43º Encontro Anual da Anpocs 22 a 25 de Outubro de 2019 ...

25
1 43º Encontro Anual da Anpocs 22 a 25 de Outubro de 2019, Caxambu (MG) ST 25 – Música e Ciências Sociais: reflexões sobre métodos, conceitos e fronteiras A performance da música clássica: o problema do erro e os impactos sociais, psicológicos e profissionais da busca pela excelência artística – o caso dos músicos de orquestra Guilherme Furtado Bartz Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social – Universidade Federal do Rio Grande do Sul (PPGAS-UFRGS)

Transcript of 43º Encontro Anual da Anpocs 22 a 25 de Outubro de 2019 ...

1

43º Encontro Anual da Anpocs

22 a 25 de Outubro de 2019, Caxambu (MG)

ST 25 – Música e Ciências Sociais: reflexões sobre métodos, conceitos e

fronteiras

A performance da música clássica: o problema do erro e os impactos sociais, psicológicos e profissionais da busca pela excelência artística – o

caso dos músicos de orquestra

Guilherme Furtado Bartz

Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social –

Universidade Federal do Rio Grande do Sul (PPGAS-UFRGS)

2

Resumo A música clássica caracteriza-se por seu extremo rigor e exatidão. Ao tocar o

repertório que conforma esse universo sonoro, os músicos precisam seguir as

orientações das partituras, que lhes informam, muitas vezes em detalhes, o

modo como as músicas devem ser interpretadas. Esse caráter formal e objetivo

da música erudita é algo que influencia, sob o ponto de vista psicológico,

emocional e social, a atuação dos indivíduos que se inserem nesse contexto de

trabalho. Existe uma crença, disseminada social e culturalmente, no sentido de

que os músicos de concerto não podem cometer erros em suas performances.

Isso se reflete, no âmbito interno da profissão, numa busca permanente pela

excelência artística e num “medo de errar”. O ambiente hierárquico das

orquestras, com seus status relacionados aos vários postos de trabalho, revela-

se fecundo para o estudo dessas questões, visto que tais elementos estimulam a busca por um aperfeiçoamento individual e coletivo constante. A presente

pesquisa antropológica, fruto de uma etnografia realizada entre 2016 e 2017

com os músicos da Orquestra de Câmara Theatro São Pedro, de Porto Alegre,

procura compreender tais problemas.

* * * 1. Introdução

Este texto está dividido em sete seções, seguidas de uma breve

conclusão. A primeira seção corresponde a esta introdução. Na segunda, apresento brevemente a Orquestra de Câmara Theatro São Pedro (OCTSP),

grupo que foi etnografado por mim, por meio de uma observação participante,

que forneceu o material que embasa as reflexões aqui apresentadas. Na

terceira parte, reflito sobre o que penso ser uma das principais características da

música clássica e sua performance: o rigor, exatidão, formalidade e objetividade

dessa arte – elementos expressos e evidenciados na relação que os músicos desenvolvem com as partituras, uma relação que ao mesmo tempo deve ser de

liberdade e fidelidade.

3

Na quarta seção, analiso a estrutura da orquestra sob o ponto de vista de

suas hierarquias internas. Na quinta, detenho-me sobre o problema dos erros e acertos nas performances musicais e sobre a busca da excelência artística, por

parte dos músicos. Essas duas seções conduzem à sexta parte, na qual reflito

sobre os impactos dessa busca pela excelência, tanto na atuação musical

quanto no aspecto laboral da vida dos instrumentistas. Por fim, na sétima seção,

esboço uma relação entre os erros e os acertos de execução com os aspectos

psicológicos e emocionais, tanto em níveis “micro” quanto “macro”,

considerando a performance musical em suas partes menores e também em

sua totalidade.

2. O contexto da pesquisa: a Orquestra de Câmara Theatro São Pedro

Este trabalho baseia-se na etnografia realizada entre dezembro de 2016 e agosto de 2017 com os músicos da Orquestra de Câmara Theatro São Pedro

(OCTSP), conjunto musical sediado em Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil.

A pesquisa consistiu na observação de 22 ensaios e dez apresentações do

grupo, além de 16 entrevistas individuais (15 instrumentistas e o maestro). Ao

todo, foram cerca de 80 horas de trabalho de campo e aproximadamente 32

horas de entrevistas gravadas1.

A fim de contextualizar a pesquisa, é importante, logo de início,

apresentar um breve perfil da orquestra. A OCTSP foi fundada em 1985 e tem

como sede o Theatro São Pedro, prédio histórico localizado no Centro Histórico

de Porto Alegre (inaugurado em 1858). Ela é uma das cerca de oito orquestras

que atualmente existem no RS2, sendo uma das mais tradicionais e importantes devido às suas mais de três décadas de atuação. A OCTSP é um grupo de nível

profissional no qual trabalham majoritariamente músicos graduados.

1 Acho importante citar, aqui, outros pesquisadores que também realizaram trabalhos com orquestras e com músicos de orquestra: Lehmann (1998, 2002), Pichoneri (2005, 2011), Segnini (2011, 2014) e Teperman (2016). 2 Karpowicz (2013, 2014) é outro autor que também realizou pesquisa com orquestras gaúchas.

4

Na época da pesquisa, a OCTSP era formada por cerca de vinte

músicos3, dentre os quais um terço era do sexo feminino e dois terços, do sexo masculino. A média de idade dos profissionais era de 35 anos. Havia

instrumentistas que estavam na orquestra fazia bastante tempo, alguns com

mais de dez, quinze ou vinte anos de atuação, e músicos recém-chegados.

A OCTSP é essencialmente constituída por músicos que tocam

instrumentos da família das cordas: violinos, violas, violoncelos e contrabaixos.

Eventualmente, outros instrumentistas também eram convidados a integrar o

grupo (madeiras, metais, percussão etc.). No período da etnografia, a orquestra

contemplava três séries de concertos, cada uma com uma proposta, repertório e

público distintos4.

No que se refere ao sustento econômico, desde sua criação a OCTSP foi

mantida somente com o apoio da iniciativa privada, dependendo das leis de

incentivo à cultura. O seu funcionamento estava, pois, atrelado à captação de recursos externos, o que podia resultar numa atuação continuada ou

descontinuada, dependendo das circunstâncias. Os meses nos quais empreendi

a etnografia se revelaram fecundos para a pesquisa, pois nesse período

ocorreram muitos ensaios e concertos.

Concluído esse resumo da orquestra, na próxima seção apresento

algumas especificidades do fazer musical no contexto da música erudita, sobre

os quais desenvolvo uma leitura particular. Na seção seguinte e nas próximas,

procuro vincular, sempre que possível, as reflexões de cunho teórico com as

situações que observei em campo, graças ao trabalho etnográfico desenvolvido

com os músicos da OCTSP.

