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VOLUME III NÚMERO I RECS 1 DO KULA TROBRIANDÊS AO “HAU” DOS KWAKIULTREFLEXÕES ACERCA DA ECONOMIA NAS SOCIEDADES PRIMITIVAS E SUA CRÍTICA. Aglaé Isadora Tumelero 1 Resumo Resumen Motiva esse trabalho a pergunta: até que ponto os instrumentos da nossa Ciência Econômica Ocidental são aplicáveis à compreensão da forma de organização de outras sociedades, das sociedades primitivas? Na tentativa de trazer luz a esse questionamento, apresentarei as diferentes respostas que duas das principais correntes da Antropologia Econômica oferecem, começando por situar o próprio surgimento da Antropologia Econômica em seu devido contexto, passando pela discussão que a corrente formalista fomenta através de um de seus expoentes Melville Herskovitz, desembocando em seguida na interpretação substantivista, representada, principalmente, por Karl Polanyi e, mais recentemente, por Cris Gregory, finalizando com um breve esboço da crítica feita a essas duas interpretações por Marshal Sahlins, Arjun Appadurai e Marilyn Strathern. Motiva este trabajo la cuestión: en qué medida los instrumentos de nuestra ciencia económica occidental son aplicables a la comprensión de la forma de organización de otras sociedades, las sociedades primitivas? En un intento de llevar la luz a esta pregunta, voy a presentar las diferentes respuestas a dos de las principales corrientes de la oferta Antropología Económica, empezando por poner el mismo surgimiento de la antropología económica en el contexto adecuado, paso ala discusión que la corriente formalista fomenta a través de su exponente Melville Herskovitz -, dando lugar entonces a interpretación sustantivista, representada principalmente por Karl Polanyi y, más recientemente, por Chris Gregory, terminando con una breve reseña de las críticas de estas dos interpretaciones de Marshall Sahlins, Arjun Appadurai y Strathern Marilyn. Palavras chaves: Formalismo, Substantivismo, Fetichismo, Economia primitiva, Antropologia Econômica. Palabras claves: Formalismo, Sustantivismo, Fetichismo, Economía Primitiva, Antropología Económica. 1 Acadêmica do Curso de Ciências Sociais da Universidade Federal de Santa Catarina. Semestre 2012.2. Contato: [email protected]

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RECS

1

DO KULA TROBRIANDÊS AO “HAU” DOS KWAKIULT– REFLEXÕES

ACERCA DA ECONOMIA NAS SOCIEDADES PRIMITIVAS

E SUA CRÍTICA.

Aglaé Isadora Tumelero1

Resumo Resumen

Motiva esse trabalho a pergunta: até que ponto os

instrumentos da nossa Ciência Econômica

Ocidental são aplicáveis à compreensão da forma de

organização de outras sociedades, das sociedades

primitivas? Na tentativa de trazer luz a esse

questionamento, apresentarei as diferentes respostas

que duas das principais correntes da Antropologia

Econômica oferecem, começando por situar o

próprio surgimento da Antropologia Econômica em

seu devido contexto, passando pela discussão que a

corrente formalista fomenta através de um de seus

expoentes – Melville Herskovitz, desembocando em

seguida na interpretação substantivista,

representada, principalmente, por Karl Polanyi e,

mais recentemente, por Cris Gregory, finalizando

com um breve esboço da crítica feita a essas duas

interpretações por Marshal Sahlins, Arjun

Appadurai e Marilyn Strathern.

Motiva este trabajo la cuestión: en qué medida los

instrumentos de nuestra ciencia económica occidental

son aplicables a la comprensión de la forma de

organización de otras sociedades, las sociedades

primitivas? En un intento de llevar la luz a esta

pregunta, voy a presentar las diferentes respuestas a

dos de las principales corrientes de la oferta

Antropología Económica, empezando por poner el

mismo surgimiento de la antropología económica en el

contexto adecuado, paso ala discusión que la corriente

formalista fomenta a través de su exponente Melville

Herskovitz -, dando lugar entonces a interpretación

sustantivista, representada principalmente por Karl

Polanyi y, más recientemente, por Chris Gregory,

terminando con una breve reseña de las críticas de

estas dos interpretaciones de Marshall Sahlins, Arjun

Appadurai y Strathern Marilyn.

Palavras chaves: Formalismo, Substantivismo,

Fetichismo, Economia primitiva, Antropologia

Econômica.

