49294852 Balada de Um Palhaco

download 49294852 Balada de Um Palhaco

of 24

Transcript of 49294852 Balada de Um Palhaco

  • 7/28/2019 49294852 Balada de Um Palhaco

    1/24

    Balada de um Palhaode Plnio Marcos

    Personagens

    BOBO PLIN - Palhao saltimbanco. Espiritual. Feminino. Angustiado. Linha dospalhaos-vagabundos. Desinteressado das coisas desse mundo.

    MENELO Tambm vestido de palhao, porm palhao prspero. Materialista.Positivista. Machista. Ganancioso. Perseguindo o sucesso.

    CIGANA A grande-me. Velha bruxa.

    Cenrio

    Um espao imaginrio, que pode ser um picadeiro de circo, um altar, a sala de um puteiro,o salo de um bar, uma praa. H mdulos coloridos espalhados pelo cenrio. obrigatrioque haja no cenrio uma cadeira. Um desses mdulos deve Ter o encaixe para o violo, eoutro para um chicote estilo domador de feras. No centro, ao fundo, h um mastro fixo eoutro solto, ambos enrolados por uma cortina. Quando for necessrio, estes mastros setransformam em biombos, como, por exemplo, na cena dos bastidores, quando so

    utilizados como cortina.As msicas compostas para esta pea so de autoria de Lo Lamma, com letras dePlnioMarcos.

    1

  • 7/28/2019 49294852 Balada de Um Palhaco

    2/24

    PRIMEIRO ATO

    (A luz se abre num canto do palco, onde Bobo Plin, o palhao, canta a cano

    O BANDO. Num outro canto, uma bruxa cigana faz um ritual com ervas aromticas)

    BOBO PLIN(cantando) Um bando,Srdido bandoQue sobrou das guerras.Bando faminto,Sem alento,Empestiado,Coberto de feridasE ressentimentos.Alguns esto exaustos,Alguns esto mortos,

    Alguns tm memria,Alguns tm medalhasGanhas por bravuraNo meio das batalhas,O que dificultaNosso entendimento. duro, muito duro,O convvio no bando.Nenhum tem coragemPara se deixar ficar.Nenhum tem coragem

    Para seguir adiante.Nenhum tem coragem...

    BOBO PLIN (melanclico)Anos e anos a fio na trilha dos saltimbancos. Andando,andando, andando. De lugarejo em lugarejo. De vila em vila. De cidade em cidade, ondemultides envolvidas nas turbulncias de suas paixes se degeneram no bailado dainsensatez. (Pausa. Bobo Plin aproxima-se da velha bruxa cigana)Ser sempre em praassem liberdade, debaixo de cu sem estrela, em jardins sem flores, nas margens de crregospor onde escoa a merda, que devo armar minha poesia? (Pausa)Responda, por favor,grande-me. Isso vida?

    CIGANA (Ri) Bela vida, palhao. Bela vida. (Ri)

    BOBO PLIN Somos malditos por toda gente, obrigados a acampar nas lixeiras dascidades, somos expulsos dos lugares, perseguidos, presos, espancados. Dizem que somos...

    CIGANA (Interrompe brava)Que importa o que dizem? Por acaso estamos sujeitos sleis do reino da banalidade? No. No estamos. (Pausa. Depois de um tempo,mansamente)Esse no-estar, palhao, justamente nosso fascnio. Nosso encantamento.

    2

  • 7/28/2019 49294852 Balada de Um Palhaco

    3/24

  • 7/28/2019 49294852 Balada de Um Palhaco

    4/24

    Bobo Plin, acho que algum desse bando, srdido bando, quebrou espelho de puteiro. Sete,capuchete, sete, setenta e sete anos de azar. No fazemos sucesso...Puro azar, azar, azar. Eainda por cima...o palhao fica jururu-ru-ru-ru. Fica murcho. Murchinho. Triste.Melanclico-clico-clico-clico.

    BOBO PLIN Eu no estou assim por causa de dinheiro.MENELO No? (Pausa)Ento qual a razo da tristeza triste do palhao?(Anda comoquem pensa)Se no dinheiro...s pode...No! Ser? No! . S pode ser. Se no dinheiro, melhor. (Ri) Mulher, Bobo Plin? (Pausa)Mulher? (Pausa)Mulher, na sua vida?(Bobo Plin sacode a cabea desolado)

    MENELO No? Mas, puta la merda. Merda la puta. Se no dinheiro, e no mulher,o que pode ser? (Espantado e malicioso) Ah, ah, ah. Sei, sei, sei. Menelo bestalho,Menelo asno, Menelo babo, Menelo-lo-lo, Menelo entendo. Voc, comodirei...No direi...O que direi ...Voc todo esprito, Bobo Plin...e esprito, (Ri malicioso)esprito...no tem sexo. (Faz gesto com a mo)Retiro o que disse. Redigo o que no disse.Ser amor? Bobo Plin est amando algum? Algum que no lhe quer? (Faz gesto dechinchada)

    BOBO PLIN Como poderia amar algum, Menelo? No amo nem a mim mesmo.

    MENELO Ai, ai, que brisa fresca soprou por aqui. No se pode nunca dizer pra um:dobra e enfia. Eles so capazes de tentar. No deu...Ai, ai, que tristeza-teza-teza-teza. No...nem dinheiro, nem amor?

    BOBO PLIN No, no, no. No . Juro, Menelo.

    MENELO Se no nem dinheiro, nem sexo, o que pode atormentar o homemmoderno? Poder?

    BOBO PLIN No.

    MENELO Menelo entendo foi pras picas. Ficou s Menelo asno, lambo,bestalho. Porm, o que sei que palhao jururu rima com fracasso.E no caso no cu-dum.E o cu-dum o meu que banco o jogo e gosto de me dar bom-trato: come bem, vestir bem,fudre bem. Mas se o palhao do meu circo fica...Qualquer idiota sabe, a alegria do circo opalhao. Mas, se o palhao...(Comea a chorar com espalhafato)Bu, bu, bu...Opalhao do meu circo...Bu, bu, bu...

    (Bobo Plin levanta-se nervoso, sacode Menelo e ordena enrgico:)

    BOBO PLIN Pra com isso, Menelo. Eu no estou ligado em dinheiro, sexo, que vocchama de amor, poder, sucesso. No estou mesmo. (Solta Menelo)

    4

  • 7/28/2019 49294852 Balada de Um Palhaco

    5/24

  • 7/28/2019 49294852 Balada de Um Palhaco

    6/24

    houve algum palhao que queria fazer alma...bom, se algum palhao teve alma, ele comcerteza trocou essa alma com o Diabo pelo segredo de fazer o pblico rir, rir, rir at semijar. Fazer o pblico rir sempre foi a nsia de todos os palhaos. Por isso todos ospalhaos acabaram enlouquecidos, todos, como animais delirantes, iam sem vacilao atas regies mais insondveis dos seus crebros doentios para descobrirem formas de fazer o

    pblico rir, rir, rir, rir, rir, rir. Todos os palhaos, Bobo Plin, so e sero tarados. Todos tmteso de riso. A maioria, a grande maioria, sempre acaba na sarjeta, com a cara enfiada nobueiro e com cachorro mijando em cima. Loucos. Loucos desvairados. Loucos queprecisam do riso para acalmar seus sentidos. Mas nenhum, que eu saiba, teve essa loucuralouca, desprovida de santidade...louca loucura de querer uma alma. Palhao palhao.Bobo Plin, palhao entre no picadeiro e faz o pblico rir.

