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5. CORES E NOMES 5.1. Movimento e Ação: Misturas, Miscigenação e Mestiçagem O processo de miscigenação ou mestiçagem ocorrido no Brasil é um tema delicado. Até hoje, as análises sobre o assunto se mostraram insatisfatórias, sendo alvo fácil das críticas. As tentativas de dar um único sentido a esse complexo processo acabaram por emprestar ao tema um tom quase maniqueísta. Desse modo, a miscigenação já foi explicada em função do caráter aberto e aventureiro do português, que encontrou no Novo Mundo o palco para dar vazão a esse espírito. Posteriormente, culpou-se o português e, em geral, o europeu por serem responsáveis por um “estupro coletivo”. Por outro lado, as avaliações do resultado desse processo de miscigenação também atingiram os seus extremos. Chegamos a ser condenados por nossa condição de mestiços retrógrados fadados à não evolução. Depois, a absolvição foi gloriosa: a nossa singularidade de mestiços transformar-nos-ia nos seres mais criativos da terra. Portanto, essa questão tem um alcance extremamente abrangente, não apenas pelo que envolve, mas pelo que significou e ainda significa. A miscigenação ou mestiçagem, além de ser uma questão fundamental que perpassa em vários momentos a discussão sobre a história do Brasil, foi responsável por imprimir uma certa imagem do próprio país, marcada pela sensualidade e sexualidade latentes. 1 Para além de avaliações que determinem o seu caráter positivo ou negativo, foi um processo complexo, multifacetado, que envolveu pessoas e marcou seus destinos, tendo implicações na estruturação do tecido social, na economia e na cultura do país. 1 - Alguns clássicos da nossa historiografia assimilaram essa questão de forma pouco crítica, repassando para o século XX os preconceitos forjados no século XVI. Caio Prado Jr. destacou a “mestiçagem profunda” como o caráter mais saliente da formação étnica brasileira. Para esse autor, as “três raças” poderiam ser estudadas e analisadas separadamente, mas deveriam figurar juntas: “juntas e mesclando-se sem limite, em uma orgia de sexualismo desenfreado que faria a população brasileira um dos mais variegados conjuntos étnicos que a humanidade jamais conheceu”. Cf. Formação do Brasil Contemporâneo. São Paulo, Brasiliense, 1996. Essa idéia, que traduz a mestiçagem como uma orgia, aparece em outros autores nessa mesma época, como Paulo Prado e Gilberto Freire.

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5. CORES E NOMES

5.1. Movimento e Ação: Misturas, Miscigenação e Mestiçagem

O processo de miscigenação ou mestiçagem ocorrido no Brasil é um tema

delicado. Até hoje, as análises sobre o assunto se mostraram insatisfatórias, sendo

alvo fácil das críticas. As tentativas de dar um único sentido a esse complexo

processo acabaram por emprestar ao tema um tom quase maniqueísta. Desse

modo, a miscigenação já foi explicada em função do caráter aberto e aventureiro

do português, que encontrou no Novo Mundo o palco para dar vazão a esse

espírito. Posteriormente, culpou-se o português e, em geral, o europeu por serem

responsáveis por um “estupro coletivo”. Por outro lado, as avaliações do resultado

desse processo de miscigenação também atingiram os seus extremos. Chegamos a

ser condenados por nossa condição de mestiços retrógrados fadados à não

evolução. Depois, a absolvição foi gloriosa: a nossa singularidade de mestiços

transformar-nos-ia nos seres mais criativos da terra.

Portanto, essa questão tem um alcance extremamente abrangente, não

apenas pelo que envolve, mas pelo que significou e ainda significa. A

miscigenação ou mestiçagem, além de ser uma questão fundamental que perpassa

em vários momentos a discussão sobre a história do Brasil, foi responsável por

imprimir uma certa imagem do próprio país, marcada pela sensualidade e

sexualidade latentes.1 Para além de avaliações que determinem o seu caráter

positivo ou negativo, foi um processo complexo, multifacetado, que envolveu

pessoas e marcou seus destinos, tendo implicações na estruturação do tecido

social, na economia e na cultura do país.

1 - Alguns clássicos da nossa historiografia assimilaram essa questão de forma pouco crítica, repassando para o século XX os preconceitos forjados no século XVI. Caio Prado Jr. destacou a “mestiçagem profunda” como o caráter mais saliente da formação étnica brasileira. Para esse autor, as “três raças” poderiam ser estudadas e analisadas separadamente, mas deveriam figurar juntas: “juntas e mesclando-se sem limite, em uma orgia de sexualismo desenfreado que faria a população brasileira um dos mais variegados conjuntos étnicos que a humanidade jamais conheceu”. Cf. Formação do Brasil Contemporâneo. São Paulo, Brasiliense, 1996. Essa idéia, que traduz a mestiçagem como uma orgia, aparece em outros autores nessa mesma época, como Paulo Prado e Gilberto Freire.

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O processo de miscigenação iniciado pela “descoberta” do Novo Mundo

tem sido entendido como uma marca característica do movimento de conquista da

América portuguesa no século XVI, promovendo uma ocidentalização de índios e

negros, por parte da Europa Ocidental. A conquista não teria sido só dos

territórios, mas também das almas e dos corpos. A miscigenação não representou

uma especificidade brasileira; ela foi uma constante em quase todos os teatros

coloniais do mundo, estando inscrita em uma fase de expansão da Europa e no

contexto da colonização. Vista sob este prisma, a miscigenação configurar-se-ia

como um produto de ação unilateral, uma ação tipicamente de caráter europeu,

transformando os agentes dessa cena em um ator principal e o outro, em mero

coadjuvante. O resultado desse processo, fruto da conquista, beneficiaria o

conquistador. Esse ponto de vista acabaria por reduzir a questão quase que a uma

alegoria ou a um processo de laboratório, seqüencial e previsível.

Se pensarmos a miscigenação pelo seu aspecto meramente biológico, é

claro que houve um processo forçado por parte do europeu, produzindo uma

relação de extrema violência. Além de violento, foi um processo singular e

desigual, em que predominou a relação pai-europeu/mãe-índia ou negra. Se

pensarmos em termos de trocas culturais, podemos também acreditar que

prevaleceu uma ocidentalização, visível nas principais instituições, na língua, na

escrita, no sistema numérico, entre outros.

É certo que os portugueses, talvez mais que os espanhóis, recorreram à

prática da miscigenação como uma forma auxiliar no processo de conquista das

novas terras, como um movimento de aceleração do povoamento de seu imenso

território. A miscigenação - já disseram - teria permitido uma adaptação à vida

nos trópicos, de um modo geral, ou a própria sobrevivência do português em um

ambiente hostil. Inúmeros foram os fatores que possibilitaram um contato mais

estreito, não como um ato de conquista, mas uma relação de dependência por

parte do português: a alimentação, a mobilidade e o desembaraço na locomoção

pelos caminhos mais difíceis guiados pelos índios, que ensinaram como era a vida

nos trópicos. Os casamentos entre portugueses e índias significaram, ainda,

alianças militares entre europeus e índios, que através dessa política puderam

garantir a defesa do território. Mas a miscigenação não ficou restrita ao par índios

e portugueses.

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Antes de tudo, é preciso deixar claro que não se pretende produzir uma

interpretação sobre esse processo. O que se propõe é repensar essa questão e seus

diferentes aspectos, procurando situá-la como um amplo processo que repercute

em termos da própria estrutura e da própria imagem do país. E as imagens

surgidas desse processo não foram criadas a posteriori, mas ao longo de sua

evolução. As preocupações das autoridades coloniais com os agentes sociais

envolvidos nesse processo demonstram as contradições da dinâmica colonial. Para

os colonizadores, as relações sociais desorganizaram-se na colônia;

amancebamentos, concubinatos e mestiços configurariam elementos fora da

ordem legal do reino.

Logo, se houve incentivo ao referido processo, houve também críticas.

Comecemos pelo lado mais simples e básico dessa discussão. A origem das

palavras fornece sempre um solo, um ponto de partida para a compreensão de

qualquer assunto. Normalmente, utiliza-se indiscriminadamente os termos

mestiçagem e miscigenação para se referir à mistura de povos e de culturas.

Porém, ao recuperarmos a etimologia dessas palavras - que comportam

significados sinônimos, ambas significando a mistura de raças ou espécies e

provenientes do mesmo radical misc(i)2 -, encontramos suas origens datadas no

século XIX e XX. Segundo o Dicionário Houaiss, mestiçagem remonta ao ano de

1899 e miscigenação a 1927; na língua inglesa, a palavra miscegenation aparece

datada de 1864. Portanto, são duas palavras cunhadas posteriormente ao processo

que estamos acompanhando no Brasil. Além disso, de acordo com as suas

datações, essas palavras provavelmente estão correlacionadas às teorias raciais do

século XIX, o que sobrecarrega o seu significado.

Para nos aproximarmos mais do nosso período e do nosso objeto, convém,

portanto, verificar os termos em circulação naquele momento. Isto é, as palavras

mistura e mestiço, que originam suas congêneres mestiçagem e miscigenação. A

palavra mestiço está datada do século XIV, referindo-se a uma pessoa ou um

animal proveniente de cruzamento de raças ou espécies diferentes. Misturar e

mistura, por princípio, significam juntar coisas ou pessoas diferentes, juntar

desordenadamente, tornar heterogêneo, confundir, perturbar. O antepositivo

2 - Miscigenação - do latim miscere (misturar + gen + ação) = cruzamento racial, mestiçamento, mestiçagem; Mestiçagem = cruzamento de espécies diferentes, miscigenação, conjunto de mestiços. Cf. Dicionário Aurélio.

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misc(i) é a fonte para palavras com misc, mist, mex, mescl, mest, mix, misturar,

mesclar, miscelânea etc. Misc é ainda o elemento que compõe palavras como

promíscuo - constituído de elementos heterogêneos juntados desordenadamente;

misturado com elementos de conduta reprovável ou suspeita - e promiscuidade -

mistura confusa e desordenada, também associado a um relacionamento social não

monogâmico.

Enfim, o que temos a partir da etimologia de mistura, mestiço e suas

derivações - mestiçagem e miscigenação - são significados pouco precisos, porém

que assumem conotações pejorativas. O peso dessas palavras, de seus significados

primeiros, traduz bem o preconceito interno que carregam. Serge Gruzinski

alertou que, por ser percebida como uma passagem do homogêneo ao

heterogêneo, do singular ao plural, da ordem à desordem, a idéia de mistura

carrega conotações e a priori, merecendo, portanto, ser tratada com desconfiança.

As ressonâncias desta idéia atingem igualmente a noção de mestiçagem. 3

Ao comparar o processo de miscigenação e seus desdobramentos ocorridos

no Brasil e em Angola, Luiz Felipe de Alencastro encontrou diferenças

significativas, que nos ajudam a definir melhor essa questão dos significados de

miscigenação e mestiçagem. Embora a presença portuguesa em Angola tenha

deixado marcas indeléveis, a miscigenação representou um processo circunscrito a

um contexto específico, o qual teria se diluído, sem se desdobrar em mestiçagem.

Os filhos mestiços de brancos e negros em Angola tinham, na maioria das vezes,

um destino certo; não precisaram inventar um próprio caminho em meio a duas

culturas. Em geral, as mães criavam seus filhos em seus povoados nativos, nos

quais eram integrados e criados na cultura materna, interrompendo assim a

dinâmica da mestiçagem. Ou ainda, nas palavras do autor, núcleos etnogênicos

“absorviam os mulatos transformando-os em negros”.4

No Brasil, ao contrário, esse processo encontrou, no contexto econômico e

social da colônia, possibilidades de desdobramentos e continuidade. Isto é, houve

um processo específico que transformou a miscigenação - resultado demográfico

de uma relação de dominação e exploração - na mestiçagem, processo social

3 - GRUZINSKI, Serge. “Incertitudes et ambigüités du langage”. In: La Pensée Métisse. Paris, Fayard, 1999. p. 36-37. 4 - “A invenção do mulato”. In: O Trato dos Viventes. Formação do Brasil no Atlântico Sul. São Paulo, Cia da Letras, 2000. p. 351.

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complexo, “estratificando uma camada de mulatos”. Contudo, Alencastro alertou

sobre a direção tomada por esse movimento: “o fato deste processo ter se

estratificado e, eventualmente, ter se ideologizado, e até sensualizado, não se

resolve na ocultação de sua violência intrínseca, parte consubstancial da sociedade

brasileira”.5

Alencastro, por conseguinte, relaciona a miscigenação ao intercurso sexual

entre pessoas de etnias distintas e mestiçagem a um processo ativo de

desdobramentos que se refletiria nos contextos social e cultural. Essa distinção

imprime um movimento essencial a essa questão. Sem anular os efeitos, o

processo recobra o seu sentido, que tende a transformações de acordo com

determinado contexto. De certa forma, as próprias interpretações feitas sobre esse

processo, não deixam de fazer parte de seu sentido, que não é outro além de uma

sociedade em movimento, em transformação.

