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RGINE PERNOUD LUZ SOBRE A IDADE MDIA PUBLICAES EUROPA-AMERICA http://saomiguel.webng.com/

NDICE Pg.

Introduo Captulo I Captulo Captulo III Captulo IV Captulo V Captulo VI Captulo VII VHI Captulo IX Captulo X Captulo XI Captulo XII CaptuloXIII A organizao social II a rural A vida urbana A realeza A s relaes internacionais A Igreja O ensino As le A s artes A s cincias A vida quotidiana A mentalidade medieval 9 13 27 37 47 61 71 81 95 107 143 155 161 193 201 207 vnculo feudal Pequeno dicionrio da Idade Mdia tradicional Bibliografia

INTRODUO Fazer livros um trabalho sem fim, dizia o Eclesiastes, no tempo em que a Bblia se c hamava Vulgata. um pouco o sentimento do autor considerando a presente obra quas e a quarenta anos de distncia ... Trabalho sem fim. Este tinha sido empreendido a lguns anos aps a minha sada da cole des Chartes, na fascinao de uma descoberta ainda completamente nova. Para mim, com efeito, como para toda a gente, no fim dos est udos secundrios e de uma licenciatura clssica, a Idade Mdia era uma poca de trevas. am-nos, tanto em literatura como em histria, de um slido arsenal de juzos prefabric ados que nos levavam pura e simplesmente a declarar ingnuos os auditores de So Toms de Aquino e brbaros os construtores do Thoronet. Nada nesses sculos obscuros que valesse a pena de algum se deter neles. Por isso no deixou de ser com um sentiment o de resignao que abordei uma escola destinada nas minhas intenes a abrir-me uma car reira de bibliotecria. E eis que se me abriu uma janela para um outro mundo. E qu e aps pouco mais de trs anos de cursos pontuados muitas vezes, preciso diz-lo, por c rises de sono irreprimvel, quando se tratava, por exemplo, de biblioteconomia ou de arquivstica esses tempos a que chamamos obscuros me apareciam numa luz insuspeitve l. O mrito da escola era de nos colocar de repente em face dos prprios materiais d a histria. Nenhuma literatura, muito pouca importncia dada s opinies emitidas por pro essores, mas uma exigncia rigorosa perante textos ou monumentos da poca tomados no sentido mais lato. ramos levados, em suma, a ser tcnicos da histria, e isso era ma is frtil que as diversas filosofias da mesma histria que tnhamos tido ocasio de abor dar anteriormente. No terceiro ano, sobretudo, a arqueologia e mais ainda a histr ia do direito, ensinada por esse mestre que foi Roger Grand, faziam-nos penetrar numa sociedade nas suas estruturas profundas como na sua expresso artstica; revlav am-nos um passado aflorando ainda o presente, um mundo que tinha visto apagar-se o lirismo, nascer a literatura romanesca e

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erguerem-se Chartres e Reims; a identificar uma esttua aps outra, descobramos perso nagens de uma grande humanidade; a folhear cartas ou manuscritos tomvamos conscinc ia de uma harmonia da qual cada sinete, cada linha traada, cada paginao pareciam de ter o segredo. Tanto assim que, pouco a pouco, uma pergunta nascia, a qual, em t empos demasiado difceis para deixar lugar para a contestao, mal ousvamos formular: p or que razo nada nos tinha nunca deixado pressentir tudo isso? Por que razo esses programas que nunca nos faziam entrever seno um grande vazio entre o sculo de Augu sto e o Renascimento? Por que razo tnhamos de adoptar sem discusso a opinio de um Bo ileau sobre os sculos grosseiros e acolher apenas com um sorriso indulgente a dos r omnticos sobre a floresta gtica? A presente obra nasceu destas interrogaes e de uma srie de outras semelhantes. E parece que hoje toda a gente as colocaria. Mas nem mesmo essa a questo. Como entretanto comearam a viajar, os Franceses, como toda a gente, aprenderam a ver. Uma cultura latente que faltava completamente na minha juventude, em que a Cultura era ainda apangio de uma sociedade muito restrita, difu ndiu-se. E se no chegmos ainda ao ponto de viajar tanto como os Anglo-Saxes, ou de ler tanto como os Irlandeses, o nvel geral, sobretudo de h vinte e cinco anos para c, contrariamente a tantos clamores pessimistas, parece-nos ter-se consideravelm ente elevado. Tanto assim, que um pouco por toda a parte comea-se a saber discern ir no nosso meio aquilo que merece ser admirado. Vai passar a sua vida a reescrev er essa obra, tinha-me dito, quando do seu aparecimento, Lon Gischia; e essa segur ana, vinda de um pintor que eu admirava profundamente, ele prprio muito informado sobre as diversas formas de arte da nossa Idade Mdia, tinhame tocado. De facto, el e tinha razo. Todos os meus trabalhos iam ser consagrados a estudar, aprofundar, esclarecer os caminhos aqui abertos ou entrevistos, a tentar uma explorao mais com pleta, a querer faz-la partilhar tambm por um pblico muito pronto para manifestar a sua curiosidade de esprito; isto sobretudo, notemo-lo, fora dos meios tradiciona lmente votados cultura clssica e a ela s. A propsito desta reedio, trinta e cinco an s exactamente aps o seu aparecimento, punha-se a questo de rejuvenescer ou no a obr a. Feita a reflexo, deixamo-la tal como foi escrita. Os leitores esto hoje aptos a cobrir as suas eventuais lacunas, graas a coleces como a de Zodaco sobre a arte roma a ou como os Cahiers de

civilisation mdivale; ou ainda graas a esses estudos to honestos, to trabalhados, de Reto Bezzola, de Pierre Rich, de Paul Zumthor, de Lopold Gnicot e de inmeros erudito s americanos, Lynn White e tantos outros. No deixaremos de notar aqui e alm alguma s aproximaes. Assim, reproduzi bastante inocentemente o que me ensinaram relativo a o esquecimento da escultura at poca romana e gtica; os pintores do nosso tempo corri giram de certa maneira a nossa viso e fizeram-nos compreender que os pintores de fescos romanos no estavam espera de um Matisse para obedecer s leis da perspectiva. Ou so ainda erros de detalhe: Abelardo nunca ensinou em Argenteuil; mas hoje j se sabe mais sobre ele. Teramos querido rectificar do mesmo modo, aqui e alm, impreci ses, detalhes que fazem poca, eptetos intempestivos, juzos um pouco peremptrios: cul da juventude; mas ao suprimi-los correria o risco de suprimir tambm um certo ferv ilhar de entusiasmo devido a essa mesma juventude. Podemos invocar para ela a in dulgncia do leitor. Essa mesma indulgncia que me manifestou, na primeira vez que f ranqueei, muito intimidada, a porta das edies Grassei, o querido Henry Poulaille, ento director do servio literrio. A despeito das suas imperfeies, esta obra pode apre sentar para outros uma iniciao um pouco comparvel que recebi na velha casa do n. 19 da Rue de la Sorbonne. * Seria encetar um outro captulo sem dvida o mais importante dizer todo o reconhec imento que sinto para com todos os que inspiraram, acolheram, encorajaram esta o

bra e me forneceram a sua matria ou a sua forma. Recuando no tempo, haveria em pr imeiro lugar os que aconselharam ou quiseram esta reedio: Christian de Bartillat, das edies Stock, ou Franoise Verny, das edies Grassei. E alm deles, tantos eruditos, estres ou colegas. Apreciamos melhor, quand le jour baissc aux fentres et que se t aisent les chansortb- ', o alcance do qu'as-tu que tu ne 1'aies reu? 2 ( 1 ) Quando o dia declina sob as Janelas e se calam as canOes. (N. do R. ) ( 2 ) Que adquiriste tu que no tenhas recebido? (N. do R.)

]2 RGINE PERNOUD [...] esses tempos a quem chamam obscuros. (Miguel de UNAMUNO) Mas, em primeiro lugar e para alm do mais, houve como ponto de partida para esta obra, o conselho e a opimao do meu irmo Georges (Se tudo o que nos contas sobre a Idade Mdia e exacto, escreve-o- ningum o sabe), e, por consequncia, todas as outra s minhas obras tero sido inspiradas, guiadas, revistas postas em pratica por aque le que, atento obra dos outros a ponto de negligenciar por isso a sua prpria obra , conhece hoje a Luz para alm de toda a luz. 2 de Fevereiro de 1981.

CAPITULO I A ORGANIZAO SOCIAL Julgou-se durante muito tempo que bastava, para expl icar a sociedade medieval, recorrer clssica diviso em trs ordens: clero, nobreza e terceiro estado. a noo que do ainda os manuais de histria: trs categorias de indivd , bem definidas, tendo cada uma as suas atribuies prprias e nitidamente separadas u mas das outras. Nada est mais afastado da realidade histrica. A diviso em trs classe s pode aplicar-se ao Antigo Regime, aos sculos x v n e xvm, onde, efectivamente, as diferentes camadas da sociedade formaram ordens distintas, cujas prerrogativa s e relaes do conta do mecanismo da vida. No que concerne Idade Mdia, semelhante div iso superficial: explica o agrupamento, a repartio e distribuio das foras, mas nada vela sobre a sua origem, sobre a sua jurisdio, sobre a estrutura profunda da socie dade. Tal como aparece nos textos jurdicos, literrios e outros, esta bem uma hiera rquia, comportando uma ordem determinada, mas esta ordem outra que no a que se ju lgou, e partida muito mais diversa. Nos actos notariais, v-se correntemente o sen hor de um condado, o cura de uma parquia aparecerem como testemunhas em transaces e ntre vilo, c corte 1 de um baro quer dizer, o seu meio, os seus familiares comport a tantos servos e frades como altas personagens. As atribuies destas classes esto t ambm estreitamente misturadas: a maior parte dos bispos so igualmente senhores; or a muitos deles saem do povo mido; um burgus que compra uma terra nobre torna-se, e m certas regies, ele prprio nobre. Logo que abandonamos os manuais para mergulhar nos textos, esta noo das trs classes da sociedade aparece-nos como fictcia e sumria. is prxima da verdade, a diviso em privilegiados e no privilegiados permanece, ela t ambm, incompleta, porque houve, na Idade Mdia, privilegiados da alta mais baixa es cala social. O mais pequeno aprendiz , a determinados nveis, um privilegiado, pois participa dos privilgios do corpo de ofcio; as isenes da Univer( 1 ) Mesnada o term o correspondente entre ns, mas de sentido diferente, englobando uni companheirism o guerreiro. (N. do R.)