    BOBO PLIN E quando o palhao no consegue rir de si mesmo, Menelo? Me diga isso,senhor Menelo. Porque isso: eu no consigo rir de mim mesmo. Da minha fragilidade, daminha dolorosa e ridcula situao.

    MENELO O palhao no tem que rir de porra nenhuma. Palhao no paga entrada parao espetculo. Quem paga que ri. Vai da...(Pausa)Bobo Plin, eu vou falar francamente,de pai pra filho, de irmo pra irmo, de homem pra homem. Fraterno. Como...de mim pramim. (Sentimentalo)Mesmo antes de voc ficar com essa cruel doena...essa insanamania de alma...como direi?...No direi...O que direi que, antes de tudo isso, voc, meuquerido Bobo Plin, j era uma merda. Sem-graa, sem-grao. Entrava na pista...No,esquece. Di muito essa conversa. Menelo lambo. Menelo bestalho. Menelo asno,Menelo babo. (Anda nervoso, no seu estilo, depois esbofeteia a prpria cara e choraescandaloso)Ai, ai, ai, nasci pra sofrer! Ai, ai, ai, o palhao do meu circo-irco-irco-ircoquer uma alma. E no quer fazer rir. Ai, ai, ai! Toma! Toma! Toma!

    (Menelo se bate e chora escandaloso. Bobo Plin agarra Menelo)

    BOBO PLIN Pra com isso! Pra com isso! (Menelo pra. Bobo Plin se contm)Eescuta. Escuta bem, com seus dois ouvidos. (Pausa. Toma flego)Eu no entrei na trilhados saltimbancos por acaso, nem para ser um reles fazedor de graa. Eu queria consagrar aminha vida atravs do ofcio que escolhi obedecendo a um imperioso apelo vocacional.Mas voc, voc, com sua ganncia...suas receitas de sucesso, voc, voc, voc sim, voc,Menelo, sem nenhum escrpulo, sem nenhuma sensibilidade, veio me falar de mil e umpalhaos geniais. Olha, Bobo Plin, tem um que de total pureza. Ele comove multidesquando aprisiona um raio de sol e o leva pra casa.. Tem um que faz bales de gs danaremquando toca sua trompete. Teve um que ridicularizou um tirano, assassino sanguinrio quequeria ser o senhor absoluto do mundo. E o magro sonso. E o gordo ingnuo e bravo. E ocomprido de cala pela canela, arcado pra frente devido ao pesado fardo da indignaoconstante e sincera contra a mecanizao imposta ao homem moderno. Tem tambm, vocme dizia, os que do piruetas, do cambalhotas, levam bofetes, os que tocam msicaclssica em garrafas vazias penduradas num varal. Tem outro...e outro...e outro...Me contouat que tinha um palhao louco, que queria ser o jogral de Nossa Senhora Me Santssima eque andava pelas igrejas jogando malabares diante das imagens de Santa Maria. Esse, voc

    6

  • 7/28/2019 49294852 Balada de Um Palhaco

    7/24

    me disse, morreu enforcado na cruz do Senhor Jesus Cristo, numa catedral gtica. (Pausa)Escutei humilde a histria de cada um desses incrveis artistas que viajavam pelas vias daloucura. Mas, saber desses palhaos para mim, Bobo Plin, um palhacinho de merda quecomeava a engatinhar nos picadeiros mal iluminados das espeluncas, s serviu para metolher. Quanto mais eu sabia deles, mais e mais Bobo Plin, o palhao que eu queria ser, se

    enroscava nas minhas tripas, se sufocava nas minhas entranhas. A referncia esmagava aminha intuio e me forava autocensura. A comparao, a maldita inimiga da igualdade,fazia dos magnficos histries elementos inibidores da minha criatividade. Agora, eu noquero, Bobo Plin no quer saber da faanha desses belos palhaos. No quero v-los. Nemsaber dos seus bigodes, sapates, guizos, pompons, bolas, bales e babados. (Bobo Plinajoelha-se na frente de Menelo, que est jogado no cho, pasmo de espanto) A magiados grandes artistas, Menelo, no pode ser ensinada. So segredos que se aprendem com ocorao, mas ningum ensina. Essa magia est dentro de cada um, antes mesmo de cada umtomar conhecimento dela. Essa magia se manifesta quando se resolve fazer a prpria alma.Para Bobo Plin se irmanar com os grandes palhaos que luziram nos palcos e picadeiros,tem que se esquecer deles para sempre. No pode recolher nenhuma indicao que elesdeixaram pelo caminho. (Bobo Plin olha para o infinito com olhar de loucura)Bobo Plintem que andar sem bssola na mais tenebrosa escurido. Qualquer brilho, qualquer estrela,qualquer sol referencial um ponto hipntico embrutecedor. (Para Menelo)Menelo, euquero fazer minha alma. Preciso fazer minha alma. Quero tentar.

    (Pausa longa. Menelo, assombrado, vacila, fica em p, aproxima-se de Bobo Plin pelas

    costas)

    MENELO Voc acha mesmo?...Acha que eu...eu...eu, Menelo...tenho culpa? Culpa devoc, Bobo Plin...ser um Bobo Plin qualquer? (Pausa)T bem. Me explique. Se Menelobestalho, Menelo asno, Menelo babo, Menelo-lo-lo entender...Faremos todos.

    BOBO PLIN(comovido)Obrigado, Menelo...No h nada de complicado. O negcio que daqui pra frente no vamos mais ensaiar nada. Entramos no picadeiro sem nadapreparado. No somos macacos que se balanam sempre no mesmo trapzio. Somosartistas.

    MENELO Pra mim no disse nada. Mas, tentando trocar isso tudo que voc falou emmidos, com essa coisarada que voc falou voc quer dizer que devemos mudar orepertrio?

    BOBO PLIN No, no, no. No quero Ter repertrio. A proposta que se esquea tudoo que sabemos. (Com desprezo)Essas coisas que roubamos dos velhos palhaos, ouaprendemos por a com gente sem conscincia do que fazia.

