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7/18/2019 466 http://slidepdf.com/reader/full/46655cf8583550346484b8edfbc 1/11 III Simpósio Nacional de História Cultural Florianópolis, 18 a 22 de setembro de 2006 4416 INFÂNCIA NO ESTADO NOVO: CARTILHA GETÚLIO VARGAS PARA CRIANÇAS Giani Rebelo – Mestre em Educação - UNESC  Tatiane dos Santos Virtuoso – Mestranda em Educação – UFSC  Cartilha Getúlio Vargas para Crianças: um pouco do cenário histórico no qual foi produzida Problematizar o conteúdo deste documento, a fim de perceber que infância se  pretendia construir no Estado Novo, implica em situá-la historicamente. Partimos do pressuposto de que essa cartilha se constitui num artefato cultural, um objeto cultural, um produto histórico. Assim, não iremos partir do “horizonte documental” e sim do “horizonte histórico”, ou seja, de problemas históricos, pois o trabalho documental e o trabalho de pesquisa são as faces da mesma moeda (MENEZES, 1999. p. 26 e 27). Um documento só se torna um documento histórico quando o pesquisador passa a fazer perguntas a ele, caso contrário é só mais um documento. Também acreditamos que essa cartilha é um monumento. Para Le Goff, todo documento tem em si um caráter de monumento, pois não existe memória coletiva bruta. “O documento não é qualquer coisa que fica por conta do passado, é um produto da sociedade que o fabricou segundo as relações de força que aí detinham o poder” (1994. p. 545). Em seu governo, Getúlio Vargas articula um processo tardio, o qual algumas sociedades já haviam efetivado, ou seja, o processo de construção da nação. A consolidação dos estados nacionais implicava na definição de uma identidade nacional que sustentasse algumas indagações básicas como: Quem somos e quem são os outros? As respostas formuladas a essas perguntas foram sendo esboçadas nos livros didáticos, nos romances e nas crônicas da época, nos jornais, enfim disseminados por vários meios (NUNES, ano, p.373). Analisando o cenário brasileiro percebemos que embora a idéia de nação, conhecida na modernidade, tenha tido seu início no Brasil logo após a “Independência”, apenas a partir  [email protected]   [email protected]  c l i q u e p a r a  r e t o r n a r c l i q u e p a r a  r e t o r n a r c l i q u e p a r a  r e t o r n a r c l i q u e p a r a  r e t o r n a r

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Infância no Estado Novo

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INFÂNCIA NO ESTADO NOVO: CARTILHA GETÚLIO VARGAS PARA

CRIANÇAS

Giani Rebelo – Mestre em Educação - UNESC∗ 

Tatiane dos Santos Virtuoso – Mestranda em Educação – UFSC∗ 

Cartilha Getúlio Vargas para Crianças: um pouco do cenário histórico no qual foi

produzida 

Problematizar o conteúdo deste documento, a fim de perceber que infância se

 pretendia construir no Estado Novo, implica em situá-la historicamente.

Partimos do pressuposto de que essa cartilha se constitui num artefato cultural, um

objeto cultural, um produto histórico. Assim, não iremos partir do “horizonte documental” e

sim do “horizonte histórico”, ou seja, de problemas históricos, pois o trabalho documental e o

trabalho de pesquisa são as faces da mesma moeda (MENEZES, 1999. p. 26 e 27). Um

documento só se torna um documento histórico quando o pesquisador passa a fazer perguntas

a ele, caso contrário é só mais um documento.

Também acreditamos que essa cartilha é um monumento. Para Le Goff, tododocumento tem em si um caráter de monumento, pois não existe memória coletiva bruta. “O

documento não é qualquer coisa que fica por conta do passado, é um produto da sociedade

que o fabricou segundo as relações de força que aí detinham o poder” (1994. p. 545).

Em seu governo, Getúlio Vargas articula um processo tardio, o qual algumas

sociedades já haviam efetivado, ou seja, o processo de construção da nação. A consolidação

dos estados nacionais implicava na definição de uma identidade nacional que sustentasse

algumas indagações básicas como: Quem somos e quem são os outros? As respostasformuladas a essas perguntas foram sendo esboçadas nos livros didáticos, nos romances e nas

crônicas da época, nos jornais, enfim disseminados por vários meios (NUNES, ano, p.373).