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sidade aproveitam tanto aos estudantes e mesmo aos seus criados como aos mestres e aos doutores. Alguns grupos de servos rurais gozam de privilgios precisos que o seu senhor obrigado a respeitar. No considerar, como privilgios, seno os da nobre za e do clero, conceder uma noo completamente errnea da ordem social. Para compreen der bem a sociedade medieval, necessrio estudar a sua organizao familiar. A se encon tra a chave da Idade Mdia e tambm a sua originalidade. Todas as relaes, nessa poca, estabelecem sobre a estrutura familiar: tanto as de senhor-vassalo como as de me stre-aprendiz. A vida rural, a histria do nosso solo, no se explicam seno pelo regi me das famlias que a viveram. Queria-se avaliar a importncia de uma aldeia? Contava -se o nmero de fogos e no o nmero de indivduos que a compunham. Na legislao, nos co s, todas as disposies tomadas dizem respeito aos bens de famlia, ao interesse da li nhagem, ou, estendendo esta noo familiar a um crculo mais importante, ao interesse do grupo, do corpo de ofcio, que no seno uma vasta famlia fundada sobre o mesmo mode lo que a clula familiar propriamente dita. Os altos bares so antes de tudo pais de famlia, agrupando sua volta todos os seres que, pelo seu nascimento, fazem parte do domnio patrimonial; as suas lutas so querelas de famlia, nas quais toma parte to da essa corte, a qual tm o cargo de defender e de administrar. A histria da feudal idade no outra seno a das principais linhagens. E que ser, no fim de contas, a histr ia do poder real do sculo x ao sculo xiv? A de uma linhagem, que se estabelece graa s sua fama de coragem, ao valor de que os seus antepassados tinham feito prova: muito mais que um homem, uma famlia que os bares colocaram sua cabea; na pecsoa de Hugo Capeto viam o descendente de Roberto, o Forte, que tinha defendido a regio c ontra os invasores normandos, de Hugo, o Grande, que tinha j usado a coroa; facto que transparece no famoso discurso de Adalbron de Reims: Tomai por chefe o duque dos Francos, glorioso pelas suas aces, pela sua famlia e pelos seus homens, o duque em quem encontrareis um tutor no s dos negcios pblicos, mas dos vossos negcios priva dos. Esta linhagem manteve-se no trono por hereditariedade, de pai para filhos, e viu os seus domnios crescerem por heranas e por casamentos, muito mais que por co nquistas: histria que se repete milhares de vezes na nossa terra, a diversos nveis , e que decidiu uma vez por todas os destinos da Frana, fixando na sua terra linh agens de camponeses e de artesos, cuja persistncia atravs dos reveses dos tempos cr iou realmente a nossa nao. Na base da energia francesa h a famlia, tal como a Idade M a a compreendeu e conheceu.

No poderamos apreender melhor a importncia desta base familiar que opondo, por exem plo, a sociedade medieval, comporta de famlias, sociedade antiga, composta de ind ivduos. Nesta, o homem, vir, detm a primazia em tudo; na vida pblica ele o civis, o cidado, que vota, que faz as leis e toma parte nos negcios de Estado; na vida pri vada, o pater famlias, o proprietrio de um bem que lhe pertence pessoalmente, do q ual o nico responsvel e sobre o qual as suas atribuies so quase ilimitadas. Em parte alguma se v a sua famlia ou a sua linhagem participando na sua actividade. A mulhe r e os filhos esto-lhe inteiramente submetidos e permanecem em relao a ele em estad o de menoridade perptua; tem sobre eles, como sobre os escravos ou sobre as propr iedades, o jus utendi et abutendi, o poder de usar e abusar. A famlia parece no ex istir seno em estado latente; no vive seno pela personalidade do pai, simultaneamen te chefe militar e grande sacerdote; isto com todas as consequncias morais que da decorrem, entre as quais preciso colocar o infanticdio legal. A criana de resto na Antiguidade a grande sacrificada: um objecto cuja vida depende do juzo ou do cap richo paternal; est submetido a todas as eventualidades da troca ou da adopo, e, qu ando o direito de vida lhe acordado, permanece sob a autoridade do pater famlias at morte deste; mesmo ento no adquire de pleno direito a herana paterna, j que o pai pode dispor vontade dos seus bens por testamento; quando o Estado se ocupa desta

criana no de todo para intervir a favor de um ser frgil, mas para realizar a educao do futuro soldado e do futuro cidado. Nada subsiste desta concepo na nossa Idade Mdi a. O que importa ento j no o homem, mas a linhagem. Poderamos estudar a Antiguidade e estudamo-la de facto sob a forma de biografias individuais: a histria de Roma a de Sila, de Pompeu, de Augusto; a conquista dos Gauleses a histria de Jlio Csar. A bordar-se a Idade Mdia? Uma mudana de mtodo impe-se: a histria da unidade francesa a da linhagem capetiana; a conquista da Siclia a histria dos descendentes de uma faml ia normanda, demasiado numerosa para o seu patrimnio. Para compreender bem a Idad e Mdia, preciso v-la na sua continuidade, no seu conjunto. talvez por isso que ela muito menos conhecida e muito mais difcil de estudar que o perodo antigo, porque necessrio apreend-la na sua complexidade, segui-la na continuidade do tempo, atravs dessas cortes que so a sua trama; e no apenas as que deixaram um nome pelo brilho dos seus feitos ou pela importncia do seu domnio, mas tambm as gentes mais humilde s, das cidades e dos campos, que preciso conhecer na sua vida familiar se quiser mos dar conta do que foi a sociedade medieval.

16 RG1NE PERNO LUZ SOBRE A IDADE MDIA 7 O que, alis, se explica: durante esse perodo de perturbaes e de decomposio total que oi a Alta Idade Mdia, a nica fonte de unidade, a nica fora que permaneceu viva, foi precisamente o ncleo familiar, a partir do qual se constituiu pouco a pouco a uni dade francesa. A famlia e a sua base fundiria foram assim, devido s circunstncias, o ponto de partida da nossa nao. Esta importncia dada famlia traduz-se por uma prepon derncia, muito marcada na Idade Mdia, da vida privada sobre a vida pblica. Em Roma, um homem no tem valor seno enquanto exerce os seus direitos de cidado: enquanto vo ta, delibera e participa nos negcios do Estado; as lutas da plebe para obter o di reito de ser representada por um tribuno so a este nvel bastante significativas. N a Idade Mdia, raramente se trata de negcios pblicos: ou melhor, estes tomam logo o aspecto de uma administrao familiar; so contas de domnio, regulamentos de rendeiros e de proprietrios; mesmo quando os burgueses, no momento da formao das comunas, rec lamam direitos polticos, para poderem exercer livremente o seu ofcio, no serem mais incomodados pelas portagem e pelos direitos de alfndega; a actividade poltica, em si, no apresenta interesse para eles. De resto, a vida rural ento infinitamente m ais activa que a vida urbana, e, tanto numa como noutra, a famlia, no o indivduo, q uem prevalece como unidade social. Tal como nos aparece no sculo X, a sociedade a ssim compreendida apresenta como trao essencial a noo de solidariedade familiar sada dos costumes brbaros, germnicos ou nrdicos. A famlia considerada como um corpo, em todos os membros do qual circula um mesmo sangue, ou como um mundo reduzido, des empenhando cada ser o seu papel com a conscincia de fazer parte de um todo. A unio no repousa, pois, como na antiguidade romana, sobre a concepo estatista da autorid ade do seu chefe, mas sobre esse facto de ordem biolgica e moral, ao mesmo tempo, de acordo com o qual todos os indivduos que compem uma mesma famlia esto unidos pel a carne e pelo sangue, os seus interesses so solidrios, e nada mais respeitvel que a afeio que naturalmente os anima uns para com os outros. Tem-se muito vivo o sent ido desse carcter comum dos seres de uma mesma famlia: Les gentils fils des gertii ls pres Des gentils et des bonnes mres lis ne font pas de pesants heires [hoirs, hr itiers]

diz um autor do tempo. Aqueles que vivem debaixo de um mesmo tecto, que cultivam o mesmo campo e que se aquecem no mesmo fogo, ou, para empregar a linguagem do tempo, os que participam do mesmo po e pote 3, que cortam a mesma cdea, sabem que pod m contar uns com os outros, que o apoio da sua corte no lhes faltar. O esprito de g rupo , com efeito, mais potente aqui do que poderia ser em qualquer outro agrupam ento, j que se funda sobre os laos inegveis do parentesco pelo sangue e se apoia so bre uma comunidade de interesses no menos visvel e evidente. O autor de quem foi c itado o extracto precedente, tienne de Fougres, protesta no seu Livre des Manires [ Livro das Maneiras] contra o nepotismo dos bispos; todavia, reconhece que estes fariam bem em rodear-se dos seus parentes se esto de boas relae., pois, diz ele, nunc a podemos ter a certeza da fidelidade dos estranhos, enquanto os nossos, pelo me nos, no nos faltaro. Partilha-se, pois, as alegrias e os sofrimentos; recolhe-se e m casa os filhos daqueles que morreram ou esto em d;ficuldades, e todas as pessoa s de uma mesma casa se agitam para desagravar 4 a injria feita a um dos seu~> mem bros. O direito de guerra privada, reconhecido durante grande parte da Idade Mdia , no seno a expresso da solidariedade familiar. Correspondia, no seu inc:o, a uma ne cessidade: quando da fraqueza do poder central, o indivduo no podia contar com qua lquer outra ajuda a no ser a da corte para o defender, e durante toda a poca das i nvases ficaria entregue, sozinho, a toda a e pcie de perigos e de misrias. Para viv er era preciso fazer frente, agrupar-se e que grupo valeria alguma vez mais que

uma famlia resolutamente unida? A solidariedade familiar, exprimindo-se se fosse preciso pelo recurso s armas, resolvia ento o difcil problema da segurana pessoal e da do domnio. Em certas provncias, particularmente no Norte da Frana, o habitat tra duz este sentimento da solidariedade: o principal compartimento da casa a sala, a sala que preside, com a sua vasta lareira, s reunies de famlia, a sala onde se ren em para comer, para festejar nos casamentos e nos aniversrio^ e para velar os mor tos; o hall dos costumes anglo-saxes porque a Inglaterra teve na Idade Mdia costum es semelhantes aos nossos, aos quais permaneceu fiel em muitos pontos. A esta co munidade de bens e de afeio necessrio um administrador. naturalmente o pai de famli que desempenha este papel. Em portugus a expresso correspondente ser comer da mesma gamela. (N. do R) 4 O desag avo no Portugal medieval o direito de revindicta. (N. do R.) 2 2 Os gentis filhos dos gentia pois/Dos gentis e dos boas mes/No se tornam herdeiro s pesados.