    MENELO Roubamos? Aprendemos com gente velha? O que voc est querendoprovar, Bobo Plin?(Bobo Plin vai falar, Menelo o impede) Cala a boca! Voc j faloumuito. Agora escute. Escute bem. H milhares e milhares de anos, palhaos de todas asraas, de todos os tipos, falando vrios idiomas, se espalham pelo mundo, andando pelas

    7

  • 7/28/2019 49294852 Balada de Um Palhaco

    8/24

    trilhas dos saltimbancos, fazendo rir, levando alegria a toda parte com essas...essas coisasvelhas. Coisas que voc despreza. Voc, que no nenhum hilariante, voc...(Pausa. Mudao tom) Voc anda sentindo alguma...cansao...moleza...se sentindo doente? (Pausa) Sesente, diga...(Pausa) Eu no quero ser melhor do que voc , nem do que ningum. Maspraticamente nasci dentro do picadeiro. Todos os meus antepassados...todos...andaram

    sempre na trilha dos saltimbancos. Eram palhaos. Fizeram o pblico rir. Esempre...sempre...

    BOBO PLIN Eu no queria Ter compromisso com nenhuma tradio. Eu no queria mesentir preso obrigao de fazer rir ou chorar. Eu entrava e o homem meu irmo...seil...no final, de alguma forma, se o pblico tivesse rido ou chorado...o pblico ficasserevolvido por dentro. Inquietado.

    MENELO Voc no est bem...Porra, no est bem bondade minha. Voc est louco.Louco de pedra. O homem moderno sofre presso, presso...Que se foda! O que conta epesa na balana que ningum vem ao circo para ficar inquietado. Algum vai pagarentrada pra...

    BOBO PLIN Justamente. isso, Menelo. Ele paga ingresse e ns, os palhaos,sacudimos eles. Destrumos sonhos, iluses. Despertamos. Mostramos como estpida avida que eles... isso. Isso mesmo, Menelo. Subvertemos o homem nosso irmo. Ele vaicair na real.

    MENELO Quem far isso com o homem?

    BOBO PLIN Eu. Voc. Eu quero fazer isso.

    MENELO Bobo Plin, voc tem uma doena. Doena grave. Chama-se pretenso aguda.Provavelmente sua doena incurvel. Mas eu...no sei, no saberei nunca...como deixarvoc, companheiro de tantos e tantos anos de andar na trilha dos saltimbancos, abandonadopelo caminho, falando sozinho e batendo com a cabea nas paredes. Vou tentar lhe dar umremdio. Amargo...muito amargo. (Menelo pega um chicote do tipo domador de circo ecomea a estal-lo junto a Bobo Plin, que se contorce num bal. Bobo Plin acaba caindo

    no cho, rindo e chorando. Menelo canta O Palhao Bobo Plin).

    MENELO (cantando) O palhao Bobo PlinDiz coisas sem nexoE gargalha e gargalhaSem parar.Sem nenhuma graa,Sem nenhum humor,Ele gargalha, ele gargalhaSem parar.Mas o palhao Bobo PlinTem uma estranha loucura,Como um desvairado,Ele gargalha

    8

  • 7/28/2019 49294852 Balada de Um Palhaco

    9/24

    Sem parar muito estranhaEssa loucura controlada.Eu acho que atrs da gargalhadaExiste um guerreiro impecvel,

    Lutando sem trguaPra encontrarSeu ponto de equilbrio.

    (Menelo pra, apreensivo com a prpria cano. Guarda o chicote e aproxima-se de

    Bobo Plin cado.)

    MENELO Bobo Plin...Desculpe, Bobo Plin...Eu queria...fiz para o seu bem...Queria quevoc...que voc...Entende? Voc...eu...no podemos esquecer...voc apenas umpalhao...ator. Um ator. isso. Um ator faz o papel que lhe cabe fazer...Sei que assim...Sei...(Pausa)

    BOBO PLIN (magoado) Por mais que as cruentas e inglrias batalhas do cotidianotornem um homem duro ou cnico o bastante para ele permanecer indiferente s alegrias edesgraas coletivas, sempre haver no seu corao, por minsculo que seja, um recantosuave onde ele guarda ecos dos sons de algum momento de amor que viveu em sua vida.Bendito seja quem souber se dirigir a esse homem que se deixou endurecer, de forma aatingi-lo no pequeno ncleo macio de sua sensibilidade e por a despert-lo, tir-lo daapatia, essa grotesca forma de autodestruio, a que por desencanto ou medo se sujeita, einquiet-lo para as lutas comuns de libertao. Os atores tm esse dom. Eles tm o talentode atingir as pessoas nos pontos onde no existe defesa. Os atores tm esse dom. Eles tm.(Pausa. Menelo vai abrindo o biombo, que se torna uma coxia de teatro)

    MENELO Menelo babo, Menelo asno, Menelo bestalho, Menelo-lo-lo.Menelo...Menelo...Se tiver prejuzo...(Menelo apita, depois berra) Alimentem as feras!Varram o picadeiro! Apertem as cordas! E vamos ns! Oba! Oba! Oba! (Menelo canta edana com grande animao e estardalhao)

    MENELO Hoje tem goiabada?Tem sim senhor.Hoje tem marmelada?Tem sim senhor.Hoje tem espetculo?Tem sim senhor.O palhao, o que ? ladro de mulher.Abaixa o Sol,Levanta a Lua,Solta o palhaoNo meio da rua.

    9

  • 7/28/2019 49294852 Balada de Um Palhaco

    10/24

    (Menelo de repente v Bobo Plin ainda cado no cho. Finge que est bravo, mas fala

    em tom conciliador.)

    MENELO Bobo Plin. Bobo Plin. Voc ainda est a? Levanta, palhao. hoje. Se

    mexe. Vamos ver como vai ser esse negcio de alma. A sua alma. Alma? Alma? Alma,palma. Calma. Calma, Menelo bestalho, Menelo babo, Menelo asno, Menelo-lo-lo. Alma? Palma? Calma. Vamos tentar. (Menelo aproxima-se do biombo e olha peloburaquinho da cortina. Bobo Plin levanta-se alegre e se aproxima de Menelo.)

    BOBO PLIN Ser que vem gente?

    MENELO Gato, cachorro, macaco que no pode vir.

    BOBO PLIN Ento vai ter espetculo. (Menelo se afasta, Bobo Plin mete o olho noburaco)

    BOBO PLIN (contando) Uma na mula, dois rel, trs periquitinho cholandrs, quatro...

    MENELO Pra de contar pblico. Isso d azar. (Bobo Plin comea a assobiar)

    MENELO No assobia. No sabe que assobiar d azar?

    BOBO PLIN Naturalmente no vem ningum porque eu assobio. (Bobo Plin se afastanervoso, Menelo espia pelo buraco)

    MENELO Foda-oda-soda. Fo-foda. Desde que se escrevia com ph.

    BOBO PLIN O povo ainda no sabe que estamos por aqui. No tem nem pipoqueiro naporta da espelunca.

    MENELO Sabem, sabem. No vm...Bom, se pblico quer ver alma no vem no circo.Vai em sesso esprita. Porra, se alma atrasse pblico, era gal de novela.

    (Menelo, nervoso, anda de um lado para outro, masca charuto. Bobo Plin acha graa)

    BOBO PLIN O importante no a quantidade, a qualidade.

    MENELO _ Vai nessa.

    BOBO PLIN (olhando pelo buraco) Tem um gordo com uma mulher que parece umalagartixa, que esto querendo trocar de lugar.

