, factos e actividade política arrancam, em geral de um pressuposto: estes fenómenos desenvolvem-se em sociedades concretas, claramente delimitadas em relação a outras. Os diferentes modelos teóricos que foram forjados assumem explícita ou implicitamente este facto.

Se o estudo do campo da política é essencialmente, para muitos, o estudo do que se passa neste campo no interior das nações, em compartimento relativamente estanque em relação ao que se passa no exterior e ao seu reflexo no interior, é certo que, em geral, os investigadores da «Ciência Política interna» não ignoram o contexto envolvente. Assim, por exemplo, o método sistémico refere não só um contexto intra-social do sistema político, que tem ímplicito o reconhecimento de que nem tudo o que é social é político, mas também um contexto extra-social, constituído por outras «sociedades globais» que cercam aquela em que se situa o sistema político, que a influenciam e que com ela estabelecem relações mais ou menos profundas. Mas a verdade é que, nas mais diferentes latitudes, a política interna e as relações externas foram, com frequência, vistas como campos demasiado

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separados, o que é desajustado numa situação de grande aproximação dos diferentes sistemas e de forte intensificação da importância dos fenómenos e actos exteriores a esses sistemas, mas que se repercutem no seu funcionamento.

Por sua vez, é evidente que a «ordem internacional» foi essencialmente vista como um produto da vontade dos Estados, concebidos como sendo tendencialmente de base nacional e soberanos. A diplomacia, por sua vez, era apresentada como devendo desempenhar um papel de reguladora por excelência das relações internacionais e a guerra como sendo a continuação da política por meios violentos ao nível das relações interestaduais.

Em síntese, a visão da política com base nos Estados e das entidades em que se desdobra, nos sistemas políticos que em torno deles se estruturam, e das relações interestaduais e internacionais como compartimentos quase estanques foi posta em causa por representar uma concepção que não reflecte a realidade.

Ao mesmo tempo, são os Estados de maior dimensão a dizerem «a última palavra quanto ao exercício do poder internacional, quer se trate de paz ou de guerra, das relações com os indivíduos, do acolhimento aos investimentos estrangeiros ou das relações diplomáticas».

A situação existente leva a afirmar que não há «crise do Estado Nação» mas sim crise do Estado Soberano. Esta hipótese justifica-se no caso dos países da Comunidade Europeia, mas também se aplica noutras zonas do Globo, em que os sistemas políticos são muito abertos e a influência de factores externos e a intersecção de sistemas políticos é muito acentuada, ao mesmo tempo que a realidade nação permanece como muito forte.

Nesse contexto, passaram a ser especialmente frequentes as referências ao princípio da subsidiariedade. Este princípio consiste essencialmente em afirmar que as atribuições devem ser exercidas pelo centro mais próximo das populações e só devem ser transferidas para o centro mais distante as atribuições que aí possam ser melhor exercidas. Sobre a sua origem, é frequente a invocação do pensamento aristotélico, tomista; mas também do pensamento de Johannes Althusius, de Calvino, Proudhon, e sobretudo da prática dos Estados federais.

É igualmente corrente a referência a Tocqueville, ao processo político e ao federalismo norte-americano; mas a situação norte-americana vista nos tempos mais recentes é contraditória, porque a tendência histórica é de natureza centralizadora.

Outros autores referem como grande criador do princípio um jesuíta alemão, inspirador da encíclica Quadragesimo Anno, bem como os defensores de versões mais radicais da integração europeia. Está em causa, especialmente no domínio da doutrina social da Igreja, afirmar o princípio da subsidiariedade como «indissolúvel da ideia de solidariedade», como estando situado a meio caminho entre o individualismo liberal e o «colectivismo» e exaltar o papel das «comunidades intermédias» e «corpos intermédios», nas quais os indivíduos deveriam encontrar o espaço necessário para a afirmação da sua liberdade; mas o princípio afirma-se com uma projecção mais larga, especificamente institucional, horizontal e vertical.

Esta paternidade católica em relação à ideia da subsidiariedade interpretada correctamente, isto é, na sua versão descentralizadora ou «descendente», não é aceite por autores que referem que a Igreja Católica não adopta na sua

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organização interna a descentralização; afirmou-se mesmo que se deveria encontrar no relativo peso da religião católica nos seis países fundadores da Comunidade Europeia a explicação para a adopção de um modelo centralizador que teria sido adoptado no Tratado de Roma. Outros autores referem um suposto espírito descentralizador dos protestantes. Mas estas afirmações não são suficientemente fundamentadas.

De resto, o princípio da subsidiariedade, embora sendo de carácter básico e originariamente descentralizador, na sua aplicação prática tanto pode conduzir a uma prática centralizadora como a uma prática descentralizadora. Depende de quem detém o poder, das lutas em torno da sua repartição, do modo como se ponderam os interesses e necessidades em causa e da interpretação que é concretizada.