3 O número de integrantes variava de acordo com as circunstâncias de cada espetáculo. Não existia um grupo fechado de instrumentistas, ainda que na prática fosse possível observar certas regularidades: havia músicos que tinham uma atuação mais permanente no grupo e outros com vínculos mais esporádicos. A variação no número de músicos também decorria do investimento financeiro disponível para cada concerto (o que permitia contratar mais ou menos instrumentistas) e das próprias exigências dos repertórios apresentados (pois havia obras que demandavam certos instrumentos e outros não). 4 Havia os Concertos Oficiais, que primavam pela música erudita, apresentando obras que abarcavam do período barroco ao século XXI; os Concertos Banrisul para Juventude, que eram concertos didáticos, mistura de aula e espetáculo, que tinham como meta a divulgação da música orquestral para estudantes de escolas públicas do Ensino Fundamental; e os Concertos Dominicais, que tinham a proposta de integrar a música erudita com a música popular brasileira, por meio de arranjos e releituras orquestrais.

5

3. Rigor, exatidão, formalidade e objetividade na performance da música clássica

A música clássica é um campo artístico marcado por uma forte

racionalidade e objetividade, características que a diferenciam de outras

manifestações musicais, tidas como mais “espontâneas” ou menos direcionadas

em sua forma tradicional de apresentação. Afirmar isso não significa subtrair o

componente subjetivo, emotivo e intuitivo que também lhe é caro, aspecto que,

tal como o primeiro, apresenta sua própria relevância dentro desse contexto

sonoro. Contudo, minha intenção é, nesse primeiro momento, ressaltar essa que

considero uma das características mais explícitas da música erudita, isto é, seu lado lógico e determinista, por assim dizer.

A música de concerto (guardadas as diferenças entre suas variantes

internas, isto é, seus subcampos, períodos, escolas, estilos, orientações, tendências etc.) caracteriza-se por uma acentuada objetividade, que fica

explícita ao se constatar o fato de que os músicos, ao interpretarem as obras da

música clássica, precisam respeitar, em grande medida, aquilo que foi

concebido pelo compositor – que registra sua criação através de uma notação

escrita representada pelas partituras. A liberdade do intérprete, nesse contexto

performático, encontra-se sempre limitada em algum nível, mesmo que isso

varie bastante de acordo com períodos históricos, estilo e estética de cada obra

e compositor, tendências interpretativas vigentes em cada época etc.

Os músicos, ao tocar – tendo como base as partituras –, não podem fazer

o que bem quiserem: eles precisam seguir as inúmeras orientações, por vezes

bastante minuciosas, disponibilizadas pela linguagem musical escrita. Esse aspecto diretivo e normativo, intrínseco à interpretação da música clássica, torna

evidente o caráter racional e objetivo dessa arte, deixando patente o modo como

deve se dar a relação entre o músico e a música que ele executa. É preciso

haver uma forte conexão entre o intérprete e o material escrito que lhe serve de

suporte para sua performance.

Na medida em que existem caminhos lógicos a seguir na interpretação das obras, existem também escolhas que podem ser consideradas equivocadas,

sejam elas imprecisões ou erros inegáveis (uma nota tocada de forma errada

6

numa música, por exemplo) ou preferências passíveis de uma avaliação

contrária e discutível (um andamento considerado mais lento que o habitual ou esperado). A subjetividade do avaliador, em muitos casos, é um ponto que não

pode ser desconsiderado no julgamento sobre a qualidade de uma determinada

performance musical, ainda que, atrelado a isso, existam diretrizes bastante

objetivas que, via de regra, sempre geram consenso de opinião.

Em outras palavras, há decisões que certos músicos tomam que podem

ser entendidas como completamente equivocadas, enquanto outras dependem

de distintos pontos de vista para serem validadas. Os músicos profissionais,

consciente ou intuitivamente, sabem disso quando tocam e, por isso, são

capazes de perceber a maioria de seus erros e acertos (ou aquilo que, de modo

particular, classificam como tal). Da mesma forma, são capazes de avaliar

desempenhos de outros músicos, classificando-os como “bons” ou “ruins” de

acordo com critérios globalmente aceitos ou, por outro lado, a partir de critérios individuais – que dependem, como já frisado, de formulações subjetivas.

Godlovitch (1998, p. 17) reflete sobre isso: To perform is to intentionally generate and to regulate the generation of some sound sequence. Such regulatory intentions shape the sound by making certain effects happen. They also comprise a normative template which informs the player how well the performance is going and how it went. Without such templates, no performance ranking is possible. Individuals commonly rank their own performances, not necessarily by audience response, but by conformity to their own ideals.

Entretanto, não se deve cair no equívoco de imaginar que toda e qualquer performance realizada por um músico clássico seja um ato “neutro”, como se o

artista simplesmente “colocasse em som”, de forma fiel e exata, tudo aquilo que

aparece representado nas partituras. Os processos de interpretação musical são

muito mais complexos do que a ideia de uma mera “transposição” de uma

linguagem escrita para uma linguagem sonora faz crer. As partituras são percebidas pelos músicos, na verdade, como uma espécie de guia para a

performance musical – um guia que pode ser bastante preciso, mas que

dificilmente informa todas as decisões a serem tomadas. Sobre isso, Godlovitch

(1998, p. 82) comenta: Music-making is not a form of truth-seeking or hypothesis testing. Better yet to conceive notated works as being frameworks, like story lines, scenarios, or scripts awaiting completion through collaboration by

7

players and the receptive approval of the musical community and its audiences. As such, notated works are neither like types nor archetypes, but more closely resemble templates, sketches, outlines, or guides which, when consulted within the bounds of conventional approval, hold promise for workable and working music. If music is that which is made, works are that which is musically workable.

Todavia, tocar uma música respeitando estritamente o que a partitura

comunica faz com que a execução sonora corra sérios riscos de soar mecânica

e sem vida, e é nesse ponto que entra a individualidade do intérprete: o músico

deve ser capaz de acrescentar algo de si à interpretação da obra, tocando a música conforme ele mesmo imagina que ela deva soar. Faz parte do papel do

intérprete conceber a interpretação e a execução de uma obra de um modo

particular e exclusivo, pois é isso que se espera dele.