    MENELO (nervoso) Que troquem, porra! No lugar numerado, portanto s trocar.

    10

  • 7/28/2019 49294852 Balada de Um Palhaco

    11/24

    BOBO PLIN Com quem? S tem eles l dentro.

    MENELO Puta-que-me-pariu! Com essas piadas que voc inventa, no pode virningum. Vai ver que ser sem-graa o segredo de fazer alma.

    BOBO PLIN (olhando o pblico) Olha l. Olha l. hoje. hoje. T chegando gente. hoje. hoje.

    MENELO (grita para fora de cena) D o primeiro sinal.

    BOBO PLIN T chegando gente. (Ouve-se campainha fora de cena)

    MENELO Seis a burra bebe, sete capuchete...

    MENELO Porra, quantas vezes tenho que dizer que contar pblico d azar?

    BOBO PLIN (sem ligar) T chegando uma velhona aborrecida. Isso que d azar.

    MENELO (explodindo) Pra de falar em azar. Falar em azar atrai azar. E chega de azar,azar, azar.

    BOBO PLIN (explodindo) Mas, porra, como voc chato! Chato, no. Cri-cri. Enche osaco com essa superstio. No pode isso, no pode aquilo. Vai l pra frente ver se temmovimento na porta. Mas, porra, no fica me enchendo. Mau humor que d azar.

    (Pausa)

    MENELO (anda de um lado para outro, resmunga) Alma, alma, alma, palma, calma,calma, Menelo, calma, Menelo, calma, Menelo bestalho, Menelo asno, Menelo-lo-lo. (Menelo sai)

    MENELO (fora de cena) Segundo sinal!

    BOBO PLIN Ou vai, ou racha, ou quebra a tampa da caixa. Cocada. Bolacha. (olha peloburaco) Oito. Nove. Dez. Parangol, bico-de-pato, rosca empanada. Onze. Doze. Treze.Treze. No presta contar...(Assobia) Assobiar d azar...Azar d azar. Mas como . Osgrandes artistas esto nos grandes teatros, eu...

    (Menelo entra nervoso)

    BOBO PLIN T bom na porta?

    MENELO Nem pipoqueiro.

    11

  • 7/28/2019 49294852 Balada de Um Palhaco

    12/24

    BOBO PLIN No h de ser nada.

    MENELO Uma bosta.

    BOBO PLIN Amanh melhora.

    MENELO Hoje hoje.

    BOBO PLIN J tem mais de vinte.

    MENELO Puta prejuzo.

    BOBO PLIN No esquenta e vamos ao jogo.

    MENELO Vamos dar um tempo.

    BOBO PLIN Quem tinha que vir...

    MENELO No tinha que vir...

    BOBO PLIN J estamos atrasados pra...

    MENELO E da?

    BOBO PLIN O pblico est puto dentro da roupa.

    MENELO Se comear na hora fosse sucesso, no atrasava um puto de um minuto.

    BOBO PLIN O pblico merece respeito.

    MENELO Vai se fuder, Bobo Plin. Voc e esse seu moralismo. Esses que esto a noso pblico. So os nicos filhos-da-puta dessa bosta de cidade que no tm televiso. Etem outra coisa. O que no atrasa nesse pas?

    BOBO PLIN Quem bota a fua no picadeiro sou eu.

    MENELO Esperamos nove meses pra nascer, pra que pressa?

    BOBO PLIN Se no agradar, eu...

    MENELO No enche o saco, Bobo Plin. Com muita ou pouca gente, agora ou aqualquer hora, quem bom d o recado. Mas voc, com essa porra de alma...Comigo notem gosta ou no gosta. Isso aqui como puteiro: abriu o pano, no se devolve a grana.

    BOBO PLIN (Olha pelo buraco) Eles esto impacientes. Vamos tocar o espetculo.

    MENELO Vou dar o terceiro.

    12

  • 7/28/2019 49294852 Balada de Um Palhaco

    13/24

    (Menelo sai. Bobo Plin volta a olhar o pblico. Afasta-se rpido e assustado)

    BOBO PLIN Meu Deus, meu Deus. Esse pblico no tem cara. Eles no tm cara. Eu...

    (Bobo Plin est assustado. Murmura como se rezasse. Pega o violo e canta a cano A

    Palavra dos Magos)

    BOBO PLIN (cantando) Eu queria saber a palavraQue os magos pronunciamNos seus rituais,A palavra que fora as vontades,O verbo divino,O primeiro impulso.Se eu soubesse essa ardente palavraQue desperta a imaginao,Eu entraria em comunhoCom voc, homem, meu irmo.Descia com ela at suas entranhas,Arrebentava as represasQue contm seus mais ternos sentimentosE fazia jorrar amor.

    (No final da msica, Menelo berra de fora de cena)

    MENELO (Fora de cena) Terceiro sinal!

    (Ouve-se o toque de campainha fora de cena)

    MENELO Agora ou nunca, palhao. Merda.

    (Luz acende-se atrs da cortina, como se acendesse no picadeiro e apaga-se no palco,

    como se apagasse nos bastidores. V-se a silhueta de Bobo Plin)

    MENELO (Fora de cena) Senhores e senhoras! Respeitvel pblico! com grandeorgulho que apresentamos o palhao Bobo Plin! Ateno! Solta o palhao!

    BOBO PLIN (para si mesmo) Solta o palhao. Com coragem e sem rancor.

    13

  • 7/28/2019 49294852 Balada de Um Palhaco

    14/24

    (Entra msica de galope. Bobo Plin sai de cena, como se entrasse no picadeiro. A luz se

    apaga geral.)

    FIM DO PRIMEIRO ATO

    SEGUNDO ATO

    (Bobo Plin est sentado num mdulo. Est muito triste. A seu lado, uma garrafa pela

    metade. Tudo indica que Bobo Plin bebeu muito. Mas no est bbado. Entra Menelo,

    eufrico)

    MENELO (Joga dinheiro ao lado de Bobo Plin) Toma a, Palhao. Olha a taa. Vocganhou. Voc foi bem. Bem mesmo. Muito bem. S que tem um porm: no vi nada denovo. No, no, no, mil e uma vezes no...Eu no tenho inteno...S que bssola...isso...no isso...Mas o que conta que voc agradou. Agradou sim. Mas, c pra ns, euno sabia que isso o que voc chamava de alma. Se soubesse...Mas sempre assim. Vocfala, fala, fala, eu no entendo. Alma isso? Claro, com isso eu concordo. Piadapornogrfica a alma? No sabia. Juro...T certo, de uns tempos pra c o pblico adorasacanagem. At menininha de escola de freira, e at as freiras, falam palavro. Deixa pra l.Voc estava timo. Viu aquele gordo com a mulher de fua de lagartixa? Quase que ofilho-da-puta rachou o bico de tanto rir. (Ri) A lagartixa ria escondendo a cara. (Pausa.Menelo observa que Bobo Plin no tem nenhuma reao) Voc agradou, palhao. Fezsucesso. Aquele gordo com a mulher lagartixa...