Na época actual é mesmo corrente encontrar situações em que este princípio é invocado para fundamentar transferências de poderes do Estado-nação para estruturas de integração ou para estruturas internacionais de outra natureza. Este facto, de resto, é referido frequentes vezes quando se acentua a necessidade de regular para combater práticas nocivas que são desenvolvidas à escala internacional, de modo a assegurar limiares mínimos de protecção no plano social, ambiental e de protecção de direitos fundamentais.

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7. Sobre ideologias políticasPara alguns autores a ciência política é essencialmente uma história e o estudo das ideologias políticas. Talvez por reacção a esta perspectiva limitada, e correspondendo a um clima em que o termo ideologia assumiu para muitos um sentido pejorativo e em que se falou em morte das ideologias, o tema deixou, por vezes, de ser abordado em manuais e estudos genéricos de ciência política. Somos, porém, colocados perante uma dificuldade: «Tanto na linguagem política prática, como na linguagem político-filosófica, sociológica e político-científica, não existe talvez nenhuma outra palavra que possa ser comparada à Ideologia pela frequência com a qual é empregada e, sobretudo, pela gama de significados diferentes que lhe são atribuídos».

Refira-se o papel especial da obra de Destutt de Tracy, publicada em Paris em 1801, com o título Elementos da Ideologia. O objectivo deste trabalho é, na esteira da corrente francesa de materialismo sensorial e psicologista cujo maior expoente é Condillac, propor uma ciência das ideias com base em sensações externas e nas percepções mentais. O facto de Tracy ser adepto do liberalismo, mas crítico de Napoleão Bonaparte, leva a que seja este o primeiro a usar a expressão ideologia com uma carga depreciativa.

A atitude positivista e de crítica radical de preconceitos leva, entretanto, ao desenvolvimento ulterior da sociologia de Émile Durkheim e está na base do entendimento de Marx da ideologia como simples reflexo de relações de classe: a moral, a religião, a metafísica, são parte da ideologia e esta é uma das formas de consciência, sendo a vida que determina a consciência e não a consciência que determina a vida.

Num quadrante oposto, as teorias elitistas também concebem a ideologia como um sistema de pensamento que tem como função essencial a defesa de um grupo social. É o caso de Pareto e Mosca , que afirma que toda a elite leva à prática «derivações» (Pareto) ou «fórmulas políticas» (Mosca) em qualquer dos casos com o objectivo de justificar o seu poder.

Hoje utiliza-se a expressão ideologia noutro sentido: para referir qualquer conjunto abrangente e consistente de ideias acerca do mundo partilhada por um grupo social mais ou menos amplo. Refira-se ainda Edward Shills, para quem ideologia é uma das formas que pode revestir os diversos modelos integradores das crenças morais e cognitivas sobre o homem, a sociedade, o universo (...) que florescem nas sociedades humanas.

A evolução levou Norberto Bobbio a propor a distinção entre um sentido fraco de ideologia, que vai essencialmente no sentido do que referimos, e um sentido forte, que tem origem no conceito de ideologia de Marx, para quem ideologia seria uma falsa consciência das relações de dominação de classe.

Podemos encontrar, neste contexto, uma distinção entre os grandes sistemas imputáveis a pensadores individuais e as ideologias, que são ideias com peso social (e especificamente político, no caso de se tratar de ideologias políticas). É assim que na ciência política norte-americana aparece a distinção entre literature e belief systems. Neste último caso, as ideias são tratadas como factos, procurando-se uma definição e um tratamento científico o mais exacto possível.

Numa outra perspectiva, de tipo sociológico, a ideologia também aparece como falsa representação da realidade, mas que tem causas objectivas: seria o caso referido da «ideologia dominante» em Marx, para quem o processo de produção de ideologia tem causas sociais, podendo a ideologia da classe dominante tornar-se a ideologia

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socialmente dominante, e partilhada mesmo por parte de muitos dos que são dominados; mas encontramos antecedentes desta concepção em Maquiavel, Jean Bodin, Hobbes, Helvetius. E, no nosso século, estaria na mesma linha, um autor como Max Weber, neste caso sobretudo com a teoria das fontes de legitimidade do poder, além das referidas teorias elitistas.

Numa perspectiva mais geral, podemos dizer que a expressão ideologia é crescentemente utilizada para designar de forma pejorativa as ideias dos opositores, procurando inculcar que defender uma «não ideologia» deveria ser um factor de legitimação das próprias ideias e defender uma ideologia seria uma demonstração de erro e falsidade.

Tem sido frequente, em face das vicissitudes do conceito de ideologia, adoptar antes uma perspectiva, essencialmente de base histórica e comparada, de estudo das teorias políticas, das doutrinas políticas, do pensamento político, das grandes obras políticas ou das ideias políticas. Este facto não significa que não se mantenha um estudo específico das ideologias, eventualmente com aproximação entre este conceito e o de teoria política, nos casos em que estas são partilhadas por agentes políticos relevantes e assumem peso social e político significativo.

