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    Um Repertrio Musical de Caboclos noSeio do Culto aos Orixs, em Salvador da

    Bahia1

    Sonia Maria Chada Garcia

    Perante a sociedade brasileira, a msica de candombl se cons-titui num sistema musical distinto de outros sistemas musicais exis-tentes no espao e no tempo neste pas. Plasmou-se pela reconstruode elementos caractersticos de msicas e fazeres musicais de etniasafricanas aqui trazidas como escravas, sob a relativa indiferena de

    poderes como o da religio catlica dominante que no os levava asrio como religio ou como ameaa sua hegemonia. De sua parte,este candombl no impunha restries nem exclusividade partici-pao de seus devotos. Tal situao teria sido provavelmente bemdistinta se o confronto externo dos sistemas envolvesse a rigidez doprotestantismo ou at mesmo de Isl, este j eliminado na revoluode 1835, a dos Mals, quase contempornea do surgimento da pri-

    meira casa de candombl em Salvador.No apenas de grandes confrontos externos temos de nos ocu-par. J nos parece certo que mudana cultural no necessariamentecausalmente relacionada mudana musical, esta ltima a ser consi-derada como mudana no sistema musical e no apenas mudanasnos sons e nas msicas. Temos tambm a pressuposio de que exis-tem comportamentos musicalmente irredutveis a comportamentosde outra ordem. Neste caso, o homem se nos apresenta como dotadode uma inata competncia musical, semelhante competncia lin-gstica, que o habilita msica. Tais mudanas sero sempre inicia-tivas de indivduos, embora sujeitas sano do grupo.

    O culto ao Caboclo, pela nfase que d ao individualismo dosCaboclos, um aspecto do sistema religioso, uma porta aberta, den-

    1 Verso modificada do texto apresentado em 17.08.2001 ao Programa de Ps-

    Graduao em Msica da UFBA para defesa de tese na rea de Etnomusicologia,orientada pelo Prof. Dr. Manuel Vicente Ribeiro da Veiga Jr.

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    tro de limites, s variaes individuais que podem ou no vir a cons-titurem-se em mudana musical.

    Diante das dificuldades, a elaborao de uma teoria coesa damudana musical, que funda uma teoria de msica a uma teoria de

    cultura, ainda est por ser feita, embora com contribuies valiosasao longo do caminho. H necessidade de perodos de recorrncia re-lativamente longos que vo muitas vezes alm do que a natureza doregistro musical permite, assim como so difceis as de identificaodos momentos de mudana. At mesmo o problema do que constituasemelhana ou diferena, do que possa mudar (estilo) ou do que nopossa (contedo) no processo de transmisso musical, tudo nos faz

    crer que nossa abordagem do repertrio do Caboclo, em termos damudana musical, seja apenas um primeiro esboo. De outro lado,entretanto, como linguagem dotada de alta expressividade, smbolono-consumado, como a v Susanne Langer (1989: 238), mudandode significado pela mudana de contexto e de funo, mesmo semmudana dos sons, a msica reflete melhor que qualquer outra lin-guagem as nuances afetivas dos indivduos e dos grupos que a prati-cam, por isso mesmo se prestando intermediao entre os homens e

    os deuses, assim como deixando-se atualizar sem necessariamentemudar. Da ser tambm fator para a educao continuada, ajudando ohomem a atualizar-se sem perda de identidade, em perodos de mu-dana acelerada, o que no seu conjunto pode vir a constituir-se comodesenvolvimento cultural.

    No se tratar aqui, entretanto, de processos de inovao tidoscomo inveno o que seria mais prximo do conceito de composi-

    o da tradio artstica europia, mas sem cabimento no contextoritual do culto ao Caboclo mas de transformaes estilsticas porinovao, como inteiramente concordamos com Gerard Bhague(1976: 132).

    Nosso ponto de partida foi a constatao da existncia de umrepertrio musical especfico de Caboclo (ver quadro 1), distinto dorepertrio dedicado aos Orixs. Conscientes de matrizes comuns ti-vemos, entretanto, necessariamente de enfatizar diferenas, mais doque semelhanas, considerando, sempre que possvel, o procedimen-

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    to mico. O interesse aqui, vale insistir, no sobre o aspecto focalda criao musical que, segundo a opinio de Nettl (19833: 27), exi-giria para isso um consrcio de disciplinas acadmicas, problemaesse que transcende a Etnomusicologia sozinha ainda que

    interdisciplinar ela se conceba.