Analisando o cenário brasileiro percebemos que embora a idéia de nação, conhecida

na modernidade, tenha tido seu início no Brasil logo após a “Independência”, apenas a partir

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de 1930 é que a questão foi tratada com maior ênfase, sendo que neste momento, segundo

Lúcio Kreutz, a educação foi entendida e utilizada como meio disseminador dos ideais

nacionalistas de maneira nunca vista anteriormente na história de nosso país. (2000, p. 325).

Os elementos utilizados para urdir a identidade nacional nos livros didáticos, nos

romances, nas crônicas da época, nos jornais, entre outros, tiveram um vultoso crescimento no

Brasil, a partir do governo de Getúlio Vargas. Assim, entendendo que na modernidade foi

inventada a idéia de nação, percebe-se que a nacionalidade não é genética, mas cultural, é

uma criação. Nacionalidade constitui-se da cultura, da língua em comum, da construção da

identidade de um povo.

Como em outras nações, o sentimento de brasilidade nasceu através da representação

de determinadas realidades, ou seja, foi criado, imaginado. Stuart Hall entende que “[...] as

identidades nacionais não são coisas com as quais nós nascemos, mas são formadas e

transformadas no interior da representação[...]”(2001 p. 48). O autor argumenta que as nações

são imaginadas, criadas através do simbolismo nacional. Este simbolismo vai unir, construir

uma nação, mesmo em face as muitas diferenças que esses homens e mulheres que a formam

 possam conter. Tradições que ora parecem tão antigas podem ser de origem recente, ou até

mesmo inventadas, na busca da disseminação de valores e normas de comportamentos por

meio da repetição. A maior parte das nações é composta de culturas fragmentadas que foram

unificadas através de longos processos de “conquista violenta”. (HALL, 2001, p. 59).

A cartilha Getúlio Vargas para Crianças forja o sentimento de brasilidade pretendido

no Estado Novo, e as crianças são um dos alvos das ações desenvolvidas pelos intelectuais

aliados a Getúlio Vargas, produtores dos artefatos escolares publicados pelo DIP –

Departamento de Imprensa e Propaganda.

O papel da educação e do DIP na construção do projeto do Estado Novo: Infância como

alvo

A partir de 1930, o papel do governo brasileiro foi redirecionado devido a um novo

 projeto de desenvolvimento para o país, sob o comando de Getúlio Vargas.

Ele redefiniu a estrutura administrativa do Estado com o propósito de definir umanova ordem econômica e social que colocaria o Brasil no nível das nações industriaiscivilizadas. Com base nesse grande empreendimento, reorganizou a estrutura doEstado para disciplinar as forças econômicas e as classe trabalhadora. Assim, as

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 políticas econômicas, comerciais, sociais, educacionais e também as de saúde públicaforam implementadas em função desse novo modelo de desenvolvimento (CAROLA,2004, p.104.).

O governo de Getúlio esteve empenhado em estender a escolarização a todas ascrianças. A disciplina foi a grande preocupação deste governante. A educação sanitária, moral

e cívica do corpo e da mente era o trampolim para o sucesso da construção de um bom

trabalhador. A disciplina escolar muito lembrava instituições como os quartéis militares. A

homogeneidade pretendida nos exercícios escolares eram os alicerces para a construção de

uma sociedade em modernização. A noção de tempo, a pontualidade nos horários, a criança

era preparada para aceitar a repetição, a monotonia e a fadiga, enfim, a rotina proveniente do

trabalho moderno capitalista.

Segundo a historiadora Cynthia Machado Campos, “As questões educacionais

apareceram vinculadas à temática do saneamento e da higiene”(1992, p. 151. ). A autora ainda

afirma que “a escola foi a instituição onde pareceu ser possível, naquele momento, atingir

amplos segmentos da população no sentido de normalizar, homogeneizar, disciplinar, ordenar,

higienizar hábitos e comportamentos” (CAMPOS, 1992, p.151 ).