O intérprete que se enxerga e se coloca como um mediador “imparcial”

entre as ideias do compositor e a percepção do público está, na verdade e em grande medida, anulando-se enquanto um intérprete (no sentido forte desse

termo), pois seu trabalho, nesses casos, corre o risco de se tornar supérfluo, já

que ele não estaria investindo em sua criatividade e autonomia artísticas. No

fundo, acreditar que uma neutralidade desse tipo é possível equivale a crer

numa ilusão, pois a simples noção de “mediação” ou “decodificação” de uma

partitura, por mais neutra ou imparcial que pareça, já representa, em si, uma

espécie de transformação de uma coisa em outra (de texto em som), e esse

processo é sempre um ato único de cada artista. Refletindo sobre essas

questões, Said escreve: [...] o que você tem de ser capaz de fazer é [...] viver a peça tal como ela é, ao mesmo tempo que está, na verdade, apresentando-a como sua. E a pergunta é: qual o grau de distorção permitido e qual o grau de liberdade que se tem? Acho que, de certa forma, é sempre uma questão de fidelidade. Como executante de algo novo ou de algo alheio, você tem um certo senso de lealdade e fidelidade àquela obra, mas também precisa ter o senso de fidelidade a si mesmo, como intérprete. Em outras palavras, esse é o seu jeito particular de fazer música, e você quer convencer os outros de que é o jeito correto. (BARENBOIM & SAID, 2003, p. 69)

Nesse sentido, é importante lembrar o que muitos integrantes da

orquestra me diziam nas entrevistas, uma ideia que poderia ser sintetizada na seguinte frase: a música não existe na dimensão exclusiva da partitura e da

linguagem escrita, ela só se concretiza quando manifestada em âmbitos

sonoros. É nessa mesma linha de raciocínio que Barenboim argumenta:

8

A música é diferente da palavra escrita porque só existe quando se cria o som. Quando Beethoven escreveu a Quinta Sinfonia, ela existia simplesmente como fruto da sua imaginação e estava sujeita a leis físicas que só existiam na cabeça dele. E depois ele usou o único sistema de notação conhecido, que consiste em manchas pretas num papel branco. E ninguém vai me convencer de que aquelas manchas pretas num papel branco são a Quinta Sinfonia. A Quinta Sinfonia só existe quando uma orquestra, em algum lugar do mundo, decide tocá-la. Portanto, a peculiaridade da música reside no fato de que há esse fenômeno do som [...]. (BARENBOIM & SAID, 2003, p. 119)

Produzir esse som, isto é, tocar, já é, em si, um ato direcionado, uma

escolha de um caminho interpretativo dentre muitos possíveis. Não existe

neutralidade na escolha desse caminho, por mais ingênuas ou inconscientes

que pareçam ser tais escolhas. Ter consciência disso, contudo, não garante aos

músicos que eles possam fazer o que bem quiserem a partir das orientações

das partituras. Nem tudo é permitido, como já enfatizado. Na interpretação

musical deve haver um equilíbrio tênue entre obediência e liberdade, respeito e criatividade. Como escreve Godlovitch (1998, p. 84):

Notated works may dominate performances by creating tensions in them. Score-players assume two obligations between which conflicts can arise: to render the work (1) accurately, and (2) creatively, interestingly, imaginatively. Notation fixes many details. Creative playing involves adding novelty and variety to performance. Tensions between the work’s fixity and performance variety complicate the relation between works and performances.

Nesse cenário, a liberdade interpretativa do executante deve ser exercida sempre dentro de certos limites, caso contrário há o sério risco de

descaracterização de uma obra musical, por exemplo. Em casos extremos, um ouvinte não escutaria mais, digamos, a Sonata ao Luar, mas talvez uma releitura

bastante livre que um instrumentista poderia fazer da composição original de

Beethoven. Não que isso, artisticamente, não fosse possível ou permitido: a questão é que, tradicionalmente, isso seria entendido como uma má

performance da grande obra do compositor alemão.

Essa liberdade interpretativa concedida aos músicos (liberdade dentro de

certos limites, reforço), entretanto, varia de acordo com os contextos

performáticos, especialmente no que se refere ao número de músicos que

estejam tocando ao mesmo tempo. Quando toca sozinho, a liberdade criativa do músico é muito maior – na comparação com o ato de tocar coletivamente. Isso

porque o que quer que o músico faça no momento de sua performance solo, ele

9

não estará atrapalhando nenhum outro colega. O intérprete que toca sozinho é

livre até no momento em que está se apresentando, por mais que tenha ensaiado minuciosamente toda a sua exibição ao público.

Em performances coletivas, entretanto, como é o caso das orquestras, as

ações dos músicos devem ser extremamente coordenadas, pois se espera que

os instrumentistas sejam capazes de tocar da maneira mais sincronizada

possível. Essa isonomia é conquistada por meio de vários ensaios, que

possibilitam a solidificação do entrosamento entre todos os instrumentistas.

Como observei em campo, os ensaios da OCTSP – tal como os ensaios de

qualquer outra orquestra de música clássica – eram momentos nos quais os

músicos aprendiam a tocar conjuntamente um determinado número de peças

musicais, e quanto mais uniformizado se tornasse esse aprendizado, melhor

tenderia a ser o produto musical apresentado ao público.

Diante da exigência pela igualdade performática, nas orquestras a liberdade do músico tende a se tornar muito mais reduzida, pois o indivíduo não

pode fazer apenas o que deseja – ao contrário do que ocorre nas performances

solo, onde essa liberdade é bem maior. Nas orquestras, cada instrumentista precisa nivelar-se aos demais. Mas, como as partituras não informam, na

íntegra, todas as ações musicais que os indivíduos devem realizar, é necessária

a criação de acordos sobre a maneira como todos deverão tocar, ou seja, sobre como deverá ocorrer este nivelamento. Na próxima seção, analisarei o modo

como tais acordos são estabelecidos.

4. A orquestra enquanto um espaço hierárquico

Orquestras são ambientes atravessados por hierarquias. Em grupos

desse tipo, cada músico possui seu posto e sua função, ou seja, sua “parcela de poder”. Acima de todos está o maestro, seguido pelo spalla5, os líderes de naipe

e, por fim, os músicos de fila. A tomada de decisões, em coletivos com tal

estrutura, tende a seguir o ordenamento hierárquico: o maestro toma as

decisões gerais e mais importantes, em nome de todos, tanto na condução das

5 O líder dos primeiros violinos.

10

músicas quanto no desempenho dos naipes (que precisam estar ajustados entre

si); os líderes de naipe, por sua vez, tomam decisões em nome dos membros de seu próprio coletivo (o naipe), responsabilizando-se para que todos estejam

integrados no momento de tocar; por fim, os músicos de fila, em tese, não têm

liberdade para tomar decisões em nome de ninguém, a não ser por si próprios –

são eles os que mais “obedecem”, nesse sentido.

Não se deve, contudo, colocar essa estrutura hierárquica acima das

práticas reais e concretas, como se a estrutura comandasse, em todos os casos,

a ação dos indivíduos. A estrutura orienta e norteia, na maioria das vezes, o

papel e o desempenho social e artístico dos músicos, mas há momentos em que

os indivíduos podem subverter a organização de poder, de forma intencional ou

não. Assim, no trabalho de campo eu observei como, muitas vezes, um líder de

naipe podia dar conselhos e sugestões ao maestro, fazendo prevalecer, ao final,

sua opinião. O mesmo poderia ocorrer, por exemplo, entre um músico de fila e seu chefe de naipe. Contudo, não é à toa que a hierarquia aparece como um

forte elemento estruturante do ambiente orquestral: na maioria dos casos, ela

faz valer sua força, como se verá a seguir.