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Mas a autoridade de que ele desfruta antes a de um gerente em lugar de ser a de um chefe, absoluta e pessoal como no direito romano: gerente responsvel, directam ente interessado na prosperidade da casa, mas que cumpre um dever mais do que ex erce um direito. Proteger os seres fracos, mulheres, crianas, servos, que vivem d ebaixo do seu tecto, assegurar a gesto do patrimnio, tal o seu cargo; mas no o cons ideram o chefe definitivo da casa familiar, nem como o proprietrio do domnio. Embo ra desfrute dos seus bens patrimoniais, no tem seno o seu usufruto; tal como os re cebeu dos antepassados deve transmiti-los queles cujo nascimento designar para lhe sucederem. O verdadeiro proprietrio a famlia, no o indivduo. Do mesmo modo, embora possua toda a autoridade necessria para as suas funes, est longe de ter, sobre a mul her e os filhos, esse poder sem limites que lhe concedia o direito romano. A mul her colabora na mainbournie, quer dizer, na administrao da comunidade e na educao do s filhos; ele gere os bens prprios porque o consideram mais apto do que ela para os fazer prosperar, coisa que no se consegue sem esforo e sem trabalho; mas quando , por uma razo ou por outra, tem de se ausentar, a mulher retoma essa gesto sem o mnimo obstculo e sem autorizao prvia. Guarda-se to viva a recordao da origem da sua una que, no caso em que uma mulher morra sem filhos, os seus bens prprios voltam integralmente para a sua famlia; nenhum contrato pode opor-se a isto, as coisas p assam-se naturalmente assim. Em relao aos filhos, o pai o guardio, o protector e o mestre. A sua autoridade paterna pra na maioridade, que adquirem muito jovens: qu ase sempre aos catorze anos entre os plebeus; entre os nobres, a idade evolui de catorze a vinte anos, porque tm de fornecer para a defesa do feudo um servio mais activo, que exige foras e experincia. Os reis de Frana eram considerados maiores c om catorze ou quinze anos, e foi com esta idade, sabe-se, que Filipe Augusto ata cou cabea das suas tropas. Uma vez maior, o jovem continua a gozar da proteco dos s eus e da solidariedade familiar, mas, diferentemente do que se passava em Roma e consequentemente nos pases de direito escrito, adquire plena liberdade de inicia tiva e pode afastar-se, fundar uma famlia, administrar os seus prprios bens como e ntender. Logo que capaz de agir por si mesmo, nada vem entravar a sua actividade ; torna-se senhor de si prprio, mantendo, no entanto, o apoio da famlia de que sai u. uma cena clssica dos romances de cavalaria ver os filhos da casa, logo que esto em idade de usar armas e de receber a investidura, deixar a residncia paterna pa ra correr o mundo ou ir servir o seu suserano. A noo de famlia assim compreendida r epousa sobre uma base material: a herana de famlia bem fundirio em geral, porque a terra constitui, desde os comeos da Idade Mdia, a nica fonte de riqueza e permanece consequentemente o be m estvel por excelncia. Hritage ne peut mauvoir Mais meubles est chose volage ' diz ia-se ento. Esta herana familiar, quer se trate de um arrendamento servil ou de um domnio senhorial, permanece sempre propriedade da linhagem. impenhorvel e inalienv el; os reveses acidentais da famlia no podem atingi-la. Ningum lha pode tomar e a f amlia tambm no tem o direito de a vender ou traficar. Quando o pai morre, esta hera na de famlia passa para os herdeiros directos. Se se trata de um feudo nobre, o fi lho mais velho recebe quase a sua totalidade, porque necessrio um homem, e um hom em amadurecido pela experincia, para manter e defender um domnio; esta a razo do mo rgadio, que a maior parte dos costumes consagra. Para os arrendamentos, o u~o va ria com as provncias: por vezes a herana partilhada, mas em geral o filho mais vel ho quem sucede. Notemos que se trata da herana principal, do patrimnio de famlia; a s outras so, em tal circunstncia, partilhadas pelos filhos mais novos; mas ao mais velho que cabe o solar principal, com uma extenso de terra suficiente para viver, bem como a sua famlia. justo, de resto, porque quase sempre o filho mais velho se cundou o pai e , depois dele, aquele que mais cooperou na manuteno e na defesa do p

atrimnio. Em algumas provncias, tais como em Hainaut, Artois, Picardie e em alguma s parte da Bretanha, . no o mais velho, mas o mais novo o sucessor herana principal , e uma vez mais por uma razo de direito natural: porque, numa famlia, os mais vel hos so os primeiros a casar e vo ento estabelecer-se por sua conta, enquanto o mais novo fica mais tempo com os pais e trata-os na sua velhice. Este direito do mai s jovem testemunha a elasticidade e a diversidade dos costumes, que se adaptam a os hbitos familiares de acordo com as condies de existncia. De qualquer maneira, o q ue notvel no sistema de transmisso de bens que passam para um nico herdeiro, sendo este designado pelo sangue. No existe herdeiro por testamento, diz-se em direito co nsuetudinrio. Na transmisso do patrimnio de famlia, a vontade 5 Uma herana no pode movimentar-se. / Mas os mveis so coisa instvel. Sem correspondncia em Portugal, normalmente esta euce3So do patrimnio passa va para os filhos segundos. (N. do R.) 11

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do testamenteiro no intervm. Pela morte de um pai de famlia, o seu sucessor natural entra de pleno direito em posse do patrimnio. O morto agarra o vivo, dizia-se aind a, nessa linguagem medieval, que tinha o segredo das expresses surpreendentes. a morte do ascendente que confere ao sucessor o ttulo de posse que o coloca de fact o na posse da terra; o homem de lei no tem, como nos nossos dias, de passar por i sso. Embora os costumes variem conforme o lugar, fazendo aqui do mais velho, alm do mais novo o herdeiro natural, embora a maneira como sobrinhos e sobrinhas pos sam pretender sucesso, falta de herdeiros directos, varie de acordo com as provnci as, pelo menos uma regra constante: no se recebe uma herana seno em virtude dos laos naturais que unem uma pessoa a um defunto. Isto quando se trata de bens imveis; os testamentos nunca dizem respeito seno aos bens mveis ou a terras adquiridas dur ante a vida e que no fazem parte dos bens de famlia. Quando o herdeiro natural ind igno do seu cargo, notoriamente, ou se , por exemplo, pobre de esprito, so admitida s alteraes; mas em geral a vontade humana no intervm contra a ordem natural das cois as. Instituio de herdeiro no tem lugar, tal o adgio dos juristas de direito consuet nrio. neste sentido que ainda hoje se diz, falando das sucesses reais: O rei morreu , viva o rei. No h interrupo, nem vazio possvel, uma vez que s a hereditariedade des a o sucessor. Por isso a gesto dos bens de famlia se encontra continuamente assegu rada. No deixar o patrimnio enfraquecer, tal realmente o fim que visam todos os co stumes. Por isso nunca havia seno um nico herdeiro, pelo menos para os feudos nobr es. Temia-se a fragmentao, que empobrece a terra, dividindo-a at ao infinito: o par celamento foi sempre fonte de discusses e de proces:os; prejudica o cultivador e dificulta o progresso material porque, para poder aproveitar os melhoramentos qu e a cincia ou o trabalho pem ao alcance do campons, necessrio um empreendimento de c erta importncia, que possa se necessrio suportar fracassos parciais e em qualquer caso fornecer recursos variados. O grande domnio, tal como existe no regime feuda l, permite uma sbia explorao da terra: pode-se deixar periodicamente uma parte em p ousio, o que lhe d tempo para se renovar, e variar as culturas, mantendo, de cada uma delas, uma harmoniosa proporo. Por isso a vida rural foi extraordinariamente activa durante a Idade Mdia e uma grande quantidade de culturas foi introduzida e m Frana durante essa poca. O que foi devido, em grande parte, s facilidades que o s istema rural da poca oferecia ao esprito de iniciativa da nossa raa. O campons de en to no nem um retardatrio nem um rotineiro. A unidade e a estabilidade do domnio eram uma garantia tanto para o futuro como par a o presente, favorecendo a continuidade do esforo familiar. Nos nossos dias, qua ndo em presena se encontram vrios herdeiros, preciso desmembrar o fundo e passar p or toda a espcie de negociaes e de resgates para que um deles possa retomar a empre sa paterna 7. A explorao cessa com o indivduo. Ora, o indivduo passa enquanto o patr imnio fica, e, na Idade Mdia, tendia-se para residir. Se existe uma palavra signif icativa na terminologia medieval, essa palavra manso .senhorial, o lugar onde se est, manere o ponto de ligao da linhagem, o tecto que abriga os seus membros, passa dos e presentes, e que permite s geraes sucederem-se pacificamente. Bem caracterstic o tambm, o emprego dessa unidade agrria que se denomina manse extenso de terra sufi ciente para que uma famlia possa nela fixar-se e viver. Variava naturalmente com as regies: um cantinho de terra na gorda Normandia ou na rica Gasconha traz mais ao cultivador que vastas extenses na Bretanha ou no Forez; a manse tem pois uma e xtenso muito varivel conforme o clima, as qualidades do solo e as condies de existnci a. uma medida emprica, e, caracterstica essencial, de base familiar, no individual: resume por si s a caracterstica mais saliente da sociedade medieval. Assegurar fa mlia uma base fixa, lig-la ao solo de qualquer forma, para que a tome razes, possa d ar fruto e perpetuar-se, tal a finalidade dos nossos antepassados. Se se pode tr

aficar com as riquezas mveis e disp-las por testamento, porque por essncia so mutvei e pouco estveis; pelas razes inversas, os bens fundirios K, propriedade familiar, so inalienveis e impenhorveis. O homem no seno o guardio temporrio, o usufruturio dadeiro proprietrio a linhagem. Uma srie de costumes medievais decorrem desta preo cupao de salvaguardar o patrimnio de famlia. Assim, em caso de falta de herdeiro dir ecto, os bens de origem paterna voltam para a famlia do pai e os de origem matern a para a da me enquanto no direito romano s se reconhecia o parentesco por via mas culina. aquilo a que se chama o direito de retorno, que desempata conforme a sua origem os bens de uma famlia extinta. Do mesmo modo, o asilo de linhagem d aos pa rentes mesmo afastados direito de preferncia quando por uma razo ou por outra um d omnio vendido. A maneira como regulada a tutela de uma criana que ficou rf apre(7) Sabemos que disposies r e c e n t e s v i e r a m felizmente modificar o r e d i m e das sucesses. (8) Bens fundirios p r o p r i e d a d e s r s t i c a s , l i g a d a s t e r r a , a g r i c u l t u r a Base da economia medieval. (N. do R.)

22 RGIE PERNO LUZ SOBRE A IDADE MEDIA 23 senta tambm um tipo de legislao familiar. A tutela exercida pelo conjunto da famlia, e aquele cujo grau de parentesco designa para administrar os bens torna-se natu ralmente o tutor. O nosso conselho de famlia no seno um resto do costume medieval q ue regula o arrendamento dos feudos e a guarda das crianas. A Idade Mdia tem, alis, to viva a preocupao de respeitar o curso natural das coisa?, de no criar prejuzos qu ando aos bens familiares, que, no caso em que aqueles que detm determinados bens morram sem herdeiro, o seu domnio no pode voltar para os ascendentes; procura-se o s descendentes mesmo afastados, primos ou parentes, tudo menos fazer voltar este s bens para os seus precedentes possessores: Bens prprios no voltam para trs. Tudo pe lo desejo de seguir a ordem normal da vida, que se transmite do mais velho para o mais novo, e no volta para trs: os rios no voltam nascente, do mesmo modo os elem entos da vida devem alimentar aquilo que representa a juventude, o futuro. De re sto mais uma garantia para o patrimnio da linhagem este virar-se necessariamente para seres jovens, portanto mais activos e capazes de o fazer valer mais longame nte. Por vezes, a transmisso dos bens faz-se de uma forma muito reveladora do sen timento familiar, que a grande fora da Idade Mdia. A famlia (aqueles que vivem de u m mesmo po e pote) constitui uma verdadeira personalidade moral e jurdica, possuindo em comum os bens de que o pai o administrador; pela sua morte, a comunidade rec onstitui-se com a orientao de um dos filhos-famlia, designado pelo sangue, sem que tenha havido interrupo da posse dos bens nem transmisso de qualquer espcie. aquilo a que se chama a comunidade silenciosa, de que faz parte qualquer membro da casa de famlia que no tenha sido expressamente posto fora do po e pote. O costume sub:isti u at ao fim do Antigo Regime e podem-se citar famlias francesas que durante sculos nunca pagaram o mnimo direito de sucesso. O jurista Dupin assinalava deste modo, e m 1840, a famlia Jault que no o pagava desde o sculo xiv. Em todos os casos, mesmo fora da comunidade silenciosa, a famlia, considerada no seu prolongamento atravs d as geraes, permanece o verdadeiro proprietrio dos bens patrimoniais. O pai de famlia que recebeu estes bens dos antepassados deve dar conta deles aos seus descenden tes; seja ele servo ou senhor, nunca o dono absoluto. Reconhece-se-lhe o direito de usar, no o de abusar, e tem, alm disso, dever de defender, de proteger e de me lhorar a sorte de todos aqueles, seres e coisas, de que foi constitudo o guardio n atural.