Em Caminhos e Fronteiras, Sérgio Buarque de Holanda forneceu uma

belíssima análise da vida material das terras e das gentes do planalto paulista a

partir do entrelaçamento das culturas de índios e portugueses. Índios e mamelucos

ensinaram todo um “alfabeto rústico”, que foi sendo transmitido ao resto da

população da colônia. O tema central destacado pelo autor - a diluição e a

recuperação do legado europeu - ganha sentido com as vivências cotidianas e

cadência com o tempo da Colônia. Para desenvolver esse tema, o autor valeu-se

de dois aspectos, anunciados no próprio título do livro: caminhos e fronteiras. O

caminho “convida ao movimento, apontando para a mobilidade característica das

populações do planalto paulista em contraste com a tradição da colonização

portuguesa fixa presa e imobilizada na costa”.6

A idéia de mobilidade conduz ao segundo aspecto privilegiado pelo autor,

isto é, condiciona a situação implicada na fronteira. Esse aspecto nos interessa

particularmente, pois permite pensarmos a questão da mestiçagem por um outro

ângulo. Buarque de Holanda procura deixar claro que este conceito será utilizado

de forma abrangente, ou seja, a fronteira entre “paisagens, hábitos, instituições,

técnicas, até idiomas heterogêneos que se defrontam, ora a esbater-se para deixar

lugar à formação de produtos mistos ou simbólicos, ora a afirmar-se, ao menos

5 - Idem. p. 353. 6 - Caminhos e Fronteiras. São Paulo, Cia das Letras, 1994. p. 12.

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enquanto não superasse a vitória final dos elementos que tivessem revelado mais

ativos, mais robustos ou melhor equipados”.7 A idéia de fronteira abriu uma

perspectiva interessante, permitindo pensar a colônia como um espaço

intermediário entre culturas em processo de transformação, de onde surgiriam

novas formas de pensar e agir. A cultura mestiça seria o resultado de uma síntese

entre civilidade e barbárie, e outros aspectos aparentemente contraditórios teriam

sido reunidos dando origem a um produto híbrido.

Seria possível estender essa idéia de fronteira ao próprio mestiço, isto é,

pensá-lo como um ser fronteiriço, mediador de culturas. Mas pode ser um risco.

Cabe lembrar que não estamos falando de um mestiço, mas sim de vários

mestiços, dos primeiros mestiços da terra, que viveram em um mundo de

fronteiras porosas, passando por um processo de corrosão de identidades. Pessoas

divididas entre culturas não apenas distintas como também opostas. De qualquer

forma, por meio desses mestiços, podemos observar como o movimento entre

culturas vai se realizando através de negociações e conflitos, aceitação e rejeição,

adaptações e confusões, enfim desenhando uma trajetória singular.8

Este capítulo se propõe a verificar como esses mestiços vão surgindo,

inventando seu próprio espaço nessa sociedade que se organiza, e vão sendo

desenhados pelo olhar da época. Ponto de encontro de mundos distintos,

interseção, o mestiço acaba por criar um mundo próprio ou, ainda, alterar a

estrutura social dos próprios conquistadores.

Falar de mestiços no Brasil é falar de uma gama variada de cores e nomes

nem sempre tão precisos, que muitas vezes guardam suas especificidades

regionais e temporais. A nomenclatura alusiva à miscigenação das gentes é feita

de nuances, por vezes nada sutis, podendo até ser bem grosseira. Para além dos

mestiços mais conhecidos - mameluco ou mamaluco, também chamado de

caboclo (índio e branco), e do mulato (negro e branco) -, foram registrados vários

termos referentes aos filhos de pais com origens diferentes. Para citar os mais

conhecidos: o cariboca ou curiboca (muitas vezes se refere ao próprio índio) pode

ser sinônimo de cafuzo (negro e índio); o cabra (negro e mulato ou simplesmente

só o mulato), depois cabrocha. O termo pardo podia designar qualquer mestiço,

7 - Idem, ibidem. 8 - Convém lembrar que não estamos entendendo esses mestiços (no plural) como uma síntese das duas culturas.

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independente de sua origem ou cor, e abranger pessoas ditas de “sangue impuro”,

isto é, mouros, judeus e cristãos-novos. Muitos termos caíram em desuso por não

pegarem ou por serem específicos de uma determinada região, tais como: fulas,

pardavascos, carijós, entre outros.

Falar de mestiços não é só falar de indefinição étnica; é falar, sobretudo,

de indefinição social no contexto interno da colônia. A onipresença do sistema

escravista na estrutura colonial fez perdurar por muito tempo a imagem de uma

sociedade percebida apenas pelos seus extremos, ou seja, polarizada entre

senhores e escravos. A nitidez das funções de cada uma dessas categorias acabava

por ofuscar o resto da sociedade, que por sua vez se caracterizava por uma

indefinição de seus papéis ou de suas funções sociais.

Caio Prado Jr.9 criticou essa imagem superficial de uma sociedade dividida

em duas camadas, chamando a atenção para o crescimento contínuo e ininterrupto

de uma camada intermediária, que não se encaixava nas classificações

hierárquicas vigentes do Estado português. A estes “desclassificados” restaria um

espaço muito reduzido nas engrenagens do sistema escravista. Inicialmente

indefinida, mas não insignificante, essa terceira categoria ou essa subcategoria

abrangia uma larga parcela da população, composta “por indivíduos de ocupações

mais ou menos incertas e aleatórias ou sem ocupação alguma”, homens livres e

pobres que viviam à margem deste sistema, à margem da ordem estamental.

Embora essa população livre contasse com toda a sorte de pessoas - índios,

brancos e negros -, verificava-se uma predominância mestiça. Não foi difícil aos

observadores perceberem essa parcela da população, literalmente fora da ordem

estamental, como vadios, inúteis, preguiçosos, desordeiros, elementos perigosos e

potenciais criminosos.

A análise de Caio Prado Jr. possibilitou uma enorme abertura para o

entendimento da estrutura social no Brasil, incentivando uma série de novos

estudos. Quarenta anos depois da publicação de Formação do Brasil

Contemporâneo, Laura Mello e Souza empreendeu sua análise da sociedade

mineira do século XVIII sob a ótica dessa subcategoria cunhada por Prado Jr.,

apresentando os Desclassificados do Ouro. Mello e Souza demonstrou como a

estrutura econômica da colônia favoreceu a proliferação de desclassificados. Se a

9 - Formação do Brasil Contemporâneo. São Paulo, Brasiliense, 1996.

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lógica inicial da colonização já dificultava a inserção daquela camada livre e

pobre da população na economia colonial, o que dizer das alternativas de vida em

uma economia tão conturbada como aquela criada em torno das minas?

Mello e Souza fez uma análise cuidadosa da documentação

contemporânea, expondo uma sociedade estabelecida sob o signo da pobreza e da

conturbação social, em função do enorme afluxo de gente atraída pela febre do

ouro. A concentração populacional nas Minas Gerais criou um espaço privilegiado

dos desclassificados sociais. Ao contrário do que esperavam da mineração, as

pessoas que migraram para aquela região encontraram poucas oportunidades de

trabalho em um sistema de exploração restritivo, devido ao enorme peso do

fiscalismo e de uma política normalizadora, que procurou enquadrar os

desclassificados, naquela altura, responsáveis e responsabilizados pelas desordens,

confusões e turbulências sociais.

A palavra mistura implicava, em suas origens, uma idéia de desordem e

confusão, mas foi na colônia que ela parece ter encontrado palco para a sua

materialização. Assim, ao longo dos três séculos de domínio colonial, as relações

entre mestiços e Estado serão apresentadas como um contínuo e complicado

problema. Stuart Schwartz, analisando a documentação do Tribunal da Relação,

notou que os índios juntamente com os mulatos e negros, eram “considerados

como desordeiros e causadores de problemas donde necessitavam atenção

especial”.10

Portanto, é preciso procurar entender esse processo de mestiçagem não

como um simples ato de mistura de elementos, que tem como resultado um

produto acabado - o que se reduziria a uma ação semelhante à de um laboratório,

onde se experimentam combinações de matérias estáticas. Trata-se de um

processo que implicou em uma ação continuada, que não se esgotou na mistura

dos seres, mas que encontrou um prolongamento no seu resultado: um elemento

vivo e, logo, propenso a variações. Ao ampliarmos o seu campo de ação, não

podemos pretender um entendimento desse processo em sua totalidade, nem o

restringir ao movimento da conquista das Américas, uma vez que o seu resultado

é um ser atuante no tempo e no espaço. Resultado que foge muitas vezes do

controle da dominação. Podemos falar que é imprevisível, porque como esse

10 - Burocracia e Sociedade no Brasil Colonial. p.197.

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produto encontra um mundo dividido em lugares previamente estabelecidos, e ele

não se encaixa em nenhum dos dois, a sua reação vai oscilar ora em direção a um,

ora a outro e, por vezes, a nenhum desses.

5.2. Os Primeiros Mestiços: Europeus Selvagens

Capistrano de Abreu assim resumiu os primórdios da colonização

portuguesa: “Pau-brasil, papagaios, escravos, mestiços condensam a obra das

primeiras décadas”.11 Não há duvida de que se tratava dos mamelucos os

mestiços a quem o nosso historiador se referia. A lista que conformava a “obra”

dos primeiros tempos da colonização, pode-se dizer, conteria os “objetos” do

mundo português ou, pelo menos, de seu interesse. Os mestiços estariam sob o

controle dos portugueses, tal como os escravos.

Muito já se escreveu sobre o papel do mestiço de índio e branco na

adaptação da vida do português nos trópicos. Além de ensinar os segredos da terra

e de seus familiares - o que comer, por onde andar, como se tratar e curar com as

plantas nativas e servir também como escravo -, esse mestiço engrossou a

população da colônia, ajudando na defesa do território. Assim, o português teria

estabelecido desde cedo íntimas e estudadas ligações, dando origem ao futuro

caldeirão de cores e de culturas que se tornaria o Brasil. Posteriormente, seriam

reconhecidas a contribuição do negro na formação étnica e a sua colaboração em

termos culturais. O predomínio de instituições à moda européia deixa transparecer

que, nesta mistura, no fundo, a base é branca. Não deixa de ser, com certeza. Mas

o problema não é ser. O problema é pensar que esta base aceitou e quase que

escolheu as contribuições; como se fosse possível fazer uma seleção de elementos

interessantes que resultaram na dada mistura.

Deste modo, costuma-se pensar essa mistura e suas contribuições de uma

maneira delicada, correndo o risco de reduções, tais como aquele exemplo sempre

utilizado que determina que o negro trouxe, com sua música, “uma nota alegre”. É

claro e inegável que a qualidade da música negra é especial e excepcional. Mas a

sua participação na nossa formação é infinitamente maior do que na música. E,

principalmente, o seu talento não está restrito à área musical. Um outro exemplo

freqüentemente citado é o lado taciturno dos índios. Pode até ser. Mas uma

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simples olhada pela documentação contemporânea revela um índio alegre,

fazendo festas o tempo todo (o que, aliás, é apontado como um defeito) e

adorando música.12

Esse tipo de raciocínio faz parecer impossível que um europeu possa

incorporar uma outra cultura de forma quase que integral, uma vez que a dele é

mais elaborada ou tecnicamente superior. Quando muito, aceitam-se as

contribuições ligadas à vida material ou à área musical.

No entanto, se falar em mestiçagem ou mestiços é falar de misturas, a

primeira combinação realizada nestes termos é a que diz respeito à cultura.

Ninguém desconhece a história dos primeiros povoadores, pelo menos os mais

famosos, que se estabeleceram na terra antes de qualquer iniciativa oficial da

Coroa portuguesa. Esses primeiros habitantes europeus, seja lá quem for, aqueles

deixados por Cabral, algum náufrago13 ou qualquer outro, precisaram fazer

contatos que iam além dos meramente físicos para sobreviver. Sem conhecer

código algum desta terra ignota, foi preciso, no mínimo, um certo esforço para ser

aceito pelos brasis14. Enfim, o convívio diário forçava uma adaptação a um modo

de vida completamente distinto, o que significava a adoção dos costumes da terra

e, porque não dizer, até mesmo uma indianização.

Essa perspectiva nos permite pensar esses portugueses ou algum outro

europeu como os primeiros mestiços do Brasil, frutos de um mestiçamento

cultural. Há uma rendição nessa história: antes de uma suposta europeização,

brancos sucumbiram aos selvagens do Novo Mundo justamente por um aspecto

bem caro, pela cultura. Essa questão poderia se restringir ao seu caráter

excepcional, por representar uma situação inevitável: sucumbia ou morria.

Contudo, essa questão não se esgota nesses primeiros circunstanciais habitantes.

Os inúmeros exemplos de europeus vivendo à moda indígena - posteriores à

introdução do Governo-Geral, à fundação de vilas - configuraram um processo

11 - Op. Cit. p. 32. 12 - Os jesuítas souberam perceber esse fascínio pela música para tirar proveito em suas catequeses. 13 - Há registros de náufragos de várias nacionalidades que passaram a viver entre os índios. 14 - A história do disparo acidental da arma de Caramuru e sua imediata aceitação pela comunidade indígena é tão interessante quanto tendenciosa. Sempre o branco dominando os selvagens incultos e ignorantes. De qualquer forma, ele sabia que em alguma hora sua munição acabaria e seria preciso estabelecer uma relação social para além da intimidação. Em resumo, foi

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radical de mestiçamento, muito pouco explorado pela historiografia. Na maioria

dos casos, houve uma aculturação voluntária, não forçada.