Palabras claves: Formalismo, Sustantivismo,

Fetichismo, Economía Primitiva, Antropología

Económica.

1 Acadêmica do Curso de Ciências Sociais da Universidade Federal de Santa Catarina. Semestre 2012.2.

Contato: [email protected]

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Antropologia Econômica

A Antropologia Econômica surge dentro

da antropologia, paralelamente, a um

contexto de discussão próprio da Ciência

Econômica, que é o debate entre Economia

Política e Economia Neoclássica. O

primeiro a lançar as bases para a construção

de uma Antropologia Econômica é

Malinowski, em seu estudo sobre o circuito

Kula dos povos Trobriand da Nova Guiné

no Pacífico Sul, publicado em 1922.

Vamos, portanto, às distinções.

A Economia Política, também chamada de

macroeconomia, foi a principal corrente da

Ciência Econômica até 1870 e se caracteriza

por um holismo metodológico, isto é, pela

premissa muito bem expressa por Aristóteles

de que “o todo é maior do que a simples

soma de suas partes”. O foco da economia

política era a (re)produção social da

sociedade capitalista, as relações sociais de

produção, as leis de movimento do

capitalismo e as relações sociais objetivas

como, a divisão social do trabalho, a

produção, a circulação, a distribuição e o

consumo de mercadorias entre os homens.

A atividade econômica era vista como

essencialmente coletiva, social. A principal

expressão dessa premissa é a teoria do valor

trabalho, segundo a qual o valor da

mercadoria é a quantidade de tempo de

trabalho investido nela. Os principais

pensadores dessa corrente foram David

Ricardo, Adam Smith e Karl Marx. Essa

concepção de economia seria o alicerce,

posteriormente, da corrente substantivista

dentro da Antropologia Econômica.

A partir de 1870, o centro de preocupação de

grande parte dos economistas desloca-se para

o que seria chamado de Revolução Marginal

e tem início um período da economia

chamado de Neoclássico. O foco do princípio

marginal não era o aspecto social, mas sim a

análise geral da escassez e a escolha racional

individual. O axioma que guiava essa

corrente era de que o individuo possui

desejos ilimitados e meios limitados para

satisfazê-los, e por isso depara-se com uma

situação de escassez, tendo então, que fazer

escolhas, especificamente escolhas racionais.

Vale dizer, racional no sentido de maximizar

utilidade. Assim, o raciocínio de mercado era

aplicado a toda ação humana e as relações

dos homens com as coisas eram vistas como

relações subjetivas, uma vez que para essa

interpretação os desejos que impulsionam as

escolhas são subjetivos, resultando numa

teoria do valor utilidade que postulava que o

comportamento individual explica o todo.

Os marginalistas forneceram conceitos

microeconômicos, utilizando ferramentas

básicas de demanda e oferta, satisfação dos

consumidores e uma base matemática para a

utilização dessas ferramentas. A economia

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então passou a ser vista como uma ciência

exata e o indivíduo como um consumidor,

um homo economicus. Os principais

expoentes dessa corrente são Carl Menger,

Stanley Jevons e Léon Walras. Essa

concepção de economia forneceria os

instrumentos conceituais, posteriormente,

para a corrente formalista da Antropologia

Econômica.

Em 1922, quando Malinowski publica sua

obra Os Argonautas do Pacifico Ocidental, a

concepção neoclássica de economia já era

dominante. O estudo do circuito Kula dos

povos Trobriand da Nova Guine é uma

espécie de economia política primitiva e se

opõe a todas as teorias neoclássicas que

postulam o comércio primitivo como

silencioso, individualista e utilitário. A noção

de comércio silencioso definida pelo

antropólogo James Frazer, postula que, por

exemplo, se uma tribo X produz arcos e

flechas e uma tribo Y produz panelas de

cerâmica, e uma vez que uma tribo precisa

daquilo que a outra produz, a troca entre os

produtos será igual. Isto é, uma quantidade

“n” de arcos e flechas, corresponderá a uma

quantidade “n” de panelas de cerâmica. Tal

pressuposto remete à ideia de troca utilitária

motivada por um interesse individual, egoísta

e imediato.

Segundo Malinowski (1978), o Kula é uma

forma de troca intertribal de caráter

semicomercial e cerimonial bastante ampla,

praticada por comunidades localizadas num

conjunto de ilhas que formam um circuito

fechado, unindo uma ilha a outra ao norte e

ao leste do extremo oriente da Nova Guiné.