Getúlio Vargas vislumbrava o Brasil como uma grande nação, a exemplo das

européias. Para tanto, o mesmo procurava seguir as diretrizes já alcançadas pelas “grandes

nações”, dentre estas diretrizes destacava-se a educação. A educação no Governo de Getúlio

Vargas perpassava a mera aquisição de conhecimentos para uma abrangência mais ampla

como “a formação física e moral, eugênica e cívica, industrial e agrícola”(CAROLA, 2004,

 p.106).

Perpassando todos estas premissas a educação alicerçou-se em um ideal fortemente

nacionalista, prescindindo de vários intelectuais que o auxiliaram nesse grande

empreendimento, a fim de legitimá-lo.

Em 1937, com o pretexto de acabar com a instabilidade política, Getúlio Vargas dá o

golpe que inicia o Estado Novo. Fecha o Congresso Nacional, as Assembléias Estaduais e

suspende as liberdades políticas.

Foi neste momento que se começou a delinear um sistema educacional brasileiro.

 Neste cenário, destacou-se o papel do Ministério de Educação e Saúde. Assim, a educação

apresentou-se como importante meio para a formação do cidadão idealizado pelo Estado

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 Novo. Desta forma, as crianças receberam especial atenção e a cartilha aqui analisada

apresenta-se como um indício desta atenção. Este artefato escolar facilitava ao leitor o acesso

as diretrizes nacionalistas, por meio de textos simples e carregados de ilustrações.

Um outro órgão importante, fundamental para a construção da identidade nacional no

Estado Novo, foi o Departamento de Imprensa e Propaganda – DIP, criado em 1939, sob o

comando de Lourival Fontes. O DIP foi instalado por decreto presidencial, no entanto, seu

surgimento remonta a 1931 ao ser criado,

[...] o Departamento Oficial de Publicidade, e em 1934 o Departamento dePropaganda e Difusão Cultural (DPDC). Já no Estado Novo, no início de 1938, oDPDC transformou-se no Departamento Nacional de Propaganda (DNP), quefinalmente deu lugar ao DIP. [...].O DIP possuía os setores de divulgação,

radiodifusão, teatro, cinema, turismo e imprensa. Cabia-lhe coordenar, orientar ecentralizar a propaganda interna e externa, fazer censura ao teatro, cinema e funçõesesportivas e recreativas, organizar manifestações cívicas, festas patrióticas,exposições, concertos, conferências, e dirigir o programa de radiodifusão oficial dogoverno. Vários estados possuíam órgãos filiados ao DIP, os chamados "Deips". Essaestrutura altamente centralizada permitia ao governo exercer o controle dainformação, assegurando-lhe o domínio da vida cultural do país. (FGV-CPDOC,2006).

Diretrizes do Estado Novo (1937-1945) Nele, reuniram-se

[...]os remanescentes do modernismo conservador representado pela corrente dos

verde-amarelos. Foi esse grupo que traçou efetivamente as linhas mestras da políticacultural do governo voltada para as camadas populares. Uma das metas fundamentaisdo projeto autoritário era obter o controle dos meios de comunicação, garantindoassim, tanto quanto possível, a homogeneidade cultural. A ideologia do regime eratransmitida através das cartilhas infanto-juvenis e dos jornais nacionais, passandotambém pelo teatro, a música, o cinema, e marcando presença nos carnavais, festascívicas e populares (FGV/CPDOC, 2006).

Ao DIP é atribuída a função de censurar os meios de comunicação, cultuar a figura de

Getúlio Vargas, divulgar a ideologia do Estado Novo junto às camadas populares. Getúlio era

apresentado nos documentos produzidos por este órgão como o “Pai dos Pobres”. E a cartilha

Getúlio Vargas para Crianças foi um destes materiais produzidos pelo DIP.