Assim, por exemplo, poderá entender-se por democracia o «governo do povo», de acordo com a origem grega da expressão; mas este facto não impede que o entendimento de quem é que integra o povo seja eminentemente variável para um adepto da escravatura, na Grécia, para um adepto da exclusão do voto dos não proprietários, das mulheres e dos analfabetos, no período liberal, ou para um adepto do sufágio universal na actualidade. Há adeptos da democracia, se a entendermos sobretudo como o procedimento por eleições para determinar quem governa, que entendem que esta só se realiza plenamente se forem assegurados universalmente os direitos fundamentais de carácter económico, social e cultural, até porque sem esta realização as pessoas não estariam em condições de escolher com pleno conhecimento de causa quem as deve governar. Outros, pelo contrário, entendem que a intervenção do Estado e da Administração é fonte de autoritarismo e burocracia, adoptando assim uma posição favorável ao liberalismo mas que é apresentada como necessária para uma verdadeira salvaguarda da democracia. Há ainda adeptos da democracia que preconizam a democracia directa e as decisões políticas essenciais por meio de referendo como a única forma de o povo verdadeiramente governar e quem entenda, pelo contrário, que os referendos são passíveis de manipulação por forças políticas e sociais dominantes. Outros pensam que a democracia participativa, designadamente nos pequenos espaços, é a verdadeira forma de exercício da democracia.

Podemos, entretanto, e apesar das dificuldades, distinguir alguns critérios essenciais de avaliação das ideologias.• A atitude face ao poder no que respeita à adopção de posturas mais ou menos

autoritárias e de admissão ou exclusão de outras ideologias.

• A medida em que se adopta uma postura de transformação social e se preconiza rupturas políticas (podendo estas assumir diferente natureza) ou se defende a conservação ou a restauração plena de estruturas anteriormente existentes ou idealizadas como se tivessem existido.

• A atitude face à legitimidade do poder : se se admitem fontes de legitimação como factos históricos e o poder carismático deles decorrente para um ou vários chefes, ou se se admite como única fonte de legitimidade a realização periódica de eleições competitivas.

• A medida em que propõem ou exigem a intervenção de poderes públicos na realização de objectivos definidos como de interesse público de uma comunidade

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ou, pelo contrário, reclamam o máximo de abstenção do Estado e da Administração Pública em relação aos problemas sociais.

É importante ainda assinalar a distinção entre ideologia e pragmatismo, estabelecida por Giovanni Sartori. Os sistemas ideológicos de crenças seriam caracterizados por uma mentalidade rígida e dogmática, bem como doutrinária, que fariam apelo aos princípios e à argumentação dedutiva. Além disso, assumiriam uma dimensão emotiva e mesmo passional, de onde resultaria uma forte dedicação e activismo que seriam essenciais para as elites políticas. Nesta emotividade estaria a explicação para fortes conflitos políticos.

Surgiu, entretanto, uma tese que defendeu o declínio das ideologias ou o apaziguamento ideológico em autores como Aron, Shills, Daniel Bell e Lipset. A aceitação do Wellfare State e do declínio de ideologias rígidas, imperativas e do fanatismo associado às crenças políticas era o fundamento essencial para esta tese.

Após a queda dos regimes do Leste surgiu a tese do fim da História (que foi recorrente ao longo da História) em especial na obra de Fukuyama.

Mesmo sendo evidente em muitos casos o declínio dos sistemas de pensamento fechados e das intervenções políticas apaixonadas, do activismo político intenso e das concepções totalizantes, não deixa de se verificar a existência de sistemas de crenças políticas, mais ou menos partilhadas.

A concepção forte de ideologia, na expressão de Bobbio, tem a vantagem de, ao dizer que a ideologia é (ou pode ser), uma falsa representação da realidade apelar para o confronto entre as afirmações dos líderes políticos e a investigação das realidades, aspecto que é essencial como objectivo da ciência política.

FIM

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INTRODUÇÃO À CIÊNCIAPOLÍTICA

TESTES FORMATIVOS

MANUEL MEIRINHO

2007

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1º TESTE FORMATIVO

Nota explicativa

a) O teste é composto por 20 questões distribuídas por um único grupo, sendo as respostas de escolha múltipla.

b) Dado tratar-se de uma disciplina de introdução, as questões abordam, essencialmente, os conceitos fundamentais acerca das matérias tratadas no Manual de apoio à disciplina: Luís de Sá, “Introdução à Ciência Política”, Lisboa, Universidade Aberta, 1999.

c) Caso o aluno deseje aprofundar algumas matérias, sugere-se que consulte a bibliografia específica indicada no Manual.

d) A grelha de cotações é a seguinte: (20 questões x 1 valor = 20 valores).

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GRUPO I

Responda às seguintes questões, assinalando no quadrado respectivo a opçãocorrecta.