    BOBO PLIN (spero) Que se dane o gordo e a mulher do gordo e a puta que os pariu!Voc no percebe nada, Menelo. Nada, nada, nada. Eu no queria fazer o que fiz. Eu noqueria entrar na pista e ficar contando anedotas, anedotas, anedotas, para um gordo idiotae sua mulher com cara de lagartixa guincharem at esporrarem pela orelha.

    MENELO Mas entrou, contou, contou, contou, uma atrs da outra, outra atrs de uma.Sucesso. Tremendo sucesso. Se esses gatos pingados riram, a gente j pode imaginar comoo pblico vai rir, rir, rir, quando tiver pblico propriamente dito. Quando a casa lotar, lotarde Ter briga na porta, pipoqueiro, cambista...(Ri histrico)No fcil fazer uma gentinha-toa, gentinha de nada, rir. (Srio) Eles ficam ali, perdidos na platia, um com vergonha do

    outro, o outro com vergonha do um. Mas no aquela risada: qu-qu-qu. Riemescondido: hi-hi-hi. Mas com voc no teve esses negcios. Voc foi firme. Tumba namorisqueta! Todos riram. Todos. E o gordo e a mulher do gordo, aquela lagartixa, maisque todos. Qu-qu-qu...(Vai parando a risada medida em que Bobo Plin no seanima) At pensei que iam ter um troo.

    BOBO PLIN Eles no riram, Menelo. Foi s impresso sua.

    14

  • 7/28/2019 49294852 Balada de Um Palhaco

    15/24

    MENELO No riram? Como no riram? Faziam assim, v: qu-qu-qu. (Ri de vriosjeitos) Isso no rir? (Bate na testa) Tem razo. No riram. Gargalharam. Se debulharamde rir. Se debulhar de rir gargalhar. Outro nvel. Sorrir, rir, gargalhar, se esporrar.

    BOBO PLIN Essa gente que estava a no riu, no gargalhou, nem porra nenhuma,

    Menelo. A pessoa tensa no ri. Faz careta. A pessoa sem controle de si mesma, quando ri,se mija. A pessoa condicionada num sistema scio-poltico-econmico no ri. Ao receberum sinal convencional, grunhe, guincha. A pessoa histrica, Menelo, ao menordesequilbrio provocado no sistema nervoso, urra enlouquecida como se sentisse ccegas.Rir, Menelo, uma libertao. Quem no rir como riem as crianas, rir de afrouxar abarriga, de iluminar os olhos, quem no rir como as crianas, Menelo, no tem orgasmo.Quando fodem, tm espasmos, agonia, convulso, sei l o qu. E as pessoas que no tmorgasmo so doentes. Duras. Contradas. Se por acaso essa gente risse, arrebentavam todosos msculos contrados e os nervos esticados. Essa gente que estava a hoje, Menelo, essagente no tem alma. Nunca sentiro prazer. Nenhum alvio no riso, nenhum alvio naslgrimas, nenhum alvio no sexo.

    (Pausa)

    MENELO (ainda espantado) E o que devemos fazer?

    BOBO PLIN No sei, Menelo.

    MENELO (confuso) J sei, j sei. Quer dizer, acho que sei...Voc quer me deixarlouco. isso...Voc quer me enlouquecer...para depois mandar em mim. Para me conduzir.

    BOBO PLIN No, no, no. Menelo, juro que no. Eu s queria que eu e voc...

    MENELO (explodindo) Chega! Mentiroso. Voc fala, fala, fala e eu no entendo. Vocno fala e eu percebo tudo. Voc veio com esse papo de alma. No vou negar, me deixoutranstornado. Eu...bom...A, voc entrou no picadeiro e...Grande novidade! Fez como umTni-soar. Fez tudo direitinho. Contou piadas, piadas indecentes, pornogrficas, porcas.(Pausa) E o pblico riu. (Repara nas expresses de Bobo Plin) Riu. Riu, sim. Riu que re-riu, ri-riu. E voc diz que o pblico no riu. Que no fez sucesso. Que no isso que vocquer. Ento o que voc quer, Bobo Plin? O que que voc quer?

    BOBO PLIN Eu no sei o que eu quero.

    MENELO Complicou tudo outra vez.

    BOBO PLIN O que fiz no espetculo dessa noite...eu fiz, est feito.

    MENELO Puta profundidade.

    15

  • 7/28/2019 49294852 Balada de Um Palhaco

    16/24

    BOBO PLIN Quando soou o segundo sinal...vi aquela gente...aquela gente em volta dapista, esperando, passiva, um palhao com seu riso vermelho sanguinolento...E eu...tivemedo. Menelo. Um terrvel medo. Eu olhei pelo buraquinho da cortina...Aquele pblicono tinha cara. Eram uns vinte ou trinta...assombrosas figuras sem caras...semolhos...sem...olhos mortos...olhando mortamente para coisas mortas. O fedor...O medo

    fede, Menelo...Nenhuma poesia poderia entrar naquela gente. A, eu...me encagacei.Fiquei sem o mnimo controle sobre mim. E ia repassando o repertrio infame, as velhas egastas anedotas, como se rezasse. O terceiro sinal...L fui eu...grotesco histrio mecnico,rolando minha covardia no meio do picadeiro. Piadas pornogrficas, frases sem nexo.Repetio, repetio...Pobre palhao sem alma...Nenhuma criatividade. Como um operrioque aperta sempre o mesmo parafuso. Como o burocrata que bate sempre o mesmocarimbo. Como o jornalista que d sempre a mesma notcia que convm aos anunciantes.Como os mdicos, engenheiros, advogados especializados. Como o mestre-escola queprepara crianas para servirem a uma sociedade que eles abominam. Como os sacerdotesque impem dogmas e supersties. Eu, como uma puta desgrenhada e dilacerada quefecha os olhos para no ver o rosto do morto que a beija...eu, Bobo Plin, o histriomecnico, o palhao sem alma...tudo muito triste...(Bobo Plin vai beber. Menelo arrancaa garrafa de suas mos)

    MENELO Chega de beber. isso. Est bebendo demais. Desse jeito...anda vendocigana, grande-me, o caralho-a-quatro. Logo vai comear a ver jacar, porco com tromba,mosca gigante...Bobo Plin, foi um puta sucesso.