Getúlio Vargas para Crianças: o suporte material em discussão

Tivemos acesso a esse exemplar da cartilha Getúlio Vargas para Crianças, ora em

análise, por meio das atividades propostas na disciplina de História da Educação ofertada na

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terceira fase do Curso de Geografia da Universidade do Extremo Sul Catarinense, no primeiro

semestre de 2005. A cartilha que pertence a senhora Alice Nunes Mezzari que lhe presenteada

 pela professora Heliete de Brida, ao concluir o terceiro ano, em 30 de novembro de 1942, na

escola estadual de Rio América de Baixo, localidade pertencente ao município de Urussanga.

 Na folha de rosto a professora registra:  Aceite este livrinho como recompensa dos teus

esforços. De acordo com o depoimento da senhora Alice, por ser uma aluna bastante

estudiosa é que ela ganhou este presente e guarda-o há 64 anos como uma das principais

lembraças da sua vida escolar. Ao recebê-lo ela tinha 10 anos, hoje está com seus 74 anos. O

“livrinho”, como denominou a professora, foi presenteado no mesmo ano de sua publicação,

ou seja, em 1942.

Trata-se de um volume especial da coleção Biblioteca Pátria, de autoria de AlfredoBarroso, com inúmeras ilustrações de Fernando Dias da Silva, publicado pela Empresa de

Publicações Infantis, Ltda, no Rio de Janeiro e financiada pelo Departamento de Imprensa e

Propaganda – DIP. Configura-se na forma de uma cartilha compacta, composta por textos e

imagens legendadas.

 Na contracapa tem uma anotação à lápis, que talvez tenha sido feita pela senhora Alice

 Nunes Mezzari ou alguém da família quando da morte de Getúlio Vargas. Além da data e

hora do episódio, há também o cálculo da idade que Getúlio tinha quando morreu, levando-nos a inferir que se tratou de um acontecimento importante por merecer um registro tão

detalhado.

 Na abertura da cartilha consta um mensagem assinda por Getúlio Vargas direcionada

 para o seu público alvo.

Crianças!

 Aprendendo, no lar e nas escolas o culto da Pátria, trareis para a vida prática todas as

 possibilidades de êxito. Só o amor constrói e, amando o Brasil forçosamene o conduzireis aos mais altos destinos entre as nações, realizando os desejos de engrandecimento

 aninhado em cada coração brasileiro.

Getúlio Vargas

Antes de analisarmos o conteúdo deste artefato cultural que circulou nas escolas do

Estado Novo, se faz necessário deixar claro nossa posição em relação à produção de efeitos

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sobre o público alvo da cartilha que tiveram acesso a esta leitura, após a sua publicação e

distribuição, ou seja, as crianças.

Ao concordarmos com Roger Chartier, concebemos que não existiu uma leitura única

desta cartilha, ou seja, as crianças, não alcançaram o mesmo entendimento, mesmo havendo

 por parte do autor a construção de várias estratégias para garantir uma forma única de

compreensão, uma vez que, para Chartier “o leitor é sempre visto pelo autor (ou pelo crítico)

como necessariamente sujeito a um único significado, a uma interpretação correta e a uma

leitura autorizada” (1992, p.213).

Por conta disso, o seu conteúdo não obteve uma eficácia absoluta. Isto se deu, por

haver uma relação de tensão permanente entre texto e leitor, causada pelo ato que apreende e

decifra o texto. Nesta perspectiva, a leitura diz respeito a “[...] uma prática criativa que inventa

significados e conteúdos singulares, não redutíveis às intenções dos autores dos textos ou dos

 produtores dos livros. Ler é uma resposta, um trabalho, ou como diz Michel de Certeau, um

ato de ‘caçar em propriedade alheia’” (CHARTIER, 1992, p.214).

Mas se de um lado o texto não tem uma eficácia absoluta, ou seja, o autor não

consegue proporcionar um único sentido para aquilo que ele escreve, não consegue garantir

uma compreensão legítima, o leitor também não tem uma autonomia absoluta, pois aliberdade do mesmo está encurralada num determinado tempo e espaço, a sua liberdade está

circunscrita num campo de possibilidades. O texto, que é o objeto que comunica é interpelado

 pelo ato que o apreende, ou seja, a leitura. “Conduzido ou encurralado, o leitor encontra-se

invariavelmente inscrito no texto, mas este, por sua vez, inscreve-se de múltiplas formas em

seus diferentes leitores”(CHARTIER, 1992, p.215).