Como já mencionado, as partituras não informam tudo o que os músicos

precisam fazer, e é justamente nesse interstício, nessa lacuna interpretativa, que

entra a liberdade do intérprete. Entretanto, quando tocam juntos, os músicos

não podem, cada um, fazer o que bem querem, pois é preciso haver um mínimo

de coordenação coletiva para que a música possa ser produzida com qualidade.

Nas orquestras, quase sempre quem decide o que será feito e como as coisas

deverão ser realizadas, tendo em vista a hierarquia, é o maestro.

O regente define, por exemplo, em qual andamento será executada uma obra (ou os diferentes trechos de uma obra), qual o volume de cada passagem,

como será construído o fraseado melódico, como ocorrerá o equilíbrio sonoro

entre os diversos naipes etc. O maestro é o líder máximo, o chefe do grupo. As

decisões interpretativas mais importantes sempre passam por suas mãos, pois é justamente isso que se espera que ele faça: ele deve conduzir o grupo6. Essa

condução ocorre tanto nos ensaios quanto nas apresentações (os concertos), e

6 Em inglês, o maestro/regente é chamado de conductor.

11

os músicos precisam estar atentos para cumprir as ordens do maestro no

momento em que este rege, mesmo quando ele decide modificar, de forma espontânea ou improvisada, pequenas coisas no momento de sua performance.

Depois do maestro, os detalhes musicais mais sutis normalmente ficam a

cargo dos líderes de naipe. São estes que tomam decisões do tipo: esta frase

deve ser tocada com o arco para cima ou para baixo? Como executar os

ataques das notas desse trecho da melodia? Qual o dedilhado a ser utilizado

nessa sequência de notas? Tais aspectos, sem dúvida, são igualmente

relevantes para a interpretação musical, mas em certo sentido eles não

possuem, tendo em vista a totalidade de uma obra, o mesmo “peso” que as

decisões tomadas pelo maestro, que visa muito mais o todo que as minúcias

das partes.

Por fim, os músicos de fila, grosso modo, decidem como tocar apenas em

relação a si mesmos, e sempre tendo em vista as diretrizes que recebem daqueles que estão acima, nos postos de comando (maestro e líderes de

naipe). Sua liberdade de ação, nesse sentido, é muito mais restrita. Um músico

de fila que, por exemplo, se rebelasse, discordando do grupo e decidindo fazer

as coisas do seu próprio modo, correria um sério risco de ser mal visto pelos

colegas e pelo maestro. Ele estaria, num sentido radical, colocando-se contra a

essência do que uma orquestra deve ser – um conjunto de músicos que tocam juntos. É por isso que “revoluções” assim raramente acontecem, se é que um

dia já aconteceram. Numa orquestra, os músicos sabem que precisam colaborar entre si para alcançarem a tão almejada homogeneidade interpretativa.

Diante de tudo o que foi exposto, portanto, observa-se como, no contexto

orquestral, o maestro é o músico sobre o qual recai a grande responsabilidade de definir como as músicas deverão ser interpretadas – mas sempre num

diálogo direto com a linguagem musical escrita, isto é, as partituras que

“carregam” e representam as obras. Em outras palavras, é o regente que fixa as

balizas que norteiam o fazer musical de todos os membros da orquestra. Como

autoridade máxima, ele é o intérprete central – apesar de, curiosamente, quase

nunca tocar um instrumento musical no momento de sua atuação. Dando sequência ao que foi exposto, na próxima seção analiso o

problema do erro nas performances musicais, mas sem perder de vista os

12

fatores acima mencionados: a estrutura hierárquica da orquestra e os aspectos

simbólicos e objetivos que caracterizam a interpretação da música clássica – racionalidade, rigor, exatidão, formalidade e objetividade.

5. O problema do erro na performance musical e a busca pela excelência artística Mary Douglas, tratando da impureza no contexto da religião, escreve:

Sujeira [...] não é nunca um acontecimento único, isolado. Onde há sujeira há sistema. Sujeira é um subproduto de uma ordenação e classificação sistemática de coisas, na medida em que a ordem implique rejeitar elementos inapropriados. Esta ideia de sujeira leva-nos diretamente ao campo do simbolismo e promete uma ligação com sistemas mais obviamente simbólicos de pureza. (DOUGLAS, 2014, p. 50)

A música – notadamente a manifestação sonora que interessa na

presente reflexão, a música clássica – pode ser entendida enquanto sistema específico que congrega uma série de elementos ordenados. Todas as

características ou parâmetros do som, no caso da música erudita, passam por

uma estruturação e organização a fim de serem integrados nesse sistema. A

seguir, como forma de ilustrar essa ideia, analiso brevemente três parâmetros

do som que suportam tal sistematização. Em termos acústicos, as alturas dos sons, isto é, suas frequências, por

exemplo, precisam enquadrar-se em certa medição para que sejam consideradas notas musicais específicas – ou seja, notas com nomes

particulares (dó3, fá sustenido4, si bemol5 etc.). É nesse sentido que se diz que

um lá 440 Hz soa como um lá4 perfeitamente afinado7.

Com a duração das notas ocorre o mesmo fenômeno sistematizador. De

acordo com o andamento de uma música, certas notas são consideradas mínimas ou semínimas, outras ganham o nome de colcheias, semicolcheias,

fusas etc., e cada uma precisa respeitar uma determinada duração, que é

sempre proporcional à duração das demais notas. O mesmo ocorre com os

silêncios, que precisam ser minuciosamente mensurados. Pode-se dizer, nesse

7 Este é o lá que fica logo acima do dó central, no piano.

13

sentido, que existe uma racionalidade rítmica na divisão das durações dos sons

e das pausas, assim como ocorre em relação às frequências. Por último, pode-se citar ainda o caso da dinâmica (isto é, os volumes por

meio dos quais as notas são tocadas). Na interpretação de uma música deve

haver uma correlação entre todas as dinâmicas, ainda que este parâmetro não

possua uma medida absoluta a ser sempre seguida pelo intérprete8. Mesmo assim, uma nota forte deve apresentar uma coerência de volume em relação a

uma nota que precise ser tocada piano (fraco, suave), ou seja, é necessário

manter uma proporcionalidade entre essas duas notas e entre elas e todas as

demais.

Esses breves exemplos permitem observar como, no “sistema” da música

erudita (mas não apenas nesse contexto específico, ocidental), os parâmetros

sonoros são metodicamente racionalizados e objetificados, e essa exatidão de

instruções encontra-se especificada, em linguagem escrita, nas partituras. É graças a esse rigor simbólico que os músicos conseguem, com bastante

precisão e fidelidade, interpretar obras que foram compostas há séculos, por

exemplo. Mais do que isso, é graças a essa padronização que eles são capazes

de fazer isso por meio de um entendimento mútuo, quando tocam com outros

músicos – como no caso das orquestras.