    (Bobo Plin percebe a inutilidade do dilogo e cai sentado na cama)

    MENELO Confere a seu dinheiro. Olha a, palhao. Voc ainda no olhou. Tem umasurpresa. No muito. Mas um caramingau a mais. (Ri) Sabe como , Menelo falou.Voc veio com qus-qus-qus, chora-beb, tal e coisa, tal e tal, coisa e coisa, coisa e lousa,puta la merda, merda la puta...Falei: no d. No porque Menelo asno, Menelo babo,Menelo bestalho, Menelo-lo-lo seja a me-do-sarampo, a mo-de-figa, a gannciaencarnada. No dava, porque no dava sem sucesso. Pode pular como pipoca. E sempre nocu-dum. O qu? Uma pipoca. (Ri) Mas hoje, sucesso. Sucesso, grana. Como Menelo falou.T a. No muito. No, no. Voc viu. Hoje foi sucesso artstico. (Peida com a boca) Que um prenncio de sucesso granal. Que no faz mal. (Ri) A t seu dinheiro, J falei, no muito. Mas d pra voc...que gosta de beber...tomar umas cervejas, um vinho um poucomelhor do que essa borra que voc toma, essa coisa gosmenta que se cai no balco manchao mrmore. Essa zurrapa que faz voc ver cigana, alma do outro mundo, jacar, porcocom tromba, mosca gigante...Bebida ruim que faz mal... (Ri. Pausa. Olha para os lados,malicioso) Dizem que nesta cidade tem putas lindas...muitas e boas. um puteiro, essacidade. (Ri) Eu sei, eu sei, sei sim, Bobo Plin. Menelo sabe. Menelo conhece o ofciodele. Por isso que aposto no sucesso, agora que voc desencantou. Vamos fazer sucesso.Vamos tirar, como direi... no direi...ou melhor, direi...tirar o p da merda. (Ri) Menelo,antes de escolher essa praa, conferiu. Viu bem se aqui corria dinheiro. (Ri) Fiz cara deMenelo bestalho, lambo, babo, e perguntei aqui e acol, acol e aqui. (Finge que estcom dor de dente)Nesta cidade tem dentista? (Imita gente da cidade) Claro, claro, essa

    16

  • 7/28/2019 49294852 Balada de Um Palhaco

    17/24

    uma bela cidade, que cresce dia a dia. Temos muitos dentistas. Temos um aqui que at serecusa a arrancar dentes. Trata com gabarito. (Finge que est com dor de barriga) A,Menelo perguntou: Nessa cidade tem mdico? Me responderam. No haveria de Ter? Essa uma cidade muito prspera. Temos tudo o que h numa capital. Temos vrios psiquiatras,vrios cirurgies-plsticos, vrios aborteiros. Para qualquer um esses sintomas j seriam

    suficientes para atestar que o dinheiro corre nesta cidade. Mas Menelo Menelo. A,perguntei de novo. (Menelo faz cara de beato) Senhores, por Deus, onde est a igrejinhadeste lugar? Me responderam. Lugar e igrejinha a puta-que-pariu! Aqui nesta metrpole uma puta de uma enorme catedral que h mais de vinte anos est em reforma, para ser acatedral das catedrais. Nosso padre...Estava claro que o dinheiro rola nesta cidade. Mas,para tirar a prova geral, perguntei. (Faz cara maliciosa de punheteiro com teso) E asputas? Tem? Sabe o que me disseram? (Imita malicioso) As putas desta cidade...sabemmassagear mordiscando, sabem as sete formas de beijar e sabem vrias formas de sedeitarem. Sabem o som da cobra, do tigre, do touro e do javali. Usam com maestria a garrada fera, a pata do pavo e a mo em folha do ltus azul. Elas sabem como ningumdesencadear os turbilhes de energia que levam ao xtase, ao delrio, como o mais poderosoalucingeno. E conhecem o segredo da preparao dos elixires, dos ungentos e dosperfumes que as cortess do oriente usam para forar a vontade dos seus velhos amantesexaustos, aumentando-lhes os falos e deixando-os em ereo, rgidos como um falo juvenil,apto a vrios gazos numa s noite. (Pausa) Soube dessas mulheres incrveis, pensei...BoboPlin podia...elas curam...Agora temos dinheiro. E vamos Ter mais. Porque neste lugar...Noquer? (Bobo plin sacode a cabea triste)

    MENELO Bobo Plin, eu sei...Voc...O esprito ... (Ri malicioso)Voc s esprito. Oesprito no tem sexo. O esprito mais para o feminino. (Diablico) Tambm me falaramque aqui h travestis. Eles, os travestis, so diabos...Servem de ncubos e de scubos, comoo freguspreferir. (Pausa)Nos harns, verdade, nos harns, os prncipes e marajs dasMil e Uma Noites sempre tinham...claro...alguns...como hoje...tinham seus travestis.Ningum desconfiava. Eles chamavam os travestis e era s pedir: Enterra esse seu falo emmim at me arrombar...(Pausa) Como hoje. Como hoje. Ainda assim. As aparncias somantidas...(Pausa. Bobo Plin s sacode a cabea)

    MENELO (explode) Mas afinal o que voc quer?

    BOBO PLIN Eu queria, Menelo, saber o que meu desejo e o que minha necessidade.Mas voc me agua o desejo. Se eu incremento meu desejo, eu sufoco minhanecessidade...Isso o suicdio.

    MENELO No fode, Bobo Plin. Quer dizer, fode. No. . Quer...No...O que eu querodizer ...Ouve o que eu falo, o seu bem o meu bem. Meu bem o seu bem. Ns somosuma coisa s.

    BOBO PLIN Deveramos ser. Mas no somos.

    MENELO Natural que no somos. Voc s...Sua espiritualidade...S pensa em alma.

    BOBO PLIN E voc? Anormal. S pensa na matria. Dinheiro. Poder. Prazer.

    17

  • 7/28/2019 49294852 Balada de Um Palhaco

    18/24

    MENELO Vai no puteiro. Ou na igreja. (Vira a mo)Como preferir. Mas descarrega. Eamanh cedo esteja pronto, animado, alegre, para irmos luta.

    BOBO PLIN Cedo? Que cedo esse?

    MENELO Ah, cabea a minha! Do principal no falei. Tambm voc...Bom, oseguinte: apareceu um trabalhinho extra pra ns fazermos. (Bobo Plin s olhadesconfiado)

    MENELO Sabe aquele gordo que riu at quase rachar o bico? Aquele com a mulher-lagartixa? Pois , o massa-bruta gostou mesmo. Gostou, gostou. Tanto gostou, que no finalda funo me chamou num canto e...Pra encurtar a histria, botou grana na mo deMenelo. Ele quer eu, voc, o ano e um perna-de-pau. Est tudo certinho. Amanhcedinho vocs, voc, o ano e o perna-de-pau vo l.

    BOBO PLIN Aonde?

    MENELO Na loja dele. Fazer uma zoada. Grande queima de estoque! Fim de estao!Patati-patat. Barato! Ado no se vestia porque o Gordo no existia! (Ri) Est tudo certo.Menelo parece bestalho, ano, bobo...Aqui, ! Menelo espertalho. J recebi a grana.Nem preciso ir l. Voc sabe.

    BOBO PLIN Sei, sei sim. S que eu no vou nessa.

    MENELO No? Como no? O gordo quer voc. Voc e o ano so figurasobrigatrias. Ele faz questo. Perna-de-pau, vai qualquer um. Nos bons tempos...Estougordo...Mas voc e o ano...

    BOBO PLIN Eu no vou. No vou. No vou.

    MENELO Tem que ir.