    Quadro 1 - Repertrio musical das festas dedicadas aos Caboclosno Ialax Om2

    Cantigas Toque Repertrio

    Pad3

    Xir4

    Virada para Caboclo

    Encerramento

    ExuPlvora

    PembaIncenso

    OgumOxossi

    ObaluaiCatendOxumar

    TempoXangIansOxum

    IemanjNan

    RezasJuremaComida

    AgradecimentoEntrada

    ApresentaoSaudao

    BenoSamba

    SotaqueTrabalhoGalo

    Despedida

    Oxal

    Congo e BarraventoBarravento

    Congo e BarraventoCongo e Cabula

    CongoCabula e BarraventoCongo e Barravento

    Congo e CabulaCabula

    Congo e BarraventoCongo

    Congo e BarraventoIjex

    Barravento e CabulaCongo e Cabula

    Congo e Barravento

    Sem acompanhamentoCongoCongoCongo

    Congo, Barravento e SambaCongo e BarraventoCongo e BarraventoCongo e Barravento

    Samba

    Congo e BarraventoCongo e BarraventoCongo e BarraventoCongo e Barravento

    Congo

    Angola

    QuetoAngola

    Angola e CabocloCaboclo

    Angola

    2 Casa de candombl pertencente a nao queto, situada no bairro de Plataforma,em Salvador-Bahia, onde foi realizada esta pesquisa.3 Ritual sagrado realizado no incio de qualquer cerimnia de candombl, comoferendas para Exu.4 Seqncia ritual em que so tocadas, cantadas e danadas as cantigas dedicadasaos Orixs a comear por Ogum.

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    O nosso problema principal se refere a fatores que possivelmen-te incidiram sobre o gradual ajuste do repertrio musical dos can-dombls, em funo de conjunturas e contextos novos que deram lu-gar ao surgimento de um panteon de Caboclos e, conseqentemente,

    influram nos rituais em que so venerados e nos elementos essenci-ais destes. Msica parte indissocivel disso.

    Como os demais aspectos da cultura, as religies, mesmo queconservadoras por excelncia esto imersas nos processos de conti-nuidade e mudana que afetam as culturas. O culto aos Orixs e aosCaboclos, ainda que lentamente e de forma diferenciada, esto sujei-tos aos processos de mudana cultural. Modificaes graduais tor-

    nam-se perceptveis com o decurso do tempo. Se tido no passadocomo um candombl de nao, o culto ao Caboclo hoje se dilui entreos demais, tendo se multiplicado consideravelmente na cidade deSalvador. Entendemos como tal que a cultura religiosa que nos foitrazida da frica, sobrevivendo ao trauma da escravido, ajustando-se a mecanismos de opresso de toda sorte, reconfigurada no Brasilcomo um prottipo, na Bahia, sofreu estmulos da configurao cul-tural nativa. No se pensa aqui em determinismos de qualquer natu-

    reza, mas no conjunto de fatores tais como lngua, costumes, clima,economia, a prpria natureza psquica do homem e, principalmente,a prpria cultura, como elementos relevantes na variao dos estilosmusicais. Os complexos mecanismos da mudana cultural sejam ino-vao (em seus estgios de anlise, identificao e substituio deelementos), aceitao social a que a mudana est sujeita, execuoe, eventualmente, integrao como forma nova de comportamento

    social, tudo isso se sucede como um processo contnuo, inerente acada cultura (Cf. Spradley e McCurdy, 1989: 302ss.). De acordo coma hiptese de Nettl (1983: 277) sobre a variabilidade da velocidadecom que a mudana ocorreria, mudanas nos conceitos surgiram maisprontamente do que mudanas nos comportamentos, para finalmenteocorrerem mudanas nos sons propriamente ditos.

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    Quadro 2 - Semelhanas e diferenas

    Orixs Caboclos

    Religio

    Msica

    Divindades

    Comunicao

    Sincretismo

    Ritual

    Toques

    Melodia

    Instrumentao

    Textos

    Dana

    AfricanasLaos de descendncia, tribo,famliaDono da cabeaForas da natureza

    Indireta

    Divindades africanas santoscatlicos

    Festas

    Congo, Barravento, Cabula eIjex

    Predomnio de estruturas hexa-tnicasEstilo responsorial

    G e trio de atabaques

    Lngua de origem banto

    Predominante

    Brasileiras Donos da terraAldeias, reinos

    Guia espiritualPessoas como ns

    Direta

    + catolicismo+ espiritismo+ representao simblica da

    cultura indgena.