Ao longo dessa rota dois tipos de artigos

viajam constantemente em direções opostas,

os soulva (colares feitos de conchas

vermelhas) e os mwali (braceletes feitos de

conchas brancas). Cada movimento desses

dois artigos é fixado e regulado por uma série

de regras e convenções tradicionais e

associado a essa troca está, paralelamente,

uma série de atividades secundárias como um

comércio comum, onde se negocia de uma

ilha para a outra bens que não são fabricados

pelo distrito que os importa, mas são

indispensáveis à sua economia.

Malinowski (1978) considera o kula como

uma instituição econômica por estar

associado à troca de riquezas e de objetos de

utilidade. Entretanto, segundo ele, o kula

contradiz a definição de comércio primitivo,

isto é, trocas de artigos indispensáveis, ou

úteis, executadas sem quaisquer cerimônias e

sem qualquer regulamentação, motivadas

pela pressão da carência ou da necessidade.

O kula, ao contrário, está enraizado em

mitos, sustentado pelas leis da tradição e

cingido por rituais mágicos. Todas as

transações são públicas e cerimoniais,

realizando-se periodicamente em datas pré-

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estabelecidas, ao longo de rotas comerciais

definidas que conduzem a locais fixos de

encontro.

Segundo Malinowski (1978), o ganho, por

exemplo, que é frequentemente o estímulo ao

trabalho nas comunidades mais civilizadas,

jamais funciona como incentivo para o

trabalho sob as condições tipicamente

nativas. Assim, “o homem que está habituado

a raciocinar nos termos da atual teoria

econômica, aplica ao trabalho noções de

oferta e procura e, em consequência, aplica-

as também ao trabalho nativo”, porém, “se

analisarmos através de padrões morais, legais

e econômicos, também essencialmente

estranhos a ele, o resultado de nossa análise

não passará de uma caricatura da realidade”.

(Malinowski, 1978, p. 81). Em sua analise do

circuito Kula, Malinowski rompe tanto com a

noção de egoísmo primitivo, quanto com a

noção ingênua de comunismo primitivo e

inspirará reflexões sobre as origens da

riqueza e do valor, do comércio e das

relações econômicas em geral.

Formalistas versus Substantivistas

Os termos usados para designar as duas

principais correntes dentro da Antropologia

Econômica- que fazem uso dos métodos e

instrumentos tanto da Economia Política

como da Economia Neoclássica para explicar

o funcionamento da organização econômica

dentro das sociedades primitivas – são parte

importante do pensamento de Karl Polanyi, o

qual preocupado com a questão metodológica

de evitar a “falácia economicista” que

consiste na identificação automática da

economia com sua forma de mercado,

distingue entre a concepção formal e

substantiva de economia.

Herskovits e o ato humano universal

Um dos principais antropólogos da corrente

formalista é o americano Melville

Herskovits. Segundo Herskovits em sua obra

“Antropologia Cultural – Man and his

works”, a maior parte das sociedades tem

uma economia dual: uma para satisfação das

necessidades primárias (biológicas) e outra

orientada para a satisfação das necessidades

psicoculturais, como o desejo de prestígio,

por exemplo.2 A economia de prestígio, no

entanto, só pode existir onde os mecanismos

de produção fornecem mais do que o

necessário para satisfazer as necessidades

biológicas, ou seja, depende da existência de

um excedente econômico. A existência desse

excedente econômico por sua vez, depende

do tamanho da população, de condições

ambientais e da capacidade tecnológica.

Assim, segundo Herskovits, apenas “os

grupos maiores atingem per capita uma

2 O Kula descrito por Malinowski, por exemplo, sob

a perspectiva formalista seria enquadrado como uma

economia de prestígio.

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produtividade superior às suas necessidades,

enquanto que os menores não” e, portanto

“[...] o papel do excedente econômico é, ao

liberar da necessidade de trabalhar

estritamente para viver, proporcionar o ócio

social”. (Herskovits 1963, p.70). Esta é,

portanto, uma interpretação materialista da

economia primitiva, pois postula que na

medida em que as condições materiais vão se

aprimorando é que se torna possível o

desenvolvimento das condições culturais.