1. O termo “política” (politics) refere-se a:

A. Ao conjunto de medidas que visam realizar objectivos a cargo do poder político.

B. Ao processo de competição pelo poder político, ao seu exercício e à sua manutenção.

C. À prossecução de medidas que visam o interesse comum.D. Aos processos eleitorais relativos à competição política.

R= “Política” designa essencialmente a competição pelo poder político, quer seja pela sua conquista, quer pela sua manutenção ou pela determinação do sentido em que é exercido.

2. Entende-se por sistema político:

A. O conjunto de instituições, grupos ou processos políticos caracterizados por um certo grau de interdependência recíproca.

B. O conjunto de instituições políticas que actuam em permanente conflito.C. As relações que o Estado estabelece com as restantes instituições políticas.D. As relações que os governantes estabelecem entre si e entre os governados.

R= Em geral, pode dizer-se que o conceito de sistema político refere-se a qualquer conjunto de instituições, grupos ou processos políticos caracterizados por um certo grau de interdependência recíproca.

3. Entende-se por regime político:

A. Uma determinada forma de articulação do conjunto das instituições políticas a quem cabe o exercício da autoridade.

B. A forma como o Estado se organiza para cumprir as funções que lhe são cometidas.

C. Os métodos com que o poder político é exercido, a forma de dominação do Estado e o modo como este manifesta a sua força.

D. Às relações formais entre as instituições políticas decorrentes da Constituição.

R= O conceito de regime político atende aos métodos com que o poder político é exercido, à forma de dominação do Estado e ao modo como manifesta a sua força.

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4. A “Estrutura do Estado” ou “forma da unidade estatal”, respeita:

A. Ao modo como o Estado se organiza para cumprir as funções que lhe são cometidas

B. À divisão do Estado em parcelas territoriais, às suas funções e às relações com os órgãos superiores de poder.

C. Ao modo como se organiza a repartição dos poderes no plano jurídico e constitucional.

D. Ao conjunto das instituições políticas e às suas funções.

R: Por estrutura do Estado (também designada por forma da unidade estatal) deve entender-se a divisão do Estado em parcelas territoriais, a situação dessas parcelas territoriais no conjunto do Estado e as funções que lhes cabe desempenhar, as suas relações com os órgãos superiores de poder (os clássicos «órgãos de soberania») e com a administração central.

5. De acordo com Adriano Moreira, os partidos políticos são:

A. Organizações duráveis no tempo e que disputam pela via eleitoral o poder.B. Organizações que lutam pela aquisição, manutenção e exercício do poder.C. Entidades dotadas de personalidade jurídica, de tipo associativo e com carácter

duradouro.D. Organizações que apresentam candidaturas a eleições tendo em vista o exercício

do poder.

R: O conceito de Adriano Moreira – «partidos são organizações que lutam pela aquisição, manutenção e exercício do poder» – foge a algumas das observações feitas à definição mínima de Sartori; mas poderá não estabelecer uma fronteira com «poderes invisíveis» que Norberto Bobbio refere e que visam os mesmos fins, embora negando e ocultando a sua actividade e procurando actuar por interpostos «poderes», incluindo através de partidos.

6. A quem é atribuída a seguinte noção de partido político: «um partido político é qualquer grupo político identificado por uma etiqueta oficial que se apresenta a eleições e pode fazer eleger, em eleições livres ou não, candidatos a cargos públicos».

A. A Maurice Duverger.B. A Giovanni Sartori.C. A Adriano Moreira.D. A Jean Charlot.

R: Consideremos, por exemplo, a definição «mínima» de partido de Giovanni Sartori: «um partido é qualquer grupo político identificado por uma etiqueta oficial que se apresenta a eleições, e pode fazer eleger em eleições (livres ou não) candidatos a cargos públicos».

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7. A noção de sistema de partidos respeita aos diferentes tipos de partidos que coexistem num determinado sistema político.

A. A afirmação é verdadeira.B. A afirmação é falsa.

R: Quanto aos sistemas partidários, podemos defini-los como conjuntos de partidos, das relações que estabelecem entre si e com o Poder, das suas características, dimensões e funções que desempenham num determinado sistema político.

8. Um conjunto de indivíduos que estão estavelmente ligados ou organizados para acções concretas para prosseguir objectivos comuns é denominado de:

A. Grupo de pressão.B. Grupo de interesses.C. Nenhuma das afirmações é correcta.

R: Poderemos tentar definir grupo de interesse como o conjunto de indivíduos que estão estavelmente ligados, ou pelo menos organizados para acções concretas, para prosseguir um ou mais objectivos comuns; o grupo de pressão existirá quando um conjunto de indivíduos estavelmente organizados procura prosseguir esse ou esses objectivos comuns através da tentativa de, por qualquer meio, intervir no processo de decisão política, de modo a influenciar a seu favor a decisão final de órgãos do Estado.

9. O critério relevante a ter em conta na definição de elite é:

A. o do índice elevado de capacidades individuais.B. o do poder e/ou autoridade e da influência que resulta da sua acção.C. O do poder para determinar a conduta dos outros.D. A capacidade de aplicar sanções à conduta dos outros.

