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ANAIS CONGRESSO DO MESTRADO EM DIREITO E SOCIEDADE DO UNILASALLE GT PLURALISMO RELIGIOSO, INTERCULTURALISDADE E LAICIDADE CANOAS, 2015

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ANAIS

CONGRESSO DO MESTRADO EM

DIREITO E SOCIEDADE DO UNILASALLE

GT – PLURALISMO RELIGIOSO, INTERCULTURALISDADE E LAICIDADE

CANOAS, 2015

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OS VALORES COMO EXPRESSÃO DA INTERCULTURALIDADE

André Luís Vieira Elói

RESUMO: O trabalho objetiva demonstrar como os valores de uma comunidade não necessariamente estão vinculados à religião predominante no meio, pois mesmo aqueles que não compartilham da fé compartilham de muitos valores em comum com a coletividade onde se insere. Os valores compartilhados por uma comunidade, ou pelo menos sua grande maioria, independem da aderência de seus membros a uma determinada crença religiosa. Em função da intersubjetividade da linguagem, tanto aqueles que compartilham de crenças religiosas quanto os ateístas que são parte de uma mesma comunidade terão valores em comum, evidenciando que estes são resultado da historicidade de um grupo e não de sua religião dominante. PALAVRAS-CHAVE: valores, religião, linguagem, intersubjetividade. 1 INTRODUÇÃO

Através de análise de obras de Gadamer e Foucault, pretende-se

compreender como os valores e crenças, sua formação, tradição e relação com a

cultura, buscando relacioná-lo com a intersubjetividade

Em um primeiro momento o trabalho analisa a hermenêutica filosófica para

demonstrar a indissociabilidade entre homens, Estado e Religião da historicidade

que se encontram e de como a tradição e intersubjetividade inerente à linguagem

constituem os sujeitos de uma comunidade.

Em um segundo momento são analisados alguns ensinamentos de

Foucault para demonstrar que nesta imersão na linguagem lecionada por

Gadamer há, também, uma influência inevitável das relações de poder

constituídas na sociedade.

Concluindo que a linguagem, como meio de possibilidade de compreensão

do mundo, nos traz preconceitos que modulam nossa compreensão. Nossos

valores são parte, e ao mesmo tempo resultado, dos preconceitos, de nossa

tradição e das relações de poder vigentes. Portanto, os valores são resultados de

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uma intersubjetividade que deve ser problematizada publicamente para constriur-

se democracia.

2 CONSIDERAÇÕES INICIAIS

As questões acerca da relação entre Estado, Cidadão, valores e crença

religiosa, ao longo dos séculos sempre permeiam as discussões jurídicas,

filosóficas e politicas. Ao longo da história teve contornos e enfoques diferentes,

mas nunca deixaram de ser discutidos, por serem institutos que inevitavelmente

envolvam todos, pois se tratam de questões relativas aos indivíduos e sua relação

com a comunidade da qual fazem parte.

Na atual conjuntura política brasileira, a relação entre Estado e religião tem

tomado grandes proporções e espaços de discussão em função do crescente

número de mandatários políticos que representam grupos religiosos.

Se há representantes de grupos religiosos atuando dentro dos centros de

produção normativa (legislativo) e nos centros de aplicação de normas (judiciário),

podemos ter valores ligados, ou supostamente vinculados, a crenças religiosas.

Para compreender os riscos e as possibilidades de inclusão que as crenças

religiosas, ou valores religiosos, podem trazer à vida em comunidade, se faz

necessária a análise do papel dos valores no Direito, sua relação com dogmas ou

crenças religiosas e, ainda, como os discursos (religiosos ou jurídicos), podem

tanto libertar quanto oprimir.

Para tanto, se faz necessária a compreensão de como funcionam as

narrativas e como a intersubjetividade atua sobre cada indivíduo (o que acontece

de maneira muito semelhante, no direito e na religião).

3 CONTRIBUIÇÕES DA HERMENÊUTICA FILOSÓFICA

A hermenêutica filosófica de Gadamer nos traz conceitos que se mostram

de grande importância na formulação de resposta aos problemas de relações

entre o Direito, as crenças religiosas e os valores.

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Gadamer parte de conceitos formulados por Heidegger para construir sua

hermenêutica. Ele parte do abandono do conceito moderno de objetividade da

ciência buscando uma compreensão inserida em uma historicidade.

Segundo Gadamer, Heidegger demonstra que a compreensão se

desenvolve dentro de uma estrutura circular a partir da temporalidade da pré-

sentença, o círculo hermenêutico. Mas o que isso quer dizer? Para Heidegger a

interpretação se inicia com conceitos prévios que, posteriormente, podem ser

substituídos por outros que se mostrem mais adequados. O intérprete está

sempre sujeito a opiniões prévias que podem ser, ou não confirmadas diante de

um caso concreto ou de novos problemas.

Quem busca compreender deve se manter aberto à possibilidade de sua

opiniões prévias não serem adequadas. Nas palavras de Gadamer: A

compreensão somente alcança sua verdadeira possibilidade, quando as opiniões

prévias, com as quais ela inicia, não são arbitrárias. Por isso faz sentido que o

intérprete não se dirija ao textos diretamente, a partir da opinião prévia que lhe

subjaz, mas que examine tais opiniões quanto à sua legitimação, isto é, quanto à

sua origem e validez. (Gadamer, 1997, p. 403)

Para Heidegger uma consciência hermenêutica se mostra receptiva, mas

não se anula, não ignora suas opiniões prévias e preconceitos. Novamente nas

palavras de Gadamer (1997, p. 406) “uma compreensão guiada por uma

consciência metódica procurará não simplesmente realizar suas antecipações,

mas, antes, torná-las conscientes para poder controlá-las e ganhar assim uma

compreensão correta a partir das próprias coisas.” Para Gadamer, o que leva o

problema hermenêutico à sua verdadeira realidade é o reconhecimento destas

antecipações, de seus preconceitos.

O risco que nos traz uma tentativa de compreensão objetivista é

justamente este, não se preocupar com os preconceitos, não os trazendo à tona

para que possam ser colocados à prova. Somente com a colocação dos

preconceitos à prova, é possível saber se estes são legítimos ou não.

Na hermenêutica filosófica deve-se compreender o todo a partir do

individual e o individual a partir do todo, não existindo uma interpretação subjetiva,

mas sempre intersubjetiva. Quando buscamos compreender algum enunciado,

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não é necessário compreender a constituição psíquica de seu autor, mas sob qual

perspectiva ele a formulou. Ou seja, não se deve buscar estabelecer uma práxis

de interpretação opaca como princípio, mas inserir a interpretação num contexto.

Daí se mostra a importância de compreender alguns conceitos de Gadamer para

possibilitar uma melhor relação entre questões públicas de uma comunidade

(Direito), religião e valores.

Para Gadamer, o circulo hermenêutico é o espaço onde o corre

dialogicamente a relação entre o intérprete e a tradição. A interpretação não é e

nem pode ser subjetiva, pois é determinada pelo que une o sujeito à tradição.

Portanto, nossa compreensão de mundo está diretamente ligada aos nossos

valores e crenças, mesmo que não estejamos conscientes desta liação.

A hermenêutica, a compreensão do mundo, se dá na relação entre a

faticidade e a historicidade do interprete. Com isso, Gadamer que dizer que o

sentido de um texto é determinado pelo tempo e contexto histórico nos quais o

leitor está inserido. Ele não se esgota no momento em que o autor o escreveu, é

um processo infinito. Há de se ressaltar que o sentido de texto, em Gadamer, não

se dá de maneira literal, deve-se aplicar o termo texto a qualquer coisa a ser

compreendida.

O papel da hermenêutica, então, deixa de ser a criação de um

procedimento de compreensão, mas a demonstração, o desvelamento, das

condições em que surge. A possibilidade de conhecimento está na pergunta que

é feita diante de um fato apresentado, cabendo ao hermeneuta encontrá-la.

O processo de compreensão acontece na mediação do universo de

linguagem prévio, onde o hermeneuta se espelha (historicidade), e o evento ou

fato que se apresenta diante dele (faticidade), provocando um estranhamento que

“gira” o círculo hermenêutico, eclodindo em um novo horizonte de compreensão.

Segundo Streck “Essa faticidade e historicidade é o lócus da pré-

compreensão, condição de possibilidade para qualquer interpretação” (Streck,

2011, p. 271). O que determinará o sentido de um texto para seu intérprete é a

sua condição no mundo. só interpreto se compreendo; só compreendo se tenho a

pré-compreensão, que é constituída de uma estrutura prévia (Vorhabe), visão

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prévia (Vorsicht) e concepção prévia (Vorgriff), que já une todas as partes (textos)

do sistema. (Streck, 2011, p. 271)

Portanto, a interpretação deixa, a partir de Gadamer, de ser uma

manifestação de vontade, uma escolha, do intérprete, sendo resultado de

condições pré-estabelecidas social e historicamente, e a este transmitido pela

linguagem (possibilidade de manifestação de sentido).

A interpretação jurídica é uma tarefa criativa, não reprodutiva, pois

depende diretamente do caso concreto, que em momentos históricos diferentes

pode encontrar necessidades e soluções diferentes. Interpretar a lei é atribuir

sentido ao dispositivo diante de um caso concreto.

Tal criatividade pode, aparentemente, gerar conflitos com os discursos

religiosos, que se baseiam nas palavras de um Deus, que seria algo inatingível e

eterno, imutável. É o que muitos religiosos defensores de padrões morais

baseados em dogmas religiosos pensam. Entretanto, conforme Gadamer deixa

claro, a leitura da palavra deste Deus também é influenciada pela historicidade

em que o intérprete se encontra.

Outro conceito relevante para a compreensão de como o intérprete está

conectado com sua historicidade é o conceito de tradição. Gadamer, em sua

crítica ao Aufklarung, defende com uma atenção especial um tipo de autoridade,

que é de fundamental importância para a compreensão do papel da

jurisprudência, a tradição. Para Gadamer, as autoridades somente são

reconhecidas como tal por atos de constantes reconhecimentos, por estarem

constantemente colocadas à prova. A tradição é um tipo de autoridade que

influencia de forma bastante ampla o comportamento humano, muitas vezes de

maneira alheia à razão.

Segundo o filósofo alemão, os costumes podem ser adotados de maneira

livre, contudo, sua legitimação e criação não são baseados em pura inspiração,

mas na razão. Não é possível compreender a tradição de forma isenta de

preconceito, através da razão pura, pois o homem é um ser inserido em

determinado contexto e momento históricos, dos quais a própria tradição é parte

fundamental, pois à margem dos fundamentos da razão, a tradição conserva as

nossas instituições e comportamentos.

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Há de se ressaltar que Gadamer, ao defender a importância da tradição,

jamais objetivou passar a idéia de que as tradições são inquestionáveis e

imutáveis. Pelo contrario, a possibilidade da conservação desta depende de

constante colocação à prova. Segundo ele, “a conservação é um ato da razão,

ainda que caracterizado pelo fato de não atrair atenção sobre si [...] A

conservação representa uma conduta tão livre quanto a destruição e a inovação.”

(Gadamer, 1997, p. 422, 423)

O reconhecimento do valor da tradição está diretamente relacionado com

os efeitos que a historia opera em toda compreensão, esteja o intérprete ciente ou

não. Ser consciente do efeitos da história é conhecer o horizonte hermenêutico no

qual se está inserido, que é onde nos encontramos face à tradição que tentamos

compreender.

Novos horizontes são adquiridos quando se tenta ver além do que está

próximo. Nesta tentativa, entretanto, não se deixa de lado os conceitos que já

possui, mas os integra em um novo todo de uma forma mais adequada diante de

novos problemas. Não há de se dizer que que a hermenêutica favorece um

conservadorismo, já que a fusão de horizonte dará passagem a algo sempre

imprevisível e novo.

Para Gadamer, por mais que interprete se prenda à letra do texto, não há

garantia de reprodução do sentido original. Por isso a interpretação é sempre

criativa. Mesmo que religiosos pensem o contrário.

Em linha similar Ost nos ensina que a leitura que fazemos do passado

constitui nossa forma de compreensão do presente e demonstra as expectativas

que temos para com o futuro. Uma leitura equivocada e inverídica desse passado

pode nos levar a construir um presente frágil, que será o alicerce fadado à ruína

do futuro. Ele diz que “uma sociedade amputada de suas raízes, órfã de sua

história, encontra barrado seu acesso ao futuro” (OST, 2005, p. 29). A memória que lembra existir o dado e o instituído. Acontecimentos que importam e ainda importam e são suscetíveis de conferir um sentido (uma direção e uma significação) à existência coletiva e aos destinos individuais. Instituir o passado, certificar os fatos acontecidos, garantir a origem dos títulos, das regras, das pessoas e das coisas: eis a mais antiga a mais permanente das funções do jurídico. Na falta de tais funções,

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surgiria o risco da anomia, como se a sociedade construísse sobre areia. (OST, 2005, p. 49)

Mesmo as lembranças íntimas de uma pessoa são, por esta,

compreendidas se baseando em signos, referências, conceitos trazidos pela

tradição através da linguagem. Nas palavras de Ost: Acontece que nossas lembranças, até as pessoais e mais íntimas, só conseguem se exprimir em termos tomados de empréstimo à tradição; eles só fazem sentido, por outro lado, sendo tomados por uma comunidade afetiva e social que não demora em retrabalhá-lhos. Só nos lembramos, então, sob a condição de nos colocarmos no meio desta ou daquela corrente de pensamento coletivo e adotar seu ponto de vista. (OST, 2005, p. 57)

Ele define memória coletiva como a memória “viva”, aquela que está

próxima dos acontecimentos, que ainda é influenciada pela experiência daqueles

que nela estão inseridos.

Já a memória histórica é aquela que engendra um saber histórico, é a

narrativa dos fatos “com uma certa distância”, a partir de dados do presente, que

já nos trouxe interpretações intermediárias e sucessivas na construção narrativa

(tradição).

Voltando a Gadamer, a interpretação depende diretamente do caso

concreto, que em momentos históricos diferentes pode encontrar necessidades e

soluções diferentes. Interpretar é atribuir sentido a um preconceito diante de um

caso concreto.

Daí a importância de se compreender o papel e o significado da tradição. O

homem é um ser inserido em determinado contexto e momento históricos, dos

quais a própria tradição é parte fundamental, pois conserva as nossas instituições

e comportamentos.

Gadamer, através de sua hermenêutica, acaba com a concepção de

afastamento entre Estado, Religião e intérprete, entre homem e história e

demonstra que toda e qualquer discussão sobre é paradigmática, por estar

inserida em um contexto histórico que exerce influência sobre seus sujeitos.

Os efeitos da história operam em toda compreensão, esteja o leitor

consciente disso ou não. A reflexão da história nunca é esgotada, pois se

encontra na essência do ser histórico que somos (que nunca se esgota no saber-

se).

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A consciência da história efeitual é a consciência da situação

hermenêutica, da situação (âmbito de visão que abarca tudo que é possível de se

enxergar a partir de determinado ponto) em que um intérprete se encontra face à

tradição que deseja compreender, de seu paradigma.

Ou seja, para Gadamer, por mais que o intérprete se prenda à letra do

texto, não há garantia de reprodução do sentido original. Daí a importância de

saber o paradigma onde está inserido, pois o que se deve saber ou compreender

de um paradigma anterior já foi levado ao intérprete pela linguagem e pela

tradição. O que não foi levado a ele, não o foi por não mais ter se mostrado útil

diante da realidade que se põe diante dele.

4 CONTRIBUIÇÕES FOUCAULTIANAS

Assim como Gadamer, Foucault percebeu que o homem está inserido

em um mundo da linguagem e que dele se constitui, não havendo como dissociar

valores e crenças de suas práticas e relação com a coletividade. Entretanto, o

francês toca em um ponto que torna sua obra um pouco mais aguda: o poder e

seu funcionamento em rede.

Foucault não cria teorias para explicar o poder, mas pretende escarnar

seu funcionamento, para demonstrar os efeitos que este “poder que funciona”

gera sobre a sociedade e as relações entre homem e Estado. Para ele o poder é

uma rede relacionamentos, formado por tudo que acontece na sociedade.

Nesta percepção tanto o Estado, através do Direito, quanto a religião,

através de igrejas e organizações religiosas de todo o tipo, (re)produzem relações

de poder através de seus discursos que se pretendem universais.

Ambos funcionam como meios de estabilização e reprodução das

relações de poder que permeiam as vidas dos seres humanos ao pretenderem

produzir os discursos de verdade.

Entretanto, há de se atentar para o risco que existe nisso. Pois o

discurso de verdade que se pretende universal ou único legítimo, acaba criando

padrões, que muitas vezes cruéis e opressores com aqueles que não se

encaixam nele.

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Através da reprodução do discurso, cria-se ilusões de ordem, certo

errado, que, em função do funcionamento do poder, são aceitos e replicados

mesmo por aqueles que são excluídos por esse próprio discurso.

A partir de Foucault, utilizando um termo de Gadamer, o poder passa a

ser entendido como algo que caminha junto à tradição, atrelado à linguagem. Se o

ser humano está imerso na linguagem, como leciona Gadamer, também está

imerso em relações de poder, que são transmitidas através desta, na agudez de

Foucault.

As relações de poder são passadas, mesmo que involuntariamente, e

passam a fazer parte dos preconceitos de qualquer sujeito, que se não conseguir

problematiza-las, as reproduzirá.

As sociedades modernas utilizam de instrumentos de disciplina e

normalização, em uma tentativa de unificar discursos de verdade. E o Direito e a

Religião talvez sejam os principais instrumentos nessa missão.

O discurso de que é preciso que há algo superior que nos traz as

verdade muitas vezes pode parecer cômodo, pois tira do sujeito a reponsabilidade

sobre sua própria vida. E isso é também resultado do poder funcionando.

Através de Foucault se torna possível perceber que outras formas de

diálogo são necessárias para a construção de um mundo que não exclua quem

não é padrão.

O discurso religioso e do direito visam a manutenção das estruturas de

poder e suas relações. Como produtores de narrativas e discursos que se

pretendem como verdade o direito e a religião funcionam como o meios de

viabilizar a manutenção das relações de poder já vigentes.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir das concepções estudadas fica claro que o discurso de verdade

está atrelado tanto à historicidade, quanto às relações de poder vigentes em uma

comunidade.

A laicidade não significa que o Estado ou seus sujeitos devam pretender

uma neutralidade em relação à valores, crenças religiosas ou práticas

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tradicionais. Como Gadamer deixa claro, nossa compreensão de mundo é guiada

e formada pelos nossos preconceitos, que são diretamente formados por estes

institutos.

Se o Estado se pretender neutro a questões éticas e religiosas, na verdade

vai gerar um grau cada vez maior de exclusão, pois se dizer neutro é, na verdade,

tentar ignorar o que constitui a própria comunidade e as relações de poder

vigentes.

Assumir os valores e discutir abertamente junto com as crenças religiosas

é que vai permitir que uma comunidade perceba o que realmente seus membros

compartilham, e o que não compartilham. Inclusive, é nesse momento que os

religiosos perceberão que muitos dos valores que eles atribuem à sua crença, na

verdade, são compartilhados por muitos de sua comunidade, que nem

compartilham da sua crença religiosa.

Isto acontece em função da intersubjetividade que, como leciona Gadamer,

está diretamente ligada à condição da linguagem como locus universal. É a

linguagem a condição essencial de todo ser humano na compreensão de mundo.

É o aspecto universal da linguagem que torna possível que tenhamos

compreensão sobre qualquer coisa, compreensão esta também já guiada pelas

relações de poder (como leciona Foucault)

Portanto, não há problemas na inserção de temas religiosos ou valores no

mundo jurídico ou nas questões públicas, desde que sejam discutidos para

verificar se fazem parte da intersubjetividade de uma comunidade, se fazem parte

dos valores culturais compartilhados por todos e que não exclua ninguém.

Ao contrário do que possa parecer, democracia não é a regra da maioria,

nem a imposição de padrões. Democracia significa que as pessoas se vêem

como parceiras de um empreendimento político comum, compartilham de valores

e princípios e se respeitam em suas diferenças.

A pretensão à neutralidade, que ignora a relação da historicidade com o

presente e a pertença do intérprete a uma tradição e uma linguagem, apenas

limita o intérprete e, conseqüentemente, a aplicação produtiva e a renovação da

sociedade como um todo.

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Alguém que se sabe pertencente a algo anterior a ele próprio, enxerga o

mundo não mais como um conjunto de padrões, mas como uma construção

histórica infinita de sua comunidade, como tradição e linguagem. Faz-se

necessário compreender que o intérprete faz parte da coletividade, sendo

constituído também por ela, mas também fazendo parte de sua construção,

inclusive na religião.

A tradição histórica e sua relação inevitável com a linguagem são a

condição de possibilidade compreensão, e não um caminho a seguir colocado

diante do intérprete.

O Estado não pode e nem tem a função de impor aos seus sujeitos uma

tradição autoritativa. Este deve ser pensado como tradição, ligada à ideia de

transmissão, por estar diretamente relacionado com os efeitos que a história

opera em toda compreensão e nas relações de poder vigentes. Transmissão que

se dá por meio da linguagem.

A compreensão da tradição, nos termos da hermenêutica filosófica e de

Foucault, contribui para o fim da rotulação autoritativa, de imposição e de falta

racionalidade atribuída pelo pensamento moderno, resgatando o sentido de

transmissão e explicitando a relação indissociável com a linguagem.

Quando um discurso é proferido, está sendo aplicada uma tradição, mas

não de forma reprodutiva do passado, mas no sentido de trazer respostas a

perguntas novas, a partir de referenciais e pontos de partida transmitidos pela

linguagem. Referenciais estes que já são compreendidos através de uma

mediação com o próprio presente.

A consciência do intérprete de que é parte da história (estando inserido em

uma linguagem e em uma tradição), sendo constituído por ela e dela participando

da construção (se tem consciência das relações de poder), o leva a uma agudez

hermenêutica, a uma aproximação de ser um espírito livre.

A construção de sentidos não se dá de maneira isolada por um método e

separada da história, só sendo possível a partir da pertença a uma tradição,

estando o intérprete ciente ou não. O Dasein não pode desvincular-se do

contexto, dos costumes e tradições que formam seu horizonte hermenêutico, que

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é o espaço onde o corre dialogicamente a relação entre o intérprete e a tradição

em que se encontra.

Compreender é sempre aplicar algo geral a uma situação particular,

mesmo na religião. Não há como separar o intérprete do texto, do objeto de

estudo e, por isso, o sentido de um texto se dá na fusão de seu horizonte com o

do leitor, não é algo que será determinado pela pura racionalidade ou por um

método a priori que é utilizado pelo intérprete, mas pela fusão de um horizonte

repleto de pré-compreensões, preconceitos e expectativas de sentido de alguém

que é parte de uma tradição que, diante do novo, passará por uma reflexão, que

consiste na reconstrução de seu próprio ser e de seu mundo, a partir do próprio

texto.

A democracia não nos exige padrões, pois padrões não são absolutos e,

nem sempre, conduzem à verdade (que também não é absoluta). Aquele que se

sabe como parte de algo trará respostas muito mais coerentes às perguntas

apresentadas pela realidade e mais consistentes se colocadas à prova. Além

disso, estará contribuindo de forma incisiva para a construção da democracia.

REFERÊNCIAS

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GRONDIN, J.. Introdução à hermenêutica filosófica. São Leopoldo:UNISINOS, 1999. HART, H. L. A.. O conceito de Direito. 5 ed. Tradução de Antonio de Oliveira Sette-Câmara. São Paulo, Ed. Martins Fontes, 2012. KELSEN, H.. Teoria Pura do Direito. Trad. João Baptista Machado. São Paulo, Ed. Martins Fontes, 2006. RABINOW, P.; DREYFUS. Hubert. Michel Foucault: Uma trajetória filosófica. Rio de Janeiro: Forense, 1995. RIBEIRO, F. J. A.; BRAGA, B. G. A.. A Teoria das Fontes do Direito revisitada: uma reflexão a partir do paradigma do estado democrático de direito. Disponível em: <http://www.conpedi.org.br/manaus/arquivos/anais/salvador/fernando_jose_armando_ribeiro-1.pdf>Acesso em: 30 de março de 2012.

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TOLERÂNCIA RELIGIOSA: UMA ANÁLISE DO PROBLEMA SEMÂNTICO DA “TOLERÂNCIA” E DE SUAS

IMPLICAÇÕES POLÍTICO-JURÍDICAS

Anaisa Almeida Naves Sorna,

Rodigo Vitorino Souza Alves,

RESUMO: Em contextos nos quais a convivência é marcada pela existência de diferenças culturais, religiosas e ideológicas, a tolerância torna-se um imperativo para a manutenção da paz social. Todavia, o termo “tolerância”, tanto no discurso científico quanto na linguagem cotidiana, tem sido utilizado de variadas formas, o que não contribui para a redução das tensões e conflitos sociais, políticos ou culturais, sobretudo em situações envolvendo a religião. Com isso em vista, o trabalho tem como objetivo identificar, descrever e avaliar criticamente os diferentes usos do termo, no contexto da diversidade religiosa, tendo em consideração as relações intersubjetivas assim como as relações entre o Estado e os indivíduos, para ao final apresentar uma proposta de elementos para uma definição. Realizada a pesquisa bibliográfica, identificou-se como principais formas de utilização aquelas que associam o termo a atitudes ou comportamentos caracterizados pela permissão, concordância, indiferença, neutralidade, estima, e respeito. Ao final, concluiu-se que o primeiro uso é adequado para descrever situações em que o Estado, mesmo adotando oficialmente uma determinada ideologia ou religião, permite que indivíduos e grupos professem e pratiquem uma ideologia ou religião diferente (relação vertical). O último uso é adequado para descrever as relações intersubjetivas, nas quais, tendo consciência das discordâncias, os indivíduos assumem uma postura de respeito aos direitos e liberdades assegurados aos demais (relação horizontal). As demais atitudes não descrevem adequadamente o sentido de tolerância. Caso legalmente exigidas, sobretudo no campo das relações intersubjetivas, poderiam acarretar em violação de liberdades fundamentais. PALAVRAS-CHAVE: tolerância; diversidade; ceticismo; relativismo; respeito. 1 INTRODUÇÃO

O sentido dado ao termo tolerância nem sempre foi o mesmo, alterando de

tempos em tempos e, muitas vezes, inclinando-se conforme os interesses dos

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governantes ou do interesse predominante na sociedade. No contexto atual,

compreender o que é tolerar se mostra imprescindível para a proteção da

autonomia individual, assim promovendo as liberdades de consciência, crença e

expressão.

Com isso em vista, o trabalho tem como objetivo identificar, descrever e

avaliar criticamente os diferentes usos do termo “tolerância”, com ênfase na

questão religiosa, tendo em consideração as relações intersubjetivas assim como

as relações entre o Estado e os indivíduos, para então apresentar uma proposta

de elementos para uma definição.

Na primeira parte, é feita uma análise do termo e são apresentadas

algumas implicações decorrentes da adoção de uma ou outra concepção. Na

parte dois, discute-se o problema do relativismo e do ceticismo como ideologias

para fundamentação da tolerância. Na sequência, são propostos alguns

elementos compreendidos como necessários para designar uma atitude como

tolerante. Ao final, identifica-se a concepção de tolerância mais adequada para

caracterizar as relações intersubjetivas e questiona-se o uso da tolerância para

caracterizar um Estado secular, nas relaçõs que estabelece com os indivíduos e

grupos.

2 ANÁLISE SEMÂNTICA DO TERMO “TOLERÂNCIA” E SUAS IMPLICAÇÕES

O termo “tolerância” não é recente, sendo que o uso remonta ao latim, e

até mesmo, ao grego antigo. Nehushtan (2007) comenta que seu uso no latim se

dava pela palavra tolerabis que significa segurar ou levantar certo objeto, de

modo a pressupor a existência de um fardo. Na Grécia Antiga, o termo também

era empregado com esse sentido, porém, ampliavam-no, para incluir o ato de

suportar o sofrimento. Ao longo da história, a tolerância assumiu outros diferentes

significados e nuances, os quais foram descritos por Forst (2012) e Fiala (2004),

cujos trabalhos serão utilizados como principal referencial nessa etapa do artigo.

Na história antiga, os filósofos da corrente estoica entendiam a tolerância

como virtude. Nos escritos estoicos, especialmente nos de Cicero, tolerantia é

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usada para falar da virtude de resistir, de sofrer má sorte, dor e injustiça de vários

tipos, permanecendo firme.

No Cristianismo primitivo empregava-se a tolerância no contexto da

diversidade religiosa, afirmando-se que era necessário amar os inimigos, perdoar

e não julgar os outros, de modo a associar o termo à caridade e ao sacrifício.

Fundamentados no princípio do credere non potest nisi violens, os cristãos

primitivos entendiam que de nada valia uma crença forçada, pois a fé que

agradava a Deus era a genuína, baseada numa convicção íntima e livre.

Entretanto, o filósofo e teólogo Agostinho de Hipona entendia que, se fosse

necessário a utilização de formas violentas para salvar as almas, então tais atos

seriam legítimos. Para Agostinho, o uso da força aliado ao ensino bíblico poderia

fazer com que o homem perdido se convertesse.

Além do Cristianismo, budistas e muçulmanos utilizaram a tolerância como

um dos fundamentos do seu credo. Os primeiros, por exemplo, entendiam que a

compaixão estava intimamente ligada ao ato de tolerar. Em se tratando do

Islamismo, destaca-se esforço do imperador Akhbar em implantar a tolerância

religiosa em seu regime de governo na Índia subcontinental.

No contexto da Reforma Protestante e do Renascimento, filósofos como

Erasmus, De Las Casas e Montaigne, influenciados pela mudança de paradigma

trazida pelo humanismo, defenderam a autonomia humana frente à Igreja,

trazendo novamente à tona a discussão a respeito da tolerância. Lutero, por

exemplo, argumentava a favor da liberdade de consciência e o fim da autoridade

da Igreja e do Estado nos assuntos privados.

Spinoza, tratando da relação entre religião e Estado compreendia que o

último, em nome da paz e da justiça social, deveria regular o exercício externo da

religião, não podendo, entretanto, interferir nas convicções internas dos

indivíduos, respeitando a liberdade de pensamento, direito este inerente aos

seres humanos.

A partir do século XVIII, o termo passou a ter significado diferente daquele

dado, por exemplo, pelos gregos e pelos cristãos. A tolerância não pressupunha

objeção a certo pensamento, tendo seu sentido ligado a algum tipo de relativismo

ou ceticismo, a exemplo daquele propugnado por Voltaire. Para este,

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3557

a tolerância decorre da fragilidade e do erro humano. Desde que nenhum de nós possui perfeito discernimento, e já que somos todos fracos, inconsistentes, voltados ao erro e à inconstância, nós devemos perdoar uns aos outros pelos nossos erros (FIALA, 2004, tradução nossa).

Em resposta ao ceticismo como fundamento para a tolerância, Immanuel

Kant sustentava que embora todos estejamos certos de nossos deveres morais,

os seres humanos não têm uma certeza apodídica ou demonstrada dos

comandos de Deus. Desse modo, uma crença religiosa que demanda alguma

conduta que viole a moralidade não poderia ser justificada.

Já no século XIX, o sentido dado a tolerância desenvolveu-se em meio ao

Liberalismo, em que se buscava maior autonomia individual frente ao poder

estatal e o aumento da liberdade de expressão. Esta procura por menos

interferência do Estado na vida privada das pessoas alcançou também o âmbito

religioso. John Stuart Mill, argumentava que o poder político não devia ter

autoridade para regular atividades e interesses dos indivíduos que dissessem

respeito a coisas estritamente privadas e que não tivessem efeito secundário na

vida de outras pessoas. Defensores da liberdade religiosa afirmavam que se

entendêssemos propriamente a natureza da crença religiosa, então

respeitaríamos a liberdade religiosa dos outros e aprenderíamos a tolerar nossas

diferenças.

Desde o século XX, diversos intelectuais trataram do tema, entretanto, uma

grande parte da discussão atual está focada em responder John Rawls que, em

sua obra Liberalismo Político, argumenta que um Estado tolerante deve ser neutro

diante de diferentes concepções de bem. Joseph Raz, entretanto, contra-

argumenta, afirmando que uma sociedade neutra contrariaria o ideal de

autonomia, uma vez que os indivíduos não seriam capazes de viver conforme

suas convicções.

A partir desse breve apanhado histórico e adotando a proposta de Forst

(2012), pode-se identificar a existência de, ao menos, quatro concepções sobre o

termo tolerância. As concepções que a seguir serão apresentadas não seguem,

necessariamente, o desenvolvimento histórico exposto acima, podendo coexistir

em determinado período numa dada sociedade.

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3558

A primeira concepção, chamada de concepção da permissão (“permission

conception”), considera que tolerar é uma relação entre uma autoridade e os

governados ou súditos, ou ainda, entre a maioria e as minorias. Nessa relação,

aquele que detém o poder de interferir se abstém de fazê-lo, permitindo que a

minoria ou que os governados tenham convicções diferentes e pratiquem suas

particulares crenças. Essa dinâmica de tolerância pode ser vista no Edito de

Nantes (1598), em que o rei Henrique IV conferiu direitos civis, políticos e

religiosos à minoria protestante na França. O propósito da permissão para a

prática de uma religião diferente da oficial é evitar conflitos e garantir a paz social.

Na segunda concepção, designada como coexistência (“coexistence

conception”), também visa por fim a conflitos que geram desordem na sociedade,

porém difere-se da primeira porque não há mais uma relação de hierarquia entre

as religiões, não há um grupo religioso que detém mais poder do que o outro.

Dessa forma, um acordo é feito, decidindo-se pela coexistência pacífica.

A concepção do respeito (“respect conception”) propõe que os indivíduos

devem reconhecer a necessidade do respeito mútuo, uma vez que todos

possuem direitos e que a sociedade necessita ser guiada por normas que todas

as partes podem, igualmente, aceitar e que não favorecem uma comunidade

específica.

A quarta concepção difere-se da terceira por apresentar um elemento que

ultrapassa o dever de respeito recíproco, ao propor que os indivíduos devem não

apenas respeitar, mas ter elevada estima pelas diferenças existentes na

sociedade, e de modo especial, devem valorizar a diversidade religiosa. Aqui,

reconhece Forst (2012), promove-se aceitação e admiração por parte de cada

indivíduo em relação à religião diferente, alheia. E por essa razão, essa

concepção pode ser designada como estima (“esteem conception”).

3 O PROBLEMA DO RELATIVISMO E DO CETICISMO

Há diferentes propostas de caracterização da tolerância. Contudo, não

seria logicamente possível afirmar que todas elas são corretas, porquanto

mutuamente excludentes. Na esteira de Cohen (2004) e Fiala (2004), entende-se

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3559

que tolerância não pode se identificar com indiferença ou neutralidade, e não

deve ser reduzida a uma visão de mundo ceticista ou relativista, como se verá.

Segundo uma perspectiva cética, devido à sua fraqueza e imperfeição, os

seres humanos são incapazes de chegar ao conhecimento da verdade. Trata-se

de uma atitude que questiona a afirmação ou a certeza sobre conhecimento,

fatos, ideias ou crenças. No relativismo, defende-se que não há verdades

universais porque o conhecimento seria um produto social e histórico,

condicionado à visão de mundo do agente, que interpreta a realidade. Neste

sentido, Julgamentos morais são verdadeiros ou falsos apenas relativamente a determinado ponto de vista (por exemplo, determinada cultura ou período histórico) e nenhum ponto de vista tem privilégio frente aos demais (WESTACOTT, 2012).

Nessas duas correntes, a tolerância é compreendida como uma postura de

concordância (no sentido de aceitação), de neutralidade ou, até mesmo, de

intencional ignorância, de modo a levar o agente a não interferir e a não buscar

qualquer modificação no comportamento alheio, ainda que pela via da persuação.

Haveria, portanto, uma supervalorização da autonomia individual, sobre a qual

comenta Fiala (2004, tradução nossa): Como John Stuart Mill e outros argumentaram, os indivíduos devem ser deixados livres para buscar seus ideais, uma vez que eles são os que mais sabem quais são suas necessidades e interesses. Essa visão, entretanto, deixa-nos com um problema, já que a tolerância pode facilmente tender ao ceticismo e ao relativismo. É importante ressaltar que a tolerância é um valor positivo e que não está fundamentada no ceticismo moral.

Acrescenta-se que não é possível falar em tolerância quando há

indiferença. A indiferença pressupõe que o agente seja apático e desinteressado

em relação a determinado assunto. Todavia, uma pessoa tolerante não é aquela

desinteressada, mas sim aquela que, mesmo possuindo uma objeção e tendo o

poder de interferir em uma atitude que considera contrária, não o faz. É

necessário, portanto, que exista objeção, a qual integra o próprio sentido de

“tolerância”. Neste sentido, Fiala (2004, tradução nossa) entende que uma das

condições da tolerância é a existência de um juízo negativo: A primeira condição requer um julgamento negativo, que pode ser qualquer coisa entre reprovação e desgosto. O julgamento aqui significa um amplo conceito que inclui emoções, disposições,

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3560

gostos e avaliações fundamentadas. Esse julgamento negativo inclina o agente para uma ação negativa em direção aquilo que tem-se como contrário.

É fundamental, portanto, dissociar a tolerância do ceticismo e do

relativismo. Uma vez que, nestas abordagens, não seria possível alcançar a

verdade ou que esta seria relativa, não há que se falar em objeção, reprovação ou

desgosto, afinal, todas as ideias e crenças deveriam ser consideradas, por todos,

igualmente verdadeiras e válidas. Portanto, não se pode falar no ceticismo e no

relativismo como ideologias que fundamentam adequadamente a tolerância,

porquanto tais perspectivas tendem à negação da própria tolerância, de modo que

uma postura tolerante não se identifica (ao menos necessariamente) com uma

postura cética ou relativista.

Tolelrância também não pode ser identificada com a indiferença ou

neutralidade. Uma postura absolutamente neutra seria incoerente com o ideal de

tolerância, uma vez que, para a coexistência pacífica e harmônica em sociedade,

ou ainda, para que uma sociedade seja considerada “tolerante”, é necessária a

imposição de limites ao comportamento de indivíduos e grupos. Haverá condutas

consideradas “intoleráveis”, e a definição de quais são essas condutas não é

neutra, mas sim orientada por valores. Permitir, por exemplo, religiões

fundamentalistas que matam aqueles que não confessam seu credo seria militar

contra os ideais liberais e democráticos, contra as bases que possibilitam a

existência da própria sociedade tolerante.

Nesse sentido, dizer que tolerância refere-se à exigência de aceitação,

concordândia, aprovação, admiração ou indiferença em relação a

comportamentos, ideias ou crenças alheias contradiz o próprio sentido de

“tolerar”, que exige algum tipo de oposição decorrente da autonomia individual.

Tolerar não é eliminar a diferença, mas sim conviver respeitosamente em meio à

diversidade.

Assim, entende-se que a verdadeira tolerância é aquela que, admitindo a

existência de diferenças culturais, religiosas ou ideológicas, baseia-se em

princípios e valores para que cada pessoa seja respeitada em seus direitos e

liberdades. Respeita-se o comportamento do outro, por exemplo, porque acredita-

se que uma sociedade saudável é aquela em que há liberdade de expressão, por

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3561

mais que, em diálogos, haja forte confrontamento. Seguindo essa mesma linha

argumentativa, Defensores da tolerância afirmam que a tolerância é positiva não porque estão incertos de seus valores morais, mas sim porque a tolerância se encaixa dentro de um sistema moral que inclui valores como autonomia, paz, cooperação e outros valores que contribuem para o desenvolvimento humano (FIALA, 2004, p. 1, tradução nossa).

Há, em outras palavras, real e genuína tolerância apenas quando a pessoa

está convencida de uma verdade e, mesmo assim, respeita os direitos e

liberdades daqueles que pensam de forma diferente. De acordo com Maritain

(1996, tradução nossa), Somente existirá tolerância verdadeira e genuína quando uma pessoa estiver firme e absolutamente convencida de uma verdade, ou do que ela considera ser a verdade, e quando, ao mesmo tempo, ela reconhece o direito daqueles que negam a existência dessa verdade, para contradizê-la e para falar o que pensam, não porque eles estão livres da verdade, mas porque eles buscam a verdade ao seu modo, e porque ela os respeita por serem dotados de natureza e dignidade humanas, e de capacidades e intelecto e consciência que os tornam potencialmente capazes de alcançarem a verdade que ela ama, se algum dia eles chegarem a compreendê-la.

4 EM BUSCA DE UMA DEFINIÇÃO

Como afirmado anteriormente, o ato de tolerar pressupõe a existência de

alguma objeção por parte de quem tolera em relação à ideia ou crença religiosa

tolerada. A objeção, todavia, não é suficiente para caracterizar a tolerância, de

forma que são necessários elementos para definí-la adequadamente.

Segundo Cohen (2004), há oito condições exigidas para se designar uma

atitude como tolerante, as quais poderiam ser expostas da seguinte maneira: (1)

um agente, (2) intencionalmente (3) e orientado por princípios (4), abstém-se de

interferir, (5) com uma oposição, (6) em determinado objeto, (7) no contexto da

diversidade, (8) acreditando o agente ter o poder para exercer a interferência de

que se absteve.

A primeira condição apresenta a noção de que a tolerância é praticada por

um agente. Na segunda, que este agente será tolerante não por acaso ou por

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3562

acidente, mas sim de forma intencional, de modo que o ato de tolerar deve ser

proposital, deve advir da escolha do agente em não interferir; é necessário,

portanto, que seja um ato de vontade. Os princípios e a necessidade de que eles

fundamentem a tolerância, constituem a terceira condição, que pode ser assim

exemplificada: Se alguém descobre que uma criança está fumando, deve decidir entre interferir ou não. Eu presumo que a maioria dos pais, pelo menos, tentariam persuadir racionalmente a criança para que ela deixasse esse hábito nocivo. Alguns podem ir mais longe, outros não. Por que não? Eu imagino que para permitir que a criança desenvolva a autonomia particular da vida adulta. Eu penso que isto indicaria que os pais estavam tolerando tal comportamento. Se o pai decidisse não interferir porque ele pensa que nada poderia ser feito (ou porque não valeria o esforço, ou porque simplesmente ele não se importa), não seria correto ele dizer que tolerava o fumo – ele estaria resignado a suportar ou simplesmente sendo permissivo [...]. A diferença é que, no primeiro caso, a não interferência é fundamentada – com isso quero dizer, baseada em certo valor – quando no segundo caso, não é (COHEN, 2004, p. 80, tradução nossa).

Assim, tolerar é um ato que deve ter como base o respeito à liberdade de

expressão do outro, ou estar fundamentado na ideia de que a tolerância é, em si,

um valor. Em ambos os casos, o ato de não interferir está fundamentado em um

princípio, seja o respeito ao outro, seja a crença de que a tolerância (ou seus

componentes) é um valor que deve ser seguido.

A quarta condição, que é deixar de interferir no comportamento alheio, é

um ponto central na análise da tolerância, uma vez que, quando há interferência,

não é possível falar que o agente tolerou. Entretanto, é preciso compreender o

que entende-se por interferência.

Muitos acreditam que expor opiniões contrárias em relação ao

comportamento de determinada pessoa é o mesmo que interferir e, sendo assim,

é ser intolerante. Porém, discutir e manifestar objeções é uma questão de diálogo

em que as partes buscam defender seus pontos de vista e persuadir,

racionalmente, o outro. Nesse ponto, não há que se falar em interferência, uma

vez que o embate acontece no campo das ideias. Entretanto, se essas objeções

forem apresentadas de modo coercitivo ou violento, haverá interferência e essa

conduta poderá ser considerada intolerante. Desse modo, não se pode incorrer no

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3563

erro de rotular como intolerante aquele que contraria, por meio do diálogo,

determinados comportamentos. Isso mostrar-se-ia incoerente em uma sociedade

em que as liberdades de consciência, crença e expressão são reconhecidas como

direitos de elevada importância e com tutela reforçada.

Reafirma-se ainda que, não é possível dizer que certa pessoa é tolerante

quando, para ela, determinados comportamentos ou ideologias são irrelevantes.

Tolerar pressupõe que o agente não concorde, que se posicionamente

contrariamente em relação ao objeto da tolerância. E essa é a quinta condição. Pensamos que somos tolerantes apenas quando nós reconhecemos e não aprovamos alguma coisa, ou pelo menos quando não gostamos de alguma coisa. Se alguém joga uma bola contra minha parede, eu posso tolerar essa conduta (ou não) – em parte porque o comportamento me perturba. Alguma reação negativa é necessária para que nossa abstenção de interferência seja considerada como tolerância. Dito de outra maneira, é preciso que o comportamento tenha para mim alguma relevância (COHEN, 2004, p. 71, tradução nossa).

A sexta condição proposta por Cohen destaca a importância de se definir o

objeto a que se destina a tolerância. O que se tolera não são os as pessoas per

se, mas as crenças, as atitudes, os comportamentos (incluindo os atos verbais) e

as práticas das pessoas.

O ato de tolerar pressupõe ainda a existência da diversidade, afinal, não é

possível se opor àquilo que é conforme o seu ponto de vista. Dessa forma, só é

possível ser tolerante em contextos de diversidade, nos quais o agente está

ciente de que a outra pessoa possui uma crença diferente, e tem consciência de

que é preciso respeitá-la.

Por último, tolerar implica que o agente tenha o poder de interferir, sendo

essa a oitava condição. Cohen (2004, tradução nossa) afirma que Para que um ato de não interferência seja tido como um ato de tolerância, o agente que se abstém de interferir deve acreditar que tem o poder para tanto [...] Tem se afirmado que a pessoa que tolera “deve estar em uma posição em que é capaz de interferir na conduta do tolerado; que ela é capaz de suprimir, perturbar ou censurar o discurso ou comportamento que considera ofensivo, mas não o faz”.

Tais condições possibilitam que o termo “tolerância” seja melhor

compreendido e utilizado, e afasta entendimentos que podem, sob o pretexto da

promoção de uma “tolerância”, mitigar a possibilidade do dissenso, reduzir o

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3564

espaço para o debate e a divergência, de forma ferir a liberdade consciência,

pensamento, expressão e religião.

5 TOLERÂNCIA RELIGIOSA, LIBERDADE RELIGIOSA E O ESTADO

É preciso que se tenha em mente que a concepção de tolerância utilizada

para as relações intersubjetivas e para as relações dos indivíduos com o Estado

não deve ser a mesma. Na primeira, utiliza-se a concepção de respeito, na

segunda, a de permissão, pelas seguintes razões.

Conforme dito anteriormente, a concepção do respeito apresenta como

necessária, em uma sociedade plural, a existência do respeito mútuo e a

consideração pelas liberdades de todos, independentemente de concordarmos ou

não com o modo de exercício da autonomia da vontade, nos limites da lei. Tal

entendimento evita conflitos e permite que todos tenham suas liberdades

asseguradas.

Parte dos discursos sobre tolerância enfatizam a situação do tolerado, de

que esse, sendo diferente, deve ter suas liberdades de consciência e expressão

asseguradas. O que se esquece, entretanto, é que ao se entender a tolerância

como concordância e aceitação, viola-se a liberdade de consciência e expressão

do que tolera, colocando-o numa posição em que se torna necessário abandonar

seus princípios e valores para, assim, “tolerar” o outro. E é nesse ponto que a

concepção do respeito, em conjunto com a abordagem das condições da

tolerância de Cohen, revelam-se mais adequadas.

Porém, não é possível utilizar essa mesma concepção quando analisada a

relação entre Estado e indivíduos (relação vertical). Somente poderá ser dito que

um Estado é tolerante, no contexto religioso, quando esse mesmo Estado se

identifica com uma religião ou assume uma religião como oficial. Caso não exista

esse reconhecimento, não compete ao Estado (secular) tolerar as religiões (pois

se o Estado não tem uma religião, não haveria o elemento da “objeção” em

relação às demais religiões), mas sim assegurar a liberdade religiosa de todos.

Estados teocráticos ou Estados com uma religião oficial poderiam ser

considerados tolerantes na medida que permitem o exercício de religiões

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3565

diferentes da sua. Todavia, os Estados seculares, embora possam ou devam

encorajar a tolerância (o respeito) entre os indivíduos e grupos sociais (relação

horizontal), não se colocam na posição de tolerar alguma crença religiosa, pois

não são juízes da veracidade ou validade de uma crença. Antes, têm apenas o

dever de garantir que todas as religiões possam ser praticadas, buscando

promover as liberdades de todos na máxima medida possível.

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante da diversidade política, cultural e religiosa, a tolerância deve dirigir

as relações sociais. Agir de forma tolerante é imprescindível para a redução de

conflitos e para fomentar a paz social. Porém, ser tolerante não significa

concordar com todo e qualquer comportamento, posição ideológica ou visão de

mundo. Princípios e valores exigem o respeito às liberdades alheias, ao mesmo

tempo que promovem as liberdades de quem tolera, inclusive a liberdade para

discordar.

Uma abordagem relativista e cética é nociva no contexto de uma sociedade

plural, sobretudo quando assumida pelo Estado como norteadora de suas

políticas públicas. A exigência, pelo Estado, de concordância, aceitação ou

admiração por parte dos indivíduos em relação a condutas, ideias, crenças ou

cosmovisões alheias diferentes, não fomentaria o debate e o diálogo saudável

entre os indivíduos, sendo demasiadamente restritiva das liberdades.

Assim, apreende-se com o presente trabalho que a melhor concepção de

tolerância para as relações intersubjetivas é aquela que está fundamentada na

exigência de respeito mútuo. Tratando-se das relações entre Estado e indivíduos,

a concepção da permissão é adequada para caracterizar os Estados com religião

oficial ou que se identificam com uma religião, sendo que, no Estado secular, não

se fala de um Estado tolerante, mas sim de um Estado garantidor das liberdades.

REFERÊNCIAS

COHEN, A. J. (2004). What toleration is. Ethics 115 (1):68-95.

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3566

FIALA, A;. Toleration. In: Internet Encyclopedia of Philosophy: A peer reviewed academic resourse, 2004. Disponível em: http://www.iep.utm.edu/tolerati/. Acesso em: dez. de 2014. FORST, R. Toleration. In: Stanford Encyclopedia of Philosophy, 2012, Edward N. Zalta (ed.). Disponível em: <http://plato.stanford.edu/archives/sum2012/entries/toleration/>. Acesso em: dez. de 2014. MARITAIN, J. Reflections on America I, Cap. VIII. Disponível em: http://www2.nd.edu/Departments/Maritain/etext/reflect1.html#VIII. Acesso em: dez. de 2014. NEHUSTHAN, Y. The limits of Tolerance: A Substantive-Liberal Perspective. Ratio Juris, Vol. 20. No. 2, p. 230-257, Junho de 2007 WESTACOTT, E. Moral Relativism. In: Internet Encyclopedia of Philosophy: A peer reviewed academic resourse, 2012, J. Feiser & B. Dowden (eds.). Disponível em: http://www.iep.utm.edu/moral-re/. Acesso em: jan. de 2015.

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COMUNIDADES DO POVO DE TERREIRO DE MATRIZ AFRICANA COMO COMUNIDADES TRADICIONAIS PROTEGIDAS PELA CONVENÇÃO Nº 169

DA ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO

Cláudio Kieffer Veiga,

Paulo Gilberto Cogo Leivas,

RESUMO: O presente artigo propõe-se a realizar um estudo sobre a Convenção nº 169 da OIT, de 1989, no contexto brasileiro, questionando se as comunidades de terreiros de matriz africana estão amparadas sob sua tutela. Em decorrência disso, foi necessário perquirir se o termo “povos tribais”, lá contido, encontra-se atualizado perante as legislações subsequentes que defendem a diversidade cultural e a proteção das minorias de agrupamentos sociais inseridos em determinada sociedade. Assim, o artigo perpassa o debate sobre o mecanismo da autoidentificação carregado naquela convenção e o histórico da legislação após ela, sob o enfoque da necessária proteção à identidade individual e grupal. Ao cabo da presente pesquisa, conclui-se que é plenamente justificável o enquadramento das comunidades dos terreiros de matriz africana sob o manto de proteção da Convenção nº 169 da OIT, reforçado por dispositivos constitucionais e infraconstitucionais brasileiros. PALAVRAS-CHAVE: Direito Humanos. Convenção nº 169 da OIT. Comunidades tradicionais. Comunidades de Terreiro. Matriz africana.

1 INTRODUÇÃO

A diáspora africana envolvendo o Brasil, perdurada entre 1525 e 1850,

representou oficialmente mais de cinco milhões de africanos1 prisioneiros e

1 Optou-se em utilizar-se a locução “africanos escravizados” em vez de simplesmente

“escravos africanos” ou puramente “escravos”, exatamente para afastar uma ideia simplista de que a condição desses homens e mulheres sempre fora essa, isto é, nasceram e viveram como escravos apenas para serem objetos de propriedade de outros. Já está na hora de descortinar o discurso da cultura dominante e do senso comum, não, os africanos trazidos para o Brasil não eram simplesmente “escravos”, eram pessoas que estavam inseridas em sua sociedade e cultura estruturada, independente do grau de sua evolução na história humana, eles eram pais, mães, filhos, artesões, comerciantes, médicos, etc. Nesse sentido, já escreveu Roger Rios (2004, 468): “Seja por que motivo for (ingenuidade, cinismo, hipocrisia, ignorância ou má-fé) é difícil à generalidade das pessoas perceber por detrás de condutas e falas tidas por ‘normais, corriqueiras e inocentes’ práticas e concepções discriminatórias e

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escravizados trazidos para o nosso país (PRANDI, 2000, p. 52-65). Esse tráfego

de escravos serviu para fins de suprir a necessidade de mão de obra no Brasil

Colônia. Junto a esse povo, vieram inseridos em sua cultura o seu dialeto,

costume, arte, moral e, sobretudo, sua religiosidade.

Internacionalmente, a Organização Internacional do Trabalho (OIT), através

de sua Convenção nº 169 de 1989, preocupou-se em proteger os direitos dos

povos indígenas e tribais, seguindo o ambiente de proliferação, no cenário

mundial na época, de tratados com conteúdos sociais, econômicos, culturais, e

coletivos em especial, sendo que a referida convenção foi ratificada pelo Brasil

em 2002, com seus efeitos irradiantes a partir de 2003.

No âmbito nacional, a Constituição Federal de 1988 (CF/88) possui em

vários artigos o imperativo da proteção ao pleno exercício dos direitos culturais e

sua diversidade étnica. No plano infraconstitucional, pode-se citar o Decreto nº

6.040/2007, que instituiu a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos

Povos e Comunidades Tradicionais (PNPCT).

Assim, urge a necessidade de saber se os antigos e denominados terreiros

de religião de matriz africana podem ser conceituados como “povos tribais”, termo

contido na Convenção nº 169 da OIT, e, inclusive, se o próprio Decreto nº

6.040/2007 realiza a subsunção daquela convenção para, ao final, asseverar se

essa legislação infraconstitucional brasileira é o suficiente para que o Brasil esteja

adequado às obrigações assumidas perante a comunidade internacional.

Percebe-se que há um deserto de produção literária na ciência do Direito

na seara dos direitos coletivos dos terreiros de matriz africana, pois objeto de

estudo normalmente afeito a questões de debates religiosos, antropológicos e

sociais. Contudo, o presente artigo não tem o enfoque religioso como perspectiva

racistas.” O próprio resgate da consciência política e dignidade humana do afro-americano passa pela libertação da marca duradoura da escravidão, a qual transmite a dúvida, a ele, em pertencer, ou não, a uma classe de ser inferior, afetando sua própria autoestima (NASCIMENTO, E.; NASCIMENTO, G., 2008, p. 138). Assim, “[...] nenhum povo consegue se livrar dos grilhões do preconceito e da discriminação racista sem antes se livrar da auto-imagem, de si e de sua comunidade, estampada com a marca indelével da escravidão. Para levantar a cabeça, exigir seus direitos e protagonizar uma luta coletiva, esse povo precisa primeiro sentir-se gente, soberano de sua própria vida”. (NASCIMENTO, E.; NASCIMENTO, G., 2008, p. 138).

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3569

principal de estudo, apesar de sua relevância para a preservação de uma cultura

milenar, sendo o diferencial importante em sua execução.

Diante dessas primeiras considerações, o presente artigo divide-se em

duas partes, a primeira com um breve resgate histórico, social e antropológico,

apresentando a chegada do africano ao Brasil, sua interação e agruras com a

sociedade que aqui se formava. A segunda parte discutirá as questões

dogmáticas, pontuando qual o grau de eficácia e/ou aplicabilidade da Convenção

nº 169 da OIT no Brasil. Percorrerá, através de outros instrumentos jurídicos,

inclusive de mesmo grau daquela convenção, se o termo “povos tribais” contido

nela não se encontra defasado e, se não é o caso de uma interpretação lato

sensu, principalmente na questão brasileira. Por derradeiro, será apresentado o

Decreto nº 6.040/2007, e seus povos e comunidades tradicionais, propondo uma

interpretação desse dispositivo para ver se ele serve como um argumento

complementar à Convenção nº 169 da OIT, tudo para trazer à reflexão se os

atuais terreiros de matriz africana estão abarcados pelo termo “povos tribais”,

contido neste instrumento.