Como essa relação foi observada e entendida pela documentação

coetânea? Se a vida dos indígenas já conformava um sério problema para os

padres, o que dizer dos portugueses que se adaptavam a esses costumes? Mas a

percepção e a aceitação desses fatos e dessas relações naquela época não é feita de

modo natural. Nos relatos e cartas jesuítas, várias passagens traduzem o espanto

dos observadores, principalmente dos padres, quanto ao encontro de mestiços e do

modo de vida adotado por aqueles filhos de cristãos. Nóbrega demonstrou sua

admiração comentando que “o sertão está cheio de filhos de Cristãos, grandes e

pequenos, machos e fêmeas, com viverem e se criarem nos costumes do

Gentio”.15

A admiração não era apenas com a existência de mestiços, mas sim com a

adaptação inesperada dos cristãos. Passagens como essas do padre Manuel da

Nóbrega são recorrentes nas cartas e relatos quinhentistas. Os pais cristãos por

vezes deixavam literalmente seus filhos abandonados para viverem na cultura

indígena. E quando os próprios pais adotavam os mesmos costumes?

A constatação inicial, já comentada, é de que quase todos os moradores da

Colônia viviam em pecado, seja por amancebamentos, o que por si já era adotar os

costumes da terra, seja por qualquer outro motivo. As primeiras notícias de

cristãos vivendo entre os índios não conformam inicialmente uma idéia bem

acabada da situação. O padre Leonardo Nunes, em carta de 1550, dizia ter notícias

de gente cristã vivendo entre os índios, gente que passa o ano sem ouvir missa e

sem se confessar, levando uma vida selvagem. O jesuíta foi até o local e tentou

convencê-los a voltar às vilas, para que vivessem entre os outros cristãos. No

entanto, a solução encontrada foi mandar que eles se reunissem, fizessem uma

ermida e buscassem um padre que lhes desse missa e confissão. Nunes prossegue

relatando que, em uma outra localidade distante algumas léguas desta primeira,

encontrou outros homens brancos vivendo entre os índios, sobre os quais dizia ter

conseguido que retornassem ao convívio com os cristãos.

preciso conviver diariamente com os índios e seus costumes, em uma vida normal da aldeia, sem qualquer outra alternativa. 15 - NÓBREGA, Manoel da. Op. Cit. p.124.

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O mesmo jesuíta Leonardo Nunes registrou, em carta posterior, datada de

1551, enviada de São Vicente, um relato de uma outra ocorrência sobre cristãos

entre índios, sendo que, desta vez, os fatos apareciam de forma mais dramática:

“Este mês de Maio passado, fui entre os Índios a buscar um homem branco que andava entre eles e duas filhas que tinha nascidas lá: a maior será de oito anos, ambas estavam por batizar e a mãe; as filhas batizei, a mãe ainda não, porque a faço ensinar e tenho agora aqui pai, mãe e filhas. A ele não tenho confessado, porque de todo tinha já estragado o juízo, em tanto que as primeiras práticas que lhe fazia, tenho para mim que as não entendia e ainda agora pouco entende. Assim que é necessário criá-lo outra vez nas cousas da Fé como fazemos, até que Nosso senhor lhe abra o entendimento e lhe dê notícia de seu erro, porque não somente consente que os Irmãos lhe falem de Nosso Senhor, e não entra na igreja senão por força, nem podíamos acabar com ele que se pusesse de joelhos diante do Santíssimo Sacramento. Isto escrevo, Irmãos, para que vejais a mudança que pode fazer um ânimo em esta terra e há necessidade que há de trabalhadores.”16

A passagem acima suscita diversas interpretações. Se tal sujeito perdeu ou

não realmente o seu juízo, não temos como saber. De qualquer forma, essa

história não era um caso isolado. Histórias semelhantes a essa aparecem em

relatos e notícias com uma freqüência regular. É provável que o sujeito fosse

apenas mais um dos que escolheram viver à moda dos índios ou, na falta de outra

opção, tenha sido essa a única alternativa de sobrevivência.

O que essa história tem de incomum em comparação com as de mesmo

enredo é o fato de esse sujeito se deixar resgatar pelo jesuíta. Não queremos dizer

que fosse uma história única. Esse mesmo padre relatou que estava cuidando de

outro português que se encontrava nas mesmas condições que o primeiro, mas

naquele momento estava “melhor da alma”. O padre Leonardo ressaltou que

narrava essa história de modo a ilustrar as mudanças que a terra podia fazer, isto é,

produzir alterações na própria estrutura mental de cristãos civilizados. A terra, em

si, propiciava desordens tanto coletivas quanto individuais, a ponto de alterar o

estado físico e psíquico de seus colonos.

Outro jesuíta, Pero Correia, parece referir-se à mesma história ao relatar

que foi, acompanhando o padre Leonardo Nunes e outros seis Irmãos, procurar

um cristão que durante uns oito ou nove anos estava vivendo entre os índios e “se

fizera índio”. A idéia da metamorfose de um cristão em um bárbaro ou selvagem

não era apenas espantosa, mas bastante perturbadora e quase inadmissível. O

16 - Cartas Jesuíticas 2 / Cartas Avulsas. Azpilcueta Navarro e Outros. p. 93. (Grifo nosso).

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repúdio a esse modo de vida era capaz de movimentar um grupo de jesuítas a

caminharem por quinze dias, passando fome e outras dificuldades. Sem contar que

a maior parte da viagem era feita por um rio e, uma vez que não cabiam todos na

barca, parte do grupo seguiu “a pé, parte nadando e outros embarcados”.17

Seria possível que a idéia de um cristão transformado em índio, por mais

horror que causasse, valesse o movimento empreendido, em uma terra onde

viviam declarando que não faltavam pecados cometidos? Talvez. Contudo, esse

movimento que mobilizava um grupo de jesuítas a entrar mato adentro para um

improvável resgate de apenas um cristão permite várias interpretações. É claro

que não esquecemos que a missão poderia ser elaborada tendo também por

objetivo a catequese de algumas tribos pelo caminho. Porém, essa mesma missão

já nascia com um princípio, com o objetivo de resgatar algum cristão perdido

como está registrado nas cartas.

O resgate dessa alma perdida poderia encobrir algum medo dos jesuítas

ou, até mesmo, camuflar alguma outra estratégia. A tão propalada falta de ordem,

que carecia de um rei que comandasse e centralizasse o poder entre os índios,

poderia ser um dos seus medos. Deixar um indivíduo que conhecia os poderes de

um rei entre uma tribo de índios, convivendo em harmonia com seus costumes,

poderia representar um risco. Quem garantiria que este mesmo português,

metamorfoseado em índio, não assumisse uma liderança perigosa? A partir da

notícia de algum cristão perdido, os jesuítas organizavam-se para não permitir que

sua ovelha desgarrada pudesse partilhar da vivência daqueles costumes.

É conhecida a resistência de Nóbrega ao saber da vida que João Ramalho

levava em São Vicente:

“Nesta terra está um João Ramalho, o mais antigo dela, e toda sua vida e dos filhos é conforme a dos índios e uma petra sacandali para nós, porque sua vida é um principal estorvo para nós, para com a gentilidade que temos, por ele ser muito conhecido e muito aparentado com os índios. (...) Tem muitas mulheres. Ele e seus filhos andam com irmãs e têm filhos delas, tanto o pai como os filhos”.18

Gostando ou não do estilo de vida de Ramalho, Nóbrega mudou sua

postura em relação ao mesmo, ao perceber que era preferível uma aliança com o

ilustre representante dos índios do que um embate direto com um principal da

17 - Idem. p. 120. 18 - Op. Cit.

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terra. Especialmente porque, logo que aqui chegaram, os jesuítas pouco sabiam

dos costumes, das línguas dos indígenas, e estes serviriam de pontes entre as duas

culturas. Por essa razão, o jesuíta já havia tratado com Diogo Alvares, o

Caramuru, recorrendo aos seus conhecimentos da terra.

A possibilidade de os jesuítas ocuparem-se em resgatar cristãos perdidos

em meio aos pagãos impulsionados por medo de algum levante ou de uma

tentativa de estabelecimento de uma autoridade paralela não eliminava o mero

sentimento de repúdio que tal ato podia encontrar entre os religiosos. Para uma

vivência calcada em juízos de valor, a idéia de um cristão indianizado causava até

mesmo mais horror que as próprias práticas gentílicas dos nativos. Esse trabalho

de reconversão de cristãos perdidos acabava por valorizar ainda mais a proposta

inicial missionária da Companhia. Esse repúdio e horror ao europeu indianizado

não ficou restrito aos momentos iniciais do trabalho missionário no Brasil

quinhentista.

Ao ultrapassar as fronteiras da ordem, em sua direção contrária, esses

homens criavam espaços ilimitados e inesperados que fugiam dos parâmetros

definidos como civilidade. O mundo dividido entre a civilidade e a gentilidade

perdia o seu sentido, eram desfeitas as fronteiras com a transposição voluntária de

cristãos que resolviam adotar os costumes da terra. O horror não se definia pelas

relações amorosas empreendidas por esses cristãos. O que parecia

incompreensível era a escolha por um mundo diferente.

A própria notícia de um filho de cristão, porém mestiço, vivendo entre os

selvagens costumes também causa uma certa comoção junto aos jesuítas. A opção

pela selvajaria ou pela barbárie aparecia como algo fora da ordem natural das

coisas, como uma doença. Além disso, cristão adotando costumes gentílicos era

um péssimo exemplo e um desserviço ao trabalho de catequese. Em uma de suas

carta, Nóbrega contava horrorizado sobre os moradores de São Vicente:

“(...) sempre dão carne humana a comer não somente a outros índios, mas a seus próprios escravos. Louvam e aprovam ao gentio de comerem-se uns aos outros, e já se achou cristão a mastigar carne humana, para darem com isso bom exemplo ao gentio”.19

Para desespero dos jesuítas, muitas vezes o processo se invertia. Europeus

aprendiam e adotavam os costumes da terra, uma catequese às avessas. Mas não

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eram só os jesuítas que se espantavam com essa inversão, nem foram só os

portugueses os que se indianizaram. Jean de Léry, ao descrever os rituais

indígenas em torno dos prisioneiros de guerra até a realização de seus banquetes

de carne humana, contava que “esses bárbaros não só se deleitam no extermínio

de seus inimigos, mas ainda exultam vendo os seus aliados europeus fazerem o

mesmo”. O autor de Viagem à Terra do Brasil acreditava que os índios

tupinambás convidavam os franceses para compartilhar dos seus banquetes como

uma forma de testá-los: “duvidavam de nossa lealdade se o recusávamos”. Léry

faz questão de afirmar que sempre rejeitou os convites, “graças a Deus”, e jamais

esqueceu a sua crença. Contudo, faz uma ressalva: essa não era a regra geral entre

os franceses, o que lastimava profundamente, como podemos observar nessa

passagem:

“Com pesar sou, porém, forçado a reconhecer aqui que alguns intérpretes normandos, residentes há vários anos no país, tanto se adaptaram aos costumes bestiais dos selvagens que, vivendo como ateus, não só se poluíam em toda espécie de impudicícias com as mulheres selvagens mas ainda excediam os nativos em desumanidade, vangloriando-se mesmo de haver morto e comido prisioneiros. E conheci um rapazote de treze anos que já copulava com mulheres”.20

Protestantes e católicos apresentavam, portanto, o mesmo repúdio ante a

opção de alguns europeus por adotarem os costumes dos gentios, regressando a

uma vida pagã.

Em 1591, a Primeira Visitação do Santo Ofício às terras do Brasil

encontrou problemas bem diferentes dos casos comuns ao Tribunal, tais como o

judaísmo secreto de cristãos-novos e a heresia luterana. Uma das confissões

arroladas de um dos autos pertence a um francês chamado Simão Luís, que

admitiu ter saído de sua terra em um navio de luteranos. Filho de mãe católica e

pai luterano, o francês declarou ter fugido da doutrina materna, preferindo seguir

os ensinamentos paternos. Ao desembarcar nas novas terras, dirigiu-se à região do

rio S. Francisco em busca de pau-brasil, onde novamente fugiu e se internou “com

os negros gentios deste Brasil”. Durante dois anos, esteve no sertão com os ditos

gentios. Simão não chegou a contar detalhes de sua vida de índio, limitando-se

19 - Cartas do Brasil. Op. Cit. p.96. 20 - Op. Cit. p. 201.

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apenas a informar que usou de “todas as gentilidades”,21 o que subentende

participar de seus ritos e cerimônias, inclusive antropofágicos. Depois de

experimentar a vida selvagem, fugiu mais uma vez, vindo a ter com os padres da

Companhia de Jesus em seu Colégio em Vila Velha, onde o doutrinaram.