Para a interpretação formalista a escassez de

bens em vista das necessidades de um

determinado povo e em um contexto dado

constitui um feito universal da experiência

humana, sendo uma “[...] verdade óbvia que

as necessidades são suscetíveis de uma

graduação de expansão cujo limite não foi

alcançado por nenhuma sociedade

conhecida” (Herskovits, 1963, p. 13) e que,

consequentemente, o ato de economizar (isto

é, maximizar utilidade, alocar racionalmente

os recursos disponíveis para satisfazer fins

alternativos de modo a garantir o máximo de

resultado com o menor custo possível) é

tipicamente um ato humano universal.

Herskovits ressalta, entretanto, que esse ato

humano universal se realiza dentro de uma

matriz cultural, ou seja, “las convenciones

sociales, las creencias religiosas, las ideas

esteticas y los preceptos éticos contribuyem a

conformar las necessidades de los pueblos y

el momento, el lugar y las circunstancias em

que pueden satisfacerse”. (Herskovits, 1963,

p. 15).

Polanyi e a falácia economicista

A corrente substantivista é representada,

principalmente, pelo filósofo e historiador

austríaco Karl Polanyi. Segundo Polanyi

(1976), o termo econômico é composto de

dois significados que possuem raízes opostas

e independentes: o significado substantivo e

o significado formal. Para ele, somente a

perspectiva substantivista pode fornecer os

conceitos necessários para as ciências sociais

compreender outras culturas, pois a

“utilização do significado formal implica que

o sistema econômico seja uma sequência de

atos para economizar, quer dizer, de escolhas

induzidas por situações de escassez, e tal

situação só se consegue num sistema de

mercado” (Polanyi, 1976, p. 23). Segundo

Polanyi (1976), o primeiro obstáculo que se

opõem a essa tarefa é a confusão entre os

dois significados, decorrente de uma

contingência histórica nos últimos 150 anos

na Europa e na América do Norte que é o

surgimento e expansão dos mercados

formadores de preço, isto é, os preços surgem

das relações dinâmicas entre oferta e procura.

O mercado formador de preço se constitui

como forma de integração dominante,

abrangendo em suas relações de oferta e

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procura tanto terra e trabalho, quanto força

humana e tudo o que puder quantificar. É

nele que as ações dos indivíduos assumem a

forma de escolha entre fins alternativos a

partir de meios limitados, sendo tais escolhas

expressas e determinadas nos preços. É

nessas relações que reside a simbiose entre a

concepção substantivista e formalista e que,

consequentemente, gera a falácia

economicista, segundo a qual todos, ou

grande parte, dos comportamentos humanos

reduzem-se a escolhas entre fins alternativos

com base nos meios limitados disponíveis e

que os princípios da escassez e escolha

racional, típicos da situação de mercado,

operam e explicam outras formas de

comportamento econômico. Polanyi não

descarta que a interação entre a definição

formal e a substantivista seja válida, mas

ressalta que só é válida para explicar uma

sociedade de mercado.

Segundo Polanyi (1976), a origem do

conceito substantivo do econômico é o

sistema econômico empírico, isto é, o

processo instituído de interação entre o

homem com o meio ambiente, que tem como

consequência e propósito um contínuo

abastecimento dos meios materiais que

necessitam ser satisfeitos. O sistema

econômico é, portanto, um processo

institucionalizado. Assim, dessa definição

emergem aqui dois conceitos, o de processo

e o de institucionalizado. O primeiro sugere

o movimento, a produção, a redistribuição e

o consumo dos recursos, isto é, a dinâmica

do processo; e o segundo, refere-se à

unidade, a estabilidade e a interdependência

do processo econômico, o modo de

organização, ou seja, as estruturas que

surgem com função determinada na

sociedade. O objeto de estudo para os

substantivistas é, portanto, a forma como o

processo econômico é instituído, e o aparato

conceitual substantivo baseia-se nas formas

de integração, isto é, na maneira como a

economia adquire unidade e estabilidade,

através da interdependência e recorrência de

suas partes.

Polanyi (1976) define três formas de

integração: Reciprocidade, Redistribuição e

Intercâmbio. Enquanto a reciprocidade

denota movimentos entre pontos correlativos

de agrupamentos simétricos e pressupõe

como pano de fundo agrupamentos

simetricamente dispostos, a redistribuição,

concomitantemente, designa os movimentos

de apropriação para um centro e logo para o

exterior, dependendo em certa medida da

presença de centralidade no agrupamento. O

intercâmbio, por sua vez, para poder servir de

forma de integração requer um sistema de

formação de preços pelo mercado. Polanyi

(1976) distingue três classes de intercâmbio:

1) o movimento meramente local de troca de

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lugar de empresas (intercâmbio operacional);

2) o movimento aproximativo de

intercâmbio, com um índice fixo

(intercâmbio decisional) e 3) o intercâmbio

com um índice contratual (intercâmbio

integrador).