R: Não aparece aqui, portanto, o critério que parece pesar em Pareto para definir a elite, isto é, o «índice elevado de capacidades individuais», nem outros critérios tais como status, privilégios, aceitação pública, etc.; trata-se acima de tudo do critério do poder e/ou autoridade e da influência que daí resulta.

10. Do ponto de vista do objecto, a opinião pública deve ser qualificada em primeiro lugar:

A. Por respeitar à esfera do poder político, visando influenciá-lo ou conquistá-lo.B. Por respeitar às reivindicações dos cidadãos junto do poder político quer essas

reivindicações respeitem à esfera pública quer à esfera privada.C. Por respeitar à expressão pública de opiniões sobre os aspectos mais

importantes da vida política e social.D. Por respeitar à opinião da sociedade civil sobre determinado assunto.

R: Do ponto de vista do objecto, a opinião pública tem que ser qualificada, em primeiro lugar, por dizer respeito à esfera do que é público, isto é, do que diz respeito ao poder político, ou do que visa influenciá-lo ou conquistá-lo.

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11. Do ponto de vista social a ideia de legitimidade corresponde:

A. Ao poder que decorre de uma escolha efectuada nos termos constitucionais e que é exercido no quadro desses limites.

B. Ao poder que é exercido sem contestação pública.C. Ao poder que se faz aceitar ou que não seja contestado pela maioria dos

cidadãos, seja qual for a razão em que esse facto se fundamente.D. Ao poder dos governantes eleitos periodicamente.

R: De um ponto de vista social, será legítimo o poder que se faça aceitar, ou que não seja contestado, pelo maior número, seja qual for a razão em que esse facto se fundamente.

12. Na relação de representação política…

A. Os representantes estão sujeitos às instruções dos representados.B. Os representantes não estão vinculados a nenhum mandato dos representados.C. Os representados podem substituir os representantes quando entenderem.

R: Na relação de representação política «os parlamentares não são vinculados por nenhum mandato, não têm de cumprir nenhuma instrução do corpo ou colégio eleitoral»; estes não podem substituir o representante quando entendem; e os efeitos jurídicos dos actos do representante não se projectam na «esfera jurídica» do representado como se fossem por ele próprio praticados.

13. De acordo com Maurice Duverger, o escrutínio maioritário a uma volta tende para o dualismo de partidos.

A. A afirmação é verdadeira.B. A afirmação é falsa.

R: Segundo esta tese, o escrutínio maioritário a uma volta tende ao dualismo de partidos; o escrutínio maioritário a duas voltas promove alianças eleitorais e blocos partidários num quadro multipartidário, mas de tendência bipolarizada; a representação proporcional tende para o multipartidarismo.

14. O índice de desproporcionalidade de Douglas Rae calcula-se considerando:

A. O valor absoluto da diferença entre a % de votos e a % de mandatos de cada partido e, em seguida, determina-se a média.

B. O valor absoluto da diferença entre a % de votos e a % de mandatos de cada partido que recebeu pelo menos 2% dos votos e, em seguida, determina-se a média.

C. O valor absoluto da diferença entre a % de votos e a % de mandatos de cada partido que recebeu pelo menos 1,5% dos votos e, em seguida, determina-se a média.

R: Douglas W. Rae calcula o índice de desproporcionalidade com base no cálculo do valor absoluto da diferença entre a percentagem de votos e a percentagem de

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assentos parlamentares para cada um dos partidos que receberam pelo menos 1,5% de votos e, em seguida, determina a respectiva média.

15. Em regra, de acordo com Lijphart, as dimensões dos países e o federalismo estão claramente relacionados com:

A. O bicamarelismoB. O unicamaralismoC. Nenhuma das afirmações anteriores é verdadeira

R: Dentro dos casos estudados, Lijphart chega à conclusão, que poderá ser polémica, sobretudo se o estudo das «democracias contemporâneas» for mais alargado do que tanto as dimensões do país como o federalismo estão claramente relacionados com o unicamaralismo.

16. Os chamados sistemas de “presidencialismo de Primeiro-Ministro” caracterizam-se:

A. Pelo exercício de funções cometidas ao Presidente da República pelo Primeiro-Ministro.

B. Por uma liderança forte do Primeiro-Ministro, apoiado por um partido coeso e por uma maioria parlamentar.

C. Pelo reforço dos poderes dos Parlamentos e pela sua cooperação com o Primeiro-Ministro.

D. Pela acção concertada entre o Primeiro-Ministro e as oposições políticas.

R: Formas de governo parlamentares ou mistas podem tender a configurar-se como «sistemas de presidencialismo de Primeiro-Ministro», designadamente quando este tem liderança forte, um partido coeso, uma maioria parlamentar absoluta e um grau de autonomia reduzido dos deputados e do grupo parlamentar.