As informações contidas nas partituras, portanto, permitem avaliar, em

muitos casos com bastante exatidão, a qualidade de uma performance musical.

Apesar de não indicarem todas as ações que os músicos devem tomar, as

partituras assinalam grande parte delas, e de forma bastante precisa. Assim, se

num compasso que contenha um arpejo de dó maior (formado pelas notas dó,

mi, sol, digamos que nessa ordem), um músico tocar as notas dó, mi, lá, ele

estará cometendo um erro de execução musical. Ninguém discordaria que isso

é, de fato, um erro interpretativo e de execução.

Da mesma forma, se numa música houver um trecho no qual o músico

precise sustentar uma nota lá (440 Hz), e ele produz essa nota de maneira

desafinada (digamos, 430 Hz), não haverá dúvida de que ele também cometeu 8 Já que o intérprete precisa dosar o volume das notas que executa em seu instrumento de acordo com cada circunstância performática: levando em conta o tamanho da sala ou teatro em que está tocando, o número de músicos que estão tocando com ele, os outros instrumentos musicais que estão lhe acompanhando etc.

14

um erro de execução. A afinação, nesse caso, não foi obedecida, o que

possivelmente geraria um atrito com as frequências sonoras das notas emitidas pelos demais instrumentos musicais que estivessem tocando junto com ele,

naquele momento – imaginando, claro, que esses outros instrumentos

estivessem produzindo notas afinadas.

Ninguém espera que, em performances de música erudita, ocorram erros

desse tipo, pois existe uma crença ou expectativa, disseminada social e

culturalmente, no sentido de que os músicos de concerto não podem cometer

erros em suas performances, já que equívocos assim são interpretados como

uma espécie de “poluição”: são “impurezas” (para retornar aos termos de

DOUGLAS, 2014) que maculam ou perturbam a performance de uma obra

musical. Se forem em grande número, erros como os acima mencionados

podem até mesmo descaracterizar completamente a interpretação de uma obra,

que não seria mais reconhecida como tal pelo público, devido às suas excessivas imprecisões.

A interpretação de uma obra musical erudita – ao menos daquelas obras

tradicionais que se inserem no repertório standard, por assim dizer – deve ser o

mais “pura” ou “limpa” possível, isto é, ela deve apresentar o mínimo de

equívocos. Como escreve Douglas (2014, p. 55-56), “impureza ou sujeira é

aquilo que não pode ser incluído, se se quiser manter um padrão”, e o objetivo

musical, nesses casos, é tornar límpidos todos os padrões sonoros.

Nesse sentido, os ensaios orquestrais, como constatei no caso da

OCTSP, poderiam ser definidos como momentos destinados à eliminação do

maior número de erros possíveis. Os ensaios simbolizam uma busca constante

pela purificação da execução instrumental e da interpretação musical: são ocasiões nos quais os músicos atuam no sentido de atingir uma excelência

performática, estágio que, em seu limite utópico, seria completamente isento de

erros. Tal excelência performática é buscada tanto em termos de desempenhos

individuais quanto coletivos – na verdade, nas orquestras os desempenhos individuais precisam estar ajustados aos desempenhos coletivos.

Não se deve imaginar, contudo, que todos os erros musicais possuem o mesmo “peso”. Em outras palavras, nem todos os equívocos performáticos são

capazes prejudicar a audição de uma obra da mesma maneira. Pode-se dizer

15

que há uma “natureza” ou “tipologia” das várias formas de erros, pois eles

podem ser de diversas categorias: dos mais sutis aos mais grosseiros, dos quase imperceptíveis até aqueles que todos notam, dos que não geram maiores

problemas até os que comprometem o trabalho da orquestra inteira. É certo que

todo o músico comete erros ao tocar (por menores que sejam), e, em certo

sentido, nenhuma performance pode ser considerada completamente perfeita.

Entretanto, tal constatação não autoriza os profissionais a negligenciarem seu

trabalho – como se, por ser impossível alcançar a perfeição, não valesse a pena

tentar.

Todavia, como já mencionado, o julgamento sobre o que é certo ou

errado num desempenho musical nem sempre é tão claro e evidente quanto

parece. Existem zonas nebulosas, pontos discutíveis sobre os quais nem todos

os músicos concordariam. Por exemplo: esta peça, assinalada como Allegro,

deve ser tocada num andamento de semínima a 120 (batidas por minuto) ou 130? Esta passagem, marcada como forte, está sendo tocada num volume

correto ou deve ser mais alto? Esta pausa, marcada com uma fermata, deve ser

mais longa ou mais breve? Há aspectos da performance musical que, por mais

que se queira, são impossíveis de serem precisamente definidos graficamente.

A menos que se estabeleça um consenso no momento dos ensaios e da

apresentação – como ocorre nos ensaios orquestrais –, em termos individuais

cada músico corre o risco de fazer as coisas do seu próprio modo.

Além disso, há aspectos da execução musical que parecem estar muito

além da percepção normal de um ser humano. Talvez pouquíssimas pessoas

perceberiam como um erro de execução uma nota lá4, emitida por um músico,

numa frequência de 439 Hz, por exemplo, ao invés dos 440 Hz habituais. Ou se, ao invés de sustentar uma semibreve por quatro segundos, esse instrumentista

sustentasse a nota por 3,9 segundos9. Em casos como esses, o músico certamente estaria dentro de uma zona de tolerância, para usar um termo livre.

Dito de outro modo, tendo em vista os parâmetros ideais, ele estaria muito

próximo de tais referências.

9 Os exemplos poderiam entrar em sutilezas cada vez maiores, é claro.

16

Assim, o problema todo é definir com precisão, musicalmente, onde começa e até onde vai essa zona de acertos, e onde começa (e até onde vai) a

zona dos erros propriamente ditos. Como toda a avaliação humana sobre essas

questões costuma ser bastante subjetiva, os critérios certamente não são

estáticos, mas cambiantes. Possivelmente, músicos que apresentam uma

excelência performática mais elevada possuem um julgamento mais criterioso

sobre tais pontos. Talvez, ao longo da carreira, eles tenham se obrigado, com

mais afinco, a atingir altos níveis de precisão, e essa disciplina os fez menos

tolerantes em relação aos equívocos de execução e interpretação musicais. Por

outro lado, músicos menos criteriosos ou menos exigentes talvez não se sintam

tão compelidos a apresentar performances musicais tão brilhantes em termos de

acurácia e rigor, e por isso seus desempenhos pareçam menos perfeitos em sua

dimensão técnica. Barenboim também reflete um pouco sobre isso: [...] eu acho que a grandeza do intérprete está diretamente ligada à preocupação com o detalhe. A dificuldade está em tratar cada detalhe como se fosse o elemento mais importante e nem por isso perder de vista a peça como um todo. É muito fácil fazer uma coisa ou outra, mas juntar realmente as duas não é fácil. (BARENBOIM & SAID, 2003, p. 67)

Contudo, imaginar um nível ideal de performance nem sempre equivale a

atingir esse nível, já que é necessário um longo processo para se chegar até um

estágio de pleno domínio de si e do instrumento musical. Tocar bem um

instrumento (ou cantar) é algo que demora muito tempo, algo que exige anos e

anos de muita dedicação. Assim, não basta ter consciência de onde se quer

chegar: é preciso trilhar o caminho até esse destino, o que nem todos os

músicos estão dispostos ou mesmo aptos a fazer.