2 DA TRAJETÓRIA NEGRA NO BRASIL E SUA RESISTÊNCIA

Com o aumento da demanda por “trabalhadores” em minas e engenhos de cana-de-açúcar, e com a escassez de cativos indígenas para esses postos, inclusive pelas próprias restrições a sua escravidão2, abre-se a necessidade de importar africanos para o Novo Mundo. Compreende-se que por volta de 1525 iniciou-se a chegada dos primeiros escravizados (PRANDI, 2000, p. 52). Os africanos que chegavam vivos, após a travessia do Atlântico, seguiam para seu destino final nas devidas fazendas, sendo que alguns cuidados eram primordiais para evitar futuras rebeliões. Dentre as prevenções estava a de separar cuidadosamente, ou evitar a concentração, de escravos oriundos de uma mesma etnia nas mesmas propriedades, afastando “[...] núcleos solidários que retivessem o patrimônio cultural africano”. (RIBEIRO, 1995, p. 113-120). Essa mesma política de “dividir para reinar”, foi criada pelo branco em relação à certa

2 Em regra geral, a escravidão de indígenas era tolerada pela legislação rude na época

apenas àqueles considerados inimigos, isto é, os que viviam no sertão brasileiro, pois demonstravam uma resistência extremada aos conquistadores ibéricos (MARCOCCI, 2011, p. 62).

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oposição racial entre negros e índios, tudo para evitar uma possível aliança entre raças3 exploradas contra a raça ascendente (BASTIDE, 1974, p. 69). Importante que se tenha em mente que os navios que carregavam esses africanos não somente traziam essas pessoas de carne e osso, mas também sua cultura, seus deuses, suas crenças, seus folclores (BASTIDE, 1974, p. 26), “[...] não se tratava de um povo, mas de uma multiplicidade de etnias, nações, línguas, culturas”. (PRANDI, 2000, p. 52). Compreende Bastide (1974, p. 15) que podemos falar, na questão africana, em uma dupla diáspora, uma carregando os traços culturais africanos e a outra dos homens de cor. Diversos mecanismos de controle social fizeram com que os negros crioulos4 não perdessem grande parte da cultura africana no que envolvia algumas formas sociais, como sua religião, sua magia, seu folclore, sua linguagem, sua arte e até sua música, sobrevivendo à vida servil lhe imposta (BASTIDE, 1974, 84-98). Dentro desses mecanismos, podemos pontuar quando os proprietários de africanos escravizados passaram a deixar que nos domingos e dias santificados católicos aquela massa exercesse sua institucionalidade em certas manifestações artísticas, como danças e musicalidades africanas, o que reforçou a manutenção de seu folclore (BASTIDE, 1974, p. 83). Esse expediente fazia com que os africanos e seus descendentes se encontravam, normalmente procurando suas etnias em comum5, revivendo as diferenças com outras etnias que vieram embarcadas nos navios negreiros oriundos da África. Era importante para a cultura dominante essa revisitação da aversão natural entre as etnias desde o seu nascimento, isso impedia que a infelicidade do cativeiro viesse a unir essas diferentes etnias, o que poderia ser perigoso para o controle por parte dos escravocratas e mesmo do Governo (BASTIDE, 1974, p. 86). Como já dito, esses encontros entre os negros nas domingueiras era uma válvula de escape e, ao mesmo tempo, acabavam formando “[...] ‘Nações’, em corpos constituídos, para manter as rivalidades tribais ou étnicas.” (BASTIDE, 1974, p. 86). Esse conceito da separação dos negros em “nações” foi utilizado inclusive no exército, em que “[...] os soldados negros formavam quatro batalhões: minas, ardras, angolas e crioulos”. (PRANDI, 2000, p. 57).

3 Importante pontuar que sempre que o presente artigo utilizar o termo “raça”, é na

compreensão de construção histórico-cultural, pois sob as perspectivas do enfoque biológico, antropológico, sociológico e demais ciências, está consolidada a inexistência de diferenças raciais humanas, sendo que a falácia do conceito de raça serviu apenas para manipulação ideológica e de dominação (QUIJANO, 2005).

4 Compreendem-se como negros marrãos aqueles escravos que fugiam e constituíam os conhecidos quilombos no Brasil, já os negros crioulos são os descendentes de africanos escravizados (BASTIDE, 1974, p. 46-48).

5 Importante salientar que o próprio continente africano era/é pluriétnico e multicultural (PRANDI, 2000, p. 65).

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E assim, diversas outras sistematizações criadas para a dominação dos escravizados, que corroborou para a manutenção de grande parte da cultura africana, se seguiu no quadro social do Brasil Colônia, podendo citar ainda: as confrarias religiosas6 (BASTIDE, 1974, p. 88); ou quando a senhora branca fazia dentre as escravizadas as suas cozinheiras, as quais acabaram introduzindo seus preparos e condimentos para dentro da família da cultura dominante (BASTIDE, 1974, p. 85); a entrega de hortas, pelos senhorios, aos escravos para que estes melhorassem a sua própria alimentação, preservando algumas técnicas agrícolas (BASTIDE, 1974, p. 85-86) etc. Mas, o que mais chama a atenção é a sobrevivência da religião negra, que abarcando a proteção da cultura africana, guardada alguma adaptação natural, remanesce há quase quinhentos anos. Como se vê, a raça negra soube trilhar seu caminho de resistência cultural, (BASTIDE, 1971, p. 85). Imperioso afirmar que atualmente no Brasil o culto africano7 mais conservado aos moldes originais é a religião Iorubá (também grafada como Yôrubá ou Yorubá), conhecida como “Candomblé Nagô” na Bahia, “Xangô” nos Estados de Pernambuco e Alagoas, e “Batuque” no Estado do Rio Grande do Sul (RS) (BASTIDE, 1974, p. 110)8. Sendo que nos Estados de Maranhão e do Pará houve uma maior influência da religião jeje, onde há o culto específico denominado de “tambor-de-mina”, no entanto, aqui há uma maior sinergia, pois agregou aos seus orixás divindades não africanas, como caboclos indígenas e outros (SILVA, 1994, p. 83-84).

6 No entanto, o instituto da “nação” criada pela afinidade de etnia foi o fio condutor para a

existência atual das religiões de matriz africana. Sinala-se isso, pois as organizações iniciais de nação tinham “[...] um caráter mais religioso e de ajuda mútua, sobretudo tratando-se do negro livre, abandonado à própria sorte, não contando, em caso de doença e morte, nem mesmo com o amparo do senhor”. (PRANDI, 2000, p. 58).

7 Frise-se que Umbanda não é religião de matriz africana, apesar de ter se apropriado de nomenclaturas de algumas divindades iorubás, ela nasce no Brasil através de praticantes do kardecismo trazido da França, e mescla com divindades indígenas e outras, dando origem a uma nova religião por volta dos anos de 1920 e 1930. Por fim, enquanto nas religiões de matriz africana os cânticos são todos realizados na língua predominante iorubá, na umbanda são entoados cantos, chamados de “pontos”, na língua portuguesa, ou mesmo rezas católicas no início de seus ritos (SILVA, 1994, p. 106-125).

8 Importante pontuar de que não se desconhece que há vestígios das religiões das nações jejes e banto, também oriundas do continente africano, mas os estudos apontam que as mesmas acabaram incorporando os deuses da religião Iorubá, sendo essa a cultura religiosa africana dominante no Brasil, em especial na Bahia e Rio Grande do Sul (BASTIDE, 1974, p. 124-125). Mais analiticamente e profundamente sobre esse assunto ver em Bastide (1974), Prandi (2000) e Silva (1994). No entanto, não se pode deixar de advertir que há divergências entre estudiosos do assunto, como Carneiro (1977, p. 52), que pregava que os termos nagô ou iorubá eram designações vazias de sentido.

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Importante pontuar a diferença entre os quilombos e as antigas casas de religião de matriz africana. Os primeiros eram uma evidente forma contínua de resistência social, além de uma luta entre classes, dos escravizados e seus descendentes para “[...] protestarem contra o escravismo”. (MOURA, 1993, p.10). Os quilombos eram formados pelos cativos que conseguiam fugir de seus senhorios. Mas, não somente por aqueles, pois sendo esses redutos de uma resposta hostil contra a violência repressora do aparelho do Estado escravista, aparelho esse de dominação militar, ideológico e político que os desumanizava, acabavam realizando alianças com outros grupos sociais9 para conseguir montar um sistema de proteção permanente em suas instalações (MOURA, 1993, p. 24-25).

Por volta de 1850, por pressões diplomáticas internacionais, em especial

pela Inglaterra10, termina o ciclo do tráfico africano (MOURA, 1989, p. 54;

PRANDI, 2000, p. 57), mesmo que somente em 1888 tenha ocorrido legalmente a

abolição da escravidão. Esses novos homens livres rumam, em sua maioria, para

as cidades do Rio de Janeiro e da Bahia, reunindo-se em bairros conhecidos

9 Além dessas alianças, pela resistência ao sistema social da época que representavam,

“[...] o quilombo era refúgio de muitos elementos marginalizados pela sociedade escravista, independentemente de sua cor. Era o exemplo da democracia racial de que tanto se fala, mas nunca existiu no Brasil, fora das unidades quilombolas”. (MOURA, 1993, p. 37). Moura ainda especifica que nos quilombos “[...] nele se incluem não apenas negros fugitivos, mas também índios perseguidos, mulatos, curibocas, pessoas perseguidas pela polícia em geral, bandoleiros, devedores do fisco, fugitivos do serviço militar, mulheres sem profissão, brancos pobres e prostitutas”. (MOURA, 1989, p. 24-25). Nina Rodrigues (2010, p. 84), em seus estudos, também cita que a constituição dos quilombos, em especial o de Palmares, não se consistia somente em africanos, crioulos ou seus descendentes. No mesmo sentido Péret: “[...] não eram povoados apenas de negros e mulatos. Índios haviam-se reunido a eles, e mesmo alguns brancos”. (apud FIABANI, 2005, p. 83).

10 Importante que se traga a lume a posição da atual literatura pós-colonial sobre a abolição do comércio escravista, tento em vista que ela não teria nada a ver com a “[...] grandeza do coração da Europa cristã, que justificava seus empreendimentos até pelos textos bíblicos. O fator mais importante para o fim do tráfico escravista foi a Revolução Industrial. O progresso técnico que a acompanhou não apenas pôs fim ao trabalho infantil nas fábricas degradantes da Inglaterra e da Europa, como também tornou o trabalho escravo pouco lucrativo, irrelevante e dispensável. [...] Sua imagem tornou-se negativa por causa das baixas produtividade e recuperação de custos quando comparadas aos novos métodos”. (HAMENOO, 2008, p. 120). Aliás, para a África, pouco mudou, pois “[...] cessou o comércio escravo porque se tornaram disponíveis mecanismos para uma exploração mais lucrativa: a colonização do continente”. (HAMENOO, 2008, p. 131). No mesmo sentido: “[...] conhecedores das potencialidades econômicas do continente, as potências colonizadoras iniciaram um verdadeiro processo de espoliação dos recursos naturais e de outras matérias-primas, em prol do desenvolvimento da Europa”. (OLIVEIRA, F., 2008, p. 185).

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como africanos, atualmente desdobrados nas atuais favelas (RIBEIRO, 1995, p.

194 e 222). Nesse quadro, eles passaram a residir em moradias coletivas,

normalmente cortiços.

Por derradeiro, após a oficialização da abolição da escravidão no ano 1888, encerrou-se o evento quilombo, passando a existir as comunidades negras (FIABANI, 2005, p. 263). Ante a tradição oral arraigada dos povos da África, acredita-se que os primeiros terreiros de religiões de candomblé foram fundados por africanos de uma mesma etnia, onde iniciaram outros africanos, depois crioulos, mulatos e finalmente os brancos. Aqui no Brasil, em decorrência da separação das linhagens familiares e clãs das etnias, bem como da perseguição à religião de origem africana, acarretou que os terreiros agrupassem o seu culto a várias entidades, mesmo de etnias diferentes. Igualmente, muitas acomodações familiares foram realizadas, adaptando-se a cultura original. Nesse sentido, em nosso país a mutação cultural foi no sentido de que o culto de religião, antes sobretudo familiar, virasse uma família religiosa11 por afinidade entre os próprios praticantes que acabam sendo inicializados na religião. Assim, o chefe do terreiro, também denominado de pai de santo, babalaô ou babalorixá (yalorixá na forma feminina) passa a ser o pai espiritual do inicializado, e esse acaba sendo “irmão de santo” do outro inicializado e assim por diante, repercutindo que quando esses fundam seus próprios terreiros mantêm “[...] ligações de parentesco entre terreiros ‘parentes’ de uma mesma família fundadora”. (SILVA, 1994, 59). Com efeito, cabe observar que uma comunidade de terreiro e sua constituição histórica contempla muito mais do que sua religião, assim plasmada essa afirmação:

E como se tratava de uma cultura desterritorializada, constituiam-se [sic] associações (ebé) que, com o pretexto religioso (ora visto com maus olhos, ora reprimido, ora ridicularizado, mas sempre entendido como prática de natureza religiosa pela ideologia dominante) se instalaram em espaços territoriais urbanos, conhecidos como roças ou terreiros. O terreiro implica, ao mesmo tempo (a) num continuum cultural, isto é, na persistência de uma forma de relacionamento com o real, mas reposta na História e, portanto, com elementos reformulados e transformados com relação ao ser posto pela ordem mítica original, e (b) num impulso de resistência à ideologia dominante, na medida em que a ordem originária aqui reposta comporta um projeto de ordem humana, alternativo à lógica vigente de poder. [...]

11 Essa família religiosa, desde o Brasil Colônia até hoje, acaba desarrumando a lógica do

parentesco biológico predominante no costume ocidental, o que causa mais uma estranheza e estigma para não frequentadores desses centros de cultura e religião.

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As práticas do terreiro rompem limites espaciais, para ocupar lugares imprevistos na trama das relações sociais da vida brasileira. (SODRÉ, 1983, p. 121-122).

Diferente dos quilombos, os quais não tinham as mesmas condições e preocupações do que os terreiros, pois lá a sobrevivência, a liberdade e a rebeldia contra a escravidão eram suas preocupações maiores, esses últimos procuraram restabelecer o resgate e manter a cultura embarcada nos navios negreiros. “A heterogeneidade do quilombo é prova contra a proposta de sua existência como mera restauração de tradições africanas.” (FIABANI, 2005, p. 419).

Da mesma forma que os índios (BONILLA MALDONADO, 2011, p. 570-

571), os africanos sempre possuíram uma visão de que tudo pertence a uma

única massa de origem, não encarando a terra como algo a ser explorado, e sim,

mais um elemento de um todo. Por consequência, o território onde se encontra o

terreiro de religião é algo ligado diretamente à identidade cultural desse povo de

descendentes da África. Assim, a iniciação de um devoto, o axé e os princípios

simbólicos do ritual implicam em uma soma de procedimentos (verbais e não

verbais), “[...] destinados a fazer aparecerem os princípios simbólicos do grupo,

aquilo que os gregos acabaram chamando de verdade (alétheia)”. (SODRÉ, 1983,

p. 130).

3 DO SISTEMA JURÍDICO-NORMATIVO DE PROTEÇÃO AO POVO DE

TERREIRO DE MATRIZ AFRICANA COMO POVOS TRIBAIS E

COMUNIDADES TRADICIONAIS

O terreiro de matriz africana é imbricado ao povo negro, assim

transformado todos os diversos povos oriundos da África em decorrência da

matriz do colonialismo europeu desenvolvido nas Américas, conforme a lição de

Quijano (2005, p. 127). Mesmo após o fim da escravidão, e o Brasil não sendo

mais uma colônia, toda a construção e matriz de poder daquele sistema se

manteve/mantém impregnado na sociedade, fenômeno contínuo nos demais

países da América Latina. Logo, o negro, que inicialmente teve os seus

antepassados na condição de escravos, em decorrência da “raça” inferior, viu

sacramentar-se essa violência nas estruturas institucionais da sociedade, tanto no

espaço público como no privado, representada por suas práticas e atitudes

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raciais, as quais valorizam o branco e invisibilizam o negro e tudo o que o vincula

(WALSH; GARCÍA, 2002, p. 317-318).

Além dos terreiros possuírem identidades próprias, os seus próprios

frequentadores se identificam como inseridos em uma cultura diversa da

dominante em nosso país.

3.1 A eficácia e a aplicabilidade da Convenção nº 169 da OIT

Nos termos do art. 20 dos atos constitutivos da OIT, uma vez ratificada

uma convenção, que é espécie de tratado internacional multilateral, passa a ser

obrigatória ao país que assim se sujeitou (OIT, 1944). Já a internalização dos

tratados no ordenamento jurídico brasileiro é um ato complexo disposto no art. 84,

inc. VIII e art. 49, inc. I da CF/88.

Sobre a hierarquia dos tratados internacionais no ordenamento brasileiro,

após a EC 45/2004, Piovesan (2012, p. 129) posiciona-se que todos que possuem

a matéria de direitos humanos “[...] têm hierarquia constitucional, situando-se

como normas materialmente e formalmente constitucionais”.

No entanto, não é essa interpretação que atualmente guarda o STF. Em

03/12/2008, com o julgamento do Recurso Extraordinário nº 466.343, assentou-se

que os tratados de direitos humanos aprovados antes da EC 45/2004, isto é, sem

as formalidades do §3º do art. 5º, possuem um caráter de supralegalidade, ou

seja, irradiam um efeito paralisante a todo o ordenamento infraconstitucional que

com eles conflitam. Diga-se que essa tese não foi unânime, vencidos os ministros

Celso de Mello, Cezar Peluso, Ellen Gracie e Eros Grau, que conferiam àqueles

tratados de direitos humanos um status constitucional12 (PIOVENSAN, 2012, p.

131-134).

O Brasil depositou junto ao Diretor executivo da OIT, o respectivo

instrumento de ratificação da Convenção nº 169 em 25/07/2002, depois da

autorização do Decreto Legislativo nº 143 de 20/06/2002, passando a irradiar 12 Sobre demais discussões sobre o assunto, tais como diferenças entre tratados de

direitos humanos materialmente e formalmente constitucionais e tratados apenas materialmente constitucionais, os reflexos da possibilidade, ou não, da denunciação de tais tratados apenas pelo Poder Executivo, etc., ver Piovesan (2012) páginas 138-145.

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seus efeitos em 25/07/2003, uma vez que a promulgou através do Decreto nº

5.051 em 19/04/2004 (BRASIL, 2004a).

Logo, realizado o ato complexo disposto entre o art. 84, inc. VIII e art. 49,

inc. I ambos da CF/88, o Brasil encontra-se no cenário internacional

comprometido e obrigado com a aplicação da Convenção nº 169 em seu território

nacional13.

3.2 Da acepção do termo “povos tribais” contido na Convenção nº 169 da OIT, e uma nova leitura sobre tal designação

A OIT expediu em 1957 a Convenção nº 107, inicialmente voltada para a

proteção das populações indígenas e tribais (OIT, 2011, p. 5-6), no entanto, após

um tempo, ela passou a ser contestada, ante suas tendências paternalistas e

integracionistas, visto que pressupunha a irreversibilidade do processo de

integração ou assimilação dos povos indígenas (SHIRAISHI NETO, 2007, p. 38),

fato reconhecido pela Comissão de Peritos que, em 1986, considerou-a obsoleta

e inconveniente para sua aplicação no mundo, nascendo em 1989 a Convenção

nº 169 (OIT, 2011, p. 6-7).

A referida convenção favorece dois grupos definidos: o primeiro são os

povos tribais, e seus desdobramentos a seguir comentados; e o segundo os

povos indígenas. Assim constando no art. 1º, item “1”, da Convenção nº 169: a) aos povos tribais em países independentes, cujas condições

sociais, culturais e econômicas os distingam de outros setores da coletividade nacional, e que estejam regidos, total ou parcialmente, por seus próprios costumes ou tradições ou por legislação especial;

b) aos povos em países independentes, considerados indígenas pelo fato de descenderem de populações que habitavam o país ou uma região geográfica pertencente ao país na época da conquista ou da colonização ou do estabelecimento das atuais fronteiras estatais e que, seja qual for sua situação jurídica, conservam todas as suas

13 Deixa-se de analisar o status da hierarquia constitucional desse tratado, ante não ser

objeto do presente artigo, no entanto, possuindo seu evidente conteúdo de direitos humanos e tendo sido aprovado antes da EC 45/2004 pelo Congresso Nacional, o mesmo carrega ao menos a carga de supralegalidade, conforme posição atual majoritária do STF, ressaltando a existência de posição minoritária do próprio Tribunal e parte da doutrina que entende pela hierarquia constitucional desse tratado (PIOVESAN, 2012, p. 131-139).

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próprias instituições sociais, econômicas, culturais e políticas, ou parte delas. (BRASIL, 2004a).

A alínea “b” aplica-se evidentemente aos povos indígenas, sendo

descartada automaticamente da presente a sua discussão, já a alínea “a” merece

um melhor estudo a partir de agora.

A Convenção nº 169 é de 1989, assim, necessário investigar se o vocábulo

“povos tribais”, contido na alínea “b” já referida, não foi atualizado, mesmo que

implicitamente, pelos demais documentos internacionais, e dispositivos

infraconstitucionais brasileiros que possam ter “abrandado esse termo”, sempre

que utilizarem para designar grupos sociais portadores de identidade étnica e/ou

coletiva (SHIRAISHI NETO, 2007, p. 42).

Após a Convenção nº 169, em 1994 surge a Convenção sobre Diversidade

Biológica (CDB), oriunda da famosa ECO-9214, devidamente reconhecida pelo

Decreto nº 2.519/1998. Na CDB não consta o termo “povos tribais”, surgindo o

termo populações indígenas e comunidades locais (BRASIL, 1998).

Em 2002 a UNESCO, inaugurando sua nova política para trazer respostas

à diversidade cultural e a necessidade de um diálogo intercultural, apresentou a

Declaração Universal Sobre a Diversidade Cultural (SHIRAISHI NETO, 2007, p.

124). Nela não há o termo “povos tribais”, e sim minorias e povos autóctones.

Ainda, em decorrência da CDB de 1994, em janeiro de 2010 surge o

primeiro acordo suplementar conhecido como Protocolo de Cartagena sobre

Biossegurança. Igualmente, nesse protocolo, não se utiliza a locução “povos

tribais”, surgindo os termos comunidades indígenas e comunidades locais em seu

art. 26 (BRASIL, 2006a). No ano de 2006 o Brasil ratificou a Convenção para a

Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial, com entrada em vigor de seus

efeitos em 01/06/2006 e promulgada através do Decreto nº 5.753/2006 (BRASIL,

2006b). Nessa convenção desaparece o termo “povos tribais e indígenas”,

surgindo a dicção comunidades indígenas.

14 Eco-92 foi a denominação para a II Conferência das Nações Unidas sobre o Meio

Ambiente e Desenvolvimento, realizada na cidade do Rio de Janeiro no ano de 1992, importante à época para consolidar a preocupação com um desenvolvimento sustentável e a conscientização às agressões ao meio ambiente. Tendo desdobramentos consideráveis, igualmente, nas áreas científicas, diplomáticas, políticas, sociais e da comunicação (NOVAES, 1992).

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Já a Convenção Sobre a Proteção e Promoção da Diversidade das

Expressões Culturais, a qual o Brasil aderiu em 2007, promulgada através do

Decreto nº 6.177/2007 (BRASIL, 2007b), também não carrega o termo “povos

tribais”, e sim populações indígenas, povos indígenas e minorias.

A própria Declaração nas Nações Unidas Sobre os Direitos dos Povos

Indígenas não contém em seu âmago expressões relacionadas ao termo “tribais”,

e sim comunidades e povos sempre que se refere aos indígenas (ONU, 2007).

Essas declarações e convenções internacionais, em decorrência do Brasil

ratificá-las, acaba inspirando a legislação infraconstitucional afeita à matéria,

assim, no ano de 2000, quando nasce a Lei 9.985, que regula o art. 225, § 1º,

incs. I, II, III e VII da CF/88, no que tange ao Sistema Nacional de Unidades de

Conservação da Natureza (SNUC), não utiliza o termo “povos tribais”, e sim

populações locais e tradicionais para designar grupos sociais portadores de

identidade étnica e coletiva (BRASIL, 2000).

Em 2004 é criada a Comissão Nacional de Desenvolvimento Sustentável

das Comunidades Tradicionais, Decreto presidencial de 27/12/2004, a qual tinha

como objetivo estabelecer uma política pública para acompanhar políticas

nacionais de monitoramento e auxílio para essas comunidades, em especial nas

atividades de agroextrativismo (BRASIL, 2004b). Decreto esse que fora

substituído por novo regulamento presidencial em 13/07/2006, dando nova

denominação àquela Comissão, passando a se conformar como Comissão

Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos povos e Comunidades Tradicionais

(BRASIL, 2006c). Em ambos os decretos presidenciais, as expressões

designadas para tratar de agrupamentos sociais é “comunidade” (tradicionais),

“povo” (tradicionais e indígenas) e organizações indígenas (BRASIL, 2004b;

BRASIL, 2006c). Temos o Decreto nº 6.040/2007, que veio exatamente para

adequar esses decretos presidenciais e instituir definitivamente a PNPCT, o qual

em nenhum momento utiliza a marca depreciativa “povos tribais”.

Diante do levantamento da produção legislativa internacional e brasileira,

após a Convenção nº 169, denota que a expressão “povos tribais” deve ser

encarada em uma leitura, como a doutrina classifica, lato sensu, até porque no

Brasil não existiria povos tribais no sentido estrito (SHIRAISHI NETO, 2007, p.

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45). Exatamente por isso, utilizando uma concepção lato, que se sustenta que a

Convenção nº 169, no contexto nacional, serve de asilo a todos os grupos sociais

que demandem proteção e que reúnam os requisitos lá inseridos, tais como:

seringueiros, castanheiros, quebradeiras de coco, ribeirinhos, comunidades de

fundos de pasto dentre outros agrupamentos (SHIRAISHI NETO, 2007, p. 45-46).

Reforça-se que a dinâmica do que se entende por povos tribais vai além

desse termo, é o que se segue no próprio dispositivo (letra “a”, item “1”, art. 1º,

BRASIL, 2004a), quando identifica que esses são aqueles agrupamentos cujas

condições sociais, culturais e econômicas os distinguem de outros setores da

coletividade nacional.

Ante a esse fio condutor, e ao apresentado até o momento, visualiza-se

que um terreiro de matriz africana apresenta, em tese, todas as características

para seu enquadramento ao art. 1º, item “1”, letra “a” da Convenção nº 169, por

mais que o termo lá inserido seja depreciativo, pois ligado a questões civilizatórias

eurocêntricas, no entanto, encontra-se atualizado pelas legislações que lhe

sucederam.

Por derradeiro, o povo de terreiro não pretende nenhum tipo de

independência ou sua emancipação do Estado brasileiro, mas sim o respeito a

sua identidade cultural, seu respeito mínimo no que tange aos direitos humanos e,

ainda, o próprio resgate histórico e a diminuição dos efeitos estigmatizantes que

sempre com ele se plasmaram, não infringindo, logo, o item “3” do art. 1º da

Convenção nº 169 (BRASIL, 2004a), o qual proíbe qualquer interpretação do

termo “povo” no sentido de que atribua direitos a essas comunidades no âmbito

do Direito internacional.

Esse caráter da inexistência de alguma intenção emancipatória, no sentido

de que pudesse causar algum tipo de ataque ou instabilidade a uma possível

soberania nacional (KYMLICKA, 1996, p. 239), está calcado no próprio Decreto

do Estado do RS de nº 51.587 de 18/06/2014 (RIO GRANDE DO SUL, 2014),

instrumento jurídico construído em parceria com os representantes dos terreiros

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de matriz africana e aquele Estado15, quando em seu primeiro artigo assim

direciona: Art. 1º Fica criado o Conselho do Povo de Terreiro do Estado do Rio Grande do Sul, com a finalidade de desenvolver ações, estudos, propor medidas e políticas públicas voltadas para o conjunto das comunidades do povo de terreiro do Estado, caracterizando-se como um instrumento de reparação civilizatória, na busca da equidade econômica, política e cultural e da eliminação das discriminações. (RIO GRANDE DO SUL, 2014). Sem grifo no original.

Como grifado, não há o mínimo interesse em constituir um novo Estado, ou

mesmo de requerer direitos de autodeterminação e autorregulação, e sim de

resolver as injustiças econômicas, políticas e culturais exatamente sob os

enfoques de um pensar redistributivo e de reconhecimento16 (FRASER, 2006, p.

232).

Esse Decreto pode ser o marco, além de um verdadeiro início de exemplo

de um diálogo intercultural, da resposta aos que realizam uma crítica da revisão

para se alcançar uma paridade na participação em uma política democrática

representativa, pois somente dando voz aos excluídos, em vez de simplesmente

interpretar seus interesses, é que se poderá chegar perto de mudanças para

transformar padrões de dominação que imperam em nossa sociedade, as quais

confundem universalidade com supremacia de uma única cultura e discurso

(CLÉRICO; ALDÃO, 2011, p. 178-179).

Conclui-se que as comunidades dos terreiros de matriz africana, as quais

se distinguem dos demais segmentos da comunidade nacional, estão dentro da

concepção de povos tribais da Convenção nº 169 da OIT.

3.3 Da autoidentidade contida na Convenção nº 169 da OIT

15 Sobre o histórico social da construção desse instrumento jurídico recomenda-se a

leitura dos Boletins informativos do Povo de Terreiro RS. Disponível em: <http://www.rs.gov.br/download/20141223143644boletim_versao_final_ok.pdf>. Acesso em: 20 fev. 2015.

16 Não se desconhece que todos os anseios contidos no pano de fundo no Decreto só poderão com o tempo saber sobre sua realização e, mesmo, qual a dose dos remédios afirmativos ou transformadores que serão utilizados para eliminar essas injustiças culturais e econômicas identificadas (FRASER, 2006, p. 239).

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A Convenção nº 169 orienta a realização dessa materialização identitária,

quando no item “2” do art. 1º guia que a autoidentificação é o critério fundamental

para a definição desses grupos coletivos.

Para Taylor (1994, p. 45), a identidade é a maneira como a pessoa se

define em suas características fundamentais como um ser humano. Logo, é

através do autorreconhecimento que se inicia o reconhecimento pelos outros de

uma identidade própria (OLIVEIRA, R., 2005, p. 24). Ao contrário, com a

deficiência desse reconhecimento ou ocorrendo isso de forma incorreta, acarreta

um prejuízo para uma pessoa ou grupo de pessoas, levando a uma verdadeira

distorção negativa daqueles, com limitações em sua imagem, desprezos e

sentimentos de inferioridades (TAYLOR, 1994, p. 45 e 85).

No momento em que o item “2”, do art. 1º da Convenção 169 infere ao

próprio indivíduo a capacidade de se autoenquadrar juridicamente, ocorre o

fortalecimento do signo de pertencimento daquele, no entanto, inverte o padrão

até hoje encontrado no seio jurídico, isto é, no sentido de que o monopólio da

interpretação da norma jurídica é do jurista17 (DUPRAT, 2007b, p. 22). Isso com

certeza causa certo mal-estar para o profissional que sempre se acostumou a

subsumir a regra posta em lei através de seu método tecnicista.

Por essa razão lógica, a identificação das comunidades de terreiro possui

na autoidentificação e no autorreconhecimento de seus indivíduos o fator inicial

preponderante para isso.

3.4 Do direito e proteção à diferença cultural e étnica na Constituição brasileira

17 De certa forma, esse remanejamento onde o objeto de estudo passa a ser o próprio

sujeito de conhecimento (no caso do Direito, e especificamente no que contido na Convenção 169 da OIT, os seus objetivos de organizar a sociedade e regular o convívio humano passa a ser o seu próprio intérprete), já ocorreu na ciência social, quando as demandas dos movimentos sociais invadiram e fizeram eco na esfera acadêmica na década de 1960. Era uma “onda” identitária de conhecimento sendo produzido pelo seu antigo objeto de estudo, assim, as feministas pesquisavam em nome de mulheres; os gays e lésbicas pesquisavam as experiências homossexuais, os negros as concepções de grupos racializados, etc. (MISKOLCI, 2014).

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Reconhecido o Brasil como uma sociedade pluralista e fundada em uma

harmonia social, preâmbulo da CF/88, somente se conseguirá esse intuito com

respeito à prática dos diferentes grupos sociais existentes em seu seio, motivo

que o inc. II do art. 216 da CF/88, inclui a proteção dos modos de criar, fazer e

viver dos diferentes grupos formadores de sua sociedade, constituindo essa

defesa tanto dos bens material e imaterial igualmente. Denomina-se isso de

prática social.

Aliás, a falta da proteção dessa prática social poderá ocasionar a perda da

identidade cultural de determinado grupo e, consequentemente, na própria

extinção de uma cultura. Isso importa em um acinte contra o art. 4º da Declaração

Universal Sobre a Diversidade Cultural da UNESCO (SHIRAISCHI NETO, 2007,

p. 122), onde consta a orientação de que a diversidade cultural é um imperativo

ético, inseparável do respeito à dignidade da pessoa humana, motivo que autores

defendem que direitos culturais e étnicos encontrados na CF/88 possuem

evidente status de direito fundamental (DUPRAT, 2007a, p. 16).

Para as comunidades tradicionais, nas quais há uma homogeneidade

cultural e orgânica interna mais caracterizada, os aspectos comunitários de uma

identidade pessoal assumem maior importância, por isso que [...] a perda da identidade coletiva para os integrantes destes grupos costuma gerar crises profundas, intenso sofrimento e uma sensação de desamparo e de desorientação, que dificilmente encontram paralelo entre os integrantes da cultura capitalista de massas. (DUPRAT, 2007c, p. 84).

Diante disso, não é somente o direito dessas comunidades que se perde

com a falta de proteção de uma prática social e o desaparecimento de um grupo

étnico ou cultural diferenciado, mas sim todos brasileiros das presentes e futuras

gerações, que ficam “[...] privados do acesso a um ‘modo de criar, fazer e viver’”.

(DUPRAT, 2007c, p. 85). Logo, não fica afetada somente a defesa de uma

diversidade cultural com a perda de uma comunidade tradicional, mas,

igualmente, a defesa da cultura ao próprio desenvolvimento humano

(SHIRAISCHI NETO, 2007, p. 40).

Pontuada até agora a proteção cultural. Já na questão étnica, a CF/88

igualmente demarca a proteção aos povos indígenas através do § 2º do art. 210,

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quando autoriza o ensino da língua e práticas desses povos para a aprendizagem

no ensino fundamental (BRASIL, 1988).

Na sequência de tutela aos povos indígenas, há os comandos

constitucionais dos arts. 231 e 232, que reconhecem os índios como uma

coletividade. E, exatamente, para evitar maiores interferências no modo de vida e

desenvolvimento de sua cultura que há a necessidade, conforme os arts. 176 e

231 ambos da CF/88, de uma regulamentação especial quando implicar em

exploração ou aproveitamento de jazidas, recursos minerais e dos potenciais de

energia hidráulica sempre que ocorrer em terras indígenas (BRASIL, 1988).

Nesse mesmo art. 231 da CF/88, há a proibição da retirada dos grupos indígenas

de suas terras, salvo excepcionalidades, no mesmo sentido que o art. 16 da

Convenção nº 169 da OIT (BRASIL, 2004a).

Por fim, no que tange à defesa de grupos étnicos, reforçando a importância

da diversidade cultural, temos o § 1º do art. 215 da CF/88, que comanda ao

Estado proteger as culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, isto é,

reconhecendo a existência de um projeto de pluralismo cultural.

3.5 Do Decreto nº 6.040 de 07 de fevereiro de 2007

O Decreto nº 6.040/2007 veio para instituir definitivamente a PNPCT, assim

conceituando em seu terceiro artigo: I - Povos e Comunidades Tradicionais: grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, que possuem formas próprias de organização social, que ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição; II – [...] (BRASIL, 2007a).

Analisando o item “I” acima posto, nota-se que o decreto pontua duas

formas de denominar os grupos protegidos pela PNPCT: povos tradicionais e

comunidades tradicionais. Apesar de não ser o intento do presente trabalho,

tentar-se-á pontuar o que vem a ser a semântica dos termos iniciais de cada

locução para compreender a correlação com o problema apresentado na

introdução dessa pesquisa.

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3584

O conceito de povo pode ser visto sob o prisma político, sociológico e

jurídico. Na visão política, povo é aquela parcela da sociedade com capacidade

eleitoral (BONAVIDES, 2012, p. 79-81), retira-se isso do próprio §único do art. 1º

da CF/88 (BRASIL, 1988). Sob o prisma sociológico, a conceituação de povo tem

uma interligação direta com o conceito de nação, pois aqui se tem a ideia de “[...]

agrupamentos humanos dotados de muitas afinidades – linguísticas, culturais,

religiosas, étnicas, etc.” (BASTOS, 1994, p. 153).

No que se refere ao conceito de nação, o autor português Jorge Miranda

segue a linha de que a fundação de uma nação se dá “[...] numa história comum,

em atitudes e estilos de vida, em maneiras de estar na natureza e no mundo, em

instituições comuns, numa ideia de futuro (ou desígnio) a cumprir”. (MIRANDA,

2002, p. 190-191). Nesse conceito, compreende a doutrina que nação é anterior

ao Estado, podendo várias nações reunir-se em um só Estado, bem como uma só

nação derramar-se sobre vários Estados (MALUF, 2009, p. 16).

Após essa noção do que podemos entender por “povo”, resta caracterizar o

que se entende por comunidade, pois nem todo agrupamento pode ser entendido

como uma efetiva comunidade constituída.

Convém pontuar que sociedade não pode ser alçada ao mesmo patamar

de comunidade, pois uma inclui e a outra pode muito bem excluir o indivíduo,

sendo que elas acabam sendo conceitos-tipo complementares e contraditórios

para que as Ciências Sociais possam analisar as diferentes maneiras das

organizações sociais (RAMIRO, 2006, p. 23). No sentido contraditório daqueles

termos: Em teoria, a sociedade consiste em um grupo humano que vive e habita lado a lado de modo pacífico, como na comunidade, mas, ao contrário desta, seus componentes não estão ligados organicamente, mas organicamente separados. Enquanto na comunidade os grupos permanecem essencialmente unidos, a despeito de tudo que os separa, na sociedade eles estão essencialmente separados, apesar de tudo o que os une18. (FERDINAND TÖNNIES apud RAMIRO, 2006, p. 23).

18 Imperioso colher a observação de que não se trata de uma visão maniqueísta, no

sentido de que tudo que se relaciona à comunidade é bom e à sociedade é ruim. Nesse sentido, não é porque a pobreza em si condiciona que pessoas que acabem residindo em espaços comuns criem vínculos efetivamente comunitários em busca de sua

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Com isso, a comunidade evoca uma sensação de solidariedade

(PERUZZO; VOLPATO, 2009, p. 67), tonificando uma dinâmica de fortalecimento

de identidades, pois “[...] o fortalecimento de identidades locais pode ser visto na

forte reação defensiva daqueles membros dos grupos étnicos dominantes que se

sentem ameaçados pela presença de outras culturas”. (HALL, 2006, p. 85).

Em um exercício de revisitação ao escrito até o momento, podemos afirmar

que tanto em um agrupamento humano como um antigo quilombo, como na

organização litúrgica de um terreiro de matriz africana contemporâneo, percebe-

se essa figura de uma comunidade constituída, pois há uma hierarquia concreta

de indivíduos entrelaçados pela solidariedade em sentirem-se protegidos do

mundo exterior (SILVA, 1994, p. 56), unidos por algum traço de sangue, etnia,

território, religião ou com um projeto consensual (SODRÉ, 1999; RAMIRO, 2006,

p. 24).

Em decorrência disso, na mesma linha de Taylor (1994, p. 54) e

Stavenhagen (2010, p. 79), Sodré conclui que Nenhum indivíduo dá conta de todas as circunstâncias de sua individuação. Isto é, não instrumentaliza racionalmente nem responde, no nível da plena consciência, por todo o conjunto de fatos reais que o constitui (o conceito freudiano de inconsciente é uma ferida na pretensão de visibilidade ou transparência absoluta do sujeito). Mas pode sentir essas circunstâncias. A ideia de grupo impõe-se como a de um outro “lugar”, onde o indivíduo sente pluralmente. No grupo ou em sua cultura, pode ter-se a percepção de estruturas globais, experimentar sensações na totalidade, pois, sendo ele a forma que dá substrato à tensão luz/trevas, é uma fonte permanente de excitações. Polimorfa, a organização grupal contém os mais diversos modos de funcionamento psíquico e o horizonte das modulações existenciais dos indivíduos. Por isso, pode alguém dizer, como Jacques Lacan, que é o “coletivo” (leia-se também: o grupo) é o “sujeito do individual.” (SODRÉ, 1999, p. 141).

E, portanto, Importante é ter em mente que a parte, o individual, a espécie, o singular não se separam, enquanto diferenças, do todo, do grupo, do gênero, da natureza comum ou universal. Singular e comum são duas faces de uma mesma moeda ou de um movimento, que se encontram no instante de geração de um ser qualquer. (SODRÉ, 1999, p. 141).

sobrevivência, por mais que em alguns casos particulares possa ocorrer isso (RAMIRO, 2006, p. 26).

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3586

Com essas elucidações postas, impera entender em qual conceito de povo

e/ou comunidade que o Decreto nº 6.040/2007 se baseou. Isto é, quando o

Decreto fala em povos e comunidades tradicionais, ele deseja a utilização do

termo “povo” no sentido jurídico, sociológico, político?

Sob o conceito jurídico de povo, como elemento indispensável para a

constituição de um Estado soberano e independente, sendo integrado por um

aspecto subjetivo e outro objetivo (DALLARI, 2011, p. 101-104), não parece ser a

melhor interpretação dada ao contido no Decreto nº 6.040/2007. Chega-se a essa

conclusão, pois mesmo tendo nos princípios fundamentais o reconhecimento da

existência de um pluralismo político (inc. V, art. 1º da CF/88), em seu caput afirma

que a República Federativa do Brasil é formada pela união indissolúvel dos seus

Estados, Municípios e Distrito Federal (art. 1º, CF/88). Logo, s.m.j., se o conceito

jurídico de povo fosse o aplicável no Decreto nº 6.040/2007, haveria a tendência à

possibilidade de criação de Estados independentes internamente no Brasil, o que

implicaria em inconstitucionalidade e, mesmo, instabilidade nacional interna.

Além disso, a própria Convenção nº 169 da OIT em seu item “3” do art. 1º,

já adverte que o termo “povo(s)” contido naquele documento não poderia

acarretar interpretação que desse qualquer tipo de direitos em âmbito

internacional aos grupos tutelados por ela.

Descartado o conceito jurídico de povo para fins de perquirir o sentido

dessa palavra no Decreto nº 6.040/2007, vislumbra-se que o sentido que deve ser

encarado esse vocábulo é próximo ao conceito de nação, o qual imbrica com o

próprio termo comunidade lá associado, e já discutido em linhas anteriores.

Logo, o Decreto nº 6.040/2007 definiu como povos e comunidades

tradicionais os [...] grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, que possuem formas próprias de organização social, que ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição. (BRASIL, 2007a).

Nesse sentido, a comunidade do terreiro de matriz africana encontra-se

pontuado por todos esses elementos, é verdade que alguns em maior ou menor

intensidade. Contudo, um grau de intensidade diverso em um desses elementos

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não poderá servir como fato que obstaculize o enquadramento no Decreto, e

respectivas benesses, até porque o mesmo foi inspirado em grande parte pelos

“ares” da Convenção nº 169 da OIT.

Da mesma forma que a Convenção nº 169 da OIT, o Decreto nº 6.040/2007

confere igual peso às comunidades e povos tradicionais abrangidos por aquele

instrumento jurídico, pois não faz nenhuma distinção de tratamento entre os

grupos sociais lá abarcados, todavia, alarga mais claramente as possibilidades de

uma maior abrangência e inclusão de outros grupos sociais, além de “povos

indígenas e tribais” contidos na convenção da OIT (SHIRAISHI NETO, 2007, p.

45-46).

Com essa, se assim podemos chamar, releitura interpretativa da

Convenção nº 169 da OIT, pelo Decreto nº 6.040/2007, concretiza-se parte do

espírito de reequilíbrio social, cultural e econômico pretendido lá em 1989

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Mesmo que a base do povo brasileiro tenha sido construída quase ao

mesmo tempo, na interação entre as etnias índia, europeia e africana, a partir do

século XVI, a cada uma dessas, por séculos, foram atribuídos papéis

diferenciados na conjuntura nacional. Incumbiu a etnia representante do Velho

Mundo, que aqui lançava os alicerces do colonialismo, o papel de dominadora e

subjugadora inicialmente dos índios e, não sendo esses suficientes para tracionar

as engrenagens do capitalismo moderno que aqui se arvorava, acabou

importando coercitivamente seres humanos oriundos do continente africano para

transformarem-se em escravos.

Contudo, o terreiro se constitui em um espaço que recria o mundo africano

no solo brasileiro, espaço esse que preserva os princípios civilizatórios da matriz

africana, constituindo o que na língua iorubá denomina-se um egbé, isto é, uma

comunidade de pessoas com o mesmo propósito.

Com a preocupação de proteger exatamente esse tipo de agrupamento

social, que a OIT agregou na sua Convenção nº 169, além da proteção aos povos

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3588

indígenas, o paládio de outras comunidades denominadas naquele instrumento

de povos tribais.

Após a Convenção nº 169 da OIT, surgiram diversos outros instrumentos

jurídicos no plano internacional, e na esfera infraconstitucional brasileira, que não

mais identificaram qualquer agrupamento social como “povos tribais”,

demonstrando que o termo lá posto encontra-se, na atualidade, equivocado em

seu emprego, pois denota uma construção com resquícios eurocêntricos, isto é,

da mesma forma que o conceito de raça foi criado para subjugar demais povos, o

termo “povos tribais” é uma possibilidade criada pelo Ocidente para afastar a

probabilidade da existência de outras formas de Estado e de economia política

das que baseadas em seus conceitos.

Neste diapasão, os terreiros de matriz africana reivindicam, como firmado

no Decreto do Estado do RS de nº 51.587/2014, políticas de reparação

civilizatória, equidade econômica, política, cultural e a eliminação das

discriminações, na melhor forma dos remédios afirmativos e transformadores

sugeridos por Fraser, isto é, para eliminar a injustiça cultural e a econômica.

Levando-se em conta o que foi apresentado, conclui-se que o termo “povos

tribais” contido na Convenção nº 169 da OIT abarca as atuais comunidades de

terreiro de matriz africana. Retira-se isso, pelos próprios pressupostos lá

inseridos, isto é: a) há nessas comunidades signos sociais, culturais e

econômicos que as distingam de outros segmentos da comunidade nacional; b)

elas possuem em seu seio de solidariedade uma identidade coletiva que

repercute em uma regência, mesmo que parcial, pelos seus próprios costumes ou

tradições, e, ainda, há uma legislação infraconstitucional, no caso o Decreto nº

6.040/2007, que prevê algumas regulações especiais a ser aplicadas nessa

coletividade; c) tendo uma identidade coletiva que identifica os indivíduos

componentes das comunidades de terreiro de matriz africana, e se preenche o

critério fundamental da autoidentificação como definidor desse grupo social.

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O FRACASSO LAICIZANTE DA CONSTITUIÇÃO DE 1988

Daniel Nunes Pereira

RESUMO: O presente trabalho traz a colação evidências do fracasso da Constituição de 1988 na construção de um Estado Laico. Pretende, portanto, mostrar como e por que o arcabouço constitucional brasileiro não conseguiu apaziguar os ânimos religiosos em nossa sociedade e, outrossim, o que se pode mobilizar das Teorias Política e do Direito com o fito de efetivar a inspiração laicista da referida Carta Magna. Para tanto, primeiramente, delimita-se o período histórico, qual seja, a Quinta República, iniciada em 1988. Em seguida, este artigo explica, no que concerne à tensão entre ser e dever-ser, a peculiar estranheza do Direito ao fenômeno religioso. Por fim são feitos apontamentos aos fundamentos constitucionais oponíveis à lógica religiosa ora conflitante com o Direito PALAVRAS-CHAVE: teoria política; laicismo; secularismo; constitucionalismo.

1 INTRODUÇÃO

Nos últimos anos tem-se verificado o aumento e a intensificação de

conflitos de natureza religiosa no ambiente jurídico-político brasileiro. Tem sido

comum a ocorrência de discussões parlamentares ou lides no judiciário com o

tema da religiosidade face às aspirações laicistas da Carta Magna da Quinta

República. A título de exemplificação, e para os fins explicativos do presente

estudo , é trazida a colação a recente celeuma acerca da frase “Deus seja

louvado” impressa em papel-moeda corrente pátrio, bem como a lide acerca de

crucifixos em tribunais e demais repartições pública e, no ambiente político, a

atividade da denominada “Bancada Evangélica” no Congresso Nacional.

O legislador originário tentou evitar conflitos da natureza ora mencionada

ao positivar normas constitucionais que teriam o condão de dirimir entreveros de

cunho religioso, e o fez ao garantir o livre exercício dos cultos religiosos (artigo 5º,

inciso VI da Constituição Federal) bem como ao vedar a privação de direitos por

motivo de crença religiosa (artigo 5º, inciso, VIII, do mesmo diploma legal).

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O presente trabalho pretende, portanto, ditas estas prolegomena, mostrar

como e por que o arcabouço constitucional brasileiro fracassou em apaziguar os

ânimos religiosos em nossa sociedade e, outrossim, o que se pode mobilizar da

Teoria do Direito com o fito de efetivar a inspiração laicista da Carta Magna. Para

tanto, efetuar-se-á o seguinte expediente: a) delimitação histórico-temporal; b)

explicação, no que concerne à tensão entre ser e dever-ser, de por que há

peculiar estranheza do Direito ao fenômeno religioso; c) apontamentos aos

fundamentos constitucionais oponíveis à lógica religiosa ora conflitante com o

Direito. Ao fim hão de ser feitas considerações finais e algumas proposições

resolutivas.

2 RECORTE HISTÓRICO

O presente estudo se debruça especificamente sobre o arcabouço político-

jurídico da Quinta República, inaugurada ao ocaso do Regime Militar instaurado

em 1964. Neste recorte histórico mostrar-se-á como o tema da religião e do

laicismo foi tratado na formação do novo momento político, bem como ele se

desenvolveu faticamente durante os governos erigidos sob a Carta de 1988,

intencionando esta seção do estudo demonstrar que os problemas concernentes

à esfera religiosa se adensaram e atualmente mostram-se aparentemente

incontornáveis.

Aponta-se, primeiramente, os evangélicos pentecostais e neopentecostais

como fiel da balança, visto que, enquanto coletividade religiosa, agiram de

maneira mais delimitada, organizada no que concerne às tangências entre suas

convicções religiosas e político-sociais desde a constituinte. Inclusive sua atuação

sendo a ignição para a atuação mais confessional de grupos ligados ao

Catolicismo Romano, mais tradicional na política brasileira. Nesta busca pelo fiel-

eleitor acirraram-se as disputas entre os conservadores, trazendo um moralismo

religioso retrógrado a política brasileira já na constituinte (Pierucci, 2001, p. 5),

inclusive com candidaturas sistematicamente atreladas às religiosidades mais

demograficamente representativas e moralmente estridentes (Pierucci, 1989,

p.104-132) .

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Durante os trabalhos iniciais da Assembleia Nacional Constituinte de 1987,

já era clara a influência da Religião nas novas fundações político-jurídicas. Por

exemplo, a Emenda nº 681 à resolução Nº 2, que deu origem ao art. 46 do

Regimento Interno da Assembleia Nacional, Ipsis Literis: “A Bíblia Sagrada deverá

ficar, sobre a mesa da Assembléia Nacional Constituinte, à disposição de quem

dela quiser fazer uso” A referida emenda foi proposta não por acaso por um

pastor da Assembleia de Deus e deputado constituinte, a saber, Antônio de Jesus

(PMDB/GO). O Relator do Regimento e futuro Presidente da República, Fernando

Henrique Cardoso, antes havia vetado a possibilidade de se demonstrar uma

Bíblia na mesa de oficial trabalho da Assembleia, mas dias depois afirmou ter sido

convencido da pertinência de tal proposição religiosa uma vez que o referido

pastor asseverou a presença de um crucifixo no mesmo ambiente.

Tal acontecimento aparentemente singelo demonstrou qual seria o animus

religioso da Nova República - o relator reafirma a laicidade do Estado, rejeita a

exibição bíblica, mas em seguida verifica-se o precedente do crucifixo, de tal sorte

que se opera uma mudança de foco institucional – se reafirma pro forma a

laicidade estatal, mas, por já existir um símbolo religioso publicamente exibido, ao

invés de reconstruir o espaço público como neutro de religiões (nem ateu, nem

teísta) resolve-se abarcar toda e qualquer manifestação místico-religiosa

(figurando, é claro, apenas as que possuem efetivo poder político e social).

Aprovada e promulgada a Constituição Cidadã, a religião ganhou espaço nos

governos eleitos que se seguiram.

Segundo Pierucci (1992, p.92), “ao contrário das massivas manifestações

de rua pelas "diretas-já" em 1984, movimento amplo e suprapartidário do qual

estiveram ausentes, como ausentes estiveram da longa luta das forças

democráticas do povo brasileiro contra o regime autoritário”, na eleição

presidencial de 1989 os evangélicos (especialmente os pentecostais) se

envolveram diretamente em movimentos políticos de massa, a saber, do lado de

Fernando Collor de Mello. Tal envolvimento se justificava pois os líderes

evangélicos identificavam Lula e o Partido dos Trabalhadores ou com a)

comunismo e seu consequente ateísmo; ou b) catolicismo representado pela

Teologia da Libertação (Pierucci 1992, p.92-106). Ironicamente, reportagens

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recentes evidenciaram o envolvimento de Collor com rituais religiosos de matriz

africana, talvez mais hostilizada pelos pentecostais do que o próprio comunismo

ou catolicismo.

Nas campanhas e governos que se seguiram pelas décadas de noventa e

dois mil, candidatos precisaram de alguma forma lidar com a força religiosa,

constantemente precisando mostrar deferência – foi o caso de Fernando Henrique

e Dilma Rousseff, nas eleições de 1994 e 2007 respectivamente, escondendo

com alguma vergonha suas convicções ateístas. A mesma deferência se mostrou

nas concordatas oficias firmadas entre Vaticano e Governo Lula, e os armistícios

não-oficiais entre o mesmo governo e algumas denominações evangélicas,

especialmente Igreja Universal - aparentemente uma tentativa de Lula enfrentar

as sempre críticas Assembléias de Deus e minar o poder midiático da Rede Globo

com o crescimento da Record (Machado, 2012, p.29-56)

Estas acomodações políticas, especialmente a silenciosa submissão de

personagens que poderiam ter sido potencialmente críticos e belicosos ao

conservadorismo religioso como Roussef e o próprio Fernando Henrique Cardoso,

parecem ter inadvertidamente gerado um ambiente mais complicado do que o

havido quando da promulgação da Carta Magna da Quinta República. Observa-se

a eclosão e intensificação de problemas não previstos: exteriorização passiva-

agressiva da crença (salmo nas notas e crucifixos) e politização da esfera privada

em detrimento de despolitização da esfera pública (notada na atividade

antirrepublicana da chamada bancada evangélica19).

19 De acordo com os dados do sítio eletrônico “Transparência Brasil”

(http://www.transparencia.org.br/ e http://www.excelencias.org.br/) é possível perceber que: 1) todos os deputados que compõem a Bancada Evangélica respondem processos judiciais; 2) 95% da referida bancada tem alta taxa de ausência em sessões parlamentares; 3) 87% da referida bancada estão entre os mais inexpressivos do DIAP; 4) nenhum dos parlamentares da referida bancada legislou ou apresentou proposta com vistas às necessidades prementes do Estado (saúde, educação, moradia, etc), agindo enquanto parlamentares apenas para defender os interesses de grupos religiosos em agenda metódica contra minorias vulneráveis entendidas como contrárias aos seus ethea, v.g., homossexuais e representantes de culturas de matrizes africanas.

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3 POR QUÊ O DIREITO PARECE NÃO DAR CONTA DA RELIGIÃO?

Sempre que se trata de algum problema do mundo da experiência, isto é,

um fato social20 a ser contemplado pelo Direito, presume-se uma relação

sujeito/objeto, na qual este emerge da empiria, enquanto aquele é tanto o

operador quando o telos do ordenamento jurídico21. No que concerne a esta

relação, o que se propõe neste recorte paradigmático é, em poucas palavras, uma

perspectiva “ptolomaica”, metodologicamente contrária ao método kantiano

oriundo de uma “revolução copernicana” na filosofia. Para tal, a religião é

encarada tanto como fato social quanto transcendente ao sujeito, id est, uraniana,

apartada dos afazeres ordinários e profanos. Assim, neste entendimento

epistêmico que se identifica com uma realidade22 opaca (Žižek, 2001, p.82-83),

jaz uma específica teleologia que mira o Homem, para além do hedonismo, a

colocar o gênero humano (e não apenas o indivíduo) como centro de reflexão,

inclusive (e este é o caso), no Direito. Nesse esquema de teorização ptolomaica,

geocêntrico, ou, de maneira mais rígida, antropocêntrico, propõe-se o estudo das

doutrinas e disciplinas mais uranianas até as mais imanentemente humanas. Em

20 Do original “Fait Social” - “Sozialer Tatbestand” na tradução ora utilizada (Durkheim,

1980, p.114). Ainda que a nomenclatura durkheimiana tenha sido utilizada, o presente estudo não se resume de maneira alguma a uma única escola de Teoria Social, porquanto, advoga-se um entendimento holístico inter e transdisciplinar.