Entretanto, confessava não se sentir à vontade na religião católica para rezar aos

santos e santas, nem honrá-los, nem lhes rogar nada.

A história de Simão Luís não representou um caso isolado. Como ele,

muitos ultrapassaram as fronteiras da civilidade, optando por uma vida em tudo

diferente. Alguns retornaram aos seus antigos costumes, outros não. O mundo já

era diferente e as certezas não mais existiam. Nesse sentido, o caso de Simão tem

muito a nos oferecer. Simão já havia nascido mestiço na sua terra, um mestiço

cultural, dividido entre as duas religiões de seus pais. Escolheu ser protestante,

depois gentio, para ainda adotar um catolicismo sem muita convicção. Simão não

sabia bem ao certo em que acreditar ou que caminho optar. Mas, no Novo Mundo,

descobriu que podia experimentar22, mesmo vivendo em um mundo onde, por

princípio, os espaços deveriam ser estritamente definidos.

O processo que misturou diferentes culturas, hoje denominado

mestiçagem, incomodava primeiramente pelo seu aspecto de transposição de

fronteiras, por uma certa rejeição ao próprio modelo estabelecido. Rejeitava-se

uma origem e, de certa forma, chegava-se a despreza-la. Houve uma simplificação

das causas que podiam levar a essa atitude: a cobiça e, principalmente, a luxúria.

As relações ilegais, pecaminosas, eram o modo mais fácil de explicar tal

comportamento. Assim, o mestiçamento de europeus tornava-se sinônimo de

devassidão, indisciplina e do viver desregrado; tornava-se uma desordem moral e

social.

5.3. Mamelucos

A colonização portuguesa foi um projeto exclusivamente masculino.

Raríssimos colonos trouxeram mulheres e filhos. Desta forma, praticamente em

quase todas as relações mistas, prevaleceu o par homem branco e mulher índia e,

21 - VAINFAS, Ronaldo (Org.). Confissões da Bahia. São Paulo, Cia das Letras, 1997. p. 304-305.

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posteriormente, homem branco e mulher negra. Em sua História da Família no

Brasil Colonial, Maria Beatriz Nizza da Silva23, ao tratar do desequilíbrio

demográfico e da miscigenação no século XVI, recuperou a memória dos poucos

portugueses que cá aportaram com suas esposas, procurando mapear o reduzido

contingente de mulheres brancas que circulavam pela terra. De acordo com os

registros de época, solteiros ou casados desacompanhados de suas mulheres, os

portugueses não tiveram problemas de solidão nos trópicos. Logo estavam

vivendo com as índias, formando novas famílias e um contingente significativo de

mamelucos.

A importância dos mamelucos para o povoamento do Brasil, bem como

para o avanço da colonização portuguesa, é fato incontestável. A sua participação

nas bandeiras portuguesas foi essencial para a expansão das fronteiras, alargando

os limites da linha de Tordesilhas.

Mas é possível caracterizar esse mestiço? Normalmente, a imagem do

mameluco é vista a partir de dois movimentos: ora esquadrinhando os sertões em

busca de metais e gemas e caçando índios ao lado de homens brancos, ora se

associando aos índios, voltando aos seus selvagens costumes. É bom esclarecer

que não se pretende fornecer um retrato do mameluco. O que interessa é analisar o

retrato das fontes contemporâneas, isto é, repensá-lo sem as normais implicações

que o calor da hora e dos fatos emprestavam à sua imagem.

A origem da palavra mameluco, muitas vezes grafada mamaluco, foi fruto

de discussões. Chegou-se a pensar que o termo seria derivado do tupi maloca.

Contudo, sua etimologia foi definida a partir do árabe mamluk: inicialmente,

escravos e depois membros de uma milícia turco-egípcia, que conquistou grande

poder no Egito, formada por escravos caucasianos convertidos ao islamismo.24 A

palavra teria sido adotada em Portugal do medievo para designar os mestiços de

portugueses e mouros. No século XVI, mameluco designava os filhos nascidos

das uniões entre brancos e índios. Ronaldo Vainfas, em seu Dicionário do Brasil

22 - A Simão foi mandado que continuasse freqüentando o Colégio de Jesus, uma hora pelas manhãs, para se instruir nas coisas da fé cristã, e fizesse, ao final, uma confissão geral de sua vida. 23 - Cf. “A família nos dois primeiros séculos de colonização”. In: História da Família no Brasil Colonial. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1998. 24 - Essa milícia ocupou o sultanato entre os séculos XII e XVI, sendo derrotada por Napoleão em 1798; foi exterminada e dispersa em1811 por Mehemet-Ali. Cf. Dicionário Houaiss e Novo Dicionário Aurélio.

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Colonial, sugere que o termo teria sido adotado para os mestiços luso-indígenas

por conta da analogia estabelecida com o “aguerrimento e ferocidade” dos

mamelucos turco-egípicios, lembrando o costumeiro e significativo emprego da

palavra pelos jesuítas.

Assim, é costume associar o mameluco ao filho do português com índio,

nascido desde os primeiros contatos. Mas a criação de filhos mestiços de brancos

e índios não foi exclusividade dos portugueses. Como acabamos de ver, as visitas

e permanências de outros europeus na colônia portuguesa criaram oportunidades

para que se estreitassem laços, além das alianças comerciais.

Na sua Viagem à Terra do Brasil, Jean de Léry fez referência a alguns

normandos que já estavam na terra muito antes da chegada de Villegagnon, os

quais teriam sobrevivido a um naufrágio e haviam ficado entre os selvagens,

“vivendo amasiados sem temor a Deus, alguns com filhos já de quatro a cinco

anos de idade”.25 As normas francesas seguiam os mesmos princípios que as

portuguesas, pelo menos na teoria. Segundo Léry, o Almirante Villegagnon

proibiu que os cristãos se juntassem às mulheres dos selvagens - sob a pena de

morte. As uniões só seriam permitidas se as mulheres fossem “instruídas na

religião e batizadas”.

Em seu Tratado Descritivo do Brasil em 1587, Gabriel Soares de Souza

chamou a atenção para a existência de muitos mamelucos descendentes de

franceses vivendo entre os tupinambás. O autor desculpou-se por tratar de tal

assunto, explicando sua razão: “Ainda que pareça fora de propósito o que se

contém neste capítulo, pareceu decente escrever aqui o que nele se contém para

melhor se entender a natureza e condição dos tupinambás, com os quais os

franceses alguns anos antes que se povoasse a Bahia, tinham comércio”. Os

franceses teriam usado o mesmo expediente que os portugueses: deixavam alguns

mancebos para aprenderem a língua e servirem na terra como intérpretes. Segundo

Soares de Souza, muitos destes franceses não quiseram voltar para sua terra,

preferindo levar uma vida “como gentios com muitas mulheres”. O resultado não

poderia ter sido outro:

25 - Op. Cit. p.96.

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“(...) se inçou a terra de mamelucos, que nasceram, viveram e morreram como gentios; dos quais muitos dos seus descendentes, que são louros, alvos e sardos, e havidos por índios tupinambás, e são mais bárbaros que eles”.26

O mameluco de origem francesa parecia seguir as mesmas características

de seu congênere português: adotava com regularidade os costumes gentios. Por

essa razão, os mamelucos acabavam sendo tachados de mais bárbaros que os

próprios índios. Para além dos conhecidos europeus que passaram pela colônia,

como franceses, holandeses e ingleses, outros viajantes que assentaram morada no

Brasil também deixaram descendência mestiça. É o caso de Maria Grega, que

aparece em uma das confissões do Santo Ofício, por ocasião da visitação do

licenciado Heitor de Mendonça Furtado, entre os anos de 1591 e 1592, na Bahia.

Em sua confissão, Maria disse ser natural de Itaparica, filha de João Grego,

carpinteiro de naus, “grego de nação”, e de sua mulher Constança Grega, ‘índia

deste Brasil”. Maria era casada com Pero Domingues, natural da cidade grega de

Smirna, que, como tantos outros, sem ofício, andava pelo sertão da Bahia.27

É óbvio que o número de mamelucos de origem portuguesa suplantou o de

qualquer outra nacionalidade. De qualquer forma, proporcionalmente, não deve

ter sido insignificante o número de mestiços filhos de índias com outros europeus,

que tornaram a se indianizar pelos sertões adentro, diluindo suas origens.

Algumas capitanias ficaram marcadas pelo alto índice de mamelucos em

sua população, como foi o caso de Pernambuco e, sobretudo, de São Vicente. Em

São Paulo, as crianças aprendiam primeiro o tupi e depois iam para a escola

aprender o português. Paulistas e mamelucos tornaram-se palavras quase

sinônimas. Desnecessário lembrar o mito do eficiente povoador daquela capitania,

João Ramalho, o grande patriarca, e sua incontável descendência.

Os descendentes de João Ramalho foram assim descritos por Nóbrega:

“Vão para a guerra com os índios, suas festas são índias, e vivem como eles tão

nus quanto os próprios índios”. É certo que Nóbrega não nutria grandes simpatias

por Ramalho, justamente por causa de sua adoção aos costumes indígenas e por

conta de suas maledicências a respeito dos jesuítas. Mas a breve descrição do

26 - Op. Cit. Cap. CLXXVII. p.331. 27 - As confissões de Maria e Domingos foram colhidas e registradas separadamente. Segundo o depoimento de Maria, Domingos não tinha ofício e este, em sua confissão, apresentou-se como “um alfaiate que já não usa” (não exerce mais o ofício), sendo que por aquele período andava pelo sertão. Cf. Op. Cit. p. 278-270; 315-316.

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jesuíta não fugia à regra de outros cronistas de seu tempo, que se limitavam, na

maioria das vezes, a igualá-los aos índios.

São raras as descrições do tipo físico de um mameluco no século XVI. O

padre Leonardo Nunes ofereceu um outro exemplo de uma limitada descrição de

um filho de cristão e de uma índia. O jovem mameluco tinha em torno de uns

vinte anos de idade quando apareceu no colégio dos jesuítas em São Vicente, no

ano de 1551, “nu como um índio” e era “mui alto de corpo e mui alegre’. Segundo

o padre Nunes, o rapaz não sabia português e muito menos tinha “notícia de seu

Criador”, sua vida resumia-se a caçar e pescar. Como ele, dizia ainda o jesuíta,

“são muitos os que andam pela terra dentro, assim homens como mulheres, que se

perdem por falta de socorro”.28 Não há dúvidas de que a idéia de perdição estava

associada a uma vida sem religião. Podemos citar uma das muitas passagens

semelhantes de Nóbrega que recorre à mesma expressão: “Andam muitos filhos

de cristãos pelo sertão perdidos entre os Gentios, e sendo Cristãos vivem em seus

bestiais costumes”. Os padres repetiram essa história de cristãos perdidos quase

como um bordão em suas cartas. Entretanto, é quase impossível não deixar de

pensar em um indivíduo tentando se localizar entre dois mundos.

Mais para índio do que para branco, o mameluco era principalmente um

sujeito que andava terra adentro, ignorando os preceitos da fé cristã. A escassez de

descrições mais detalhadas dos mamelucos contrasta com a variedade de

descrições dos índios. Gravava-se um tipo exclusivo do índio, como diferente e

exótico, que poderia ser integrado ao gabinete de curiosidades. Era como se o

mestiço perdesse seus encantos por não ser o modelo original. Assim, as

referências aos mamelucos detiveram-se no seu caráter, sempre apontado como

duvidoso, especialmente para os jesuítas.

O bispo de Pernambuco apresentou uma descrição pouco simpática do

conhecido bandeirante Domingos Jorge Velho, mostrando-se igualmente chocado

com o seu modo de vida:

“Este homem é um dos maiores selvagens com quem tenho topado: quando se avistou comigo trouxe consigo língua, porque nem falar sabe, nem se

28 - Cartas Avulsas. p. 93.

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diferença do mais bárbaro tapuia mais que em dizer que é cristão, e não obstante o haver-se casado há pouco, lhe assistem sete índias concubinas”.29

Anos mais tarde, em 1610, o padre Jácome Monteiro dava conta dos

habitantes de Piratininga: “Os moradores são pela maior parte mamelucos e raros

os portugueses; e mulheres há só uma, a que chamam Maria Castanha”. Para que

ficasse bem claro quem eram os mamelucos, o padre jesuíta oferecia uma

sintética, mas precisa, descrição: “São estes de terrível condição, o trajo seu fora

da povoação é andarem como encartados, com gualteiras de rebuço, pés

descalços, arcos e flechas, que são suas armas ordinárias”.30 A figura que

sobressai da descrição não poderia ser mais mestiça: trajo europeu, mas com pés

descalços e armas de índios. No entanto, o perfil completo não era nada sutil. A

figura desenhada estava colorida de preconceito, desde o adjetivo empregado

“encartados”31 (alguém sujeito a um processo), ao acessório da vestimenta - uma

“gualteira” (carapuça normalmente de pele de anta) “de rebuço” (abas que

encobriam o rosto). O fato de andar disfarçado, escondendo o rosto, não

estampava apenas uma pessoa dissimulada. O Livro V das Ordenações Filipinas,

título 79, “Dos que são achados depois do sino de recolher sem armas e dos que

andam embuçados”, determinava em seu terceiro item:

“E a pessoa que for achada com gualteira de rebuço, posto que seja caminho, vá degradado um ano para a África e pague dez cruzados (...). E sendo pessoa de qualidade, pagará vinte cruzados”.