Ainda dentro do tema dos erros em performances musicais, é importante frisar que, no caso das orquestras, isso deve ser relativizado ainda mais. Um

músico, de forma isolada, pode conceber a interpretação de uma peça

orquestral de um certo modo, e quando vai tocar com a orquestra, a mesma

peça pode ser pensada de uma forma ligeiramente diferente pelo maestro, pelo

seu líder de naipe ou por seu colega de estante. Em muitos casos desse tipo,

não se poderia afirmar, de forma categórica, quais das várias concepções musicais estariam corretas ou incorretas, pois sempre haveria certa

subjetividade nos julgamentos. Talvez se pudesse dizer que, num caso

17

hipotético, todas as possibilidades estivessem certas e coerentes, dentro de sua

própria lógica de significação e concepção. Todavia, ao tocar coletivamente, o músico não pode colocar em prática o

seu modo particular de tocar uma determinada peça, caso isso contrarie

demasiadamente as decisões tomadas em nome do grupo, seja pelo regente ou

pelo seu líder de naipe. Assim, mesmo que uma performance individual de um instrumentista pudesse ser compreendida como correta, no contexto orquestral

ela poderia estar errada, pois não combinaria com a performance dos outros

músicos. Na etnografia com a OCTSP, pude observar muitos casos desse tipo.

Os músicos da orquestra precisavam, a todo o instante, ceder em suas

intepretações e concepções musicais – ora tocando as músicas num andamento

mais rápido do que aquele que queriam, ora tocando de forma mais lenta; por

vezes tocando mais forte, por vezes mais piano etc. Eles precisavam

condescender em nome do grupo. Isso permite observar, por sua vez, como o julgamento de performances

musicais individuais sempre depende dos contextos nos quais elas ocorrem. Em

momentos de fazer musical conjunto (no contexto da música erudita), o julgamento passa a ser no sentido de atingir uma coerência coletiva no modo de

tocar, algo que está, em certo sentido, acima da coerência individual (ainda que

esta também precise estar presente). Em performances solo, a exigência se refere apenas à coerência individual – fato que possibilita uma maior liberdade

de atuação do músico.

Na seção seguinte, analiso os impactos dos erros e acertos em

performances musicais (os bons ou maus desempenhos), em âmbitos

psicológicos e práticos, na vida dos músicos. 6. Os impactos da busca pela excelência na atuação musical e no contexto laboral dos músicos de orquestra Um dos aspectos que mais chamou minha atenção no acompanhamento

da atuação dos músicos da OCTSP foi a pouca privacidade da atividade desenvolvida naquele contexto de trabalho. Ao tocar, os instrumentistas podiam

observar a maioria de seus colegas em ação e, de modo contrário, podiam ser

18

observados por eles. Isso era facilitado pela própria disposição espacial dos

músicos, que geralmente sentavam-se em semicírculo, com o maestro ao centro (tal como ocorre na maioria das orquestras de música clássica). Essa pouca

privacidade laboral se fazia sentir não apenas em termos visuais, mas também em termos sonoros e acústicos, pois, além de ver os demais colegas em ação,

os músicos obviamente podiam ouvir o que cada um tocava.

Por vezes, era como se pairasse no ar um clima de controle e avaliação.

Conforme o trabalho de campo se desenvolvia, percebi que, numa orquestra, é

impossível para um músico se esconder ou se omitir, já que todos estão a par

de praticamente tudo que acontece. Um músico não pode se recusar a tocar (ou

fingir que toca), por exemplo, pois mais cedo ou mais tarde seus colegas acabam descobrindo a fraude. Na orquestra, o instrumentista é obrigado a

participar – é para isso que ele está ali, é para isso que é pago. Mas essa

participação nunca é um ato privado: é sempre uma ação desempenhada na presença de todos. Quanto menor o grupo, mais exposto fica o músico, ou seja,

menos ele pode se omitir em suas ações musicais. Como a OCTSP era uma

orquestra relativamente pequena (com cerca de vinte músicos, em alguns

concertos até menos que isso), evidenciava-se sobremaneira essa grande

necessidade de participação individual.

Tal exigência de atuação, somada ao tamanho reduzido do grupo,

portanto, eram fatores que elevavam a pressão psicológica que cada músico

experimentava no sentido de ter que cumprir satisfatoriamente o papel e a

função que lhe cabia na orquestra. Em outras palavras, havia sempre um certo

“medo de errar” – medo esse que era menor nos ensaios, mas mais acentuado

nas apresentações. Os músicos se referiam a isso, nas entrevistas, como medo

de palco – um receio de apresentar-se em público.

Tocar ao vivo, seguindo as orientações das partituras e os acordos

estilísticos estabelecidos coletivamente, pode ser interpretado como um ato de

colocar-se à prova, submetendo-se à avaliação dos demais colegas de profissão

e do público. Em ambientes de trabalho coletivos como são as orquestras, tais

aspectos avaliativos sobressaem-se na medida em que estes são contextos laborais marcados por um forte senso de disciplina e por uma necessidade de

cumprir metas. Os músicos de orquestra são obrigados a apresentar boas

19

performances musicais, pois existe uma expectativa real para que eles atinjam

certos níveis de desempenhos artísticos e laborais em espaços curtos de tempo. Essa necessidade impõe limites abaixo dos quais ninguém deseja ficar – pois

sempre há o risco de ser visto pelos outros como incompetente ou incapaz, ou

mesmo de perder a chance de integrar o grupo.

Como mencionado no início desse texto, a OCTSP é uma orquestra

mantida somente com capital privado, e sua atuação depende da captação de

recursos externos para a realização dos concertos. Essa condição econômica

fazia com que os membros da orquestra fossem pagos dentro do sistema de

cachês – ou seja, eles recebiam de acordo com a participação em cada

concerto10.