17. De acordo com Noberto Bobbio, a teoria da separação dos poderes pode, na interpretação moderna, assemelhar-se:

A. Ao conceito de individualização dos poderes.B. À teoria clássica do governo misto.C. À separação do poder legislativo do poder judicial e do poder executivo.

R: Como afirma Norberto Bobbio, a teoria da separação de poderes pode ser considerada como a interpretação moderna da teoria clássica do governo misto.

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18. A concepção objectiva de Nação assenta:

A. Na identificação a partir de distinções no seio da espécie humana de natureza racial ou étnica.

B. Na identificação dos membros da comunidade com o sistema político em que se integram.

C. Na vontade objectiva dos membros que a integram.D. Nas diferenças culturais e no percurso histórico de cada nação.

R: A concepção objectiva procura essencialmente identificar a nação a partir de distinções no seio da espécie humana de natureza racial ou étnica.

19. De acordo com Friedrich Tönnies a noção de sociedade corresponde:

A. Ao resultado de um ajustamento de interesses racionalmente motivado.B. Ao resultado de sentimentos afectivos e de pertença que conduzem à

participação espontânea numa vontade orgânica.C. Às relações sociais entre os indivíduos e grupos.D. Ao resultado da racionalidade assumida de forma consciente, de uma vontade

deliberada dos seus membros sem que existam laços reais entre eles.

R= A sociedade resultaria de conveniências, da racionalidade conscientemente assumida, de uma vontade deliberada e reflectida dos seus membros, sem que existam laços reais entre eles.

20. O único critério de avaliação das ideologias é o da atitude face ao poder no que respeita à adopção de posturas mais ou menos autoritárias e de admissão ou exclusão de outras ideologias.

A. A afirmação é verdadeiraB. A afirmação é falsa

R= Podemos, entretanto, e apesar das dificuldades, distinguir alguns critérios essenciais de avaliação das ideologias.• A atitude face ao poder no que respeita à adopção de posturas mais ou menos

autoritárias e de admissão ou exclusão de outras ideologias.• A medida em que se adopta uma postura de transformação social e se preconiza

rupturas políticas (podendo estas assumir diferente natureza) ou se defende a conservação ou a restauração plena de estruturas anteriormente existentes ou idealizadas como se tivessem existido.

• A atitude face à legitimidade do poder: se se admitem fontes de legitimação como factos históricos e o poder carismático deles decorrente para um ou vários chefes, ou se se admite como única fonte de legitimidade a realização periódica de eleições competitivas.

• A medida em que propõem ou exigem a intervenção de poderes públicos na realização de objectivos definidos como de interesse público de uma comunidade ou, pelo contrário, reclamam o máximo de abstenção do Estado e da Administração Pública em relação aos problemas sociais.

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2º TESTE FORMATIVO

1. A visão normativa da Ciência Política privilegia a análise:

A. Da ideologia que caracteriza a actuação do poder.B. Da sede onde reside o poder.C. Da estrutura interna do poder.D. Da forma como o poder se apresenta.

R= O estudo do poder, e de um sistema político na parte respeitante ao modo como se distribui e exerce o poder, exige a avaliação de como se apresenta (forma), onde reside (sede) e a partir de que ideologia actua. A visão normativa do poder privilegia a primeira dimensão, excluindo outras.

2. O termo “político” (policy) refere-se ao conjunto de medidas para prosseguir objectivos declarados como sendo de interesse comum.

A. A afirmação é verdadeiraB. A afirmação é falsa

R= O «político» designa as medidas para prosseguir objectivos declarados como sendo de interesse comum, tais como a justiça, a segurança e o bem-estar: nesse sentido pode falar-se em política de educação, de saúde, de ambiente, etc..

3. A perspectiva sociológica do Estado destaca:

A. Uma entidade de natureza reguladora e produtora de normas.B. Um facto social e que está no centro dos factos sociais.C. Uma organização que determina o modo de acção política.D. Um entidade que evoca valores e se justifica com base neles.

R= A abordagem do Estado ganha em conjugar a perspectiva jurídica – o Estado é normativamente regulado e produz normas – com a perspectiva sociológica – o Estado é um facto social e que está no centro de factos sociais, e de uma categoria especial deles, que é constituída pelos factos políticos.

4. O conceito de forma de governo refere-se:

A. À sede efectiva do poder, ou seja à repartição horizontal dos poderes é à sua respectiva articulação.

B. À forma como se organiza a selecção dos poderes, a sua repartição e modo de relação no plano jurídico.

C. À estrutura das instituições governativas num determinado país.D. Ao modo de designação dos titulares dos órgãos do Estado.

R: Se atendermos ao modo como são designados os órgãos superiores do Estado (Presidente da República ou Rei ou raínha, Parlamento, Governo), aos seus poderes e modo como se relacionam entre si, teremos o conceito de forma de governo se analisarmos a questão em termos jurídicos; teremos o conceito de sistema de governo se analisarmos esta mesma questão em termos reais.