21 No caso de Direitos Humanos é clara a teleologia da norma, a saber, a pessoa humana e sua dignidade. Em outros ramos do Direito Público, v.g., Direto Administrativo ou Constitucional, ainda que se proceda à defesa e manutenção de instituições, estas são mediatas a sujeitos individuais ou coletivos.

22 Neste entendimento ontológico específico, de fundamento último em Lacan, trabalhamos sobre o chamado “Real Simbólico”, qual jazem tanto religião enquanto prática e o Direito enquanto techné, havendo ainda o “Real Imaginário” que, detém a transcendência religiosa e sua completa alteridade bem como as bases kantianas do Direito hodierno. O “Real real” se apresenta como um monólito epistêmico, sendo aterrorizante e inefável, enquanto a Realidade se exprime apenas em fatos e atos absolutos, como morte, vida, sexo, etc, os quais são digeridos e tornados cognoscíveis na duas primeiras instâncias do “Real” (Žižek, 2001, 10).

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resumo, buscamos nesta seção delimitar um ponto de partida no Princípio

Antrópico23 na construção da problematização jurídica anteriormente apresentada.

O estudo mira no sujeito, pois parte da compreensão que o homem

religioso não se define unicamente através dos objetos sociais nos quais se

manifesta de modo compacto e concentrado. Existe, portanto, uma dimensão

transversal do fenômeno humano, que trabalha de modo ativo ou latente, explícito

ou implícito, em toda a espessura da realidade social, cultural e psicológica,

segundo modalidades próprias a cada uma das sociedades (Simmel, 1997, p.13).

Tendo em vista essa transversalidade da religião e as reverberações nas

outras esferas da vida humana, é preciso rever a problemática da deontologia do

Direito a partir de entendimento holístico da problemática advinda da relação

entre a religião e o Direito no Brasil. Assim, o problema da lacuna entre ser e

dever-ser no Direito, para o tema ora trabalhado, pode ser primeiramente

localizado no binômio Religião-prática/Direito-Técnica, sendo, entretanto,

desenvolvido a partir de uma perspectiva do Real imaginário. Isto significa que

são criticados o conflito e a quimera resultantes do antagonismo entre o

arcabouço jurídico-político pátrio (bem como suas potencialidades progressistas)

e as diversas práticas religiosas, sendo o núcleo da crítica uma deontologia

jurídica antrópica confrontada a algumas fontes da transcendência religiosa.

Tanto Direito como Religião possuem, implicitamente, sentidos últimos

formadores de suas práticas. Importa, por conseguinte, com o fito de entender a

dificuldade especial havida na lacuna entre ideal/real, buscar significado profundo

do fato religioso supõe a existência do sentido e significados expressos destas

experiências. O método fenomenológico, aplicado à análise do fato religioso, visa,

para alcançar seu intento, promover a redução fenomenológica, pois a partir deste

procedimento é possível captar as estruturas simbólicas universais do fenômeno

23 Princípio Antrópico de maneira geral refere-se a cosmologia e física, e estabelece que

qualquer teoria válida sobre o universo deve ser consistente com a existência do ser humano, para o qual o único universo que pode ver é o que possui seres humanos. Por hora ignoremos o fato de que tal teoria, em sua forma mais vulgar e pseudo-científica, se presta às parvoíces de grupos fundamentalistas cristãos, cujos membros sandeus refutam a evolução das espécies e teorias correlatas. Assim a adoção do conceito do Princípio Antrópico neste artigo visa efeito diverso daquele intentado pelo proselitismo religioso.

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religioso, ou seja, voltar às coisas mesmas havidas na fenomenologia de Husserl

(1976, passim). O pensamento religioso é fruto de uma noção e uma potência de

transcendência que há no ser humano. Então, questiona-se a priori, como nasce

a transcendência? Na gênese da noção de transcendência jaz o

desconhecimento do de acontecimentos lentos e transgeracionais (Sloterdijk,

2009, p. 20-24), assim como incognoscibilidade de fatos tidos como violentos e

brutais a existência (assim como no “Real real” de Žižek), a impossibilidade de

alcançar o outro, e, talvez o mais importante, o fato da consciência humana

comportar a faculdade de apresentar uma inteligência que a ultrapasse. Por outro

lado, ainda nesta questão, há também profundidade do ser humano, a qual

alegadamente resta em sua dimensão religiosa, sintonizada quando algo toca

incondicionalmente o indivíduo. Essa profundidade do ser humano na verdade jaz

no absurdo de sua existência, e sua incapacidade de lidar com isso dá vazão à

pretensas manifestações do sagrado, a exercícios de imaginação e a

consequente criação dos chamados mitos. O “sagrado”, portanto, é um meio de

suportação e resignação face a uma existência que tem o condão de nos

aniquilar, e manifesta-se não apenas nas coisas cotidianas, mas através das

coisas cotidianas, segundo Eliade (2010, p.17). Na hierofania (irrupção do

sagrado), na experimentação do alegado sopro religioso, toda a natureza pode

manifestar-se como sacralidade cósmica.

O Direito tenta racionalizar fatos e o encadeamento lógico destes, inclusive

emanações fenomênicas do porte da religião. Mas, entretanto, o sistema jurídico

não comunga de uma lógica generalizada, imanente, funcional através de

premissas e conclusões (Perelman, 2004, p.45-50) de sorte que seja aplicável

diretamente em fatos do mundo da empiria. Não comunga, portanto, de uma

lógica pura, ligada às razões primeiras da Filosofia, mas trata de pensamento

organizado como manifestação de conhecimento, o qual busca “A verdade”,

semelhantemente à Metafísica e à Ontologia. Diferentemente destas últimas, a

lógica e a metodologia jurídica tratam dos critérios para que determinada meta

possa ser atingida, é meio, portanto, e não fim. Em uma primeira conclusão da

estranheza do Direito ao fenômeno religioso, há a vicissitude ontológico-

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transcendental deste que não se mostra coadunável a mera racionalização dos

fatos, a qual deriva de raciocínio imanentista.

À comentada estranheza do Direito à Religião são sobrepostas as

teleologias funcionalistas de ambos os fenômenos, antiteticamente opostas entre

si. A saber, a religião funciona como Solvente e o Direito como dinamogênico

Social.

O Direito visa, em um primeiro momento, permitir a realização de fins

sociais que não podem ser atingidos senão através dessa mesma forma de

controle social. Assim é que fomenta determinado fim por promoção de ideias

abstratas, através de atitudes de seus partícipes, id est, programa

constitucionalmente meios que objetivam a Democracia e o Estado de Direito

(como no caso brasileiro, ora em comento), os quais se dão em uma sociedade

juridicamente coesa, ou seja, unida dinamogenicamente . Tal função promocional

de dinamogenia social se faz através de mecanismos encorajamento e

desencorajamento, sob uma perspectiva funcional (Bobbio, 2007, p.19), as

primeiras são utilizadas com o objetivo de unir os díspares, enquanto que as

medidas de desencorajamento são usadas com o objetivo de conservar a coesão

social, ou seja, alguma manutenção do status quo da sociedade.

A Religião em sua funcionalidade social, novamente enquanto Ser, colide

com o Direito, enquanto dever-ser, em sua funcionalidade de dinamogenia, de tal

sorte que aquela funciona como solvente social. Tal interpretação se direciona

como crítica weberiana a tradição sociológica de Durkheim, no sentido de se

posicionar a paralaxe entre culturas tradicionais à civilização judaico-cristã. Se o

sociólogo francês via que culturas aborígenes tinham seus indivíduos unidos pela

religião (Durkheim, 2009, p.457), na cultura monoteísta medievo-moderna a

religião monoteísta tem a capacidade de dissolver antigas pertenças e linhagens

estabelecidas (Pierucci, 2006, p.111-127), inclusive pelo Direito, como a própria

noçãao de Democracia, Laicismo e Direitos Humanos, em tese. A religião

proseliticamente universalista, ou seja, com proposta de salvação individual,

tende a predominar sobre os demais fenômenos sócio-culturais (inclusive o

Estado Democrático de Direito) e funciona como um dispositivo que desliga as

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pessoas do contexto cultural de origem, a saber, embebido nas garantias

fundamentais da Carta de 1988.

Apesar dos entreveros da Constituinte, e do destino da atuação político-

jurídica, da Quinta República, conforme asseveramos na primeira parte do

Estudo, o legislador originário põe óbices a um eventual Império do

Obscurantismo Religioso, a saber, o Princípio Democrático e a Laicidade.

Explanar-se-á agora tais institutos, evidenciando em seguida suas abstrações e

fetichizações, contribuindo para sua não efetivação no telos original – proteger as

Garantias Fundamentais de ataques motivados por religião.

4 FUNDAMENTOS CONSTITUCIONAIS OPONÍVEIS AOS EXCESSOS RELIGIOSOS: DEMOCRACIA E LAICISMO

A Constituição de 1988 expressa a adoção do Estado Democrático de

Direito, no sentido deste ser tanto material quanto formal, isto é inclui processos e

procedimentos democráticos, respeito a Regra da Maioria sem que esta se opere

em detrimento de qualquer minoria. Tal assertiva, consubstanciada no chamado

Princípio Democrático, possui base empírico-legal tanto no Preâmbulo

Constitucional como nos artigos relativos aos objetivos-fins do Estado Brasileiro, a

saber artigos 1º e 3º da Constituição Federal de 1988. Dado como certo o

princípio democrático, surge a questão da polissemia e indeterminação empírica

do termo Democracia.

O primeiro problema a ser enfrentado é a noção fugidia de “Democracia”,

bem como a lacuna constante entre teoria e prática de tal experiência política.

Para fugir de determinações estanques, bem como evitar solipsismo acadêmico

preso ao “sollen” democrático, outrossim, negar o cinismo de conceituações

empiricistas e funcionalistas, há de se recorrer a teorizações holísticas, quasi

temerárias a heterodoxias filosóficas. Assim, para uma melhor delimitação, a

própria ideia de Estado democrático será lapidada em suas diversas acepções a

fim de encontrar o mínimo consensual no qual a teoria proposta funcione. Com o

fito de blindar intelectualmente o presente estudo, dada a vulnerabilidade

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conceitual da ideia de democracia, usar-se-á um feixe de ideias que se

complementam.

A partir do disposto por Bobbio (1998, pp. 319, 326, 327) é possível traçar

um panorama, no qual ressaltam alguns autores que tiveram trabalhos seminais

acerca do tema, a saber:, Schumpeter, Mises, Popper, Hayek, Aristóteles,

Tocqueville e Kelsen. Dividem-se tais autores, para o presente estudo, entre

aqueles com uma teoria de democracia formal e de democracia material, sendo

esta mais útil ao presente esforço intelectual do que aquela. Assim, pelo

paradigma ora apresentado são mais profícuas ao estudo as teorias de Kelsen,

Tocqueville e Aristóteles, enquanto se mostram mais frágeis na construção do

contructo teórico as teses de Schumpeter, Mises, Popper e Hayek, visto que, no

que têm em comum, tratam apenas de democracia formal e não material, que é o

cerne do presente estudo.

Diferentemente dos autores supramencionados, a democracia deliberativa

idealizada por Aristóteles, pelo que se depreende de “A Política” e de “Ética a

Nicômaco”, nasce da exposição de opiniões coletivas, opiniões que divergem e

convergem, tendendo a formar um intenso diálogo, que almeja o alcance da

verdade prática, a qual orienta toda ação política – o que, sob determinado

ângulo, é o havido na Corte Constitucional. Assim, em Aristóteles, o fundamento

da democracia é a razão prática, entendida como prudência, que, por sua vez,

busca uma verdade prática. A concepção teleológica de mundo de Aristóteles

deve ser observada para que se possa entender a democracia deliberativa como

uma forma de governo capaz de aproximar o homem da realização do seu telos

(finalidade). Assim, com vistas a tratar de uma teoria mais imanente, é preciso

contrabalançar a transcendência aristotélica.O caráter altamente idealizado do

conceito em Aristóteles complementa-se com a democracia procedimental de

Kelsen, entendida como um método capaz de criar a ordem social coletiva

(Kelsen, 2000, pp. 102-104). Pelo disposto por Kelsen, a única justificação da

democracia que se pode permitir uma filosofia relativista (conforme explicado nos

fundamentos epistemológicos de ambos os autores), baseada na ciência, com

algumas ressalvas fenomenológicas (Husserl, 1976, pp. 302, 331, 371), é uma

justificação funcional. Tal justificação deixa a decisão sobre o valor social a ser

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posto em prática a cargo dos indivíduos atuantes na realidade política – o que se

torna um problema face ao papel contra-majoritário da Jurisdição Constitucional

Nesse passo, a democracia encontra seu fundamento, funcional, apenas

na hipótese de os indivíduos atuantes na realidade política entenderem serem a

liberdade e a igualdade os valores que devem ser postos em prática, e neste

ponto jaz a principal diferença entre Kelsen e Schumpeter, Mises e Hayek. A

democracia justifica-se, portanto, por ser,a forma de governo mais funcionalmente

ajustada a realizar os valores liberdade e igualdade.

Visto que Kelsen, com esteio em Aristóteles e negação a Schumpeter e

demais liberais, ainda que defenda a Democracia como forma, se preocupa com a

materialidade desta. Portanto, para tal, problematiza a legitimidade e a

possibilidade de uma ditadura da maioria (Kelsen, 2000, pp.178, 179), o que nos

permite inferir que o austríaco compartilha da exposição de Tocqueville.

Tocqueville assevera que a total e incondicional prática da vontade da

maioria, sem observação os limites superiores à legislação, tende a erodir a igual

liberdade exigida pelo regime de governo democrático (Tocqueville, 2005, p.294).

Essa possibilidade é identificada por Tocqueville como uma tirania da maioria,

identificada quando os elementos da democracia não são alcançáveis ou

garantidos para todos (Aron,1985, p. 205). Será, portanto, nesse horizonte

normativo de Kelsen-Aristóteles-Tocqueville que o presente estudo há de ser

desenvolvido.

Assim é que, no referido horizonte normativo, o Princípio Democrático se

opõe aos excessos religiosos ao i)garantir a Regra da Maioria sem ameaçar

minoria vulnerável; ii) garantir direitos às minorias sem obstar-se à maioria; iii)

evitar absolutizações de qualquer espécie, porquanto, negando Standards morais

absolutos eminentemente oriundos de weltanschanuungen religiosas; iv) permitir

formas e procedimentos de accountability acessíveis aos cidadãos. Pelo exposto,

nesse entendimento de Princípio Democrático, por exemplo, questões como os

Direitos Civis de cidadãos homoafetivos são necessariamente defensáveis.

Outrossim, pelo mesmo princípio, o respeito às manifestações culturais de

matrizes africanas hão de ser defendidas. Na mesma linha de raciocínio são

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3605

solucionáveis as querelas concernentes aos crucifixos em repartições públicas e

salmos impressos em papel moeda.

Exposta a questão do Princípio Democrático, põe-se a possibilidade de um

entendimento religioso de Democracia - é necessária a dependência ontológico-

moral do Estado a determinados ethoi religiosos? O Estado, e a sociedade que o

compõe, ditam seus próprios Standards morais, e destes podem vir a derivar

padrões normativos legais, a despeito de compromissos religiosos primeiros. Isto

não significa que ab origine não haja influência de, por exemplo, concepções

cristãs na formação no ordenamento jurídico – apenas significa que a ação

volitiva Estatal não é aprioristicamente movida por determinada visão religiosa.

Sobre a impossibilidade de se fundar uma Democracia sob parâmetros

religiosos tratou Kelsen. Segundo o jusfilósofo austríaco, eventualmente, devido à

incapacidade ou falta disposição dos indivíduos para tomarem decisões relativas

aos valores a serem implementados, o que seria uma aceitação corajosa das

conseqüências dessas escolhas livres24, surgem teorias nas quais o peso de tais

decisões é transferido para os ombros de uma autoridade religiosa. Para Kelsen,

a teologia cristã, ao oferecer uma justificação da democracia em termos não-

relativistas, responde à pusilanimidade do homem moderno, dando-lhe o conforto

de um fundamento aparentemente absoluto (Kelsen, 1993, p.206). Kelsen, a partir

de uma análise crítica do pensamento teológico-democrático de Emil Brunner,

Reinhold Niebuhr e Jacques Maritain (Kelsen, 1993, p.205), entende serem

equivocados esses exercícios de fundamentação teológica absoluta da

democracia no cristianismo, visto que, por um lado, a teologia cristã só é capaz de

justificar a democracia como valor relativo e, por outro, inexiste uma relação

essencial entre democracia e religião cristã. O homem moderno, para Kelsen, em

referência aos pensadores supracitados, ao abrigar-se sob o pálio de valores

absolutos, apenas recusa-se a perceber o poder de sua própria escolha livre

24 A ênfase que Hans Kelsen dá às escolhas e ações do homem como

independentes de ordens cosmológico-metafísicas dadas a priori, portanto, de inteira responsabilidade humana, permite inferir, segundo Cossio (1954), haver forte influência do Existencialismo de Kierkegaard (posteriormente Camus e Sartre, não contemporâneos à obra em comento) e Fenomenologia de Husserl, na obra do jusfilósofo.

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3606

como constitutiva dos valores sob os quais realmente se abriga. O esforço crítico

kelseniano se orienta para a demonstração do caráter essencialmente relativista

da justificação, erroneamente pensada como absoluta, do valor da democracia

pela teologia cristã. Retoma-se, portanto, a oposição entre epistemologias

absolutista e relativista (Kelsen, 1993, p.345) na construção de um ideal

democrático.

Kelsen, em sua argumentação acerca da democracia, propõe uma analogia

entre teoria política e disciplinas da filosofia, quais sejam, a epistemologia e a

teoria dos valores. Na teoria de Kelsen, em última análise, com fito meramente

argumentativo e didático, há duas formas de Estado antagônicas: a democracia e

a autocracia. E na filosofia, tanto na epistemologia como na teoria dos valores,

existe o antagonismo entre absolutismo filosófico e relativismo filosófico (Kelsen,

1993, p.161).

O exame da base filosófica da democracia, segundo Kelsen, não deve

objetivar nem constituir-se em uma justificação absoluta da democracia, o que

incidiria no paradoxo do ceticismo do pensamento de Sexto Empírico (Kolakowski,

2009, p.88). A forma institucionalizada de não permitir absolutizações ao Estado,

em matéria religiosa ao menos, é o Laicismo – portanto, o Estado e seu

arcabouço jurídico-normativo não são confessionais, no sentido de que não

assumem peremptoriamente a validade de determinada noção metafísico-

cosmológica, id est, não se apresenta nem como teísta nem como ateu.

A laicidade deriva do Estado e não da religião, no sentido de que aquele se

afirma e, em alguns casos, impõe a laicidade (Bracho, 2005). É a laicidade uma

noção que possui caráter negativo, restritivo, compreende-se, sucintamente,

como a exclusão ou ausência da religião da esfera pública. Assim, a laicidade

implica a neutralidade do Estado em matéria religiosa em dois sentidos diferentes,

sendo o primeiro acima comentado (exclusão da religião do Estado e da esfera

pública), e o segundo referente à imparcialidade do Estado às religiões, i.e., todas

tratadas com igualdade, resumidamente pelo binômio neutralidade-imparcialidade

(Barbier, 2005). Há laicidade quando o poder político não é mais legitimado pelo

sacro e quando não há a dominação da religião sobre o Estado e a sociedade,

implicando a autonomia do Estado, dos poderes e das instituições públicas em

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3607

relação às autoridades religiosas e a dissociação da lei civil das normas religiosas

(Baubérot, 2005).

Outrossim, laicidade não se confunde com a liberdade religiosa, o

pluralismo e a tolerância, havendo estas sem que haja laicidade, como é o caso

da Grã-Bretanha e dos países escandinavos, nos quais há Igrejas do Estado

(Barbier, 2005). De maneira semelhante, no Brasil a constituição Imperial de 1824

já garantia o direito à liberdade religiosa a outras religiões além do catolicismo,

ainda que houvesse união entre Estado e Igreja Católica, sendo esta a religião

oficial do império, já existia neste período um determinado grau de liberdade

religiosa (Mariano, 2006). Pluralismo, tolerância, enfim, liberdade religiosa são a

consequência lógica da secularização e não da laicidade, visto que esta se refere

a um animus político-jurídico do Estado e/ou sociedade, enquanto aquela é um

fato ou processo havido em determinado agrupamento social. Laicidade e

secularização são termos que não se referem a idênticos processos históricos e

sociais. Em diversos países europeus há sociedades altamente secularizadas,

como, por exemplo, a Inglaterra e as monarquias escandinavas, onde as práticas

e os comportamentos religiosos declinam25, mas que, entretanto não são Estados

laicos.

Observa-se, pelo argumentado, que o caso brasileiro é distinto dos países

não laicos, mas secularizados, todavia semelhante ao ocorrido no na Europa

austral, no que tange às relações entre Estado e Igreja Católica (oa Estados são

laicos juridicamente, mas celebraram diversos tratados concordatários que

acabaram por privilegiar o grupo religioso majoritário), e, atualmente, grupos

evangélicos, configurando-se uma “quase laicidade” (Catroga, 2006), visto que no

decorrer da história brasileira, mesmo com a separação jurídica entre o poder

político e a organização religiosa majoritária, são palpáveis os “vínculos,

compromissos, contatos, cumplicidades entre autoridades e aparatos estatais e

representantes e instituições católicas” (Giumbelli, 2000, p.155).

25 Dados empíricos completos exarados em estudo requisitado pela Comissão Européia e

Diretoria Geral de Pesquisas da União Européia disponível em: http://ec.europa.eu/public_opinion/archives/ebs/ebs_225_report_en.pdf

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3608

Assim é quem o presente estudo justifica o Fracasso Laicista da Carta de

1988 – não seria um fracasso, mas um processo incompleto, pois não vinculou-se

a secularização, conditio sine qua non da efetivação das normas laicistas. O

perigo neste suposto fracasso, ou incompletude do processo constituinte, é que a

não efetivação da Laicidade põe em risco os próprios Direitos Fundamentais e o

Estado Democrático de Direito.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao tratarmos de temas como ‘democracia’, ‘religião’, ‘laicismo’, etc., haverá,

inexoravelmente, alguma lacuna entre o que emerge da empiria e os constructos

metafísico-lógicos de proveniência psíquico-reflexiva (Sartre, 2011, p.136). Assim,

as estruturas engendradas pela consciência transcendental, ao serem transpostas

para o mundo da experiência, não desaparecem, embora pareçam aprisionadas

às contingências mundanas, meramente se distanciam, em maior ou menos

medida, do que foi inicialmente elaborado pela mente humana (Sartre, 2011,

p.119). Outrossim, em temas como os presentemente tratados, a realidade

sensível ao ser cotejada às suas respectivas ideias primevas, depende em sua

própria consistência de um certo desconhecimento dos participantes/concernidos.

(Žižek, 1999, p.21). Prescinde, assim, a agenda Laicista brasileira de uma

congruente agenda secularizante implementada pelo direito em sua função de

promoção de valores morais (ou eticidade, em termos kantianos).

O expediente para implementação fática de uma norma Laicizadora através

de um ethos secularizador deve, aprioristicamente, ter a noção da lacuna

existente entre Ser e Dever ser. Assim, entende-se que Secularização jaz no

Ser, enquanto Laicização resta no Dever-ser. A tal lacuna entre os fenômenos,

grava-se sua determinante historicidade. Ficam claros os problemas do projeto de

Secularização e a ideia de Laicismo - são frutos de uma Modernidade ora débil,

tanto pela crise de seus referenciais quanto pela radicalização de suas

vicissitudes. O desencantamento das metanarrativas da ciência e Razão, faz urgir

a necessidade de algo que outorgue sentido a vida dos indivíduos. Tal fato, por si

só, já desautoriza o discurso secularista. Agrava o fato de que a religiosidade que

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3609

emerge dessa modernidade (ou hiper/pós-modernidade) compartilha com o

espírito atual – fragmentação social, desconfiança ante ao racional, intensidade

emocional, e, o mais grave, tudo em escala industrial. O tipo ideal de pensamento

religioso antes trabalhado quase não muda, mas é exacerbado

exponencialmente. Por todo exposto, importa trabalhar no presente estudo esta

hipótese de esgotamento da ideia de Secularização da Política, sendo necessária

a utilização do Direito como promotor do ideal Laicista por meio da secularização

das relações jurídicas, havendo, em grande medida, resgate de alguma crença

em meta-narrativas humanistas.

Conforme foi visto, são princípios constitucionais a Laicidade e a

Democracia. É possível, a partir destes dois ditames fundamentais da Carta

Magna, obstar qualquer atividade normativa com vistas religiosas. E isto deve ser

feito tendo em vista a consequência finalística da norma e sua observância às

normas superiores a ela das quais retira validade (Kelsen, 2003, pp.4-18).

A bilateralidade da relação entre direito objetivo/subjetivo e sujeito/objeto

de direito, é a nota distintiva fundamental entre a norma moral e a jurídica

(Kelsen, 2000, pp.107-119). Àquela dirigem-se quaisquer agrupamentos

envolvidos em determinados ethea, à esta dirige-se o Estado e a Sociedade nele

abarcada, a qual jaz ontologicamente sob algum sistema de Direito. Normas e os

atos normativos do Estado ao ferirem finalisticamente (por um facere ou um non

facere) as bases fundamentais da Constituição em detrimento de determinada

visão religiosa, colocam em risco todo o edifício normativo.

O respeito a cada norma, a legalidade, é o respeito ao Sistema que

sustenta o Estado de Direito. Da legalidade depreende-se a noção de sistema

Jurídico, conceito polissêmico e de noção fugidia. Tal sistema é conceituado, em

diversas noções, sob o signo de dois elementos, quais sejam, ordem e unidade

(Canaris, 2002, p.20). Da ordem depreende-se a ordenação a qual compreenderá

uma racionalidade apreensível de determinado estado de dadas coisas. Por outro

lado a unidade serve como impeditiva de dispersão. Ao se identificar a noção de

Sistema aos signos de ordem e unidade, depreende-se a própria ideia de Direito.

A ordem referenciada ao sistema consubstancia-se pelo escalonamento de

normas, o qual tem seu ápice empírico na Constituição cujas justificações

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3610

subjacentes jazem em seus princípios. Por conseguinte, o respeito aos princípios

Constitucionais a despeito de Weltanschauungen religiosas mira por fim a

manutenção do próprio Estado de Direito. Cada jurista, na defesa dos princípios

constitucionais, ao se por contra ditames religiosos é um Prometeu, um libertador

do gênero humano.

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PEC/99: DEVEM AS ASSOCIAÇÕES RELIGIOSAS PROPOR AÇÕES DE CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE NUM ESTADO LAICO DE POLÍTICA

JUDICIALIZADA?

Igor Suzano Machado

Ana Paula Costa

Bruno Monteiro Duarte

RESUMO: O presente artigo almeja analisar a pertinência da PEC 99/11, que garantiria às associações religiosas maior poder político num cenário de judicialização da política, ao permitir que essas associações proponham ações de controle de constitucionalidade. Diante de tal contexto, a presente pesquisa analisa a questão por quatro linhas de questionamento. 1. as justificativas teóricas do controle de constitucionalidade das leis admitiriam a presença da religião em seu fomento? 2. a ideia de laicidade no espaço público admitiria a presença da religião no controle de constitucionalidade das leis? 3. as diferentes concepções de justiça aceitam que se misture religião e direito? E 4. os argumentos e interesses religiosos têm se feito presentes no judiciário brasileiro, independentemente da institucionalização da PEC/99? O que se pode observar das investigações acima é que a teoria política se mostra potencialmente divergente a respeito do tema. Em termos fáticos, as demandas religiosas têm chegado ao STF, mas encontrado pouco sucesso nas decisões dos tribunais. Ou seja, aceitar a modificação proposta pela PEC/99 tem relação direta com a forma como se compreende a justiça e a democracia. Contudo, independentemente do texto constitucional, é importante como os próprios ministros compreendem a questão, o que tem consequência direta sobre o resultado de seus julgamentos. PALAVRAS-CHAVE: Controle de Constitucionalidade, Associações religiosas, PEC/99 1 INTRODUÇÃO

A problemática na qual se fundamenta esta pesquisa provém de um tema

clássico da filosofia política: a relação tendencialmente conflituosa entre a política

e a religião. Tal tema ganha relevância e novos contornos no Brasil

contemporâneo. Relevância devido a uma série de questões políticas importantes

que atualmente desafiam dogmas das religiões majoritárias do país, como o

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3615

reconhecimento de relações homoafetivas, avanços científicos que atuam

diretamente sobre a constituição humana e possibilidades de reconhecimento do

direito feminino ao aborto. E novos contornos devido ao atual contexto de

judicialização da política, em que tais questões políticas importantes são

decididas não apenas na arena legislativa, mas também na arena judiciária, em

que não impera, necessariamente, a lógica majoritária. Em meio a esse contexto,

emerge a PEC 99/11, que garantiria às associações religiosas maior poder

político nesse cenário judicializado, ao poderem propor ações de controle de

constitucionalidade. Essa conjuntura exige atenção das ciências sociais, que não

devem se furtar a examiná-la. Com isso, a presente pesquisa busca contribuir

nesse sentido, oferecendo àqueles envolvidos no debate um ponto de vista

diferenciado, que não se vincula diretamente às ordens religiosas ou partidárias

envolvidas no embate, mas pode auxiliá-las na organização de seus argumentos

e pautas de luta, assim como informar ao público em geral como tal embate pode

ser situado nos termos consolidados pela teoria política ao longo da história.

Atualmente, pode-se dizer que a política brasileira vivência um contexto de

judicialização, isto é, pode-se dizer que parte importante de seus embates e suas

decisões não se passa exclusivamente nos poderes Executivo e Legislativo, mas

também no poder Judiciário. Existe um debate teórico acerca do tema e, ainda

que alguns autores questionem esse enquadramento, é difícil negar o

protagonismo que o Poder Judiciário, em especial o Supremo Tribunal Federal

(STF), tem assumido em questões políticas controversas, com seus personagens

ocupando lugar de destaque na mídia e suas discussões, que antes eram restritas

ao âmbito jurídico, sendo tema do debate público mais amplo.

Diante desse cenário, o processo de produção legislativa típica não

necessariamente está confinado aos poderes Executivo e Legislativo, pois, após a

aprovação das leis em tais instâncias, existe a possibilidade de anulação da lei

pelo Judiciário que, assim, torna-se um importante ator de veto na efetivação da

vontade política. A presença na arena judiciária, desse modo, passa a ser

estrategicamente relevante para atores políticos que pretendem tornar efetivas

suas vontades, tendo em vista que tal efetividade não é mais garantida pela

simples vitória majoritária nas instâncias legislativas tradicionais.

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3616

Aliado a isto, temos a difícil delimitação de até onde a religião pode definir

os rumos da política, tema que faz parte da reflexão sobre a política, desde

autores clássicos da teoria política como Hobbes, tendo continuidade no embate

contemporâneo com autores liberais como Jonh Rawls e comunitaristas como

Michael Sandel. O encontro desses dois pontos, isto é, até onde a religião pode

definir os rumos da política judicializada, desemboca no objeto de estudos da

presente pesquisa, que tem como fato catalisador deste debate a emergência da

Proposta de Emenda Constitucional número 99 (PEC 99/2011), que visa

justamente inserir as associações religiosas no âmbito do controle de

constitucionalidade das leis. Proposta pelo deputado João Campos de Araújo

(PSDB-GO) a PEC 99/2011 tem como objetivo permitir que as associações

religiosas de âmbito nacional possam propor Ações Direta de

Inconstitucionalidade (ADIN) e Ações Declaratórias de Constitucionalidade

(ADECON) junto ao Supremo Tribunal Federal (STF). Esses mecanismos

permitiriam às entidades religiosas se manifestarem sobre a inconstitucionalidade

ou constitucionalidade de leis e atos do executivo perante o Judiciário.

A PEC 99/11 causou divergências, não só entre parlamentares, mas entre

a sociedade civil. Existe um abaixo-assinado virtual no endereço eletrônico do

Avaaz contra a PEC 99/11 que já conta com mais de 65 mil assinaturas. Há quem

veja a proposta como um atentado à laicidade do Estado e à própria democracia.

Alguns críticos desta PEC argumentam que as entidades religiosas usariam as

ADINs e ADECONs a favor da defesa de uma moral religiosa que poderia ser

prejudicial ao progresso igualitário e democrático. Segundo o argumento de

alguns críticos da proposta, a introdução de argumentos religiosos significaria um

retrocesso na política. Em março de 2013, a referida proposta de emenda foi

aprovada pela Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) do

Congresso e atualmente está aguardando a criação de uma comissão temporária

especial para votar sua aprovação. Caso seja aprovada pela comissão especial, a

proposta ainda terá que ser votada pelo plenário para poder entrar em vigor.

Tendo em vista a polêmica causada pela PEC 99/11, acreditamos ser

relevante nos debruçarmos sobre o debate teórico sobre a judicialização da

política e a presença da religião no espaço público, de forma a melhor situar o

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3617

surgimento da PEC no contexto brasileiro e as possíveis consequências de sua

aprovação. Como forma de abordar tal tema, iremos nos deter primeiramente no

debate sobre a judicialização da política pelo controle de constitucionalidade das

leis e suas possíveis justificativas (tópico 1), passando posteriormente ao debate

acerca do processo de secularização da sociedade moderna (tópico 2) e, por fim,

adentrando no embate entre liberais e comunitaristas no que tange ao lugar que

devem ocupar os argumentos religiosos no espaço público (tópico 3).

2 JUDICIALIZAÇÃO DA POLÍTICA E CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE DAS LEIS

Segundo Leonardo Avritzer (2013), os processos de judicialização têm

como origem comum a tradição do governo misto e o debate entre federalistas e

antifederalistas, tendo como componentes principais a expansão do poder dos

juízes e a expansão dos métodos jurídicos para além do Poder Judiciário. Para

Luiz Werneck Vianna (2013), “têm-se chamado de judicialização da política o

exercício por parte de tribunais ou de cortes de justiça, [...] do controle de

constitucionalidade das leis e dos atos do Poder Executivo” (VIANNA, 2013, p.

207).

Os mecanismos de judicialização têm origem nos Estados Unidos da

América com o judicial review em 1803, mas é a partir da segunda metade do

século XX que se intensifica e expande a judicialização. Hirschl (2004 apud

ARANTES, 2013) aponta seis grandes fases do processo de expansão da

judicialização por meio da constitucionalização. A primeira fase está ligada à onda

de reconstrução dos países derrotados da Segunda Guerra Mundial; a segunda

remete ao processo de descolonização e independência de países como Índia,

Ghana, Nigéria e Kenya; a terceira fase inicia-se nos anos 1970 e é conceituada

pelo autor como transição singular, remetendo à transição de países autoritários

ou quase democráticos para a democracia, como Portugal, Grécia, Espanha,

Colômbia, Bolívia e Brasil; a quarta fase refere-se à transição dos países pós-

comunistas como Polônia, Hungria e Russia; a quinta fase remete à incorporação

de padrões internacionais e transnacionais de direitos humanos; e, por último,

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3618

Hirschl aponta a existência de países que incorporaram elementos da

judicialização sem terem sofrido mudanças fundamentais em seus regimes

político ou econômico, tais como no México, Canadá, Nova Zelândia e Israel.

Segundo a análise exposta anteriormente, o Brasil faz parte da terceira

etapa da judicialização, a transição singular. A Constituição de 1988 foi elaborada

em um contexto de reabertura política, em que o Brasil saía de um regime

autoritário de duas décadas. A necessidade de firmar um Estado democrático

frente a um histórico de autoritarismos fez com que se ampliasse o poder do

Judiciário, dando-se maior importância ao mecanismo de controle de

constitucionalidade das leis ao aumentar o número de setores do governo e da

sociedade civil com acesso a estes recursos. O Brasil se enquadra, portanto, na

análise de Rogério Bastos Arantes (2013) de que países em estado de fragilidade

política adotam mecanismos de fortalecimento do Judiciário como defesa contra o

autoritarismo.

Na prática, entre 1988 e 2013 foram ajuizadas mais de quatro mil ADINs, o

que resulta em uma média de uma a cada dois dias (ARANTES, 2013). Segundo

Arantes, as ADINs são promovidas atendendo a interesses específicos e

particularismos. Os partidos políticos utilizam do mecanismo para embaraçar a

implementação de leis que não estão de acordo com seus interesses. A maioria

das ADINs são julgadas pelo STF como infundadas. No entanto, apesar disso,

elas tem efeito midiático de atraso e descrédito, servindo como estratégia política.

Em certos casos, discussões cotidianas e típicas do Congresso são levadas para

o âmbito do Poder Judiciário, caracterizando uma judicialização dos conflitos

políticos. Esse processo pode gerar um desequilíbrio entre os três poderes, que é

intensificado pelo descrédito do Poder Legislativo e do Poder Executivo,

constantemente acusados de corrupção e de não atenderem ao interesse geral.

Luiz Werneck Vianna (1999) pontua a existência de duas correntes

interpretativas do processo de judicialização da política: o que ele chama de eixo

analítico procedimentalista e o que ele chama de eixo analítico substancialista. No

eixo substancialista, estão incluídos autores como Cappelletti e Dworkin, sendo

este um de seus principais representantes. Para essa corrente, a judicialização é

um processo arriscado e aventureiro, mas que é favorável ao desenvolvimento da

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3619

igualdade. Para os procedimentalistas, eixo que tem como nomes de referência

Garapon, Habermas e John Hart Ely, a ampliação dos direitos e dos mecanismos

do Judiciário levaria a um desestímulo da face libertária e reivindicatória da

cidadania social, gerando uma cidadania passiva de “cidadãos clientes”. Para os

procedimentalistas, de forma geral, dever-se-ia privilegiar a formação de uma

cidadania ativa em oposição à privatização da cidadania e à estatização dos

movimentos sociais que ocorre com o processo de judicialização. Como forma de

melhor compreender as justificativas substancialistas e procedimentalista do

controle de constitucionalidade das leis, serão analisadas em maior detalhe as

perspectivas teóricas de Ronald Dworkin, do lado substancialista, e John Hart Ely,

do lado procedimentalista.

Ao analisar a Constituição dos Estados Unidos, Ronald Dworkin advoga

que o arcabouço jurídico de uma sociedade não é composto apenas por regras,

mas por princípios. Contrariamente ao positivismo jurídico, que explica o

fenômeno jurídico através de concepções de direito positivo, uma comunidade

política partiria de concepções morais para a formulação de regras que serão

legitimadas pela Constituição e estas gerarão direitos e deveres comuns aos

membros desta comunidade, fazendo com que moralidade e direito interajam de

uma forma que não permite que sejam compreendidos separadamente. Mesmo

assim, ele completa, existe uma distinção entre princípios e política, pois os

princípios correspondem à busca por direitos individuais e apresentam uma

dimensão de peso ou importância, enquanto a política corresponde a objetivos

coletivos e são pautados por um conjunto de regras. Nas palavras de DworkIn: Denomino ‘política’ aquele tipo de padrão que estabelece um objetivo a ser alcançado, em geral uma melhoria em algum aspecto econômico, político ou social da comunidade [...] Denomino ‘princípio’ um padrão que deve ser observado, não porque vá promover ou assegurar uma situação econômica, política ou social considerada desejável, mas porque é uma exigência de justiça ou equidade ou alguma outra dimensão da moralidade. (DWORKIN, 2002, p. 36).

É nesse cenário que surge a discussão acerca das formas de interpretação

utilizadas na revisão judicial. Ao considerar que a moralidade de uma comunidade

política é pautada por princípios que ela considera importantes e, ainda, que a

Constituição não é um modelo estático, de modo que estabelece valores que são

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3620

construídos e podem se alterar em decorrência da mudanças social e de época,

Dworkin advoga que estes princípios precisam ser interpretados. Diante deste

cenário, cabe a indagação acerca de a quem convém interpretar a Constituição.

De acordo com Dworkin, cabe ao Judiciário a decisão de declarar uma lei

inconstitucional ou não. Isso porque o papel do Poder Judiciário, na leitura de

Dworkin, é proteger a democracia e os direitos das pessoas, possibilitando meios

para seu funcionamento e impedindo que o Poder Legislativo anule direitos

individuais. A Corte Constitucional numa sociedade democrática representa um

fórum de proteção e desenvolvimento da democracia, uma vez que não deixa a

decisão acerca dos direitos sob a responsabilidade e arbítrio do legislador. Este

pode ser o principal fórum de deliberação acerca de políticas, mas não o principal

fórum de deliberação acerca de princípios.

Outro ponto importante acerca do papel do Judiciário estaria na proteção

das minorias: estas devem ter seus direitos defendidos contra o excesso de poder

da maioria. Considerando que as decisões políticas são norteadas pelos

interesses da maioria que compõe uma comunidade política democrática, de

modo que eles já são representados e protegidos pelos poderes Legislativo e

Executivo, as minorias precisam ter seus direitos protegidos. Desse modo, a

revisão judicial, segundo o pensamento de Dworkin, deve atentar para o processo

de decisões políticas substantivas, tornando mais equitativo o poder político

através de suas decisões. Cabe ao Judiciário aplicar o direito utilizando o princípio

adequado com a finalidade de uma decisão justa em sua substância.

Partindo para uma outra perspectiva teórica, John H. Ely, em sua obra

Democracia e Desconfiança, contrapõe-se à teoria substantivista de Dworkin,

baseada em valores substantivos, tais como igualdade e liberdade. Segundo seu

argumento, a Constituição Americana original tratava principalmente de questões

procedimentais e estruturais, e não de identificar e preservar os valores

substantivos específicos. A ideia de uma Declaração de Direitos só surgiu no final

da Convenção Constitucional, e foi então rejeitada. No mesmo sentido, tem-se

que, por um lado, a extensão do direito de voto a grupos anteriormente excluídos,

tem sido o tema dominante das emendas à Constituição norte-americana, e assim

se manifestam dois amplos temas constitucionais: a garantia de um processo

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3621

político aberto a todos e a consequente imposição aos representantes do dever

de dedicar tanto à maioria, quanto às minorias, a mesma consideração e respeito.

A título de exemplo, o autor utiliza a Décima Oitava Emenda, que defendia o valor

da abstinência de álcool, que foi revogada quatorze anos depois, exatamente

porque foi uma tentativa de fixar um valor substantivo, que não cabe à

Constituição. Segundo Ely: As outras disposições constitucionais que sacramentam valores tiveram história semelhante e igualmente instrutiva. Algumas sobreviveram, mas em geral porque são tão obscuras que nunca dão problema, ou porque estão a tal ponto entrelaçadas com questões procedimentais que parecem ser apropriadas à Constituição. As que mais se destacavam, ou que eram suficientemente minuciosas para serem contestáveis, não sobreviveram. (ELY, 2010, p.132)

Na democracia representativa, segundo o autor, as determinações de valor

devem ser feitas pelos representantes eleitos e, se a maioria realmente

desaprová-los, poderá destituí-los através do voto. Ely nos expõe que o mau

funcionamento ocorre quando o processo não merece nossa confiança, quando

os incluídos estão obstruindo os canais da mudança política para assegurar que

continuem sendo incluídos e os excluídos permaneçam onde estão, ou quando,

embora a ninguém se negue explicitamente a voz e o voto, os representantes

ligados à maioria efetiva põem em desvantagem alguma minoria, devido à recusa

preconceituosa em reconhecer uma comunhão de interesses. Portanto, negam às

minorias a proteção que o sistema representativo fornece a outros grupos. Logo,

enquanto um procedimentalista, Ely entende que incube ao Poder Judiciário

apenas a função de guardar o funcionamento do processo democrático e a

preocupação da sobreposição de interesses de grupos majoritários, em função

dos minoritários, defendendo uma abordagem do controle judicial de

constitucionalidade que seja orientada pela noção de participação e favoreça a

representatividade, mas sem interferir na decisão acerca de valores substantivos,

que deve ser reservar ao Poder Legislativo.

Voltando à PEC 99/11, temos que na exposição histórica apresentada em

sua justificativa encontra-se como argumento a superioridade da Constituição

brasileira como delimitadora dos poderes do Estado e o mérito dos Evangélicos

como coadjuvantes na consolidação de princípios presentes na Constituição e na

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3622

garantia de liberdade de culto e religião. O texto também aponta o caráter

diferenciado com que são tratadas as entidades religiosas, as quais, a partir da

Constituição de 1988, passaram a gozar de uma autonomia privada com

intervenção mínima do Poder Público, diferenciando as associações religiosas

das associações e organizações de classes e de fundações e associações sem

fins lucrativos. Segundo a justificativa, O movimento evangélico cresce no Brasil, portanto, associado ao sentimento de liberdade cívica que vem à luz com a República, onde a Constituição como norma fundamental assume grande significado político, tronando-se, sobretudo, instrumento de garantia individual e de limitação do poder do Estado, e como tal, passa a iluminar o sistema jurídico nacional. Neste contexto, não há como não se reconhecer o mérito dos Evangélicos brasileiros em coadjuvar na consolidação de princípios no cerne da Constituição (grifo nosso), como garantidores da liberdade de culto e de religião. [...] Com este paradigma, considerando que os agentes estatais no exercício de suas funções públicas, muitas vezes se arvoram em legislar ou expedir normas sobre assuntos que interferem direta ou indiretamente no sistema de liberdade religiosa ou de culto nucleado na Constituição, faz-se necessário garantir a todas as Associações Religiosas de caráter nacional o direito subjetivo de promoverem ações para o controle de constitucionalidade de leis ou atos normativos, na defesa racional e tolerante dos direitos primordiais conferidos a todos os cidadãos indistintamente e coletivamente aos membros de um determinado segmento religioso, observados o caráter nacional de sua estrutura. (PEC 99/2011 - Câmara dos Deputados)

Percebe-se nos trechos expostos da justificativa que os argumentos dos

proponentes da emenda se aproximam da visão de Dworkin acerca do direito e do

controle de constitucionalidade. Tanto no trecho citado, quanto para Dworkin, a

Constituição é norma fundamental, escritura base do Estado e que delimita seus

poderes. O texto do deputado João Campos também faz menção ao “mérito dos

Evangélicos brasileiros em coadjuvar na consolidação de princípios no cerne da

Constituição”. Para Dworkin, a Constituição é construída tendo como pano de

fundo princípios norteadores que devem ser a base do processo interpretativo da

revisão constitucional. Os princípios são de suma importância na interpretação e

percepção do que seria o justo e o injusto, o correto e o errado, nas decisões do

judiciário. As constituições brasileiras tiveram a constante presença de valores

religiosos, que foram pouco a pouco sendo abandonados através de um processo

de secularização do Estado. A introdução de agentes representantes dos valores

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3623

religiosos garantiria a defesa de princípios presentes na Constituição. Dessa

forma, pode-se dizer, até certo ponto, que a exposição teórica de Dworkin pode

servir de fundamento para a introdução da PEC.

Por outro lado, pode-se buscar um olhar mais realista, que procure

compreender os agentes envolvidos no processo vendo-os como grupos que

se articulam em busca de interesses específicos. O autor da PEC 99/11

(deputado João Campos) faz parte da Frente Parlamentar Evangélica do

Congresso Nacional, e foi também fundador de outros projetos que ficaram

conhecidos como a “cura gay” e a “PEC da impunidade”. A bancada evangélica

se consolidou como um grupo de grande força política, que por mais que não seja

maioria no Congresso, também não é minoria. Portanto, cabe compreender o que

a PEC 99/11 representa dentro da estratégia política desse grupo, como quais as

formas que as ADIN e ADECON seriam utilizadas. Nesse caso, se seguirmos os

ensinamentos de Ely, as únicas associações religiosas que poderiam se

beneficiar de um mecanismo de controle de constitucionalidade seriam aquelas

vinculadas a religiões minoritárias, excluídas do processo legislativo ordinário, o

que não seria o caso dos evangélicos que, de forma diametralmente oposta à

visão de Ely sobre o controle de constitucionalidade, utilizariam tal controle para a

defesa de valores susbstantivos.

Ou seja, para Dworkin, o controle de constitucionalidade é circunscrito

pelos princípios. Dessa forma, seria aceitável inserir as associações religiosas no

Art. 103 da Constituição Federal, possibilitando-as criticarem a constitucionalidade

de leis com base em princípios morais. No entanto, para John Hart Ely, os

mecanismos de controle de constitucionalidade devem ser utilizados em defesa

dos procedimentos de manifestação democrática da opinião, por exemplo,

protegendo minorias que não possuem representatividade política. Nesse caso,

não faria sentido aceitar que um mecanismo de controle de constitucionalidade se

tornasse instrumento de defesa de valores substantivos, caros a um grupo que

sequer encontra problemas em manifestar seus interesses na esfera legislativa

tradicional.

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3624

3 SECULARIZAÇÃO E LAICIDADE DO ESTADO

Em uma das obras mais densas da teoria política contemporânea sobre o

tema da secularização, Charles Taylor (2010) analisa a relação entre religião e

espaço público nos termos da perda da centralidade da religião na sociedade

moderna. A proposta do referido autor é, então, analisar o significado de viver

numa era secular, associando a temática da secularização a um espaço de

estudo delimitado: o ocidente, ou mais especificamente, o norte do ocidente – o

mundo do Atlântico Norte. Ao fazer um contraste de caráter político histórico,

Taylor nos convida a voltarmos o olhar para o passado e recuarmos alguns

séculos em nossa civilização fazendo uma análise das sociedades arcaicas, de

modo que constataremos que a religião estava presente em todos os espaços,

tantos os de âmbito privado quanto os referentes à vida pública, como a política e

a economia. Era impensável qualquer tipo de atividade pública sem a presença da

religião, ou, mais especificamente, sem se “encontrar com Deus” – o Deus cristão.

Desse modo, segundo o argumento de Charles Taylor, Se recuarmos alguns séculos em nossa civilização, veremos que Deus estava presente no sentido acima numa grande quantidade de práticas sociais – não apenas nas políticas – e em todos os níveis da sociedade. Por exemplo, quando o modo de funcionamento do governo local era a paróquia, e a paróquia era ainda essencialmente uma comunidade de oração; ou quando as associações mantinham uma vida de rituais que não era apenas pro forma; ou quando os únicos modos pelos quais as sociedades em todos os seus componentes podia mostrar-se para si mesma eram as festividades religiosas, como por exemplo, a procissão de Corpus Christi. Naquelas sociedades, as pessoas não podiam engajar-se em nenhum tipo de atividade pública sem “encontrar Deus” no sentido acima mencionado (TAYLOR, 2010, p. 14).

A configuração social das sociedades arcaicas era caracterizada por uma

lógica de vida pública condicionada à vida religiosa, de modo que grande parte

das práticas sociais, não só relacionadas à política, eram pautadas pela religião.

No entanto, este cenário se modifica ao longo do tempo. Os espaços públicos,

paulatinamente, foram esvaziados da presença de Deus – ou qualquer outro ser

sobrenatural – e de referências a crenças religiosas e as dimensões da vida social

foram se racionalizando cada vez mais, de modo que o Estado foi se tornando

desprendido de conexões dogmáticas. Passamos, então, de uma realidade

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3625

devota, de caráter cristã ou pagã, à uma realidade ocidental que valoriza

interpretações descrentes.

A narrativa proposta pelo autor constitui-se em pensar no que consiste a

secularização considerando três dimensões: secularização no sentido de

autonomia das instituições, prática comuns e Estado; Abandono das convicções e

práticas religiosas; e secularidade em termos de condições de fé. Em termos das

instituições, práticas comuns e o Estado, na atualidade as Igrejas encontram-se

separadas das estruturas políticas – com algumas exceções, como países

britânicos e escandinavos – e as pessoas podem atuar nas instituições sem se

deparar de modo forçoso com a religião. Portanto, na era secular, a religião tem

caráter privado e a sociedade política é vista como uma comunidade de crentes e

descrentes igualmente. Isto quer dizer que tanto o argumento de indivíduos que

adotaram uma fé quanto daqueles que não adotaram devem ser considerados no

Estado Moderno. O esvaziamento do espaço público também se dá em práticas

de rituais religiosos, os quais foram abandonados, como orações ou o uso de

símbolos religiosos.

Na segunda dimensão, o sentido da secularização se dá no abandono das

convicções e práticas religiosas, referindo-se ao afastamento das pessoas de

seus deuses, que não mais frequentam a Igreja - ou ambientes de culto religiosos

- ou participam de cerimônias religiosas. Os países da Europa, de acordo com

Taylor, são os que se tornaram majoritariamente seculares nesse sentido. O

termo secularização não se refere apenas ao fato de a política ter-se tornado

secular, ou a fato dos indivíduos não frequentarem Igrejas e se engajarem na

religião, mas refere-se também ao fato de que a crença no que é transcendente

ocorre agora em condições diferenciadas. Existe na modernidade uma pluralidade

de crenças e uma série de alternativas relacionadas à questão de fé.

As condições de fé dizem respeito à terceira dimensão descrita pelo autor,

que está vinculada ao primeiro e ao segundo sentidos. A fé cristã vigente não é

mais inquestionável e axiomática. Agora existem opções de questionamentos e

crenças que podem ser escolhidas pelos indivíduos de acordo com suas

concepções pessoais. A mudança de fé pode ser justificada pela dificuldade de se

conservar a própria fé ou apenas pela possibilidade de mudar diante da opção de

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3626

escolha. Esta abrangência permite que as pessoas vejam a fé como parte

intrínseca às suas vidas, encontrando sentido nela ou, ainda, permite que as

pessoas vejam a fé como uma probabilidade inaceitável. Portanto, o autor advoga

que, A secularidade nesse sentido é uma questão atinente a todo o contexto de compreensão no qual nossas experiências e nossas buscas morais, espirituais ou religiosas têm lugar. Por “contexto de compreensão” aqui me refiro não apenas a questões provavelmente formuladas de modo explícito por quase todo o mundo, como pluralidade de opções, mas também a outras que compõem o pano de fundo implícito e amplamente desfocado dessas experiências e buscas, a sua “pré-ontologia”, para usar um termo heideggeriano. Desse modo, uma era ou sociedade seria secular ou não em virtude das condições da experiência do espiritual e da sua busca. Evidentemente, sua posição nessa dimensão teria muito a ver com o quão secular ela era nesse segundo sentido, que desperta graus de fé e prática, mas não há uma correlação simples entre ambos, como sugere o caso dos EUA. Quanto ao primeiro sentido, que se refere ao espaço público, isso pode estar desconectado dos dois (como se pode argumentar para o caso da Índia). Mas sustentarei que, de fato, no caso Ocidental, a mudança para a secularidade pública contribuiu em parte para promover uma Era Secular em meu terceiro sentido. (TAYLOR, 2010, p. 16).

A chegada do humanismo na modernidade trouxe uma nova compreensão

a respeito do humano, cuja valorização, autonomização e florescimento dos

indivíduos é a questão principal. Esta teoria desencadeou numa série de

questionamentos acerca da posição da religião e de sua necessidade na vida dos

homens. Nesse sentido, entramos no debate da crença e da descrença, não

como teorias rivais, mas como formas diferentes que os indivíduos vivem. Na era

secular, crentes e descrentes ocupam o mesmo espaço e ambos buscam

encontrar a plenitude. No entanto, a via acionada para encontrá-la é diferente.

Geralmente, os crentes acionam ao transcendental e atribuem a plenitude à Deus,

como algo a ser recebido e isto infere num relacionamento pessoal com este ser,

marcado por uma vida de renúncia, amor, caridade e uma série de

comportamentos marcados por abnegação e altruísmo. Já a plenitude buscada

pelos descrentes nos centraliza como seres racionais e mobiliza concepção

kantiana de pessoa, a qual é dita em termos da realização moral, resultado do

esforço humano e considera as pessoas como “eus” livres e independentes

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3627

capazes de eleger os fins por si próprios. A vida é plenamente satisfatória para o

descrente que busca nela a sua plenitude, de forma concreta. Por conseguinte, a

análise da secularização feita por Charles Taylor conclui que, A partir dessa perspectiva, é possível oferecer essa descrição de uma linha da diferença entre tempos mais antigos e a Era Secular: uma Era Secular é aquela na qual o eclipse de todas as metas que vão além do florescimento humano se torna concebível, ou melhor, enquadra-se na variedade de uma vida imaginável para multidões de pessoas (TAYLOR, 2010, p. 34).