Assim, para um instrumentista, apresentar um serviço musical de baixa

qualidade poderia implicar a suspensão de novos contratos para tocar com o

conjunto. Em outras palavras, havia uma pressão (ainda que implícita e latente), que era tanto simbólica e psicológica quanto real e concreta, no sentido de que

os instrumentistas tocassem de forma competente e com qualidade, caso

contrário havia o risco eminente de desligamento do grupo e de perda de uma

boa oportunidade de atuação laboral11.

Entretanto, a pressão para bons desempenhos musicais não se distribuía

de forma equitativa entre todos os membros da orquestra. Em outras palavras,

havia indivíduos que se sentiam mais pressionados que outros, ainda que todos

devessem, por princípio, apresentar boas performances musicais, tanto em

ensaios quanto em concertos. A observação participante permitiu deduzir uma regra geral nesse sentido: quanto mais elevado fosse o posto e o status de um

músico na orquestra, maior seria o nível de exigência que ele sofreria do meio interno (o próprio grupo) e externo (o público), mas também maior era a

cobrança que ele poderia exercer sobre os demais colegas.

O maestro, por exemplo, era o músico mais visado, avaliado e julgado,

mas também era aquele que exercia um maior poder de avaliação e julgamento

sobre os demais. Ele era o indivíduo que tomava as principais decisões em 10 As implicações dessa condição para os músicos, em termos trabalhistas, sociais e psicológicos, foram exploradas por mim e por meu orientador em Bartz & Oliven (2019). 11 Essa condição “cruel” do artista – não apenas do músico –, a incerteza que marca sua atuação profissional, também é tema de reflexão para Menger (1999, 2005).

20

nome do grupo, e não era à toa que seu posicionamento espacial denunciava seu status elevado – o regente se postava sempre ao centro e à frente da

orquestra, onde todos pudessem lhe ver.

Ninguém imaginava que, num concerto, o maestro pudesse cometer um

erro grave, pois isso poderia resultar num prejuízo fatal para o desempenho da

orquestra, durante um concerto ao vivo. Por outro lado, seria mais “desculpável”

se um músico de fila cometesse algum equívoco, já que isso dificilmente

atrapalharia o desempenho geral do grupo.

Isso porque, no caso do músico de fila, seu naipe sempre estaria lhe

dando cobertura: onde, num naipe com cinco integrantes, por exemplo, um

músico comete um erro no exato momento em que os outros quatro acertam, a

tendência é que a imprecisão sonora acabe ofuscada pelos acertos da maioria.

Não que esse erro não seja notado pelos outros músicos, pelo maestro ou

mesmo pelo público, mas é um equívoco que não possui o mesmo “peso” que um deslize do regente, que pode comprometer o desempenho do conjunto

inteiro.

Assim, a etnografia permitiu afirmar que, quanto mais elevado fosse o

cargo de um músico na orquestra, mais responsabilidades ele teria, e mais se

esperaria dele em termos de um bom desempenho musical. Os músicos mais

proeminentes, isto é, aqueles com mais visibilidade, eram os que sentiam uma

obrigação mais forte no sentido de não poder errar enquanto tocavam. Por outro

lado, depositava-se uma expectativa menos acentuada sobre os músicos

situados em postos menos distintos da orquestra. Desse modo, a pesquisa possibilitou compreender de que forma categorias como grau de exposição e

expectativa por um bom desempenho musical apareciam diretamente

associadas. Acredito que essas observações podem ser generalizadas para o

contexto laboral e artístico de outras orquestras.

Por fim, para concluir essa seção, é importante ressaltar que a pressão

que os músicos sentiam no sentido de realizarem bons desempenhos musicais

apresentava dois vieses, um positivo e outro negativo. Em primeiro lugar, em

termos artísticos essa cobrança era benéfica porque contribuía para elevar a qualidade do trabalho coletivo: um músico dificilmente se sentia bem estando

21

abaixo do nível de desempenho de seus colegas, e isso o obrigava a se

empenhar mais. A atividade musical sempre envolve a ideia de comparação (mesmo

quando o músico toca sozinho12). Os instrumentistas se comparam quando

tocam juntos, e frequentemente conseguem perceber se estão abaixo ou acima

do nível de desempenho dos outros colegas. Isso, por sua vez, também remete à noção de competição – que pode ser vista como a tentativa que um músico

empreende para tocar melhor que outro músico, ou melhor que qualquer outro

instrumentista que esteja presente num determinado contexto coletivo de fazer

musical.

Dito de modo resumido, a comparação e a competição são fatores que,

apesar de por vezes apresentarem uma carga negativa dentro dos mundos

artísticos (que diferem bastante do universo esportivo, por exemplo, onde essas

noções estão muito mais arraigadas), contribuem diretamente para o incremento do nível dos desempenhos individuais e coletivos, especialmente no âmbito das

artes performáticas, como é o caso da música erudita.

Por outro lado, a pressão constante por um bom desempenho musical

pode ser nociva em termos emocionais e psicológicos para certos indivíduos,

especialmente para aqueles que se encontram musicalmente menos preparados

no domínio de uma peça musical, ou que estejam num nível técnico claramente

abaixo do nível de outros colegas da orquestra. Em situações desse tipo, esses

músicos podem se sentir estressados e incapacitados, ainda mais quando

percebem que estão inseridos num ambiente no qual a avaliação e o controle

são permanentes.

Na próxima seção, traço um paralelo entre o problema dos erros e acertos em performances musicais e os sentimentos positivos e negativos que isso tende a despertar nos músicos, tanto num nível mínimo (micro) quanto num

nível máximo (macro), considerando os aspectos pontuais e globais das

performances musicais.

12 O músico pode se comparar, em pensamento, com outros músicos ou até consigo mesmo, avaliando o quanto evoluiu em seu próprio desempenho musical – tendo em vista, por exemplo, um determinado período de tempo de estudos (horas, dias, semanas, meses, anos etc.).

22

7. Os erros e os acertos de execução musical e sua relação com os aspectos psicológicos e emocionais

Uma performance musical, no contexto da música clássica, pode gerar

duas situações opostas, dependendo dos resultados alcançados pelos

executantes. Caso a performance saia de acordo com o planejado, o sentimento

que o músico experimenta tende a ser positivo: o artista sente um prazer ou

deleite que reforça seu valor enquanto indivíduo e artista. Contudo, se durante

uma atuação musical ocorrem problemas (os erros de interpretação e execução

instrumental, por exemplo), a sensação, ao final, costuma ser negativa: um

sentimento de trabalho mal feito, de incompetência, incapacidade etc.

É claro que essas sensações não costumam aparecer de forma

completamente isolada. Muitas vezes, o músico experimenta, após uma

performance, um misto de contentamento e desapontamento, de satisfação e decepção. O artista é capaz de perceber onde foi bem e onde poderia ter ido

melhor em seu desempenho musical. Desse modo, a fim de esmiuçar as

complexidades inerentes à atuação do músico erudito, bem como os

sentimentos vinculados ao seu sucesso ou insucesso experimentados durante e

depois das performances, proponho alguns conceitos que buscam aclarar e

nuançar tais rendimentos musicais.