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5. De acordo com Lapalombara e Weiner um partido constitui:

A. Uma organização que exerce o poder pela via eleitoral.B. Uma organização durável, com implantação local alargada, com vontade

deliberada de exercer o poder e que procura o apoio popular.C. Uma organização com personalidade jurídica e que visa representar

politicamente a colectividade.D. Uma organização que concorre a eleições e pretende ocupar o aparelho de

poder.

R: J. La Palombara e M. Weiner propõem quatro condições para a existência de um partido político:

• uma organização durável, quer dizer uma organização cuja esperança de vida política seja superior à dos seus dirigentes em funções;

• uma organização local bem estabelecida e aparentemente durável, estabelecendo relações regulares e variadas com o escalão nacional;

• a vontade deliberada dos dirigentes nacionais e locais da organização de tomar e de exercer o poder, sós ou com outros e não apenas simplesmente de influenciar o poder;

• o desejo, enfim, de procurar um apoio popular através de eleições ou de outra forma.

6. A classificação tradicional de sistemas partidários distingue entre:

A. Sistemas unipolares, bipolares e multipolares.B. Sistemas bipartidários, sistemas multipartidários e sistemas de partido

dominante.C. Sistemas competitivos, sistemas de bipartidarismo e sistemas de partido

dominante.D. Sistemas competitivos e semi-competitivos.

R: A classificação tradicional distingue sistemas bipartidários, multipartidários e de partido dominante.

7. Um grupo de pressão existe quando os seus membros procuram atingir objectivos comuns sem recorrerem à influência para que as decisões dos órgãos do Estado lhes sejam favoráveis.

A. A afirmação é verdadeira.B. A afirmação é falsa.

R: Poderemos tentar definir grupo de interesse como o conjunto de indivíduos que estão estavelmente ligados, ou pelo menos organizados para acções concretas, para prosseguir um ou mais objectivos comuns; o grupo de pressão existirá quando um conjunto de indivíduos estavelmente organizados procura prosseguir esse ou esses objectivos comuns através da tentativa de, por qualquer meio, intervir no processo de decisão política, de modo a influenciar a seu favor a decisão final de órgãos do Estado.

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8. A teoria da circulação das elites é atribuída a:

A. Gaetano Mosca.B. Norberto Bobbio.C. Vilfredo Pareto.D. Talcot Parsons.

R: Outro autor, Schwartzenberg, assinala como aspecto essencial na obra de Pareto «a recusa da concepção marxista da luta de classes» e que foi em sua substituição que propôs a teoria da «circulação das elites», que explica a história como a «contínua substituição de um escol por outro».

9. Na acepção de Max Weber as bases de legitimidade podem analisar-se no âmbito:

A. Do poder tradicional, do poder legal e do poder carismático.B. Do poder, da autoridade e da influênciaC. Do poder tradicional, do poder político e do poder carismático.

R: Temos que ter em conta a propósito da legitimidade a clássica tripartição weberiana entre poder tradicional, poder legal e poder carismático.

10. A teoria do mandato imperativo assemelha-se à representação política em sentido jurídico.

A. A afirmação é verdadeira.B. A afirmação é falsa.

R: A natureza e conteúdo da representação política demarca-se claramente da representação em sentido jurídico, própria do direito civil. Neste caso, o representante não só é escolhido pelo representado como o é para executar a vontade deste em acto(s) concreto(s), sendo os efeitos jurídicos imputáveis ao representado (o caso mais conhecido será talvez o dos casamentos por procuração).

11. Em sentido restrito, a noção de sistema eleitoral respeita aos métodos de conversão de votos em mandatos.

A. A afirmação é verdadeira.B. A afirmação é falsa.

R: Uma nota desde logo é decisiva: o sistema eleitoral, ao contrário do que parece por vezes ser sugerido, não é a mera fórmula de conversão de votos em mandatos, que levaria sem mais a qualificar os «sistemas» ou princípios como de maioria simples, de maioria em duas voltas ou de representação proporcional. Note-se desde já que há quem afirme que é mais correcto, dado que a fórmula matemática da conversão de votos em mandatos é apenas uma das componentes do sistema eleitoral, falar em princípio e não em sistema. Por outro lado, é frequente serem referidos como «mistos» sistemas como o alemão que, na realidade, correspondem em regra a situações de voto proporcional ou de voto proporcional personalizado (os eleitos nos círculos uninominais são imputados ao

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número de candidatos a que o partido tem direito pela votação obtida no círculo nacional, que é uma votação em partidos).

12. Quando Maurice Duverger chamou ao Senado francês a “câmara da agricultura” referia-se a uma segunda câmara composta tendo em conta a representação:

A. Das regiões, departamentos e comunas.B. Dos municípios e das províncias.C. Das províncias.D. Das comunas e das províncias.

R: Tendo em conta a proposta frequente de uma segunda câmara com base em regiões e municípios, tem interesse invocar a experiência francesa, em que o Senado, composto a partir de regiões, departamentos e comunas, conduziu a uma grande representação das áreas rurais. Duverger chamou ao Senado francês a «câmara da agricultura»..