* E foi assim que se formou a Frana, obra destes milhares de famlias, obstinadamen te fixadas ao solo, no tempo e no espao. Francos, Borgonheses, Normandos, Visigod os, todos esses povos mveis, cuja massa instvel faz da Alta Idade Mdia um caos to de sconcertante, formavam, desde o sculo X, uma nao, solidamente ligada sua terra, uni da por laos mais seguros que todas as federaes cuja existncia se proclamou. O esforo renovado dessas famlias microscpicas deu origem a uma vasta famlia, um macrocosmo, cuja brilhante administrao, a linhagem capetiana simboliza maravilha, gloriosament e conduzindo de pai para filho, durante trs sculos, os destinos da Frana. certament e um dos mais belos espectculos que a histria pode oferecer, essa famlia sucedendose nossa cabea em linha directa, sem interrupo, sem desfalecimento, durante mais de trezentos anos um tempo igual ao que se passou desde o aparecimento do rei Henr ique IV at guerra de 1940... Mas o que importa compreender que a histria dos Capet os directos no seno a histria de uma famlia francesa entre milhes de outras. Esta vi alidade, esta persistncia na nossa terra, todos os lares de Frana a possuram, num g rau mais ou menos equivalente, excepo feita a acidentes ou acasos, inveitveis na ex istncia. A Idade Mdia, sada da incerteza e do desacordo, da guerra e da invaso, foi uma poca de estabilidade, de permanncia, no sentido etimolgico da palavra. Facto qu e se deve s suas instituies familiares, tais como as expe o nosso direito consuetudi nrio. Nelas se conciliam com efeito o mximo de independncia individual e o mximo de

segurana. Cada indivduo encontra em casa a ajuda material, e na solidariedade fami liar a proteco moral de que pode ter necessidade; ao mesmo tempo, a partir do mome nto em que se pode ter necessidade; ao mesmo tempo, a partir do momento em que s e basta a si prprio, ele livre, livre de desenvolver a sua iniciativa, de fazer a sua vida; nada entrava a expanso da sua personalidade. Mesmo os laos que o ligam ca sa paterna, ao seu passado, s suas tradies, no tm nada de entrave; a vida recomea int ira para ele, tal como, biologicamente falando, ela recomea inteira e nova para c ada ser que vem ao mundo ou como a experincia pessoal, tesouro incomunicvel que ca da um deve forjar para si prprio, e que s vlido desde que do prprio. evidente que u a semelhante concepo da famlia basta para fazer todo o dinamismo e tambm toda a soli dez de uma nao. A aventura de Robert Guiscard e dos irmos, filho-segundos de uma

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famlia normanda, excessivamente pobre e excessivamente numerosa, que emigra, torn a-o rei da Siclia e funda a uma dinastia poderosa, eis o prprio tipo da histria medi eval, toda feita de audcia, de sentimento familiar e de fecundidade. O direito co nsuetudinrio, que fez a fora do nosso pas, opunha-se nisso directamente ao direito romano, no qual a coeso da famlia no se deve seno autoridade do chefe, estando todos os membros submetidos a uma rigorosa disciplina durante toda a vida: concepo mili tar, estatista, repousando sobre uma ideologia de legistas e de funcionrios, no so bre o direito natural. Comparou-se a famlia nrdica a uma colmeia que se desloca pe riodicamente e se multiplica renovando os terrenos de colheita e a famlia romana a uma colmeia que no enxamearia nunca. Disse-se tambm da famlia medieval que ela form ava pioneiros e homens de negcios, enquanto a famlia romana d nascimento a militare s, administradores, funcionrios9. curioso seguir, ao longo dos sculos, a histria do s povos formados nestas diferentes disciplinas e verificar os resultados a que c hegaram. A expanso romana tinha sido poltica e militar, e no tnica; os Romanos conqu istaram um imprio pelas armas e conservaram-no por intermdio dos seus burocratas; este imprio s foi slido enquanto soldados e funcionrios puderam vigi-lo facilmente; n parou de crescer a desproporo entre a extenso das fronteiras e a centralizao, que o fim ideal e a consequncia inevitvel do direito romano; ele desabaria por si prprio, pelas suas prprias instituies, quando o mpeto das invases lhe veio dar o golpe de mi sericrdia. Podemos, a este exemplo, opor o das raas anglo-saxnicas; os seus costume s familiares foram idnticos aos nossos durante toda a Idade Mdia, e, contrariament e ao que se passou entre ns, mantiveram-nos; isso sem dvida que explica a sua prod igiosa expanso atravs do mundo. Vagas de exploradores, de pioneiros, de comerciant es, de aventureiros e de temerrios deixando as suas casas a fim de tentarem a sor te, sem por isso esquecerem a terra natal e as tradies dos pais, eis o que funda u m imprio. Os pases germnicos, que nos forneceram em grande parte os costumes que a nossa Idade Mdia adoptou, cedo se impuseram o direito romano. Os seus imperadores estavam em situao de retomar as tradies do Imprio do Ocidente e julgavam que, para u nificar as vastas regies que lhes estavam submetidas, o direito romano lhes forne cia um excelente instrumento de centralizao. Foi a, portanto, (9) E s t a s frmulas vm-nos de Roger Grand, des Chartes. professor n a cole

desde muito cedo posto em prtica e desde o fim do sculo xiv constitua definitivamen te a lei comum do Santo Imprio, enquanto em Frana, por exemplo, a primeira cadeira de Direito Romano s foi instituda na Universidade de Paris em 1679. Por isso a ex panso germnica foi mais militar que tnica. A Frana foi sobretudo modelada pelo direi to consuetudinrio; certo que temos o hbito de designar o Sul do Loire e o vale do Reno como regies de direito escrito, isto de direito romano, mas isso significa que os costumes destas provncias se inspiraram na lei romana, no que o Cdigo Justinian o tenha a vigorado. Durante toda a Idade Mdia, a Frana manteve intactos os seus cos tumes familiares, as suas tradies domsticas. Somente a partir do sculo XVI as nossas instituies, sob a influncia dos legistas, evoluem num sentido cada vez mais latino. uma transformao que se opera lentamente e que se comea a notar em pequenas modificaes : dada a maioridade aos vinte e cinco anos, como na Roma antiga, onde, encontran do-se o filho em perptua menoridade em relao ao pai, no havia inconveniente em que f osse proclamada bastante tarde. Ao casamento, considerado at ento como um sacramen to, como a adeso de duas vontades livres para a realizao do seu fim, vem acrescenta r-se a noo do contrato, do acordo puramente humano, tendo como base estipulaes mater iais. A famlia francesa modela-se sobre um tipo estatista que ainda no tinha conhe cido, e, ao mesmo tempo que o pai de famlia concentra rapidamente nas suas mos tod

o o poder familiar, o Estado encaminha-se para a monarquia absoluta 10. A de pei to das aparncias, a Revoluo foi no um ponto de partida mas um ponto de chegada: o re sultado de uma evoluo de dois a trs sculos; ela representa o apagamento nos nossos c ostumes da lei romana custa do direito consuetudinrio; Napoleo no fez seno acabar a obra, instituindo o Cdigo Civil e organizando o exrcito, o ensino, toda a nao, sobre o ideal funcionarista da Roma antiga. Podemos, alis, perguntar se o direito roma no, quaisquer que sejam os seus mritos, convinha s caractersticas da nossa raa, natu reza da nossa terra. Esse conjunto de leis, forjadas com todos os elementos por militares e por legistas, essa criao doutrinal, terica, rgida, poderia substituir se m inconvenientes os nossos costumes elaborados pela experincia de geraes, lentament e moldados medida Ki Muito c a r a c t e r s t i c a a este nvel a evoluo do direito de propriedade, que se t o r n a r a d a vez m a i s a b s o l u t o e individual. Os ltimos traos de propriedade colectiva d e s a p a r e c e r a m no sculo XIX com a abolio dos d ireitos comunais e de t e r r a s baldias.

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das nossas necessidades? os nossos costumes que nunca foram mais que os nossos p rprios hbitos constatados e formulados juridicamente, os usos de cada indivduo ou, melhor ainda, do grupo de que cada um fazia parte. O direito romano tinha sido c oncebido por um Estado urbano, no por uma regio rural. Falar da Antiguidade evocar Roma ou Bizncio; para fazer reviver a Frana medieval preciso evocar no Paris, mas a Ilha de Frana, no Bordus, mas a Guiana, no Ruo, mas a Normandia; no podemos conceb seno nas suas provncias de solo fecundo em belo trigo e em bom vinho. um facto si gnificativo ver durante a Revoluo aquele a quem se chamava o manant (aquele que fi ca) tornar-se o cidado: em cidado h cidade. O que se compreende, j que a cidade iri er o poder poltico, portanto o poder principal, porque, tendo deixado de existir o costume, tudo deveria a partir da depender da lei. As novas divises administrati vas de Frana, os departamentos que giram todos volta de uma cidade, sem ter em co nta a qualidade do solo dos campos que a ela se ligam, manifestam bem esta evoluo de estado de esprito. A vida familiar estava nessa poca suficientemente enfraqueci da para que possam estabelecer-se instituies tais como o divrcio, a alienabilidade do patrimnio ou as leis modernas sobre as sucesses. As liberdades privadas de que antes se tinha sido to cioso desapareciam perante a concepo de um Estado centraliza do maneira romana. Talvez devssemos procurar a a origem de problemas que depois se puseram com tanta acuidade: problemas da infncia, da educao, da famlia, da natalida de que no existiam na Idade Mdia, porque a famlia era ento uma realidade, porque pos sua a base material e moral e as liberdades necessrias sua existncia.

CAPTULO II O VNCULO FEUDAL Pode-se dizer da sociedade actual que est fundada sobre o salariado. No plano econmico, as relaes de homem para homem ligam-se s relaes do ca ital e do trabalho: realizar um determinado trabalho, receber em troca uma deter minada soma, tal o esquema das relaes sociais. O dinheiro o seu nervo essencial, j que, salvo raras excepes, uma actividade determinada se transforma primeiro em num errio antes de mudar de novo para quaisquer dos objectos necessrios vida. Para com preender a Idade Mdia, temos de nos representar uma sociedade que vive de um modo totalmente diferente, donde a noo de trabalho assalariado e mesmo em parte a de d inheiro esto ausentes ou so muito secundrias. O fundamento das relaes de homem para h omem a dupla noo de fidelidade, por um lado, e de proteco, por outro. Assegura-se de voo a qualquer pes;oa e espera-se dela em troca segurana. Compromete-se, no a activi dade em funo de um trabalho preciso, de remunerao fixa, mas a prpria pessoa, ou melho r, a sua f, e em troca requere-se subsistncia e proteco, em todos os sentidos da pal avra. Tal a essncia do vnculo feudal. Esta caracterstica da sociedade medieval expl ica-se ao considerarmos as circunstncias que presidiram sua formao. A origem encont ra-se nessa Europa catica do sculo v ao sculo v i u . O Imprio Romano desmoronava-se sob o duplo efeito da decomposio interior e da presso das invases. Tudo em Roma dep endia da fora do poder central; a partir do momento em que esse poder foi ultrapa ssado, a runa era inevitvel; nem a ciso em dois imprios nem os esforos de recuperao visria poderiam trav-la. Nada de slido subsiste nesse mundo em que as foras vivas fo ram pouco a pouco esgotadas por um funcionalismo sufocante, onde o fisco oprime os pequenos proprietrios, que em breve no tm outro recurso seno ceder as suas terras ao Estado para pagar os impostos, onde o povo abandona os campos e apela volunt ariamente, para o trabalho dos campos, a esses mesmos brbaros que dificilmente so contidos nas fronteiras;