    BOBO PLIN No tenho que ir porra nenhuma! Sou palhao, um palhao sem classe,cheio de medo, cago, mas no sou garoto-propaganda. No fao isso. Sem graa ou comgraa, sou um palhao. o que sou. E estou em busca da minha alma. E quero subverter,despertar meu prximo. Quero isso. Quero com toda a fora do meu querer. E no sou euque vou sair por a criando iluses, sonhos consumistas. No, no, no mesmo. No vousair por a tocando uma corneta, com um ano aborrecido batendo no bumbo sem nenhumritmo e um perna-de-pau com um berrador, berrando: Comprem! Comprem! A nicarecompensa pelo trabalho insano, daninho, pela vergonhosa obra de suas mos, comprar.Comprem! Comprem! Comprem!

    MENELO um papel como outro qualquer. E o ator, Bobo Plin, faz qualquer papel.

    18

  • 7/28/2019 49294852 Balada de Um Palhaco

    19/24

    BOBO PLIN Eu no, Menelo. Eu no. Eu no me presto a esse triste papel. No querosentir o sol melando minha cara de carmim, alvaiade e carvo. No quero sentir o suorcorrendo no meu rosto sem-vergonha e pingando na calada a minha vocao derretida. Euno quero. No quero. No. No. No.

    MENELO difcil de se acreditar. Fez um sucesso de merda e j est todo cheio deluxo. Escute, Bobo Plin. Os grandes artista falei: os grandes artistas todos eles aparecemdia e noite nas televises falando, insinuando, ordenando para as pessoas comprarem,comprarem, comprarem. E da?

    BOBO PLIN Do outro lado, gente que no pode coisa nenhuma. Que tem um salrio quemal d pra comer. E a vem seu astro, sua estrela: comprem, compre. Esse homem faz acomparao. Tudo que bonito, nessa maldita sociedade de consumo, ali, sacudido na caradele. E ele, que merda, Menelo! Esse homem castrado espiritual e fisicamente. Ele nopode nada. Nada. Com o seu ordenado aviltante o perdedor convicto dessa malditasociedade. Castrado espiritual e fisicamente.

    MENELO assim que .

    BOBO PLIN No. Pra mim, no.

    MENELO Voc melhor que os outros? Eu j falei, os grandes artistas falam:comprem, comprem, comprem. E v como eles vivem? Comprem, comprem, comprem.Algum tem remorso? Comprem, comprem. E eles, os grandes artistas, vivem comonababos. Prncipes. Adorados por todos. (Pausa) E voc, Bobo Plin?

    BOBO PLIN Eu vivo, se que podemos chamar de vida esse andar semtermo...Espetculos...Como ces amestrados que se acostumaram com a coleira. Osartistas...a servido...Eu quero romper os grilhes...Isso at parece fcil...mas difcilromper com a misria.

    MENELO Eu s quero saber: voc vai ou no vai amanh na loja do gordo?

    BOBO PLIN No. No vou.

    MENELO Se eu conseguisse entender seus motivos. Se voc me explicasse...

    BOBO PLIN Vou tentar, Menelo. Eu entrei na trilha dos saltimbancos obedecendo a umimperioso apelo vocacional. O meu trabalho de palhao ou de ator...s tem sentido, se forum campo onde eu possa me realizar temporalmente e fazer a minha alma. Eu escolho esseofcio e quero exerc-lo como um sacerdcio. No quero perder a f no picadeiro dasespeluncas, diante da solido das platias vazias. (Pausa) E se no me presto para ir nateleviso mandar as pessoas comprarem, por que iria para a porta de uma loja de bairro decidade do interior, com um ano e um macaco, uma corneta, um bumbo e umamatraca...Comprem! Comprem!!! Comprem!

    19

  • 7/28/2019 49294852 Balada de Um Palhaco

    20/24

    (Pausa longa. Menelo limpa os ouvidos)

    MENELO Eu escutei bem, Bobo Plin?

    BOBO PLIN Deve Ter escutado. Berrei para que o mundo me ouvisse. No quero ser umarauto do consumismo.

    MENELO No, no. No isso. Eu escutei bem voc dizer que no trabalha nateleviso porque no quer? Que se quisesse...mas que porm, outrossim...data-venia...propaganda...etc. e tal? Escutei?

    BOBO PLIN Escutou. Escutou sim, Menelo.

    MENELO (Explode em riso)No seja ridculo, Bobo Plin. (Ri) Voc no trabalha nateleviso nica e exclusivamente porque no pode. Imagina se algum vai deixar detrabalhar numa televiso s por causa da propaganda. Ridculo. Mentiroso. Hipcrita. Prade acreditar nessas suas malditas fantasias. Mete isso na sua cachola de uma vez. Eu, voc,o ano, o perna-de-pau, todos que esto nessa trilha dos saltimbancos, ns todos, semexceo, no estamos aqui por mritos. Estamos aqui por uma condenao. Somosmedocres. Enganadores. E esse nosso andar...Se algum de ns tivesse talento, coragem, seil o qu, Bobo Plin, no ficava um dia nessa maldita andana. Inclusive voc, que vem atoda hora com essa punheta mental: alma, alma, alma. (Pausa) Amanh cedo voc vai praporta da loja do gordo e fim de papo. Se no for...j sabe...Pode pegar sua trouxa e cairfora.

    (Pausa. Menelo vai sair. Pra. Pensa. Vira-se lentamente)

    MENELO (contendo-se)No escutei resposta. Sei que voc est pensando. Mas queroavisar: se voc no for agitar a loja do gordo, se voc me trair, a mim, Menelo, quebanquei tantos fracassos, a mim...Agora que vai entrar dinheiro...voc me sacanear...E sepensa que vai ficar por isso mesmo, voc est enganado. Eu vou apontar um chaveco pravoc. Voc...voc no sabe...Mas o seu salto vai ser sem rede...Voc vai se estatelar nocho do picadeiro. Vou falar com os donos de...todos os donos de espetculos...todos...Ns,empresrios, nisso somos unidos. Vai se danar. Ningum vai lhe dar emprego. Ningum.Voc no ser o primeiro caso de um canalha marginalizado porque...E se pensa que vaiarmar roda na rua...tambm no vai. Vou perseguir voc at ver voc morrer de fome nasarjeta, ou ver voc tomando no cu na cadeia por ter roubado um po (Pausa longa) Pegarou largar, Bobo Plin. (Pausa) Ento? Pegar ou largar? (Pausa)

    BOBO PLIN Largar.

    MENELO (furioso) Canalha! Cai fora! Cai fora! (Bobo Plin vai sair, Menelo oagarra)

    20

  • 7/28/2019 49294852 Balada de Um Palhaco

    21/24

    MENELO No, no, no. Voc no vai a lugar nenhum. Sei como fazer...Eusei...Palhao faz graa. No faz propaganda, faz graa. Voc vai me fazer rir. A ltima vezque eu ri foi...Quando foi? Foi...Nem me lembro mais. Porm hoje eu quero rir. Vamos,palhao, me faz rir. (Estala o chicote, como se batesse em Bobo Plin) Vamos, palhao! Oespetculo continua!