    Festas, Reunies, Solenes

    Congo, Barravento e Samba.

    Predomnio de estruturas hepta-tnicas.Estilo responsorial

    G e trio de atabaquesEventualmente violoAusncia nas rezas

    PortugusRimas popularesRedondilha maior

    Predominante. Ausncia nas rezas

    A induo a um repertrio musical especfico dos Caboclos aqui observada a partir do contexto. Como religio, o candomblfreqentemente associado a divindades e a um sistema mitolgicofundamentalmente derivado do universo africano. Paralelamente existncia dessas divindades, principalmente os Orixs, ora se en-contram os Caboclos, ditos de mesmo nvel, mas com caractersticasparticulares, ainda que relacionadas. Dessa forma, em uma mesma

    casa, atualmente so cultuados tanto os Orixs quanto os Caboclos,

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    como se houvesse duas atividades religiosas independentes que seintegram, mas que no se misturam. A presena do Caboclo, todavia,no faz com que os traos tradicionais que marcam a cultura religiosaafro-baiana se descaracterizem, na medida em que ambos so conce-

    bidos de modo diferenciado. A msica um testemunho eloqentedo que acima afirmamos.

    Existem oposies entre a mitologia dos Caboclos e a dos Orixs(cf. quadro 2). As divindades africanas, ligadas por laos de descen-dncia, so calcadas na tribo e na famlia, constituindo um sistema.Os Caboclos so entidades brasileiras, os donos da terra, esto distri-budos em aldeias, reinos, e se justapem numa geografia celeste,

    mas so dispersos e as distines entre si no so to claras. O Orix a energia que rege, que dirige o corpo, o dono da cabea, o prpriocaminho. Representa as vibraes das foras elementares da nature-za. mais remoto s fala diretamente com os pais ou mes-de-santo,ogs5 e equedes6 , ou manda recado pelo er7 . O Caboclo mais liga-do terra. o guia espiritual, vem para indicar o caminho e ajudar oshomens. Representa espritos que foram pessoas como ns, apresen-tando por isto mesmo, caractersticas humanas com seus defeitos e

    virtudes. Comunica-se diretamente com os adeptos, sem intermedi-rios e assim conduz ele prprio o seu ritual.

    No culto aos Orixs o suposto sincretismo catlico percebidoatravs de uma justaposio dos santos com as divindades africanas.Se o sincretismo, ou seja, a fuso de configuraes distintas, mas dealgum modo compatveis, realmente ocorre, com o surgimento deum produto novo, ou no, discutvel. H uma correspondncia en-

    tre a personalidade dos Orixs e a dos santos resultante freqentementede uma acomodao scio-histrica. No se trata tanto de identific-las, nem mistur-las e sim de encontrar equivalncias entre elas. J

    5 Cargo hierrquico dado a homens que no entram em transe, escolhidos pelodirigente da casa de candombl ou por Orixs e Caboclos incorporados, encarrega-dos de prestar inmeros servios casa.6 Cargo hierrquico feminino. Filha-de-santo iniciada, que no entra em transe,encarregada de cuidar dos Orixs, dos Caboclos, assim como dos filhos e filhas-de-

    santo quando incorporados.7 Entidade infantil ligada aos Orixs.

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    no culto ao Caboclo h uma fuso de elementos catlicos, africanos,indgenas e espritas que se agregam dando-lhe um carter maissincrtico e nacional mais profundo. O sincretismo catlico aqui ca-minha lado a lado com prticas desenvolvidas e aceitas nos candom-

    bls, como o uso de muitos preceitos africanos. O espiritismo, influ-indo principalmente no comportamento dos Caboclos afeta a msica,desenvolvendo-se um grupo especfico de salvas de trabalho paraacompanhar essa atividade. Os aspectos indgenas, entretanto, norepresentam uma fuso de elementos entre negros e ndios e sim umarepresentao simblica do que seria a cultura indgena para os adep-tos do candombl. A circunstncia de os Caboclos serem venerados

    nas mesmas casas onde o so os Orixs, tambm permite, em termosespecificamente musicais, que os diversos estilos de canes que lheso associados convivam e coexistam, evidenciando as duas tradi-es diferentes antigamente consideradas incompatveis, a que j nosreferimos.