13. Na óptica da Ciência Política o Parlamento pode definir-se como:

A. Assembleia que exerce funções legislativas, fiscaliza o executivo e a administração pública, assente na representação política decorrente de eleições não competitivas.

B. Assembleia que exerce funções legislativas, fiscaliza o executivo e a administração pública, assente na legitimidade da representação política decorrente de eleições competitivas.

C. Assembleia ou sistema de assembleias articuladas para o exercício de funções legislativas, de fiscalização do executivo e da administração pública, assente(s) na legitimidade da representação política decorrente de eleições competitivas.

R: Assim, na óptica própria da ciência política, o Parlamento possa ser definido como uma assembleia, ou sistema de duas assembleias articuladas entre si para o exercício das suas funções em que, pelo menos a assembleia determinante, assenta a sua legitimidade na representação política decorrente de eleições competitivas e que participa em processos de decisão política ao nível estadual, fiscaliza os governos e a administração pública, debate os actos do poder e discute soluções alternativas, e com a qual, em muitos casos, o Governo tem que manter, ou não romper, uma relação de confiança.

14. A génese da teoria da separação de poderes encontra-se na Antiguidade Clássica, nomeadamente no pensamento de Aristóteles, Políbio e Platão.

A. A afirmação é verdadeiraB. A afirmação é falsa

R: Esta ideia aparece com nitidez em textos como o de Montesquieu no século XVIII; mas já aparecia na «Política» de Aristóteles, que queria constituir a república como meio termo entre a oligarquia (governo dos ricos) e democracia (governo dos pobres). As mesmas preocupações de separação de poderes surgiram em Políbio e Maquiavel ou ainda a Cícero e Platão.

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15. A concepção subjectiva de Nação assenta:

A. Na identificação a partir de distinções no seio da espécie humana de natureza racial ou étnica.

B. Na vontade objectiva dos membros que a integram.C. Numa opção consciente dos indivíduos e na adesão a princípios de convivência

colectiva aceites por todos.

R: A concepção subjectiva de nação baseia-se na ideia de que a distinção entre as nações não deve assentar numa suposta diferença de «raças» puras, mas sim numa base cultural e numa certa sedimentação histórica. É uma concepção de tipo essencialmente voluntarista, que concebe a nação como um produto da história, assente numa opção consciente dos indivíduos e na adesão a princípios de convivência colectiva aceites por todos.

16. Qual das seguintes afirmações é correcta?

A. À existência de uma Nação corresponde necessariamente um Estado.B. À existência de uma Nação não corresponde necessariamente um Estado.C. Nenhuma das afirmações é correcta.

R: A existência de uma nação não significa, porém, que a única forma política a ela correspondente seja o Estado. Surge, assim, no caso de Espanha, a ideia de que existe uma nação e de que no seio desta coexistem «nacionalidades».

17. De acordo com Friedrich Tönnies a noção de comunidade corresponde:

A. Ao resultado de um ajustamento de interesses racionalmente motivadoB. Ao resultado de sentimentos afectivos e de pertença que conduzem à

participação espontânea numa vontade orgânicaC. Ao resultado da racionalidade assumida de forma consciente, de uma vontade

deliberada dos seus membros sem que existam laços reais entre eles

R= De acordo com a proposta de Friedrich Tönnies, na sua obra Gemeinschaft und Gesellschaft (1887), a comunidade envolveria designadamente laços de sangue e de lugar (família, aldeia), e assentaria num sentimento afectivo e de pertença conducente à participação espontânea, por imperativos profundos e não racionais, numa «vontade orgânica».

18. Os Estados Federados possuem em geral o poder jurisdicional próprio, o que não se verifica nas regiões politico-administrativas.

A. A afirmação é verdadeiraB. A afirmação é falsa

R= Os Estados federados possuem em geral o poder jurisdicional próprio, o que não se verifica nas regiões políticas ou administrativas.

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19. Na perspectiva psicológica a ideologia configura-se como uma falsa consciência da realidade.

A. A afirmação é verdadeiraB. A afirmação é falsa

R= Os sentidos da expressão mantêm-se muito diversos. Assim, numa perspectiva de tipo psicológico, a ideologia configura-se como falsa consciência da realidade, com causas diversas, mas de natureza pessoal, subjectiva.

20 Em termos gerais, o conceito de ideologia refere-se a:

A. Sistema de ideias simples que traçam uma visão particular do Mundo e da vida social.

B. Sistema articulado de ideias que orientam os pressupostos essenciais da transformação social.

C. Sistema abrangente e articulado de ideias acerca do Mundo que é partilhado por grupos sociais mais ou menos amplos.

R= Hoje utiliza-se a expressão ideologia noutro sentido: para referir qualquer conjunto abrangente e consistente de ideias acerca do mundo partilhada por um grupo social mais ou menos amplo.

FIM

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