Pensar o ato de ler a cartilha pressupõe considerar a relação de tensão entre o autor,

Alfredo Barroso e seus leitores, as crianças da década de 1940, entretanto, esse não é o único problema, Chatier também nos alerta que “nenhum texto existe fora do suporte que lhe

confere legibilidade; qualquer compreensão de um texto, não importa que tipo, depende das

formas com as quais ele chega até seu leitor” (1992, p.220). Por isso, a compreensão de uma

obra adquire significados, por meio de um processo complexo, que envolve o exame da

relação entre texto, objeto que o comunica e ato que o apreende (1992, p.221). 

Ao pensarmos sobre o suporte da cartilha Getúlio Vargas para Crianças,  podemos

inferir que se a cartilha fosse apresentada com outro formato, seguramente esse novo suporte

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modificaria o status atribuído ao documento, ou na maneira de lê-lo, sendo assim, uma nova

legibilidade seria conferida a cartilha e, consequentemente, se estabeleceria um outro

horizonte de recepção por parte das crianças, seus leitores.

A cartilha Getúlio Vargas para Crianças não é composta apenas por textos, como a

maioria das cartilhas ela apresenta-se com inúmeras ilustrações. A legibilidade requerida pelo

autor a partir de seus textos, contou com um tipo diferenciado de suporte, mas não só, contou

também com o trabalho minucioso do ilustrador, Fernando Dias da Silva.

Sobre as imagens, Chartier também traz algumas reflexões importantes para

compreendermos melhor a estrutura da cartilha em questão. Ele levanta as limitações

impostas às imagens impressas. No seu entendimento, as imagens não têm o mesmo

significado e o mesmo papel quando estão inscritas no próprio texto, “é um meio para melhorgarantir o controle do sentido”(1992, p.213).

 No caso da cartilha, as imagens só podem ser compreendidas num processo relacional

com os textos. A leitura da imagem produz múltiplas leituras, por isso a necessidade de se

criar uma estratégia de controle, que assegure a tutela dos leitores, para que eles não se

evadam da interpretação da imagem, perseguida pela obra. O texto indica a tutela do

atrevimento daquele que vê a imagem, tentando impedir que pensem outras coisas diferentes

daquelas almejadas por aqueles que a produziram.À luz dessas questões aqui levantadas é que analisamos o conteúdo da cartilha em

questão.

Discutindo alguns conteúdos da cartilha...

Das muitas possibilidades de análise do que está contido na cartilha, estaremos

oferecendo visibilidade para algumas questões que a princípio pareceu-nos interessante

destacar.

Podemos identificar neste suporte material elementos básicos da política nacionalista

de Vargas como, por exemplo, o trabalhismo. Entretanto, além da exaltação ao trabalho estar

 presente inúmeras vezes no texto, a família aparece como um núcleo central para a formação

de cidadãos virtuosos e trabalhadores. A família de Getúlio passa a ser um exemplo, uma vez

que “[...] cinco filhos teve o casal, todos eles dotados de fortaleza física e de inteireza de

espírito [...] uma família de almas afeitas ao trabalho e à bondade” (BARROSO, 1942, p. 8).

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 Neste sentido, Getúlio é tido como cidadão e governante virtuoso “homem simples e bom”,

uma “bondade em pessoa”.

A crença de que a educação escolar tinha um papel central no processo de construção

de uma sociedade moderna almejada com maior afinco no Estado Novo, colocando a figura

de Getúlio como “amigo infatigável das ciências”, remete para a sua vida estudantil,

colocando-o na condição de aluno ideal. “Getúlio era bom estudante: dedicação ao estudo,

 pertinácia no cumprimento dos deveres, respeito aos mestres, espírito de ordem e disciplina”.

Além dessas qualidades tão perseguidas pela escola moderna, Getúlio ainda é colocado na

condição de grande líder ao ser comparado com Napoleão Bonaparte. “Nos recreios,

comandava combates simulados, tal como o jovem Napoleão Bonaparte na Escola de

Brienne”(BARROSO, 1942, p.9). 