    (Entra msica de galope de circo. Bobo Plin se levanta e comea a danar como se fosse

    um boneco de marionete, um polichinelo. Bobo Plin comea a tirar a luva, que

    comprida e demora a sair. Depois que tira a luva, Bobo Plin a joga fora e pendura o

    palet no ar, que obviamente cai no cho. Bobo Plin puxa a cadeira em que Menelo

    est sentado. Os dois lutam pela cadeira. De repente Bobo Plin solta a cadeira, Menelo

    cai. Menelo levanta-se furioso. Agarra Bobo Plin e o sacode como se ele fosse um

    boneco de pano. No h resistncia. Por mmica, Menelo explica que quer rir. Vai

    sentar-se. Bobo Plin puxa a cadeira. Menelo cai outra vez no cho. Menelo levanta-se

    mais furioso ainda. Bobo Plin, por mmica, pede calma. Deita a cadeira e deita-se no

    lado dos ps. Oferece para Menelo sentar-se no encosto. Ele senta-se. Bobo Plin se

    levanta e Menelo cai no cho mais uma vez.. Menelo vira a cadeira e senta-se nos ps,

    obrigando Bobo Plin a sentar-se no encosto. Menelo se levanta. Bobo Plin tambm.

    Repetem a cena duas, trs vezes. De repente, Menelo se levanta, Bobo Plin no. A

    cadeira cai. Bobo Plin no. Est sentado no ar. Menelo fica bravo. Sacode Bobo Plin

    que, quando se v livre, desvira a cadeira. Convida Menelo a sentar-se. Ele senta-se,

    Bobo Plin se levanta. Menelo cai e se levanta furioso. Bobo Plin tira do bolso um leno

    branco, acena pedindo paz. Bobo Plin mostra o leno para o pblico, no h nada no

    leno. Bobo Plin arranca o charuto de Menelo, enfia no leno. Sacode o leno, no h

    mais charuto. Comea a ficar nervoso. Bobo Plin aponta para trs de Menelo, que se

    vira para ver o que e recebe um p na bunda. Desvira-se bravo e Bobo Plin enfia-lhe

    um charuto na boca. Menelo examina o charuto, cheira, acha gostoso e o pe na boca.

    Procura fsforos, no tem. Bobo Plin, solcito, acende o charuto de Menelo, que

    agradece. Traga o charuto, que explode. Bobo Plin, por mmica, se desculpa e oferece

    uma flor. Menelo vai cheir-la, a flor espirra gua nos olhos de Menelo, que fica

    como cego. Cheio de raiva, avana s tontas contra Bobo Plin, que o toreia. Bobo Plin

    passa o p em Menelo, que cai. Bobo Plin, como vencedor, coloca o p sobre Menelo,

    faz pose e agradece. Menelo, exausto, levanta-se meio tonto)

    MENELO Eu no achei nenhuma graa, palhao. Mas vou lhe dar mais uma chance.Cante uma cano.

    (Bobo Plin pega o violo e canta a cano Mil e Uma Estrelas)

    21

  • 7/28/2019 49294852 Balada de Um Palhaco

    22/24

    BOBO PLIN (cantando) Estrelas, estrelas,Estrelas, estrelas,No firmamentoAzul do cuInfinito cu azul.

    Estrelas, estrelas,Mil e uma estrelas,Uma em mil,Uma em mil,Uma em mil habitada.Ser? Ser? Ser?Ser? Ser? Ser?Que s nsNo planeta Terra? Ser?

    Nenhum reflexo mgicoNa cara dos palhaos,No plido alvaiade,Na noite de carvo,Nos campos de carmim,O sangue derramado,O deboche vermelhoEm olhos raiadosDos sonolentos sonhadores,Mortos matadores,Obedientes aos seus senhores,A dormir, comer, trabalhar,Trabalhar, comer, dormir,Trabalhar, trabalhar, trabalhar (BIS)

    E o ponto magntico,A estrela mais brilhanteNo cu azul,Na roupa de cetimDo histrio mecnicoQue sem arrependimento,Falador, falastro, bufo,Matraca constante,Arauto da ilusoApregoou triunfante,Apregoou triunfanteAs vantagensDe dormir, comer, trabalhar,Trabalhar, comer, dormir,Trabalhar, trabalhar, trabalhar (BIS)Na segurana do contrato,Com a doena,Com a velhice,Com a morte.

    22

  • 7/28/2019 49294852 Balada de Um Palhaco

    23/24

    Trabalhar, trabalhar, trabalhar,

    Estrelas, estrelasEstrelas, estrelasMil em uma

    Uma em mil.Ser? Ser? Ser? Ser?...

    (Pausa. Menelo agarra Bobo Plin e o sacode)

    MENELO (raivoso) Seu canto no tem graa. Nenhuma graa. Cai fora, palhao! Caifora! E no volte nunca mais. Voc me angustia. Voc me faz mal. Voc...suas mentiras,suas bobagens sem propsito. Vai embora, palhao. Vai embora.

    (Menelo atira Bobo Plin no cho. Menelo vira-se de costas como quem vai sair. Pra.

    Bobo Plin vai se recompondo. Fica de joelhos)

    BOBO PLIN Ideal,Que ests no meu cu interior,

    Verdade vivaQue faz minha alma

    Imortal,Para que tua tendncia

    EvolutivaSeja realizada,Para que teu nomeSe afirme pelo trabalho,Para que tua revelaoSeja manifestada a cada

    Espetculo,A cada espetculo concede-me

    A idia criadora,Que assim como ela estEntendida no meu coraoSeja entendida no meu corpo.

    Ideal,Preserva-me dos reflexos

    Da matria,Que eu compreendaQue o sofrimento benfeitorEst na origem da minha

    Encarnao.Livra-me do desespero

    23

  • 7/28/2019 49294852 Balada de Um Palhaco

    24/24

    E que teu nome sejaSantificado

    Pela minha coragemNa prova ideal,

    Faze com que euNo diferencieO fracasso do sucesso.E perdoa a minhaDificuldade de comunicao,Assim como eu perdoOs que no tm ouvidos

    De ouvirNem olhos de ver.

    Ideal,Destri meu orgulho,Que poderia afastar-meDa tua luz-guia,Nutre meu devotamento,Porque s,

    Ideal,A realeza, o equilbrio, a fora

    Da minha intuio.

    (Bobo Plin se levanta. Vira-se em direo da sada. Menelo se volta)

    MENELO Palhao, palhacinho, meu palhao...Olha, palhao...Ficacomigo...Eu...ns...voc...vai fazer sucesso, Bobo Plin...Sucesso...Eu juro...Meu Deus...(Pergunta para o pblico) Onde ele vai? (Volta-se novamente para Bobo Plin) Bobo Plin,meu Bobo Plin, onde voc vai? Onde? (Pausa)

    BOBO PLIN (Volta-se e olha Menelo com ternura) Vou subir o monte...enquantotenho pernas.

    (Bobo Plin se vira para sair. E vai andando lentamente, com dificuldade. Menelo segue

    atrs se arrastando)

    FIM

    24