O autor italiano Paolo Prodi (2005) reconstrói a trajetória da secularização

do ocidente de forma diferente da feita por Taylor e mais diretamente relacionada

ao tema do direito. Para tanto, o autor faz um paralelo entre consciência e direito,

de modo que e o debate proposto se dá em termos de normas morais e normas

jurídicas, fazendo uma diferenciação entre a moral e o direito. A moral, destarte,

se difere do direito pois não tem caráter coercitivo, isto é, a moral rege o

comportamento dos indivíduos atuando em outra dimensão: a consciência, como

juízo. Qualquer comportamento que estiver em desacordo com a moral de uma

comunidade política é desaprovada por ela entre os seus membros, não

legalmente. Isso pode trazer consequências como o isolamento do indivíduo em

desacordo, a destituição de um papel social ou a deslegitimação deste perante o

restante do grupo. O direito, em contrapartida, é de caráter coercitivo e atua por

meio de sanções prescritas por ele. Assim, os indivíduos quando ferem uma lei

serão punidos pelas consequências previstas nela. Desse modo, Prodi alega que, mesmo a moral é um ordenamento normativo que prescreve sanções; com efeito, quando prescreve um certo comportamento, prescreve que se deve reagir de determinado modo ao comportamento oposto, contrário a moral. O comportamento contrário à moral deve ser desaprovado pelos membros de uma sociedade. A tal comportamento, esses membros devem reagir com atos de desaprovação, como a censura, as manifestações de desprezo e similares. A moral se diferencia do direito pelo fato de que a reação prescrita por ela, ou seja suas sanções, não tem o caráter de atos coercitivos como as sanções prescritas pelo direito. Em outras palavras, não podem ser aplicadas, como as sanções do direito, servindo-se de uma coerção física caso encontrem resistência (PRODI, 2005, p. 506).

Prodi faz uma interpretação do percurso histórico da cultura ocidental sobre

o ângulo do problema relacionado a questão da justiça, a qual pode ser percebida

como um conjunto de leis e regras positivas que pautam o convívio social e como

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3628

um ethos, ou seja, norma não escrita pautada por um princípio de moralidade que

atua na consciência dos indivíduos. A lógica da moralidade cristã se baseia,

então, no pecado como desobediência à lei moral, a qual atua no âmbito da

consciência do indivíduo, de modo que não possui voz coletiva, mas pode inferir

em consequências percebidas no coletivo, despertando uma culpa moral. Já o

nascimento do Estado de direito e do ideal liberal é pautado pelo conceito de

infração como desobediência a lei positiva que corresponde a um conjunto de

regras, cuja desobediência desperta uma culpa política.

Percebe-se, dessa forma, a existência de uma dialética entre direito

canônico de um lado, marcado pelas doutrinas da Igreja e direito secular do outro,

marcado pelo Estado, em concorrência para normatizar a vida dos indivíduos.

Desse modo, No plano dos ordenamentos, o ideal ocidental da justiça, que hoje está desaparecendo, foi o fruto de um percurso muito mais longo do que aquele realizado a partir do iluminismo e das codificações, e baseia-se na presença simultânea de um duplo plano de normas: o plano do direito positivo, da norma escrita e aquele das normas que dividiram e que regularam a vida cotidiana da nossa sociedade no seu respiro mais interno, éthos, mos, costume, ética, moral ou como se quiser chamá-los. A relação entre esse duplo plano de normas constitui o respiro - do interior da vida à objetivação necessária das instituições - de toda a civilização jurídica ocidental, respiro esse que falta quando a sociedade é reduzida a uma norma de dimensão única. (PRODI, 2005, p. 5).

Ainda que as análises feitas por Taylor (2010) e Prodi (2005) sejam

delimitadas geograficamente ao Norte do Ocidente, é possível pensarmos os

pontos destacados pelos autores fazendo um paralelo com o cenário brasileiro. O

Brasil que já foi um Estado confessionário, também influenciado pelo cristianismo

de matriz católica, aos poucos foi esvaziando o mundo público da influência da

religião e hoje passou a ser um Estado laico. No entanto, a forte influência da

religião deixou resquícios e, mesmo que indiretamente e não oficialmente, está

presente nos argumentos mobilizados na esfera pública.

Os valores religiosos marcaram as constituições brasileiras, mas, através

do processo de secularização do Estado, foram gradativamente abandonados. No

entanto, a PEC 99/11 faz ressurgir o debate acerca da participação da religião na

política, agora no contexto de um Estado Laico, o qual não é mais pautado por

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3629

argumentos dogmáticos e encontra-se desprendido de concepções religiosas

normativas. Considerando que na era secular, argumentos crentes e descrentes

ocupam igualmente o espaço público, até que ponto a aprovação da PEC 99/11

privilegiaria aqueles que possuem algum tipo de fé e desconsideraria os que não

adotaram a fé como uma opção, afetando a seu modo de vida? Por outro lado,

contudo, é também possível questionar: por que razão as identidades políticas

não devem exprimir as convicções morais e religiosas que são afirmadas na vida

privada?

A Igreja, que antes fora a guardiã da moral da sociedade não pode mais

sê-la. Isso porque o pluralismo e complexidade moderna nos obriga a assumir

outros compromissos, outros valores, outras moralidades e estes cada vez mais

diversos. Uma via alternativa é estabelecer diálogo entre instituições portadoras

de normas morais e instituições que garantem o direito como poder de coerção e

este diálogo pode ser estabelecido por meio das representações no governo

democrático. Hoje no Brasil existe no Congresso Nacional a Frente Parlamentar

Evangélica, que defende os interesses, valores e moral cristã protestante,

atuando como força política e se posicionando para a preservação de seus

princípios e representação de seus membros. A PEC 99/11, nesse sentido,

poderia ser uma estratégia dentro do jogo político para que este grupo

conseguisse barrar leis e atos do executivo e legislativo que não estivessem de

acordo com sua moral. Dessa forma, o direito poderia vir a ser entendido não

como uma forma de estabelecer justiça, mas de afirmar vitória sobre o outro. Mas

também poderia oferecer mecanismos para a defesa de valores presentes na

constituição - dos quais muitos são valores de origem cristã - que são

compartilhados pela comunidade política.

Contra a primeira opção, Paolo Prodi põe em destaque a necessidade de

mantermos separadas, de um lado, a normatividade religiosa e a noção de

pecado e, de outro, a normatividade jurídica e a noção de pena ou de ilícito. Para

este autor, inclusive, esta é uma característica chave da modernidade e permite

que não estejamos entregues a uma moralidade única, sujeitando a moral à

crítica pelo direito e a o direito à crítica pela moral. Contudo, a favor da segunda

opção, Charles Taylor nos lembra o quanto a Era Secular não é exatamente

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antirreligiosa, mas apenas aberta a formas de auto-realização de matriz não

transcendental, que convivem com outras formas de auto-realização ainda

fortemente baseadas em um “encontro com Deus”. Se ambas formas de auto-

realização são fontes de noções de justiça, ao acompanharmos a argumentação

de Taylor também podemos ter nas crenças religiosas fontes importantes de

moralidade pública e bases importantes para a formatação de normas jurídicas.

4 JUSTIÇA E ARGUMENTOS RELIGIOSOS NA ESFERA PÚBLICA

O debate entre comunitaristas e liberais é um confronto filosófico atual na

teoria política com implicações importantes acerca de como se pode pensar o

lugar das religiões nas comunidades políticas modernas. Enquanto o liberalismo

encontra fulcro na emergência do indivíduo enquanto cerne de qualquer

concepção de justiça que, assim deve defendê-lo da repressão que a coletividade

pode lhe impor, o comunitarismo pode ser compreendido como uma corrente de

pensamento que contesta a insuficiência da teoria liberal, em seus termos,

principalmente, relacionados à forma de entendimento do sujeito liberal, da

possibilidade e impossibilidade de se pensar a concepção de justiça, bem comum,

direitos sociais e a vida em comunidade. A oposição de ideias parece polarizar-

se, sobretudo, em torno dos termos “indivíduo e comunidade”, produzindo assim,

críticas por parte dos pensadores comunitaristas a respeito da supervalorização

do indivíduo em relação ao coletivo, encontrada nos autores liberais.

A concepção acerca da justiça liberal apresentada por John Rawls (2000)

desencadeou uma série de reações referentes à ideia de justiça defendida pelo

autor. Os princípios de justiça que o autor propõe para reger uma sociedade

liberal consideram os indivíduos como livres e iguais, e capazes de racionalmente

agir de maneira razoável, pautados por um princípio de tolerância. Isso permitiria

que, numa situação ideal em que fossem desconsideradas as filiações sociais dos

indivíduos, eles concordassem com alguns princípios de justiça que

estabeleceriam limites à busca de seus próprios interesses. Nos temos de Rawls,

esses princípios configurariam uma teoria política da justiça, que seria diferente

do que ele chama de doutrinas morais abrangentes. Uma teoria política da justiça

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3631

seria responsável por estipular padrões gerais aplicáveis à estrutura básica da

sociedade – seu governo, economia, etc. – enquanto que as doutrinas morais

abrangentes proporiam normas de conduta que atingiriam a totalidade da vida do

indivíduo, mas seriam aplicáveis apenas aos seguidores de tais doutrinas e dentro

dos limites dos princípios de justiça da estrutura básica.

Dentre as reações a respeito da concepção de justiça rawlsiana, aparece

em destaque a concepção de justiça defendida pelos comunitaristas, dentre os

quais tem desataque Michael Sandel (2012). O referido autor define a priori o

liberalismo que está criticando, advogando que este liberalismo deontológico, que

tem sua raiz no pensamento kantiano, é uma doutrina acerca da justiça e suas

implicações nos quadros morais e políticos. Segundo Sandel, a retomada do

liberalismo deontológico a Kant se dá através do argumento de que existe um

primado da justiça no sentido moral, isto é, a justiça tem fim em si mesma e, por

isto, precede o bem e estabelece seus limites. O fundamento da justiça está no

sujeito kantiano, ou seja, o sujeito portador de razão e que por isto é livre e

autônomo, de modo que suas ações não são definidas pela natureza,

possibilitando que o indivíduo seja capaz de construir leis morais antes das

determinações particulares. A ação, dessa forma, se dá por dever. Isto é, Na sua obra Uma Teoria da Justiça, Rawls liga a prioridade do justo a uma concepção voluntarista ou largamente kantiana de pessoa. De acordo com esta concepção, aquilo que nos define não é apenas a soma dos nossos desejos, como pressupõe o utilitarismo, nem tão-pouco sermos seres cuja perfeição reside na concretização de determinados propósitos ou fins que nos são fornecidos pela natureza, como defendeu Aristóteles. Em vez disso, nós somos eus livres e independentes, libertos de quaisquer laços morais anteriores, capazes de eleger os nossos fins por nós próprios. Essa concepção de pessoa se encontra no ideal do Estado enquanto quadro neutro. É precisamente porque somos eus livres e independentes, capazes de eleger os nossos próprios fins, que necessitamos de um quadro que seja neutral relativamente a esses mesmos fins. Basear os direitos numa qualquer concepção do bem equivaleria a impor a alguns os valores de outros, e deste modo, a não respeitar a capacidade de cada um para escolher seus próprios fins. (SANDEL, 2012, p. 246).

Em contraposição ao pensamento liberal, Sandel defende que a justiça

deve ser fundamentada sobre o conceito de vida boa. Ao contrário do liberalismo

rawlsiano, o autor concebe que a noção de justiça é indissociável da noção de

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3632

bem. Dessa forma, não é plausível pensar que os indivíduos são imparciais no

debate acerca do justo, assim como a justiça também não é neutra. Assim,

Sandel nos convida a refletir sobre uma comunidade que consegue pensar suas

regras de maneira comunitária fazendo enfrentamentos morais em relação a isto,

uma vez que a justiça é inseparável da noção de bem. Diante dessa conjuntura, o

argumento é de que só é possível construir uma comunidade justa se pensarmos

em uma noção comunitária de bem e isto envolve a noção de virtude política, isto

é, a capacidade dos indivíduos pensarem em comunidade e fazerem embates

éticos que respeitem a dimensão diversa e heterogênea da comunidade. Sendo

assim, Para alcançar uma sociedade justa, precisamos raciocinar juntos sobre o significado de vida boa e criar uma cultura pública que aceite as divergências que inevitavelmente ocorrerão. É tentador procurar um princípio ou procedimento capaz de justificar de uma vez por todas, qualquer distribuição de renda, poder ou oportunidade dele resultante. Tal princípio, se conseguíssemos encontrá-lo, permitiria que evitássemos os tumultos e as disputas que as discussões sobre a vida boa invariavelmente ocasionam. No entanto, é impossível evitar essas discussões. A justiça é invariavelmente crítica. Não importa se estamos discutindo bailouts ou Corações Púrpuras, barrigas de aluguel ou casamento entre pessoas do mesmo sexo, ação afirmativa ou serviço militar, os salários dos executivos ou o direito ao uso de um carrinho de golfe, questões de justiça são indissociáveis de concepções divergentes de honra e virtude, orgulho e reconhecimento. Justiça não é apenas a forma certa de distribuir as coisas. Ela também diz respeito à forma certa de avaliar as coisas. (SANDEL, 2012, p. 322) .

Portanto, segundo Sandel, dever-se-ia criar uma nova cultura pública que

aceitasse e respeitasse as diversidades sociais e que não tivesse o receio de

debater e ter uma postura partidária sobre os assuntos que surgem na vida

coletiva, diferenciando-se assim, de uma suposta postura de enfrentamento

neutro moral, pregado pelos liberais. Ademais, uma sociedade justa só será

constituída quando houver a construção de uma noção de bem comunitário

compartilhado, e isso, só será consolidado, através de um debate não neutro.

Sandel questiona, portanto, a separação entre identidade privada e

identidade pública e nos convida a pensar porque razão nossas identidades

políticas não deveriam exprimir as convicções morais, religiosas e comunais que

afirmamos na vida privada. Sendo assim, a vertente comunitarista não

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3633

desconsideraria, em princípio, a presença de argumentos morais na política. É o

contrário o que acontece na perspectiva liberal de Rawls. Ao diferenciar uma

teoria política da justiça aplicável à estrutura básica da sociedade e doutrinas

morais abrangentes aplicáveis apenas àqueles que praticam tal doutrina em sua

vida privada, o liberalismo de Rawls não daria espaço a argumentos estritamente

religiosos na esfera pública, especialmente no que tange às normas

constitucionais, responsáveis por dar o contorno jurídico das instituições que

compõem o que Rawls chama de estrutura básica da sociedade. A PEC 99/2011,

então, ao contrário do que aconteceria sob a égide do pensamento liberal de

Rawls, poderia ser legitimada pelos comunitaristas se as diferentes religiões, com

suas diferentes concepções cosmológicas se inserissem no debate acerca do

justo, de acordo com que cada grupo de fé considerasse uma vida boa.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Religião e Política no Brasil já tiveram relação estreita, e esta relação

deixou resquícios observados na atualidade. A PEC 99/11 faz ressurgir o debate

acerca da participação da religião na política, agora em um contexto e

configuração de Estado em que religião e política não caminham juntos no mundo

público, graças à emergência e consolidação da ideia de laicidade do Estado.

A laicidade e secularização vêm, recentemente, sofrendo um crescente

debate nas Ciências Sociais como apontam Christina Vital e Paulo Lopes: É crescente o debate em torno da laicidade no Estado brasileiro entre cientistas sociais, juristas, jornalistas e entre os próprios religiosos e ativistas. Dos anos 1990 até 2012 foram contabilizadas 96 publicações – entre artigos, teses, dissertações e livros – sobre o tema no Brasil. (VITAL; LOPES, 2013).

Dentre essas publicações, parte discute a “laicidade idealizada” inspirada

na tese de Max Weber sobre o processo de secularização na modernidade,

contrapondo-o com a laicidade exercida no Brasil. Os pesquisadores brasileiros,

influenciados pelos debates sobre laicidade dos norte-americanos, entendem a

separação da esfera pública e religiosa como algo fundamental para o pleno

exercício da democracia, garantindo o direito das minorias e o exercício da

cidadania. Ademais, atores religiosos também têm defendido a laicidade do

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3634

Estado, se colocando publicamente contra um “Estado religioso”. No entanto, eles

buscam uma presença com força e legitimidade semelhante a de outros atores e

grupos sociais. Esses religiosos, católicos e evangélicos, criticam algumas

abordagens sobre laicidade. Entre seus argumentos, encontra-se a disparidade

semântica entre os termos laicidade e laicismo, dentre os quais o primeiro se

refere à separação e independência do Estado e religião, e o segundo à negação

do religioso na esfera pública, sendo este último amplamente criticado por esses

grupos.

Com isso, surgem duas implicações interligadas. Primeiramente, a defesa

da “igualdade” de tratamento do Estado quanto às várias religiões, e a defesa das

congregações religiosas como mais um grupo de pressão político-social que tem

o “direito” de desfrutar do mesmo espaço que diversos grupos seculares. Logo, a

religião seria mais uma das correntes de pensamento a oferecer um discurso,

disputando com a Ciência uma visão da “verdade”. Esse cenário conturbado traz

um grande desafio político-filosófico para os críticos da religião, pois eles teriam

que defender um lugar hierárquico nos discursos sobre a verdade, colocando a

Ciência acima da Religião.

Outra implicação que vem ganhando espaço no debate é a relação entre

Religião e Estado. Diversas religiões vêm buscando reconhecimento e igualdade

de direitos de acesso aos bens políticos. Com a revelação do “segredo público”,

outras religiões buscariam estreitar e legitimar suas relações com o Estado

brasileiro. Esse “segredo público” seria uma relação histórica mantida entre Igreja

Católica e o Estado brasileiro, amplamente conhecido, mas que não é explicitado.

Na história do Brasil sempre se viu uma relação próxima do Estado e da

igreja Católica. Isso é verificado desde a colonização, com as missões de padres

que detinham uma parceria com o Estado, e até ações e medidas que cabiam ao

Estado brasileiro, como a concessão de licença para construir igrejas. No Império,

a religião católica ainda era a oficial, e somente na República, em 1989, surgem

traços de laicidade, uma separação do poder político e as instituições religiosas.

Durante toda a história, o modelo Católico serviu de parâmetro para dizer o que

era ou não religioso. Ao longo da primeira metade do século XX, observa-se uma

grande repressão e adoção de mecanismos legais de combate aos “feiticeiros” de

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3635

religiões de matrizes afro-brasileiras, acarretando a marginalização de suas

liturgias, a realização de suas cerimônias de forma sigilosa e restritas ao âmbito

privado.

Na segunda metade do século XX, contudo, há um surgimento e

crescimento dos evangélicos no Brasil, iniciando uma ameaça ao sistema

Católico. O questionamento do status quo operado pelo crescimento desses

atores no cenário político, social, econômico e cultural teria sido fundamental para

consolidar o pluralismo religioso, assim como para questionar as intensas

relações entre o catolicismo e Estado brasileiro. (VITAL; LOPES, 2013).

Partindo do pressuposto que o Estado Laico é aquele que não afirma, nem

nega a existência de Deus, ele não deve perseguir religiões, tampouco promover

a religiosidade. Neste contexto, surge um novo questionamento: como o juiz,

atualmente, se posiciona em frente a temas sobre a laicidade?

Ao magistrado, enquanto cidadão, devem ser asseguradas as mesmas

garantias que aos demais indivíduos, podendo o mesmo professar qualquer credo

religioso ou, igualmente, não se filiar a nenhuma crença. Por outro lado, enquanto

Estado-juiz, isto é, quando no exercício da atividade jurisdicional, é vedado ao

magistrado atuar baseando-se nas suas convicções religiosas (LOREA, 2013, p.

219).

A relação dos juízes com a laicidade é de suma importância para a

pesquisa. Afinal, complementa a discussão acerca das justificativas filosóficas

sobre a presença de argumentos religiosos no mundo do direito, a discussão

acerca de como, na prática, os juízes trazem, ou não, tais argumentos para suas

decisões. Tal ponto, contudo, exige uma incursão empírica que ainda não foi

possível realizar, dentro deste primeiro ano de pesquisa. Uma segunda etapa da

pesquisa, abrangendo tal ponto, será realizada ao longo de 2015. Será o

momento de análise de decisões judiciais do STF que confrontam questões

morais complexas e que desafiam dogmas das religiões majoritárias no Brasil.

Escolhemos assim, analisar decisões referentes ao uso de células-tronco

embrionárias, uniões homoafetivas e aborto de fetos anencéfalos. Tais estudos

complementariam o quadro teórico já traçado até aqui com referências factuais,

que permitiriam a discussão do tema da pesquisa sob uma perspectiva mais

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3636

ampla, abrangendo o que a filosofia política discute em termos normativos e o que

o STF tem realizado sob os imperativos da realidade.

REFERÊNCIAS

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3637

de Janeiro: Fundação Heinrich Boll & Instituto de estudos da religião (ISER), 2003.

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3638

DIREITOS EM ROTA DE COLISÃO: A INTOLERÂNCIA CONTRA AS RELIGIÕES DE MATRIZ AFRICANA

Kellen Josephine Muniz de Lima,

Ilzver de Matos Oliveira,

RESUMO: O projeto de exclusão da religião da esfera pública, como resultado direto do progresso e do desejo de autonomia trazido pela modernidade secularizada, parece não ter se concretizado. Ao contrário, o que se vê hoje é um forte retorno da religião ao espaço público, muitas vezes através de formas radicais de reivindicação da submissão da ordem pública a uma ordem religiosa. No Brasil, desponta o fenômeno de expansão dos segmentos religiosos fundamentalistas, que vêm conquistando um crescente protagonismo na esfera política, principalmente pelo que se passou a denominar como “bancada evangélica”. Associado a essa retomada do protagonismo na esfera pública, nota-se também o fortalecimento de uma cultura de intolerância religiosa que elegeu como seu alvo principal as religiões de matriz africana. Assim, o presente artigo pretende analisar o fenômeno social da intolerância religiosa contra as religiões afro-brasileiras por um viés teórico-filosófico, bem como a repercussão deste fenômeno no judiciário, o que será feito pela apresentação de alguns casos emblemáticos que propiciarão a análise de alguns direitos envolvidos no universo deste fenômeno social, e que, eventualmente se colidem. PALAVRAS-CHAVE: pós-secularismo; intolerância religiosa; sonho da pureza; religiões afro-brasileiras; judicialização.

1 INTRODUÇÃO

É no projeto de modernidade que se situa a separação entre Estado e

Igreja, e neste projetoa religião tem seu espaço cada vez mais subtraído da

esfera pública social,ficando significativamente mais restrita ao espaço privado. A

convicção de muitos era de que a importância da religião, portanto, se

desvaneceria, como resultado direto do progresso e do desejo de autonomia

trazido pela modernidade secularizada. Contudo, isso não aconteceu, pois o que

se vê hoje, nas sociedades ditas pós-seculares, é um forte retorno da religião ao

espaço público.

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3639

O uso da terminologia “pós-secular” tornou-se comum a partir de sua

construção por Jürgen Habermas, ao designar as sociedades modernas como

sociedades pós-seculares,em que se “postula a persistência das comunidades

religiosas num ambiente que continua a se secularizar” (HABERMAS, 2010, p.

139).

No Brasil, desponta o fenômeno de expansão de segmentos religiosos

fundamentalistas, em especial das igrejas evangélicas neopentecostais, que vêm

conquistando um crescente protagonismo na esfera política, principalmente pelo

que se passou a denominar como “bancada evangélica”. Trata-se, portanto, de

um fenômeno inserido no universo de pós-secularidade, que carrega como signo

a ânsia pela desprivatização da religião. Associado a essa retomada do

protagonismo na esfera pública, nota-se também a cultura de um pensamento

intolerante e único. A intolerância religiosa, portanto, é alimentada e se fortalece

neste projeto de dominação fundamentalista.

Neste panorama, os adeptos das religiões de matriz africana, erigidos à

categoria de“estranhos” – aqueles que estão fora do seu devido lugar e que “não

se encaixam no mapa cognitivo, moral ou estético do mundo” (BAUMAN, 1998, p.

27),se tornaram a sujeira que precisa ser eliminada da sociedade em nome do

ideal de pureza e da manutenção da ordem hegemônica. São, assim, alvo

constante da intolerância religiosa perpetrada pelas igrejas neopentecostais, que

promovem uma sistemática estigmatizaçãode suas crenças.

Essa perseguiçãocontra as religiões de matriz africana, que tem caráter

histórico e está intrinsicamente relacionada com o racismo enraizado na

sociedade brasileira, sofreu um severo endurecimento nos últimos 30 anos com o

surgimento da Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), e com o consequente

fenômeno de expansão das chamadas igrejas neopentecostais, alicerçadas na

demonização das religiões de matriz africana. As recorrentes violações dos

direitos fundamentais dos afrorreligiososcolocam em pauta a existência de

questões ainda não resolvidas pelo Estado Democrático de Direito, relativas ao

exercício pleno das garantias constitucionais, principalmente no que toca à

liberdade religiosa destes grupos tidos como minoritários.

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3640

Neste sentido, o presente trabalho se filia ao estudo da intolerância

religiosa enquanto fenômeno sociale da liberdade religiosa como um direito

humano fundamental, com recorte no universo das religiões afro-

brasileiras.Também serão apresentados alguns casos judiciais emblemáticos de

intolerância religiosa, que nos permitirá analisar os conflitos existentes entre

algumas categorias de direitos envolvidas neste fenômeno, tais como o direito à

liberdade de expressão e ao sossego (direito de vizinhança). Pretende-se, com

isso, identificar quais os posicionamentos que o judiciário vem adotando quando

instado a enfrentar casos envolvendo a colisão de direitos inseridos no universo

religioso afro-brasileiro.

Para tanto, foi adotado basicamente o método dedutivo, partindo da análise

das teorias de Habermas, sobre pós-secularismo, e de Bauman, acerca da

criação e anulação dos estranhos, a fim de concatenar essas teorias com

abordagens sobre o fundamentalismo, diálogo inter-religioso, e judicialização de

conflitos. A técnica de pesquisa empregada foi basicamente a de revisão

bibliográfica, por meio da consulta à literatura especializada, legislação e

jurisprudência sobre o tema tratado.

2 PÓS-SECULARISMO, DIÁLOGO INTER-RELIGIOSO E INTOLERÂNCIA

RELIGIOSA

Ao discorrer sobre “secularização”,Jürgen Habermas (2010) salienta que

inicialmente este termo “tinha o sentido jurídico de transmissão forçada dos bens

da Igreja à autoridade do Estado secular” (HABERMAS, 2010, p. 138).

Posteriormente, passou a designar um conjunto de fenômenos que representou o

surgimento da modernidade cultural e social, tendo a emancipação da esfera

mundana em relação ao domínio religioso como elemento central. Neste contexto,

na sociedade moderna a religião é cada vez mais empurrada para fora da esfera

pública social,ficando cada vez mais restrita ao espaço privado. A separação

entre Estado e Igreja traz como consequência a desvinculação da política,

economia, direito, ciência, educação, arte, etc. dos impedimentos e do controle da

religião. Como resultado, ocorre o declínio da influência da Igreja na sociedade e,

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3641

também, na conduta direta dos indivíduos, aumentando significativamente o

espaço de liberdade destes indivíduos (HABERMAS, 2010).

A convicção de muitos era de que a importância da religião (na esfera

pública e privada) se desvaneceria, como resultado direto do progresso e do

desejo de autonomia trazido pela modernidade secularizada. Contudo essa

convicção, no entender de Toldy (2009), parece ter sido abalada, pois o que se vê

hoje é um forte retorno da religião ao espaço público.

A partir da constatação de que a relação da sociedade secularizada com a

religião mudou, e que emerge uma forma nova e modificada de tensão entre

ambas, Habermas (2010)constrói a ideia de sociedade pós-secular, “que postula

a persistência das comunidades religiosas num ambiente que continua a se

secularizar” (HABERMAS, 2010, p. 139).

Vivemos, atualmente,um momento de nova atenção voltada para a religião,

que busca retomar seu espaço na esfera pública social, muitas vezes através de

formas radicais de reivindicação da submissão da ordem pública a uma ordem

religiosa. É esse debate que se segue após o conceito de Habermas. Como

pontua Teresa Toldy, “pense-se em todas as formas de fundamentalismo, desde

o islâmico, ao evangélico, passando pelo hinduísmo político” (TOLDY, 2009, n.p.).

A proposta de Habermas para essa sociedade pós-secular fundamenta-se

na possibilidade de construção de uma sociedade mundial multicultural, que

busque chegar a um acordo a fim de concretizar uma espécie de justiça entre as

nações. Para isso, a razão laica teria que se dispor a rever a sua visão da religião

enquanto algo em vias de extinção, enquanto a comunidade religiosa, de maneira

global, teria que se disponibilizar a absorver os fundamentos da modernidade

(HABERMAS, 2010).

Essa solução pautada na construção de uma sociedade mundial

multicultural, portanto, passaria pela necessidade de construção de um diálogo

inter-religioso. Contudo, como bem questiona Toldy (2009), estariam as tradições

religiosas (especialmente as fundamentalistas) preparadas para dialogar umas

com as outras, “sem que esse diálogo sofra a tentação de reproduzir formas de

colonialismo cultural? Será possível pensar numa espécie de ecologia das

tradições religiosas?” (TOLDY, 2009, n.p.).Ao tratar sobre a questão do diálogo

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3642

inter-religioso, Anselmo Borges (2009) menciona alguns pontos que considera

como condições de possibilidade para esse diálogo, dos quais os seguintes

guardam relevância com a temática do presente artigo: religião e violência e a

questão do fundamentalismo.

Segundo Borges (2009), a violência associada à religião decorre do medo

humano da morte, que leva à procura de acumulação de todas as formas de

poder. Neste sentido, observa-se uma luta permanente das religiões por saber

qual delas temo Deus mais poderoso, e a existência de diversas religiões gera a

angústia relacionada com a incerteza de se ser o “possuidor” da Verdade. É

intolerável, pois, que Deus se revele de muitos modos, quando cada um o

considera propriedade exclusiva. “Neste domínio, a dúvida é devoradora: o

confronto com a alteridade religiosa repõe o medo e a desorientação. A guerra

religiosa tem aqui a sua base” (BORGES, 2009, p. 28).

É aqui que se insere também a questão do fundamentalismo, que cultiva o

pensamento único e a intolerância. Quando não se suporta viver na perplexidade

e na interrogação, surge a tentação de tornas absolutas as próprias crenças,

excluindo e perseguindo quem delas não partilha.A intolerância religiosa, neste

contexto, justifica-se pela defesa da verdade única, o que inclui interesses outros

como a busca pelo poder, servir aos próprios interesses econômicos, políticos,

culturais, impor hegemonicamente o próprio domínio(BORGES, 2009).

Essa construção teórica serve para uma melhor compreensão do

fenômeno de expansão de segmentos religiosos fundamentalistas no Brasil, em

especial das igrejas evangélicas neopentecostais, que vêm conquistando um

crescente protagonismo na esfera política, principalmente pelo que se passou a

denominar como “bancada evangélica”. Trata-se, portanto, de um fenômeno

inserido no universo de pós-secularidade, que carrega como signo a ânsia pela

desprivatização da religião, a recuperação do papel político e da vontade de

influenciar a vida social e pública (TOLDY, 2009).

Junto com essa retomada do protagonismo na esfera pública, que se opera

especialmente por segmentos evangélicos fundamentalistas, nota-se também a

cultura de um pensamento intolerante e único. A intolerância religiosa, portanto, é

alimentada e se fortalece neste projeto que busca impor hegemonicamente o

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3643

próprio domínio. Resta saber quais serão os destinatários, os alvos escolhidos por

essa intolerância religiosa que se coloca à disposição de um projeto hegemônico

de poder. É o que veremos a seguir.

3 A CRIAÇÃO E ANULAÇÃO DOS ESTRANHOS: UMA ANÁLISE SOBRE A

INTOLERÂNCIA RELIGIOSA PELO OLHAR DE BAUMAN

Ao discorrer sobre o projeto da modernidade, Bauman (1998) salienta que

o advento da era moderna coincidiu com a exaltação da ordem como uma

desejável realização capaz de construir um mundo estável, seguro, coerente,

limpo, sólido e puro. Neste sentido, os três alicerces que deram sustentáculo para

este projeto foram: o ideal de pureza, beleza e ordem.

A pureza é uma visão da ordem, isto é, de uma situação em que cada

coisa se acha em seu devido lugar, sendo impossível pensar em pureza sem

correlaciona-la com uma imagem de “ordem”, sem determinar lugares adequados

e convenientes para as coisas. A sujeira, por sua vez, oposto da pureza, consiste

em coisas que estão fora dos seus “devidos” lugares. Existem coisas, entretanto,

para as quais não foram reservados um “lugar adequado/certo”, sendo assim,

elas ficam “fora do lugar” em toda a parte. Portanto, é preciso eliminá-las, livrar-se

delas de modo definitivo (BAUMAN, 1998).

Cada época e cada cultura tem um determinado modelo de pureza e certo

padrão ideal a ser mantido intacto. Partindo desta análise, Bauman salienta que

várias são as formas da busca de pureza do ponto de vista de sua significação

política e social, e essas diversas formas carregam consigo consequências

graves para o convívio humano.O autor analisa que, do ponto de vista de sua

significação social, um caso entre as numerosas corporificações da “sujeira” é de

importância única: é aquele em que outros seres humanos são tidos como um

obstáculo para a “organização do ambiente”, ou seja, “é uma outra pessoa ou,

mais especificamente, uma certa categoria de outra pessoa, que se torna ‘sujeira’

e é tratada como tal” (BAUMAN, 1998, p.17).

Essa busca pelo modelo de pureza em cada época e cada cultura, em

nome da manutenção da ordem, fez surgir na modernidade a figura do “estranho”

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como sendo aquele que que não partilha das suposições locais, ele é uma pessoa

fora do seu devido lugar e, por isso mesmo, não goza de status dentro do grupo.

Os estranhos não “se encaixam no mapa cognitivo, moral ou estético do mundo

[...], por sua simples presença deixam turvo o que deve ser transparente”

(BAUMAN, 1998, p. 27), confuso o que deve ser coerente, obscurecem as linhas

de fronteiras que precisam ser claras, geram a incerteza que dá origem ao mal-

estar de se sentir perdido. Portanto, neste sentido, cada espécie de sociedade

produz uma específica espécie de “estranhos”, de modo que todas as sociedades

produzem seus estranhos.

Neste ponto, podemos abrir um parênteses para a construção de uma

analogia.Os estranhos, descritos por Bauman com exemplar propriedade, podem

ser entendidos, assim, como aqueles que não comungam de projetos

hegemônicos, e que por isso constroem opções, alternativas que não se

encaixam no modelos de pureza dominante, acreditando na construção de uma

sociedade não-hegemônica. Por isso, tudo o que se apresenta como não-

hegemônico de imediato se transmuda em uma ameaça, e, por isso, se converte

em um estranho, na sujeira que precisa ser eliminada em nome da manutenção

da ordem. Neste sentido, portanto, cada sociedade produz uma específica

espécie de estranhos que não comungam de seu projeto: tudo que é não-

hegemônico está sob a ameaça de ser transformado em sujeira a ser eliminada.

As pessoas que transgridem os limites impostos pelo modelo preponderante se

convertem em estranhos e estão sujeitas a serem culpadas pelo crime de violar

ou transgredir.

Foi desta forma, por exemplo, que ateus, bruxas, hereges em geral, não

adeptos da religião católica (hegemônica em determinada época) foram

transformados em estranhos, alvos de perseguições através de projetos que

buscavam a pureza, e a consequente eliminação da sujeira. É com base neste

pensamento, e sob este pano de fundo, que foram (e ainda são) forjados

discursos e políticas discriminatórias, e intolerantes. Vemos atualmente no Brasil

uma apropriação deste sonho de pureza moderno, deste projeto de manutenção

da ordem através da criação e eliminação de estranhos, muito forte e muito

presente na ideologia das igrejas neopentecostais, que levanta bandeiras contra a

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3645

conquista de direitos civis pelos homossexuais, em defesa da moral e do modelo

de família tradicional (ou supostamente hegemônica), e propaga discursos de

ódio contra as religiões de matriz africana, elegendo estes grupos (também

suspostamente não-hegemônicos) como os estranhos, a sujeira que precisa ser

eliminada da sociedade, em nome da manutenção da ordem.

Citando a imagem de George Orwell da bota de cano alto pisando uma

face humana, Bauman assinala que botas de cano alto fazem parte de uniformes,

e os uniformes eram o símbolo de temor, símbolo do poder do estado moderno,

do poder coercitivo. Ao ostentar um uniforme, os homens se tornam esse próprio

poder em ação; ao usar uma bota de cano alto, os homens pisam, “e pisam em

ordem, em nome do estado” (BAUMAN, 1998, p. 28). Portanto, nenhuma face

estava segura e cada um teve motivos para temer a bota de cano alto feita para

“espremer o estranho do humano e manter aqueles ainda não pisados, mas

prestes a vir a sê-lo, longe do dano ilegal de cruzar fronteiras” (BAUMAN, 1998, p.

28). O estado moderno se encarou como a fonte, o defensor e o único garantidor

da vida ordeira, e por isso vestiu homens de uniforme a fim de que pudessem ser

reconhecidos e instruídos para pisar, já estando antecipadamente absolvidos da

culpa de pisar.

Recentemente um projeto religioso voltado para recrutamento de jovens do

sexo masculino, com clara inspiração militar, ganhou destaque na mídia e nas

redes sociais; trata-se da organização denominada “gladiadores do altar”. O

projeto engendrado pela Igreja Universal do Reino de Deus apela para a

simbologia militar a fim de projetar uma nova geração de pastores e

evangelizadores. Cerca de 4,3 mil homens de até 26 anos integram o polêmico

projeto que mistura disciplina bélica com pregação religiosa e ostenta uniformes

com inspiração militar. Em matéria intitulada “O evangelho segundo Capitão

Nascimento”, o jornalista Miguel Martins (2015) relata que um vídeo divulgado na

internet mostra o bispo Edson Costa na primeira recepção ao grupo no templo em

Fortaleza, oportunidade em que a “tropa” brada “Graças ao Senhor, hoje estamos

aqui prontos para a batalha”. Em seguida, o bispo destaca: “Esses gladiadores

vão nos ajudar a entrar no inferno e ganhar almas. O altar não é para criança,

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3646

menino ou para quem quer brincadeira. É para quem quer lutar pelo povo, e se

preciso dar a vida por ele” (MARTINS, 2015, n.p.).

A remissão que Bauman faz à imagem da bota de cano alto pisando uma

face humana, e à ideia de uniformes como símbolo de temor, de poder que

autoriza o “pisar em nome da ordem”, parece conseguir explicar com propriedade

o porquê do uso de uniformes e da intencional inspiração militar na apropriação

simbólica feita pelo grupo gladiadores do altar. Trata-se de um projeto que recorre

à imagem do terror e da coerção, do poder soberano que o estado moderno fez

impregnar em seus uniformes, para dela se apropriar a fim de ser temida, a fim de

sinalizar que se deve voltar a temer a bota de cano alto que pisa em nome da

ordem. Entretanto, não se trata agora de resgatar o mesmo projeto do estado

moderno, mas de um novo sonho e ideal de pureza, da busca de um modelo de

pureza e de ordem ditado ideologicamente por um segmento religioso que se

fortalece cada dia mais, que há muito expande seu poder para além do espaço

privado e que vem ganhando, de maneira crescente, o espaço público através de

forte estratégia de inserção e articulação política. Trata-se, portanto, do projeto de

pureza de um segmento que elegeu como “estranhos”, como sujeira a ser

eliminada, os grupos minoritários e não-hegemônicos, em especial as religiões de

matriz africana e os homossexuais.

Na guerra travada pelo estado moderno contra os estranhos de seu tempo,

Bauman salienta que duas estratégias foram desenvolvidas. A primeira, de

caráter antropofágico, tinha por fim “aniquilar os estranhos devorando-os e

depois, metabolicamente, transformando-os num tecido indistinguível do que já

havia. Era a estratégia da assimilação: tornar a diferença semelhante” (BAUMAN,

1998, p. 29). A segunda estratégia era antropoêmica, consistia em “vomitar os

estranhos, bani-los dos limites do mundo ordeiro” (BAUMAN, 1998, p. 29),

confina-los dentro dos guetos; era a estratégia da exclusão. Quando nenhuma

das duas estratégias fosse possível, restava destruir fisicamente os estranhos.

Como exemplo de cada uma dessas estratégias, Bauman cita o

entrechoque entre as versões liberal e racista-nacionalista do projeto moderno.

De um lado, o projeto liberal sustenta que as pessoas são diferentes em razão da

diversidade das tradições locais e das particularidades dos ambientes em que

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3647

elas crescem e amadurecem, portanto, essas diferenças são produtos da

educação, da cultura, e por isso flexíveis e passíveis de reforma, e que esta

reforma seria um resultado natural da universalização progressiva da condição

humana, que enfraqueceria diversidades predeterminadas em detrimento da

escolha humana. Do outro lado, o projeto racista-nacionalista sustenta que “a

reconstrução cultural tem limites que nenhum esforço poderia transcender”

(BAUMAN, 1998, p. 29), o que significa dizer que determinadas pessoas não são

passíveis de conversão em algo além do que são, estando fora do alcance de

qualquer tipo de reparo. “Não se pode livrá-las de seus defeitos: só se pode

deixá-las livres delas próprias, acabadas, com suas inatas e eternas esquisitices e

seus males” (BAUMAN, 1998, p. 29).

Neste aspecto, tanto a estratégia antropofágica, exemplificada pelo projeto

liberal, quanto a antropoêmica, consubstanciada pela versão racista-nacionalista,

podem ser perfeitamente identificadas nas estratégias fundamentalistas das

igrejas evangélicas neopentecostais, especialmente da Igreja Universal do Reino

de Deus, que recorrem à perseguição, estigmatização e demonização das

religiões de matriz africana como forma de dominação.

Ari Pedro Oro (2006) destaca que uma importante característica dessa

igreja consiste na construção do seu sistema ritualístico mediante a apropriação e

reelaboração de elementos simbólicos tomados de outras igrejas e religiões, o

que ele chama de “igreja religiofágica: literalmente, ‘comedora de religião’” (ORO,

2006, p. 321), o que significa dizer que se trata de uma igreja que construiu seu

repertório simbólico, suas crenças e ritualística, incorporando e ressignificando

pedaços de crenças de outras religiões, mesmo de seus adversários. Segundo

Almeida (2003, p. 341 apud ORO, 2006, p. 321), a Igreja Universal teriaelaborado,

no seu processo de constituição, através da guerra, uma antropofagia da fé

inimiga. Seria a estratégia antropofágica encontrada no projeto liberal

exemplificado por Bauman.

Por outro lado, também está presente no discurso das igrejas

neopentecostais a demonização das religiões de matriz africana, a

impossibilidade de salvação e de conversão em algo além do que são, sendo

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3648

preciso, então, “deixá-las livres delas próprias, acabadas”(BAUMAN, 1998, p.29).

Seria o viés antropoêmico exemplificado pela versão racista-nacionalista.

É evidente que a perseguição contra as religiões de matriz africana tem

caráter histórico, está intrinsicamente relacionada com o racismo enraizado na

sociedade brasileira, e não nasceu com o neopentecostalismo. Mas é fato que

essa perseguição, agora denominada de “intolerância religiosa”, sofreu um

endurecimento nos últimos 30 anos com o surgimento da Igreja Universal do

Reino de Deus (IURD), e com o consequente fenômeno de expansão das

chamadas igrejas neopentecostais, alicerçadas na demonização das religiões de

matriz africana. O modelo da IURD foi rapidamente copiado por outros líderes

religiosos e o número de ataques feitos por adeptos de igrejas evangélicas,

especialmente as neopentecostais, contra os religiosos de matriz africana,

apresentou um crescimento assustador. (COMISSÃO DE COMBATE A

INTOLERÂNCIA RELIGIOSA, 2009). É o que veremos a seguir.

4. A INTOLERÂNCIA CONTRA AS RELIGIÕES DE MATRIZ AFRICANA

A intolerância exercida no campo religioso está intrinsicamente relacionada

com o etnocentrismo. Neste aspecto, a intolerância religiosa representaria uma

forma de reduzir a crença alheia por meio da manifestação de violência física,

psicológica ou, até mesmo, simbólica, diante das diversas concepções de fé.

Consistiriaem uma exteriorização preconceituosa e violenta de uma verdade tida

como absoluta, podendo tal intolerância se revestir de traços ainda mais fortes,

como no caso do fundamentalismo e do fanatismo religioso. É o que vimos até

aqui.

No Brasil, as manifestações de matriz africana constituem religiões de

caráter não-hegemônico, e são alvo comum de atos de intolerância decorrentes,

entre outras razões, das diferenças culturais, étnicas, raciais e econômicas

historicamente existentes entre “brancos” e “negros”, colonizadores e colonizados.

Ainda nos dias atuais, em que se prega a inexistência do racismo em nossa

sociedade, vemos que as crenças e práticas das religiões de matriz africana

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3649

habitualmente sofrem distorções de seu significado, herança ainda dos tempos da

Colônia.

Maria Lucia Montes (1998) descreveu o retrato das práticas espirituais

africanas na realidade colonial: Sob as condições da escravidão, suas tradições culturais e religiosas eram tomadas no mundo dos senhores por “divertimento” a que se entregavam os negros, consentidos em razão dos benefícios morais e políticos que deles se esperava, isto é, a tranquilidade da senzala e a submissão dos escravos. Menor complacência, porém, teriam senhores e autoridades eclesiásticas para com as práticas mágicas indissociáveis dessas formas de religiosidade que, vistas como feitiçaria, foram objeto de constante perseguição. (MONTES, 1998, p. 93).

Posteriormente, já com o advento da Independência e a instauração do

Império no Brasil e mesmo na República, e nas décadas de 30 e 40

especialmente, as práticas ritualísticas de origem africana continuavam a ser

condenadas pela sociedade e perseguidas pelo Estado. É como ressalta a autora

ao afirmar que “em nome de um novo projeto civilizatório, os terreiros de

candomblé passariam a ser objeto de rigorosa perseguição por parte da polícia e

do Poder Judiciário” (MONTES, 1998, p. 94). No entender de Renato Ortiz (1999)

“é, sobretudo, a dominação simbólica do branco que acarretará o

desaparecimento ou a metamorfose dos valores tradicionais negros” (ORTIZ,

1999, p. 27).

Muitos anos depois, mesmo com o Estado Democrático de Direito

instaurado no Brasil, o que garantiu a criação de mecanismos de proteção à

liberdade religiosa, os resquícios da escravatura ainda são ostensivos e pairam

sobre os negros e suas manifestações religiosas, de modo que os adeptos das

religiões de matriz africana ainda sofrem com a discriminação e intolerância, com

a tentativa de diminuição de suas crenças e identidade cultural.

Há cerca de 30 anos, com o surgimento da Igreja Universal do Reino de

Deus (IURD), iniciou-se o fenômeno da expansão das chamadas igrejas

neopentecostais, alicerçadas na difusão da “Teologia da Prosperidade” e na

demonização das religiões de matriz africana. O modelo da IURD foi rapidamente

copiado por outros líderes religiosos e o número de ataques feitos por adeptos de

igrejas evangélicas, especialmente as neopentecostais, contra os religiosos de

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3650

matriz africana, apresentou um crescimento assustador (COMISSÃO DE

COMBATE A INTOLERÂNCIA RELIGIOSA, 2009).

Para Vagner Gonçalves da Silva (2007), essa intolerância está

intrinsecamente ligada à visão demoníaca propagada pelos adeptos do

neopentencostalismo. O autor enumera os principais sintomas dessa prática: 1. Ataques feitos no âmbito dos cultos das igrejas neopentecostais e em seus meios de divulgação e proselitismo; 2. Agressões físicas in loco contra terreiros e seus membros; 3. Ataques às cerimônias religiosas afro-brasileiras realizadas em locais públicos ou aos símbolos destas religiões existentes em tais espaços; 4. Ataques a outros símbolos da herança africana no Brasil que tenham alguma relação com as religiões afro-brasileiras; 5. Ataques decorrentes das alianças entre igrejas e políticos evangélicos e, finalmente, 6. As reações públicas (políticas e judiciais) dos adeptos das religiões afro-brasileiras. (SILVA, 2007, p. 10).

Eleitos, portanto, como os “estranhos”, como a sujeira que precisa ser

eliminada da sociedade em nome do ideal de pureza e da manutenção da ordem,

os adeptos das religiões de matriz africana são alvo constante das pregações

demonizadorasdas igrejas neopentecostais, que promovem uma sistemática

perseguição e estigmatização da identidade da comunidade afrodescendente. A

estratégia utilizada por essas igrejas é criar estereótipos que remetem os

praticantes das religiões africanas a cidadãos de segunda classe, desvalorizando-

os na sociedade. Como resultado da sedimentação da estratégia da IURD de aliar

os poderes da comunicação (através de programas de TV, rádio e jornais), da

política e da fé, as religiões de matriz africana vivenciam o endurecimento do

preconceito e da discriminação em seu cotidiano.

As notícias veiculadas com frequência dão conta de que os casos de

intolerância, antes apenas isolados e sem grandes repercussões, hoje se

avolumaram e ganharam visibilidade pública, conforme demonstram frequentes

notícias de jornais que os registram em inúmeros pontos do Brasil. Em

contrapartida, a reação a estes casos, antes tímida de algumas poucas vítimas,

agora se faz em termos de processos criminais levados adiante por pessoas

físicas ou instituições públicas, como ONGs e até mesmo a Promotoria Pública

(SILVA, 2007).

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3651

5 A JUDICIALIZAÇÃO DO CONFLITO

Inserido no processo de garantia da dignidade humana dos religiosos afro-

brasileiros, de materialização dos seus direitos e de reparação dos danos sofridos

diante de práticas de intolerância, surge o Poder Judiciário como um novo

protagonista responsável por analisar e julgar essa demanda social, uma vez que

temas que antes eram debatidos apenas na seara política tornaram-se

pretensões judicializáveis.

Este fenômeno conhecido como judicialização, para o Constitucionalista

Luís Roberto Barroso, significa: Judicialização significa que questões relevantes do ponto de vista político, social ou moral estão sendo decididas, em caráter final, pelo Poder Judiciário. Trata-se, como intuitivo, de uma transferência de poder para as instituições judiciais, em detrimento das instâncias políticas tradicionais, que são o Legislativo e o Executivo. Essa expansão da jurisdição e do discurso jurídico constitui uma mudança drástica no modo de se pensar e de se praticar o direito no mundo romano-germânico. (BARROSO, 2011, p. 228-229).

Para Marques de Lima (2009) a atuação imperativa dos tribunais no Brasil

em muito se relaciona com o modelo social de constitucionalismo adotado pela

Constituição de 1998, o que implica dizer que o ordenamento jurídico deve

expressar os valores sociais do povo, e a interpretação legal deve estar alinhada

com o sentimento popular, com vistas a assegurar a dignidade humana, o regime

de liberdade, os valores da democracia, convergindo na concretização do Estado

de bem-estar (LIMA, 2009).

Neste processo de judicialização da religiosidade afro-brasileira, casos

relevantes envolvendo diversas facetas da intolerância religiosa foram

enfrentados pelos magistrados nos diversos Tribunais em nosso país.

Apresentaremos, a seguir, alguns casos emblemáticos, o que nos permitirá

analisar diversas categorias de direitos envolvidas neste fenômeno social.

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3652

5.1 Caso Emblemático 1: Liberdade Religiosa X Liberdade de Expressão

A judicialização de casos de intolerância religiosa contra as religiões de

matriz africana que envolvem o abuso da liberdade de expressão religiosa merece

destaque. Neste aspecto, se sobressai a conduta deliberada de parte do

segmento evangélico neopentecostal que faz uso dos meios de comunicação

(televisão, rádio e internet) para disseminar, em nome da liberdade religiosa,

discursos de ódio pautados na ofensa gratuita às religiões de matriz africana e

aos seus seguidores, reforçando a intolerância, a estigmatização, o preconceito e

a discriminação.

Neste sentido, recentemente uma decisão judicial, da lavra do Dr. Eugenio

Rosa de Araújo, Juiz Federal Titular da 17º Vara Federal no Rio de Janeiro,

ganhou repercussão midiática nacional. Referida decisão foi proveniente do

processo nº 0004747-33.2014.4.02.5101, Ação Civil Pública ajuizada pelo

Ministério Público Federal em desfavor da Google Brasil Internet LTDA., com o

objetivo de retirar da internet vídeos em que membros da Igreja Universal do

Reino de Deus propagam discursos de ódio e intolerância contra as religiões afro-

brasileiras, seus símbolos, ritos e seus sacerdotes.

A referida decisão negou o pedido de retirada dos vídeos da internet sob o

fundamento de que, no caso concreto, não existiu violação aos direitos de

liberdade de consciência e liberdade de crença, bem como o de proteção às suas

liturgias, dentre outros como o direito de liberdade opinião, de reunião e de

religião. Aduziu, o juiz, que o candomblé e a umbanda não contêm os traços

necessários de uma religião, a saber: um texto base (corão, bíblia); estrutura

hierárquica; e, ainda, um Deus a ser venerado (BRASIL, 2014, p. 153-155).

Portanto, de uma só feita, o referido magistrado além de não analisar

adequadamente questões processuais e meritórias da demanda, também se

autodeterminou como autoridade competente para definir o que é e o que deixa

de ser uma religião.

Inconformado com a decisão da lavra do referido magistrado, o Ministério

Público Federal interpôs Agravo de Instrumento nº 0101043-94.2014.4.02.0000

(número antigo: 2014.00.00.101043-0) contra a decisão do Juiz Eugênio Rosa de

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3653

Araújo, e, em nova decisão, desta feita da lavra do Tribunal Regional Federal da

2ª Região, o desembargador relator Reis Friede aceitou, em caráter liminar, o

pedido para que o Google retirasse do ar 16 vídeos que, segundo a ação movida,

ofendem religiões de matriz africana da internet (BRASIL, 2014).

Não houve interposição de recurso contra a referida decisão, cujo Acórdão

já transitou em julgado. A decisão judicial já foi cumprida e os vídeos não estão

mais disponíveis. Importante ressaltar, entretanto, que se trata apenas de uma

decisão liminar, portanto, não representa o resultado definitivo da demanda, posto

que o mérito da questão ainda não foi enfrentado.

Importante evidenciar que a veiculação de vídeos que ofendem e denigrem

a imagem das religiões afro-brasileiras demonstra a perpetuação de uma

realidade cultural preconceituosa em relação às religiões de matriz africana. Pior

ainda, o posicionamento do Poder Judiciário, na pessoa do ilustre Juiz Eugênio

Rosa de Araújo, ao decidir por manter na internet vídeos com este conteúdo, sob

o argumento de que se trata de manifestação da liberdade de expressão, legitima

a prática de intolerância e o discurso de ódio propagado pelos pastores

neopentecostais.

Não são rarosos conflitosenvolvendo direitos de liberdade religiosa e de

livre expressão. Especialmente quando estamos diante de religiões proselitistas,

ou seja, que buscam a conversão de novos fiéis, esse conflito é mais perceptível

e ostensivo. É o que ocorre no caso de segmentos evangélicos neopentecostais

que, sob o escudo do proselitismo, usualmente confundem liberdade de

expressão com discurso de ódio. E o alvo preferido desse discurso de ódio são as

religiões de matriz africana.

As pregações demonizadoras dessas igrejas promovem uma perseguição

insistente e incisiva das religiões afro-brasileiras, estigmatizando seus adeptos. A

estratégia utilizada por essas igrejas é criar estereótipos que remetem os

praticantes das religiões africanas a cidadãos de segunda classe, desvalorizando-

os na sociedade.

O direito fundamental à liberdade de expressão está presente no artigo 5º,

inciso IV, da Constituição Federal, o qual estabelece que é livre a manifestação

do pensamento, sendo vedado o anonimato. A liberdade de expressão consiste,

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3654

assim, na faculdade de emitir opiniões, ideias e pensamentos, seja qual for a

forma, inclusive, por formas artística-culturais, como teatro, pintura, humor, obras

literárias, etc. (CARVALHO, 1999, p. 29).

A liberdade de expressão, além de constituir um dos fundamentos

essenciais de uma sociedade democrática, está diretamente relacionada ao

pluralismo de ideias, e, portanto, compreende não somente as informações

consideradas como inofensivas, indiferentes ou favoráveis, mas também aquelas

que possam causar transtorno, resistência, inquietar as pessoas (MORAES, 2004,

p. 118).

Entretanto, quando tais manifestações giram em torno do universo

religioso, a liberdade de expressão pode resultar em demonstrações

preconceituosas e discriminatórias, colidindo, assim, com o direito fundamental à

liberdade religiosa. É exatamente o caso do segmento evangélico neopentecostal

que, ao fazer uso de veículos de comunicação, dissemina, em nome da liberdade

religiosa, discursos de ódio e intolerância, prática esta que motivou o Ministério

Público a promover o ajuizamento da Ação Civil Pública analisada anteriormente.

Diante da violação à liberdade religiosa por intermédio da liberdade de

expressão, ambos direitos fundamentais de igual importância e igualmente

tutelados pela Constituição Federal, evidencia-se a tensão e o conflito entre estas

liberdades (religiosa e de expressão), da qual se origina diferentes interpretações

do que seria justo no que se refere ao pertencimento religioso e à manutenção de

um espaço público democrático que assegure a liberdade de consciência e a

diversidade de pensamento.

A “tragédia do Charlie Hebdo”, ocorrida na França, reacendeu a discussão

sobre os limites da liberdade de expressão da imprensa, especialmente quando

essa liberdade de expressão adentra nos limites dos territórios da fé. O mundo se

viu diante da seguinte indagação: Vale tudo em nome da liberdade de expressão?