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assim que, no Estado da Glia, os Borgonheses se instalam na regio Sabia-Franco-Cond ado e se tornam os rendeiros dos proprietrios galo-romanos, cujo domiclio partilha m. Sucessivamente, pacificamente ou pela espada, as hordas germnicas ou nrdicas as somam no mundo ocidental; Roma tomada e retomada pelos Brbaros, os imperadores so eleitos e destitudos conforme o capricho dos soldados, a Europa no mais que um vas to campo de batalha onde se enfrentam as armas, as raas e as religies. Como poder a lgum defender-se numa poca em que a agitao e a instabilidade so a nica lei? O Estado st distante e impotente, seno inexistente; cada um move-se por isso naturalmente e m direco nica fora que permaneceu realmente slida e prxima: os grandes proprietrio dirios, aqueles que podem assegurar a defesa do seu domnio e dos seus rendeiros; f racos e pequenos recorrem a eles; confiam-lhes a sua terra e a sua pessoa, com a condio de se verem protegidos contra os excessos fiscais e as incurses estrangeira s. Por um movimento que se tinha esboado a partir do Baixo Imprio e no tinha parado de se acentuar nos sculos VII e VIII, o poderio dos grandes proprietrios aumenta com a fraqueza do poder central. Cada vez mais se procura a proteco do senhor (snior) , a nica activa e eficaz, que proteger no s da guerra e da fome, mas tambm da ingernc a dos funcionrios reais. Assim se multiplicam as cartas de vassalagem, pelas quai s a arraia-mida se liga a um senhor para assegurar a sua segurana pessoal. Os reis m erovngios tinham, alis, o hbito de se cercarem de uma corte de fiis (fidles), de hom devotados sua pessoa, guerreiros ou outros, o que levar os poderosos da poca a ag ruparem sua volta, por imitao, os vassalos (vassi), que julgaram bom recomendarem-se a eles. Enfim, estes reis, eles prprio:, ajudaram muitas vezes formao do poder dom inial, distribuindo terras aos seus funcionrios cada vez mais desprovidos de auto ridade face aos grandes proprietrios para retribuir os seus servios. Quando os Car olngios chegaram ao poder, a evoluo estava quase terminada: em toda a extenso do ter ritrio, senhores, mais ou menos poderosos, agrupando sua volta os seus homens, os seus fiis, administravam os feudos, mais ou menos extensos; sob a presso dos acon tecimentos, o poder central tinha dado lugar ao poder local, que tinha absorvido , pacificamente, a pequena propriedade e permanecia, afinal de contas, a nica fora organizada; a hierarquia medieval, resultado dos factos econmicos e sociais, tin ha-se formado a partir de si prpria, e os seus u?os, nascidos sob a presso das cir cunstncias, manter-se-iam pela tradio. No tentaram lutar contra o estado dos acontec imentos: a dinastia de Pepino tinha de resto chegado ao poder porque os seus representantes se conta vam entre os mais fortes proprietrios da poca. Contentaram-se em canalizar as foras em presena das quais faziam parte e em aceitar a hierarquia feudal tirando dela o partido que podiam tirar. Tal a origem do estado social da Idade Mdia, cujas ca ractersticas so completamente diferentes das que se conheceram at a: a autoridade, e m lugar de estar concentrada num s ponto indivduo ou organismo , encontra-se repart ida pelo conjunto do territrio. Foi essa a grande sabedoria dos Carolngios, no tent arem ter nas mos toda a mquina administrativa, mantendo a organizao emprica que tinha m encontrado. A sua autoridade imediata no se estendia seno a um pequeno nmero de p ersonagens, que possuam elas prprias autoridade sobre outros, e assim de seguida a t s camadas sociais mais humildes; mas, degrau a degrau, uma ordem do poder centra l podia assim transmitir-se ao conjunto do pas; aquilo que no controlavam directam ente podia todavia ser atingido indirectamente. Em lugar de combat-la, pois, Carl os Magno contentou-se em disciplinar a hierarquia que deveria impregnar to fortem

ente os hbitos franceses; reconhecendo a legitimidade do duplo juramento que todo o homem livre devia a si prprio e ao seu senhor, ele consagrou a existncia do vncu lo feudal. Tal a origem da sociedade medieval, e tambm a da nobreza, fundiria e no militar, como se julgou demasiadas vezes. Desta formao emprica, modelada pelos fact os, pelas necessidades sociais e econmicas l , decorre uma extrema diversidade na condio das pessoas e dos bens, j que a natureza dos compromissos que uniam o propr ietrio ao seu rendeiro variava segundo as circunstncias, a natureza do solo e o mo do de vida dos habitantes; toda a espcie de factores entram em jogo, os quais dif erem de uma provncia para a outra, ou mesmo de um domnio para o outro, as relaes e a hierarquia; mas o que permanece estvel a obrigao recproca: fidelidade por um lado, proteco pelo outro por outras palavras: o vnculo feudal. Durante a maior parte da I dade Mdia, a principal caracterstica deste vnculo ser pessoal: um determinado vassa lo, preciso e determinado, recomenda-se a um determinado senhor, igualmente prec iso c determinado; decide vincular-se a ele, jura-lhe fidelidade e espera cm tro ca subsistncia material e proteco moral. Quando Roland morre, evoca Carlos, seu senh or que o alimentou, e esta simples evocao diz bastante da natureza do vnculo que os une. Somente a ' Citemos a excelente frmula de Henrl Pourrat: O sistema feudal foi a organizao viva Imposta pela terra aos homens da terra (L'homme Ia bche Historie du paysan, p. 8 3 ) .

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partir do sculo x i v o vnculo se tornar mais real que pessoal; ligar-se- posse de u ma propriedade e decorrer das obrigaes fundirias que existem entre o senhor e os seu s vassalos, cujas relaes se assemelharo desde ento muito mais s de um proprietrio com os seus locatrios; a condio da terra que fixa a condio da pessoa. Mas para todo o pe do medieval propriamente dito, os vnculos criam-se de indivduo para indivduo. Nichi l est preter individuum, dizia-se, nada existe fora do indivduo: o gosto de tudo o que pessoal e preciso, o horror da abstraco e do anonimato so de resto caracterstica s da poca. Este vnculo pessoal que liga o vassalo ao suserano proclamado no decorr er de uma cerimnia em que se afirma o formalismo, caro Idade Mdia: porque qualquer obrigao, transaco, ou acordo devem ento traduzir-se por um gesto simblico, forma vis l e indispensvel do assentimento interior. Quando, por exemplo, se vende um terre no, o que constitui o acto de venda a entrega pelo vendedor ao novo proprietrio d e um pouco de palha ou de um torro de terra proveniente do seu campo; se a seguir se faz uma escritura o que nem sempre tem lugar, no servir seno para memria: o acto ssencial a raditio, como nos nossos dias o aperto de mo em alguns mercados. Entrega r-lhe-ei, diz o Mnagier de Paris, um pouco de palha ou um velho prego ou uma pedra que me foram entregues como sinal de um grande acontecimento (quer dizer, como si nal de uma transaco importante). A Idade Mdia uma poca em que triunfa o rito, em que tudo o que se realiza na conscincia deve passar obrigatoriamente a acto; o que s atisfaz uma neces-idade profundamente humana: a do sinal corporal, falta do qual a realidade fica imperfeita, inacabada, fraca. O vassalo presta fidelidade e hom enagem ao seu senhor: fica na sua frente, de joelhos, de cinturo desfeito, e coloc a a mo na dele. Gestos que significam o abandono, a confiana, a fidelidade. Declar a-se seu vassalo e confirma-lhe a dedicao da sua pessoa. Em troca, e para selar o pacto que doravante os liga, o suserano beija o vassalo na boca. Este gesto impl ica mais e melhor que uma proteco geral: um lao de afeio pessoal que deve reger as r laes entre os dois homens. Segue-se a cerimnia do juramento, cuja importncia no de m is sublinhar. preciso entender juramento no seu sentido etimolgico: sacramentum, coisa sagrada. Jura-se sobre os Evangelhos, realizando assim um acto sagrado, qu e compromete no s a honra, mas a f, a pessoa inteira. O valor do juramento ento tal, e o perjrio de tal forma monstruoso, que no se hesita em manter a palavra dada em circunstncias extremamente graves, por exemplo para testemunhar das ltimas vontades de um moribundo, com o testemunho de uma ou duas pesso as. Renegar um juramento representa na mentalidade medieval a pior das desonras. Uma passagem de Joinville manifesta de maneira muito significativa que um exces _o por que um cavaleiro no pode decidir-se, mesmo que a sua vida esteja em jogo: quando do seu cativeiro, os drogomanos do sulto do Egipto vm oferecer-lhe a libert ao, a ele e aos companheiros: Daria, perguntaram, para a sua libertao, algum dos cast elos que pertencem aos bares de alm-mar? O conde respondeu que no tinha poder, porq ue eles pertenciam ao imperador da Alemanha que ento estava vivo. Perguntaram se entregaramos algum dos castelos do Templo ou do Hospital para a nossa libertao. E o conde respondeu que no podia ser: que quando a se nomeava um castelo, faziam-no ju rar pelos santos que no entregaria castelo algum para libertao de corpo de homem. E eles responderam-nos que lhes parecia que no tnhamos talento para nos libertarmos e que se iriam embora e nos enviariam aqueles que nos lanariam espadas, como tin ham feito aos outros 2 . A cerimnia completa-se com a investidura solene do feudo, feita pelo senhor ao vassalo: confirma-lhe a posse desse feudo por um gesto de traditio, entregando-lhe geralmente uma vara ou um bastonete, smbolo do poder que deve exercer no domnio que tem des e senhor: a investidura cum bculo vel virga, p ara empregar os termos jurdicos em uso na poca. Deste cerimonial, das tradies que el e supe, decorre a elevada concepo que a Idade Mdia fazia da dignidade pessoal. Nenhu

ma poca esteve mais pronta para afastar as abstraces, os princpios, para se entregar unicamente s convenes de homem para homem; tambm nenhuma fez apelo a mais elevados sentimentos como base dessas convenes. Era prestar uma magnfica homenagem pessoa hu mana. Conceber uma sociedade fundada sobre a fidelidade recproca era indubitavelm ente audacioso; como se pode esperar, houve abusos, faltas; as lutas dos reis co ntra os vassalos recalcitrantes so a prova disso. Resta dizer que durante mais de cinco sculos a f e a honra permanecem a base essencial, a armadura das relaes socia is. Quando a estas se substituiu o princpio de autoridade, no sculo x v i c sobret udo no sculo XVII, no se pode pretender que a sociedade tenha ganho com isso; em q ualquer dos casos, a nobreza, j enfraquecida por outras razes, perdeu a sua fora mo ral essencial. Durante toda a Idade Mdia, sem esquecer a sua origem fundiria, domi nial, essa nobreza teve um modo de viver sobretudo militar; ( iie efectivamente o seu dever de proteco comportava em primeiro (2) a isto que os massacrariam, como aos outros.