    A utilizao de dois repertrios com caractersticas distintas nosrituais dedicados aos Caboclos, um da nao Angola e outro especfi-co de Caboclo, parece-me convincente. As cantigas da nao Angola

    que fazem parte da matana8 , pad, xir e para Oxal, em uma ceri-mnia dedicada ao Caboclo, so acompanhadas pelos toques Congo,Barravento, Cabula e Ijex. So, com exceo das cantigas da matan-a, tambm danadas. As melodias, acompanhadas pelo grupo ins-trumental formado pelo g e por um trio de atabaques, so puxadaspelo pai-de-santo ou me-de-santo, ou um og (solo), e depois repeti-das pelo coro formado pelos adeptos e freqentadores de modo

    monofnico. Essas cantigas implicam em estruturas escalares e con-figuraes modais de vrios tipos, com uma maior concentrao emhexatnicas. Os textos, na grande maioria, so em lngua de origembanto, embora algumas cantigas sejam em portugus e outras mistu-rem palavras africanas com o portugus. Constatamos, portanto, quesubsiste um repertrio de base, de procedncia Angola, ao qual o deCaboclo se agregou.

    8 Sacrifcio ritual de animais que so oferecidos aos Caboclos e Orixs.

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    O repertrio musical especfico de Caboclo sustentado atual-mente (nem sempre foi assim) pelo mesmo conjunto instrumentalque acompanha todos os rituais do candombl formado pelo g e portrs atabaques. Eventualmente o violo utilizado exclusivamente

    no acompanhamento dos sambas. As melodias, acompanhadas pelostoques de Congo, Barravento e Samba, com exceo das rezas, sogeralmente puxadas pelos Caboclos e se incluem em grande parte nasheptatnicas com uma concentrao significativa no que equivaleria nossa escala maior e, em menor grau, a vrios tipos de hexatnicos,pentatnicos e tetratnicos. Os textos so quase sempre em portugu-s, com exceo das rezas que podem ser em lngua de origem banto.

    Aspectos da metrificao popular se refletem na freqente presenade rimas no segundo e quarto verso de quadras e, muitas vezes napresena de redondilhas. Msica e dana so predominantemente in-terligadas, embora as rezas no sejam danadas.

    Fatores que atuam na transformao e geraodo repertrio musical dos Caboclos

    1. Propiciam - psquico e histrico predisposioda nao Angola de cultuar os donos da terra.

    A prtica dos povos de origem banto de cultuar os ancestrais eantigos donos da terra e o fato dos candombls da nao Angola se-rem mais abertos s influncias externas permite a integrao do Ca-boclo nos candombls baianos no obstante o culto a esta entidade

    no ser um privilgio somente desta nao. Se tomarmos o culto aoCaboclo na sua essncia ele nos revela vrios elementos musicais deorigem banto que comprovam a relao entre os Caboclos e a naoAngola: a maneira de tocar os atabaques que so tocados com as mosem vez de aguidavis; a utilizao dos toques Congo e Barravento, danao Angola, no acompanhamento de todas as salvas de Caboclo; amesma linha guia do g nos toques cabula, da nao Angola, e sam-ba, exclusivo dos Caboclos; o emprego das mesmas cantigas entoa-das no pad, xir, matana, para Oxal e algumas rezas por ambos e,a utilizao de melodias da nao Angola, idnticas ou gerando vari-

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    antes, embora com textos distintos (contrafactum) no repertriomusical dos Caboclos.

    2. Limitam aspectos organolgicostoques

    Quadro 3 - Estrutura ritual Orixs Caboclos

    Cerimnia Secreta Matana Matana

    Cerimnia Pblica

    Pad

    Xir

    Cantigas especficas para chamar oOrix homenageado.

    Intervalo

    Rum do Orix homenageado e dos

    que se manifestarem

    Cantigas para Oxal

    Pad

    Xir

    Cantigas especficas para chamartodos os Caboclos.

    Intervalo

    Cantigas especficas para todos os

    Caboclos com diversas finalidades

    Cantigas para Oxal

    As cantigas so sempre associadas aos toques que as acompa-nham. Os instrumentistas no conseguem dissoci-las. O repertriomusical exclusivo dos Caboclos sendo acompanhado apenas por trstoques (Congo, Barravento e Samba) e a possibilidade de relao,levantada nesta tese, entre as alturas dos instrumentos de percusso ea das melodias foram considerados como fatores que limitariam agerao do repertrio dos Caboclos.