Discorrendo sobre o episódio, Santos (2015) aponta a dificuldade em se

fazer uma análise serena do que está envolvido neste ato bárbaro, do seu

contexto e seus precedentes e do seu impacto e repercussões futuras. Por outro

lado, sinaliza quanto à urgência desta análise, “sob pena de continuarmos a atear

um fogo que amanhã pode atingir as escolas dos nossos filhos, as nossas casas,

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3655

as nossas instituições e as nossas consciências” (SANTOS, 2015, n.p.). Afirma

que a liberdade de expressão é um bem precioso, mas que existem limites,

contudo, esses limites são diferentes para diferentes grupos de interesse, “e a

verdade é que a esmagadora maioria deles são impostos por aqueles que

defendem a liberdade sem limites sempre que é a “sua” liberdade a sofrê-los”

(SANTOS, 2015, n.p.).

Se por um lado Santos (2015) reconhece o horror e vê como injustificável o

atentado ocorrido, por outro lado não deixa de destacar o fato de que o Charlie

Hebdo não reconhecia limites para insultar os muçulmanos, pois muitas das

charges publicadas alimentavam a onda islamofóbica e anti-imigrante que

avassala a França e a Europa em geral. Ao longo dos anos, a maior comunidade

islâmica da Europa foi-se sentindo ofendida por esta linha editorial. Aponta, pois,

para a necessidade de reflexão sobre as contradições e assimetrias na vida vivida

dos valores que alguns creem ser universais (SANTOS, 2015, n.p.).

A liberdade de expressão implica a necessidade de harmonização e

consideração dos demais direitos sob o risco de perder a característica liberdade

e, por conseguinte, passar a ser uma “arbitrariedade” de expressão (TAVARES,

2008, p. 232). Ela não possui caráter absoluto, pois sofre limitações de natureza

ética e jurídica. Assim, também não condiz com a ideia de liberdade de expressão

admitir que religiosos, através da mídia impressa ou falada, se respaldem

exatamente neste suposto direito de liberdade de expressão para amparar

discurso de ódio, que não condiz com as funções constitucionais da comunicação

social.

A discriminação religiosa é proibida legalmente no Brasil tanto em âmbito

constitucional, seus artigos 3º, inciso IV, e 5º, inciso XLI, quanto

infraconstitucional, com a previsão de reparação civil e por meio da medida última

de criminalização de manifestações discriminatórias, presente no artigo 140, § 3º

e artigo 20, da Lei n. 7.716/89.Deste modo, mesmo que a crença religiosa não se

coadune com a prática de outras religiões, incitar a violência ou o desrespeito

extrapola os direitos de livre expressão e viola os direitos fundamentais das

minorias religiosas.

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3656

Cabe ao Estado, através do Poder Judiciário (neste caso específico),

assegurar a efetividade dos direitos fundamentais colidentes de liberdade

religiosa, de liberdade de expressão e outras, sem caracterizar abuso de direito

de qualquer dos lados. Neste sentido, a solução hermenêutica para as colisões de

princípios se dá através da utilização da técnica da ponderação, com a aplicação

dos postulados da proporcionalidade e da razoabilidade. A ponderação

estabelece uma “relação de precedência condicionada” entre os princípios em

conflito, não havendo relação hierárquica entre os princípios salvaguardados pela

Constituição. Isso implica dizer que a aplicação do princípio ao caso concreto

depende das condições fáticas subjacentes. Dadas determinadas condições, o

resultado será um. Se essas condições forem diversas, o resultado poderá ser

diferente (KOATZ, 2011).

5.2 Caso Emblemático 2: Liberdade Religiosa X Perturbação aosossego

(poluição sonora)

A Lei nº 6.938/81, que institui a Política Nacional do Meio Ambiente, em

seuart. 3º, inc. III, define a poluição como a degradação da qualidade ambiental

resultante de atividades que direta ou indiretamente a) prejudiquem a saúde; b)

criem condições adversas às atividades sociais e econômicas; c) afetem

desfavoravelmente a biota; d) afetem as condições estéticas ou sanitárias do

meio ambiente e/ou e) lancem matérias ou energia em desacordo com os padrões

ambientais estabelecidos. O poluidor, ainda segundo seu Art. 3º, inciso IV, é a

"pessoa física ou jurídica, de direito público ou privado, responsável, direta ou

indiretamente, por atividade causadora de degradação ambiental" (BRASIL,

1981).

A Resolução CONAMA n° 001, de 08/03/1990, dispõe que a emissão de

ruídos, proveniente de quaisquer atividades industriais, comerciais, sociais ou

recreativas, inclusive as de propaganda política, deve, no interesse da saúde e do

sossego público, obedecer aos padrões, critérios e diretrizes nela estabelecidos

Segundo essa Resolução, são prejudiciais ao sossego público os ruídos com

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3657

níveis superiores aos considerados aceitáveis pela norma NBR10152 (BRASIL,

1990).

Não há dúvidas de que a Constituição Federal protege a liberdade de

crença e

o exercício dos cultos religiosos, na forma da lei. Contudo, a proteção a este

direito não é absoluta, mas comporta restrições quando em choque com outros

direitos também constitucionalmente garantidos, como é o caso do direito de se

ter um meio ambiente ecologicamente equilibrado, que está diretamente

relacionado com o direito ao merecido descanso ou sossego. Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações. (BRASIL, 1988, n.p.).

Portanto, surgindo posições conflituosas entre estas liberdades

constitucionais, no caso concreto, elas devem ser equalizadas para que ambas

possam ser usufruídas da maneira mais ampla possível.

A Lei de Crimes Ambientais (Lei nº 9.605/1998), no caput do artigo 54,

qualifica como crimes algumas atividades e condutas que acarretam poluição

sonora no meio ambiente; desta forma, em determinados casos, além de o

infrator ser responsabilizado civilmente, pode também ser punido na esfera penal

sujeitando-se a uma pena que pode variar, dependendo do caso, de um a cinco

anos de reclusão (BRASIL, 1998). De outra banda temos que a poluição sonora

também está prevista no artigo 42 da Lei das Contravenções Penais - Decreto-Lei

nº 3.688/1941.

É neste universo conflituoso, em que, de um lado se encontra a liberdade

de culto, e do outro lado o direito ao merecido descanso ou sossego, decorrente

do direito de se ter um meio ambiente ecologicamente equilibrado, que se situam

inúmeros casos de judicialização de conflitos envolvendo as religiões de matriz

africana. O perigo que reside neste caso, é que os conflitos que versam sobre

denúncias de perturbação do sossego contra cultos de matriz africana, muitas

vezes, são desqualificados quando chegam ao judiciário, pois são vistos e

tratados como simples picuinhas de vizinhos. Dificilmente se chega ao âmago da

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3658

questão, que consistiria em investigar e enfrentar a motivação real (intolerância

religiosa) que normalmente se esconde por trás da alegada perturbação sonora.

Como exemplo de caso emblemático versando sobre denúncia de

perturbação ao sossego, citamos um conflitoenfrentado pelo Poder Judiciário de

Sergipe.Trata-se da denúncia apresentada pelo Ministério Público em face da

Sacerdotisa do Templo Espírita Umbandista São Bartolomeu, Silvania das

Virgens dos Santos, processo nº 201188701190, pelo crime de perturbação de

sossego, tipificado no artigo 42 do Decreto-Lei nº 3.688/41. O aludido processo foi

conduzido em 1ª instância pelo Juiz de Direito Salvador Melo Gonzalez, do 1º

Juizado Criminal de Nossa Senhora do Socorro.

A referida denúncia decorreu de noticia criminis que relatou que a

Sacerdotisa Silvania das Virgens, há vários anos, perturbava a vizinhança com a

emissão de som produzido por tambores, palmas e cantorias entoadas no terreiro

de candomblé localizado em sua própria residência (SERGIPE, 2011). Como

elemento probatório utilizado para sustentar a referida denúncia foi utilizado um

abaixo-assinado subscrito pelos supostos vizinhos da denunciada, entregue às

autoridades policiais pelo Noticiante. Contrariando a complexidade do caso em

questão, consubstanciada pela necessidade de dilação probatória para fins de

realização de exame pericial, o Ministério Público não requereu a remessa dos

Autos à Justiça Comum e entendeu pelo cabimento imediato da denúncia pela

prática do delito incurso no art. 42, incisos I e III da Lei de Contravenções Penais.

Em virtude de a pena mínima ser inferior a um ano, como também

preencher a denunciada os requisitos estatuídos no art. 89 da Lei de Juizados

Especiais, o Ministério Público propôs suspensão condicional do processo por

dois anos, desde que cumpridas pela Ré as exigências de comparecer

trimestralmente em juízo para informar acerca de suas atividades; encerrar as

práticas sonoras realizadas em sua residência com palmas, abuso de

instrumentos sonoros e sinais acústicos; pagamento de R$ 546,00 (quinhentos e

quarenta e cinco reais.Em sede de audiência, a denunciada aceitou a proposta,

comprometendo-se a cumprir as determinações estabelecidas (SERGIPE, 2011).

Ao final, o Juiz recebeu a denúncia e logo em seguida suspendeu o

processo, submetendo a Sacerdotisa Silvania das Virgens dos Santos ao período

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3659

de prova.Após decisão adotada pelo magistrado de 1ª instância, a Ré, através de

seu advogado, interpôs Revisão Criminal (Processo nº 2012304631), porém, o

pedido foi indeferido liminarmente, por entender que a Ré não havia preenchido

os requisitos legais necessários à interposição do recurso, tais como a existência

de sentença penal condenatória, com trânsito em julgado (SERGIPE, 2012).

O caso apresentado demonstra que o magistrado, ao concordar com as

condições sugeridas pelo Ministério Público para suspensão condicional do

processo, em especial o encerramento das práticas religiosas com uso de

instrumentos sonoros e de sinais acústicos, desconsiderou o fato de se tratar de

um Templo religioso, que possui direito constitucional à livre manifestação de

seus rituais e crenças. Convém ressaltar que em nenhum momento do

andamento processual foi suscitada a necessidade de realizar exame pericial no

local do fato, a fim de confirmar a poluição sonora alegada pelo Noticiante.

Este exemplo de enfrentamento judicial demonstra o preconceito e a

legitimação da intolerância em relação as manifestações religiosas de origem

afro-brasileira. Nesta perspectiva, é possível notar que o poder judiciário acaba

por adotar posturas reticentes e tímidas diante de situações complexas que

afetam diretamente as religiões de matriz africana e as suas práticas.

Contudo, como bem observou Oliveira (2014, p. 328), a partir dessa

postura reticente e superficial diante da análise de casos envolvendo intolerância

religiosa, pode emergir um novo tipo de ofensa: os ataques à liberdade de culto e

de crença, à preservação da cultura e da memória dos afro religiosos

provenientes diretamente de ações, e principalmente de omissões, do poder

público e dos seus órgãos, em especial do Poder Judiciário.

O Poder Judiciário, por assumir o papel de garantidor dos direitos

fundamentais, não pode se esquivar da árdua tarefa de enfrentar profundamente,

em seus julgados, os contornos racistas, preconceituosos e intolerantes relativos

aos negros e religiosos de matriz africana implícitos nas entrelinhas das ações e

petições que visam restringir o direito à liberdade religiosa e até mesmo impedir o

exercício das manifestações litúrgicas destes religiosos. Todavia, os casos aqui

relatados demonstram que este enfrentamento por parte do Judiciário ainda não

vem acontecendo da forma que se espera.

Page 121: 44. gt - pluralismo religioso, interculturalisdade e laicidade

3660

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A retomada do protagonismo das religiões na esfera pública é uma

característica da sociedade pós-secular. No Brasil, esta retomada tem se operado

especialmente por segmentos evangélicos fundamentalistas, que se fortalece

paulatinamente e vem ganhando, de maneira crescente, o espaço público através

de forte estratégia de inserção e articulação política. Trata-se de um fenômeno

que carrega como signo a ânsia pela desprivatização, a recuperação do papel

político religioso e da vontade de influenciar a vida social e pública

Fruto do fundamentalismo, a intolerância religiosa é alimentada e se

fortalece neste projeto, poisdela decorre a exclusão e perseguição daqueles que

não se encaixam no modelo hegemônico da ordem religiosa.Eleitos, portanto,

como os “estranhos”, como a sujeira que precisa ser eliminada da sociedade em

nome do ideal de pureza e da manutenção desta ordem, os adeptos das religiões

de matriz africana são alvo constante dessa intolerância religiosa por parte das

igrejas neopentecostais, que promovem uma sistemática perseguição e

estigmatização da identidade da comunidade afrodescendente.

As notícias veiculadas com frequência dão conta de que os casos de

intolerânciareligiosa, antes apenas isolados e sem grandes repercussões, hoje se

avolumaram e ganharam visibilidade pública. As recorrentes violações dos

direitos fundamentais dos afrorreligiososcolocam em pauta a existência de

questões ainda não resolvidas pelo Estado Democrático de Direito, relativas ao

exercício pleno das garantias constitucionais, principalmente no que toca à

liberdade religiosa destes grupos tidos como minoritários.

Neste sentido, conclui-se que o fenômeno da judicialização dos conflitos

envolvendo casos de intolerância religiosa configura uma reação pública dos

adeptos das religiões de matriz africana que recorrem ao Judiciário, enquanto

agente estatal capaz de garantir a efetividade de seus direitos fundamentais,

sobretudo, a liberdade religiosa em seu sentido pleno. É imperioso que o

Judiciário enxergue, portanto, a efetiva dimensão social que envolve esses casos,

Page 122: 44. gt - pluralismo religioso, interculturalisdade e laicidade

3661

e, através de suas decisões, busque reverter esse cenário de exclusão e negação

de direitos, resultando na tão almejada reintegração social.

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3664

A FAMÍLIA E O FUNDAMENTALISMO RELIGIOSO NO LEGISLATIVO: AVANÇOS, RETROCESSOS E DESAFIOS EM DIREITOS HUMANOS

Daniel Albuquerque de Abreu

Fernanda Busanello Ferreira

Helena Esser dos Reis

RESUMO: O presente artigo tem o objetivo de analisar o fundamentalismo religioso cristão presente na redação e primeiro relatório do Estatuto da Família, Projeto de Lei nº 6.583/2013, proposto e sustentado pela bancada evangélica do Poder Legislativo. Pretende discutir dois pontos fundamentais, quais sejam: a) o conceito de família trazido pelo PL em contraposição com a decisão de vanguarda prolatada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em 2011 (ADPF nº 132-RJ e ADI nº 4.277-DF) que reconheceu a pluralidade das entidades familiares brasileiras; e, b) a (in)existência de relações entre a visão fundamentalista da família singular com as conquistas e avanços dos direitos humanos, em especial nos campos da tolerância, inclusão, subjetividade e do reconhecimento do outro. PALAVRAS-CHAVE: Fundamentalismo; família; exclusão; direitos humanos.

1 INTRODUÇÃO

Em 16 de outubro de 2013, foi apresentado na Câmara dos Deputados o

Projeto de Lei nº 6.583, proposto pelo Deputado Anderson Ferreira (PR-PE), que

“dispõe sobre o Estatuto da Família e dá outras providências”. Logo no segundo

artigo do PL é definida a entidade familiar como sendo “o núcleo social formado

entre um homem e uma mulher, por meio de casamento ou união estável, ou

ainda por comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes”

[grifos no original]. A redação do artigo deixa claro que a proposta do Deputado

autor do projeto pretende excluir uniões como as homoafetivas, anaparentais, em

mosaico, eudemonistas26, contrariando a tendência dos Tribunais Superiores27 de

ampliar a semântica do termo.

26 De acordo com Dias (2009), as uniões homoafetivas são aquelas entre pessoas do

mesmo sexo. As anaparentais são constituídas pela convivência entre pessoas, não necessariamente parentes, dentro de uma estrutura com propósitos semelhantes. As

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3665

No mesmo sentido tem-se o primeiro parecer do PL nº 6.583/2013, de

relatoria do Deputado Ronaldo Fonseca (PROS-DF), no qual se sustenta que o

constituinte delineou apenas três formatos de entidade familiar, inscritos no artigo

226, §§ 3º e 4º, da Constituição Federal de 198828, e reproduzidos no artigo 2º do

PL, conforme citado. Segundo o parecer, os demais arranjos não podem ser

enquadrados no conceito de família, não gozando da especial proteção do

Estado.

Dentre as diversas considerações que o relatório apresenta, uma merece

especial destaque, até mesmo por ser a mais fustigada: a união homoafetiva. O

relator defende que a introdução na jurisprudência das uniões de pessoas do

mesmo sexo pelo Supremo Tribunal Federal – Arguição de Descumprimento de

Preceito Fundamental (ADPF) nº 132-RJ e Ação Direta de Inconstitucionalidade

(ADI) nº 4.277-DF – foi um equívoco. Na verdade, não apenas um equívoco, mas

sim uma usurpação da prerrogativa do Congresso Nacional. Isso porque teriam

sido criados direitos pela via judicial que causaram injustiça e discriminação.

A “proteção de Deus” invocada na fundamentação do relatório deixa claro

que, embora o Deputado relator diga ser laico o Estado brasileiro, estrutura toda a

sua argumentação como se o estatuto constitucional tivesse sido fundado sob a

famílias mosaico são formadas por uma pluralidade de vínculos reconstituídos por casais dente os quais um ou ambos são egressos de uniões anteriores, trazendo seus filhos para a nova família, e gerando filhos em comum. As uniões eudemonistas têm por característica a busca pela felicidade e realização plena de seus membros, por meio da comunhão de afeto recíproco, consideração e respeito mútuos entre os seus componentes, independente do vínculo biológico. Nota-se que nenhuma delas tem por base o casamento ou a união exclusiva entre homem e mulher.

27 O Supremo Tribunal Federal (STF) se manifestou favorável à adoção conjunta de uma criança ao casal homoafetivo Toni Reis e David Harrad. A decisão monocrática do Recurso Extraordinário (RE nº 846.102), proferida pela Ministra Cármen Lúcia, foi publicada em 17 de março de 2015. Na mesma toada, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) manteve decisão que garantiu, dentro de uma união estável homoafetiva, a adoção unilateral de filha concebida por uma delas por meio de inseminação artificial, para que ambas as companheiras passem a compartilhar a condição de mãe da adotanda. O acórdão do Recurso Especial (REsp nº 1.281.093 - SP), proferido pela Terceira Turma do STJ, e de relatoria da Ministra Nancy Andrighi, foi publicado em 04 de fevereiro de 2013.

28 Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado. [...] § 3º - Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e

a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento. § 4º - Entende-se, também, como entidade familiar a comunidade formada por qualquer

dos pais e seus descendentes (BRASIL, 1988).

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3666

proteção do divino. Mas não qualquer divino: apenas a divindade cristã

ocidental29, aquela cujos valores construíram a sociedade brasileira.

Infere-se um discurso fundamentalista cristão do texto do Projeto do

Estatuto da Família, cuja aproximação entre uma visão estreita de família (de

cunho religioso) com o texto legal é defendida por dois deputados integrantes da

bancada evangélica do Congresso Nacional. Mais do que isso, o posicionamento

externado por Anderson Ferreira e Ronaldo Fonseca reflete uma cosmovisão30

pautada na tradição e conservadorismo próprios dos fundamentalistas. O PL, tal

como proposto, legitima uma única percepção de verdade, inimiga do moderno e

do respeito às diferenças (VASCONCELLOS, 2008, p. 15-16; 49). Tal ocorre

porque os ideais defendidos pelo discurso fundamentalista cristão parecem não

deixar margem para a estruturação de outras famílias, como as homoafetivas. Os

fundamentalistas, ancorados na verdade absoluta da Bíblia, defendem que o

“homossexualismo” é abominação e pecado31.

Já o Supremo Tribunal Federal (STF), no julgamento conjunto da ADPF nº

132-RJ e ADI nº 4.277-DF, reconheceu o pluralismo como valor sócio-político-29 Quando o relator afirma que a Constituição Federal foi promulgada “sob a proteção de

Deus”, pede sejam respeitados os valores “da maioria absoluta de religiosos e não religiosos e que construiu nossa sociedade brasileira, bem como todo o ocidente” (BRASIL, 2014a). Está claro que quem protege o Estado brasileiro e que o construiu é a divindade cristã, sem que haja espaço para o mesmo respeito às outras formas de expressão religiosas (que, segundo o parecer, não tiveram parte na construção da nossa sociedade). Em sentido semelhante, o juiz federal da 17ª Vara Federal da Seção Judiciária do Rio de Janeiro Eugenio Rosa de Araújo indeferiu pedido de antecipação dos efeitos da tutela de Ação Civil Pública movida pelo Ministério Público Federal (número de origem 0004747-33.2014.4.02.5101). Alguns dos argumentos do magistrado foram que “cultos afro-brasileiros não constituem religião”; e que as manifestações da umbanda e ao candomblé não contêm traços necessários de uma religião, como um texto base (a exemplo do Corão ou da Bíblia), estrutura hierárquica e um Deus a ser venerado (BRASIL, 2014b). A decisão foi posteriormente reformada pelo Tribunal Regional Federal da 2ª Região

30 Conforme será desenvolvido em linhas seguintes, o fundamentalismo impõe uma concepção de mundo antimodernista e apegada à literalidade da Bíblia. Dessa forma, se no livro de Gênesis está escrito que Deus criou homem e mulher para multiplicarem-se e encherem a terra, é inadmissível que a modernidade pretenda legitimar outras espécies de família que não a tradicional (BÍBLIA).

31 Muito embora o termo homossexualismo tenha sido substituído há anos por homossexualidade, em razão de o sufixo -ismo portar consigo carga patológica, o vocábulo ainda é utilizado por conservadores, geralmente acompanhado da passagem bíblica de Levítico 18:22: “Com varão não te deitarás, como se fosse mulher: abominação é” (BÍBLIA).

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3667

cultural, consagrando o direito subjetivo de constituir família e a inexistência de

significado restritivo ao termo família, numa hermenêutica mais atenta e fidedigna

à realidade social. Essa perspectiva vai ao encontro dos princípios e declarações

de Direitos Humanos, que enaltecem a tolerância, a inclusão, a igualdade e a

dignidade de todos os pertencentes à família humana.

Parece, então, haver algo de inconciliável entre, de um lado, os pilares

fundamentalistas, e, do outro, os objetivos das lutas dos direitos humanos, que

transparecem na mencionada decisão do Supremo.

O presente artigo se propõe a, primeiramente, analisar o fundamentalismo

religioso cristão sob a ótica da tolerância a fim de verificar se e como tal

fundamentalismo se faz presente na redação do PL nº 6.583/2013. Num segundo

momento, entende-se necessária a discussão do conceito de família a partir da

contraposição de duas visões anteriormente apresentadas: aquela singular,

proposta pelo Estatuto, e aquela plural e multifacetada, cuja validade jurídica foi

atestada pelo Supremo Tribunal Federal. A partir de tal embate, pretende-se

chegar ao exame da seguinte questão: existirá proximidade entre o entendimento

fundamentalista de família e as conquistas e avanços em Direitos Humanos?

2 TOLERÂNCIA, FUNDAMENTALISMO RELIGIOSO CRISTÃO E O ESTATUTO

DA FAMÍLIA

Soares (Apud VASCONCELLOS, 2008, p. 10) sugere uma íntima relação

entre a intolerância e o fundamentalismo religioso: “Combater o fundamentalismo

religioso não é ser intolerante. Ser intolerante com os religiosamente intolerantes

é apenas salvaguardar um mínimo espaço de cidadania para que as pessoas

partilhem suas visões de mundo sem se autodestruírem na empresa”. Contudo,

antes de se questionar acerca dessa relação, é importante indagar qual o

significado do termo “tolerância” e quais as suas relações com o fundamentalismo

cristão.

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3668

2.1. A respeito da tolerância

No século XVII, reinava em Inglaterra e França uma perseguição regada a

sangue entre católicos e protestantes. O poder civil oprimia os dissidentes

religiosos, impunha-lhes multas, confiscava-lhes bens. Milhares eram condenados

ao cárcere, sujeitos a espancamentos, contração de doenças e, muitas vezes, à

morte. Naqueles idos, “tolerar então era sofrer, suportar pacientemente um mal

necessário, como uma doença ou infecção” (ALMEIDA, 2010, p. 170). A carga

negativa, pejorativa do termo era bem clara: a tolerância era exercida quando não

se podia impedir algo, ou ainda equivalente a conivência, aceitação ou

impunidade frente algo condenável, um erro. O tolerante estava sob a ameaça de

ser acusado de indiferença religiosa, mentalidade religiosa, ou mesmo subversão.

Ao contrário, o intolerante era um verdadeiro virtuoso, íntegro e firme moralmente,

puro de caráter (ALMEIDA, 2010, p. 170).

Ao longo do século XVIII, o conceito de tolerância foi se alterando e

disseminando atrelado à ideia de virtude pública. Jean-Edme Romilly (1739-

1779), John Locke (1632-1704), Pierre Bayle (1647-1706) e Montesquieu (1689-

1755) foram alguns dos que contribuíram para a transição do conceito: o

tolerante, antes leniente em relação ao erro do outro, agora respeita as

características dos indivíduos, com base na igualdade e liberdade. Para a

compreensão de como o conceito foi tratado no Século das Luzes, será feita uma

breve ilustração das linhas desses iluministas.

Romilly escreveu o verbete “tolerância” na Encyclopédie editada por

Diderot e D´Alembert; e nele reconhece a tolerância como a “virtude de todo ser

frágil, destinado a viver com seus semelhantes” (ALMEIDA, 2010, p. 177). O

homem, para Romilly, é limitado por seus erros e paixões, de forma que é

necessária tolerância para que sejam restabelecidas a ordem e a prosperidade.

Ninguém deve ser submetido a opiniões e julgamentos alheios, afinal, a evidência

é relativa: “o que é evidente para um é frequentemente obscuro para outro”

(ALMEIDA, 2010, p. 178). Romilly defende a separação entre Estado e Igreja,

entre magistrado e religioso.

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3669

Locke, em seus escritos acerca do tema, se apega a uma máxima cristã

que se contrapõe à intolerância: o indivíduo não deve fazer aos outros o que não

gostaria que fizessem consigo (SANTOS, 2006, p. 240). A tolerância está, para o

inglês, de acordo com a razão e com o Evangelho. Não merecem tolerância, no

entanto, os ateus, pois, na sua visão, eles são incapazes de cumprir o dever

político ou respeitar as leis de convivência, ambos ligados estreitamente à crença

em Deus.

Quando se discute acerca de tolerância, Bayle destaca-se por apresentar

argumentos não ligados às Escrituras, mas ancorados na razão e na preocupação

com o outro. Todo homem deve obedecer à sua consciência, afastar o

preconceito e a superstição. O poder político, para o francês, deve ser forte e

assegurar a convivência harmoniosa e pacífica de todo credo – inclusive o dos

ateus32 –, mesmo que haja a predominância de um deles (SANTOS, 2006).

Também Montesquieu é um dos grandes filósofos que abordou o conceito

de tolerância. Tolerar está intimamente ligado à virtude política secularizada, à

“aceitação de um mundo cada vez mais plural, múltiplo e diverso, de outro”

(SANTOS, 2006, p. 235). Dois são os fatores basilares da tolerância: um no

campo pessoal – “abertura à diversidade e à diferença” – e outro no institucional –

“a garantia do poder instituído à mesma diferença” (SANTOS, 2006, p. 235).

Tolerância, assim, é, ao mesmo tempo, modo do indivíduo viver e expressão do

poder político instituído. O conceito foi deslocado do campo moral para o público.

Os limites à tolerância, para Montesquieu, são a barbárie, o despotismo e a

própria intolerância, pois “apresentam características irracionais, que vão contra a

dignidade humana” (SANTOS, 2006, p. 299).

Importa alinhavar que, na contemporaneidade, a tolerância não deve ser

tratada como “uma condescendência indiferente”, como já foi interpretada, e sim

como “um respeito às diferenças dos outros, à liberdade de consciência dos

32Bayle acredita que a religião não estabelece relação de causalidade com a moral. Da mesma

forma, a irreligião não se liga, indiscutivelmente, com a imoralidade. Assim, e em contraposição a Locke, Bayle afirma que os ateus podem ser moralmente virtuosos e obedecer às leis institucionais da sociedade, já que há separação entre a vida moral e a religião. Aliás, o ateu pode ser mais virtuoso que o crente, na medida em que este apenas obedece a determinados preceitos para não ser punido por Deus. Já o ateu, livre desse temor, e longe dos interesses de recompensas após a morte, age de forma desinteresseira e virtuosa (SANTOS, 2006).

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3670

indivíduos, à paz social e à vida política” (SANTOS, 2006, p. 266). Pressupõe

coexistência pacífica das mais diversas religiões e da multiplicidade humana no

espaço público.

Enquanto a tolerância religiosa se pauta no respeito às diferenças e

liberdades, o fundamentalismo, pela sua essência, trilha um caminho diferente – e

esse é um ponto que merece atenção. A base do fundamentalismo religioso é a

adesão a uma verdade. Vasconcellos (2008, p. 15) assevera que próprio conceito

do fundamentalismo “poderia ser pensado na relação com a intolerância diante de

quem compreende possuir e viver outra percepção dessa verdade”. Mas qual a

gênese, os princípios e traços do fundamentalismo religioso, em confronto com o

conceito de tolerância?

2.2 A intolerância intrínseca ao fundamentalismo religioso

A expressão “fundamentalismo”33 foi cunhada pelo protestantismo nos

Estados Unidos no final do século XIX e início do século XX, em oposição à

modernidade científica. Embora o termo tenha surgido com os protestantes,

também são perceptíveis as características fundamentalistas no catolicismo34, em

reação à Reforma Protestante.

33 É importante ressaltar uma divergência na literatura acerca do vocábulo

fundamentalismo. Alguns, a exemplo de Ivo Pedro Oro e Jürgen Moltmann, citados por Vasconcellos (2008), acreditam que o fundamentalismo foi criado, estruturado e exerce influências apenas no protestantismo estadunidense, de forma que não se deve ampliar o conceito para outras formas de religiosidade. Em sentido semelhante, a Ação dos Cristãos pela Abolição da Tortura – ACAT (2001) utiliza o termo integrismo para se referir ao fundamentalismo católico. Neste trabalho, entende-se que, embora a gênese do fundamentalismo religioso tenha, sido o protestantismo, há duas marcas importantes que se encontram em outras expressões religiosas: “a defesa da verdade religiosa contra o que é percebido como perigos da Modernidade, traduzidos em historicismo, subjetivismo, socialismo”, e a relação entre religião e política (VASCONCELLOS, 2008, p. 38-40). Isso não quer dizer que as expressões cristã, judaica e islâmica se equivalham, mas apenas que possuem traços comuns.

34 No século XIX, os Papas Gregório XVI e Pio IX insurgiram-se contra o liberalismo e o que entendiam como malefícios da modernidade, marcando distância entre a Igreja Católica e o mundo. As expressões fundamentalistas católicas se dão com maior intensidade no interior da própria instituição eclesial (VASCONCELLOS, 2008, p. 75): o grande temor é o aggiornamento (“atualização”) da Igreja, uma conciliação entre catolicismo e mundo moderno.

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3671

Pelo fato de o tema estar mais afeto ao protestantismo, mesmo que o

fundamentalismo esteja presente em todas as religiões, de uma forma ou de

outra, com maior ou menor intensidade (GOUVÊA, 2012), este trabalho dará mais

enfoque a essa vertente cristã.

Os protestantes de corrente liberal do final do século XIX, adeptos de um

evangelho social otimista em relação ao modernismo e à cultura, acreditavam que

a crença em dogmas e na inerrância da Bíblia deveria ser abandonada, como

forma de se abdicar do pretenso domínio exclusivo da verdade35. Eram sensíveis

ao estudo crítico das Escrituras: a necessidade de se datar os textos bíblicos,

situá-los no tempo e espaço em que foram escritos, identificar seus autores,

atentar-se para o equívoco de se interpretar a Bíblia de forma literal. Os estudos

críticos, muito em voga no século XIX, “apontavam que certas afirmações

bíblicas, tomadas literalmente, seriam simplesmente ‘falsas’. Era preciso,

portanto, relevar o aspecto mítico dos textos e destacar seu sentido moral”

(VASCONCELLOS, 2008, p. 23). A teologia e, em consequência, a compreensão

da Bíblia, mais uma vez sofria impactos do racionalismo e do empirismo.

Os conservadores reagiram a esse posicionamento com “horror e

impiedade” (VASCONCELLOS, 2008, p. 22 e 24), travando um combate ante o

que denominaram de perigo liberal. A partir de 1883, teólogos protestantes

britânicos, estadunidenses e canadenses36 se mostraram ativos tanto no combate

à crítica superior como na defesa do criacionismo bíblico. Em 189537 foram

estabelecidos fundamentos, ou princípios do protestantismo conservador, um

marco na afirmação do movimento fundamentalista.

35 Na contramão da cosmovisão fundamentalista, a tolerância implica na “contínua

construção de uma identidade coletiva, que não pode jamais pretender ultrapassar sua própria particularidade e por isso não pode pretender ser válida para todo sempre” (BIGNOTTO, 2004, p. 77).

36 Dentre eles Dwight Moody (1837-1899), William Bell Riley (1861-1947) e Lyman

Stewart (1840-1923). 37 Mais ou menos na mesma época, em 1907, o Papa Pio X promulgava a Encíclica

Pascendi domini gregis (Apascentar o rebanho do Senhor), em razão de seus temores quanto à secularização, intensificando a intransigência do catolicismo (VASCONCELLOS, 2008).

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3672

Um desses princípios é a infalibilidade das Escrituras. Para os

fundamentalistas, os textos sagrados foram inspirados por Deus, e cada letra

revela a verdade. A Bíblia, norma de fé e de prática, é infalível. Outro fundamento

é o da divindade de Jesus Cristo, que foi gerado por uma virgem, Maria, sem que

tivesse a participação de um homem na concepção. Jesus, ao ser crucificado,

remiu os pecados da humanidade por meio do sacrifício expiatório, mas ressurgiu

dos mortos e voltará a reinar após o final dos tempos – uma visão apocalíptica do

mundo. De acordo com esses fundamentos protestantes conservadores, a

modernidade38 não traz nada senão destruição e o afastamento de Deus, sinais

da Grande Tribulação e da segunda vinda do Messias.

O espírito e a teologia fundamentalistas foram espalhados para

reconquistarem primeiro os Estados Unidos, e logo todo o mundo, e encorajá-los

a resgatarem suas matrizes cristãs. “O clima era de preparação para a guerra,

não apenas para ‘defender a fé’, mas também para ‘compor uma frente unida e

ofensiva’ com vistas a ‘lutar pelos fundamentos da fé’” (VASCONCELLOS, 2008,

p. 32). O termo fundamentalista foi então cunhado para designar aquelas

pessoas, pastores, presbíteros e professores conservadores americanos de todas

as denominações protestantes históricas que, em nome dos “fundamentos,

organizaram-se para defender a fé cristã do que entendiam como invasão do

liberalismo em seus seminários e igrejas”. (VASCONCELLOS, 2008, p. 32)

Vasconcellos (2008, p. 34) explica que, uma das formas que os

fundamentalistas protestantes da época encontraram de interferir na identidade

da nação estadunidense foi exercer influência39, por vezes agressiva, nos âmbitos

social e político em favor de motivações evidentemente religiosas. Não bastava

38 É interessante a observação de Vasconcellos (2008, p. 41): “[...] o fundamentalismo é

um filho indesejado da Modernidade, que a contesta e por ela se vê rejeitado”. Essa consideração é sagaz na medida em que exibe um paradoxo: embora o fundamentalismo oponha-se à modernidade, ele apenas foi concebido em razão dela.

39 Vasconcellos (2008) destaca que um dos maiores veículos usados à época para a propagação dos ideais fundamentalistas era os meios de comunicação de massa. Esses meios de evangelização são ainda correntes na atualidade. Diversas estações de rádio e de televisão, a exemplo da Rede Record, TV Canção Nova, Vinha FM e Rádio Catedral FM, são destinadas a um público cristão, e as palavras ali ministradas mantêm ligação estreita com aquelas do início do século XX.

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3673

que a verdade pregada se circunscrevesse ao âmbito subjetivo – era preciso que

a base religiosa de toda a sociedade fosse recuperada.

O movimento fundamentalista dos séculos XX e XXI muito se aproxima do

fundador. Gouvêa (2012, p. 35) conceitua o fundamentalismo contemporâneo

como “uma forma fanática e neurótica de religiosidade” 40 que luta contra “forças

espirituais maléficas”, tais como a ciência moderna, o humanismo, a reflexão

crítica, a consciência sócio-política e econômica, a arte, ou qualquer outra ideia

que exprima novidade.

Entendidas as raízes do termo, convém explorar as convicções

fundamentalistas cristãs contemporâneas, a fim de que se possa entender o

porquê de Soares e Vasconcellos (2008) haverem traçado um paralelo entre

intolerância, fundamentalismo e a defesa de uma única verdade.

Uma das características do fundamentalismo do século atual é a rejeição

da hermenêutica, ou, como os estadunidenses do século passado e final do

retrasado denominavam, a inerrância da Bíblia41. Esse traço leva ao culto da

verdade singular42. Pode-se mencionar, como um exemplo desta forma de

compreender as Escrituras, o rechaço às teorias modernas que explicam o

surgimento da vida, em especial a darwinista, em razão de confrontarem o

criacionismo do livro de Gênesis. Para os fundamentalistas, qualquer

entendimento da Bíblia, que não o literal, é condenado. As Escrituras são tidas

como atemporais, desatreladas de um contexto histórico específico sob a qual

foram concebidas e indicam valores de uma sociedade que devem servir de

modelo para os dias atuais.

40 Silva, C. (2007, p. 39), muito embora reconheça que “fundamentalismo e fanatismo

estão sempre de mãos dadas”, defende que a atitude fundamentalista pode ser inconsciente, e não “um problema de indivíduos com distúrbios afetivos, perturbados e intelectualmente inferiores”.

41 Vasconcellos (2008, p. 44-45) chama a atenção para duas peculiaridades do fundamentalismo católico. A primeira é que a reta compreensão da Bíblia e toda a sua liturgia, dogmática e ética foram postas pelo Concílio Vaticano I (1869-1870), sob o espírito do Concílio de Trento (1545-1563). A segunda é a “inerrância papal”, talvez mais forte que a da Bíblia.

42 A “verdade singular” varia de acordo com a vertente cristã: os católicos se julgam representantes da “Igreja de Cristo”, e os protestantes acreditam que são os únicos herdeiros do Reino dos Céus.

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3674

A respeito dessa característica fundamentalista é saudável que se faça um

paralelo com outra vertente da teologia. Muitos estudiosos contemporâneos das

Escrituras entendem a necessidade de uma leitura anti-fundamentalista da Bíblia.

Silva, S. (2009) critica a interpretação cristã que se dá ao Torá judeu (Gênesis,

Êxodo, Levítico, Números, Deuteronômio). Para o estudioso do hebraico, a

tradução43 dos textos para o grego e o latim foi marcada por uma helenização dos

conceitos judeus, e não uma semitização do mundo greco-romano44. Também

existem diversas versões45, por vezes discrepantes, para uma mesma língua

ocidental, cada uma afinada com a corrente teológica que sustenta. Outro ponto

sério a ser considerado é o fato de que o hebraico arcaico é língua ideográfica, ou

seja, composto de sinais que sugerem ideias ao invés de sons (SILVA, S., 2009).

Em razão das traduções, ideias contidas no original acabam sendo perdidas,

alteradas ou esvaziadas de valores imprescindíveis46.

A reverência à verdade única e à visão elevada dos textos sagrados

mantém relação de causa-consequência com outra característica fundamentalista:

a rejeição do pluralismo e do relativismo. Segundo essa espécie de

conservadores, o sujeito não pode interferir na definição das Escrituras, sob pena

de se deixar levar pelas suas próprias experiências vividas, e comprometer a

verdade objetiva do texto. A multiplicidade de interpretações da doutrina coloca

em risco “sua inteireza e consistência” (VASCONCELLOS, 2008, p. 45). A razão

humana, portanto, não serve para a interpretação da Bíblia. Admitir leituras plurais 43 A respeito das traduções, Silva, C. (2007, p. 40) aponta que uma das facetas do

fundamentalismo é crer que o “mesmo Espírito que ‘ditou’ o quê e como deveria ser escrito garante que também as traduções tenham a mesma autoridade dos originais”.

44 É dizer que, quando o cristianismo, ainda visto como uma seita judaica, se expandiu para o mundo greco-romano, esperava-se que este fosse afetado pelos princípios judaicos que estavam sendo pregados. No entanto, quando os livros foram traduzidos para o grego, e depois para o latim, e por último para as línguas ocidentais, os conceitos semíticos incompreensíveis para os gregos e romanos foram adaptados, helenizados, para que os cristãos pudessem entendê-los, sacrificando-se, assim, grande parte de seu sentido original. Disso resulta que muitos dos trechos bíblicos expressam uma concepção helênica, e não judaica.

45 Tomemos por base uma divergência clássica: a Bíblia católica tem 73 livros, a protestante, 66, e a hebraica, apenas 24. Silva, S. (2009) e Pinheiro (2008) chamam a atenção para a inexistência de uma versão padrão dos textos bíblicos, mesmo os rezados num mesmo vernáculo.

46 Silva, S. (2009, p. 52) compra a Bíblia a um “grande banquete preparado para o mundo”, mas que só pode ser realmente consumido pelos que, ao menos, entendem o hebraico. “Assim, nós ocidentais, por exemplo, recebendo sua tradução literal e unilateral, podemos dizer que nos restou, deste grande banquete, apenas a sobremesa”.

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seria reconhecer e legitimar posicionamentos relativistas que ameaçam os

defendidos como fundamentais.

Aqui parece haver uma contradição do próprio sistema fundamentalista,

uma vez que mesmo a leitura dita objetiva dos textos não deixa de passar por

uma visão humana, ainda que se invoque a presença de Deus como luz dos

caminhos a serem trilhados. Parijs (1997, p. 44), quando discute acerca das

preferências dos indivíduos, afirma que, ainda que autônomas, elas dependem,

“mesmo que muito indiretamente, de fatores ‘causais’. Há preferências

pressupostas na escolha de preferências autônomas”. Conclui o filósofo belga

que não existe preferência autônoma – na verdade, a própria concepção de

autonomia corre o risco de servir de pretexto para “desqualificar arbitrariamente

as preferências de certos indivíduos” (PARJS, 1997, p. 45).

Partindo-se da premissa de que “nossas preferências afetam nossas

crenças e [que] o inverso também é verdadeiro” (MONEY-KYRLE, 1996, p. 284),

a doutrina fundamentalista é inevitavelmente afetada pelas preferências de seus

idealizadores. Essas preferências, por sua vez, não podem ser desatreladas das

vivências e das interpretações bíblicas particulares de cada um deles47. A rejeição

do relativismo e do pluralismo parece não se distanciar de um farisaísmo48 velado.

Todas essas características fundamentalistas refletem diretamente na

militância social e política49, a exemplo das campanhas da luta pela família e da

47 Romilly, acerca da tolerância, já antevia: nossos julgamentos são influenciados e

modificados por diversos fatores, como a educação, os preconceitos, os objetos circundantes, e toda sorte de causas desconhecidas, motivo pelo qual razão de ninguém pode ser tomada como regra, e ninguém deve ser submetido a opiniões e julgamentos alheios (ALMEIDA, 2010). Também, em Locke, a tese de que existem ideias inatas é repelida (SANTOS, 2006).

48 Os fariseus eram um grupo de judeus devotos à Torá que surgiu por volta do século II a.C. No Evangelho de Lucas, capítulo 18, Jesus conta a parábola do fariseu e do publicano (cobrador de impostos no Império Romano). De acordo com o texto, o fariseu, cheio de si, exaltava a si mesmo, crendo que era justo, e desprezava os outros (BÍBLIA). O termo farisaísmo, nos dias de hoje, em sentido figurado, significa hipocrisia, fingimento (DICIONÁRIO AULETE DIGITAL).

49 Dreher (2002, p. 82) afirma que os fundamentalistas cristãos, desde os primórdios, tinham a convicção de que a política deveria ser cristã. No que diz respeito à militância no espaço político, Pinheiro (2008) faz um estudo acerca da presença de protestantes na Assembleia Nacional Constituinte de 1987-1988. O mandato político passou a ser visto como algo profético, um chamado de Deus. Vasconcellos (2008, p. 64-68), no mesmo esteio, trata do reingresso do

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defesa da vida. Contudo, um dos desdobramentos da militância é a violência50.

Muitas manifestações transpuseram violência verbal e escrita para atingirem a

física: incêndio de clínicas de aborto, espancamento e homicídio de homoafetivos,

atentados terroristas, crimes sexuais. Exclusão, desrespeito, ódio, perseguição, e

demonização do outro são expressões (mas nunca liberdade de expressão!) que

estreitam os laços entre a intolerância51 e o fundamentalismo religioso.

Nesse sentido, Gouvêa (2012, p. 73-74) não duvida do caráter

preponderantemente intolerante do fundamentalismo religioso; pelo contrário:

reconhece que a história do cristianismo “é salpicada de momentos da mais

bárbara ignorância intolerante, como, por exemplo, as cruzadas medievais, as

guerras religiosas na Europa, a condenação das bruxas em Salém, nos Estados

Unidos, e mais recentemente no fundamentalismo norte-americano”.

Seguir-se-á o trabalho examinando a concepção de família trazida pelo

Estatuto da Família para evidenciar como a redação do PL, principalmente do

primeiro parecer, deixa marcas de exclusão e antimodernismo. Tal assertiva se

faz mais clara ainda após a análise do conceito de famílias plurais e

multifacetadas reconhecidas juridicamente pelo Supremo Tribunal Federal.

fundamentalista protestante na cena sociopolítica dos Estados Unidos na década de 1970, citando a agenda política de Jimmy Carter e a campanha eleitoral de Ronald Reagan.

50 Romilly já escrevia que a religião, que deveria unir os homens, tem, ao contrário, tornado-se pretexto para terríveis erros, como as torturas, muito comumente utilizadas em nome da fé (ALMEIDA, 2010). Também Bayle afirmava que a intransigência de uma religião tiraniza as outras, engendra violência e impede a tolerância no espaço comum à multiplicidade religiosa (SANTO, 2006). A maior crítica em relação ao fundamentalismo, portanto, não é o fato de discordar das ciências ou dos movimentos culturais, mas de promover “o combate acirrado e violento contra as forças que ele percebe como suas inimigas, ou inimigas de sua fé” (GOUVÊA, 2012, p. 36).

51 Como afirmado em linhas pretéritas, há um mandamento cristão em Mateus 7:12 – talvez não tão em prática hoje, mas utilizado por Locke nos séculos XVII e XVIII – que se contrapõe à intolerância: “Portanto, tudo o que vós quereis que os homens vos façam, fazei-lho também vós, porque esta é a lei e os profetas” (BÍBLIA).

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3677

3 ESTATUTO DA FAMÍLIA E SEU REPERTÓRIO DE INTOLERÂNCIA: UMA ANÁLISE COMPARATIVA COM A JURISPRUDÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

É muito comum que, ao se falar de família, se remeta ao amor, afeto,

união, tolerância. Gouvêa (2012, p. 73) afirma que esta última é “um dos frutos do

amor e, na verdade, nenhum amor é perfeito que não contenha também

tolerância para com aquele que é diferente, que age diferentemente, que pensa

diferentemente”. Para o teólogo, a tolerância é sinal do amor verdadeiro, do

colocar-se no lugar do outro.

Por tudo o que até então foi exposto, esses não parecem ser os mesmos

valores do Estatuto da Família. O Projeto de Lei, de autoria do Deputado

Anderson Ferreira (PR-PE), foi escrito considerando como legítima apenas uma

família singular, que tem caráter procriativo: um homem e uma mulher, que se

unem por matrimônio ou união estável, ou uma comunidade formada por qualquer

do pais e seus descendentes. O fato de a redação se referir sempre à “família”, à

“entidade familiar”, demonstra a intenção de se excluir o pluralismo do seu próprio

conceito. O primeiro parecer do PL, assinado por Ronaldo Fonseca (PROS-DF),

deixa claro que o critério adotado para a restrição da inteligência de família tem

relação com sua atitude religiosa52. Salientamos em linhas anteriores que o

problema não é a crença religiosa – a Lei Maior de 1988 garante o direito à

inviolabilidade de crença –, mas a forma com que é (im)posta.

Em apertada síntese, o parecer sustenta que: a) apenas uma forma de

arranjo familiar merece especial proteção do Estado, qual seja a descrita no artigo

2º do Estatuto da Família; b) o foco da família é a formação de crianças e apenas

as entidades que cumprem esse papel devem usufruir da especial proteção

estatal; c) o Constituinte53 delineou apenas três formatos de família, de forma que

52 É fato público que Anderson Ferreira e Ronaldo Fonseca são pastores evangélicos e

membros da bancada evangélica da Câmara dos Deputados. 53 Não foi de forma despropositada que o Deputado trouxe à tona o “desejo” do

Constituinte. Remetemos o leitor à obra de Pinheiro (2008), que aborda a presença marcante dos evangélicos na Constituinte de 1987-1988 nos debates acerca da

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o reconhecimento de outras configurações padece de inconstitucionalidade; d) foi

um equívoco, por parte do Supremo Tribunal Federal, a introdução jurisprudencial

dos pares homossexuais no conceito de família por meio da ADPF nº 132-RJ e

ADI nº 4.277-DF; e) o Supremo Tribunal Federal usurpou prerrogativa do

Congresso Nacional por ter criado lei ao invés de tê-la interpretado; f) as

transformações sociais e culturais acerca dos arranjos familiares já foram

atendidas pela Constituição Federal e não abarcam as famílias homoafetivas; g) é

necessário que se diferencie “família” de “relações de mero afeto”; h) o direito de

família implica em obrigações, propriedade, consanguinidade, fidelidade, pensão,

geração conjunta de novos cidadãos a partir da união entre homem e mulher; i)

as relações de mero afeto, entre elas a homossexual, já é tutelada pelas vias

contratual e testamentária; j) o Estado brasileiro foi erigido sob a proteção de

Deus: apesar de ser laico, existem valores de uma maioria absoluta de religiosos

que balizam a sociedade brasileira, e devem ser respeitados; k) se adotada por

um casal homossexual, que é uma estrutura anômala, a criança será privada

irremediavelmente do convívio com a figura do pai ou da mãe; l) ainda não se

sabe com certeza se o “homossexualismo” é um comportamento normal ou

patológico; m) novas figuras da família são como um Cavalo de Troia, e a Igreja

Católica faz bem em fechar as portas aos homossexuais.

O ideário defendido por Ronaldo Fonseca não desmente a relação

complexa que existe entre religiosidade e preconceito (ÁVILA, 2007). O Superior

Tribunal Federal54, na contramão do PL – e criticado por este –, proferiu em 2011

decisão que enaltece a proibição de discriminação de pessoas em razão de sua

orientação sexual, dá destaque ao direito à busca da felicidade e nega a

“proteção da família” e da militância em desfavor do divórcio e dos direitos dos homossexuais.

54 O Governador do Estado do Rio de Janeiro propôs Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF nº 132-RJ) em razão de sistemática negação de direitos, em especial os previdenciários, aos homossexuais por parte de dispositivos da legislação estadual fluminense e decisões proferidas pelo judiciário do Rio de Janeiro. No mérito, o autor postulou a aplicação do regime jurídico da união estável heterossexual às homossexuais, à luz da principiologia constitucional, e não de uma leitura reducionista da Carta da República e do Código Civil. Em sentido semelhante, a Procuradoria-Geral da República propôs Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI nº 4.277-DF) com vistas à declaração da obrigatoriedade de reconhecimento, no Brasil, da união homoafetiva como entidade familiar, e que possuam os mesmos direitos e deverem gozados pelos companheiros heterossexuais.

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existência de significado ortodoxo ou reducionista ao termo “família” pela

Constituição Federal. Cumpre destacar aqui que o trabalho não visa a uma

releitura da decisão do Supremo, mas ao apontamento do que a Corte interpreta

como entidade familiar.

O relator, Ministro Ayres Britto, defendeu em seu voto que o magistrado

deve aplicar o Direito segundo sua dimensão objetiva e não em atenção às

dimensões subjetivas próprias de cada um. Aqui, talvez, se encontre a primeira

divergência entre o entendimento do Supremo Tribunal Federal e o Estatuto da

Família, antes mesmo que se comece a discutir o próprio conceito de entidade

familiar: o Direito não deve ser aplicado de acordo com crenças pessoais ou em

obediência a esse ou àquele viés partidário. Ayres Britto critica a postura

conservadora, que se incomoda quando as preferências55 alheias não

correspondem ao padrão heterossexual. As uniões homoafetivas, que se

caracterizam por sua durabilidade, continuidade e anseio de constituição de

família, devem ser juridicamente reconhecidas como núcleo doméstico

socialmente ostensivo. Britto descarta o caráter patrimonial das relações, assim

como eventual caracterização de mera sociedade de fato, e evoca a aceitação e

experimentação do pluralismo sócio-político-social.

O Ministro chega, então, à tentativa conceitual de família. A primeira

observação é a de que apenas à família foi dada especial proteção pelo Estado –

e esse dado é contumazmente repetido na redação primeiro parecer do PL – em

razão de ser a principal estrutura de concreção de direitos fundamentais. Esse

fato é uma das justificativas para a dilatação da conceituação jurídica de família e

da especial proteção constitucional, independente de procriação. Para o Ministro,

nada mais coerente que reconhecer a equiparação das famílias homo e

heteroafetivas.

Em relação à dualidade homem/mulher constante no artigo 226 da

Constituição, explica Britto que se dá em reverência a uma tradição sócio-cultural-

religiosa do Ocidente. Mas não só. Também foi propósito evitar hierarquia entre 55 Muito embora Ministros do Supremo tenham usado termos como “preferência” ou

“opção”, defende-se aqui a corrente de que não se “prefere” ou se “escolhe” essa ou aquela sexualidade. Seria mais adequado que se referissem a “identidade sexual” ou “orientação sexual” (NUNAN, 2003).

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homem e mulher na medida em que, não raro, a mulher que vive em regime de

companheirismo é discriminada. Não se faz referência a uma homo ou

heteroafetividade, sob pena de tornar a Constituição ineficaz.

O Ministro Luiz Fux também apresentou seu voto. Aduz primeiramente que

a verdadeira questão não é se as uniões homoafetivas são amparadas pela

Constituição (sabe-se que sim), mas qual o tratamento jurídico a ser dispensado a

essas uniões: o mesmo que às heteroafetivas, entre homem e mulher? Afirma

que a proteção constitucional da família não se deu com vistas à preservação do

modelo tradicional, pois, se assim se concebesse, haveria um

“amesquinhamento” de direitos fundamentais. Fux entende que uniões

homoafetivas se incluem no conceito de família. A ordem moral a ser considerada

é que todos são iguais, e devem ser tratados com o mesmo respeito e

consideração – a imposição de uma moral pré-estabelecida ou determinada visão

de mundo constitui-se em afronta ao indivíduo.

A Ministra Cármen Lúcia, quando de seu voto, exarou o entendimento de

que a realidade das uniões homoafetivas é componente do quadro social

contemporâneo. Reconhece que, contrariamente ao que afirmou Ayres Britto, a

referência à dicotomia homem/mulher no § 3º do artigo 226 da Constituição

Federal não remete a uma superação da histórica hierarquização dos sexos: as

discussões na Assembleia Constituinte de 1987-1988 deixam claro que as razões

foram outras56. A referência expressa à dicotomia, no entanto, ao ver de Cármen

Lúcia, não impede que a união possa a ser formada por pessoas de mesmo sexo.

O voto seguinte foi proferido pelo Ministro Ricardo Lewandowski. Argúi que

não há como enquadrar a união homoafetiva nas espécies de família delineadas

pela Carta da República, já que essa não era a vontade do Constituinte. Cita

trechos que, conforme nos havia avisado Pinheiro (2008), evidenciam os

trabalhos da bancada fundamentalista para que a união homoafetiva fosse

excluída do conceito de família. Lewandowski, no entanto, sente a necessidade

de se reconhecer as uniões de pessoas do mesmo sexo, mas segundo

parâmetros de outra entidade familiar, uma quarta espécie, que não as já

56 Remetemos mais uma vez aos estudos de Pinheiro (2008).

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abarcadas pela Constituição. Segundo o entendimento do Ministro, o rol que

apresenta o artigo 226, § 3º, da Lei Maior, é exemplificativo, e não taxativo. Nada

impede, assim, que as uniões homoafetivas possam integrá-lo, contanto que sob

a roupagem de uma outra entidade familiar (“união homoafetiva estável”) não

idêntica à união estável heteroafetiva, mas que se coloca ao lado dela,

juntamente com o casamento e as famílias monoparentais.

O Ministro Joaquim Barbosa votou em sequência. Indaga se o silêncio da

Constituição a respeito da união homoafetiva deve ser interpretado como

indiferença e banimento dessa espécie de família. Todavia, chega à conclusão de

que o rol de direitos fundamentais não se esgota nos exemplificados no texto

constitucional, e, dentre eles, destaca o da vedação de discriminação.

Reconhecer as uniões homoafetivas é imperioso, de acordo com Barbosa, não

em razão do artigo 226, § 3º, da Carta da República, mas de todos os dispositivos

que protegem os direitos fundamentais.