Da mesma forma, está presente o ideal do gaúcho valente, destemido, o qual o próprio

Getúlio personifica, buscando transplantar o modelo caudilhista para todo o país, entre outros.

O Rio Grande do Sul é consagrado como o Estado modelo para o país, assim como os

riograndenses são elevados a condição de cidadãos exemplares para o território nacional. O

Rio Grande do Sul “[...] é um dos focos de grandeza e heroísmo de história brasileira [...].

Seus heróis são audaciosos e nada temem. Nesse Estado, rico em homens e rico em ação”.

Igualmente, São Borja e seus citadinos são exaltados. “Nesse município de belas paisagens e

de gente robusta nasceu o menino Getúlio Vargas [...] Getúlio Vargas nasceu, assim, numa

terra de gente destemida e forte[...]” (BARROSO, 1942, p. 7 e 8).

Além da obediência ao sistema político vigente, da necessária paz nacional, da ordem

associada ao progresso do país, a cartilha reforça vigorosamente o imaginário anticomunista.

A figura mítica de Vargas é delineada na cartilha junto a discursos legitimadores do Estado

 Novo. Em 1938, segundo a constituição em voga, Vargas deveria finalizar seu mandato

 presidencial. Neste momento, o mesmo divulga a população brasileira a descoberta de ummisterioso plano comunista (Plano Cohen). Este plano alardeado pelo governo Vargas foi

detalhado em jornais, revistas, enfim, meios de comunicação da época. As notas a imprensa

descreviam minuciosamente massacres, incêndios, roubos, confisco sumário e violento da

 propriedade, incêndio de igrejas, desrespeito aos lares, à família e à integridade pessoal dos

cidadãos. Legitimado no fervoroso combate a este plano, Vargas instituiu o Estado Novo,

caracterizado por um governo fortemente centralizador e violento. Aliada ao Estado Novo,

Vargas estabeleceu uma nova constituição inspirada nos princípios fascistas. Entre 1937 a

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1945 foram oferecidas poucas alternativas aos supostos comunistas, os mesmos encontravam-

se encurralados entre a cadeia, a tortura e o exílio.

Esta possível ameaça comunista continuou sendo disseminada enfaticamente porvários meios durante o Estado Novo, um destes meios foi a cartilha aqui analisada. Nela estão

registradas as representações atribuídas pelo Estado Novo aos comunistas:

Os agitadores, os mercenários, a soldo de ideais estranhos, os sem pátria e osaproveitadores de todas as situações começaram a perturbar o ambiente da pátriacom seus movimentos desagregadores e dissolventes. Inimigos de Deus, inimigosdo Brasil e inimigos da Família Brasileira, começaram a pregar em associações,supostamente nacionais idéias que punham em perigo a garantia da ordem e aestabilidade de nossas instituições. Essa agitação visava a obtenção do poder com ofim de transformar o Brasil em um país de opressão e miséria, em que as liberdades perecessem e o trabalho passasse a escravidão (BARROSO, 1942, p.78).

Enquanto que no referido texto impunha para as crianças os mesmos argumentos

divulgados por outros meios para adultos, sem mencionar a designação “comunista”, a

ilustração com legenda apresenta homens com feições severas e diabólicas sentados perante

uma mesa, aludindo ao que seria uma reunião de comunistas. Abaixo da ilustração enfatiza-se

um pequeno, porém, incisivo trecho do texto “...Inimigos de Deus, inimigos do Brasil e

inimigos da Família Brasileira, começaram a pregar, em associações supostamente nacionais,

idéias....”(BARROSO, 1942, p. 79).

Vargas combatia em seus discursos para além das ameaças comunistas internas,

radicalmente confrontadas, as ameaças externas, ou seja, o comunismo internacional. É

interessante observar que a cartilha menciona, mesmo sutilmente, o combate incisivo

dispensado pelo Estado Novo aos “agitadores políticos”:

 Nada há de mais nocivo a uma nação que os agitadores políticos. A políticacontinuava a prejudicar a atividades do Presidente. E ele, pouco a pouco,convenceu-se da necessidade de eliminar do colosso brasileiro esse elemento dedestruição e desordem, para que todos os brasileiros pudessem trabalhar em paz esem expectativas de angústia. (BARROSO, 1942, p.78, grifo das autoras).