Ao distinguir entre os setores e os níveis da

economia, essas formas oferecem um meio

para descrever o processo econômico em

termos comparativamente simples,

introduzindo, segundo Polanyi (1976), uma

medida e uma ordem nas infinitas variações.

Contudo, tais formas de integração não

representam etapas de desenvolvimento e

nenhuma ordem temporal, podendo

apresentar-se concomitantemente a forma de

integração dominante de determinada

sociedade e, podendo repetir-se depois de um

eclipse temporal.

Chris Gregory e a oposição Mercadoria e

Dádiva

A partir de campo entre os povos da Papua

Nova Guiné, Chris Gregory constrói a

oposição entre dádiva e mercadoria em sua

obra Gifts and Comodities, publicada em

1982. Segundo ele, Marcel Mauss, Lewis

Henry Morgan e Lévi-Strauss dão

continuidade em suas obras – “Ensaio sobre a

Dádiva”, “Sistemas de Consanguinidade e

Afinidade da Família Humana” e “Estruturas

Elementares do Parentesco”, respectivamente

-, ao pensamento e as questões da economia

política na antropologia econômica, uma vez

que o foco de suas análises está naquilo que é

a preocupação essencial da economia

política, isto é, nas condições e sistemas de

(re)produção da sociedade. Vale ressaltar,

contudo, que enquanto a economia política

stricto sensu tratava das condições materiais,

Morgan e Lévi-Strauss voltam-se ao

parentesco, isto é, uma economia de pessoas.

Defendendo uma perspectiva estendida da

economia política para o campo da

antropologia econômica, Gregory (1982)

parte do conceito de dádiva de Mauss para

compreender as economias primitivas e do

conceito de mercadoria de Marx para

compreender as sociedades de regime

capitalista. Uma vez que ambos os conceitos

remetem não apenas a um regime

transacional distinto, mas a regimes morais e

culturais específicos, Gregory fala em

economias políticas distintas: uma economia

política de mercadoria e outra da dádiva.

Retomarei brevemente as definições de cada

conceito segundo seus respectivos autores, a

fim de elucidar os principais elementos pelos

quais Gregroy constrói o par dádiva–

mercadoria.

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Marx e a mercadoria, Mauss e a dádiva

O conceito de mercadoria encontra-se em

seus múltiplos detalhes na obra de Karl Marx

– O Capital -, escrito em 1848. Segundo ele,

a mercadoria é a forma elementar da riqueza

nas sociedades onde rege a produção

capitalista e ela possui um duplo caráter

expresso pelo seu valor de uso e pelo seu

valor de troca.

O valor de uso refere-se às propriedades

intrínsecas do produto que se efetiva no seu

consumo e aos usos potenciais de qualquer

produto, os quais são explorados de acordo

com a tecnologia disponível. O valor de

troca, ao contrário, se efetiva na troca com

outro produto e o que lhe confere essa

capacidade de troca é o fato de o produto

expressar trabalho humano, isto é, é somente

por expressar trabalho humano que elas

encarnam valor. Marx ressalta que o produto

para se tornar mercadoria tem de ser

transferido a quem vai servir como valor de

uso por meio de troca.

Nas sociedades de economia capitalista, as

trocas se efetivam em sua maioria no

mercado e, para haver equivalente no

mercado, isto é, para que os valores de troca

sejam equivalentes é necessário que eles

sejam reduzíveis a uma unidade comum, ou

seja, a trabalho humano abstrato. Logo, se o

valor de troca apenas se efetiva na relação de

um produto com o outro, o que se tem no

mercado é uma equivalência entre coisas,

pois o modo multilateral de um produtor ser

para o outro, é o modo de ser de suas

mercadorias. O que há, portanto, é um

fetichismo do produto/mercadoria, uma vez

que as relações sociais se apresentam como

relações entre coisas.

O conceito de dádiva de Marcel Mauss

encontra-se em sua obra Ensaio sobre a

Dádiva: forma e razão da troca nas

sociedades arcaicas, escrito em 1925, que

versa sobre o regime do direito contratual e o

sistema de prestações econômicas entre os

habitantes de Samoa na Polinésia, os povos

Trobiand da Melanésia estudados por

Malinowski e os povos Tlinght, Haida,

Tsimshian e Kwakiult da costa do Pacífico

no Noroeste da América da Norte.