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lugar uma funo guerreira: defender o seu domnio contra as possveis usurpaes; de resto embora se esforassem por reduzi-lo, o direito de guerra privada subsistia e a so lidariedade familiar podia implicar a obrigao de vingar pelas armas as injrias feit as a um dos seus. Uma questo de ordem material se lhe acrescentava: os senhores, detendo a principal, seno a nica fonte de riqueza, a terra, eram os nicos a ter a p ossibilidade de equipar um cavalo de guerra e de armar escudeiros e sargentos. O servio militar ser portanto inseparvel do servio do feudo, e a f prestada pelo vassa lo nobre supe o contributo das suas armas sempre que disso for mester. o primeiro c argo da nobreza, e um dos mais onerosos, essa obrigao de defender o domnio e os seu s habitantes. L'pe dit: Cest ma justice3 Garder les deres de Saint glise* Et ceux p ar qui viandes est quise 5. As praas-fortes mais antigas, aquelas que foram const rudas nas pocas de perturbao e de invases, mostram a marca visvel dessa necessidade: aldeia, as casas dos servos e dos camponeses, esto ligadas s encostas da fortalez a, onde toda a populao ir refugiar-se em altura de perigo e onde encontrar ajuda e a bastecimento em caso de cerco. Das suas obrigaes militares decorre a maior parte d os hbitos da nobreza. O direito de morgadio vem em parte da necessidade de confia r ao mais forte a herana que ele deve garantir, muitas vezes pela espada. A lei d e masculinidade explica-se tambm dessa forma: s um homem pode assegurar a defesa d e um torreo. Por isso tambm, quando um feudo cai em roca, quando uma mulher a nica h rdeira, o suserano, sobre o qual recai a responsabilidade desse feudo que ficou assim em estado de inferioridade, sente-se no dever de cas-la. por isso que a mul her no suceder seno aps os filhos mais novos, e estes aps o mais velho; s recebero a ios; por isso os desastres que tiveram lugar no fim da Idade Mdia tiveram como or igem os apangios excessivamente importantes deixados por Joo, o Bom, aos filhos, c ujo poder se tornou para eles uma tentao perptua, e para todos uma fonte de desorde ns, durante a menoridade de Carlos VI. (3) Ofcio. (4) Aqueles que se ocupam da alimentao, da vida material (os camponeses) . Poema de Carit, de Reclus de Molliens. (5) A espada disse: meu dever/Manter os clrigos da Santa Igreja/ e aqueles para quem os alimentos so obtidos.

Os nobres tm igualmente o dever de administrar a justia aos seus vassalos de qualq uer condio e de administrar o feudo. Trata-se do exerccio de um dever, e no de um di reito, que implica responsabilidades muito pesadas, j que cada senhor deve dar co nta do seu domnio no s sua linhagem, mas tambm ao seu suserano. tienne de Fougres d reve a vida do senhor de um grande domnio como cheia de preocupaes e de fadigas: C e t l va, souvent se tourne, Ne repose ni ne sjorne: Chteau abord, chteau aourne, Souv ent haiti, plus souvent mourne. C et l va, pas ne repose Que sa marche ne soit dclos e 6. Longe de ser ilimitado, como de uma maneira geral se julgou, o seu poder be m menor que, nos nossos dias, o de um chefe de indstria ou um qualquer proprietrio , j que nunca tem a propriedade absoluta dos seus domnios, depende sempre de um su serano, e, no fim de contas, os suseranos mais poderosos dependem do rei. Nos no ssos dias, de acordo com a concepo romana, o pagamento de uma terra confere pleno direito sobre ela. Na Idade Mdia no assim: em caso de m administrao, o senhor sofre enalizaes que podem ir at confiscao dos seus bens. Deste modo, ningum governa com a ridade total nem escapa ao controlo directo daquele de quem depende. Esta repart io da propriedade e da autoridade um dos traos mais caractersticos da sociedade medi eval. As obrigaes que ligam o vassalo ao seu senhor implicam de resto reciprocidad e: O senhor deve tanto f e lealdade ao seu homem como o homem ao seu senhor, diz Be

aumanoir. Esta noo de dever recproco, de servio mtuo, encontra-se muitas vezes tanto nos textos literrios como jurdicos: Graigneur jait a sire son homme Que Vhomme son seigneur et dome 7 observa tienne de Fougres, j citado no seu Livre des Manires [Li vro das Maneiras]; e Philippe de Novare nota, a apoiar esta (6) Anda de c para l e muitas vezes muda de direco/No repousa nvm se detm:/Castelo de tro, castelo fora,/Muitas vezes alegre, mais vezes trixte./Anda de c para l, no rep ousa/Seno quando o seu caminho est aberto. (7) O senhor deve mais reconhecimento a o seu vassalo, que ele prprio devo deve ao senhor.

34 RGIE PERNOUD LUZ SOBRE A IDADE MEDIA 35 constatao: Aqueles que recebem servio e nunca o recompensam bebem o suor dos seus se rvos, que veneno mortal para o corpo e para a alma. Donde tambm a mxima: Para bem se rvir convm bom ter. (A Bien servir convient Eurs Avoir.) Como de justia, exige-se d a nobreza mais dignidade e rectido moral que dos outros membros da sociedade. Por uma mesma falta, a pena infligida a um nobre ser muito superior que destinada a um plebeu. Beaumanoir cita um delito para o qual pena de campons de sessenta soldo s e de nobre de sessenta libras o que constitui uma desproporo muito grande: de 1 p ara 20. Segundo os Etablissements de Saint-Louis, uma determinada falta pela qua l um homem ordinrio, isto , um plebeu, pagar cinquenta soldos de pena, implicar para um nobre a confiscao de todos os seus bens mveis. O que se encontra tambm nos estat utos de diferentes cidades; os de Pamiere fixam do seguinte modo a tarifa das pe nas em caso de roubo: vinte libras para o baro, dez para o cavaleiro, cem soldos para o burgus, vinte soldos para o vilo. A nobreza hereditria, mas pode tambm ser ad quirida, quer por retribuio de servios prestados, quer, muito simplesmente, pela aq uisio de um feudo nobre. Foi o que aconteceu em grande escala no fim do sculo xin: numerosos foram os nobres mortos ou arruinados nas grandes expedies do Oriente, e vem-se famlias de burgue:es que enriqueceram, atingir em massa a nobreza, o que pr ovocou no seu seio uma reaco. A cavalaria enobrece de igual modo aquele a quem con ferida. Finalmente, houve, em sequncia dos factos, cartas de nobreza distribudas, certo, muito parcimoniosamente-9 Se a condio de nobreza pode adquirir-se, pode igu almente perder-se, por prescrio, em consequncia de uma condenao infamante. A vergonha de uma hora do dia, Apaga completamente a honra de quarenta anos, dizia-se. Ela perde-se ainda por infraco quando um nobre suposto ter exercido um ofcio plebeu ou um trfego qualquer: -lhe interdito com efeito sair do papel que lhe entregue, e no deve tambm pro(8) Termo que corresponde a recompensa, com um sentido mais alarga do: felicidade, bem-estar. (9) O Antigo Regime teve tendncia para impedir cada ve z mais o acesso nobreza, o que contribuiu para fazer dela uma casta fechada, que isolava o rei dos seus sbdidtos. Em Inglaterra, as numerosas nobilitaes deram pelo contrrio excelentes resultados, renovando a aristrocracia com a ajuda de element os novos 1 fazendo dela uma classe aberta e vigorosa. curar enriquecer, assumindo cargos que o fariam negligenciar aqueles aos quais a sua vida deve ser votada. Exceptua-se de resto dos ofcios plebeus aqueles que, n ecessitando de recursos importantes, no poderiam de todo ser realizados seno por n obres: por exemplo, a vidraria ou a mestria de forjas; do mesmo modo o trfego mart imo permitido aos nobres porque exige, para l dos capitais, um esprito de aventura que ningum ousaria entravar. No sculo XVII, Colbert alargar no mesmo sentido o cam po de actividade econmica da nobreza, para dar mais impulso ao comrcio e indstria. A nobreza uma classe privilegiada. Os seus privilgios so em primeiro lugar honorfic os: direitos de presidncia, etc. Alguns decorrem dos cargos que desempenha: assim , s o nobre tem direito espora, ao cinturo e bandeira, o que lembra que na origem s os nobres tinham o direito de equipar um cavalo de guerra. A par disso, desfrut a de certas isenes, as mesmas de que desfrutavam primitivamente todos os homens li vres; exemplo disto a iseno da talha 1(1 e de certos impostos indirectos, cuja imp ortncia, nula na Idade Mdia, no parou de crescer no sculo x v i e sobretudo no sculo XVII. Finalmente, a nobreza possui direitos precisos, e esses substanciais: encontramse neste nmero todos os que decorrem do direito de propriedade: direito de cobrar censos, direito de caa e outros. Os censos e rendas pagos pelos camponeses no so o

utra coisa seno o aluguer da terra onde tiveram permisso de se instalarem, ou que os seus antepassados julgaram por bem abandonar a um proprietrio mais poderoso qu e eles prprios. Os nobres, ao cobrar os censos, estavam exactamente na situao de um proprietrio de imveis cobrando os seus alugueres. A origem longnqua deste direito de propriedade apagou-se pouco a pouco e, na poca da Revoluo, o campons acabou por s e tornar legtimo proprietrio de uma terra da qual era locatrio desde h sculos. Aconte ceu o mesmo a esse famoso direito de caa, que se quis representar como um dos abu sos mais gritantes de uma poca de terror e de tirania: que haver mais legtimo, para um homem que aluga um terreno a outro, que reservarse o direito de caar nele? " Proprietrio e rendeiro sabem ambos ao que se obrigam no momento em que acordam as suas obrigaes (10) imposto directo. Pago pelos camponeses em Frana at ao fim do Antigo Regime, 1 789. Em. Portugal corresponde este imposto julgada. (N. da R.) (11) Ainda assim 6 preciso estabelecer uma distino entre as pocas: o direito de caa .s foi reservado, e isto apenas para a caa grossa, turdiamente',por volta do sculo XIV. As interdies for mais s aparecem no sculo XVI Quanto pesca, permaneceu livre para todos.

36 RG1NE PERNOUD recprocas, o essencial; o senhor no deixa de estar nas suas terras quando caa perto da habitao de um campons; que alguns de entre eles tenham abusado desse direito e e pisado com o casco dos cavalos as ceifas douradas do campons, para nos exprimirmo s como os manuais de ensino primrio, coisa possvel ainda que inverificvel, mas conc ebe-se com dificuldade porqu o teriam feito sistematicamente, j que uma boa parte das rendas consistia numa quota-parte da colheita; o senhor estava portanto dire ctamente interessado em que esta colheita fosse abundante. A questo a mesma para as banalidades; o forno e o lagar senhorial esto na origem das comodidades oferecid as ao campons, em troca das quais normal receber uma retribuio exactamente como hoj e, em certas comunas aluga-se ao campons a mquina de debulhar ou outros instrument os agrcolas. Est contudo fora de dvida que pouco a pouco, por volta do fim da Idade Mdia, os encargos da nobreza diminuram sem que por isso os privilgios tivessem sid o reduzidos e que no sculo XVII, por exemplo, era flagrante a desproporo entre os d ireitos mesmo legtimos de que ela desfrutava e os deveres insignificantes que lhe incumbiam. O grande mal foi os nobres se terem desligado das suas terras e no ter em sabido adaptar os seus privilgios s novas condies de existncia; desde o momento em que o servio de um feudo, nomeadamente a sua defesa, deixou de ser um encargo on eroso, os privilgios da nobreza ficaram sem objecto. Foi isso que fez a decadncia da nossa aristocracia, decadncia moral que seria seguida de uma decadncia material , bem merecida. A nobreza directamente responsvel pelo mal-entendido, que ir aumen tando, entre o povo e a realeza; tornada intil e muitas vezes prejudicial ao tron o (foi entre a nobreza, e graas a ela, que se espalhou a doutrina dos enciclopedi stas, a irreligio voltaireana e as divulgaes de um JeanJacques), ela contribuiu gra ndemente para conduzir Lus XVI ao cadafalso e Carlos X ao exlio; justo que ela os tenha seguido, a um e a outro. Mas podemos pensar que ainda assim foi uma pesada perda para o nosso pas; um pas sem aristocracia um pas sem ossatura, como sem trad ies, pronto para todas as vacilaes e para todos os erros.