Mais que um dissimulado, o mameluco era um criminoso potencial aos

olhos dos jesuítas e da legislação contemporânea portuguesa. Nas raras descrições

sobre os mamelucos entre os séculos XVI e XVII32, encontramos figuras nuas

assemelhadas aos índios e, quando vestidos à européia, portando peças de

bandidos.

29 - Apud HOLANDA, Sérgio Buarque de Holanda. Caminhos e Fronteiras. SP, Cia das Letras, 1994. 30 - Relação da Província do Brasil, 1610. Apud LEITE, Serafim. Op. Cit. Tomo VIII - Apêndice. p. 395. 31 - Termo que tem origem em Las Encartaciones de Vizcaya 32 - Já no século XIX, os viajantes Spix e Martius deixaram um retrato menos preconceituoso: “os mamelucos, conforme o grau de mescla, têm a pele quase cor de café ou quase branca. Traem a mistura indiana antes de tudo, a cara larga, com maçãs salientes, os olhos pretos e não grandes e certa incerteza do olhar. A estatura elevada e ao mesmo tempo larga, feições fortes, sentimento de liberdade e desassombro, olhos brunos ou raramente azuis cheios de fogo e afoiteza, cabelo cheio preto e liso, musculatura reforçada, decisão e rapidez nos movimentos, são aliás, os principais característicos na fisionomia dos paulistas”.

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A melhor descrição de uma figura mameluca não se encontra nas crônicas

coevas, mas na documentação relativa à visitação do Santo Ofício ao nordeste do

Brasil. A confissão de um certo mameluco é o mais perfeito exemplo de uma vida

entre dois mundos. Comecemos pelo seu nome. O mameluco tinha dois: o de

batismo, Domingos Fernandes Nobre, e outro, seu nome indígena, Tomacaúna.

Dos dezoito aos trinta e seis anos, Tomacaúna viveu “como homem gentio” nos

sertões da Bahia, não deixando de se confessar “pelas Quaresmas, para cumprir a

obrigação”. No tempo da confissão ao Santo Ofício, Domingos tinha quarenta e

seis anos, estava casado com uma mulher “branca” e continuava a fazer suas

incursões pelo sertão. Mesmo assim, contou das várias mulheres que teve a cada

entrada pelo interior.

Inicialmente, havia partido em busca de ouro, quando em convívio com os

índios do sertão passou a adotar seus costumes, andando nu, tingindo-se com

tinturas de urucum e jenipapo, colocando penas na cabeça, tangendo instrumentos

como atabaque e pandeiro (cabaças com pedras dentro), bailando e cantando as

cantigas indígenas.

A adoção desses costumes não foi suficiente para o mestiço se sentir

participante da cultura de sua mãe. Tomacaúna quis provar que poderia ser um

igual, tão valente quanto qualquer índio e “que não os temia”. Para isso, além de

guerrear, tatuou o corpo ao modo gentílico: com um dente de paca, rasgou a carne,

imprimindo para sempre a sua bravura. Depois de um certo tempo, Domingos

passou a trabalhar para o governador Luís de Brito, fazendo descer índios do

sertão. Mas não esqueceu o outro lado. Continuou a fornecer armas aos gentios e a

adotar aqueles costumes a cada entrada.

Domingos-Tomacaúna parece não se ter intimidado com o visitador do

Santo Ofício, como demonstra a riqueza dos detalhes confessados. Como se não

bastasse, “muitas vezes disse que não queria vir-se nunca do sertão, pois nele

tinha muitas mulheres e comia carne nos dias defesos e fazia mais que queria sem

ninguém tomar conta”.33

Fruto de uma relação nem sempre fácil, mestiço de índio e branco, o

mameluco começou a aparecer nos relatos sobre o país como um problema. Como

vimos, antes de tudo, os mestiços eram filhos de uma relação irregular, dos

33 - Op. Cit. p. 356.

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inúmeros casos de amancebamentos ou concubinatos entre cristãos e pagãos,

portanto, filhos do pecado. Em 1663, Simão de Vasconcelos, que escreveu a

primeira história da Companhia de Jesus no Brasil, sintetizava a visão dos jesuítas

a respeito dos mamelucos: “Mamelucos ilegítimos e desalmados, com arcos e

flechas e gritarias (...) desinquietando a vila contra os padres, espalhando de

alguns deles crimes péssimos”.

Para além de sua origem ilegítima, os mestiços, aos olhos dos jesuítas, na

maior parte das vezes, apareciam como um empecilho, isto é, elemento contrário

ao trabalho de cristianização, conforme podemos observar nessa passagem de

Anchieta:

“(...) uns certos Cristãos, nascidos de pai português e de mãe brasílica, que estão distantes de nós nove milhas em uma povoação de Portugueses, não cessam, juntamente com seu pai de empregar contínuos esforços para derrubar a obra que, ajudando-nos a graça de Deus, trabalhamos por edificar, persuadindo aos próprios catecúmenos com assíduos e nefandos conselhos para que se apartem de nós e só a eles, que também usam de arco e flechas como eles, creiam, e não dêem o menos crédito a nós, que para aqui fomos mandados por causa da nossa perversidade”.34

Ainda na mesma carta, Anchieta relatou que estes mestiços, além de

induzirem os recém-conversos a não acreditarem nas palavras dos padres,

incitavam-nos a voltarem aos seus antigos costumes, para que estes vivessem

“mais livremente”. É interessante notar que o termo ‘liberdade’ empregado pelo

jesuíta não tinha alcançado o peso e sua positividade que o século XVIII iria lhe

emprestar. No entanto, o seu emprego naquele momento transmitia com precisão

o sentimento que pautava a vida na colônia, a oposição entre escravidão e

liberdade. O próprio ideal da colonização não condizia com liberdade, mas sim

com um controle de corpos e mentes.

A perspectiva de viver uma vida regrada, pautada pelo tempo jesuíta, com

hora para rezar, hora para plantar, tudo feito sob um rígido controle, certamente

deveria parecer igualmente um absurdo. Não será à toa que as fugas para o sertão

se apresentavam como uma solução para muitas tribos.

Naquela mesma carta em que reclamava do retorno de índios catequizados

aos antigos costumes, desvirtuados por mestiços, o padre Anchieta lastima o

acontecido, lembrando que significava a perda de um ano do trabalho

34 - Op. Cit. p. 56.

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empreendido por irmãos da Companhia. Anchieta alerta sobre o perigo de

contágio de algo tão pernicioso e, caso não se extinguisse a ação conjunta de

colonos e mamelucos, a missão estaria fadada ao fracasso. O jesuíta, desanimado,

declara que a conversão dos infiéis “não progredirá, como enfraquecerá, e de dia

em dia, necessariamente desfalecerá”.35

Em uma outra carta, ao narrar os andamentos do trabalho de catequese,

Anchieta contava sobre alguns órfãos, mestiços da terra, que os jesuítas haviam

recolhido para amparar e ensinar os preceitos da fé cristã. Como de costume, o

jesuíta emitia o seu conceito sobre os mesmos: “é a gente mais perdida desta terra,

e alguns piores que os mesmos índios”.36

O desprezo dos jesuítas pelos mamelucos era latente. Além de todas as

dificuldades envolvidas no trabalho de catequese dos índios, os inacianos

precisavam, ainda, disputá-los com os mamelucos. Contudo, os padres também

recorreram aos seus préstimos. Ao descrever a casa da Companhia de Jesus em

Salvador, em 1555, o padre Ambrósio Pires contava que seus habitantes somavam

44 pessoas, entre as quais dois sacerdotes (ele e Antônio Pires), três irmãos (João

Gonçalves, Antônio Blasques e Pero de Góis) e os restantes mestiços:

“Os outros são mamelucos, filhos de cristãos com índias, os quais conservamos e muito nos servem para nos ajudar no trato com os índios, cuja língua falam. Temos mais oito, dos quais sete já são cristãos e quatro escravos”.37

Se tirarmos os cinco membros oficias da Companhia - padres e irmãos - do

total dos habitantes arrolados pelo padre Ambrósio, temos um número

significativo de mamelucos colaborando com os inacianos. Por mais que se

queixassem, os jesuítas não podiam prescindir da ajuda dos mamelucos. A sua

colaboração era essencial no trabalho de difusão da fé, pois serviam não só como

intérpretes da língua, mas sobretudo como mediadores no trato com os índios.

Provavelmente, era esse trato, e não a bela retórica dos padres, que atraía os

silvícolas para a catequese, da mesma forma que os colonos conseguiam muitas

vezes fazer os seus descimentos sem precisar recorrer à violência.

Anos mais tarde, Frei Vicente do Salvador, ao contar as primeiras

providências tomadas pelo quarto governador do Brasil, Luís de Brito Almeida,

35 - Idem, ibidem. 36 - Idem. p. 77.

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expôs a opinião dos moradores da Bahia sobre a melhor forma de descer os índios

do sertão sem precisar recorrer à força física. Segundo Frei Vicente, o novo

governante começou logo a tratar dos assuntos de guerra; vinha com ordens do rei

para povoar o rio Real. Para isso, era preciso cativar os gentios do lugar. A

expedição ao referido rio foi um fiasco, pois não havia mais índios no local.

Haviam todos fugido com as guerras de seu antecessor. Assim, o governador foi

alertado pelos moradores de que guerras aos gentios só serviam para afugentá-los

para longe da costa, tornando mais difíceis os trabalhos de resgates. Os moradores

achavam melhor trazê-los por paz e persuasão dos mamelucos, “por saberem a sua

língua e pelo parentesco que tinham com eles, que por armas”.38 E assim foi feito;

o governador autorizou as entradas dos mamelucos aos sertões da Bahia.

O que o recém-chegado reinol Luís de Brito Almeida ainda não sabia, mas

os moradores da colônia já haviam percebido, era que a afinidade entre

mamelucos e indígenas representava mais que qualquer contingente de soldados

brancos. Os mamelucos apresentavam-se como uma sólida ponte entre as duas

culturas, conheciam os principais interesses e pontos fracos dos dois lados.

Certamente, a colaboração dos mamelucos com os jesuítas foi bem maior do que

gostariam e do que admitiram. Apesar da intensa campanha empreendida contra

os mestiços, em relação ao trato dos indígenas, os jesuítas sabiam da importância

do seu trabalho. Mas é claro que os jesuítas não alardeavam essa informação aos

quatro ventos. Afinal, os mamelucos não ofereciam seus préstimos só para os

jesuítas, ao contrário, trabalhavam muito mais para os seus concorrentes. Além

disso, divulgar a valiosa ajuda dos mestiços era diminuir a própria força do

trabalho edificante da catequese.

Ainda sobre essa capacidade de persuasão dos mamelucos, retornemos ao

Frei Vicente, que nos ajuda a elucidar essa questão. A opinião dos moradores da

Bahia sobre os mestiços, contada pela pena do frade franciscano na primeira

História do Brasil, não ficou isenta da apreciação do próprio autor. Os

mamelucos, conta Frei Vicente não sem uma certa ironia, “não iam tão confiados

na eloqüência que não levassem muitos soldados brancos e índios confederados e

amigos com sua frechas e armas, com as quais, quando não queriam por paz e por

37 - Op. Cit. p. 169. 38 - Op. Cit. p. 217.

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vontade, os traziam por guerra e por força”. Contudo, reconhecia o franciscano,

ordinariamente bastava a língua do parente mameluco, “que lhes representava a

fartura do peixe e mariscos do mar de que lá careciam, a liberdade que haviam de

gozar, a qual não teriam se os trouxessem por guerras”.39

Em suma, o que sobressai dessa narrativa é um caráter dúbio e falso dos

mamelucos, que se aproveitavam da confiança para enganar os seus afins. Frei

Vicente ainda prosseguia, procurando deixar claro como eram os procedimentos

destes mestiços:

“Com estes enganos e com algumas dádivas de roupas e ferramentas que davam aos principais (chefes indígenas) e resgates que lhes davam pelos que tinham presos em cordas para comerem, abalavam aldeias inteiras e em chegando à vista do mar, apartavam filhos dos pais, os irmãos dos irmãos e ainda às vezes a mulher do marido, levando uns o capitão mamaluco, outros os soldados, outros os armadores, outros os que impetravam a licença (...) e todos se serviam deles em suas fazendas e alguns os vendiam”.40

O sentido dessa passagem não difere muito das usuais reclamações dos

jesuítas. Os mamelucos serviam aos propósitos dos colonos portugueses, trazendo

os índios para o cativeiro; o que não significava trazê-los para a cultura

portuguesa e, sobretudo, cristã, porque continuavam incentivando os costumes

bárbaros, como comer carne humana - quando não adotavam os mesmos hábitos.