Segundo Mauss, nas economias e nos direitos

dessas sociedades não se constata a simples

troca de bens, riquezas e de produtos num

mercado estabelecido entre os indivíduos.

Pelo contrário, não são indivíduos que se

obrigam mutuamente, trocam e contratam,

mas sim, pessoas morais como clãs, tribos e

famílias. Segundo ele, os objetos trocados

não são coisas úteis economicamente, mas

banquetes, ritos, serviços militares, mulheres,

crianças, festas, das quais o mercado é

apenas um dos momentos. Essas prestações e

contraprestações que se estabelecem de

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forma voluntária constituem o que Mauss

chama de Sistema de Prestações Totais.

O Sistema de Prestações Totais constitui-se

pela obrigação de dar, de receber, de retribuir

e em algumas sociedades, pela obrigação de

solicitar. Entre os habitantes de Samoa, por

exemplo, os tonga - esteiras brasonadas de

casamento que as jovens filhas herdam ao se

casarem -, entram pela mulher na família

recém fundada, com a condição de

reciprocidade, pois eles e todas as

propriedades rigorosamente ditas pessoais

tem um hau, isto é, um poder espiritual.

Assim, “você me dá um tonga e eu o dou a

um terceiro; este me retribui outro, porque

ele é movido pelo hau da minha dádiva; e eu

sou obrigado a dar-lhe essa coisa, porque

devo devolver-lhe o que em realidade é o

produto do hau do seu tonga”. (Mauss, 2011

p. 198). O hau acompanha não apenas o

primeiro donatário, mas todo indivíduo ao

qual o tonga é simplesmente transmitido.

Os outros dois principais momentos que são

complementares a instituição da Prestação

Total implicam na obrigação de dar e de

receber. Segundo Mauss, recusar dar,

negligenciar convidar, assim como recusar

receber, equivale a declarar guerra; é recusar

a aliança e a comunhão. Em todas essas

obrigações há uma série de direitos e deveres

de consumir e de retribuir, correspondendo a

direitos e deveres de dar e de receber. Essa

mistura íntima de direitos e deveres

simétricos e contrários, aparentemente

contraditória é consequência, antes de tudo,

de uma mistura de vínculos espirituais entre

as coisas, a qual estabelece uma relação

inalienável entre recebedor e doador.

Gregory (1982) traça uma comparação entre

cada conceito e, consequentemente, uma

oposição entre ambos. Assim, segundo ele, a

mercadoria como expressão das relações

sociais dentro da economia capitalista,

caracteriza uma relação quantitativa entre

protagonistas independentes motivados por

interesses individuais, os quais realizam uma

troca de coisas alienáveis e possuem um

vínculo temporário, que existe apenas no

momento da troca. Expressão também de

uma produção consumidora, na qual toda

produção é ao mesmo tempo consumo de

mão-de-obra, isto é, objetificação, a

mercadoria reduz a dimensão social ao

âmbito do mercado. Portanto, a relação social

que se estabelece entre as pessoas e entre as

pessoas e as coisas é uma relação com forma

de mercadoria.

Contrariamente, a dádiva, segundo Gregory

(1982), é um contraponto a noção de

mercadoria para outras sociedades que não

tenham um regime capitalista, uma vez que

ela expressa uma relação qualitativa de

interdependência entre os protagonistas da

troca devido ao constrangimento social,

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moral ou mágico que ela estabelece. A troca

para essas sociedades não é uma instância

autônoma da sociedade, mas sim, um

conjunto de atividades envolto em outras

relações sociais como o parentesco, a

religião, etc. A dádiva caracteriza a ausência

de propriedade entre as coisas, uma vez que

os objetos trocados são inalienáveis,

estabelecendo, assim, um vínculo

permanente entre as pessoas. Expressão

também de um consumo produtivo, onde

todo consumo é produção, ou seja,

personificação, a dádiva é expressão de um

sistema econômico onde as relações sociais

entre as pessoas e entre as pessoas e as coisas

assume a sua forma. Assim, “se, numa

economia mercantil, as pessoas e as coisas

assumem a forma social de coisas, numa

economia de dádivas ela assumem a forma

social de pessoas” (Gregory, 1982, p. 41),

Entre Formalistas e Substantivistas: a sua

crítica

A crítica aos formalistas e substantivistas é

feita por uma ampla gama de autores,

apresentarei brevemente, entretanto, a crítica

feita por Marshal Sahlins, com base no seu

estudo sobre os povos caçadores coletores,

por Arjun Appadurai e por Marylin Strathern.