CAPTULO IH A VIDA RURAL Na diviso um pouco sumria que muitas vezes foi feita da soc iedade medieval, s h lugar para os senhores e para os servos: de um lado a tirania , o arbitrrio e os abusos de poder, do outro os miserveis, sujeitos aos impostos e aos dias de trabalho gratuito 1 discrio; tal a ideia que evocam e no apenas nos ma uais de histria para uso das escolas primrias as palavras nobreza e terceiro estado. simples bom senso basta no entanto para dificilmente admitir que os descendentes dos terrveis Gauleses, dos soldados romanos, dos guerreiros da Germnia e dos fogo sos Escandinavos se tenham reduzido durante sculos a uma vida de animais encurral ados. Mas h lendas tenazes; o desdm pelos s" culos obscuros data alis de antes de Boi eau. Na realidade, o terceiro estado comporta uma srie de condies intermedirias entr e a liberdade absoluta e a servido. Nada de mais diverso e de mais desconcertante que a sociedade medieval e as propriedades rurais da poca: a sua origem absoluta mente emprica d conta dessa prodigiosa variedade na condio das pessoas e dos bens. P ara dar um exemplo, na Idade Mdia, ainda que o emparcelamento do domnio represente a concepo geral do direito de propriedade, existe no entanto aquilo que o nosso t empo j no conhece de todo: a terra possuda em franca propriedade, o aldio (alleu) ou aldio livre (franc-alleu) isento de todos os direitos e imposies de qualquer espcie que seja; isto manteve-se at Revoluo, em que, qualquer terra declarada livre, os a ldios deixaram de facto de existir, j que tudo foi submetido ao controlo e s imposies do Estado. Notemos ainda que na Idade Mdia, quando um campons se instala numa ter ra e nela exerce a sua arte durante o tempo da prescrio, ano o dia, isto , o tempo de percorrer o ciclo completo 1 Taillables e corvables o autor refere-se sujeio dos campnncwH a dois Impostos: a bilha e a corveia trabalho gratuito, que entre ns, no perodo medieval, se designa po r ANDUVA. (N. do R.)

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dos trabalhos dos campos, desde a lavragem at colheita, sem ser perturbado, consi derado o nico proprietrio dessa terra. 2 Isto d ideia do nmero infinito de modalidad es que podemos encontrar s . Hspedes, colonos, lhes, servos so termos que designam condies pessoais diferentes. E a condio das terras apresenta uma variedade ainda ma ior 4 : censo, renda, champart, fazenda, propriedade en bordelage, en marche, en queuaise, complan, en collonge; conforme as pocas e as regies, encontramos uma in finidade de acepes diferentes na posse da terra com um nico ponto comum: que, salvo o caso especial do aldio livre, h sempre vrios proprietrios, ou pelo menos vrios, a ter direito sobre um mesmo domnio. Tudo depende do costume, e o costume adapta-se a todas as variedades de terrenos, de climas e de tradies o que de resto lgico, j ue no se poderia exigir daqueles que vivem num solo pobre as obrigaes que podem ser impostas, por exemplo, aos camponeses da Becia ou da Touraine. De facto, erudito s e historiadores tentam ainda analisar uma das matrias mais complexas que foi of erecida sua sagacidade: h abundncia e diversidade de costumes; h em cada uma delas uma infinidade de diferentes condies, desde a do arroteador, que se instala numa t erra nova e ao qual se pedir apenas uma fraca parte das colheitas, at ao cultivado r estabelecido numa terra em plena produo e sujeito aos censos e rendas anuais; h o s erros sempre possveis provenientes das confuses de termos, j que estes cobrem por vezes realidades completamente diferentes conforme as regies e as pocas; h finalme nte o facto de a sociedade medieval estar em perptua evoluo, e aquilo que verdade n o sculo XII j no o no sculo XIV. O que se pode todavia saber com segurana, que hou na Idade Mdia, para l da nobreza, um conjunto de homens livres que prestavam aos s eus senhores um juramento mais ou menos semelhante ao dos vassalos nobres e um c onjunto no menos grande de indivduos de condio um pouco imprecisa entre a liberdade e a (2) Em Portugal, este tipo de camponeses livres chamavam-se herdadores e enfiteutas. (N. do RJ No Portugal medieval, e segundo Damio Peres, encontramos a partir de u ma hierarquia ascendentes: adscritos gleba, colonos livres, herdadores e enfiteu tas. (N. do RJ * Entre nos, as propriedades, segundo a sua posse, podem ser: Ter ras senhoriais pertencentes s classes nobres. Reguengos pertencentes ao rei. Herd ades dos homens livres, plebeus. Terras foreiras de camponeses livres a quem pag aram o foro ao seu senhor. (N. do R.)

servido. O jurista Beaumanoir distingue nitidamente trs estados: Nem todos os franc os so nobres... Porque chamam-se nobres aqueles que provm de linhagens francas, co mo o rei, duques, condes ou cavaleiros; e esta nobreza sempre transmitida pelos pais [...] Mas no acontece o mesmo para o homem livre (poost) 6, porque o que eles tm de franquia vem-lhes pelas mes, e qualquer pessoa que nasa de me franca, franca e tem livre poosl, para fazer o que quiser... e o terceiro estado o de servo. E e ste conjunto de gente no toda de uma condio, existem vrias condies de servido [... s que no faltam distines a estabelecerOs livres so todos os habitantes das cidades; estas, sabemo-lo, multiplicam-se a partir do comeo do sculo XII. O grande nmero del as que ainda hoje tm o nome de Villefranche6, Villeneuve, Bastide, etc, so para ns uma recordao dessas cartas de povoamento pelas quais todos aqueles que acabavam de se estabelecer numa dessas cidades recentemente criadas eram declarados livres, como eram burgueses e artesos nas comunas, e em geral em todas as cidades do rei no. Para l disso, um grande nmero de camponeses livre; nomeadamente aqueles a quem se chamava plebeus ou vilos, no tendo os termos, bem entendido, o sentido pejorat ivo que depois tomaram; o plebeu o campons, o trabalhador, pois rutura, designa a aco de romper a terra com a relha da charrua; o vilo de uma maneira geral aquele q ue habita um domnio, villa. Depois vm os servos. A palavra foi muitas vezes mal co mpreendida, porque se confundiu a servido, prpria da Idade Mdia, com a escravatura

que foi a base das sociedades antigas e da qual no se encontra qualquer rasto na sociedade medieval. Como refere Loisel: Todas as pessoas so francas neste reino, e logo que um escravo atinge os degraus do conhecimento (ice lui) fazendo-se bapt izar, franqueado. Tendo a Idade Mdia por fora das circunstncias ido buscar o seu voc abulrio lngua latina seria tentador concluir da semelhana dos termos a semelhana de sentido. Ora, a condio do servo totalmente diferente da do escravo antigo: o escra vo uma coisa, no uma pessoa; est sob a dependncia absoluta do seu dono que possui s obre ele direito de vida e de morte; qualquer actividade pessoal -lhe recusada; no conhece nem famlia; nem casamento, nem propriedade. O servo, pelo contrrio, uma p essoa, no uma coisa, e tratam-no como tal. Possui uma famlia, uma casa, um campo e fica desobrigado em relao ao seu senhor logo que pague os censos. No est (3) Homem de poost, designa o vilo em geral. * Em Portugal tambem existe esta orig em no nome de algumas cidades e vilas: Vila 1'Yanca. (N. do R.)

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submetido a um patro, est ligado a um domnio: no uma servido pessoal, mas uma servid real. A restrio imposta sua liberdade que no pode abandonar a terra que cultiva. Ma s, notemo-lo, essa restrio no deixa de ter uma vantagem, j que, embora no possa deixa r a propriedade, tambm no podem tirar-lha; esta particularidade no estava longe, na Idade Mdia, de ser considerada um privilgio, e, de facto, o termo encontra-se num a recolha de costumes, o Brakton, que diz expressamente falando dos servos: tali gaudent privilegio, quod a gleba amoveri non poterunt [...] gozam desse privilgio de no poderem ser arrancados sua terra (mais ou menos aquilo que seria nos nossos dias uma garantia contra o desemprego). O rendeiro livre est submetido a toda a espcie de responsabilidades civis que tornam a sua sorte mais ou menos precria: se se endivida, podem confiscar-lhe a terra; em caso de guerra, pode ser forado a t omar parte nela, ou o seu domnio pode ser destrudo sem compensao possvel. O servo, es se, est ao abrigo das vicissitudes da sorte; a terra que trabalha no pode escaparlhe, da mesma maneira que no pode afastar-se dela. Esta ligao gleba muito revelador a da mentalidade medieval, e, notemo-lo, a este nvel, o nobre est submetido s mesma s obrigaes que o servo, porque ele to-pouco pode em caso algum alienar o seu domnio ou separar-se dele de qualquer forma que seja: nas duas extremidades da hierarqu ia encontramos essa mesma necessidade de estabilidade, de fixao, inerente alma med ieval, que produziu a Frana e de uma maneira geral a Europa ocidental. No um parad oxo dizer que o campons actual deve a sua prosperidade servido dos seus antepassad os; nenhuma instituio contribuiu mais para o destino do campesinato francs; mantido durante sculos sobre o mesmo solo, sem responsabilidades civis, sem obrigaes milit ares, o campons tornou-se o verdadeiro senhor da terra; s a servido poderia realiza r uma ligao to ntima do homem gleba e fazer do antigo servo o proprietrio do solo- S a condio do campons na Europa oriental, na Polnia e noutros lugares, permaneceu to m iservel, porque no houve esse lao protector da servido; nas pocas de perturbao, o no proprietrio, entregue a si prprio, responsvel pela sua terra, conheceu as mais t errveis angstias que facilitaram a formao de domnios imensos; donde um flagrante dese quilbrio social, contrastando a riqueza exagerada dos grandes proprietrios com a c ondio lamentvel dos seus rendeiros. Se o campons francs pde desfrutar at aos ltimos os de uma existncia fcil, em relao ao campons da Europa oriental, no apenas rique solo que o deve, mas tambm e sobretudo sabedoria das nossas antigas instituies, qu e fixaram a sua sorte no momento cm que linha mais