Ou seja, o mameluco interagia com as duas culturas mais ou menos na mesma

altura. E para os jesuítas isso não era só pernicioso como também perigosíssimo.

Ronaldo Vainfas41, ao estudar o fenômeno religioso freqüente entre os

tupis, denominado pelos jesuítas de “santidades”42, demonstrou o quanto os

mamelucos poderiam ser perigosos para as autoridades coloniais, incentivando as

desordens dos índios. Tratava-se, grosso modo, de uma crença milenarista ligada a

um lugar mítico e comandada por um pajé, que conduziria os seus adeptos à “terra

sem mal” - onde a felicidade seria eterna. Esta crença era composta de um ritual

próprio, com danças, cantos e transes em meio ao fumo de uma erva inebriante, o

tabaco.

39 - Idem ibidem. 40 - Idem. p. 218. 41 - Cf. “Ambivalências e adesões”. In: A Heresia dos Índios. Catolicismo e Rebeldia no Brasil Colonial. São Paulo, Cia das Letras, 1995. 42 - Vários cronistas descreveram as cerimônias desta crença: Nóbrega, Anchieta, André de Thevet, Jean de Léry, Hans Staden. O nome de santidade foi dado por Nóbrega.

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Vainfas centrou sua análise no caso ocorrido em Jaguaribe, região ao sul

do Recôncavo Baiano, entre os anos de 1580 a 1585. Este caso começou com

índios que já haviam tido uma certa instrução com os jesuítas. O líder - um índio

batizado de Antônio pelos jesuítas - misturou noções do catolicismo a elementos

da cultura indígena, formando uma seita singular. Esse líder se dizia a encarnação

de Tamandaré (herói da mitologia tupi) e, ao mesmo tempo, denominava-se o

papa da seita; sua principal esposa era a Santa Maria Mãe de Deus.

Não cabe aqui uma análise da seita em si. Importa destacar que, em um

certo momento, parte de seus crentes já se deslocara para o engenho de Jaguaribe

atraídos pelo seu senhor, Fernão Cabral de Taíde, levados por um mameluco. Na

fazenda deste nobre fidalgo, os índios construíram uma igreja, adotaram um ídolo

de pedra, dando prosseguimento às suas cerimônias. Atraídos pela seita, índios

escravizados de fazendas das redondezas fugiram para o engenho de Taíde,

gerando insatisfação de outros senhores e muitas revoltas.

Para Vainfas, o papel dos mamelucos na história da santidade de Jaguaribe

ilustra tópicos essenciais da vida da colônia: “o hibridismo cultural, as traduções

do catolicismo para o tupi e vice-versa; os múltiplos sentidos da colonização; a

extraordinária complexidade de aculturação no Brasil quinhentista - aculturação

errática e multiforme”.43

Ponto de interseção entre duas culturas, o mestiço permanecia uma

incógnita. Um movimento pendular definia a apreciação desse sujeito face a suas

ações. O fato de ser portador de dupla herança permitia-lhe o “benefício” da

dúvida. Porém, o que prevalecia era um juízo negativo, recaindo sobre ele todo o

(pre)juízo da uma só parte do legado. Em resumo, a imagem que se foi

construindo era a de alguém que inspirava pouca confiança, um ser ambíguo, uma

vez que havia sempre a possibilidade de vir à tona o seu lado selvagem.

A disputa pelos índios entre jesuítas e colonos portugueses movimentou

durante quase três séculos a vida na colônia. Frei Vicente de Salvador emitiu uma

frase que dava o tom desta disputa: “Quebravam os pregadores os púlpitos sobre

isso, mas era como se pregassem no deserto”. Em meio às disputas, os mamelucos

trilhavam seu próprio caminho, bem mais tortuoso que as veredas dos sertões, mas

com total desenvoltura.

43 - Op. Cit. p. 150.

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5.4. Mulatos

De forma diferente dos mamelucos, mas com igual importância, os

mulatos desempenharam um papel decisivo na colonização portuguesa,

conformando uma ampla parcela da população. Escravos por nascimento,

ajudaram, juntamente com os negros, a movimentar a economia da colônia,

impulsionando suas atividades produtivas. A ascendência africana acabaria

reduzida a simples determinação da origem negra e da condição escrava. Hoje,

estudos procuram recuperar não só as diferentes etnias trazidas para o Brasil,

como também um pouco das características de cada um daqueles povos que aqui

se tornaram mão-de-obra cativa ou “as mãos e os pés dos senhores de engenho”,

como diria um jesuíta do século XVIII. Mão-de-obra qualificada, diga-se de

passagem, formada por agricultores, artífices, criadores de gado e especialistas em

mineração.44

Os africanos que fizeram a travessia forçada do Atlântico certamente

perceberam, já durante a viagem, que as condições de vida que teriam nas novas

terras não seriam diferentes daquelas oferecidas a bordo dos navios em que

vinham transportados. Mal alimentados, maltratados, os africanos recém-chegados

eram uniformemente chamados de “escravos da Guiné” ou “negros da Guiné”

para serem distintos dos “negros da terra” ou, também, “escravos da terra”. Guiné

era uma simplificação adotada pelos portugueses para a região norte da África

ocidental, que compreendia desde a Guiné Bissau, a Costa da Mina (que abrangia

uma parte do Reino do Sudão, atualmente Benim e Nigéria) até a Guiné

Equatorial. O nome genérico atribuído aos negros de distintas origens e etnias

indicava a perda de identidade, passando a designar apenas uma força de trabalho.

Individualidade zerada, homens e mulheres de diferentes nações eram

reduzidos a um conjunto homogêneo para depois se tornarem números, unidades

computadas nas fazendas e engenhos; os negros de um senhor, submetidos à sua

vontade e, na maioria das vezes, à sua maldade. No final do século XVI, forjava-

se uma nova forma de identificação, que indicaria a nação de origem na África,

44 - Em estudo recente, Eduardo França Paiva recupera a qualidade e a técnica do trabalho de mineração dos negros denominados minas. Cf. PAIVA, Eduardo França & ANASTASIA, Carla M. J. O Trabalho Mestiço. Maneiras de Pensar e Viver. São Paulo, Annablume: UFMG, 2002.

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mas que, na verdade, relacionava-se apenas ao porto de embarque de um referido

escravo. Nos engenhos, uma nova nomenclatura definia-se, distinguindo os

“ladinos” e os “boçais”, isto é, quem dominava ou não a língua local. Assim, no

novo continente, nomes genéricos eram criados para tentar organizar a população

em novas camadas, de forma a absorver o impacto de um enorme contingente

formado por grupos distintos.

Se, para essas pessoas, havia esperança de uma vida melhor, como

qualquer ser humano costuma ter, ela ia ficando cada vez mais distante; nem

projetos para os filhos era possível fazer. Em total desalento, um incontável

número de pessoas optou pelo suicídio, da mesma forma que inúmeras mulheres

preferiram interromper sua gravidez a ver seus filhos com a mesma sorte. E quem

tinha filhos não os tinha de fato; a posse da criança era por direito do senhor. Os

filhos nasciam marcados: de pai negro, era “crioulo”45, de pai branco, “mulato”.46

A associação do mulato com um animal utilizado para transporte de carga

parece não ter sido gratuita. Um padre jesuíta do início do século XVIII, Jorge

Benci, ao procurar fundamentar a lógica da escravidão a partir dos cânones

sagrados, apresentou uma analogia entre o escravo e o jumento, que pode estar

ligada à origem do termo mulato ou, pelo menos, formulada a partir dessa

etimologia. Para Benci, o homem distinguir-se-ia de outros animais por uma

operação que é capaz de realizar: o entendimento. Contudo, o cativeiro privaria o

homem do uso da razão, tornando-o “parecido e semelhante ao mais bruto dos

brutos”; segundo o jesuíta, todos deveriam saber que se tratava do jumento. Essa

comparação, tirada do Eclesiástico, valeria para todos os escravos só por serem

escravos.47 Ou seja, a carga de trabalho destinada ao escravo acabaria por

embrutecê-lo. Se essa analogia guarda relação com a origem do termo, não temos

como comprová-la. Mas a sua concepção veicula o menosprezo, com o qual os

escravos eram obrigados a conviver.

45 - Apesar de hoje o termo crioulo designar qualquer pessoa negra, no século XVII designava os negros nascidos já no Brasil. 46 - A palavra mulato traz igualmente embutida em sua origem castelhana um sentido altamente pejorativo, que traduziria a sua herança de mestiço: macho jovem por comparação com a geração híbrida do mulato com o mulo. A partir de 1526, a palavra já começava a aparecer (Afonso de Albuquerque) como sinônimo do filho de pai branco e mãe negra ou vice-versa. 47 - BENCI, Jorge. Economia Cristã dos Senhores no Governo dos Escravos. São Paulo, Grijalbo, 1977. p. 217.

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As justificativas buscadas no Antigo Testamento deixam bem claro que

esse padre italiano não pretendia fazer de A Economia Cristã dos Senhores no

Governo dos Escravos um libelo contra a escravidão. A proposta era que seu livro

servisse de “regra, norma e modelo”48 para orientar os senhores no trato com seus

cativos. Se os escravos mereciam o desprezo por sua condição, o que acontecia

aos do Brasil, “por serem pretos”, era o que indagava Benci. Os abusos praticados

pelos senhores já eram de conhecimento público naquela altura49, e isso não

condizia com uma postura cristã, daí a preocupação do jesuíta em tentar

regulamentar a relação. Em suma, os senhores deveriam cumprir seus deveres

para com os escravos, que se resumiam em pão, disciplina e trabalho.

A depreciação embutida no termo mulato não ficou restrita à sua forma

substantiva. Nascido escravo, o mulato carregará por toda sua vida, como os

demais negros, o peso desta condição. Mesmo livre, era estigmatizado pela cor de

sua pele e pelo nome, sofrendo toda sorte de preconceitos. A criança mestiça

herdava o estatuto jurídico e social da mãe escrava.

No entanto, o mulato não foi o único termo utilizado no Brasil para

designar mestiços de ascendência negra. Sem contar com a denominação pardo,

também sinônimo de mulato, mas igualmente empregada para mouros e judeus,

muitos outros nomes foram registrados ao longo do tempo e do território.

Denominações como fulas, pardavascos, cabras, entre outras50, encontravam seu

sentido de acordo com a região.

É preciso destacar que a denominação de “cabra” foi além de sua

referência à cor de pele ou à origem étnica de um único indivíduo. De acordo com

Manuel Diegues Júnior51, na região do açúcar, essa palavra comportava na

linguagem popular uma significação social por associação ao tipo de trabalho:

cabra de engenho, cabra de bagaceira, cabra de eito, cabra de usina. Mas, se o

termo composto designava o tipo de trabalho, o seu emprego no singular passou

48 - Idem. p.49. 49 - Stuart Schwartz conta que, em 1700, os juizes (do Tribunal da Relação) receberam ordens reais para investigar se os senhores no Brasil estavam chicoteando cruelmente, mutilando e deixando seus escravos morrerem de fome, como havia sido reportado. Cf. Burocracia e Sociedade. p.198 50 - Não estamos citando alguns substantivos que foram cunhados posteriormente empregados para denominar mestiços, tais como: cafuz ou cafuzo (mestiço de negro e índio), cabrocha (sinônimo de mulato), uma vez que pertencem ao século XIX. 51 - Etnias e Culturas no Brasil. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1976. p.116.

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também a caracterizar o desordeiro, o capanga, o valentão. De certa forma, essa

perspectiva que o termo cabra alcançava não era muito diferente daquela atingida

pelo mulato.

No Brasil, as origens do mulato são precisas; estão localizadas na região

litorânea do Nordeste e, principalmente, ligadas à cultura da cana-de-açúcar, aos

engenhos, a partir da paulatina introdução da mão-de-obra africana ainda no

século XVI. Não por acaso, chamava-se a Bahia de “mulata velha”, antiga

designação popular para um dos primeiros locais a receber escravos da África.

Gradativamente, o mulato ganhava outros espaços, tais como o Rio de

Janeiro e, no século XVIII, a região das minas de ouro e diamantes. No entanto,

não se pode dizer que a miscigenação afro-branca acompanhou a ocupação

territorial. Em alguns lugares, como no interior do Nordeste e na região Norte, era

rara a presença do mulato. O que se pode dizer é que o mulato acompanhou as

áreas de atividade econômica mais intensa ou ainda áreas economicamente mais

ricas, como aquelas ligadas à cana-de-açúcar, ao ouro e, posteriormente, ao café.

Ou seja, regiões de maior circulação monetária que podiam importar escravos

africanos para o trabalho.

A ligação do mulato com o engenho ficou especialmente marcada com o

retrato produzido pelo padre italiano João Antônio Andreoni no seu livro Cultura

e Opulência do Brasil por suas Drogas e Minas. Obra-chave para o entendimento

da economia e sociedade colonial, na qual podemos observar todo o preconceito

dirigido aos negros e mestiços, partilhado inclusive pela própria Igreja, que

condenava o ócio, apesar de reconhecer que era, sobretudo, o trabalho escravo que

movimentava a economia colonial.