    As cerimnias dedicadas ao Caboclo seguem o mesmo modelode estrutura ritual utilizado em todas as festas de candombl, inde-pendente da nao, embora com adaptaes (conferir quadro 3). Ascantigas utilizadas nas festas dedicadas aos Orixs so de acordo coma nao a que a casa pertena. Os cantos que acompanham as cerim-nias da matana, pad, xir e para Oxal, nos rituais dedicados aosCaboclos, so pertencentes nao Angola, independentemente dacasa onde sejam realizadas as cerimnias. O ritual apresentando es-

    truturas definidas, necessitando de cantigas apropriadas para acom-panhar cada uma das partes, delimita a gerao do repertrio musi-

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    cal, preservando, de certa forma o contedo (o que ) que parecemudar bem menos do que o estilo (como ). O conceito de con-tedo e estilo est aqui sendo utilizado nos termos em que Nettl(Cf. 1983: 47-9, 115-7, 189-91) os concebe. Reduz ambos a aspectos

    da forma, sugerindo que contedo aquilo que no muda no aspectoda transmisso oral, aquilo que mantm a integridade de uma unida-de do pensamento musical e que inclusive a define enquanto o estilopode mudar. A persistncia do elemento que no muda, no processode transmisso, uma indicao de sua resistncia, de sua fora, por-tanto da probabilidade de constituir parte essencial do sistema musi-cal em apreo, por isto mesmo, contedo.

    3. Orientam mitologia do Caboclodiviso dos Caboclos em categorias amplas:

    Caboclos-de-couro9

    Caboclos-de-pena10

    Marujoscaractersticas individuaissmbolo nacional

    crena em Deusassimilao de smbolos catlicosestrutura socialreforo da relao Caboclo (2 de julho)

    e Caboclo (candombl)

    Os Caboclos tm as suas obrigaes, seus fundamentos e seus

    preceitos. A mitologia do Caboclo, a sua diviso em categorias am-plas Caboclos-de-couro, Caboclos-de-pena e Marujos; as caracte-rsticas individuais de um nmero talvez incalculvel de verses bra-sileiras dessas categorias; o apelo ao simbolismo nacional presenteneste culto; a representao que os afro-baianos fizeram do ndio bra-9 Tipo de Caboclos, geralmente chamados de Capangueiros, Vaqueiros e Boiadeirosque descem nos candombls de Caboclo. Apresentam-se vestidos com roupas echapu de couro, portando cordas e lanas.10 Tipo de Caboclos que descem nos candombls de Caboclo. Apresentam-sevestidos com penas, plumas, e segurando arco e flecha.

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    sileiro incluindo a crena em Deus e a assimilao profunda e mani-festa de smbolos catlicos pelos Caboclos e, a estrutura social docandombl com sua hierarquia bem definida assimilada pelos Cabo-clos acham expresso atravs da msica, geram um nmero elevado

    de cantigas e foram considerados como fatores que orientam a gera-o deste repertrio musical. A idia do Caboclo heri presente nodesfile do Dois de Julho amplia o mito do Caboclo cultuado no can-dombl e torna-se um reforo para sua assimilao e penetrao noimaginrio daqueles que crem nas divindades Caboclas e as cultuam.Esta imagem simbolizada de vrias formas nos rituais, apontandopara a busca da nacionalidade que deve acontecer inclusive na msi-

    ca.4. Inovam - processos criativos - repertrio gerado

    de vrias formas:derivao com melodias idnticas e textos distintosvariantes de cantigas da nao Angolavariantes da prpria msica dos Caboclosmatrizes

    emprstimo de repertrio popular

    As cantigas cuja autoria atribuda aos Caboclos, via pessoasem estado de transe, no so entendidas pela comunidade maneiraque ns chamaramos de composies, isto , como produtos in-tencionais de indivduos e sim como cantigas que so trazidas deAruanda por essas entidades. Do mesmo modo como no vm os

    ogs como msicos no existe para o grupo neste contexto o conceitode compositor, estando essa atividade sempre relacionada com a fun-o mgica e religiosa. O processo criativo tanto de melodias quan-to de textos, ou dos dois, sendo a elaborao de textos to importantequanto a das melodias. De um ponto de vista tico, parte do repert-rio musical dos Caboclos constitudo de variantes de material musi-cal j existente que combinado e recombinado de acordo com osmoldes tradicionais constituindo-se em cantigas diferentes.