E para combater os maus comportamentos dos comunistas a cartilha vale-se

novamente da Imagem idealizada de Getúlio Vargas, agora presidente no Estado Novo.

“Getúlio Vargas, sem arbitrariedades, começou a reconstruir o Brasil com seriedade, calma,

 patriotismo e constância” (BARROSO, 1942, p. 49). Ele,

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Tinha suas idéias e força para realizá-las: realizou-as sempre com eficiência. Seugrande segredo estava no trabalho infatigável: Getúlio Vargas jamais abandonara amesa de trabalho para se entregar a prazeres fúteis. Em certas ocasiões, trabalhavadezesseis horas por dia, sem demonstrar cansaço, batendo nesse particular, umverdadeiro record  entre todos os estadistas do planeta (BARROSO, 1942, p. 54).

Estas representações aqui abordadas oportuniza-nos a inferir que os organizadores da

cartilha Getúlio Vargas para Crianças  quiseram produzir sujeitos-crianças obedientes,

estudiosos, trabalhadores, patrióticos, humildes, bons e aguerridos contra o comunismo.

 Nosso objetivo, a partir dessas reflexões realizadas à luz de alguns aspectos do aporte

teórico construído por Roger Chartier, no campo de seus estudos sobre a história da escrita e

da leitura, foi o de esclarecer que este trabalho não está pautado na idéia de que a cartilha

Getúlio Vargas para Crianças  tenha sido eficaz na incumbência de construir uma infância

ideal para o Estado Novo. Diferente disso, sem negarmos que este documento, da forma como

foi organizado, desejou instituir um tipo de compreensão por parte de seus leitores, queremos

dar visibilidade a principal estratégia, que perpassa a escrita e apresentação do documento, ou

seja: a trajetória de Getúlio Vargas, desde criança até chegar a presidência do país, sendo ele

um dos maiores defensores do projeto de nação alicerçado no modelo de sociedade moderna e

anticomunista.

Referências

BARROSO, Alfredo. Getúlio Vargas para Crianças. Rio de Janeiro: Empresa dePublicações Infantis Ltda, 1945.

BERCITO, Sônia de Deus Rodrigues. Nos Tempos de Getúlio: da revolução de 30 ao fimdo Estado Novo. São Paulo: Atual, 1990.CAMPOS, Cynthia  Machado Campos. Controle e normatização de condutas em SantaCatarina (1930 –1945). São Paulo: Dissertação [mestrado em História] PUC – SP, 1992.CAROLA,  Carlos Renato, In: SOUZA, Rogério Luiz de, KLANOVICZ [org.], História:trabalho, cultura e poder. Florianópolis, ANPUH/SC, PROEXTENSÃO/UFSC, 2004.CHARTIER, Roger. Textos, impressões, leituras. In: HUNT, Lynn. A nova história cultural.São Paulo: Martins Fontes, 1992.FGV/CPDOC. Diretrizes do Estado Novo (1937-1945) Educação, cultura e propaganda.Disponível em

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29/06/2006.

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III Simpósio Nacional de História Cultural

Florianópolis, 18 a 22 de setembro de 2006

4426

HALL, Stuart. Identidade Cultural na Pós Modernidade. 5ª edição. Rio de Janeiro, 2001.KREUTZ, Lúcio, In: LOPES, Eliane Marta Teixeira, [org.] 500 anos de Educação noBrasil. Belo Horizonte, 2000.LE GOFF, J. Memória e história. São Paulo: Unicamp, 1994.

MENEZES, Ulpiano T. Bezerra de. A crise da memória, história e documento: reflexões paraum tempo de transformações. In: SILVA, Zélia Lopes da (org.). Arquivos, patrimônio ememória: trajetórias e perspectivas. São Paulo: Editora UNESP: FAPESP, 1999.

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