Na primeira parte de Cultura e Opulência, o padre Andreoni tratou

minuciosamente do universo em torno da cultura do açúcar. Antonil, pseudônimo

adotado por esse jesuíta, incluiu os mulatos como uma mão-de-obra sempre

presente nos engenhos, lado a lado com os escravos negros. Logo no primeiro

capítulo, intitulado “Do cabedal que há de ter o senhor de um engenho real”,

relatou os inúmeros serviços necessários para um bom funcionamento da indústria

do açúcar, além dos usuais escravos das fazendas e moendas, negros e negras de

casa, também mulatos e mulatas.

Em um outro capítulo, Antonil destacou a importância do trabalho escravo

para o fabrico do açúcar com uma frase hoje clássica: “Os escravos são as mãos e

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os pés do senhor de engenho”. Depois de explicar a procedência dos escravos e

criar características de acordo com as origens - mais robustos, mais fracos, os que

melhor se adaptam, etc. -, apontou como melhores os que nasciam no Brasil ou se

criavam desde pequenos em casa de brancos. Mas, para esse padre, ninguém era

mais esperto para o trabalho que os mulatos, como podemos observar em suas

próprias palavras: “Melhores ainda são para qualquer ofício os mulatos”.

Apesar do reconhecimento das múltiplas habilidades, no retrato que

aparece pintado em Cultura e Opulência, o que sobressai é um perfil negativo dos

mulatos. Para o padre Andreoni, os mulatos eram soberbos e viciosos, posavam-se

de valentes e estavam “aparelhados para qualquer desaforo”. Contudo, o jesuíta

acreditava que os mulatos levavam a melhor sorte pela porção de sangue branco

que traziam em suas veias, muitas vezes originadas do próprio senhor de engenho,

complacente com aquele comportamento. Pais remissos, os senhores de engenho

perdoavam tudo de seus abusados filhos; em vez de repreendê-los, cobriam-nos de

mimos, deixando-se governar por eles.

A complicada relação pai-filho ou senhor-escravo passava por esse

reconhecimento parcial da paternidade. Desnecessário dizer que raras vezes os

senhores reconheciam seus filhos ilegítimos; quando muito, em seus testamentos,

no leito de morte. Para além da condição inferior que as mulheres negras e

mulatas legavam aos seus filhos, a qualidade de bastardo acrescentava um quesito

a mais ao histórico da criança. A ascendência escrava e bastarda já era suficiente

para incentivar um processo de degradação dos mulatos.

Contudo, Antonil acreditava que a complacência paterna e a metade de

sangue branco tornavam a vida dos mulatos muito boa, o que explicaria o ditado

popular: “O Brasil é o inferno dos negros, o purgatório dos brancos e o paraíso

dos mulatos e mulatas”.52 A sutileza do ditado de situar o branco entre negros e

mulatos, pagando seus pecados na colônia, não foi a mesma empregada pelo

Marquês do Lavradio para contar sobre sua estada no Brasil. Em carta datada de

1769, o rabugento Marquês escrevia para sua esposa, reclamando da Bahia: “(...)

52 - Luiz F. Alencastro lembra que o título do livro de D. Francisco Manuel de Melo, Paraíso de mulatos, purgatório dos brancos e inferno dos negros, antecede o ditado veiculado por Antonil em cinqüenta anos. Cf. Op. Cit. p.347. Interessante notar que esse ditado ignorava índios e mamelucos. O que se deduz é que, por essa altura, princípios do século XVIII, o ditado estivesse focado principalmente na população do litoral, pois a maior parte da população indígena já havia se internado pelos sertões adentro e uma grande parcela exterminada.

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vendo-me entregue a negros, macacos e mais sevandijarias53, que são as que

continuamente tenho que lidar neste novo mundo, (...) estou certo que se V. Ex.

soubesse da vida que aqui passo, eu havia lhe de merecer muitas vezes a sua

compaixão”.54

Mas Antonil ainda não estava satisfeito com o perfil do mulato e incluiu

um novo alerta sobre o seu caráter instável e de desordeiro. Em casos de

desconfiança ou ciúmes, ocorria uma transformação: o amor transformava-se em

ódio e o mulato saía “armado de todo o gênero de crueldade e rigor”. De acordo

com a psicologia do padre jesuíta, o bom era valer-se de suas habilidades, saber

tirar proveito delas e não lhes dar tanto a mão para que não lhes pegassem o

braço; caso contrário, os escravos se fariam senhores.

Essas descrições de Antonil aparecem no capítulo intitulado “Como se há

de haver o senhor de engenho com seus escravos”. Mesmo gozando de pequenos

privilégios decorrentes da própria ascendência paterna, os mulatos não deixavam

de ser tratados como força de trabalho cativa. E, de acordo com Antonil, libertá-

los, especialmente as mulatas, não era um bom negócio:

“Forrar mulatas desinquietas é perdição manifesta; porque o dinheiro, que dão para se livrarem, raras vezes saí de outras minas, que de seus mesmos corpos, com repetidos pecados; e depois de forras continuarão a ser a ruína de muitos.”55

Habilidosos, abusados, traiçoeiros e oportunistas, os mulatos deveriam

permanecer na sua condição de escravos, sob o julgo de seus senhores, para não

causarem problemas e desordens. No entanto, forras ou escravas, as mulatas

acabavam sendo acusadas de, no mínimo, serem desinquietas e de levarem os

homens à perdição.

O fascínio sexual do português pelas mulatas tornava-se um mito, que

longe de qualificar, colaborava para degradar ainda mais a condição das mesmas.

De certa forma, a posição da mulher (já falamos a respeito das índias) era

extremamente desvalorizada, fruto da forte misoginia característica deste período,

não só no Brasil como na Europa. Contudo, aqui, criou-se em torno da mulher não

53 - Segundo o Dicionário Aurélio, sevandija significa designação comum aos vermes imundos; parasitas; pessoa vergonhosamente servil. 54 - Cartas da Bahia. 1768-1769. Rio de Janeiro, Min. da Justiça/ Arquivo Nacional, 1972. p.188. 55 - Cultura e Opulência do Brasil por suas Drogas e Minas. Rio de Janeiro, IBGE/Conselho Nacional de Geografia, 1963. p. 20.

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branca - a índia, a negra e a mulata - uma áurea de luxúria, ligada a um

sentimento que misturava atração e repulsa. Outro ditado popular de cunho

altamente pejorativo definia os papéis das mulheres conforme sua cor: “branca

para casar, mulata para f..., negra para trabalhar”.56 A mulata tornava-se quase

sinônimo de prostituta, o que diminuía ainda mais suas chances de alcançar um

casamento legítimo que melhorasse sua condição.

É certo que a prostituição fez parte do contexto escravista. Muitas vezes,

era a única forma de garantir o sustento para as mulheres libertas e sem recursos,

que viviam em situação de extrema pobreza, as quais ajudavam a conformar parte

daquela camada da população denominada por Prado Jr. de “desclassificados”. E,

ainda, a prostituição não representou um modo de sustento para somente as

mulheres pobres; muitos senhores valeram-se de suas escravas para completar ou

garantir seus rendimentos.

Estudos recentes têm procurado analisar os meios de vida e as alternativas

destas mulheres na colônia. Luciano Figueiredo, em O Avesso da Memória,

demonstrou como a prostituição atingiu elevados índices nas Minas Gerais do

século XVIII. A carência de mulheres brancas era inversamente proporcional ao

enorme contingente de homens que imigraram para aquela região em busca de

ouro. Esse desequilíbrio emprestava à sociedade mineira uma característica

específica, ainda que se mantivesse dentro dos padrões da colonização portuguesa

no Brasil, como já foi dito, um projeto exclusivamente masculino.

Deste modo, formou-se, na região das minas, uma população com uma

predominância de mulatos e negros. A rigidez dos estatutos sociais e de sangue

apresentava-se como um impedimento para que ligações mistas entre brancos e

mulheres negras ou mulatas pudessem ser oficializadas; ou seja, os casamentos

legais na Igreja tornavam-se praticamente inacessíveis para a maioria da

população. Figueiredo lembrou que algumas irmandades chegavam a expulsar de

seus quadros aqueles irmãos que contraíssem matrimônio com mulheres de

condição inferior.

O Estado português, ao procurar impedir o casamento entre pessoas de

condições diferentes, promovia a política de desqualificação do outro e a

manutenção da cultura do mesmo, do igual. Negros e mulatos deveriam casar com

56 - Cf. FREIRE, Gilberto. Casa-Grande & Senzala. Tomo I, p.13.

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seus pares. O infeliz ditado, veiculado na colônia, que determinava que, para

casar, só servia a mulher branca, exemplificava bem a lógica social daquela época.

No entanto, o projeto de colonização criava as suas próprias contradições,

determinando legal somente o casamento entre iguais, apesar de contar com um

número mínimo de mulheres brancas.

Paradoxalmente, as regras e as normas do Estado português acabaram por

consagrar a condenada prática do concubinato como a forma de união viável para

a maioria dos moradores da colônia. Estudos como o de Luciano Figueiredo, que

acabamos de citar, de Mary del Priori57 e muitos outros têm demonstrado, apesar

dessas rígidas normas de conduta, uma diversidade de relações, uniões e

organizações familiares que se acomodaram ao cotidiano colonial.

O mais famoso poeta da colônia portuguesa na América, Gregório de

Matos, incorporou, em seus versos, este sentimento dúbio em relação às mulatas,

veiculando ainda uma crítica à estrutura da sociedade colonial baiana. A falsa

exaltação à mulata resume-se a um só aspecto, o sexual. A mulata de Matos é a

mesma daquele ditado, anteriormente citado, que atribuía as funções das mulheres

conforme sua cor: a mulata para a cama.

O preconceito direcionado a negras e mulatas na sua poesia dita burlesca

foi recentemente dissecado pela fina análise de Alfredo Bosi em Dialética da

Colonização. Não são necessárias maiores análises para perceber nos versos

cáusticos de Gregório de Matos um preconceito latente contra os mulatos, que,

naquela altura, faziam-se bem presentes em sua cidade. Na “triste Bahia” de

Matos, reinava o caos e a desordem; quase todos furtavam, havia “muitos mulatos

desavergonhados” e seu povo era uma “canalha infernal”.

Mas o preconceito de Gregório de Matos não diz respeito apenas à questão

da cor. Alfredo Bosi chamou a atenção para um preconceito decorrente da própria

visão de mundo do poeta baiano, oriundo de uma concepção de sociedade

estamental própria do Antigo Regime, a qual nos trópicos parecia perder o seu

sentido. Já falamos sobre esta concepção, que entedia a sociedade dividida em

ordens ou estamentos, rigidamente hierarquizados e organizados de acordo com

57 - Além do já citado O Avesso da Memória, outro importante estudo de Luciano Figueiredo é Barrocas Famílias. São Paulo, Hucitec, 1997. Mary del Priori é referência nos estudos sobre a mulher: A Mulher na História do Brasil. São Paulo, Contexto, 1989; Ao Sul do Corpo. Rio de Janeiro, José Olympio, 1993; História das Mulheres no Brasil. São Paulo, Contexto, 1997.

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suas funções: nobreza, igreja, tribunais, armas. Grosso modo, nesse tipo de

formação histórica, vigorava os direitos de sangue e do nome, importava a honra e

gozava-se de privilégios.

A vida na colônia parecia dissolver essa organização, misturando as

camadas que deveriam compor a estrutura social. E para Gregório de Matos isso

era o fim. As suas críticas não se cansam de aludir à desorganização social e à

elasticidade dos estatutos de nome e sangue. Para Matos, no Brasil, os fidalgos da

terra não partilhavam do ideal de pureza de sangue, pois eram mestiços58 de

índios, netos de Caramuru. Vários versos demonstraram a insatisfação com a

estrutura local:

Não sei para que é nascer neste Brasil empestado um homem branco e honrado sem outra raça.

Terra tão grosseira e crassa que a ninguém se tem respeito salvo quem mostre algum jeito de ser mulato.

Aqui o cão arranha o gato não por ser mais valentão mas porque sempre a um cão outros acodem.

Para Bosi, a forma como o negro e o mulato aparecem inseridos na poética

de Gregório de Matos constitui uma questão delicada. O preconceito “dobra-se e

complica-se porque desce ao subterrâneo de uma prática erótica onde geram,

íntima e simultaneamente, a atração física, a repulsa e o sadismo”. Ao comparar

os versos dedicados às mulheres brancas com aqueles referentes às mulheres

negras e mulatas, destacou a presença de figuras contrárias e extremas. No

primeiro caso, as donas Angela, Teresa, Vitória e Maria povoam uma lírica

amorosa que contrasta com os versos obscenos e de linguagem chula daqueles

dedicados às Babus e demais codinomes de negras e mulatas. Para essas, foram

dedicados versos em que não se consegue ver os rostos de mulher, mas tão só

exibições escatológicas das partes genitais e anais.

58 - No poema em que se despede da cidade da Bahia, quando foi degredado para Angola: “No Brasil, a Fidalguia / no bom sangue nunca está; / nem no bom procedimento: / pois logo em quê pode estar?”.