    Alguns desses cantos so derivados de cantigas da nao Ango-la, as variantes podendo ser relacionadas de vrias formas. As prpri-

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    as cantigas especficas de Caboclo tambm geram variantes de vriostipos mudando ou no a funo litrgica. As salvas de apresentao esaudao dos Caboclos desenvolvem um vasto nmero de versesque obedecem a formas padronizadas, existindo variantes consider-

    veis de uma mesma melodia. Cada verso considerada diferenteporque possue texto e so trazidas por Caboclos distintos. A meramudana do nome do Caboclo no texto da cantiga faz com que sejaconsiderada diferente. O repertrio de sambas cantados em uma festade Caboclo inclui tanto sambas que so trazidos pelos Caboclos, can-tigas que so adquiridas de forma sobrenatural, quanto melodias queso aprendidas dos sambas de roda e que passam a ser entoadas in-

    clusive por entidades do panteon africano (Ers e Exus).5. Alteram - limites nas variaes admissveis:

    Quadro 4 - Estrutura ritual

    Il Ax Dele Om Ialax Om

    Cerimnia secreta Matana No realiza a matana

    Cerimnia pblicaPad

    Xir

    Cantigas para chamar osCaboclos.

    Cantigas para entrada dosCaboclos, seguidas de salvas esambas com vrias finalidades.

    Rezas na cabana, seguidas decantigas para comida e jurema.

    Cantigas para Oxal.

    Pad

    Xir

    Rezas associadas ingesto dejurema para chamar os

    Caboclos, seguidos das cantigaspara comida e jurema.

    Cantigas para entrada dosCaboclos, seguidas de salvas esambas com vrias finalidades.

    Cantigas para Oxal

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    Quadro 5 - Solene

    FESTA DE CABOCLO SOLENE DE CABOCLO

    Jurema e bebidas alcolicas,particularmente cerveja natural e charutos.

    Roupas brancas/trajes caractersticos.

    Estrutura ritual: Pad, Xir.

    Virada para Caboclo.

    Danas prescritas, msica com presenaessencial da percusso.

    Transe a depender da casa.

    Sacrifcio propiciatrio essencial ou no, adepender da casa.

    gua com rosas e charutos.

    Exclusivamente roupa branca.

    Estrutura ritual equivalente, comdenominaes distintas: Incenso (Pad),Preces espritas e hinos catlicos (Xir).

    Chegada dos Caboclos.

    Sem dana, sem acompanhamento instrumental,todos sentados, cantos de hinos.

    Transe em funo da cantiga de fundamentoda me-de-santo.

    Nenhum sacrifcio de animais.

    H uma certa flexibilidade no culto ao Caboclo que permite a

    criao ou alterao da estrutura dos rituais e resultam na adaptaodo mesmo repertrio musical a contextos distintos. Essas mudanasso atribudas vontade de cada Caboclo, afetando conseqentemen-te, de alguma forma, o repertrio musical que tem de ser adaptado anovos contextos, produzindo mudanas diferenciais no culto ao Ca-boclo nas casas de candombl baianas que passam a construir suaprpria histria, embora haja uma estrutura bsica comum a todas.

    Um estudo comparativo da estrutura de duas festas de Caboclo,uma para Laje Grande no Il Ax Dele Om11 e outra para Boiadeirono Ialax Om (conferir quadro 4), apontam as seguintes variaes: OIalax Om no realiza a cerimnia da matana, por isso, o repertriomusical entoado neste ritual supresso causando conseqentementediminuio no repertrio musical desta casa em relao ao Dele Om.As duas casas, embora com variaes, mantm o pad, xir e as can-

    11 Casa de candombl pertencente a nao queto, situada no bairro do Arenoso, emSalvador-Bahia.

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    tigas para Oxal. O estado de transe, porm, provocado de maneiradistinta, para a mesma finalidade so usados repertrios diferentes. ODele Om utiliza cantigas especficas para a chamada dos Caboclosque so danadas e acompanhadas pelos instrumentos de percusso.