O Ministro Gilmar Mendes, em seguida, consignou em seu voto que a

ausência de regulamentação normativa específica acerca das uniões

homoafetivas importa em insegurança jurídica e prejuízo no reconhecimento de

direitos dos indivíduos. Após uma exegese no que tange ao direito comparado,

afirma que o assunto está afeto ao reconhecimento do direito de minorias, de

direitos humanos e fundamentais básicos. Entretanto, uma simples “leitura

interpretativa alargada” do artigo 226, § 3º, do texto constitucional importaria em

equívoco concernente à devida técnica interpretativa. Mendes não recomenda a

singela equiparação irrestrita da união de pessoas do mesmo sexo à de sexos

diferentes, em vista do tumulto que poderia ser causado pelos efeitos que a

decisão teria em outros tantos ramos jurídicos. Por fim, limita-se ao

reconhecimento da existência da união homoafetiva, que deve ter um modelo de

aplicação de proteção semelhante à união estável heterossexual.

O Ministro Marco Aurélio exarou, em seu voto, que, ao se decidir acerca do

impasse, o Supremo Tribunal Federal não transborda os limites da atividade

jurisdicional. Marco Aurélio aborda temática de suma importância essencial: a

influência da moral no Direito. Em sua visão, razões de cunho moral ou religioso

não devem preponderar em todas as esferas, nem mesmo orientar o tratamento

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dispensado a direitos fundamentais pelo Estado, sob pena de ofensa à laicidade

estatal e à liberdade religiosa. Segundo seu voto, houve uma reformulação e

pluralização do conceito de família, consubstanciada na superação de

determinados costumes e convenções sociais. Família deve ser compreendida

como construção social. Para o Ministro, é mister que a união homoafetiva seja

reconhecida como regime familiar equiparado àquele das uniões estáveis

heteroafetivas.

O penúltimo votante, Ministro Celso de Mello, iniciou analisando a história

da repressão e persecução aos crimes de sodomia em Portugal e colônias. Os

homossexuais, aponta, foram perseguidos pelas autoridades seculares e

eclesiásticas da época, reflexo da forte influência do Concílio de Trento. Vê no

rompimento de paradigmas históricos e culturais forma de se reconhecer o direito

à orientação sexual e a legitimidade das uniões homoafetivas como entidade

familiar. No entender de Celso de Mello, os princípios que regem a Constituição,

dentre eles o afeto, constituem-se um sistema que busca a inclusão, e não a

exclusão. O regime democrático, assevera o Ministro, não tolera nem admite

opressão da minoria pela maioria. Assim sendo, o § 3º do artigo 226 da Lei Maior

não é óbice para o reconhecimento das uniões homoafetivas.

Por fim, se manifestou o Ministro Cézar Peluso, então Presidente do

Supremo Tribunal Federal, em prol do reconhecimento das uniões homoafetivas

como entidade familiar, uma vez que nenhum dispositivo constitucional assim o

veda.

O que diferencia, afinal, as duas posições discutidas? O Supremo Tribunal

Federal acredita que a concepção de família envolve, ao mesmo tempo, aspectos

subjetivos, sociais, culturais e espirituais, e não unicamente biológicos. A família,

para os Ministros, não se limita a formalidades cartorárias e civis, nem a liturgias

religiosas ou deveres de procriação. Antes, envolve intimidade, carinho,

confiança, amor, solidariedade, comunhão, identidade, tolerância57. Essa é uma 57 Ministro Ayres Britto: “Afinal, é no regaço da família que desabrocham com muito

mais viço as virtudes subjetivas da tolerância, sacrifício e renúncia, adensadas por um tipo de compreensão que certamente esteve presente na proposição spinozista de que, ‘Nas coisas ditas humanas, não há o que crucificar, ou ridicularizar. Há só o que compreender’”. (BRASIL, 2011)

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grande contrariedade entre as visões de família talhadas pelo PL e pela Suprema

Corte. Embora o Evangelho pregue o amor abrangente, a misericórdia indistinta

de Deus e o diálogo (AÇÃO DOS CRISTÃOS PELA ABOLIÇAO DA TORTURA,

2001), a bancada evangélica fundamentalista adota o entendimento reducionista

de família, destituído de vínculos afetivos e de mútua assistência. A família é vista

como instituição erigida sob a proteção da propriedade e a procriação,

desapegada de valores como empatia, afetividade, propósito de felicidade,

Ministro Luiz Fux: “Deveras, os únicos fundamentos para a distinção entre as uniões

heterossexuais e as uniões homossexuais, para fins de proteção jurídica sob o signo constitucional da família, são o preconceito e a intolerância, enfaticamente rechaçados pela Constituição [...]. O homossexual, em regra, não pode constituir família por força de duas questões que são abominadas pela nossa Constituição: a intolerância e o preconceito. [...] A pretensão é que se confira juridicidade a essa união homoafetiva para que eles possam sair do segredo, para que possam sair do sigilo, para que possam vencer o ódio e a intolerância em nome da lei”. (BRASIL, 2011)

Ministra Cármen Lúcia: “Considerando o quadro social contemporâneo, no qual se tem como dado da realidade uniões homoafetivas, a par do que se põe, no Brasil, reações graves de intolerância quanto a pessoas que, no exercício da liberdade que lhes é constitucionalmente assegurada, fazem tais escolhas, parece-me perfeitamente razoável que se interprete a norma em pauta em consonância com o que dispõe a Constituição em seus princípios magnos. [...] Tanto não pode significar, entretanto, que a união homoafetiva, a dizer,de pessoas do mesmo sexo seja, constitucionalmente, intolerável e intolerada, dando azo a que seja, socialmente, alvo de intolerância, abrigada pelo Estado Democrático de Direito. Esse se concebe sob o pálio de Constituição que firma os seus pilares normativos no princípio da dignidade da pessoa humana, que impõe a tolerância e a convivência harmônica de todos, com integral respeito às livres escolhas das pessoas”. (BRASIL, 2011)

Ministro Joaquim Barbosa: “Com efeito, se é certo que num primeiro momento bastava aos reivindicantes que a sociedade lhes demonstrasse um certo grau de tolerância, hoje o discurso mudou e o que se busca é o reconhecimento jurídico das respectivas relações, de modo que o ordenamento jurídico outorgue às relações homoafetivas o mesmo reconhecimento que oferece às relações heteroafetivas”. (BRASIL, 2011)

Ministro Celso de Mello: “Isso significa que também os homossexuais têm o direito de receber a igual proteção das leis e do sistema político-jurídico instituído pela Constituição da República, mostrando-se arbitrário e inaceitável qualquer estatuto que puna, que exclua, que discrimine, que fomente a intolerância, que estimule o desrespeito e que desiguale as pessoas em razão de sua orientação sexual. [...] Busca-se, com o acolhimento da postulação deduzida pelo autor, a consecução de um fim revestido de plena legitimidade jurídica, política social, que, longe de dividir pessoas, grupos e instituições, estimula a união de toda a sociedade em torno de um objetivo comum, pois decisões – como esta que ora é proferida pelo Supremo Tribunal Federal – que põem termo a injustas divisões, fundadas em preconceitos inaceitáveis e que não mais resistem ao espírito do tempo, possuem a virtude de congregar aqueles que reverenciam os valores da igualdade, da tolerância e da liberdade”. (BRASIL, 2011) [grifos no original]

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fraternidade, pluralismo – o que, segundo Locke, vai de encontro com o próprio

texto bíblico.

A união homoafetiva, tão açoitada pelos defensores do Estatuto da

Família, encontrou resguardo pelo Supremo Tribunal Federal, sob pena de afronta

à dignidade dos indivíduos homossexuais e da democracia. Os Ministros

concluíram que não se justifica qualquer interpretação pelo ordenamento jurídico

que afronte os direitos humanos. Já os fundamentalistas, parte de uma maioria

cristã, fustigam a possibilidade de conquistas emancipatórias aos homoafetivos,

uma vez que creem que qualquer relacionamento, que não o legado por Deus, é

pecaminoso.

Nesse momento, em vista da análise comparativa entre o conceito de

família do PL e da Suprema Corte, indaga-se: existem relações entre direitos

humanos, conquistas emancipatórias homoafetivas e fundamentalismo religioso?

Em nome do respeito aos direitos humanos, pode-se limitar a vontade da maioria?

4. FUNDAMENTALISMO, FAMÍLIA E DIREITOS HUMANOS: AVANÇOS E RETROCESSOS

Os direitos humanos podem ser compreendidos como um processo

histórico da afirmação do valor da dignidade da pessoa humana com base na

modernidade a partir de restrições à discricionariedade do governante (LAFER,

2006). Relacionam-se com “a abertura da sociedade moderna para o futuro”

(LUHMANN Apud NEVES, 2005, p. 6). A partir do século XX, direitos são

entendidos “como limites ao próprio legislador: eles tornam-se [...] princípios

constitucionais superiores, garantidos frente ao poder legislativo (e não apenas

frente a um poder autoritário) por meio de órgãos apropriados para o controle de

legitimidade das leis” (MARRAMAO, 2007, p. 5). Não há como se dissociar, como

se vê, os direitos humanos da modernidade: A modernidade, que no final do século XVIII inaugura a era das grandes declarações dos direitos humanos, nascidas na esfera ocidental, mas estendidas para o mundo inteiro (a “Declaração” de 1984, na qual nos baseamos e que foi adotada pela ONU, é “universal”), faz parte do nosso patrimônio. Estamos perfeitamente ligados a ela. Com ela, defendemos a liberdade do homem que

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integrismos e fundamentalismos negam. (AÇÃO DOS CRISTÃOS PELA ABOLIÇAO DA TORTURA, 2001, p. 7).

Também o conceito de família se tornou – ou melhor, se reconheceu –

mais abrangente a partir da modernidade e do pluralismo, decisivos para a

emancipação e reconhecimento das uniões homoafetivas em sua dignidade.

O Ministro Gilmar Mendes, na oportunidade de seu voto acerca do

reconhecimento de uniões estáveis de pessoas do mesmo sexo, enumerou

algumas tentativas de avanço legislativo em relação a essa temática, dentre elas:

a) Projeto de Lei nº 1.151/1995, proposto pela Deputada Marta Suplicy (PT-SP) -

visava assegurar às pessoas do mesmo sexo o reconhecimento de sua união

civil, com enfoque na proteção a direitos como o de propriedade, sucessão,

equiparação do/a companheiro/a do mesmo sexo a cônjuge; b) Proposta de

Emenda à Constituição nº 139/1995, de autoria também da Deputada Marta

Suplicy (PT-SP) - objetivava alterar a Constituição para incluir a liberdade de

orientação sexual e a vedação explícita ao preconceito; c) Proposta de Emenda à

Constituição nº 66/2003, levada a cabo pela Deputada Maria do Rosário (PT-RS) -

resgatava o teor da PEC nº 139/1995; d) Proposta de Emenda à Constituição nº

70/2003, apresentada pelo Senador Sérgio Cabral (PMDB-RJ) - tratava da

alteração do § 3º do artigo 226 da Constituição para o reconhecimento das uniões

homoafetivas como unidade familiar.

No âmbito internacional, não se pode deixar de mencionar a Declaração

Universal de Direitos Humanos de 1948 da ONU58, a Declaração de Princípios

sobre a Tolerância de 1995 da UNESCO59 e o Pacto de São José da Costa Rica

de 196960.

58 Declara que todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direito,

dotados de razão e consciência, devendo agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade. Todo ser humano tem capacidade para gozar os direitos e as liberdades aqui estabelecidos, sem distinção de qualquer espécie (NAÇÕES UNDAS).

59 Declara que a tolerância é o sustentáculo de direitos humanos, pluralismo, democracia e do Estado de Direito. Tolerância não se confunde com suportar a injustiça social, imposição de opiniões a outrem, ou mesmo renúncia às convicções de cada um. Pelo contrário, mas sim garantir que cada indivíduo possa escolher livremente as suas convicções e ser aceito pelos demais. Deve-se aceitar o fato de que cada ser humano se caracteriza naturalmente pela diversidade, e tem o direito de viver em paz e de ser tal como é (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA A EDUCAÇÃO, A CIÊNCIA E A CULTURA).

60 Os Estados-Partes comprometem-se a respeitar os direitos e liberdades reconhecidos e a garantir o livre e pleno exercício a toda pessoa que esteja sujeita à sua jurisdição,

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Existem, é inegável, tentativas de avanço legislativo a respeito do tema,

mas o Congresso Nacional não assume uma posição concreta em virtude,

principalmente, de uma “maioria” (moral ou lobbysta61?) que não aceita, com base

e premissas religiosas, que constituam família os casais do mesmo sexo. Falar de

união homoafetiva é, sabemos, falar de modernidade, tolerância e direitos

humanos. Mas não é falar de fundamentalismo religioso cristão ou

conservadorismo.

A Ação dos Cristãos pela Abolição da Tortura (2001, p. 41-42) conclui que

“Para um fundamentalista, a própria noção de direitos humanos é quase ímpia.

[...] Liberais, comunistas, homossexuais ou partidários do aborto são vistos como

demônios, e ir contra eles e as suas ideias é combater o bom combate”. É

incongruente imaginar que fundamentalistas cristãos proponham avanços

legislativos em matéria de família e direitos humanos.

Em face do que foi dito, conclui-se que a concepção fundamentalista de

família vai de encontro com as conquistas e avanços em direitos humanos, na

medida em que se mostra exclusivista, antiecumênica, antimoderna e fechada ao

diálogo. Os direitos humanos, de outro lado, perfilham o caminho da cidadania,

reconhecimento, pluralismo cultural e justiça. Militam em prol da proteção às

escolhas privadas e religiosas e em desfavor da discriminação e do preconceito.

Os direitos, princípios constitucionais de ordem superior, devem ser garantidos

pela soberania nacional e em conformidade com os anseios modernos.

Cumpre destacar que, mesmo que a maioria esmagadora da população e

do Legislativo se resigne à verdade cristã, tão prejudicada pelas suas variadas

traduções (SILVA, S., 2009), ainda assim os direitos humanos e fundamentais

sem discriminação alguma por qualquer motivo (ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS).

61 O jornal O Globo, por exemplo, referiu-se às bancadas parlamentares religiosas como “lobby religioso” na matéria “Dilma enfrenta lobby religioso para vetar projeto que dá assistência a vítimas de estupro”, conforme <http://goo.gl/ZriCaK>. Também o periódico Gazeta do Povo veiculou, em 2013, a matéria intitulada “Eleição de pastor para comissão expõe outro tipo de lobby setorial”, por meio da qual afirma que a eleição do deputado pastor Marco Feliciano (PSC-SP) para a presidência da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados foi fruto de articulação e influências da bancada evangélica, conforme <http://goo.gl/QqRGrB>. Acesso em: 13 abril 2015.

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3687

não poderiam se curvar a credos majoritários desrespeitosos e intolerantes62, sob

pena de obstrução da emancipação social das minorias. Citando Habermas

(2003, p. 153), o princípio do exercício do poder no Estado de Direito, como é o

brasileiro, “parece colocar limites à autodeterminação soberana do povo, pois o

‘poder das leis’ exige que a formação democrática da vontade não se coloque

contra os direitos humanos positivados na forma de direitos fundamentais”63.

Afinal, como dizia Bayle, o poder político deve garantir a convivência pacífica de

todas as crenças, mesmo que haja a predominância de uma delas (SANTOS,

2006).

Talvez um dos maiores avanços em direitos humanos no que respeita à

família seja o fato de que, a partir da desvinculação da visão ortodoxo-religiosa de

família pelo Supremo, a influência religiosa na Constituinte de 1987-1988 perdeu

força, sobretudo na sua luta ferrenha contra os homossexuais. A concepção de

família, caso observada sob a miopia do fundamentalismo cristão, corre o risco de

se tornar um retrocesso em direitos humanos. O primeiro parecer do Estatuto da

Família deixa claro que a singularidade ali defendida obsta o gozo de direito

fundamentais e da dignidade de parte da população plural que é a brasileira.

Por fim, Touraine (1999, p. 190) aponta um caminho para que essas e

outras diferenças possam conviver juntas: reconhecermos que “nossa tarefa

comum é combinar a ação instrumental e identidade cultural”. Só conseguiremos

viver juntos, continua o sociólogo francês, se cada indivíduo, não importa sua

orientação sexual, religiosidade, raça, cor, sexo, gênero, idioma, opinião política, 62 Deve-se questionar, nesse momento, se a intolerância deve ser tolerada. Para Romilly,

os limites da tolerância são a preservação da sociedade civil (ALMEIDA, 2010). De forma similar, na concepção bayliana, os limites são a compatibilidade com a ordem pública. (ALMEIDA, 2010). Em Montesquieu, não devem ser tolerados a barbárie, o despotismo e a própria intolerância, por afrontarem a dignidade humana (SANTOS, 2006). Já em Locke, não merecem tolerância os ateus, em razão de serem incapazes de cumprir o dever político ou respeitar as leis de convivência (SANTOS, 2006). A esse respeito, Bignotto (2004, p. 62-63) afirma que “Se o par necessário da tolerância é a intolerância, é preciso reconhecer que a fronteira que as separa não está dada para sempre, e que a mudança na linha de separação não é anódina”. Conclui que sempre existe um limite para o tolerável, “e ele determinará de maneira muito direta as ações que julgaremos adequadas sempre que a diferença afirmada de um grupo ou de um indivíduo se manifestar de forma agressiva”.

63 Poder-se-ia aqui aprofundar a discussão para as relações entre direitos humanos e democracia, que não é o alvo deste trabalho.

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3688

construir a si mesmo “como sujeito e se obtivermos leis, instituições e formas de

organização social cuja finalidade principal seja proteger nossa busca de viver

como sujeitos de nossa própria existência”.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Existe uma inegável ligação entre doutrinas fundamentalistas e alguns

universos políticos. A Ação dos Cristãos pela Abolição da Tortura (2001, p. 8)

bem ressalta que todo movimento religioso procura manifestar-se publicamente, e

todos têm esse direito quando se vive num Estado Democrático de Direito. “O

problema é que os integristas e os fundamentalistas apresentam-se como

detentores da verdade e querem impor suas regras de pensamento e ação a

todas as pessoas, a toda a sociedade, para o bem de todos”. Não raro, utilizam

do método da violência para conseguirem atingir seus objetivos.

No embate pelo reconhecimento de sua união como entidade familiar, os

homoafetivos confrontam a verdade reacionária e intolerante dos

fundamentalistas religiosos, que se fazem representar no Parlamento. O Estatuto

da Família é (mais) uma das demonstrações de que se pretende impor (mais)

regras de determinadas vertentes religiosas, ainda que majoritárias, a toda a

nação, mesmo que tolham direitos fundamentais.

A afirmação dos direitos humanos e seus avanços é história de luta que

muda de acordo com contextos e circunstâncias, e que “continua na ordem do dia

para quem tem a crença no valor da dignidade humana” (LAFER, 2006, p. 14). É

avessa à exclusão e à intolerância, pedras de tropeço lançadas pelo Estatuto da

Família.

REFERÊNCIAS

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3692

A QUESTÃO PENAL DO USO RELIGIOSO DA AYAHUASCA E O MULTICULTURALISMO

Rafael Ferreira Vianna

RESUMO: Sociedades contemporâneas são formadas por grupos com valores, crenças e práticas distintas, algumas delas sendo tipificadas como crime. Uma perspectiva multicultural exige uma relação dialógica de aceitação, adaptação e interação das diferenças, sendo necessário ponderar os interesses em conflito, como no caso da ayahuasca, que contém uma substância considerada psicotrópica e proibida, mas utilizada em rituais religiosos de certos grupos brasileiros. PALAVRAS-CHAVE: ayahuasca; direito penal; multiculturalismo; liberdade religiosa.

1 INTRODUÇÃO

O presente artigo abordará a questão penal do uso para fins religiosos da

ayahuasca, também conhecida como santo daime, hoasca ou vegetal, na

sociedade contemporânea multicultural.

Analisar-se-á, em um primeiro momento, a ideia de multiculturalismo, de

crime culturalmente motivado e de religião como sistema cultural, passando-se a

uma breve revisão das origens das religiões ayahuasqueiras brasileiras e de

algumas de suas cerimônias, o que revelará o significado da ayahuasca para

definir valores, costumes, modos de vida e visões de mundo no contexto cultural

desses grupos.

Na sequência, estudar-se-á os problemas surgidos com a expansão para

centros urbanos e a internacionalização das religiões ayahuasqueiras brasileiras,

o que gerou o questionamento sobre a legalidade da produção, transporte,

armazenamento e consumo da ayahuasca, uma vez que sua composição tem

como princípio ativo a dimetiltriptamina (DMT), considerada um psicoativo

alucinógeno proscrito pela a Convenção de Viena de 1971.

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3693

Por fim, serão avaliados os argumentos trazidos para se resolver o conflito

de interesses constitucionalmente tutelados entre a saúde (pública e individual) e

o direito à liberdade religiosa. A partir de uma perspectiva multicultural, tentar-se-á

refletir sobre a melhor ponderação e quais os critérios a serem utilizados para se

determinar em que casos o uso ritual-religioso da ayahuasca não deve ser

criminalizado, prevalecendo o direito à liberdade religiosa e cultural, e os limites a

serem estabelecidos.

2 MULTICULTURALISMO, DIREITO PENAL E AYAHUASCA

A globalização, entendida como o fenômeno de integração entre pessoas

do mundo todo, seja pela facilidade de locomoção, de comunicação e/ou de

acesso a informações, fez com que as sociedades contemporâneas se tornassem

multiculturais, isto é, integradas por indivíduos, grupos e valores diversos,

oriundos de todos os lugares do mundo.

Nesse cenário multicultural, alguns países, principalmente da Europa e da

América do Norte, acolhem grupos de indivíduos com tradições, costumes e

crenças próprias (cultura diferente), o que pode ocasionar conflitos com aquilo

que é comum, aceito e dominante na sociedade de acolhimento (BALLARD, 2009,

pp. 09 e ss).

É nesse contexto que ganha relevo a ideia de crimes culturalmente

motivados (VAN BROECK, 2001, p. 05), ou seja, aquelas práticas derivadas de

culturas estrangeiras que são consideradas ilegais e criminalizadas pelo

ordenamento jurídico do país que as recebe.

Partindo de um conceito de cultura etnicamente qualificada (BASILE, 2008,

pp. 05 e ss), que vem sendo adotado para os estudos das relações do direito

penal e da sociedade multicultural, apoiando-se ainda na ideia de religião como

sistema cultural (GEERTZ, 2000, pp. 87-125), parece que os integrantes das

religiões ayahuasqueiras brasileiras podem ser entendidos como um grupo étnico,

uma vez que possuem uma história específica que se esforçam para manter viva

na memória de todos os seus membros, são originários de uma região geográfica

comum, reúnem-se em torno de uma religião, mantêm a língua de origem em

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3694

seus rituais, existindo inclusive o estímulo de novos membros em países

estrangeiros a aprenderem o português, e trata-se de um grupo minoritário dentro

de uma comunidade maior, mesmo no seu Estado de origem, o Brasil.

A etnicidade específica destes grupos, para fins de classificação dentro do

campo de interesse do multiculturalismo relacionado com o direito penal

contemporâneo, é corroborada pelos indivíduos pertencentes a essas religiões se

compreenderem como integrantes de um grupo étnico específico, se autodefinindo como membros de “religiões ayahuasqueiras brasileiras”64. O

sentimento de pertença ao grupo e os laços comunitários estabelecidos são

percebidos como elementos de identificação da própria pessoa e constitutivos da

sua personalidade, existindo uma cultura própria que influencia diversos campos

da vida de cada membro.

A ayahuasca como representação do sagrado não designa tão somente a

bebida em si, mas traduz toda uma complexa rede de crenças, ideias, práticas e

relações que levam o grupo a conceber sua identidade como uma alternativa

histórica a qualquer estado nação ou grupo hegemônico existente (GROISMAN,

2004, p. 07).

Em que pese ser inviável uma total segregação dos problemas afetos à

utilização da ayahuasca por novos grupos “esotéricos new age”, por indivíduos

solitários que buscam o autoconhecimento ou a simples recreação e por grupos

de terapias ou com um viés terapêutico, não é esse o objeto de estudo do

presente artigo, sendo necessário um corte metodológico para o bom

desenvolvimento da pesquisa. Um estudo jurídico-penal sobre o uso religioso da

ayahuasca em um contexto multicultural internacional precede, por tal questão

não estar bem analisada pela doutrina e não existir consenso jurisprudencial, as

discussões de usos alternativos ou em situações religiosas não comunitárias. Da

mesma forma, não serão analisados neste estudo, por questões de delimitação

metodológica do objeto e pela irrelevância penal, os casos de uso da ayahuasca

64 O termo “religiões ayahuasqueiras brasileiras” foi cunhado, ao que tudo indica, por

Beatriz Caiuby Labate e Wladimyr Sena Araújo, em 2002, ao organizarem o livro O uso ritual da ayahuasca, passando a ser considerada a partir de então uma categoria antropológica (LABATE et al, 2008, p. 23).

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3695

em seu contexto original, ou seja, por grupos indígenas da Floresta Amazônica

(LUZ, 2009, pp. 37 e ss).

Em suma, o problema ora analisado consiste em saber como o direito

penal deve tratar (considerando crime ou não) as práticas de importação e

consumo de ayahuasca por indivíduos que pertencem a grupos étnicos-culturais

denominados “religiões ayahuasqueiras brasileiras”, minoritários no país de

acolhimento, o qual, em uma primeira análise, considera a substância consumida

um tipo de droga/estupefaciente e a criminaliza em seu ordenamento

jurídico/legislação antidrogas.

Por fim, já que questões terminológicas guardam especial relevo no campo

da ayahuasca (GROISMAN, 2004, p. 06) é necessário esclarecer que: i) adotou-

se a palavra “ayahuasca”, mesmo ciente de que a simples nomenclatura distinta

entre os grupos que a utilizam revela culturas e visões de mundo peculiares, por

ser o nome mais conhecido popularmente para designar a bebida utilizada nos

rituais religiosos ora estudados e mais utilizada na literatura acadêmica sobre o tema (LABATE; ARAÚJO, 2009); e ii) evitar-se-á o uso dos termos “alucinógeno”65

e “enteógeno”66, pois ambos carregam, ainda que em polos opostos, forte

conteúdo axiológico prévio de visões de mundo parciais.

3 ORIGEM, CERIMÔNIAS E RITUAIS DAS RELIGIÕES AYAHUASQUEIRAS

BRASILEIRAS

A ayahuasca, bebida considerada sagrada por algumas culturas indígenas

ancestrais da América do Sul e por alguns grupos religiosos originários do Brasil,

recebe diversos nomes, como yagé, hoasca, daime, santo daime, vegetal, cipó

dos mortos, vinho das almas, jurema, caapi, ambiwaska, natema, kamarampi

(ZULUAGA, 2009, pp. 133-134). 65O termo muitas vezes ganha uma conotação negativa, relacionada à loucura, ao delírio

e às drogas em geral, o que não caracteriza bem as experiências religiosas vivenciadas pelos seguidores das religiões ayahuasqueiras brasileiras (GOULART, 2008, pp. 251 e ss).

66 O termo enteógeno, derivado do grego antigo entheos (deus dentro), é utilizado para designar substâncias psicoativas que proporcionariam um contato com o divino (MACRAE, 1992, p. 16).

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No entanto, é pela designação derivada da língua quíchua/quéchua, idioma

dos incas peruanos e bolivianos, que a bebida ficou mais conhecida,

etimologicamente significando “aya” pessoa morta, alma ou espírito e “waska”

corda ou cipó (LABATE, 2009, p. 232).

A ayahuasca é feita a partir da mistura e decocção de um cipó,

Banisteriopsis caapi, chamado popularmente de jagube ou mariri, com as folhas

de um arbusto Psychotria viridis, conhecida como chacrona ou rainha (GAUJAC,

2013, pp. 13 e ss).

Todo ritual de preparação da bebida - que ocorre no Brasil para as religiões

ayahuasqueiras, não só por questões de clima e cultivo (GARRIDO; SABINO,

2009, p. 48), mas também por mandamentos doutrinários das igrejas, que

atendem a questões metafísicas - é considerado sagrado, consistindo na colheita

dos vegetais, limpeza das folhas, raspagem e maceração do cipó,

cozimento/decocção da mistura (que só ocorre em determinada fase da lua e em

horários definidos) e envase da bebida. Enquanto os homens manuseiam o cipó,

as mulheres, entoando cânticos, são responsáveis pelo preparo das folhas.

Ambos trabalham o tempo todo de forma ritualizada e sob o efeito da bebida

sacramental (CEMIN, 2009, pp. 360 e ss).

Hoje, sabe-se que a composição química da ayahuasca inclui o alcaloide

N-N-dimetiltriptamina (DMT), oriundo do cipó e naturalmente produzido pelo corpo

humano, a princípio pela glândula pineal, que atua em certos receptores

cerebrais, o que produz um estado de relaxamento mental com a produção de

serotonina. A enzima monoamina oxidase (MAO), no entanto, controla os níveis

de concentração de alguns neurotransmissores e metaboliza a serotonina e a

DMT antes que elas tenham um efeito psicoativo perceptível conscientemente,

mantendo-as em níveis normais (GAUJAC, 2013, pp. 11-12).

O cipó jagube contém um inibidor da monoamina oxidase (iMAO) que

impede que a referida enzima metabolize a DMT, fazendo com que ela possa

atuar no sistema nervoso central (SNC), bem como permitindo o aumento dos

níveis de concentração de serotonina endógena. Junto com isso, as folhas da

chacrona também contêm uma concentração de N,N-dimetiltriptamina (DMT),

fornecendo um incremento de tal alcaloide ao corpo humano, que somado à

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ingestão do inibidor da enzima responsável pela sua metabolização, presente no

cipó, faz com que o SNC seja afetado/alterado (GAUJAC, 2013, pp. 09 e ss).

Resumidamente, é assim que a ayahuasca produz seus efeitos no SNC,

consistindo em um psicoativo ou psicotrópico modificador ou perturbador da

atividade cerebral, o que permite estados alterados de consciência (GARRIDO;

SABINO, 2009, pp. 48-50).

Os efeitos e percepções mais comuns com a ingestão da ayahuasca são a

sensação de separação entre corpo e alma, contato com seres de uma dimensão

sobrenatural, relacionados geralmente com algo da floresta ou da natureza,

instruções auditivas sobre a vida e visão de formas geométricas e cores

(HARNER, 1973, pp. 155 e ss).

Alguns estudos psicológicos e de psiquiatria cultural, em que pese ainda

não testados em larga escala, revelam que a ayahuasca pode ter efeitos

terapêuticos para a depressão, para a síndrome do pânico e para o alcoolismo,

mas que também pode de alguma forma estimular surtos psicóticos em pessoas

com antecedentes de problemas psiquiátricos (LABATE et al, 2008, pp. 59 e ss).

Estudos médicos e bioquímicos revelam que a toxidade da ayahuasca

consiste no aumento da serotonina e da DMT no organismo humano, o que

provoca vômitos, diarreias, sudorese e taquicardia, além de alterações de

percepção em razão de seu efeito no sistema nervoso central. Algumas

interações medicamentosas e alimentares também podem ser perigosas, bem

como o uso por pessoas que sofram de hipertensão, sendo necessárias mais

pesquisas nesse campo (GAUJAC, 2013, pp. 12 e ss)67.

O uso dessa bebida por tribos indígenas, principalmente por xamãs e

curandeiros, é ancestral e imemorial, existindo pesquisas que revelam a utilização

da bebida por povos indígenas do Brasil, Peru, Bolívia, Equador e Colômbia,

consistindo em verdadeiro elo e elemento de convergência entre as culturas

indígenas da América do Sul (LUZ, 2009, pp. 37 e ss). 67 Sobre os questionamentos sobre os efeitos da ayahuasca na saúde individual, também

é interessante a leitura do Relatório Final do Grupo de Trabalho Ayahuasca, produzido pelo Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas/CONAD em 2006 e disponível em: <http://www.obid.senad.gov.br/portais/CONAD/biblioteca/documentos/327994.pdf>. Acesso em: 10 mar. 2014.

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No Brasil, a bebida é usada por tribos indígenas da floresta Amazônica,

norte e noroeste do país, lugar onde se deu o primeiro contato com a bebida por

não ameríndios, o que propiciou a sua difusão para outros contextos culturais

(GARRIDO; SABINO, 2009, p. 45).

Ao que tudo indica, foi no 1º ciclo da borracha - movimento de migração de

trabalhadores de várias regiões do Brasil, principalmente do nordeste, para o

norte do país, especificamente para a floresta Amazônica, no início da década de

1900, que se deslocavam para trabalhar na extração da seiva da seringueira,

conhecida como látex, e utilizada para fabricação da borracha (BALZER, 2009,

pp. 509 e ss) – que os primeiros não índios conheceram a ayahuasca, quando em

contato com grupos indígenas da floresta.

Os seringueiros, que adentravam na floresta para coletar o látex,

começaram a participar de rituais xamânicos indígenas em que ocorria o consumo

da ayahuasca (OLIVEIRA, 2010, p. 324). Foi em um desses rituais que o

seringueiro Raimundo Irineu Serra (1892-1971), neto de escravos e natural do

Maranhão, nordeste do Brasil, pretensamente recebeu a iluminação de Nossa

Senhora da Conceição para criar uma igreja cristã que utilizasse a bebida dos

índios, a ayahuasca (SANTO DAIME, 2014).

Foi durante a década de 1930, em Rio Branco, Acre, que Irineu Serra,

conhecido como Padrinho ou Mestre Irineu pelos seus seguidores, constituiu

oficialmente a Igreja do Santo Daime, cujo nome foi adotado em razão dos

pedidos feitos para a bebida-divina por quem a ingere - “dai-me luz, dai-me amor

e dai-me paz”. Também foi durante a década de 30 que os hinários do Santo

Daime foram “recebidos”, em rituais de ingestão da ayahuasca, por Irineu Serra,

tornando-se ponto central na liturgia da igreja (GOULART, 2009, pp. 277 e ss),

quando os fiéis entoam cânticos, bailam/dançam e ingerem a ayahuasca,

conseguindo “sair do corpo”, isto é, realizar o “voo mágico xamânico” e

supostamente ter lições espirituais.

Após a morte de Irineu Serra, em 1971, duas vertentes do Santo Daime se

criaram, uma conhecida por Alto Santo e outra conhecida como Centro Eclético

da Fluente Luz Universal Raimundo Irineu Serra-Cefluris (LABATE et al, 2008, p.

24).

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A viúva do fundador da doutrina do Santo Daime, Peregrina Gomes Serra,

conhecida como Madrinha Peregrina, manteve a igreja original (Centro de

Iluminação Cristã Universal/Ciclu-Alto Santo) funcionando na cidade de Rio

Branco, Acre, mas de forma discreta e sem pretensões expansionistas, ficando

esta vertente conhecida como Alto Santo.

A mais conhecida religião ayahuasqueira, no entanto, distinguida como Santo Daime-Cefluris68, é a linha continuada por um dos discípulos de Irineu

Serra, Sebastião Mota de Melo, conhecido como Padrinho Sebastião (1920-

1990). Após a morte de seu mestre, Sebastião Mota constituiu oficialmente, em

1974, o Centro Eclético da Fluente Luz Universal Raimundo Irineu Serra, Igreja do

Santo Daime que veio a se expandir por todos os estados brasileiros e por

diversos países estrangeiros (SANTO DAIME, 2014).

Em 1982/1983, Sebastião Mota e aproximadamente trezentos de seus

seguidores constituíram um assentamento comunitário no meio da floresta

Amazônica, batizado como Vila Céu do Mapiá, que é considerada a “Nova

Jerusalém” pelos religiosos daimistas (MACRAE, 1992, p. 74) e hoje constitui um

centro de produção da ayahuasca e de peregrinação mundial, tendo, em 2007,

aproximadamente quinhentos moradores permanentes (OLIVEIRA, 2007, p. 20).

Em 1945, Daniel Pereira de Mattos (1888-1958), após ser tratado de uma

enfermidade por Irineu Serra, com o uso de ayahuasca, criou sua própria linha

doutrinária e a batizou de Capelinha, ficando conhecida posteriormente por

Barquinha. Tendo sido membro da Marinha (GARRIDO; SABINO, 2009, p. 46) por

algum tempo e um conhecido boêmio na região de Rio Branco, Acre, Mestre

Daniel, como depois ficou conhecido, congregou diversos símbolos ligados ao

mar e à navegação aos rituais de sua igreja, bem como elementos do espiritismo

e das religiões afro-brasileiras, como umbanda e candomblé. A Barquinha, apesar

de recentemente ter inaugurado algumas filiais em outros estados brasileiros,

ficou restrita ao Acre, destacando-se pelo forte simbolismo e alegorias de suas

68 Neste artigo, sempre que for feita referência à Igreja do Santo Daime estar-se-á

tratando da sua linha Cefluris, a qual se expandiu pelos centros urbanos brasileiros e internacionalmente e que, portanto, tem maior interesse para o presente trabalho.

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liturgias, bem como pelos trabalhos de incorporação de espíritos e de

“desfazimento de trabalhos” de quimbanda (ARAÚJO, 2009, pp. 541 e ss).

Por fim, a União do Vegetal (UDV) - hoje a mais organizada, fechada e

discreta, apesar de expansionista, igreja ayahuasqueira brasileira, com

aproximadamente quinze mil participantes espalhados pelo mundo inteiro, dados

ainda de 2007 (LABATE et al, 2008, pp. 30-33) - foi fundada por José Gabriel da

Costa (1922-1971), um seringueiro baiano, em 1961, em Porto Velho, Rondônia

(UNIÃO DO VEGETAL, 2014).

Apesar dos fortes traços de grupo iniciático-discipular (GENTIL; GENTIL,

2009, p. 562), a UDV é a religião ayahuasqueira que mais tenta legitimar o uso da

hoasca, como chamam a ayahuasca, do ponto de vista médico-científico e legal.

Com uma estrutura institucional bem organizada e hierarquizada, a UDV tem um

departamento de pesquisa biomédica e farmacológica, assim como uma

comissão jurídica para permitir a sua internacionalização e expansão por países

não habituados com a cultura ayahuasqueira (LABATE et al, 2008, p. 33).

O uso da ayahuasca permaneceu restrito às regiões amazônicas do

norte/noroeste do Brasil, sem despertar qualquer interesse da sociedade como

um todo ou das instâncias formais de controle até o início da década de 1980,

quando membros/seguidores do Santo Daime e da UDV instalaram igrejas em

centros urbanos afastados da região amazônica. A partir desse momento, vários

artistas e intelectuais converteram-se às religiões ayahuasqueiras, o que

contribuiu para sua maior divulgação e expansão.

Foi em meados da década de 80 que as pesquisas bioquímicas,

farmacológicas e antropológicas sobre a ayahuasca iniciaram, despertando

também a preocupação das autoridades brasileiras com a disseminação do uso

do chá. Em 1985, em razão de a bebida conter como princípio ativo o alcaloide

DMT, considerado um psicotrópico pelas Convenções Internacionais Antidrogas,

a ayahuasca foi incluída no rol de substâncias proibidas no Brasil, sendo, logo em

seguida (menos de um ano depois), novamente excluída da lista e seu uso

religioso permitido, o que se mantém até hoje.

Com a urbanização e internacionalização da cultura religiosa brasileira da

ayahuasca, a utilização da bebida vem ganhando novos espaços, com a

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formação, por exemplo, de grupos místicos (new age e de terapias) que a

utilizam, o que aumenta a complexidade da reflexão multicultural sobre a

problemática jurídico-penal do controle do seu uso.

Por fim, é importante destacar que não se almejou com esta breve revisão

histórica das principais religiões ayahuasqueiras traduzir toda a complexidade da

cosmologia e liturgia (com forte sincretismo religioso indígena-caboclo-africano-

cristão) das religiões ayahuasqueiras brasileiras, mas buscou-se, tão somente,

contextualizar-se o ambiente cultural em que o uso religioso da ayahuasca se

iniciou e se desenvolveu no Brasil.

4 A INTERNACIONALIZAÇÃO DAS RELIGIÕES AYAHUASQUEIRAS

O fenômeno da internacionalização das igrejas ayahuasqueiras brasileiras

se deu a partir do início da década de 1990 com o Santo Daime-Cefluris e a União

do Vegetal (UDV), as duas religiões com maior número de seguidores e maior

grau de organização e institucionalização (GARRIDO; SABINO, 2009, p. 46).

Essas igrejas estão presentes hoje em diversos países da América do Sul,

nos Estados Unidos, no Canadá, no Japão e em muitos países da Europa,

destacadamente Holanda, Espanha, Alemanha e França (LABATE, 2009, p. 234).

Aparentemente, as igrejas alcançam sucesso na sua expansão, com a adesão de

novos seguidores, em razão de seu caráter “salvacionista” (GROISMAN, 2004, p.

21) e exótico, isto é, com traços de xamanismo indígena (MACRAE, 1992, p. 18).

O processo de transformação do Santo Daime e da UDV em religiões

internacionais não se deu, do ponto de vista jurídico-penal, sem impasses,

dúvidas, rupturas e conflitos. Apenas há algumas décadas, essas religiões

estavam restritas à região norte do Brasil, em um contexto cultural bem delimitado

e com controles comunitários que não despertavam maior preocupação para o

Direito.

Com a criação de centros religiosos em outros países - tema que carece de

estudos históricos mais amplos, ainda que existam alguns estudos pontuais,

como os presentes na coletânea editada por Labate e Jungaberle (2011) - alguns

membros das igrejas ayahuasqueiras começaram a transportar e ingressar em

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países onde a substância contida no chá era (ou ainda é) considerada droga

psicotrópica proscrita, diferentemente do que ocorre hoje no Brasil, país de

origem de referidas religiões, onde o uso religioso da substância é permitido.

Mesmo no Brasil o processo de legalização da ayahuasca foi conflituoso e

ainda gera interpretações jurídicas contraditórias sobre a possibilidade de sua

exportação. Ainda subsistem entendimentos jurídicos e de política-criminal

(AMARAL, 2010) de que o simples fato da ayahuasca conter como princípio ativo

a DMT enquadraria o chá entre as substâncias proibidas pelas convenções

internacionais e pela legislação brasileira antidrogas, autorizando a atuação

repressiva e a aplicação das normas penais aos que efetuem seu transporte ao

estrangeiro.

A internacionalização estendeu o debate jurídico-penal que existe no Brasil

para os países de acolhimento de brasileiros e de adeptos/seguidores das

religiões ayahuasqueiras, impondo a reflexão sobre o limite do acolhimento, a

tolerância ao diferente, o respeito a culturas diversas e a integração possível

desses grupos religiosos e de suas práticas. Claramente, seguindo a classificação

cunhada por Kymlicka (1996, p. 29), está-se diante do pluralismo cultural gerado

pela imigração e que conduz um estado a ser considerado poliétnico.

Como a maioria das questões que envolvem a integração de culturas

advindas de minorias imigrantes, a transposição da cultura ayahuasqueira para

outros países não é um fenômeno simples e que pode ficar restrito a uma análise

química-farmacológica conjugada com a dogmática penal tradicional ou de uma

superficial ponderação dos interesses em conflito (liberdade religiosa x proteção à

saúde pública e/ou repressão ao uso ilegal de drogas). O uso sacramental da

ayahuasca importa aspectos multiculturais importantes e complexos, como a

forma que o indivíduo se enxerga e como as crenças e o ethos do grupo religioso

influenciam a formação da personalidade e a criação de novos modos de vida,

indissociáveis da própria visão de dignidade que a pessoa tem de si.

A necessidade de se deslocar a ênfase da análise de questões químicas e

farmacológicas e da simples subsunção da substância presente na ayahuasca à

legislação penal para refletir sobre os aspectos culturais, sociais e psicológicos da

ingestão da ayahuasca em contexto religioso é uma das questões imperiosas que

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3703

se apresenta (MACRAE, 2009, pp. 493 e ss), pois o cenário (setting) em que se

dá o consumo de psicoativos e o controle informal que existe em um consumo

ritual sacralizado (LABATE et al, 2008, pp. 62-64) são dois dos aspectos mais

importantes a serem considerados na análise dos impactos sociais da ayahuasca

- e consequentemente da possibilidade e da necessidade de sua criminalização

ou não.

Além disso, com a internacionalização, diversos processos de

“ressignificação” e adaptação a contextos culturais diversos ocorreram,

principalmente porque muitos nacionais dos países de acolhimento passaram a

se converter às religiões ayahuasqueiras, buscando harmonizar algumas

posições e usos.

Pensando em evitar transposições de contextos ou interações culturais

inadequadas, foi organizado o 1º encontro Europeu de Centros Daimistas (I

EECD), em 1996, em Girona, Espanha. Nesse encontro, representantes daimistas

de 10 países europeus diferentes discutiram e pensaram estratégias para

estabelecer uma ortodoxia ritual-doutrinária básica/mínima e para a

institucionalização das relações das igrejas Daimistas criadas na Europa e a

central da igreja brasileira, no Céu do Mapiá, oficializando e controlando as

iniciativas pessoais e individualizadas de seguidores que se mudaram para países

europeus (GROISMAN, 2004, pp. 11-12).

Com a mesma preocupação, mas utilizando-se de estratégia diversa, a

UDV mantém-se mais discreta, como eles mesmos costumam se autoqualificar, e

busca estimular estudos científicos e a legalização e institucionalização prévia da

religião e de seus rituais nos países em que se instala (SOARES; MOURA, 2011,

pp. 284-286). Nos Estados Unidos, a UDV travou disputas judiciais para o seu

reconhecimento como instituição religiosa e para a não criminalização do uso

ritual da ayahuasca/hoasca, saindo vitoriosa em seus pleitos (BRONFMAN, 2011,

pp. 287 e ss).

Na Alemanha, por outro lado, o Santo Daime não foi inicialmente

transposto seguindo os rituais originários brasileiros, mas foi oferecido em um

contexto mercadológico de “experiência lendária e xamânica” para entusiastas

“new age” e do “esoterismo místico” (BALZER, 2009, pp. 515 e ss). No final do

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ano de 1993, chegou a ser organizado um encontro no sistema de workshop para

as pessoas curiosas experimentarem a bebida ayahuasca. Com a evidente falha

de transposição de contextos culturais, a utilização por pessoas não seguidoras

de uma doutrina religiosa, sem qualquer preparo pessoal para o uso da

ayahuasca , bem como o abandono do cenário ou estrutura sociocultural (setting)

de ritual religioso do consumo do chá, verificou-se no caso da Alemanha um

aspecto social negativo, gerando preocupação para a saúde e a ordem pública

(BALZER, 2009, pp. 525 e ss).

No entanto, o principal interesse da internacionalização para este estudo é

o fenômeno que consiste em muitos brasileiros e “convertidos estrangeiros”

passarem a viajar ao Brasil para buscarem a ayahuasca ou a armazenarem em

suas residências para o consumo posterior durante os rituais (LABATE; FEENEY,

2011, p. 10). Tais práticas passaram a ser fatos relevantes para o direito penal,

sendo alvo de ações policiais. No entanto, como dito, não basta uma abordagem

tradicional das ciências penais para esses casos, exigindo-se uma avaliação

multicultural tanto para estrangeiros quanto para nacionais convertidos, visto que

a etnicidade não se define exclusivamente por origens biológicas ou geográficas,

mas pelo modo como os indivíduos passam a integrar e se compreenderem como

pertencentes a determinado grupo minoritário que apresenta uma alternativa de

vida, de crenças, de costumes e de “interesses” não totalmente alinhados com a

cultura dominante (KYMLICKA, 1996, pp. 183 e ss).

Funcionando a religião como uma forma de sintetizar o ethos de um grupo

que compartilha certa visão de um tipo ideal de vida (GEERTZ, 2000, pp. 89-90),

entende-se que não se pode limitar o enfoque multiculturalista do direito penal

para aplicá-lo apenas ao imigrante brasileiro que se estabeleceu em um país

poliétnico. É necessária uma visão multicultural também para aqueles nacionais

que se converteram sinceramente à religião do estrangeiro, pois a integração,

quando as práticas culturais não violam direitos fundamentais, como aclara o

Professor Augusto Silva Dias (2014, pp. 15 e ss), é uma via de mão dupla, em

que existe uma relação dialógica de aceitação, adaptação e interação das

diferenças.

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Parece, assim, que as reflexões jurídico-penais em casos concretos terão

que abordar a questão do uso da ayahuasca se destinar a vivência de uma

cultura religiosa ou a uma experiência dos efeitos provocados por um psicoativo,

o que passará pela análise da tolerância com a diferença e pelo respeito ao

princípio da igualdade entre todas as pessoas submetidas às restrições das leis

antidrogas.

Contudo, como já citado, a questão da necessidade ou não de repressão

penal de usos alternativos ou recreativos da ayahuasca - em que pese margear o

assunto aqui tratado, por ser um dos corolários inevitáveis que se apresentarão a

partir do momento em que a questão do uso religioso tradicional já estiver mais

sedimentada - não pode ser tratada de forma satisfatória neste trabalho, pois

envolve temas mais amplos de política-criminal, como a própria reflexão sobre a

descriminalização do uso de drogas/psicoativos.

Atualmente, o que impele a esta análise antecedente, sequer a

criminalização ou não da ayahuasca em contexto cultural das religiões brasileiras

é pacífica em países europeus, existindo a expressa criminalização da ayahuasca

na França, por exemplo, e a tendência de aceitação de tal prática cultural em

outros países como Holanda e Espanha. Assim, para a exata compreensão do

debate jurídico-penal que ocorre nos tribunais, forçosa uma crítica dos interesses

jurídicos que se contrapõem em tais discussões.

5 COLISÃO DE INTERESSES E PONDERAÇÃO DE DIREITOS: LIBERDADE

RELIGIOSA VERSUS PROTEÇÃO À SAÚDE

As questões que envolvem a internacionalização da ayahuasca -

nomeadamente a legalidade da exportação do Brasil e a importação e uso em

países não autóctones de grupos que utilizam o chá em seus rituais religiosos -

são complexas, pois põem em conflito/colisão interesses constitucionalmente

protegidos e envolvem aspectos jurídicos no campo judicial, administrativo,

policial e legislativo.

Cada esfera formal de controle social (polícia, agência de saúde/vigilância

sanitária, órgão alfandegário, órgão político/legislador), quando estabelece uma

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3706

medida concreta de restrição à importação, transporte, distribuição e uso da

ayahuasca, realiza o seu juízo de ponderação em relação aos princípios, bens

jurídicos, valores e direitos que estão em conflito (NOVAIS, 2012, pp. 126-128),

limitando, no caso deste estudo, o direito à liberdade religiosa/de culto para

acomodar a proteção mais adequada ao interesse que avaliam como

preponderante, isto é, a proteção à saúde pública ou a efetiva aplicação da lei

antidrogas.

No entanto, em que pesem as diversas áreas que realizam em alguma

medida uma ponderação entre os interesses em conflito, evidenciando-se que

não existem direitos absolutos (MIRANDA, 2012, pp. 133-135), cabe sempre uma

última análise ao Poder Judiciário, que verifica a constitucionalidade das decisões

tomadas pelos outros poderes ou agentes públicos quando limitam direitos

fundamentais/liberdades (NOVAIS, 2012, p. 126). Com isso, nas questões que

envolvem a ayahuasca e o respeito à diversidade cultural-religiosa, acabam os

tribunais por estabelecer os caminhos a serem seguidos, os limites e os

interesses que devem prevalecer.

Portanto, um juízo de ponderação e um controle pormenorizado da

observância dos princípios constitucionais da proibição do excesso e da proibição

da proteção insuficiente (NOVAIS, 2012, p. 67) precisam ser levados a cabo,

avaliando-se as consequências de uma ou outra decisão em toda ordem

normativa e na sociedade.

A questão central deste estudo, portanto, consiste em avaliar se deve

prevalecer o direito à liberdade religiosa, especificamente a liberdade de culto,

práticas e celebração de ritos; ou se tal liberdade deve ser limitada, não se

permitindo o uso da ayahuasca, para se proteger o interesse público de

preservação da saúde pública, uma limitação aceitável (NOVAIS, 2012, p. 130) e

prevista na própria Convenção Europeia de Direitos Humanos. Está-se

claramente diante de uma colisão de interesses e bens juridicamente tutelados,

mas que no caso da ayahuasca somam-se considerações do multiculturalismo.

Assim, para se pensar o respeito à liberdade religiosa nesses casos,

necessariamente se passa pela compreensão do sistema cultural em que a

prática da ayahuasca se insere ou que constitui, sopesando-se o valor intrínseco

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3707

da própria cultura e a necessidade do ritual do uso do chá para manter a

integridade cultural do grupo com o interesse da sociedade de acolhimento em

preservar a saúde humana/individual, a saúde pública, garantir a coesão social,

organizar a constituição do espaço público e ao mesmo tempo assegurar um

pluralismo cultural e ideológico.

Para avaliar os impactos que a DMT presente no chá pode trazer à saúde

dos seus usuários e à saúde pública em geral é essencial recorrer a estudos,

pareceres e laudos toxicológicos, médicos e farmacológicos, o que muitos

tribunais vêm fazendo. No entanto, não são suficientes tais análises no caso da

ayahuasca, pois seus efeitos são condicionados pelo ambiente em que o

consumo da bebida se dá e pelo significado religioso e sacramental que

representa para quem a ingere.

Parece ideal, em casos que envolvem o consumo de substâncias

psicoativas em contexto religioso, a realização de uma perícia cultural-

interdisciplinar (DIAS, 2014, pp. 28 e ss) que avalie o contexto cultural do uso

juntamente com os efeitos toxicológicos e de impacto na saúde humana e pública.

Na ponderação ora realizada entre o direito à liberdade cultural-religiosa e

o interesse público de proteger a saúde individual e pública, parte-se da

presunção de que a ayahuasca é em alguma medida danosa ou um risco à

saúde, já que contém como princípio ativo DMT, que é prevista nas listas de

substâncias psicotrópicas da Convenção de Viena de 1971 e nas legislações

antidrogas dos países, as quais são organizadas e aprovadas por especialistas na

área da toxicologia.

No entanto, a partir dos estudos até agora realizados e da concepção de

que um Estado de Direito, democrático, liberal e plural exige o respeito à

autonomia dos indivíduos e o reconhecimento intercultural recíproco e respeitador

de direitos fundamentais, parece que os efeitos na saúde individual e pública são

insuficientes para autorizarem uma limitação à liberdade religiosa. Como visto, os

eventuais efeitos indesejados são leves, previamente informados ao usuário e a

ingestão é sempre acompanhada e gerida por pessoas que estão familiarizadas

com o consumo ritual. Em relação à saúde pública, a experiência cultural

originária, a tradição religiosa e os estudos científicos existentes até o momento

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revelam a probabilidade baixíssima de overdose e de danos, imediatos ou com a

utilização de longo prazo, que exigiriam tratamento médico ou o emprego de

recursos destinados à saúde pública.

Também não parecem existir preocupações em relação à ordem pública,

outro argumento geralmente trazido por defensores de uma aplicação rígida e

preponderante da lei antidrogas, pois a ayahuasca é utilizada por pequenos

grupos de pessoas e em um contexto cultural-religioso controlado, é produzida

em condições muito específicas e possui um caráter sagrado e não recreativo,

que faz com que sua distribuição e utilização sejam controladas/fiscalizadas pelos

próprios indivíduos que a utilizam.

Evidentemente que, diante de casos concretos específicos, é essencial a

verificação da real motivação cultural-religiosa do agente e da forma como se deu

a distribuição da ayahuasca a partir da América do Sul, de modo a se evitar a

formação de um mercado ilícito de importação e distribuição do chá (que logo

passaria a ser comandado por grupos de traficantes transnacionais de drogas),

desvinculado de qualquer fator ou interação cultural, o que por certo subverteria o

fundamento e a finalidade da proteção religiosa-cultural e a ideia de cultura cívica

comum.

Na ponderação ainda deve-se levar em conta que o uso da ayahuasca num

contexto religioso não interessa somente ao indivíduo que está sendo julgado,

mas sim a um conjunto de pessoas que compartilham visões de mundo, práticas

e costumes, formando um grupo cultural-religioso com anseios e reivindicações

comuns. Proibir essas pessoas de usarem a ayahuasca não seria privar apenas

um aspecto da vida cultural e religiosa, mas sim a própria religião e cultura. Todas

as suas práticas, costumes e concepções de mundo são em torno do consumo do

chá, principal sacramento dos grupos ayahuasqueiros. A própria identidade do

indivíduo e a forma como ele se vê no mundo relacionam-se com a prática

religiosa.

Assim, ponderados os valores e interesses que se contrapõem, para se

chegar a uma correta solução de concordância prática, como as questões

multiculturais exigem, parece que um juízo de proporcionalidade ou de controle da

observância do princípio da proibição do excesso, nos termos propostos pelo

Page 170: 44. gt - pluralismo religioso, interculturalisdade e laicidade

3709

Professor Jorge Reis Novais (2012, pp. 127-128), ainda é essencial, o que se

passa a desenvolver.

Em um juízo de controle de proporcionalidade aplicado aos casos que

envolvem a ayahuasca, o que se comparam e se avaliam são os sacrifícios ou

custos impostos ao direito fundamental da liberdade religiosa frente à vantagem

ou benefício que se obtêm para a saúde pública ao se caracterizar a posse e a

importação da ayahuasca como penalmente relevante (e vice-versa).

Uma das possibilidades é que prevaleça a proteção à saúde pública e

individual, o que implicaria um sacrifício total do direito à própria cultura e à

liberdade de culto e de religião, uma vez que as práticas rituais/de culto das

religiões ayahuasqueiras ficariam completamente inviabilizadas sem o chá;

enquanto o benefício marginal para a saúde, atingido com a criminalização da

conduta de importar e de usar a ayahuasca, seria mínimo ou de duvidoso

alcance, uma vez que o próprio dano causado aos bens jurídicos tutelados é

questionável.