Estes últimos dirigem suas críticas

especificamente ao par dádiva e mercadoria

construído por Gregory e aprofundam o

debate epistemológico acerca da questão

sobre até que ponto os instrumentos da nossa

Ciência Econômica Ocidental são aplicáveis

à compreensão da forma de organização de

outras sociedades.

Marshal Sahlins e os povos caçadores

coletores

Sahlins parte da constatação de que tanto

para os formalistas quanto para Polanyi, as

economias primitivas são caracterizadas pelo

adjetivo “sem”. Sem dinheiro, sem mercado,

sem divisão social do trabalho, sem

tecnologia sofisticada, sem excedentes, sem

Estado, sem cultura. Assim, “depois de dotar

o caçador de impulsos burgueses e de equipá-

lo com instrumentos paleolíticos, julgamos

sua situação de atemão desoladora” (Sahlins,

2007, p.109).

Através do estudo das sociedades de povos

nômades caçadores e coletores, Sahlins

afirma que há dois caminhos possíveis para a

afluência: as necessidades podem ser

facilmente satisfeitas, quer por se produzir

muito, quer por se desejar pouco. Para os

caçadores e coletores o postulado da

subsistência e da escassez é invertido, ou

seja, deseja-se pouco e vive-se na

abundância. Essa abundância, contudo, não

se refere a excedente, mas a uma forma

confortável de conseguir/ garantir a

alimentação.

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Em relação à afirmação de Herskovits de que

a escolha racional opera dentro de uma

matriz cultural, Sahlins afirma que não há

escolha racional alguma, pois as escolhas não

foram instituídas (evoca Polanyi e a

definição substantivista) nas sociedades

primitivas. Ou seja, enquanto nossa

sociedade institui a escolha, nas sociedades

primitivas dos caçadores e coletores os

desejos nem chegaram a florescer. Sahlins

inaugura um movimento de positivação das

sociedades primitivas. Segundo ele, por trás

da ideia de sociedades “sem”, há um

materialismo que postula que a economia

determina todas as relações e direciona o

olhar de quem as observa para o que lhes

falta e não para sua abundância.

Appadurai e a Biografia Social das coisas

Arjun Appadurai critica a divisão feita por

Gregory entre dádiva e mercadoria, acusando

tal divisão de exagero nos contrastes entre

ambos os conceitos e de romantismo

exacerbado, uma vez que nega o “cálculo

racional” feito pelos povos ditos primitivos.

Segundo Appadurai, a oposição feita por

Gregory representa uma interpretação sobre o

par nós X eles fundante da antropologia.

Em contrapartida à crítica, Appadurai (2010)

propõe uma redefinição do conceito de

mercadoria com base na constatação de que

mercadorias existem em todas as sociedades,

mas com intensidades distintas. Assim, ao

invés de mercadoria ele fala em situação de

mercadoria, isto é, uma situação específica

da vida social das coisas em que seu

potencial para troca por outras coisas é seu

aspecto social relevante. Tal situação de

mercadoria é formada por três componentes:

sua fase biográfica de coisa, seu potencial à

mercadoria e o seu contexto histórico

cultural. Em consonância com isso,

Appadurai (ibidem) propõe como método

para compreender como cada sociedade

determina as regras de como algo pode ser

trocado, um fetichismo metodológico, isto é,

seguir a trajetória biográfica das coisas,

analisar os contextos e as formas pelas quais

elas circulam.

Appadurai inaugura um movimento de

mudança na perspectiva em que as

economias primitivas são observadas,

passando do olhar voltado para o regime

transacional para o foco nas coisas em si, nas

suas fases biográficas.

Marylin Strathern e as Conceituações

Nativas

A crítica feita por Marylin à oposição dádiva

e mercadoria encontra-se em sua obra O

Gênero da Dádiva, publicado em 1988.

Influenciada pela obra A Invenção da

Cultura de Roy Wagner - especificamente,

pela teoria semiótica do conceito de metáfora

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de Wagner -, Marylin chamará a atenção para

a questão epistemológica implicada na

oposição dádiva e mercadoria.