    No Ialax Om o transe se associa s rezas que so entoadas semacompanhamento instrumental e no so danadas. Ambas mantmo repertrio musical fixo de cantigas que acompanham o cortejo deentrada dos Caboclos seguido de salvas para diversas finalidades esambas.

    A Solene (ver quadro 5), altamente sincrtica, amalgama a lei-tura de preces espritas e catlicas, a entoao de hinos da igreja cat-

    lica, juntamente com cantigas de Caboclo. H aqui, entretanto, umafundamental diferena: as cantigas no so danadas e nem so acom-panhadas pelos instrumentos, incluindo os atabaques, cuja funo acomunicao com as divindades. Nas solenes s so cantadas salvasde Caboclo, as mesmas das festas. Estamos aqui diante do que nosparece uma alterao do sistema musical, em vista da hierarquia efuno da percusso, ora ausente, bem como da dana, e do tempolento dos hinos, em contraste com o tempo rpido da percusso afri-

    cana e afro-baiana, portanto uma mudana musical como a defini-mos. Em termos mais gerais, ainda a msica que propicia a ligaoentre os homens e o sobrenatural. Sofre, porm, adaptaes em rela-o ao seu padro original das festas de Caboclo e do candombl emgeral. Seu uso e seu significado ora se ligam a fatores distintos docontexto que por sua vez ela reflete.

    Os Caboclos, absorvidos pelos candombls afro-baianos, evi-

    dentemente no podem tudo, mas dentro de limites podem bastante.Todavia, o repertrio ainda conserva a sua essncia bsica, os estilosmudando mais rapidamente do que o contedo, este muito pouco oumais lentamente, ao contrrio do exemplo acima apontado em que osistema musical se alterou.

    Em muitas culturas h uma relao ntima entre msica e reli-gio, assim como, uma tendncia a expressar os diversos aspectos doritual religioso atravs da msica. Quando algum usa msica para seaproximar de seu Deus est empregando um mecanismo particular,

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    em conjuno com outros, tais como a dana, oraes, rituais organi-zados e atos cerimoniais. A funo da msica aqui inseparvel dafuno da religio e pode, talvez, ser interpretada como o estabeleci-mento de um sentido de segurana vis--vis com o universo (Cf.

    Merriam, 1964: 210). Se a religio opera pela reduo do individua-lismo pelo reforo do coletivo, do sentimento comunitrio, a msicano ritual provavelmente colaborar para o mesmo fim. Se isso se fazpela depurao de elementos musicais como na monodia gregoriana,ou pelo suor da percusso e da dana nas religies de possesso uma questo de estilo mais do que de contedo.

    Nossa hiptese fundamental no que diz respeito relao entre

    o sagrado e o homem, entre religio e msica, que esta funcionacomo uma intermediao propiciando ao mesmo tempo a manuten-o da identidade do homem e a atualizao da linguagem que neces-sita para ajustar-se mudana sem perda de si mesmo. Lidamos compobreza e sofrimento, necessitamos de desenvolvimento econmicoque por sua vez depende do desenvolvimento cultural. Este defini-do pela UNESCO (Cf. Veiga, 1998) como educao continuada dohomem para ajustar-se mudana, ora acelerada. Aqui, a msica

    coadjuvante expressiva pela capacidade de trnsito entre os deuses eos homens, modificando-se como linguagem mas mantendo a rela-o focal e primordial com o sagrado. Essa hiptese ajusta-se a umaenftica declarao de Bruno Nettl (1983: 147-61) de que a funodas funes da msica seria estabelecer uma relao entre o homem eo sobrenatural, servindo de mediadora entre pessoas e outros seres emantendo a integridade de grupos sociais individuais. Assim coloca-

    das, as funes da msica e religio praticamente coincidem. A difi-culdade maior, evidentemente, na anlise das culturas musicais, aidentificao desses valores centrais da cultura aos quais aparente-mente, os Caboclos e seus repertrios vo de encontro no processode ajustamento que representam.

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    Culto aos Orixs, em Salvador da Bahia. Tese sub-metida ao Programa de Ps-Graduao em Msicada Universidade Federal da Bahia, como requisitoparcial obteno do Grau de Doutor em Msica.Salvador: Escola de Msica da UFBa.

    Langer, Susanne K.1989 Filosofia em Nova Chave. Traduo de JaneteMeiches e J. Guinsburg. 2a ed. So Paulo: Perspec-tiva.

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