Tal discrepância na aptidão da medida de prevalência do interesse público

quando comparada com o sacrifício exigido ao direito fundamental da liberdade

religiosa, em uma sociedade democrática, onde há grande peso para tal liberdade

(CANOTINHO, 2003, p. 383), ainda mais quando pensada como representativa

de direitos coletivos de manutenção da identidade cultural de um grupo, faz com

que tal medida se revele excessivamente desproporcionada e, portanto,

inconstitucional a aplicação da lei penal ao caso.

Invertendo as medidas para realizar a análise de custo/benefício ou

utilizando-se da lógica tradicional de verificação sucessiva de aptidão-necessidade-proporcionalidade69, as conclusões não se modificam.

Especificamente na análise da necessidade da incidência do direito penal ao

campo da ayahuasca para se atingir o fim buscado de proteção à saúde pública,

somado com o caráter subsidiário deste ramo do Direito (DIAS, 2009, p. 124),

evidencia-se que o poder público protegeria de forma mais eficiente a saúde

69 Método criticado por Novais (2012, pp. 129 e ss) devido ao seu subjetivismo, falta de

parâmetros objetivos e facilidade de se justificar argumentativamente para qualquer dos lados da balança.

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3710

pública com outras medidas, como de controle e acompanhamento

administrativo/sanitário da importação e uso da ayahuasca, o que não implicaria o

sacrifício completo e imediato de nenhum direito fundamental.

Ademais, não se mostra necessária qualquer afirmação positiva da norma

que busca proibir o abuso e o comércio de substâncias psicotrópicas/drogas

diante do uso religioso da ayahuasca. Os fundamentos e as finalidades/objetivos

da aquisição e uso das substâncias consideradas drogas ilegais e da bebida

ayahuasca são muito diversos, o que impede uma analogia pura e simples

apenas por um dos seus compostos químicos.

Também parece, ainda mais sob uma perspectiva multicultural,

desnecessária uma política criminal voltada aos seguidores das religiões

ayahuasqueiras, pois essas pessoas não se afastam dos valores culturalmente

universalizantes do pluralismo ideológico e do respeito à dignidade da pessoa

humana. Da mesma forma, o sentimento de pertença dos membros das religiões

ayahuasqueiras não é influenciado de maneira significativa pelo uso ritual do chá,

pois referidas religiões não impõem comportamentos de vida incompatíveis com a

chamada “cultura cívica comum” (DIAS, 2006, pp. 225-227). Assim, não há

argumentos suficientes para se justificar a intervenção penal no uso religioso da

ayahuasca, mormente porque a prática é restrita, controlada e privada, não

ofendendo bens jurídicos relevantes e não afetando de qualquer forma a ordem

pública ou a integração com diferentes culturas.

Os tribunais que já analisaram a questão se inclinam para uma apreciação

da inconstitucionalidade da aplicação da lei penal de tráfico de drogas aos casos

concretos, não chegando a fazer um enquadramento técnico dentro da dogmática

penal (VIANNA, 2014, pp. 25-32), o que poderia ser feito, se ultrapassada a

questão da constitucionalidade, a partir de uma valoração global da conduta que

caracterizasse a inexistência do sentido de ilicitude do tipo penal, uma vez que se

está diante do exercício regular do direito à liberdade religiosa.

Partindo de uma ideia jurídico-sistêmica que entende ser essencial a não

contradição entre o sistema penal e o ordenamento jurídico como um todo, o

doutrinador argentino Zaffaroni (2006, p. 472) defende que no juízo de tipicidade,

além do preenchimento do tipo objetivo e do subjetivo, também seria necessário o

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3711

preenchimento da antinormatividade, um terceiro elemento que possibilitaria a

adequação do juízo de tipicidade com a lógica sistêmica do ordenamento jurídico.

Em outras palavras, não pode uma conduta ser considerada típica se ela é

fomentada ou aceita por outros ramos do Direito, ainda mais no caso em apreço,

que se trata de um direito de liberdade constitucionalmente protegido. Assim, o

exercício regular do direito à liberdade religiosa não é uma conduta antinormativa

e, apesar da subsunção do princípio ativo da ayahuasca ao rol de substâncias

proibidas, não há ofensa material ao bem jurídico a ser protegido pela norma

penal, não estando preenchidos, portanto, os dois requisitos da tipicidade

conglobante e, assim, a própria tipicidade.

Toda apreciação acima realizada pressupõe, contudo, que se está diante

de um grupo religioso ou de um indivíduo que o integra, o que não gera maiores

discussões e dúvidas em relação às tradicionais religiões ayahuasqueiras

brasileiras, nomeadamente o Santo Daime e a UDV. O problema existe em

relação a grupos menores, não formalmente institucionalizados e que não têm

uma doutrina ortodoxa própria e acabada, mas que buscam experiências místicas

e alguma relação com o divino, como é o caso dos adeptos da “nova era” (new

age). Devem esses grupos ou até mesmo somente indivíduos, pelo princípio da

igualdade, serem protegidos pela liberdade religiosa e de culto?

A legislação de cada país pode, por certo, estabelecer requisitos para o

reconhecimento formal de uma igreja ou comunidade religiosa, mas não parece

que o direito fundamental da liberdade religiosa e de culto seja balizado por tais

exigências, servindo tal reconhecimento apenas para seus direitos serem

assegurados positivamente pelo Estado, para incentivos dirigidos a tais entidades

e para prescindir de qualquer discussão factual sobre seu caráter religioso.

Referidas exigências não afastam a possibilidade de reconhecimento no caso

concreto do caráter religioso a grupos, seitas ou movimentos, podendo tais

minorias figurarem como núcleos de direitos e interesses coletivos passivos de

receberem reconhecimento e proteção jurisdicional a fim de se assegurar o

princípio da igualdade.

Parece – pela religião ser algo íntimo de cada pessoa, por ser impossível

graduar a legitimidade de uma crença, sem partir de preconceitos etnocêntricos

Page 173: 44. gt - pluralismo religioso, interculturalisdade e laicidade

3712

ou que recorram a argumentos que tomem como pressuposto a adoção de uma

visão de mundo ser melhor do que outra, ainda que ambas sejam possíveis

quando respeitam o indivíduo, os direitos fundamentais essenciais e a chamada

“cultural cívica comum” – impossível a não adoção, em um Estado de Direito laico

e liberal, de um conceito tipológico aberto para religião, como o proposto por

Paulo Pulido Adragão (2002, p. 16), em que a presença de alguns elementos

comuns (i. crença numa realidade transcendente; ii. conteúdos de verdade extra-

racional; iii. doutrina moral a partir de certa visão do mundo e da vida; iv. culto ou

liturgia) já permitiriam o seu enquadramento neste conceito.

A adoção de tal conceituação aberta permite uma proteção estatal

fundamentada no princípio da igualdade e no direito à liberdade religiosa tanto a

grupos minoritários não institucionalizados como a indivíduos isoladamente,

desde que exista uma relação, para também não se desvalorizar o fenômeno

religioso e se permitir abusos em que seria religião tudo aquilo que se quisesse

designar por este termo, com os elementos acima referenciados. Uma perícia

cultural seria útil para verificar a sinceridade da crença e sua religiosidade

específica pelo grupo ou pelo indivíduo, o que permitiria a mesma prevalência do

direito à liberdade religiosa frente a outros interesses constitucionais.

Imagine-se um caso em que um indivíduo estudou, conheceu a cultura, as

origens, internalizou sinceramente valores relacionados com a ayahuasca, ingeriu

diversas vezes a bebida quando participou de rituais em igrejas ayahuasqueiras

institucionalizadas, que possua conhecimento do ambiente adequado e da

preparação prévia necessária para a ingestão da bebida, mas que decidiu seguir

um caminho religioso-espiritual solitário. Seria justo e respeitaria o princípio da

igualdade o Estado afirmar que ele não pratica uma religião e que, portanto, não

poderia ter assegurado o seu direito à liberdade religiosa de consumir a

ayahuasca?

Parece não ser razoável que o Estado diga que tal pessoa não terá seus

direitos relacionados à liberdade religiosa assegurados e protegidos, pois tal

limitação ao que é religião, ainda que a maioria delas congreguem as pessoas em

algum momento, não pode impor a filiação ou associação de um indivíduo a um

grupo, ainda mais no caso da ayahuasca, em que existe um suposto contato

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3713

direto com o divino e com as lições de outros “planos ou dimensões”, isto é, que

as vivências religiosas são eminentemente interiores e individuais.

Os riscos à saúde nesses casos são maiores, evidentemente, como em

quaisquer práticas religiosas/místicas individuais, como as de mortificação, jejum,

danças ou exercícios respiratórios forçados, que também podem induzir estados

alterados de consciência (HUXLEY, 2005, apêndice I). Não parece, contudo, que

isso justifique uma limitação geral prévia a todos aqueles que querem estabelecer

relações com o divino ou seguir suas religiões isoladamente.

O problema central consiste em saber se a coletividade ou o indivíduo que

realizam aquela prática revestem-na de uma natureza religiosa, podendo tal ser

determinada no caso concreto através de diversos elementos de convicção,

principalmente, como dito, pela perícia cultural.

Quando se adota um conceito aberto de religião, não há a possibilidade de

o Estado averiguar e avaliar se as crenças religiosas são legítimas ou não, se

seguem o caminho adequado e “correto” ou não, se podem atingir suas crenças e

divindades de outras formas ou não. Para se garantir o princípio da igualdade de

aplicação do Direito em relação à liberdade religiosa, deve o Estado assegurar

que todos aqueles que buscam a sua religiosidade de forma sincera, íntima e sem

afetar a liberdade de terceiros, tenham todos os caminhos e meios à sua

disposição, independente de julgamentos quanto à sua maior eficácia ou

conjugação com outras práticas ou necessidade de associação a grupos já

formalmente estabelecidos. Em suma, parece que cabe ao Estado tão somente a

verificação, para então passar a assegurar proteção, de se tratar de uma crença

religiosa e que respeita os direitos fundamentais básicos.

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Reconhecendo o multiculturalismo e com isso a necessidade de se

respeitar a diversidade cultural-religiosa aceitável (que reverencia a dignidade da

pessoa humana e se integra em uma cultura cívica comum), os tribunais de

diversos países vêm assegurando maior peso à liberdade religiosa e de culto

quando ponderado esse direito fundamental com o interesse de proteção à saúde

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3714

pública e individual, e não considerando crime a importação, o transporte e

consumo da ayahuasca em contexto ritual das religiões ayahuasqueiras

brasileiras, mesmo ela contendo o princípio ativo DMT, considerado um

psicotrópico pela Convenção da ONU de 1971.

Ocorre que a descriminalização da ayahuasca não advém de forma clara

com decisões pontuais, nem outros problemas relacionados com a sua

internacionalização são resolvidos apenas com a atuação dos tribunais penais.

Parece que a estratégia normativa brasileira, ainda que incompleta em diversos

aspectos, é a mais adequada para tratar do uso ritual da ayahuasca e de outras

manifestações culturais-religiosas que utilizem plantas que contenham em sua

composição psicoativos.

É cogente a adoção de estratégias normativas de regulação,

acompanhamento e fiscalização administrativa dos usos da ayahuasca, pois nem

é saudável para uma sociedade a limitação ou criminalização de práticas culturais

minoritárias-religiosas, nem tão pouco a sua completa marginalização das esferas

de controle e proteção estatal.

Ao se reconhecer e respeitar a prática cultural-religiosa do uso sacramental

da ayahuasca, a sociedade de acolhimento também deve adotar uma postura

positiva, protegendo as práticas de seu desvirtuamento ou descontextualização, o

que por si só, no caso da ayahuasca, seria desconsiderar o seu significado e

sentido cultural. Ao não se regulamentar a importação da ayahuasca permite-se

que uma rede internacional de tráfico de drogas se forme, marginalizando e

mercantilizando parte de uma prática cultural e religiosa ancestral.

O campo da ayahuasca é complexo e diversificado, permanecendo muitas

questões em aberto, como, por exemplo: i) se redes sociais temáticas que surgem

na internet e no Facebook podem adquirir o caráter de grupos culturais; ii) quanto

um conceito aberto de religião influenciará as manifestações religiosas pelo

mundo virtual (internet) e a busca pelo divino por si mesmo; iii) em que medida é

possível regular e conceituar religião e cultura sem impor uma nova visão

etnocentrista fundada no medo do desconhecido que o mundo virtual inflige,

representando uma amostra as práticas religiosas à distância, em que a

Page 176: 44. gt - pluralismo religioso, interculturalisdade e laicidade

3715

orientação é realizada em uma conversa/sessão de grupo pelo Skype e o envio

da ayahausca é feito pelo correio; entre tantas outras questões.

Não parece sensato, todavia, permitir que apenas se modifiquem os atores

do etnocentrismo e do desrespeito às culturas diferentes, fazendo com que as

religiões ayahuasqueiras mais tradicionais se autointitulem únicas portadoras do

“real conhecimento” e da cultura da ayahuasca e estimulem a normatização do

uso da ayahuasca para excluir do contexto religioso outras entidade menores ou

novas. Por outro lado, regulações mínimas, se possível de consenso, precisam

ser adotadas para não se perder a coesão social e o caráter religioso do uso.

Existe uma inseparável correlação e conexão entre os campos de estudos

científicos sobre a ayahuasca e as religiões, pois mudanças nos conhecimentos

bioquímicos e médicos poderão ocasionar mudanças de tratamento jurídico para

a produção, distribuição e consumo do chá. Exige-se, no entanto, um olhar crítico

mais apurado sobre referidas pesquisas, buscando-se os seus fundamentos e sua

aceitação em cada comunidade científica, pois geralmente são estudos

desenvolvidos por adeptos ou simpatizantes das religiões ayahuasqueiras ou, ao

contrário, por seus detratores convictos.

Outro aspecto importante para futuros estudos são como as decisões

jurisprudenciais influenciarão e estimularão discussões sobre o uso recreativo de

psicoativos que provocam estados alterados de consciência, o que passará pela

confirmação de seus baixos riscos à saúde e pela reflexão sobre a liberdade e

autonomia individual e o direito à autodeterminação e livre formação da própria

personalidade.

Por fim, como exigência da adoção de uma visão multiculturalista, tem-se

que aceitar uma mudança na lógica binária em que tradicionalmente se reflete

sobre o campo cultural-religioso, não sendo mais aceitáveis juízos de certo ou

errado, verdadeiro ou falso, normal ou anormal, racional ou irracional. É

necessário se compreender o sentido existencial de algumas práticas para um

grupo diferente, ponderando-se os argumentos e os julgando como aceitáveis ou

não em uma sociedade democrática plural.

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3716

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UMA LEITURA DA OBRA XINGUANA À LUZ DO MULTICULTURALISMO: A IDEIA DE ALDEIA GLOBAL E A INCLUSÃO DIGITAL COMO UMA NOVA

FERRAMENTA DE EDUCAÇÃO

Felipe Hilgert Mallmann

Luís Paulo Petersen Andreazza

Sérgio Gonçalves Macedo Júnior

RESUMO: O presente artigo é apresentado à disciplina de Multiculturalismo e Direito, do Curso de Mestrado em Direito e Sociedade, do Centro Universitário La Salle - UNILASALLE. Este estudo trata de uma leitura crítica da obra Xinguana, de Clóvis Irigaray, a partir do questionamento acerca do meio de comunicação como mecanismo de inclusão digital do povo indígena na sociedade civil. As hipóteses se apresentam através da análise da conexão entre culturas diversas pelos meios de comunicação, que remete ao conceito de inserção em uma aldeia global, representação da tolerância da sociedade civilizada à prescindível inclusão do povo indígena, bem como a inclusão digital como uma nova ferramenta de educação. O estudo tem como objetivo realizar uma leitura da obra de Clóvis Irigaray e verificar os fundamentos que permitem a inserção do indígena na sociedade civil a partir dos meios de comunicação. O método da presente pesquisa é dedutivo; quanto à natureza, a pesquisa é aplicada e, do ponto de vista de sua forma de abordagem, é qualitativa. No tocante aos objetivos, a pesquisa é exploratório-explicativa e, quanto ao procedimento técnico, é jurisprudencial e bibliográfica, com fundamento teórico no conceito de aldeia global de Marshall McLuhan, de multiculturalismo de Javier de Lucas e da cibercultura de Pierre Levy. Por fim, considerando o desiderato finalístico dos meios de comunicação, conclui-se que, respeitado o tratamento igual aos iguais e o tratamento desigual aos desiguais, a inclusão digital deve ser alcançada a todos os cidadãos como forma de cultura e de saber. PALAVRAS-CHAVE: xinguana; povo indígena; multiculturalismo; aldeia global; inclusão digital.

1 INTRODUÇÃO

O presente artigo pretende realizar uma leitura da obra Xinguana, do

artista plástico mato-grossense Clóvis Irigaray, também conhecido como Clovito,

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3721

o qual representa a gênese da pintura moderna. Irigaray deu início a sua carreira

artística em 1968, na cidade de Campo Grande, quando ainda era estudante do

curso de Direito e se voltava aos desenhos em giz pastel, com uma temática que

retratava fetos e vísceras.

No entanto, em meados de 1975, na cidade de Cuiabá, após a criação do

Museu de Arte e Cultura Popular, da Universidade Federal da Selva, passou a ter

como fonte de inspiração o índio, através da visualização e imaginação sob uma

ótica urbana. Isto porque as obras eram produzidas sem que o artista tenha

sequer visitado uma aldeia indígena até então. Porém, Irigaray reproduzia o índio

em suas obras com uma fidelidade quase fotográfica. O interesse de Irigaray pela

figura indígena se deu, inicialmente, pela sugestão de Humberto Espíndola, artista

plástico mato-grossense, criador e difusor de pinturas inspiradas na bovinocultura,

tendo influenciado na pretensão de pintar o índio como valor positivo.

Oportuno destacar que as obras de Irigaray lhe renderam, em 2013, a

nomeação como Embaixador das Artes pela Academia Francesa de Artes, Letras

e Cultura, tendo sido, inclusive, convidado a expor seus trabalhos no Museu do

Louvre, em Paris, fato este que demonstra a distinção de suas obras.

Particularmente, a obra “Xinguana”, objeto da leitura deste estudo, foi

produzida, em 1976, em pastel sobre papel, em tela de 68x73 cm e, atualmente,

faz parte do acervo da Secretaria de Estado da Cultura do Estado do Mato

Grosso. A referida obra reproduz um índio em sua canoa no rio Araguaia,

enquanto assiste a um congresso da Organizações das Nações Unidas – ONU

em uma televisão em cores. (BERTOLOTO, 2001, p. 19).

Nesse sentido, a leitura crítica da obra impõe o reconhecimento de uma

inserção cultural do índio xinguana através dos meios de comunicação, em

especial, a televisão em cores, embora se encontre no seu habitat natural, em

meio ao rio Araguaia. Essa tela é o retrato do multiculturalismo e sintetiza o

conceito de “aldeia global”, desenvolvido por Marshall McLuhan, pelo qual as

tecnologias se apresentam como meios que encurtam distâncias (os meios como

extensão do homem) e, assim, permite interligar diferentes culturas.

Ademais, destaca-se a representação da tolerância pela sociedade

civilizada - sendo prescindível a inclusão -, sem a integração da cultura indígena,

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3722

característica esta que será desenvolvida através uma análise crítica e por meio

de excertos dos estudos realizados por Javier de Lucas.

Diante disso, os meios de comunicação, em especial a internet, analogicamente à

obra Xinguana, em que o indígena é retratado assistindo o Congresso da ONU

por meio de uma televisão em cores, pressupõem inclusão e a consequente

sociabilidade dos povos, seja o indígena ou quaisquer outros povos civilizados. A

inclusão digital, por sua vez, conduz à análise de uma forma de alfabetização

digital, respeitadas as raízes culturais e a tradição dos povos, que possa vir a

conceder a todos os cidadãos o acesso às diferentes culturas e ao saber.

2 DESENVOLVIMENTO DO ARTIGO

Em sua obra Xinguana, Clóvis Irigaray retrata a figura de um índio

xinguano navegando em sua canoa em pleno rio Araguaia, envolto pela natureza

selvagem, totalmente inserido em seu habitat natural, utilizando artefatos típicos

de sua cultura e plenamente integrado ao seu ambiente, aparentando estar

absolutamente apropriado de sua identidade cultural.

O elemento instigante, na leitura da obra, é o aparelho televisor em cores

que o índio carrega na proa de sua canoa - símbolo da cultura de massa da

civilização, que contrasta com todo o paradigma de signos da cultura indígena -,

transmitindo um Congresso da ONU. A obra ilustra a conexão entre culturas tão

diversas, que é instantaneamente promovida por um meio de comunicação típico

da indústria cultural da civilização. Como um ícone do multiculturalismo, o pastel

de Irigaray remete ao conceito da “aldeia global”, desenvolvido já na década de

60 por Marshall McLuhan, teórico canadense da comunicação de massa.

Conhecido por vislumbrar a internet quase trinta anos antes de ser

inventada, McLuhan foi um pioneiro nos estudos culturais e no estudo filosófico

das transformações sociais provocadas pela revolução tecnológica do

computador e das telecomunicações. Filósofo e professor de literatura inglesa na

Universidade de Toronto, elaborou teses nos anos 60 que tornaram um dos mais

conhecidos teóricos da comunicação de massa. Ele percebeu, com sensibilidade

aguçada, duas dimensões dos meios de comunicação: seu papel referencial

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3723

como elemento fundamental da história da cultura e sua importância na crise da

sociedade contemporânea.

Criador da frase “o meio é a mensagem” para definir a influência da

televisão, entre outros meios de comunicação, no modo de pensar da sociedade

ocidental contemporânea, McLuhan elaborou suas ideias sobre os efeitos dos

meios de comunicação na sociedade: a simultaneidade das transmissões das

informações por vias eletrônicas e a uniformização do padrão com que são

divulgadas, transformariam o mundo numa grande aldeia global.

Suas formulações teóricas, as quais buscam abarcar todas as

implicações, no campo humano, daquilo que singulariza o mundo nos nossos dias

tratam da complexa rede de comunicações em que está imerso o homem na era

da eletrônica, da cibernética, da automação, que afeta profundamente a sua visão

e a sua experiência do mundo, de si mesmo e dos outros.

Nas palavras de José Salvador Faro: A primeira hipótese sobre a qual as reflexões de McLuhan se assentam é a de um novo fundamento epistêmico e metodológico para se entender a historia: para ele, trata-se de um processo cujos recortes que efetivamente indicam mudanças estruturais nas formações sociais se devem menos a ocorrências nos campos da política e da economia do que as transformações incidentes no universo da cultura em cujo âmbito estão imersos os processos e os modos de comunicação. A proposta é de uma História vista e compreendida a partir de leituras do mundo e dos efeitos culturais que as formas consecutivas que essas leituras adquiriram provocam em cada período. (FARO, 2004, p. 60).

Segundo McLuhan, as tecnologias da comunicação formam as bases dos

processos políticos e econômicos das sociedades. São as tendências assumidas

pela comunicação e seus diferentes aspectos tecnológicos que determinam as

formas da organização social. Os “monopólios do saber” determinados pela

tecnologia comandam a distribuição do poder político e entre os grupos sociais. O

poder é uma questão de controle do espaço e do tempo. Na lição de Mattelart e

Mattelart: Os sistemas de comunicação moldam a organização social porque estruturam relações temporais e espaciais. Na história, distinguem-se duas formas de mídia ou comunicação, que cedem lugar a duas formas de domínio. A primeira, ligada ao espaço [...], simbolizada pela imprensa e pela comunicação eletrônica, conduz à expansão e ao controle do território. A segunda, ligada ao tempo

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3724

[...], transmitida pela cultura oral e manuscrita, favorece a memória, o senso histórico, pequenas comunidades e formas tradicionais de poder. A primeira visa à centralização; a outra, à seu contrário. (MATTELART; MATTELART, 2003, p. 178).

O primeiro eixo fundamental que Marshall McLuhan desenvolveu em sua

obra para a compreensão da sociedade contemporânea foi o da percepção de

que os processos políticos culturais estão atrelados à tecnologia dos meios de

comunicação mais do que ao conteúdo de suas mensagens – o que gerou o seu

aforismo mais conhecido: “o meio é a mensagem”. O segundo é o que remete,

como desdobramento do papel nuclear da técnica no impasse da modernidade, à

lógica da eficácia global e da funcionalidade como elementos articuladores do

pensamento e da ação. Nesse ponto, a tese de Marshall McLuhan é a de que

mudanças nas inter-relações humanas e nas estruturas sociais que dela se

originam foram e vêm sendo promovidas e precipitadas pela evolução dos meios

de comunicação (BELTRÃO, 2006). Isto é, “as consequências determinantes que

os meios de aquisição e de manuseio da informação podem ter para uma

formação social – ideia da qual decorre o papel central da mídia ou das formas de

comunicação no processo histórico” (FARO, 2004, p. 60).

Assim, segundo Luiz Beltrão (2006, p. 60), “as invenções do alfabeto

fonético, da imprensa e dos meios de comunicação audiovisuais eletromagnéticos

marcam, uma a uma, a passagem do homem de um mundo a outro.”.

É na sua obra “A Galáxia de Guttemberg”, de 1962, que Marshall

McLuhan formula aquela que seria sua análise mais profunda e que o tornou

célebre: a ruptura que a tipografia móvel provocou na sociedade ocidental

inaugurando a modernidade (FARO, 2004). A invenção da tipografia confirma e

amplia a nova ênfase visual do conhecimento aplicado, ensejando o primeiro

utensílio uniformemente reproduzido. Era, portanto, uma forma de comunicação

ainda mais restritiva e unidimensional: os livros tornaram-se praticamente o único

meio pelo qual o saber era adquirido ou armazenado e os impressos periódicos

consistiam no meio através do qual as comunicações sofriam controle. Nas

palavras de Beltrão (2006, p. 61), “o processo tecnológico tipográfico era visual,

linear e fragmentar: as sequências formavam o padrão – uma letra após a outra,

uma palavra após a outra, um período após o outro”. Dessa forma,

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3725

estabeleceram-se as características da primeira linha-de-montagem e do primeiro

exemplo de produção em massa (BELTRÃO, 2006).

A era da tipografia, da reprodução massiva dos textos, rompia com a

tradição tribal da oralidade, da poesia da individualidade, típica das

regionalidades, das pequenas comunidades, das aldeias. A partir de então, a

informação ganhava “asas”, potencial para transpor os limites das aldeias; o novo

paradigma, destribal, da literalidade textual, do texto linear, inaugurava uma nova

tradição, do coletivismo, da padronização da informação e das dimensões não-

regionais.

Já o advento do telégrafo marcou o início da era da comunicação

eletrônica, estabelecendo, assim, uma nova ruptura, desta vez, no paradigma que

fora estabelecido a partir da invenção da tipografia. Na visão de McLuhan, a era

da comunicação eletrônica atingira seu apogeu com a televisão70, estabelecendo-

se uma nova circularidade viabilizada pela associação imagem-som, a qual

aniquilaria os mundos particulares da razão e permitiria a criação das novas

comunidades – retribal -, nas quais os espaços físicos seriam substituídos pela

ausência de um centro, o que, a partir de uma nova localização circular,

redundaria na desierarquização do saber.

Conforme disse Marshall McLuhan: Achamo-nos agora diante de uma transformação tão radical como a que se registrou na idade paleolítica para a neolítica. Estamos passando da era mecânica para a era eletrônica; de um tempo em que os instrumentos que usávamos prolongavam as nossas capacidades físicas (as rodas são um prolongamento dos nossos pés) para uma época em que os meios eletrônicos constituem um prolongamento do nosso sistema nervoso central. (MCLUHAN, 2007, p. 374).

Consoante o ensinamento de Manuel Castells (1999, p. 357) “o que a TV

representou, antes de tudo, foi o fim da galáxia de Gutemberg, ou seja, de um

70McLuhan elaborou seus trabalhos a respeito dos meios de comunicação de massa na

década de 60, quando o meio “televisão” estava ainda em pleno desenvolvimento e difusão no planeta. A internet (ARPANET) ainda estava em estágio embrionário e mantinha-se restrita ao uso militar, no âmbito do Departamento de Defesa dos Estados Unidos. McLuhan, ao desenvolver o conceito de “aldeia global”, baseou-se, então, apenas nos efeitos que percebia na utilização do meio televisão e da comunicação via satélites, prevendo, entretanto, o fenômeno que décadas mais tarde iria se intensificar no uso da internet.

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3726

sistema de comunicação essencialmente dominado pela mente tipográfica e pela

ordem do alfabeto fonético.”.

McLuhan traduziu essas quebras de paradigmas como a sucessão de

formações sociais ao longo da história que não deviam ser entendidas a partir de

suas estruturas econômicas ou por suas instituições políticas, mas sim pelo

cotidiano e pelas ordens tribal, destribal e retribal que têm, no processo

comunicacional, o eixo que explica a cultura, o que determinou uma grande

divisão entre as culturas orais e literais, ou entre sociedades pré e pós-televisão,

razão pela qual McLuhan entendia que o meio é a mensagem, não sendo o

conteúdo da informação que verdadeiramente importa, mas sua forma.

A partir, então, do novo paradigma estabelecido com a era eletrônica,

pelo meio “televisão” – o que, décadas mais tarde, seria potencializado pela

internet -, o planeta inteiro viria, segundo a “profecia” de McLuhan, a se tornar

uma aldeia global, ou seja, o mundo passaria a ter a mesma configuração, em

termos de rede de comunicação e, por conseguinte, de potencialidade de

interligação cultural, que existia, na época, em uma aldeia, em uma pequena

comunidade na qual todos os integrantes tivessem acesso natural e rápido aos

mesmos signos e informações.

O retorno à tribalidade, proporcionado pela era da eletrônica, pelo meio

televisão e pela comunicação via satélite, com o estabelecimento da nova

circularidade, alcançaria, na previsão de McLuhan, proporções tais que se

configuraria novamente o paradigma da aldeia, só que, desta vez, de uma aldeia

global.

A informação que outrora transitava tão fácil e rapidamente em uma

aldeia, viria, a partir da televisão, a se propagar com a mesma versatilidade,

porém em proporções planetárias. Estaria, assim, sendo criado o substrato

adequado para o crescimento exponencial do inter-relacionamento das culturas;

e, da mesma forma, o panorama ideal para a evidência dos conflitos

multiculturais.

Essa nova realidade, prevista por McLuhan, é retratada por Irigaray na

obra Xinguana, sob a metáfora do aparelho de televisão que conecta a cultura do

índio xinguano à cultura da civilização, incluindo um Congresso da ONU em seu

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3727

ambiente, sem contudo - note-se - incluir necessariamente a cultura indígena no

Congresso.

Vê-se, assim, nesse cenário icônico de multiculturalidade, a

representação da “tolerância”, por parte da sociedade dita civilizada, em relação à

cultura indígena, sem a necessária “inclusão”, isto é, sem a perfeita integração

das duas culturas por um processo que pressuponha a normalização da cultura

indígena.

Sobre a questão da tolerância como princípio para resolver as

dificuldades de convivência nas sociedades multiculturais, Javier de Lucas, em

seu ensaio Multiculturalismo y Cultura de Paz, assevera: A chave não é a relação entre pluralismo e tolerância, uma vinculação em que esta aparece como requisito ou condição daquele e sobretudo, da constituição da “comunidade pluralista”. O problema é, na verdade, a dificuldade de levar a sério o pluralismo, uma dificuldade multiplicada no contexto de sociedades multiculturais. [...] acontece que, entre os elementos da legitimidade democrática, este do pluralismo é o que menos se tem desenvolvido. A questão não é qual é a diferença cultural (um álibi para não dizer uma estratégia) não devemos admitir sob pena de transpassar o limite do pluralismo não suicida. A questão é porque excluímos a priori da negociação desses limites a aqueles que são diferentes culturalmente. (trad. livre) (LUCAS, 2001, 150).

Segundo Javier de Lucas (2001), o risco que se corre com a valorização

da tolerância como solução aparente para os conflitos da multiculturalidade é o

fato de, com isso, se deixar de insistir na igualdade de direitos e no pluralismo

como princípios irrenunciáveis. Assim, Lucas defende a incompatibilidade entre a

linguagem da tolerância e a dos direitos, ou seja, a irrelevância atual da tolerância

do ponto de vista jurídico e político (LUCAS, 2001). Significa dizer que respeitar

verdadeiramente os direitos de uma minoria, respeitar sua cultura porquanto

diversa, implica em muito mais do que simplesmente tolerar. A tolerância, por

mais que, em uma primeira apreciação, sedutoramente, possa parecer benéfica e

bastante para a necessidade de respeito da diversidade cultural, disfarça um

sentimento, no consciente coletivo da cultura que tolera, de que se está fazendo

uma “concessão”, uma negociação, enquanto que o multiculturalismo envolve, em

verdade, identidades constituídas de atributos e valores não negociáveis (GIANI

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3728

apud LUCAS, 2001), que reivindicam o espaço público numa situação de

igualdade, e não de “permissão”.

Portanto, Lucas (2001), defendendo a ficção da ideia de possibilidade de

uma sociedade homogênea, arrola dois princípios básicos a superação das

dificuldades de convivência nas sociedades multiculturais: a não discriminação na

condição do sujeito da comunidade política pelo pertencimento a grupos culturais

diferenciados (e minoritários) e o direito a própria identidade cultural.

E, entre os elementos principais do direito à identidade cultural, Javier de

Lucas aponta: a consideração dessa identidade cultural como requisito prévio dos direitos [...] como explica Kymlicka, quando fala da cultura como contexto de eleição e, nesse sentido, como pré-requisto para o reconhecimento efetivo de direitos individuais. Dito de outra forma, o reconhecimento jurídico dos indivíduos e os grupos minoritários não parece satisfeito apenas mediante a referência a direitos individuais, ignorando-se dimensões equivocadamente coletivas, das quais nenhuma mais evidente que a noção de identidade cultural. (trad. livre) (LUCAS, 2001, p. 131).

O não reconhecimento prévio da identidade cultural dos povos xinguanos

não viabilizou a necessária efetivação dos seus direitos individuais. Em

consonância com a tese de Javier de Lucas, pode-se inferir que a simples

“aceitação” da cultura dessa minoria por parte da sociedade civilizada – brasileira

– representou uma integração em falcete. Na realidade, contudo, os xinguanos

não foram efetivamente integrados à formação social brasileira.

A valorização da sua cultura, o seu reconhecimento como um “bom

selvagem”, enquanto reconhecimento da necessidade de sua aceitação,

mascararam, na verdade, sua própria marginalização.

Segundo José serafim Bertoloto, Tratava-se apenas de reflexos do imaginário coletivo que se desenvolveu no Brasil durante o período romântico, reforçado pelos ideais da “Marcha para o Oeste” e da “A Amazônia é Nossa”, que perdurou até os anos 80 do século passado. A partir de então, no entanto, todo esse imaginário sucumbiu diante de um novo enquadramento dos povos indígenas brasileiros, gerado pela associação de suas figuras a de um indígena não mais obediente, agora exigente, reivindicador de suas terras e de seus direitos. Os xinguanos deixariam, então, de ser vistos como amigáveis e bem vindos para passarem a ser vistos como preguiçosos, párias da sociedade que, aculturados, viviam às margens das cidades e,

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3729

literalmente, à margem da sociedade brasileira. (BERTOLOTO, 2001, p. 13).

A partir da falência desse imaginário, delineada por Bertoloto, os

indígenas xinguanos passaram a ser vistos pela sociedade brasileira por um

prisma pejorativo – com a atribuição de valores negativos -, como povos que

reivindicam direitos que não deveriam efetivamente ter e que, no máximo,

poderiam vir a receber a título de permissividade, como esmolas de tolerância,

por meio de políticas reparatórias – FUNAI – e de “concessões” preservacionistas

estabelecidas na Constituição Federal de 1988.

Sem nunca ter ido a uma aldeia indígena, Irigaray consegue, em sua obra

Xinguana, reproduzir o índio com uma fidelidade quase fotográfica, colocando-o

na sociedade de consumo. Mostra que ele vê TV no Brasil, mas não se enxerga

na TV. O aparelho televisor que navega na proa de sua canoa conota uma

“aparente” integração de sua cultura com a cultura da sociedade brasileira,

enquanto que, na realidade, essa integração não concretizada, porque a sua

identidade cultural não é efetivamente reconhecida, dado que visto como um

marginal que deve ser tolerado.

O que os grupos minoritários demandam, na verdade, não é apenas o

reconhecimento do direito a não ser discriminado. Por isso a resposta em termos

de equiparação não basta. Não é suficiente apenas a garantia da liberdade

individual negativa em relação à sua cultura marginal. É preciso o reconhecimento

da normalidade e da centralidade dessa cultura, com a afirmação do direito à

identidade cultural, à autodeterminação e ao etno-desenvolvimento, o qual, junto

aos princípios da autonomia e do pluralismo, constitui as ideias-força para o

reconhecimento efetivo das minorias.

Já alertava Manuel Castells (2003), no início da década passada, que a

internet não veio para substituir o espaço físico pelo virtual, o que levaria, como

alguns estudos atestavam no final do século passado, a uma menor interação

social e um maior isolamento social.

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3730

Ao contrário do primeiro pensamento, seu livro Galáxia da Internet

comprovou que a visão isolacionista que a internet71 poderia trazer não era bem

compreendida; que, na verdade, algumas pesquisas demonstraram que, ao invés

de segregar, a internet, muitas vezes, possibilitava uma maior sociabilidade, em

razão de que permitia (e ainda permite) a “substituição de comunidades espaciais

por redes como forma fundamentais de sociabilidade”, o que dá uma abrangência

muito maior de comunicação aos atores sociais on-line.72

De fato, um bom exemplo das possibilidades que a internet trouxe pode

ser vista na tribo dos Ashaninka, no Alto-Juruá, no Acre, assentada na divisa com

o Peru e o Brasil, onde a tecnologia foi usada como armas, substituindo os arcos

e as flechas, no combate a madeireiros Peruanos, como descreve o texto abaixo: [...] os Ashaninka entenderam que para enfrentar rivais equipados com rádios sofisticados e munição pesada era melhor apostar na

71A internet é um meio de comunicação que permite, pela primeira vez, a comunicação

de muitos com muitos, num momento escolhido, em escala global. Assim como a difusão da máquina impressora no Ocidente criou o que McLuhan chamou de “Galáxia de Gutengerg”, ingressamos agora num novo mundo de comunicação: a Galáxia da Internet.

Hodiernamente, ela é o tecido de nossas vidas. Se a tecnologia da informação é hoje o que a eletricidade foi na Era Industrial, em nossa época a internet poderia ser equiparada tanto a uma rede elétrica quanto ao motor elétrico, em razão de sua capacidade de distribuir a força da informação por todo o domínio da atividade humana. Ademais, à medida que novas tecnologias de geração e distribuição de energia tornaram possível a fábrica e a grande corporação como os fundamentos organizacionais da sociedade industrial, a internet passou a ser a base tecnológica para a forma organizacional da Era da Informação: a rede. (CASTELS, 2003, p. 7-8).

72 Apenas como reforço ao argumento acima, é valida a transcrição a seguir, retirada do site http://inclusao.wikidot.com/tribos-indigenas-na-rede: “Desde que nasceu, há 17 anos, Olinda Wanderley, ou Clairê, seu nome indígena, ouvia histórias sobre o primo Erick. Ela, na Terra Indígena Caramuru-Catarina Paraguaçu, Bahia. Ele, no bairro de Santa Cruz, Rio de Janeiro. Na primeira vez em que trocaram uma palavra, em 2004, não estavam em nenhuma tribo ou manifestação de índios: encontravam se, os dois, em frente a um computador, logados no chat do site discriminação dos brancos contra os índios, agravada pelas retomadas de terra. “Íamos até as cidades próximas para mostrar a nossa cultura. Agora, com a internet, mostramos a nossa cultura para o mundo” – explica ela. Além de textos e fotos, o site ainda mantém, desde o ano passado, o curso Arco Digital, financiado pelo programa “Novos Brasis”, do Oi Futuro, que também atua em sua gestão. Índios do Brasil participam de oficinas de cidadania, desenvolvimento e sustentabilidade, entre outras, através da internet e do trabalho de campo. “O Arco Digital é uma comunidade colaborativa de aprendizagem. Discutimos, por exemplo, o tipo de desenvolvimento que os índios querem para eles”, afirma Sebastián Gerlic, presidente da Thydewas. Olinda, lá do início da nota, é uma das participantes das oficinas. Ela não mora mais em Caramuru, mas em Palmeiras, Chapada Diamantina, onde estuda. Como o primo Erick, quer um dia voltar. O encontro dos dois ao vivo aconteceu na própria aldeia e foi o primeiro, depois de anos de comunicação por internet.

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tecnologia e na comunicação. Da aldeia foram enviados e-mails para ONGs e para o governo. As informações foram imediatamente recebidas na Presidência da República e repassadas à Polícia Federal e ao comando do Exército, que montaram uma ação para prender os invasores. Deu certo. Tão certo, que a tecnologia passou a fazer parte da vida dos índios, que hoje mantêm um blog e estão no Twitter. “Os Ashaninka descobriram uma forma de usar a internet como ferramenta de libertação. Essa prática deve ser adaptada a distintas realidades, mas sempre faz com que pessoas e comunidades possam, efetivamente, se inserir num novo mundo”, comenta Rodrigo Baggio, diretor executivo do Comitê para Democratização da Informática (CDI). Foi o Comitê que proporcionou o acesso da tribo à tecnologia [...].73

Indo além da segurança, a internet proporcionou aos índios uma

“libertação”, pois é uma ferramenta de inclusão e sociabilidade, como antevisto

por Castells (2003), onde a troca de informação facilita tanto ao aprendizado

como ao ensinamento das múltiplas culturas que rodeiam uma aldeia. Assim

demonstra a seguinte passagem: O que Benki fala é comprovado, na prática, por iniciativas como a rede Índios On Line, que conta com a parceria do Ministério da Cultura e do Oi Futuro e é apoiada pela ONG Thydêwá. Criado para ser um canal de diálogo entre tribos indígenas, o portal valoriza a diversidade, facilitando a informação e a comunicação de sete nações indígenas: Kiriri, Tupinambá, Pataxó-Hãhãhãe e Tumbalalá, na Bahia; Xucuru-Kariri e Kariri-Xocó, em Alagoas; e Pankararu, em Pernambuco. Ao se conectarem, os índios destas tribos realizam uma aliança de estudo e trabalho em beneficio de suas comunidades. “Ao facilitar o acesso dos indígenas a tecnologias de informação e comunicação estamos dando a chance deles desenharem sua inclusão social. A internet é, para eles, uma arma de emancipação, um canal de diálogo com o mundo que proporciona respeito e desenvolvimento integral”, afirma Sebastián Gerlic, presidente da Thydêwá. [...] Para quem pensa que a tecnologia pode pôr em risco a cultura indígena, a rede mostra que o caminho que tem sido seguido é o oposto. “Uma das preocupações, assim que os povos indígenas começaram a se conectar, era de que os jovens se deslumbrassem com o mundo digital. Por conta disso, começamos a pensar na internet de uma forma mais cultural, como uma mídia escrita e publicada de dentro das comunidades para o mundo. Começamos a perceber a importância de registrar

73 http://www.conexaoaluno.rj.gov.br/especiais-19a.asp

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nossa cultura e descobrimos que a internet pode reforçar muito a identidade étnica dos jovens indígenas”, conta Alex.74

Mas o uso da internet ainda não tem uma abrangência a todas as

comunidades indígenas, principalmente porque a tecnologia não chega a tribos

mais afastadas. Entretanto, diversas ONGs e programas Estatais, como o

GESAC75 do Governo Federal, acabam viabilizando o acesso a internet, o que

contribui para a inclusão digital, mas não soluciona o problema, dado que os

investimentos ainda são inexpressivos diante da efetiva demanda.

O grande desafio de nossa era é educar as pessoas para o uso da

internet (tecnologia). Ao mesmo tempo em que a internet trouxe um novo modelo

de sociabilidade, trouxe também um grande desafio para a humanidade que é,

justamente, o de incluir as pessoas nesse novo regramento de comunicação,

ensinando-as a utilizar essa tecnologia.

Trazendo para o texto que ora se desenvolve é importante lembrar que,

além da grande dificuldade de apresentar ao índio a cultura que nós conhecemos

hoje o que nós chamamos de civilidade, que se pode traduzir, por exemplo, no

alfabeto, nos números, nos comportamentos sociais, nas leis de convívio. Com a

chegada da tecnologia, o desafio é muito maior porque a civilização passa

também pela educação cibernética, que deve, da mesma forma, chegar ao

conhecimento da minoria indígena. Ou seja, além da dificuldade da própria língua,

há o problema da acessibilidade tecnológica de energia, equipamentos,

aprendizagem, estrutura governamental, circunstâncias que fazem parte de um

processo de inclusão digital.

74http://www.conexaoaluno.rj.gov.br/especiais-19a.asp 75 O programa Governo Eletrônico - Serviço de Atendimento ao Cidadão (GESAC) oferece

gratuitamente conexão à internet em banda larga - por via terreste e satélite - a telecentros, escolas, unidades de saúde, aldeias indígenas, postos de fronteira e quilombos. O GESAC é direcionado, prioritariamente, para comunidades em estado de vulnerabilidade social, em todo o Brasil, que não têm outro meio de serem inseridas no mundo das tecnologias da informação e comunicação.

Em 2013, o programa começou um processo de expansão: o Ministério das Comunicações publicou edital que triplica os pontos de conexão. O número aumentou de 13.379 pontos de presença para cerca de 29 mil. Uma das novidades é a adesão do Ministério da Saúde ao programa, conectando cerca de 13 mil unidades de saúde em todo o país.

A ação é gerenciada pela Secretaria de Inclusão Digital. (http://www.mc.gov.br/gesac)

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3733

Hoje em dia, as pessoas que não têm acesso às ferramentas e ao

aprendizado do mundo virtual são consideradas analfabetas digitais.

Historicamente, a preocupação dos homens em relação aos índios era a

preservação da cultura com o alcance das regras de civilidade dos brancos, que

os rodeavam. Pensava-se em uma inclusão “paroquial”; todavia, hoje, a

preocupação dos órgãos governamentais é praticamente de inclusão em escala

global, em razão de que a preocupação tem que ser também aquela de trazer

essas pessoas para o universo da cibercultura.

E nesse contexto, quando falamos em inclusão digital e cibercultura, o

ponto se aproxima à nova forma procedimental que o Poder Judiciário no Brasil

vem enfrentando, que é a era do processo eletrônico, onde todos os atores

jurídicos deverão passar por uma atualização, assim como os índios, talvez para

aqueles diferentemente destes, em um nível diferenciado de educação, em razão

de que o computador e a tecnologia já são mais presentes no mundo dos homens

brancos do que em culturas indígenas. Porém, de qualquer forma, deverá existir

uma inclusão desses agentes a esse novo mundo para que todos possam, de

alguma forma, ter acesso à jurisdição.

O avanço da tecnologia ainda mais atualizada como meio de acesso ao

Poder Judiciário requer uma “reflexão sobre o futuro dos sistemas de educação e

de formação na cibercultura” (LÉVY, 2005, p. 157). É necessária uma mudança

da relação com o saber, no caso a educação virtual, para que haja sempre um

processo de inclusão dos seus agentes, evitando-se, assim, uma legião de

analfabetos cibernéticos.

A problemática da implementação de tecnologia traz dúvidas quanto ao

alcance da própria Constituição Federal, como por exemplo: será que as

qualidades de um processo totalmente eletrônico, mais célere, acessível em

qualquer lugar do mundo, não entrará em choque com o direito que todos têm à

jurisdição? Sobre esse ponto é a doutrina de Pierre Lévy, quando, há muito,

previu que o desenvolvimento da cibercultura poderia ser um fato suplementar de desigualdade e de exclusão, tanto entre as classes de uma sociedade como entre nações de países ricos e pobres. Esse risco é real. O acesso ao ciberespaço exige infra-

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estruturas de comunicação e de cálculo (computadores) de custo alto para as regiões em desenvolvimento. (LÉVY, 2005, p. 157)

É como já decidiu o Supremo Tribunal Federal, sobre as desigualdades

entre classes sociais e entre os próprios cidadãos do País: [...] 6. O típico da lei é fazer distinções. Diferenciações. Desigualações. E fazer desigualações para contrabater renitentes desigualações. A lei existe para, diante dessa ou daquela desigualação que se revele densamente perturbadora da harmonia ou do equilíbrio social, impor uma outra desigualação compensatória. A lei como instrumento de reequilíbrio social. 7. Toda a axiologia constitucional é tutelar de segmentos sociais brasileiros historicamente desfavorecidos, culturalmente sacrificados e até perseguidos, como, verbi gratia, o segmento dos negros e dos índios. Não por coincidência os que mais se alocam nos patamares patrimonialmente inferiores da pirâmide social. A desigualação em favor dos estudantes que cursaram o ensino médio em escolas públicas e os egressos de escolas privadas que hajam sido contemplados com bolsa integral não ofende a Constituição pátria, porquanto se trata de um descrímen que acompanha a toada da compensação de uma anterior e factual inferioridade (“ciclos cumulativos de desvantagens competitivas”). Com o que se homenageia a insuperável máxima aristotélica de que a verdadeira igualdade consiste em tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, máxima que Ruy Barbosa interpretou como o ideal de tratar igualmente os iguais, porém na medida em que se igualem; e tratar desigualmente os desiguais, também na medida em que se desigualem. (STF, ADI 3.330/DF, Rel. Min. Ayres Torres, Tribunal Pleno, DJe 22-03-2013, RTJ 224/207).

Ocorre esse fenômeno, de fato, quando se trata da inclusão social ou

digital entre indivíduos desiguais, e esse tratamento tem de ser desigual mesmo;

entre os índios, a cultura de aprendizagem de uma educação digital depende de

um longo caminho a ser percorrido, e que se inicia a partir de uma vivência com a

cultura e uma aproximação entre as diferenças, o que não é diferente, por

exemplo, do que ocorre com os advogados mais antigos que não possuem o

conhecimento de informática e sentem-se excluídos dessa nova era,

necessitando também, assim, uma ação diferencial do governo para retornarem

ao mundo jurídico que conheciam - na era do processo físico, de papel.

Após essa primeira etapa, aqui denominada de aproximação, terá de

existir uma delimitação daquilo que realmente importa em termos de educação

para o alcance da inclusão digital, ou seja, a eleição de quais as ferramentas de

aprendizagem e de ensino que podem e devem ser direcionadas a esse grupo de

Page 196: 44. gt - pluralismo religioso, interculturalisdade e laicidade

3735

pessoas; de nada adiantaria a colocação em prática de uma série de ações para

a facilidade de acesso ao universo digital, sem a devida orientação daquilo que

realmente é interessante de ser aproveitado.

E, para que isso seja possível e factível, é necessária uma gama de

políticas públicas que debatam e prevejam o alcance dessa cultura cibernética ao

conhecimento e ao aprendizado dos índios e dos advogados, com orientações

políticas que permitam a correta inserção dos pontos a serem efetivamente

absorvidos por esses atores sociais, na medida em que, sem esse aporte técnico,

de preocupação social e com o devido planejamento, todo um trabalho pode ser

em vão, sem qualquer utilidade.

E, ainda, outro ponto merece atenção: às claras, pela evolução do meio

social e da velocidade com que se modificam as vetoriais no universo da ciência e

da tecnologia, a educação da cultura cibernética para as crianças indígenas, por

exemplo, talvez seja o ponto de maior relevância e de maior preocupação de

todas as políticas públicas, pois para essas crianças e adolescentes é que a

revolução trazida pela era digital é mais tangível e importante, justamente para as

suas inclusões nesse novo universo de constante mutação.

A preocupação, nessa medida, tem de ser a de alfabetizar os povos

indígenas para que tenham uma maior dignidade no universo da era moderna,

sem que, ao mesmo tempo, percam as suas raízes a sua tradição, que fazem

parte da construção do país. E, além disso, e depois dessa etapa, merecem

preocupação a forma e as matérias importantes para que exista uma outra forma

de inclusão, aquela digital.

No mesmo sentido, as faculdades de Direito, nos dias atuais, deverão

rever o estudo da temática processual, ensinando aos estudantes desta cátedra

noções básicas de informática e preparação prática para o uso do processo

eletrônico.

A educação digital é, para o atual estágio da humanidade, uma

necessidade de primeira ordem, e essa passou a ser, também, uma forma de

cultura e de saber, por isso devendo ser pensadas políticas públicas capazes de

alcançar essa ferramenta a todos os cidadãos, de forma diferente, é verdade,

Page 197: 44. gt - pluralismo religioso, interculturalisdade e laicidade

3736

como bem analisada na decisão da Suprema Corte (daquilo que se chamou de

desigualação). Não importa, mas deve acontecer.

2 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A análise crítica da obra Xinguana se destaca por estimular a reflexão

acerca do povo indígena e do papel dos meios de comunicação como

mecanismos de aproximação cultural, é dizer, como forma de interligar diferentes

culturas. Isto porque a referida obra ilustra a figura do índigena xinguana, em seu

habitat selvagem, por um lado distante do Congresso da ONU, e por outro, tão

próximo através do meio de comunicação que o interliga com a sociedade dita

civilizada.

A televisão, como representação dos meios de comunicação em geral,

caracteriza-se como meio de transmissão de informações e realça a ideia de

sociedade interligada entre suas diferentes culturas. Nesse sentido, as

tecnologias de informação propiciam a formação de uma aldeia global, conceito

este desenvolvido por McLuhan, o qual bem explica a interação dos diferentes

nichos culturais, na medida em que, a partir de uma rede de comunicação, todos

os cidadãos, em especial o indígena, teriam acesso rápido a todas as

informações que circulam em quaisquer sociedades. Veja-se, na leitura da obra

de Clóvis Irigaray, que o índio xinguana está inserido numa aldeia, denominada,

assim, como global, enquanto assiste a uma sessão do Congresso, ou seja, está

recebendo informações naturalmente e de forma rápida, quiçá instantânea,

através da televisão. Deflui-se daí que o indígena é receptor de informações e,

ainda que sua cultura não influencie no Congresso conforme ilustração, o hiper-

realismo da obra demonstra a sua inserção numa aldeia global.

Por outro lado, com o escopo de buscar uma resolução do embaraço da

convivência das sociedades multiculturais, Javier Lucas defende a ideia do direito

a própria identidade cultural a partir da não discriminação do sujeito que pertence

a nichos culturais diferenciados e/ou minoritários.

Page 198: 44. gt - pluralismo religioso, interculturalisdade e laicidade

3737

Todavia, os índios xinguanos, representados na obra de Irigaray, não

possuem atualmente esse enquadramento na sociedade civil, haja vista a

necessidade do povo indígena de ter o reconhecimento da normalidade e da

centralidade de sua cultura e não apenas o reconhecimento ao direito de não ser

discriminado. A sua tolerância apenas não basta. É preciso mais. A sua

identidade cultural não é negociável. É preciso proteger a sua distintividade

cultural e viabilizar a sua integração social para, desta forma, alcançar-lhe o triplo

conteúdo da cidadania, proposto por Javier de Lucas: liberdades negativas, ou

segurança jurídica; direitos sociais; e direitos políticos.

Os meios de comunicação, portanto, exemplificam a aproximação de

diferentes culturas e, nesse sentido, ainda que o índio não se enxergue na

sociedade ou, especificamente, no Congresso da ONU, assiste a sessão daquele

Congresso. Destarte, a integração entre a sociedade dita civilizada e a sociedade

indígena limita-se à aparência, não se concretiza, porquanto resta ausente o

reconhecimento efetivo da identidade cultural do povo indígena.

A internet, sobremaneira, apresenta-se como o meio de comunicação de

maior propagação de informações e, embora num contexto global não se

estabeleça a integração ideal entre as sociedades de culturas diversificadas,

depreende-se seu grande potencial de ensejar a sociabilidade entre as diferentes

culturas.

Os meios de comunicação têm como função e desiderato, também,

facilitar a troca de informações entre os integrantes de uma ampla aldeia

caracterizada como global, bem como, proporcionar o aprendizado no mundo

virtual e através do mundo virtual. A internet, pois, surge como um meio com mais

potencial ainda, para esse efeito, do que a própria televisão, pelas suas

características multimidiáticas e por sua maior capacidade de interatividade76.

76Apesar de ser uma expressão que ganhou notoriedade com o surgimento da internet, a

interatividade também pode ser discutida dentro dos meios de comunicação tradicionais. De fato, os processos interativos estão presentes em diferentes estâncias na comunicação mediada, mas somente a expressão interatividade se torna mais aplicável quando há uma “intervenção permanente sobre os dados”, ou seja, um tipo específico de interação quantitativamente e qualitativamente mais significativa, ou, pelo menos, significativo o suficiente para alterar a relação predominantemente unidirecional

Page 199: 44. gt - pluralismo religioso, interculturalisdade e laicidade

3738

A evolução dos meios de comunicação, em especial o avanço tecnológico

pressupõe a necessidade de ampliar o acesso a toda sociedade,

independentemente da identidade cultural, a fim de evitar uma exclusão digital.