A teoria semiótica do conceito de metáfora

de Wagner (2010) postula que os conceitos

que nós criamos e utilizamos para nos

entender e compreender os outros são

metáforas construídas a partir da forma como

se estabelece a relação do homem com a

natureza, ou seja, são extensões do familiar.

Assim, da mesma forma como nós usamos

metáforas como “natureza”, “cultura”,

“individuo”, “sociedade” para compreender a

nós mesmos e a tudo o que não fizer parte do

“nós”, eles – os primitivos -,também criam e

usam suas próprias metáforas para nos

entender e entender a si próprio. Trata-se,

então, de estilos de criatividade distintos.

Dessa forma, aponta Wagner (2010), não é

possível obter uma objetividade absoluta – a

qual é a ambição de toda ciência -, na

descrição de outros povos, uma vez que

enquanto observadores nós também

possuímos um quadro de metáforas nossas

para entender os outros. Contudo, podemos

chegar a uma objetividade relativa a partir do

estabelecimento de relações entre as nossas

metáforas e as deles, isto é, compreendendo a

relação estabelecida entre diferentes formas

da experiência humana.

A obra de Marylin parte não somente da

leitura de Roy Wagner, mas também da sua

experiência em campo entre os povos das

Terras Altas da Papua Nova Guiné e do

estudo de grande parte das monografias

escritas pelos antropólogos sobre aquela

região. Segundo ela, é latente nas

monografias um holismo metodológico, isto

é, uma totalidade presente e clara, uma

interconexão entre as coisas de forma que

uma coisa explica a outra. A partir disso, o

conceito semiótico de metáfora de Wagner

tornar-se-á um idealismo heurístico para

Marylin, isto é, um idealismo como método.

Segundo ela (1999), em concordância com

Wagner, não há problema no uso de

metáforas, uma vez que elas são inevitáveis.

O problema reside, no entanto, em tomar a

sistematicidade do método e dos modelos

como sistematicidade do objeto. Assim, em

relação ao par dádiva e mercadoria, não se

trata de eliminá-lo, mas de explicitar suas

premissas de modo a deixar claro que os

conceitos de indivíduo, sociedade e

propriedade que estão relacionados ao par

dádiva e mercadoria fazem parte de

conceituações nossas. Destarte, segundo ela,

se numa sociedade da mercadoria a diferença

entre nós e eles se apresenta como a oposição

mercadoria e dádiva, o grande desafio é saber

como numa sociedade da dádiva as metáforas

são produzidas e como elas se projetam.

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Considerações Finais

A partir do questionamento levantado no

início desse trabalho, tentei trazer, mesmo

que de forma breve, como a Antropologia

Econômica vem desenvolvendo respostas

acerca dessa questão. Tal questionamento,

contudo, remete a uma tentativa mais

profunda de adentrar na forma como o

pensamento antropológico, este que se

propõe “olhar com outro olhar” para as

sociedades nativas, considera, na construção

desse outro olhar, as cosmologias não-

ocidentais, isto é, as próprias explicações

nativas sobre a realidade.

Nesse sentido, as reflexões acerca das

economias primitivas, até recentemente,

foram embasadas e guiadas, não só pelo

instrumental que a economia política e a

economia neoclássica fornecem, mas também

pelos binarismos que caracterizam o

pensamento Ocidental, isto é, a oposição

entre natureza versus cultura, universal

versus particular, objetivo versus subjetivo,

imanência versus transcendência, corpo

versus espírito, animalidade versus

humanidade, etc. Contudo, acredito, que a

compreensão das economias primitivas ou

melhor, da forma como essas sociedades se

organizam, exige tanto um posicionamento

perspectivo, quanto o despojamento, a

desnaturalização e, consequentemente, a

suspensão das categorias com que o

pensamento ocidental torna a realidade

inteligível.

Trata-se, portanto, de desprender o olhar

daquilo que o prende a um ponto apenas da

orbita ocular e deixá-lo navegar pelas

perspectivas que outros pontos dessa orbita

proporcionam. O que significa deixar de ver

as sociedades primitivas como objeto, como

sociedades que não pensam e não refletem

sobre suas ações, sobre sua cultura, e sim,

como sociedades que também possuem suas

teorias, seus conhecimentos e suas metáforas,

como diria Roy Wagner.

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Recebido em: 09/11/2012

Aprovado em: 08/03/ 2013