necessidade de segurana e o subtraram s obrigaes militares, as quais, posteriormente, pesaram mais duramente sobre as famlias camponesas. As restries impostas liberdade do servo decorrem todas dessa ligao ao solo. O senhor tem sobre ele direito de squ ito, isto , pode lev-lo fora para o seu domnio em caso de abandono, porque, por defi nio, o servo no pode deixar a terra; s feita excepo para aqueles que partem em pere nao. O direito de jormariage arrasta a interdio de se casar fora do domnio senhorial quem se encontrar adscrito, ou, como se dizia, abreviado; mas a Igreja no deixar de protestar contra este direito que atentava contra as liberdades familiares, e qu e se atenuou de facto a partir do sculo x; estabelece-se ento o costume de reclama r somente uma indemnizao pecuniria ao servo que deixava um feudo para se casar num outro; a se encontra a origem desse famoso direito senhorial, sobre o qual foram di tos tantos disparates: no significava outra coisa seno o seu direito de autorizar o casamento dos servos; mas como, na Idade Mdia, tudo se traduz por smbolos, o dir eito senhorial deu lugar a gestos simblicos cujo alcance se exagerou: por exemplo , colocar a mo, ou a perna, no leito conjugal, donde o termo por vezes empregado de direito de pernada, que suscitou tantas interpretaes deplorveis, de resto perfei tamente erradas. A obrigao sem dvida mais penosa para o servo era a mo-morta: todos os bens por ele adquiridos durante a vida deviam depois da sua morte regressar p

ara o senhor; por isso tambm essa obrigao foi reduzida desde muito cedo, e o servo ficou com o direito de dispor por testamento dos seus bens mveis (porque a sua pr opriedade passava de qualquer modo para os filhos). Alm disso, o sistema de comun idades silenciosas permitiu-lhe, conforme o costume do lugar, escapar mo-morta, j que o servo podia, como o plebeu, formar com a famlia uma espcie de sociedade agru pando todos aqueles que pertenciam a um mesmo po e pote, com um chefe temporrio cuja morte no interrompia a vida da comunidade, continuando esta a desfrutar dos bens de que dispunha. Finalmente, o servo podia ser franqueado; as franquias multipl icaram-se mesmo a partir do sculo XIII, j que o servo devia comprar a sua liberdad e, quer em dinheiro, quer comprometendo-se a pagar um censo anual como o rendeir o livre. Temos um exemplo na franquia dos servos de Villeneuve-Saint-Georges, de pendente de Saint-Germain-des-Prs, por uma soma global de 1400 libras. Esta obrig ao do resgaste explica sem dvida por que razo as franquias foram muitas vezes aceite s de muito mau grado pelos seus beneficirios; a ordenana de Lus X, o Hutin, que em 1315 franqueou

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todos os servos do domnio real, embateu em muitos lugares com a m vontade dos servo s recalcitrantes. A servido no mais mencionada, quando da redaco dos costumes no sc XIV, seno nos de Bourgogne, de Auvergne, do Boubonnais e do Nivernais, e nos cos tumes locais de Chaumont, Troyes e Vitry; de resto em toda a parte tinha desapar ecido. Algumas ilhotas de servido muito moderada subsistiram aqui e ali, que Lus X VI aboliu definitivamente em 1779 dez anos antes do gesto teatral da demasiado f amosa noite de 4 de Agojto no domnio real, convidando os senhores a que o imitasse m: que se tratava de uma matria de direito privado sobre a qual o poder central no tinha o direito de legislar. As actas mostram-nos, alis, que os servos no tinham de todo face aos senhores essa atitude de ces espancados, que demasiadas vezes se sups. Vemo-los discutir, afirmar o seu direito, exigir o respeito por antigas co nvenes e reclamar sem rodeios o que lhes devido. ~ * Teremos o direito de aceitar sem controlo a lenda do campons miservel, inculto (esta uma outra histria) e despre zado, que uma tradio bem estabelecida impe ainda a um grande nmero dos nossos manuai s de histria? O seu regime geral de vida e de alimentao no oferecia nada, v-lo-emos, que deva suscitar piedade. O campons no sofreu mais na Idade Mdia do que sofreu o h omem em geral em todas as pocas da histria da humanidade. Sofreu a repercusso das g uerras: tero elas poupado os seus descendentes dos sculos xix e XX? Alm disso, o se rvo medieval estava livre de qualquer obrigao militar, como a maior parte dos pleb eus; alm disso, o castelo senhorial era para para ele um refgio na desventura, e a paz de Deus uma garantia contra as brutalidades dos homens de armas. Sofreu a f ome nas pocas de ms colheitas como sofreu o mundo inteiro at que as facilidades de t ransportes permitiram levar ajuda s regies ameaadas, e mesmo a partir dessa altura ... , mas tinha a posssibilidade de recorrer ao celeiro do senhorNo houve seno uma p oca realmente dura para o campons na Idade Mdia, mas ela foi-o para todas as class es da sociedade indistintamente: foi a dos desastres produzidos pelas guerras qu e marcaram o declnio da poca perodo lamentvel de perturbaes e de desordens engendra por uma luta fratricida, durante a qual (7) Em Portugal, a partir dos fins do sculo XI at princpios do sculo XIII o servo ad scrito gleba foi progressivamente transformado em colono livre. Entre ns, foi D. Afonso III que deu exemplo nos seus reguengos ao dar carta de franquia aos servo s. (N. do li.) a Frana conheceu unia misria que s se pode comparar das guerras de Religio, da Revol uo ou do nosso tempo: bandos de plebeus devastando o pas, fomes provocando revoltas e insurreies camponesas e para cmulo essa terrvel epidemia de peste negra que despo voou a Europa. Mas isso faz parte do ciclo de misrias prprias da humanidade, e das quais nenhum povo foi isento; a nossa prpria experincia basta largamente para nos informar sobre isso. O campons ter sido o mais desprezado? Talvez nunca o tenha si do menos, de facto, que na Idade Mdia. Determinada literatura em que o vilo muitas vezes jogado no deve iudir-nos: no seno o testemunho do rancor, velho como o mundo , que o charlato, o vagabundo sente pela situao do campons, do domnio cuja morada , o esprito por vezes lento e a bolsa muitas vezes lenta a abrir-se acrescentado aptido, bem medieval, para zombar de tudo, inclusive aquilo que parece mais respe itvel. Na realidade, nunca os contactos foram mais estreitos entre as classes dit as dirigentes neste caso os nobres e o povo: contactos que a noo de lao pessoal facil ita, essencial para a sociedade medieval que as cerimnias locais, festas religios as e outras multiplicam, e nas quais o senhor encontra o rendeiro, aprende a con hec-lo e partilha a sua existncia muito mais estreitamente que nos nossos dias os pequenos burgueses partilham a dos seus criados. A administrao do feudo obriga a t er em conta todos os detalhes da vida dele; nascimentos, casamentos, mortes nas famlias de servos entram em linha de conta para o nobre, como interessando direct

amente o domnio; o senhor tem encargos judicirios, donde para ele a obrigao de assis tir os camponeses, de resolver os seus litgios, de arbitrar os seus diferendos; t em portanto em relao a eles uma responsabilidade moral, do mesmo modo que suporta a responsabilidade material do feudo em relao ao suserano. Nos nossos dias o patro de fbrica encontra-se liberto de qualquer obrigao material e moral relativamente ao s operrios logo que passaram pela caixa para receber o salrio; no o vemos abrir as p as da sua casa para lhes oferecer um banquete, na ocasio, por exemplo, do casamen to de um dos filhos. Na globalidade, uma concepo totalmente diferente da que preva lece na Idade Mdia, durante a qual, como disse mais ou menos Jean Guiraud, o camp ons ocupa a ponta da mesa, mas a mesa do senhor. Poderamos facilmente dar conta di sso deitando uma olhadela sobre o patrimnio artstico que essa poca nos legou e cons tatando o lugar que o campons nela ocupa. Na Idade Mdia, ele est em toda a parte: n os quadros, nas tapearias, nas esculturas das catedrais, nas iluminuras dos manus critos; em toda a parte encontramos

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o s trabalhos dos campos como o mais corrente tema de inspirao. Que hino glria do c ampons valer alguma vez as miniaturas das Trs riches heures du Duc de Berry ou o Li vre des proujfictz champestres, iluminado pelo bastardo Antoine de Bourgogne, ou ainda os pequenos quadros dos meses na fachada de Notre-Dame e em tantos outros edifcios? E, notemo-lo, em todas estas obras de arte, executadas pela multido ou pelo amador nobre, o campons aparece na sua vida autntica: removendo o solo, manej ando a enxada, podando a vinha, matando o porco. Haver uma outra poca, uma s, que p ossa apresentar tantos quadros exactos, vivos, realistas, da vida rural? Que ind ividualmente determinados nobres ou determinados burgueses tenham manifestado de sdm pelos camponeses, possvel e mesmo certo: tal no existiu em todas as pocas? Mas a mentalidade geral, contando com hbitos sarcsticos da poca, tem muito nitidamente c onscincia da igualdade fundiria dos homens no meio das desigualdades de condio. Fils de vilain preux et courtois Vaut quinze mauvais fils de rois diz Robert de Bloi s, e Reclus de Molliens, no seu poema de Miserere, protesta vigorosamente contra aqueles que se crem superiores aos outros: Garde qui tu as en ddain, Franc hom, q ui m'appelles vilain J de ce mot ne me plaindrais Si plus franc que moi te savais . Qui fut ta mre, et qui la moie? [la mienne] Andoi [toutes deux] furent filies E vain. Or mais ne dis que vilain sois Plus que toi, car je te dirois Tel mot ou a trop de levain 9. um jurista, Philippe de Novare, quem distingue trs tipos de hu manidade: as gentes francas, isto , todos aqueles que tiverem franco corao ... e aque e que tiver corao franco, donde quer que tenha vindo, deve ser chamado franco e ge ntil; porque se de um 8 Filho de vilo valente e corts/Vale quinze maus filhos de reis. 9 Olha quem tens em desdm/Franco homem, que me chamas vilo./ Dessa palavra no me lamentaria/Se mais franco que eu te soubesse./ Quem foi a tua me, e quem a minha f/Ambas foram fillu is de Eva./ Ora no me digas que vilo sou/Mais que tu, porque tu direi/(puc tal pal avra tem muito de leviano.

mau lugar e bom, tanto mais honrado deve ser; as pessoas de ofcio e os viles, isto , aqueles que no prestam servio seno constrangidos pela fora, todos aqueles que o faze m so justamente viles, quer fossem servos ou jornaleiros ... Fidalguia e valor de antepassados no faz seno prejudicar um mau herdeiro desonrado. Poderamos citar em gr ande nmero essas proclamaes de igualdade, como no Roman de Fauvel: Noblesse, si com dit le sage Vient tant seulement de courage Qui est de bons moeurs aorn. Du vent re, sachez, pas ne vient10. Duma maneira mais geral, ser possvel dizer que um ser que ocupou um lugar de primeiro plano nas manifestaes artsticas e literrias de uma n ao tenha podido ser por ela desprezado? Sobre este ponto como sobre tantos outros, confundiram-se as pocas. Aquilo que verdade para a Idade Mdia no o para tudo aquil o a que chamamos o Antigo Regime. A partir do fim do sculo x v , produz-se uma ci so entre os nobres, os letrados e o povo; futuramente, as duas classes vivero uma vida paralela, mas penetrar-se-o e compreender-se-o cada vez menos. Como natural, u alta sociedade drenar para si a vida intelectual e artstica e o campons ser banido da cultura como da actividade poltica do pas. Desaparece da pintura, salvo raras excepes em todo o caso da pintura em voga , da literatura, como das preocupaes dos gr ndes. O sculo XVIII j no conher seno uma cpia completamente artificial da vida rural. Que o campons tenha sido, seno desprezado, pelo menos desdenhado e mal conhecido, do sculo x v i J 1 at aos nossos dias, no constitui qualquer dvida, mas tambm est for de questo que na Idade Mdia tenha tido um lugar