Não há como separar os avanços tecnológicos da compreensão de como a

sociedade se organiza e age (TEMER, 2012). Conforme Pierre Lévy (1993, p. 7),

“na época atual, a técnica é uma das dimensões fundamentais onde está em jogo

a transformação do mundo humano por ele mesmo”. A partir da lição de Pierre

Lévy, vale salientar que a exclusão digital não se refere tão somente ao acesso

aos meios tecnológicos, mas também à condução da utilização e disseminação

desses meios, uma vez que se faz necessário uma mudança da relação com o

saber, através da educação virtual, para que haja sempre um processo de

inclusão, principalmente para que seja evitado o analfabetismo cibernético.

Fato é que a aplicação dos mecanismos de inclusão digital deve respeitar

as desigualdades entre as sociedades de culturas diversificadas ou mesmo entre

grupos distintos dentro de um mesmo nicho social, a fim de alcançar a finalidade

e a utilidade relevante do acesso aos meios de comunicação, qual seja a

condição de ferramenta de educação. A educação digital, portanto, fazendo uso

das ferramentas do novo meio de comunicação estruturador da aldeia global

profetizada já por McLuhan, denominado internet, deve ser destinada com

tratamento igual aos iguais e com tratamento desigual aos desiguais para que,

assim, possa ser alcançada a todos os cidadãos como forma de cultura e de

saber, inclusive aos povos indígenas, com o mote de proteger a sua distintividade

cultural e promover a sua efetiva integração social.

REFERÊNCIAS

BELTRÃO, L.. A galáxia de Guttemberg e a de Marshall McLuhan. In Anuário Unesco Metodista de comunicação regional. São Bernardo do Campo: Universidade Metodista de São Paulo, 2006. n. 10;

que caracterizava os processos de comunicação mediados anteriormente à disseminação dos computadores pessoais. (TEMES, 2012, p. 173)

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3739

BERTOLOTO, J. S.. Clóvis Irigaray: arte-memória-corpo. Cuiabá: Edição do Autor, 2001; BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Tribunal Pleno. ADI 3.330/DF. DJe 22-03-2013, RTJ 224/207 <www.stf.jus.br> Acessado em 12.11.2014; CASTELS, M.. A era da informação: economia, sociedade e cultura. São Paulo: Paz e Terra, 1999. v. I – A sociedade em rede; ________,. A Galáxia da Internet. Rio de Janeiro: Zahar, 2003; FARO, J. S.. Marshall McLuhan 40 anos depois: a mídia como a lógica de dois tempos. Revista Fronteiras. v. 6 n. 2. _______. As tecnologias da inteligência – o futuro da inteligência na era da informática. Rio de Janeiro: 34, 1993; LÉVY, P.. Cibercultura. 2. ed. 5. reimp. São Paulo: 34, 2005; LUCAS, J. de. Multiculturalismo y cultura de paz. In PUREZA, José Manuel (Org.). Para uma cultura da paz. Coimbra: Quarteto, 2001. Coleção Andaimes do Mundo. cap. 8; MATTELART, A.; MATTELART, M. História das teorias da comunicação. São Paulo: Loyola, 2003; MCLUHAN, M.. Os meios de comunicação como extensões do homem – understanding media. 15. reimpr. São Paulo: Cultrix, 2007; PORTAL DO GOVERNO DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO. <http://www.conexaoaluno.rj.gov.br/especiais-19a.asp> Acesso em 12 nov. 2014;

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UMA ANÁLISE HISTÓRICO-CULTURAL DA PROIBIÇÃO À POLIGAMIA NO BRASIL

Ricardo Oliveira Rotondano77

RESUMO: O trabalho apresenta as bases da formação cultural-religiosa brasileira, que subsidiaram a identificação social com o modelo monogâmico obrigatório. Tal análise histórica perpassa pelo surgimento e disseminação do Cristianismo na Europa, tendo os seus preceitos instaurados em solo brasileiro pelos colonizadores portugueses. A proliferação dos ideais cristãos pelo povo brasileiro se refletiu, de modo evidente, na legislação confeccionada neste território, que desde o início se formou sob a influência do direito canônico europeu. Dessa forma, a proibição civil e penal à poligamia foi instaurada pelo legislador pátrio mediante o compartilhamento social desta herança histórica cristã. Em breve análise jurisprudencial, o presente escrito constata o apego do Judiciário à legislação e doutrina nacionais que atestam a validade da obrigatoriedade monogâmica no país. De fato, a manutenção deste impedimento legal à constituição da entidade familiar poligâmica viola diretamente as garantias constitucionais do Estado laico e da liberdade religiosa daqueles que, não sendo adeptos de preceitos cristãos monogâmicos, optem por um modelo diverso de família. PALAVRAS-CHAVE: cristianismo; família; laicidade; monogamia; poligamia.

1 INTRODUÇÃO

A monogamia é tida como o único e exclusivo modelo de constituição de

família do lado ocidental do globo. Parece-nos, em grande parte das vezes, que a

modalidade poligâmica de família constitui uma forma de união primitiva, e que a

monogamia provém da evolução natural da civilização humana. Tal estereótipo

discriminatório está assentado, entre outros fatores, no elemento cultural

transmitido através das sucessivas gerações.

77 Advogado. Especialista em Direito Constitucional pela Universidade Gama Filho.

Mestrando em Direito pela Universidade de Brasília. E-mail: [email protected]

Page 202: 44. gt - pluralismo religioso, interculturalisdade e laicidade

3741

No ocidente, as sociedades antigas contemplavam com naturalidade a

existência da entidade poligâmica. Entre os ameríndios, era bastante comum

entre algumas tribos que um indígena formasse família com mais de uma mulher.

As culturas pagãs europeias também aceitavam a constituição da família

poligâmica, em geral com o casamento de um homem com mais de uma mulher.

Todo este panorama foi modificado, principalmente, a partir da introdução de

preceitos cristãos monogâmicos na sociedade europeia – transmitida a terras

ameríndias a partir da colonização portuguesa, espanhola e inglesa a partir do

século XV.

Interessante é notar que até mesmo os predecessores da cultura religiosa

cristã – os judeus – não se mostravam contrários ao casamento entre mais de

duas pessoas. A criação de uma religião própria pelos discípulos de Jesus de

Nazaré é a principal responsável, na cultura ocidental, pela afirmação do

paradigma monogâmico, a partir da valorização da castidade humana. Nomes

como São Paulo e Santo Agostinho foram essenciais para a edificação destes

ideais.

Constata-se, dessa forma, que a herança cultural religiosa brasileira tem

contribuído historicamente para a afirmação do paradigma monogâmico no Brasil.

Mais do que isso, a introdução dos valores monogâmicos oriundos da ideologia

cristã acabam impondo a proibição social e legal de qualquer entidade familiar

avessa aos referidos preceitos, como a entidade familiar poligâmica. A cultura que

se estabeleceu, nesse sentido, em terras brasileiras, provém por sua vez de uma

herança histórica mais antiga, decorrente do histórico de surgimento e evolução

da religião cristã na Europa.

Ante todos estes fatores, o presente trabalho propõe uma investigação

histórico-sociológica acerca das bases culturais e religiosas que impuseram o

modelo familiar monogâmico como forma obrigatória de convivência afetiva no

Brasil. Após estabelecer os principais fundamentos que permeiam a legislação

civil e penal que vedam a poligamia no Brasil, ponderar-se-á acerca da

legitimidade de tais argumentos, culminando em reflexões conclusivas acerca da

necessidade de manutenção ou supressão dos referidos institutos legais.

Page 203: 44. gt - pluralismo religioso, interculturalisdade e laicidade

3742

2 O CRISTIANISMO

Tratando-se dos preceitos religiosos que prevalecem no ocidente e que

sedimentaram a cultura monogâmica, impõe-se como essencial a tarefa de

analisar a herança cristã. O cristianismo é uma religião abraâmica monoteísta,

que encontra fundamento nos ensinamentos de Jesus de Nazaré. A religião cristã

cresceu vigorosamente, encontrando seu principal ponto de difusão apenas

quatro décadas após o nascimento do seu Messias, quando se tornou a religião

oficial do Império Romano. “Desde a sua origem no século I, o cristianismo deitou

raízes firmes no século II, cresceu bastante no século III e tornou-se a religião

oficial do Império Romano no final do século IV”.78

Explica o historiador Marvin Perry que tal conquista foi obtida após muito

sofrimento e resistência do povo cristão. Para os romanos, o cristianismo era

considerado como uma religião estrangeira, que sobreviveu clandestinamente ao

longo dos séculos. Ocorre que o Império geralmente adotava postura tolerante

para com as religiões, não interferindo, a princípio, de maneira significativa com o

cristianismo. Em determinado momento, as autoridades romanas começaram a se

preocupar, posto a grande expansão dos fiéis cristãos, que pregavam fidelidade a

Deus, e não a Roma. Os imperadores romanos recorreram, então, à perseguição

dos adeptos da religião cristã; porém, não encontraram sucesso em barrar o

avanço da seita religiosa.79

Após o fracasso das sucessivas tentativas de esmagar o cristianismo pela

perseguição, os imperadores romanos resolveram conseguir o apoio do crescente

número de cristão do Império. Em 313 d.C., Constantino – que Perry qualifica

como “sinceramente atraído pela fé do Cristo” – promulgou o edito de Milão, que

conferiu tolerância a todos os cristãos. Já no ano de 392 d.C., Teodósio I tornou o

78 PERRY, Marvin. Civilização ocidental: uma história concisa. Tradução: Waltensir Dutra,

Silvana Vieira. 3ª edição. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 131. 79 PERRY, Marvin. Civilização ocidental: uma história concisa. Tradução: Waltensir Dutra,

Silvana Vieira. 3ª edição. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

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3743

cristianismo a religião oficial do Império, declarando consequentemente ilegais

todos os cultos dos deuses pagãos.80

Alçado ao patamar de religião oficial do Império, a religião cristã teve um

grande impulso, alastrando-se ao longo dos anos “com rigor de autoridade

religiosa e como força social”.81 Diante da vastidão do Império Romano, não foi

difícil alcançar uma imensidão de novos adeptos, tornando assim a religião cristã

uma das maiores seitas religiosas do planeta.

O cristianismo que se proliferou com propriedade sobre os domínios

romanos teve alguns grandes nomes responsáveis. Entre eles, inegavelmente,

cabe destacar a importância de São Paulo em sua exaustiva atividade missionária

por todo o Império Romano.82 A doutrina de São Paulo foi essencial para a

disseminação da nova fé cristã. O apóstolo Paulo realiza a fusão entre a cultura

judaica com a greco-romana, fazendo com que o cristianismo perdesse o seu

caráter político, de socialismo primitivo, e incorporasse a faceta religiosa

universalista e moralista.83 Desse modo: Ao pregar a doutrina de um salvador ressuscitado e insistir em que a legislação de Moisés havia sido superada, Paulo, quaisquer que fossem suas intenções, estava rompendo com suas raízes de judeu e transformando uma seita judaica numa nova religião. Ao emancipar o cristianismo do judaísmo, tornou-o atraente aos não-judeus, que se interessavam pelo monoteísmo ético dos hebreus, mas rejeitavam as rigorosas exigências da Lei de Moisés. Paulo utilizou o personalismo e o universalismo implícitos nos ensinamentos de Jesus (e dos profetas hebraicos) para criar uma religião destinada não a um povo, com cultura, história e terras próprias, mas a toda a humanidade.84

Apesar de um judeu palestino denominado Jesus ser o grande nome da

religião cristã, como o seu verdadeiro Cristo (o ungido do Senhor, o Messias),85 80 PERRY, Marvin. Civilização ocidental: uma história concisa. Tradução: Waltensir Dutra,

Silvana Vieira. 3ª edição. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 132-133. 81 CABRAL, Juçara Teresinha. A sexualidade no mundo ocidental. 2ª edição. Campinas,

SP: Papirus, 1995, p. 101. 82 PERRY, Marvin. Civilização ocidental: uma história concisa. Tradução: Waltensir Dutra,

Silvana Vieira. 3ª edição. São Paulo: Martins Fontes, 2002. 83 CABRAL, Juçara Teresinha. A sexualidade no mundo ocidental. 2ª edição. Campinas,

SP: Papirus, 1995. 84 PERRY, Marvin. Civilização ocidental: uma história concisa. Tradução: Waltensir Dutra,

Silvana Vieira. 3ª edição. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 130. 85 PERRY, Marvin. Civilização ocidental: uma história concisa. Tradução: Waltensir Dutra,

Silvana Vieira. 3ª edição. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

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3744

resta evidente que os preceitos cristãos não somente pertencem a ele. Pelo

contrário: a doutrina cristã disseminada após a morte de Jesus está impregnada

da influência de diversos pensadores cristãos, que contribuíram incisivamente no

processo de construção do cristianismo, e que legaram dogmas religiosos e

culturais – em especial, quanto à sexualidade humana – que influenciaram

inúmeras gerações ao longo dos séculos.

Juçara Teresinha Cabral entoa, nesse sentido, que Jesus Cristo não foi o

principal autor de preceitos normativos da vida sexual humana. Foram homens

como São Paulo, Tertuliano, São Jerônimo, Santo Agostinho, entre outros, que

dentro do processo de solidificação e expansão da doutrina cristã no ocidente,

acrescentaram a ela ensinamentos que o mundo moderno ainda considera como

verdade – como a vinculação do sexo ao pecado, por exemplo.86

Como consequência, entra em cena um novo modelo valorativo da

sexualidade humana. Tal paradigma encontra fundamento nas ideias difundidas,

mais uma vez, por São Paulo, que pregava a dualidade entre o corpo e a alma. A

interpretação cristã de São Paulo leva à exaltação dos ideais de virgindade e

celibato na doutrina religiosa; a negação aos prazeres carnais conduziria ao

encontro com o divino.

São Paulo acreditava que o instituto do celibato era superior ao matrimônio;

ao mesmo tempo, admitia que esta era uma decisão de poucos, posto que “a

continência é uma condição de autocontrole e nem todos o homens haviam

recebido este dom específico de Deus”. Para o referido teórico cristão, quando se

dorme com uma prostituta, o homem torna-se “uma só carne” com ela, do mesmo

modo como Adão se tornara uma só carne com Eva. Dessa forma, São Paulo

recomendava esta união física apenas entre os esposos.87

As lições de São Paulo e de outros nomes cristãos foram determinantes

para que o cristianismo difundisse uma gama de preceitos da sexualidade

humana, como o ideal de virgindade e de pureza, a exaltação da continência, a

condenação do adultério e a proibição do divórcio. Deste modo, a única união 86 CABRAL, Juçara Teresinha. A sexualidade no mundo ocidental. 2ª edição. Campinas,

SP: Papirus, 1995. 87 CABRAL, Juçara Teresinha. A sexualidade no mundo ocidental. 2ª edição. Campinas,

SP: Papirus, 1995, p. 102-104.

Page 206: 44. gt - pluralismo religioso, interculturalisdade e laicidade

3745

aceita entre os cristãos era a relação monogâmica heterossexual, através do

matrimônio sagrado. Juçara Teresinha Cabral assinala que, na fase inicial da

civilização cristã, todo relacionamento afetivo, amoroso e sexual fora do

casamento foi considerado pecado contra a carne: A homossexualidade, a prostituição, a bigamia, a poligamia ou poliandria são classificadas como costumes mundanos. Mesmo no casamento havia ressalvas, pois o sexo era uma aventura condenada e sinal da fraqueza humana. [...] Era consenso de toda a Igreja a permissão de um só casamento, pois diziam os padres: o segundo será considerado adultério, o terceiro, fornicação e o quarto, ignóbil.88

Até mesmo a união matrimonial não era idealizada como parâmetro a ser

seguido pela igreja cristã. Consoante ensina o historiador francês Philippe Ariès,

na Idade Média, até o fim do século XVI, o casamento “apenas legitimava a

união”, não tendo qualquer “função de enobrecer a união conjugal, de lhe dar um

valor espiritual”.89 O casamento, classificado durante muito tempo como um

contrato,90 não livrava a sexualidade de sua impureza essencial. Segundo Ariès,

“o casamento era uma questão de último caso”; “a união sexual, quando

abençoada pelo casamento, deixava de ser um pecado, mas isso era tudo”.91

88 CABRAL, Juçara Teresinha. A sexualidade no mundo ocidental. 2ª edição. Campinas,

SP: Papirus, 1995, p. 106. 89 ARIÈS, Philippe. História social da criança e da família. Tradução: Dora Flaskman. 2ª

edição. Rio de Janeiro: LTC, 1981, p. 214. 90 DANTAS, Bruna. Sexualidade, cristianismo e poder. Revista Estudos e Pesquisas em

Psicologia (UERJ), Rio de Janeiro, v. 10, n. 3, pp. 700-728, set./dez. 2010, p. 703: “Até o século IX, o matrimônio era uma instituição laica e privada. No entanto, era reconhecido publicamente, visto que a comunidade local testemunhava sua ocorrência. A Igreja não participava da celebração. Os pais dos noivos eram os únicos responsáveis por todos os preparativos da festa. O casamento representava uma aliança política e um contrato comercial, firmado entre as famílias. Após a negociação, os pais da noiva forneciam o dote à família do rapaz e se iniciava a cerimônia. Era o pai do noivo que celebrava as bodas e oficializava o contrato. O casal era levado ao leito, sendo acompanhado por parentes e convidados, que testemunhavam o acontecimento. Após despirem-se, os esposos deitavam e o pai do noivo abençoava a união. Ao final da solenidade, o público retirava-se do recinto para deixar os cônjuges a sós. Enquanto as pessoas aproveitavam a festa, o casal se relacionava sexualmente”.

91 ARIÈS, Philippe. História social da criança e da família. Tradução: Dora Flaskman. 2ª edição. Rio de Janeiro: LTC, 1981, p. 215.

Page 207: 44. gt - pluralismo religioso, interculturalisdade e laicidade

3746

Bruna Dantas92 reforça tal entendimento, escrevendo que “primeiramente,

a Igreja recomendou aos fiéis renunciar de forma definitiva a atividade sexual e

conter os desejos, impedindo sua manifestação”. No entanto, grande parte da

sociedade acabou se recusando a seguir tais preceitos religiosos. Foi justamente

a partir desse fato que a Igreja promoveu a sacralização do casamento, de modo

a manter a sexualidade sob o seu domínio. Para a autora, “a sexualidade, pois,

atuou como importante dispositivo de poder, garantindo o fortalecimento político

da instituição cristã na sociedade ocidental”.

Pois bem. Delineados os principais elementos de configuração da religião

cristã no ocidente e sendo destacado o aspecto histórico da criação de um dogma

obrigatório em torno da monogamia, resta tecer alguns comentários sobre como

tal modalidade religiosa deitou raízes no Brasil. Este percurso histórico cultural,

que teve na herança da cultura cristã portuguesa através da colonização em

terras brasileiras, será verificado no capítulo a seguir.

3 HERANÇA RELIGIOSA NO BRASIL

Os domínios da religiosidade cristã se instalaram com propriedade em todo

o território da Europa ocidental. O próprio Estado passou a ter como fundamento

ideológico a religião cristã, que dominava a sociedade europeia com rigor e

autoridade. Os indivíduos que não compartilhavam da religião cristã sofriam

automaticamente a resistência da sociedade e das instituições estatais, que

desde a época de Constantino tinham estreita ligação com o cristianismo.93

Ao dominar o pensamento europeu ocidental, a crença cristã atravessa as

fronteiras marítimas e alcança o território brasileiro, tendo em vista a dominação

exercida pelo colonizador português no território nacional. Portugal, como típica

nação europeia moderna que acreditava na superioridade da sua cultura em

92 DANTAS, Bruna. Sexualidade, cristianismo e poder. Revista Estudos e Pesquisas em

Psicologia (UERJ), Rio de Janeiro, v. 10, n. 3, pp. 700-728, set./dez. 2010, p. 700-701. 93 PERELMAN, Chaim. Ética e direito. Tradução: Maria Ermantina Galvão. São Paulo:

Martins Fontes, 1996.

Page 208: 44. gt - pluralismo religioso, interculturalisdade e laicidade

3747

relação aos povos ameríndios,94 impôs os seus preceitos tidos como

“civilizatórios” aos povos que viviam no Brasil – o que incluiu a religião professada

pelos colonizadores.

A imposição dos preceitos dogmáticos é, aliás, a marca inerente tanto à

instalação quanto à continuidade da existência da religião cristã no Brasil. Sob um

evidente viés dominador colonial, a igreja católica sedimentou as bases do que

seria uma longa história de modelagem da visão de mundo dos povos nacionais.

Com rigor e autoridade de institutos religiosos indicativos da moralidade social, o

pensamento cristão dominou a cultura brasileira desde a chegada dos

colonizadores portugueses até os dias atuais.95

A ligação entre a coroa portuguesa e a igreja católica ultrapassava os

elementos de uma simples herança cultural. Haviam interesses em comum entre

as duas instituições, concernentes ao estabelecimento de uma cultura religiosa

cristã em território brasileiro. Ao ceder espaço para a instalação de preceitos da

igreja católica no Brasil, o Estado português recebia uma série de concessões e

licenças da referida instituição religiosa.96

A concessão de agrados da igreja católica não era a única motivação para

que os portugueses levassem até as terras brasileiras a doutrina cristã. Havia

outros interesses, em especial aqueles que diziam respeito ao sucesso da própria

colonização portuguesa no recém-conquistado território ameríndio, o que

contribuía para que a religiosidade cristã se configurasse como um instrumento

relevante para o projeto de colonização português.97

A mentalidade religiosa católica se colocou, dessa forma, como um dos

instrumentos utilizados pelos colonizadores portugueses para estabelecer ordem

em meio à uma estrutura externa à cultura e tradições portugueses. Ao imbuir os

94 DUSSEL, Enrique. 1492: o encobrimento do outro. A origem do mito da modernidade.

Tradução: Jaime A. Clasen. Petrópolis: Vozes, 1993. 95 DEL PRIORE, Mary. Religião e religiosidade no Brasil colonial. 6ª edição. São Paulo:

Ática, 2004. 96 DEL PRIORE, Mary. Religião e religiosidade no Brasil colonial. 6ª edição. São Paulo:

Ática, 2004. 97 OLIVEIRA, Marlon Anderson de. Entre a coroa e a cruz: a igreja colonial sob a égide do

padroado. Mneme – Revista de Humanidades (UFRN). Caicó (RN), v. 9, n. 24, set/out 2008, p. 9.

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3748

nativos e locais com a mentalidade religiosa católica, destituía-se a identificação

cultural nativa compartilhada entre estes, estabelecendo-se um paradigma

europeu externo como modus vivendi entre todo e qualquer indivíduo que

habitasse aquele território.98

Além disso, havia uma própria identificação dos portugueses com a sua

missão precípua de portadores do desenvolvimento civilizatório, que deveria ser

disseminado entre os povos primitivos. No caso em tela, ante o retrocesso do

modo de vida indígena, cabia aos portugueses – como povo europeu moderno

evoluído e civilizado – educar os indígenas para a sua progressão cultural e

espiritual, ainda que contra a sua vontade.99 Este foi um dos impulsos que

direcionaram o povo colonizador português na imposição da cultura católica cristã

aos sujeitos nativos, conquistados violentamente.

Além da perspectiva portuguesa sobre a imposição da ideologia católica

cristã sobre os povos e territórios do novo mundo, há ainda que se destacar a

própria necessidade da igreja católica de expandir os seus preceitos religiosos

para novos horizontes. Após a Reforma Protestante, houve um recrudescimento

no campo de atuação da igreja católica ante os povos que anteriormente

compartilhavam sua crença. A investida da igreja católica na América detinha,

nesse sentido, o condão de conquistar novos adeptos para a religião católica, que

enfrentava séria crise capitaneada pelo protestantismo: O projeto católico colocado em prática na América portuguesa pelos jesuítas e assenta no pensamento religioso, cultural e social do velho mundo na medida em que busca reproduzir seu universo cultural nessas terras. Naquela época viver fora do seio da religião era impensável, povoar o novo mundo não era visto apenas com uma missão do português mas da cristandade, pois era preciso catequizar os povos habitantes das novas terras.100

98 LEITE, Maria José; MÔRA, Andréa Batista de. A influência do imaginário europeu na

construção do projeto católico português e a resistência indígena à sua implantação no Brasil colônia. Mneme – Revista de Humanidades (UFRN). Caicó (RN), v. 9, n. 24, set/out 2008.

99 DUSSEL, Enrique. 1492: o encobrimento do outro. A origem do mito da modernidade. Tradução: Jaime A. Clasen. Petrópolis: Vozes, 1993.

100 LEITE, Maria José; MÔRA, Andréa Batista de. A influência do imaginário europeu na construção do projeto católico português e a resistência indígena à sua implantação no Brasil colônia. Mneme – Revista de Humanidades (UFRN). Caicó (RN), v. 9, n. 24, set/out 2008, p. 3.

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3749

Além do estabelecimento da cultura religiosa católica em terras brasileiras

se fez necessário adotar medidas para extinguir qualquer brecha possível para o

florescimento de seitas adicionais, que ameaçassem os domínios do culto

católico. Para tanto, a igreja católica pregou um modelo religioso autoritário e

discriminatório, que cultivava além da fé à religião católica, a intolerância aos

demais cultos e crenças alheias. Tal projeto de fechamento cultural-religioso se

transmitiu através dos anos, sendo herdado pelas gerações atuais do povo

brasileiro: No caso do Brasil, a igreja católica é uma das instituições que contribuiu para a formação de uma sociedade hierárquica, autoritária e intolerante com a liberdade de religião. A tentativa de destruição da diversidade religiosa é parte do projeto de colonização. Aliás, um instrumento fundamental e dominação dos colonizadores sobre o povo nativo do continente foi a repressão a suas divindades e a imposição à conversão à Igreja Católica. A intolerância ao que é diverso, do ponto de vista religioso, é parte da nossa colonização e essa intolerância se estendeu ao campo da cultura como um todo, criando justamente um conflito entre as culturas dos diferentes povos e a cultura hegemônica do colonizador, totalmente apoiada na ordem religiosa como campo de legitimação do poder econômico e político. Dessa forma a igreja católica é parte do projeto colonial na América.101

A estruturação de todo um aparato religioso disseminado nacionalmente

interferiu evidentemente na formação da cultura brasileira, que carrega traços

inegavelmente moldados pela ideologia cristã. Consequentemente, a mútua

identificação com tais preceitos provoca a sua transferência para o campo

jurídico-político, através da construção de institutos estatais provenientes da

mentalidade coletiva cristã. Analisaremos, assim, em que medida a formação de

uma cultura cristã no Brasil influenciou a adoção de normas jurídicas com caráter

da doutrina cristã ocidental.

101 ÁVILA In BATISTA, Carla; MAIA, Mônica (Org.). Estado laico e liberdades

democráticas. Recife: Articulação de Mulheres Brasileiras/ Rede Nacional Feminista de Saúde/ SOS Corpo – Instituto Feminista para a Democracia, abr. 2006 (versão online/pdf), p. 17.

Page 211: 44. gt - pluralismo religioso, interculturalisdade e laicidade

3750

4 OS REFLEXOS NO CAMPO JURÍDICO

O processo de “colonização cultural” gerou reflexos inegáveis também no

campo jurídico. Como herança, os portugueses trouxeram para terras brasileiras

um sistema jurídico marcado por uma cultura europeia comum, segundo explica o

jurista Giordano Bruno Soares Roberto.102 No célebre ano de 1500 “o Brasil é,

doravante, parte de Portugal e, portanto, território onde o Direito Português

também vigora”. Inegavelmente, “a História dos dois Povos une-se e a História

Jurídica torna-se comum”.103

No Brasil, vigorava o sistema jurídico português, fruto de uma compilação

normativa denominada Ordenação do Reino. A primeira delas surge em 1446,

publicadas em nome de D. Afonso V, e sendo assim batizadas de Ordenações

Afonsinas. Por ordem de D. Manoel, organiza-se outra compilação, entrando em

vigor em 1521 – Ordenações Manuelinas. Em 1603, a reforma das compilações

iniciada por Filipe I e concluída por Filipe II é publicada, recebendo a

nomenclatura de Ordenações Filipinas.104 Por sinal, as Ordenações Filipinas

continuaram vigorando no Brasil mesmo após a sua Independência, até 1º de

janeiro de 1917, data em que entrou em vigor o primeiro Código Civil brasileiro,

como bem pontua Antonio Santos Justo.105

É o que igualmente atesta a professora Renata de Lima Rodrigues,

explicando que ao longo do período de colonização no Brasil, o direito brasileiro

se restringia ao que era (im)posto pelas Ordenações do Reino de Portugal.

Trocando em miúdos: os direitos civis do povo brasileiro não passavam de

simples extensão dos direitos de nossos colonizadores, cuja influência em nosso

ordenamento jurídico não pode ser relegada ao desentendimento.106 102 ROBERTO, Giordano Bruno Soares. Introdução à história do direito privado e da

codificação: uma análise do novo código civil. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 53-54. 103 JUSTO, Antonio dos Santos. Direito brasileiro: raízes históricas. Revista Brasileira de

Direito Comparado – Instituto de Direito Comparado Luso Brasileiro, nº 20, 2001, p. 4. 104 ROBERTO, Giordano Bruno Soares. Introdução à história do direito privado e da

codificação: uma análise do novo código civil. Belo Horizonte: Del Rey, 2003. 105 JUSTO, Antonio dos Santos. Direito brasileiro: raízes históricas. Revista Brasileira de

Direito Comparado – Instituto de Direito Comparado Luso Brasileiro, nº 20, 2001. 106 RODRIGUES, Renata de Lima. As tendências do direito civil brasileito na pós-

modernidade. Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 655, 23 abr. 2005.

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3751

Não basta apenas vislumbrar o contexto jurídico português para alcançar o

teor axiológico-histórico da legislação legada ao Brasil. É necessário ir adiante, e

investigar os elementos formadores do direito lusitano. Tal pesquisa é proposta

pelo professor Giordano Bruno Soares Roberto, que entende não ser possível

compreender a conjuntura contemporânea do direito privado brasileiro sem olhar

para sua história. Para tanto, o autor aduz que não será suficiente começar a

análise a partir do desembarque das caravelas portuguesas em 1500; a história é

mais antiga. Nas palavras de Giordano Bruno S. Roberto: “O Direito brasileiro é

filho do Direito português que, a seu turno, participa de um contexto mais amplo.

Os autores concordam que, apesar da imensa diversidade, os países da Europa

compartilham uma herança em comum”.107

Prossegue-se na lição do referido jurista, que discorrendo sobre as origens

da cultura jurídica europeia, demonstra a importância da “conjugação da

experiência dos antigos habitantes com os modos de vida dos invasores

germânicos”.108 Giordano Roberto discorre sobre os três grandes fatores

responsáveis pela formação destes laços jurídicos recíprocos. O primeiro deles é

a burocracia e organização administrativa e financeira, herdada do Império

Romano. A segunda é organização pedagógica e escolar da Antiguidade,

baseada na gramática dialética e retórica, que continuou moldando o ensino. A

última – e que merece destaque – é a Igreja Romana. Tendo fim o Império

Romano, a Igreja “surgiu como um eficaz substituto de sua administração,

autoridade, cultura e jurisdição, assumindo também antigas funções das

autoridades seculares, como as de documentação”.109

Em breve análise acerca da natureza jurídica do casamento no direito

romano, o jurista austríaco Max Kaser vê claramente uma rigorosa influência dos

preceitos da doutrina cristã. Segundo o autor, os romanos viam o matrimônio mais

como um fato social do que como relação jurídica que, naturalmente, produz

107 ROBERTO, Giordano Bruno Soares. Introdução à história do direito privado e da

codificação: uma análise do novo código civil. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 5. 108 ROBERTO, Giordano Bruno Soares. Introdução à história do direito privado e da

codificação: uma análise do novo código civil. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 13. 109 ROBERTO, Giordano Bruno Soares. Introdução à história do direito privado e da

codificação: uma análise do novo código civil. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 14-15.

Page 213: 44. gt - pluralismo religioso, interculturalisdade e laicidade

3752

efeitos jurídicos de grande alcance. O professor austríaco ensina que para que a

comunidade romana preencha o tipo social do matrimônio, seria necessário

atender uma série de pressupostos, configurando “uma união VITALÍCIA,

MONOGÂMICA, realizada em COMUNIDADE DE VIDA E ASSOCIAÇÃO

DOMÉSTICA, cujo fim mais nobre é conseguir DESCENDENTES de pleno

direito”.110

Este também é o ensinamento do professor Agerson Tabosa. Discorrendo

sobre o direito de família romano, o jurista leciona que “a família em Roma

sempre foi monogâmica”, sendo que “só era permitido ter uma esposa ou uma

marido”. O autor ainda explica que “a proibição da poligamia era tão arraigada

que somente ao solteiro, era admitido ter concubina, e não mais do que uma”.111

Entende-se desse modo que até mesmo o concubinato, no direito romano, era

obrigatoriamente monogâmico.

Dessa forma, conclui-se que as instituições religiosas tiveram

preponderância na construção cultural-jurídica da Europa. O direito comum

europeu sofre direta influência dos preceitos cristãos legados pela Igreja Romana,

formando um sistema jurídico marcado por elementos canônicos. Inegavelmente,

muitos destes institutos – trazidos pelos colonizadores portugueses – vigoram

hoje no ordenamento jurídico brasileiro.

Há que ser feita, obrigatoriamente, uma correlação entre o legado jurídico

português e o sistema cultural familiar brasileiro. Claramente interligados, o

paradigma canônico vigente em Portugal ditava o modelo cultural familiar da

colônia e, consequentemente, os preceitos jurídicos em relação ao direito de

família brasileiro. É a lição do jurista Carlos Roberto Gonçalves: Podemos dizer que a família brasileira, como hoje é conceituada, sofreu influência da família romana, da família canônica e da família germânica. É notório que o nosso direito de família foi fortemente influenciado pelo direito canônico, como conseqüência principalmente da colonização lusa. As Ordenações Filipinas foram a principal fonte e traziam a forte influência ao aludido direito, que atingiu o direito pátrio. No que tange aos impedimentos matrimoniais, por exemplo, o Código Civil de 1916

110 KASER, Max. Direito privado romano. Tradução: Samuel Rodrigues e Ferdinand

Hammerle. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1999, p. 317-318. 111 TABOSA, Agerson. Direito romano. 2ª edição. Fortaleza: FA7, 2003, p. 169.

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3753

seguiu a linha do direito canônico, preferindo mencionar as condições de invalidade.112

Diante de todo o contexto histórico apresentado, não é surpresa que a

herança cultural legada pelos colonizadores portugueses tenha claros reflexos

religiosos. A grande maioria da população brasileira segue os preceitos do

cristianismo: 68,43% dos brasileiros seguem a religião católica apostólica romana,

12,76% afirmaram serem adeptos da religião evangélica pentecostal, e 7,47%

declararam a crença em outras religiões evangélicas.113 A herança cultural-

religiosa cristã, que permeou todo o processo de colonização brasileiro, foi

transmitida através das sucessivas gerações familiares brasileiras, alcançando

com propriedade este início de século XXI.

O referido processo de legado cultural-religioso familiar é uma tendência

natural, indicada por Paulo Antonio de Menezes Albuquerque, ensinando que “ao

refletir referências e assimilar valores de outras instâncias da sociedade, a família

tende a sofrer a influência de códigos morais e religiosos particularistas,

absorvendo assim suas tensões dentro da cultura familiar específica”.114

O reflexo desta herança cultural-religiosa no seio familiar é evidente: a

organização familiar brasileira é essencialmente – e obrigatoriamente –

monogâmica. O brasileiro o faz não somente por um legado histórico, mas

igualmente por uma imposição jurídica, que se traduz no impedimento civil ao

casamento poligâmico (art. 1.521, VI, Código Civil), e igualmente no crime de

bigamia (art. 235, Código Penal).

O debate sobre a temática nos tribunais brasileiros tem tratado do tema

reflexamente, não havendo ainda notícias de casamentos poligâmicos de fato

realizados. Os tribunais têm se confrontado com a temática dos relacionamentos

paralelos, em que duas relações familiares distintas na qual concorrem um

membro em comum se submetem à apreciação judicial por direitos dela 112 GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro. Vol. 6: direito de família. 5ª

edição. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 16. 113 Os dados aludidos foram extraídos de um mapa de religiões traçado pelo Centro de

Políticas Sociais da Fundação Getúlio Vargas (FGV), obtidos a partir do processamento de dados publicados e microdados do Censo 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

114 ALBUQUERQUE In FERREIRA, Lier Pires; GUANABARA, Ricardo; JORGE, Vladimyr Lombardo (Orgs.). Curso de sociologia jurídica. Rio de Janeiro: Elsevier, 2011, p. 141.

Page 215: 44. gt - pluralismo religioso, interculturalisdade e laicidade

3754

decorrentes – em grande parte dos casos, direitos patrimoniais. Avaliar algumas

destas decisões irá contribuir para ponderar algumas questões postas no

presente trabalho. Tal pesquisa jurisprudencial será realizada a seguir.

5 UMA ANÁLISE TEMÁTICA JURISPRUDENCIAL

Há muito, os Tribunais pátrios têm aplicado o crime de bigamia, disposto no

art. 235 do Código Penal brasileiro. Não bastasse o impedimento civil da

contração do matrimônio com mais de uma pessoa – art. 1.521, VI, do Código

Civil brasileiro – o Estado ratifica a obrigatoriedade do modelo cristão

monogâmico para a sociedade através da sua tipificação penal. Encontrava-se a

incidência deste crime com razoável frequência em épocas anteriores, onde a

sociedade era mais fechada e retrógrada à culturas poligâmicas: Ementa: - Delito de bigamia. – Novo casamento do agente já casado configura esse ilícito penal. – Erro de fato não demonstrado não isenta de pena. – Decisão condenatória confirmada sem voz discordante. (Apelação Crime Nº 16864, Primeira Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Sebastião Adroaldo Pereira, Julgado em 29/12/1975).

Com o passar das décadas e a abertura da sociedade para novos valores

culturais, seria natural que paulatinamente ocorresse a abertura jurídica para a

modalidade poligâmica familiar. Entretanto, não obstante o processo histórico da

globalização e do significativo acréscimo do povo brasileiro com culturas externas,

não se constatou a modificação da mentalidade popular nesse sentido. De tal

fato, decorreu a manutenção do delito de bigamia no ordenamento jurídico pátrio,

com a sua consequente aplicação em tempos hodiernos: Ementa: Recurso de apelação. Bigamia. Artigo 235 do Código Penal. Alegação de inexistência de dolo no agir do acusado, que acreditava já encaminhado o divórcio por advogado. Circunstâncias que não amparam a alegação do réu, que afirmou ser solteiro para a segunda esposa. Ademais, o segundo matrimônio foi contraído antes da entrada em vigor da Lei do Divórcio, o que comprova a impossibilidade de, na época, contrair novo casamento. Improvimento do apelo. (Apelação Crime Nº 70001215037, Câmara Especial Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Carlos Cini Marchionatti, Julgado em 14/11/2000).

Já na seara civil, durante muito tempo prevaleceu o entendimento uníssono

de que as uniões estáveis constituídas pelas pessoas casadas não gerariam

Page 216: 44. gt - pluralismo religioso, interculturalisdade e laicidade

3755

quaisquer efeitos jurídicos. Isto equivaleria, segundo a doutrina e a jurisprudência

dominantes, a admitir a bigamia pelo direito brasileiro, o que parecia inviável aos

olhos do legislador pátrio e do judiciário. Nesse sentido, os direitos patrimoniais a

serem concedidos à concubina – via de regra, a figura feminina que mantinha

relações afetivas com o homem casado – eram equiparáveis a uma suposta

sociedade de fato existente entre estes: Ementa: APELAÇÃO CÍVIL. AÇÃO DECLARARTÓRIA DE UNIÃO ESTÁVEL, COM PEDIDO DE RESERVA DE BENS DE INVETÁRIO. Havendo prova de que o de cujos mantinha-se casado e convivia com a mulher e os filhos, inviável reconhecer-se, de regra, união estável simultânea, o que equivaleria a admitir a legalidade da bigamia. Eventuais direitos da concubina adulterina somente podem ser reconhecidos a título de sociedade de fato, se preenchidos seus requisitos (Súmula 380, STF). DESPROVERAM O RECURSO. (Apelação Cível Nº 70000591065, Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Luiz Felipe Brasil Santos, Julgado em 14/06/2000).

Entretanto, constatou-se o vertiginoso crescimento de casos em que a

pessoa casada abandonava o seu lar e constituía uma relação conjugal com outra

pessoa, não obstante manter o título de casada(o), não tendo oficialmente

rompido o seu matrimônio. A incongruência destas situações com a jurisprudência

dominante gerou a necessidade de revisão dos antigos pressupostos jurídicos,

sob pena de não reconhecer novas uniões que se mostravam evidentes tanto

para o antigo casal quanto para o novo.

A relativização paulatina do status decorrente do casamento foi uma

novidade introduzida, nessa sentido, pelo judiciário, suprindo tal necessidade.

Entretanto, os Tribunais brasileiros ainda mantiveram a obrigatoriedade do caráter

monogâmico das relações; com isso, admitia-se que a relação conjugal válida

seria aquela na qual o sujeito estivesse integrado, não obstante o seu vínculo

formal anterior não rompido. Continuava-se, assim, a proibição à existência de

relações afetivas simultâneas ou paralelas, próximas à poligamia: Ementa: DIREITO PREVIDENCIÁRIO. EMBARGOS INFRINGENTES. RECONHECIMENTO DE UNIÃO ESTÁVEL E DEPENDÊNCIA ECONÔMICA. INSCRIÇÃO COMO DEPENDENTE E CONCESSÃO DE PENSIONAMENTO. CABIMENTO. PAGAMENTO DAS PARCELAS VENCIDAS. CORREÇÃO MONETÁRIA. JUROS MORATÓRIOS. HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS. I) Se há prova documental e testemunhal no sentido de que, durante mais de cinco anos,

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3756

houve união estável entre a autora e o ex-segurado, vivendo sob o mesmo teto como se casados fossem e com presunção de dependência econômica, merece acolhida o pedido de pensão, à vista do que dispõe o art. 226, § 3º, da Carta Magna e o art. 9º, II, da Lei-RS 7.672/82. II) Não obstante os termos do § 5º, do art. 9º, da Lei nº 7.672/82, tenho que se presume a dependência econômica da autora em relação ao falecido servidor, tendo em vista que a Carta Magna, no art. 226, § 3º, reconheceu a união estável como entidade familiar, não podendo haver discriminação dos companheiros em relação aos cônjuges. III) Mesmo que um dos conviventes seja legalmente casado, desde que esteja separado de fato, como é o caso, a união que venha a constituir com pessoa de sexo oposto pode ser enquadrada como união estável na definição legal, e ensejar a dependência previdenciária. O que o ordenamento jurídico não homenageia é a bigamia de fato. IV) Correção monetária incidente desde a data em que deveria haver o respectivo desembolso, uma vez que se trata de dívida alimentar e sua reparação deve ser tão completa quanto possível. V) Juros moratórios reduzidos para 6% ao ano, diante da aplicabilidade da Medida Provisória nº 2180-35/2001. Precedentes do STJ. VI) Incidência dos juros a partir da citação válida, nos termos do art. 405 do Código Civil e da Súmula nº 204 do STJ. VII) Verba honorária de 5% sobre o valor das parcelas vencidas, atendendo-se ao art. 20, §§ 3º e 4º, do CPC. Embargos infringentes acolhidos. (Embargos Infringentes Nº 70015079031, Décimo Primeiro Grupo Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Francisco José Moesch, Julgado em 13/12/2006, DJ 04/04/2007).

Nesse sentido, resta claro que há uma prevalência de preceitos cristãos

monogâmicos dentro da legislação e do judiciário brasileiro. O apego ao modelo

monogâmico familiar pode ser inferido mediante a análise de casos decorrentes

de relações simultâneas paralelas pelo judiciário. Não obstante serem casos

distintos de relações poligâmicas, incorrem em fundamentações que traduzem um

possível tratamento semelhante, ao ser negada a possibilidade de constituir-se

família por mais de dois conviventes.

Como se não fosse suficiente a imposição legislativa civil e penal, a

doutrina civilista pátria ainda incorreu na criação de um instituto denominado

“princípio da monogamia”. Mediante a fundamentação de que a sociedade

brasileira se edifica sobre pilares da família monogâmica, disseminou-se a

ideologia de que não é possível a aceitação da existência de famílias paralelas no

Brasil – e, como consequência, também de famílias poligâmicas.

Este suposto princípio tem sido utilizado pelo judiciário brasileiro na análise

de alguns casos acerca das chamadas uniões paralelas ou concomitantes, em

Page 218: 44. gt - pluralismo religioso, interculturalisdade e laicidade

3757

conjunto com a legislação civil e penal pertinente. Tal criação jurídica somente

corrobora para o enrijecimento da estrutura familiar pátria, negando a sua

abertura à novas formas de convivência e afetividade. São evidente e atuais os

julgamentos proferidos pelo judiciário pátrio nesse sentido Ementa: EMBARGOS INFRINGENTES. UNIÃO ESTÁVEL. NÃO-RECONHECIMENTO. PRINCÍPIO DA MONOGAMIA. A organização da família, em nosso sistema, rege-se pelo princípio da monogamia. Logo, não é viável admitir duas entidades familiares concomitantes. Nesse sentido o parágrafo primeiro do art. 1.723 do Código Civil é claro ao dispor que a união estável não se constituirá quando presente algum dos impedimentos matrimoniais elencados no art. 1.521 do mesmo diploma, dentre os quais se alinha a circunstância de um dos parceiros ser casado, na constância fática do casamento. POR MAIORIA, NEGARAM PROVIMENTO. (SEGREDO DE JUSTIÇA) (Embargos Infringentes Nº 70017709262, Quarto Grupo de Câmaras Cíveis, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Claudir Fidelis Faccenda, Julgado em 15/06/2007). Ementa: UNIÃO ESTÁVEL. PRESSUPOSTOS. AFFECTIO MARITALIS. COABITAÇÃO. PUBLICIDADE DA RELAÇÃO. PROVA. PRINCÍPIO DA MONOGAMIA. Não constitui união estável o relacionamento entretido sem a intenção clara de constituir um núcleo familiar. 2. A união estável assemelha-se a um casamento de fato e indica uma comunhão de vida e de interesses, reclamando não apenas publicidade e estabilidade, mas, sobretudo, um nítido caráter familiar, evidenciado pela affectio maritalis. 3. Não é permitido, no nosso ordenamento jurídico, a coexistência de dois casamentos ou de uma união estável paralela ao casamento ou de duas uniões estáveis paralelas. 4. Constitui concubinato adulterino a relação entretida pelo falecido com a autora, pois ele estava casado com outra mulher, com quem convivia. Inteligência do art. 1.727 do Código Civil. 5. Não comprovada a entidade familiar, nem que a autora tenha concorrido para aquisição de qualquer bem, a improcedência da ação impõe-se. Recurso desprovido. (Apelação Cível Nº 70061830386, Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Sérgio Fernando de Vasconcellos Chaves, Julgado em 29/10/2014).

A preocupante conjuntura legal e jurisprudencial arraigada com preceitos

cristãos monogâmicos se revela como um óbice à constituição de famílias que

amparem outras formas de afetividade, distintas da cultura cristã. Nesse sentido,

o Estado brasileiro deve investir em tal reflexão, propiciando a transformação de

tais bases histórico-religiosas, abrindo espaço para a convivência de modelos

culturais diferentes daqueles compartilhados pela maioria da população brasileira.

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3758

Nessa toada, cabe discorrer no capítulo a seguir sobre os valores da laicidade e

liberdade que devem ser parâmetros para o sopesamento no caso em evidência.

6 ENTRE LAICIDADE E LIBERDADE RELIGIOSA

Como já se dispôs, a herança colonial portuguesa deixou como legado

cultural no Brasil o enraizamento histórico, político e social de institutos cristãos.

Isto porque o compartilhamento social de preceitos culturais cristãos se traduziu

na criação de dispositivos jurídicos que vinculavam o funcionamento do Estado à

manutenção da ordem católica no país. Se cada direito reflete os costumes

sociais de cada povo, o direito brasileiro se constituiu sob bases religiosas

oriundas do cristianismo que dominava, à época, a Europa.

Esta assertiva é corroborada pela análise da primeira Constituição do

Brasil, datada de 1824, ainda na época do Império. A referida Carta Magna trazia

em seu texto a clara opção pela adoção de uma religião oficial do Estado: a

Católica Apostólica Romana,115 demonstrando a intensa influência da igreja

católica no referido período. Com o decorrer dos séculos e com a evolução do

debate democrático-constitucional, tal instituto foi abolido do ordenamento jurídico

brasileiro, tendo as Constituições subsequentes do Estado brasileiro optado pela

laicidade estatal.

A doutrina acerca da laicidade estatal prega a separação entre as

instituições religiosas e o Estado, consubstanciado na premissa de que o Estado

não deve adotar qualquer modalidade de religião oficial – como aconteceu em

nossa primeira Constituição nacional. A separação entre as seitas religiosas é

essencial para que seja respeitada a igualdade entre as diferentes crenças na

sociedade, porquanto não se privilegiará qualquer religião ante as demais.116

A afirmação do caráter laico do Estado decorreu historicamente da

reconfiguração da religiosidade, da seara pública para o patamar privado.

115 MORAIS, Márcio E. P.. Religião e direitos fundamentais: o princípio da liberdade

religiosa no Estado constitucional democrático brasileiro. Revista Brasileira de Direito Constitucional, n. 18, pp. 225-242, jul./dez. 2011.

116 RAWLS, John. Uma teoria da justiça. Tradução de Almiro Pisetta e Lenita Maria Rímoli Esteves. 2. Ed. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

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3759

Mediante sucessivos processos históricos, onde as sociedades substituíram

paulatinamente seus regimes hierocráticos por regimes democráticos,117

desvinculou-se a ideia de que os governantes eram investidos por um poder

divino e sagrado. A figura daqueles que ocupam o cargo de poder passou a ser

identificada como consequência dos processos democráticos.

Sem embargo, a laicidade estatal é característica inerente ao próprio

modelo democrático.118 Tendo em conta que a democracia é constituída da

pluralidade de ideias e preceitos, e da convivência conflituosa – porém, tolerante

– entre estes, a desvinculação do Estado à qualquer religião específica

representa a concordância e aceitação deste das mais variadas representações

religiosas sociais, sem que seja ao cidadão imposta qualquer delas.

Assim sendo, a garantia do Estado laico representa um pilar estrutural para

que seja assegurada a liberdade religiosa dos indivíduos. Embora seja possível

existir a liberdade religiosa em um Estado não-laico,119 delimitar a esfera em que

as instituições estatais ultrapassam a medida do razoável e passam a cercear

direitos de culturas alheias é uma árdua tarefa. O ideal, segundo a doutrina

constitucional contemporânea majoritária, seria a adoção de preceitos laicos pelo

Estado, a fim de assegurar aos cidadãos o respeito das suas crenças religiosas.

Consagrada no art. 5º, VI, da Constituição Federal de 1988, a liberdade

religiosa é uma garantia legal aos indivíduos, que lhes confere a prerrogativa de

adotar e seguir qualquer modalidade religiosa na sociedade. É um direito que

pode ser oponível ao Estado – chamada liberdade negativa, que impõe ao Estado

uma abstenção, no momento em que o obriga a não interferir dentro da seara

privada religiosa dos cidadãos.

Pois bem. Mediante o exposto, incorremos em uma atividade reflexiva

crítica para analisar o caso brasileiro que, segundo sua própria Carta Constituinte,

adota os preceitos da laicidade estatal. Entretanto, não são poucos os casos em

117 BOUDON, Raymond (Org.). Tratado de sociologia. Tradução de Teresa Curvelo. Rio de

Janeiro: Jorge Zahar, 1995. 118 RANQUETAT JR., César A. Laicidade, laicismo e secularização: definindo e esclarecendo

conceitos. Tempo da Ciência, Toledo, v. 15, n. 30, jul./dez. 2008. 119 RANQUETAT JR., César A. Laicidade, laicismo e secularização: definindo e

esclarecendo conceitos. Tempo da Ciência, Toledo, v. 15, n. 30, jul./dez. 2008.

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que tal laicidade é posta em dúvida – a invocação do nome de Deus no

preâmbulo constitucional, a presença de imagens sacras em instituições públicas,

além da inscrição “Deus seja louvado” nas cédulas da moeda brasileira.

Assim como estes elementos trazidos à discussão, ousamos incluir os

dispositivos legais que impõem a obrigatoriedade da família monogâmica no

Brasil como decorrentes de preceitos cristãos. Tal imposição se constitui como

evidente óbice à constituição de uma família poligâmica islâmica ou judaica, por

exemplo – ou mesmo de uma família poligâmica ateísta, tendo em vista que o

Estado protege qualquer opção religiosa ou mesmo a opção por religião

alguma.120

Tais institutos jurídicos violam, desse modo, o próprio caráter laico do

Estado brasileiro consagrado constitucionalmente – ao vincular a sua estrutura

legislativa a preceitos de determinada religião. Mais do que isso, constituem uma

interferência desarrazoada dentro do campo privado dos cidadãos, instituindo um

impedimento à plena manifestação dos preceitos culturais da sua seita religiosa

ao serem impedidos de realizar um casamento poligâmico – configurando uma

ofensa à liberdade religiosa.

Atestar que a população brasileira seja constituída majoritariamente por

cristãos – em geral, evangélicos e católicos – não é argumento suficiente para

que a obrigatoriedade do sistema monogâmico seja aceita no Estado brasileiro.121

Um Estado democrático deve primar pelo respeito às minorias e aos seus direitos

subsequentes, principalmente no que tange às suas escolhas privadas. Interferir

na seara íntima individual dos cidadãos sem que haja uma rigorosa e coerente

base argumentativa estatal é violar as premissas de constituição da própria

sociedade.

120 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 30. Edição. São Paulo:

Malheiros, 2008. 121 VECCHIATTI, Paulo Roberto Iotti. Tomemos a sério o princípio do estado laico. Jus Navigandi,

Teresina, ano 13, n. 1830, 5 jul. 2008.

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7 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A investigação histórico-cultural realizada brevemente nas páginas do

presente trabalho teve o condão de demonstrar a origem das bases de formação

social do paradigma monogâmico no Brasil. Evidenciou-se o caráter cultural

religioso que perpassa a edificação da família monogâmica em território nacional,

contando com a contribuição da ideologia cristã, que pregava a aceitação social

do casamento monogâmico como única possibilidade de comunhão carnal.

Paradigma cultural-religioso este que decorreu da colonização portuguesa

em terras brasileiras, vinculada ao processo de surgimento e ascensão dos

valores monogâmicos cristãos na antiga Europa ocidental. Portugal, como Estado

precipuamente católico, estendeu suas relações com a igreja católica ao chamado

“novo mundo”, que carecia ser devidamente “civilizado” pelos colonizadores de

modo a retirar os indígenas da sua vivência supostamente primitiva.

Mediante a referida investigação histórica, pôde-se aferir que a imposição

legislativa do paradigma monogâmico em território brasileiro advém de

concepções religiosas oriundas da doutrina cristã. Dessa forma, o fundamento

que ampara a proibição da constituição da entidade familiar poligâmica no Estado

brasileiro advém de preceitos religiosos, caracterizando a submissão do aparato

estatal à ideologia de uma religião específica, prejudicando os demais cultos.

Tal fato inequivocamente infere a violação do princípio da laicidade estatal

que, conforme rege a Constituição Federal de 1988, encontra-se amparado pelo

ordenamento jurídico pátrio. Privilegiar qualquer seita religiosa individualmente,

cerceando o direito de crença, culto e manifestação de valores culturais-religiosos

das demais, é expressamente vedado pela referida Carta Magna. Nestes termos,

obrigar a sociedade a adotar valores monogâmicos atinge frontalmente a

liberdade de escolha de indivíduos islâmicos ou mesmo ateus, que optem por

modalidade familiar diversa da cristã.

A própria democracia requer a tolerância e o respeito a valores e opiniões

contrários e diversificadas, tendo qualquer Estado democrático a obrigação de

manter a convivência recíproca e harmônica entre elas. Não se deve aceitar ou

mesmo estimular a supressão de qualquer modo de vida minoritário aos valores

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compartilhados pela sociedade, ainda que em sua maioria, sob pena de ruir a

pluralidade de formas de convivência inerentes à plena realização humana.

Assim sendo, o presente escrito prima pela necessidade de revisão dos

institutos estatais que impõem a obrigatoriedade do modelo familiar poligâmico,

vedando consequentemente a possibilidade de existência da poligamia no Brasil.

Através do artigo 1.521, VI, do Código Civil brasileiro, e do artigo 235, do Código

Penal brasileiro, constata-se a existência tanto do impedimento civil quanto da

tipificação penal à prática da poligamia no território nacional.

Refletir e investir na quebra do paradigma obrigatório monogâmico, através

da supressão dos institutos legais que vedam a família poligâmica no Brasil, é

necessidade de última ordem para a garantia dos direitos das minorias não-

cristãs. A abertura legislativa para que as entidades familiares poligâmicas

possam ser constituídas em solo pátrio proporciona aos indivíduos a possibilidade

de, caso seja do seu desejo adotar esta forma de convivência familiar, ter a sua

plena realização pessoal e coletiva atendida pelo Estado.

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