Em primeiro lugar, é possível pensar a atuação do músico a partir de dois níveis: primeiro, num plano microscópico, que diz respeito aos pequenos

instantes temporais das peças musicais. Nesse primeiro estágio, o foco está nas

notas ou, no máximo, nos breves instantes que constituem as frases e períodos

musicais. Nesse nível micro, o músico, ao tocar, a cada momento realiza um julgamento pessoal sobre como está realizando seu desempenho – avaliando,

rapidamente, se está indo bem ou mal em sua atuação. O segundo nível, macroscópico, corresponde a uma impressão geral

sobre sua performance como um todo, seja a interpretação de uma única peça

ou um conjunto de peças musicais. Nesse segundo estágio, o artista faz um

balanço de seu desempenho, avaliando, a partir das instâncias “micro” acima mencionadas, se conseguiu cumprir adequadamente suas expectativas e

objetivos.

23

Seguindo a mesma linha de raciocínio, é possível teorizar que, durante uma performance, o intérprete transita por uma série de microssatisfações e

microinsatisfações que, somadas, resultam em macrossatisfações ou

macroinsatisfações. Esses conceitos – considerando as sutilezas que conduzem

de um nível ao outro – permitem aclarar a relação observada entre o ato de

tocar e as sensações e emoções que resultam de tal processo, incluindo nessa

equação o problema dos erros e acertos nos desempenhos musicais.

Ofereço tais conceitos com o objetivo de relacionar a qualidade de uma

performance musical com os sentimentos que esse desempenho desperta no

artista. Uma coisa está sempre diretamente vinculada à outra. Pode-se imaginar

uma situação na qual um músico comece a cometer erros enquanto toca, o que

lhe gera um sentimento de frustração, que por sua vez lhe faz errar ainda mais,

fato que lhe gera mais decepção e desespero, e assim por diante. Aqui, erros

performáticos ocasionam sensações ruins e vice-versa, num processo retroalimentativo. Mas o contrário também é possível: acertos consecutivos

podem estimular boas sensações, que podem fazer com que o músico continue

acertando, conforme adquire confiança e segurança.

É claro que uma performance nem sempre apresenta, necessariamente,

apenas um ou outro desses dois cenários. Frequentemente o que ocorre é uma

alternância de ambos. Quando as coisas começam a não ir tão bem, cabe ao

músico ter a presença de espírito de concentrar-se para “voltar” ao seu estágio

normal, retomando sua confiança enquanto continua tocando. Às vezes, esses

instantes de descuido podem ser tão rápidos que praticamente ninguém

percebe; outras vezes, porém, para desgraça do músico, podem ser momentos

tão longos que parecem, psicologicamente, durar horas ao invés de segundos. 8. Conclusão

Em resumo, neste trabalho procurei refletir sobre certas particularidades

da performance da música erudita, tomando como material empírico a

observação que realizei sobre a atuação dos músicos da OCTSP, grupo que foi etnografado por mim entre dezembro de 2016 e agosto de 2017. Entendendo

essa performance musical principalmente a partir de sua dimensão racional e

24

objetiva, representada pelo rigor das informações contidas nas partituras,

considerei o problema dos erros e dos acertos nos desempenhos musicais, mostrando que a fronteira que separa uma categoria da outra nem sempre é

muito definida. Por fim, procurei vincular esses aspectos com o campo das

emoções, teorizando, por meio de conceitos, sobre como poderiam ser

pensadas as sensações e sentimentos (positivos e negativos) experimentados

pelo intérprete no momento em que este realiza sua performance.

Referências BARENBOIM, Daniel; SAID, Edward W. Paralelos e paradoxos: reflexões sobre

música e sociedade. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.

BARTZ, Guilherme Furtado; OLIVEN, Ruben George. Como o trabalho flexível

afeta os músicos eruditos? O caso da Orquestra de Câmara Theatro São Pedro

de Porto Alegre. Sociol. Antropol., Rio de Janeiro, v. 9, n. 1, p. 135-158, 2019.

Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2238-38752019000100135&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 11 de setembro de 2019.

DOUGLAS, Mary. Pureza e Perigo. São Paulo: Perspectiva, 2014.

GODLOVITCH, Stan. Musical Performance. A Philosophical Study. Londres:

Routledge, 1998.

KARPOWICZ, Alexandre Prinzler. Gestão econômica da criatividade: a

influência dos ambientes organizacionais de orquestras sobre o trabalho dos

músicos eruditos. 37º Encontro Anual da ANPOCS, 2013.

_______. Ensaios Abertos: Estudo sobre a gestão econômica da criatividade em

ambientes organizacionais de orquestras no contexto da economia criativa.

Porto Alegre: Dissertação de Mestrado (Universidade Federal do Rio Grande do

Sul, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Programa de Pós-Graduação em

Sociologia), 2014.

LEHMANN, Bernard. O avesso da harmonia. In: Debates – Cadernos do

Programa de Pós-Graduação em Música, Centro de Letras e Artes, UNIRIO. Rio

25

de Janeiro: UNIRIO, 1998. Disponível em:

<http://www.seer.unirio.br/index.php/revistadebates/article/view/4208>. Acesso em: 11 de setembro de 2019.

_______. L’orchestre dans tous sés éclats: ethnographie des formations

symphoniques. Paris: Éditions La Découverte, 2002.

MENGER, Pierre-Michel. Artistic Labor Markets and Careers. In: Annual Review

of Sociology, Vol. 25, p. 541-574, 1999.

_______. Retrato do artista enquanto trabalhador: metamorfoses do capitalismo.

Lisboa: Roma Editora, 2005.

PICHONERI, Dilma Fabri Marão. Músicos de orquestra: um estudo sobre

educação e trabalho no campo das artes. Campinas: Dissertação de Mestrado

(Universidade Estadual de Campinas – Faculdade de Educação), 2005.

_______. Relações de trabalho em música: a desestabilização da harmonia.

Campinas: Tese de Doutorado (Universidade Estadual de Campinas –

Faculdade de Educação), 2011.

SEGNINI, Lilian Rolfsen Petrilli. O que permanece quando tudo muda?

Precariedade e vulnerabilidade do trabalho na perspectiva sociológica. In:

Salvador, Caderno CRH, v. 24, n. esp. 01, p. 69-86, 2011.

_______. Os músicos e seu trabalho: diferenças de gênero e raça. São Paulo:

Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 26, n. 1, p. 75-86, 2014.

TEPERMAN, Ricardo Indig. Concerto e desconcerto: um estudo antropológico

sobre a OSESP na inauguração da Sala São Paulo. São Paulo: Tese de

Doutorado (Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade

de São Paulo – Departamento de Antropologia), 2016.