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A conclusão de Bosi não deixa espaço para qualquer ilusão de uma

suposta exaltação da mulata: “Há, portanto, uma desclassificação objetiva da

mulher que nunca se tomaria por esposa, situação que a cor negra potencia, e a

qual corresponde a uma violência ímpar de tom, de léxico, em suma, de estilo”. 59

A vida na colônia ao longo dos anos cristalizou, portanto, uma imagem

negativa de mulatas e mulatos. A mulata como fonte de perdição de homens puros

(sem mistura) e bons (de condição superior); o mulato como uma pessoa de

qualidades ambíguas, pronta a trocar de lado, traiçoeiro e desordeiro. Por ocasião

da conquista holandesa de Pernambuco, solidificou-se a idéia de que os mestiços

eram potenciais traidores. O Frei Manoel Calado, ao narrar a invasão, contou que

os holandeses não encontraram resistência quando desembarcaram na praia de Pau

Amarelo. Tal investida teria sido facilitada pela ajuda de dois mulatos, enviados

por certos cristãos-novos, que lhes serviram de guia. A conjunção dos dois

elementos de sangue dito impuro ou de raça “infecta” emprestavam à situação um

peso ainda maior.60 Mas todos sabemos que foi nessa história que surgiu o mais

famoso traidor da colônia portuguesa, o mulato Domingos Fernandes Calabar. No

entanto, nas crônicas do Frei Calado, Calabar aparecia descrito como um

mameluco:

“Neste tempo se meteu com os Flamengos um mancebo mameluco, mui esforçado e atrevido, chamado Domingos Fernandes Calabar, o qual entre eles, aprendeu a língua flamenga, e travou grande amizade com Sigsmundo Vandscope, Governador de Guerra, ao qual tomou por compadre de um filho que lhe nasceu de uma mameluca, chamada Bárbara”.61

Seria Calabar um mameluco ou teria sido engano ou ato falho de Calado,

que colocava em um mesmo balaio mulatos e mamelucos, ambos mestiços? O que

dizem outros relatos? Em 1657, Francisco Brito Freire publicava a História da

Guerra Brasílica, em que incluía sua versão da invasão holandesa. Na pena de

Brito Freire, Calabar já aparecia como um mulato causador de grandes danos,

descrito como “manhoso, atrevido e tão prático dos lugares da terra e dos portos

59 - Op. Cit. p.109. 60 - Inúmeros estudos demonstraram como os judeus serviram de bode expiatório em situações críticas. No Brasil, a variedade de elementos para exercer o mesmo papel acabava por promover conjunções iguais à de Frei Manoel Calado. 61 - CALADO, Manuel. O Valeroso Lucidemo. Belo Horizonte, Itatiaia; São Paulo, Edusp, 1987. Vol.1. p.54.

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do mar”.62 Um século mais tarde, em 1757, o frade franciscano Domingos Loreto

Couto concluía Desagravos do Brasil e Glória de Pernambuco, procurando

preservar a história de sua capitania e dos feitos de seus conterrâneos. Ao tratar da

reconquista pelos portugueses, Calabar foi assim descrito:

“Entre tantos milhares de naturais de Pernambuco, que fiéis, leais, constantes e valorosos concluíram a grande empresa da gloriosa restauração de sua Pátria; ouve um/ não o negamos/ que, com deliberação violenta e atrevida rebeldia, seguiu o partido inimigo, e foi vil instrumento de muitas praças. Chamava-se Domingos Fernandes Calabar, mulato manhoso, atrevido e prático dos lugares da terra e portos do mar. Com boa opinião e algumas feridas, havia dois anos servido nesta guerra, e pouco satisfeito da sua fortuna, buscou ambicioso e soberbo entre os holandeses no prêmio da traição, o aumento que impedia entre os nossos a vileza do nascimento, para com os danos públicos abrir caminhos para os seus interesses particulares”.63

Os adjetivos empregados por Loreto Couto para qualificar Calabar são

praticamente iguais aos de Brito Freire: manhoso, atrevido, soberbo -

características freqüentes que os cronistas utilizavam para caracterizar os mulatos.

Mas, afinal, qual a origem de Calabar? Evaldo Cabral de Mello já havia notado

que os cronistas tratavam o mestiço ora como mulato, ora como mameluco. Teria

sido Loreto Couto o responsável pela fixação de Calabar como mulato.

Esse capítulo da história pernambucana embaraça origens e seleciona

personagens de forma bastante curiosa. O livro do Frei Manuel Calado ajudou a

divulgar os feitos de uma outra figura desta mesma história, “o valeroso

lucideno”, João Fernandes Vieira. Hoje, sabe-se que Vieira era mulato, o que não

consta do livro de Calado. Sabe-se também que O Valeroso Lucideno teria sido

uma encomenda do próprio João Fernandes ao referido Frei. Nascido na Ilha da

Madeira, esse mulato de origem humilde construiu carreira e fortuna.64

Os processos de embranquecimento eram um recurso bastante utilizado

por pessoas de origem humilde que se firmavam em uma condição melhor. João

Fernandes era normalmente apresentado como um reinol, o que abre uma outra

62 - FREIRE, Francisco Brito. História da Guerra Brasílica. p.155 63 - COUTO, Domingos do Loreto. Desagravos do Brasil e Glórias de Pernambuco. Recife, Fund. Cultura da Cidade de Recife, 1981. Livro segundo, cap. 13. p. 134. 64 - Vieira é um personagem contravertido. Veio para o Brasil nos primeiros anos do século XVII. Na época da invasão holandesa, teria enriquecido em função da colaboração com os inimigos, tornando-se um grande proprietário de terras e engenhos (quando morreu, possuía dezesseis engenhos e vários currais de gado). Foi governador da Paraíba e depois de Angola. Para maiores detalhes sobre sua vida, conferir MELLO, Evaldo Cabral de. Rubro Veio. O Imaginário da Restauração Pernambucana. Rio de Janeiro, Topbooks, 1997.

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possibilidade para explicar o Calabar mameluco de Calado. Em Pernambuco,

todos sabiam quem era quem, mas fixar o estatuto em texto era outra história65.

Isto é, era preferível alterar uma origem e não mencionar a outra. A traição do

mulato Calabar diminuiria os feitos do outro mulato? De qualquer forma, o tempo

se encarregaria de alterar os fatos.

Evaldo Cabral de Mello tem ajudado a desembaraçar essa história,

desfazendo alguns mitos em torno de nomes, sangues e origens. Ao analisar o

processo de sacralização de uma tetrarquia66 de heróis das guerras holandesas e de

chefes militares da restauração pernambucana pelo imaginário nativista, Cabral de

Mello percebeu que, a respeito de Vieira, não se soube ou não se quis entronizar

um herói mestiço no panteão restaurador. Esse historiador lembrou ainda que um

herói negro - como Henrique Dias - ou índio - como Felipe Camarão - davam a

consciência aos grupos que etnicamente pertenciam. Esses dois heróis

reproduziriam a estrutura da sociedade escravocrata e suas relações de classe. Um

herói mestiço, um desclassificado, seria algo bem distinto, capaz de servir de

símbolo a estratos sociais demograficamente ponderáveis, com a desvantagem de

viverem à margem da ordem escravista, podendo até agir como uma força

desagregadora.67

A temática da traição teria contribuído para a fixação da origem de

Calabar. Se houvesse sido leal ao rei, mereceria recompensas, como diriam as

crônicas, que utilizavam o exemplo de Henrique Dias - o qual embranquecera pela

dedicação à boa causa -, recorrendo ao jogo retórico de contrastar o escuro de sua

tez com a alvura de suas ações. Calabar, ao contrário, “enegrecera-se pela

deslealdade”.68 Quem nunca ouviu esse tipo de comentário ou algum outro

similar, como “o negro de alma branca”?

65 - Os processos de fraude genealógica foram freqüentes na Colônia. Em O Nome e o Sangue, Evaldo Cabral analisou um desses casos ocorridos em Pernambuco, onde o senhor de engenho Filipe Pais Barreto procurou mascarar suas origens de cristão-novo para receber o título de cavaleiro da Ordem de Cristo. Recentemente, Júnia Furtado analisou outro processo de habilitação à Ordem de Cristo, que envolvia Simão Pires Sardinha, filho mais velho de Chica da Silva. Nesse caso, o obstáculo era quase intransponível. Simão reunia todos os “defeitos” passíveis de dispensa: tinha ascendência escrava, era filho ilegítimo e mulato. Cf. Chica da Silva e o Contratador de Diamantes. O Outro Lado do Mito. São Paulo, Cia. das Letras, 2003. 66 - As quatro pessoas escolhidas para figurarem como os heróis foram: o reinol João Fernandes Vieira, o mazombo André Vidal Negreiros, o índio Felipe Camarão e o negro Henrique Dias. Cf. Rubro Veio. (Em especial o capítulo 5). 67 - Idem. p.224. 68 - Idem. p.225.

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Quanto à traição de Calabar, não é mais novidade que os holandeses

puderam contar com a colaboração de muita gente além dele; inclusive gente

graúda da terra, como senhores de engenho. Mas foi a traição do nosso mulato que

ficou famosa, divulgada durante muitos anos como a responsável pela vitória

holandesa. Em Olinda Restaurada, Evaldo Cabral de Mello diluiu esse mito do

grande estrategista causador da derrota portuguesa. Os índios potiguares, aliados

aos holandeses, foram imprescindíveis para a entrada dos estrangeiros no

território. Já a colaboração de Calabar teria sido muito mais destacada pelas fontes

portuguesas que valorizada pelos próprios holandeses, para quem teria sido apenas

um bom guia na terra. Para Cabral de Mello, o julgamento mais equilibrado a

respeito da traição de Calabar é aquele que o entende apenas como um mestiço

pobre que, vivendo em uma sociedade escravocrata, vislumbrou uma

possibilidade de “melhorar de fortuna”.69

Segundo Evaldo Cabral, cristãos-novos, negros, escravos, índios tapuias

ou mestiços que viviam à sombra dos engenhos e das fazendas foram acusados,

em algum momento, de colaboracionistas.70 Essa desconfiança permanente

marcava a vida da colônia e, principalmente, daquelas pessoas, alvos de todas as

recriminações.

Em suas pesquisas nas documentações oficiais da administração colonial,

Russel-Wood percebeu que os mulatos forros eram qualificados a partir de uma

“litania de expressões derrogatórias”, vistos com freqüência como “inimigos

internos” e “símbolos de desaforo”. Segundo Wood, essas caracterizações se

referiam, sobretudo, à “suposta anarquia das pessoas de cor”.71

Embora o mulato tenha sofrido toda espécie de discriminação e

preconceito, a historiografia tem sido unânime em apontar as possibilidades de

ascensão do mulato na escala social, o que caracterizaria uma certa mobilidade e

um amolecimento das estruturas. É certo que os mulatos tiveram chances bem

maiores que os negros, mesmo porque muitos devem ter ganhado suas alforrias

69 - Op. Cit. p.402. 70 - MELLO, Evaldo Cabral de. Olinda Restaurada. Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1975. p. 180; e Rubro Veio. Rio de Janeiro, Topbooks, 1997. p. 269. 71 - Cf. “Autoridades Ambivalentes: o Estado do Brasil e a contribuição africana para a boa ordem na república”. In: SILVA, Maria Beatriz Nizza da (org). Brasil. Colonização e Escravidão. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2000. p.107.

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diretamente dos pais, fruto daquela condescendência paterna tão repreendida pelo

padre Andreoni, o Antonil.

Stuart Schwartz, em seu conhecido trabalho sobre engenhos e escravos na

Bahia, chamou a atenção para a preferência por mulatos e, em menor grau,

crioulos, para os serviços domésticos, artesanais ou especializados na produção de

açúcar. Para esse autor, o favoritismo baseava-se em uma combinação de fatores,

entre os quais as ligações pessoais e viés cultural. Ao analisar dados referentes às

alforrias naquela capitania, Schwartz destacou o elevado índice em favor dos

mulatos, que receberam 45% das cartas de alforrias concedidas entre 1648 e 1745,

embora constituíssem menos de 10% dos escravos na Bahia.72

De fato, não é raro encontrar, na documentação contemporânea,

referências a mulatos em posições por princípio negadas pelos próprios estatutos

jurídicos e sociais daquele momento, que recusavam pessoas de “condição

inferior”.

Russel-Wood dedicou um ensaiou à comprovação de que, apesar de todas

as normas e estatutos contrários à participação de pessoas de origem africana em

cargos civis e eclesiásticos, um número significativo de mulatos exerceu funções

de interesse público e de manutenção da ordem. Os casos estudados ocorreram em

Minas Gerais e São Paulo no século XVIII. Homens de origem africana ocuparam

cargos de juízes ordinários e de vintena, apesar das leis e das reclamações. Para

Wood, estas nomeações deveriam acontecer com uma freqüência regular, uma vez

que eram realizadas em localidades distantes da sede do governo da Coroa e até

mesmo da Câmara mais próxima.73

As nomeações de negros forros e mulatos para o cargo de juiz de vintena

decididas pelo Senado da Câmara de Vila Rica, destacadas por Wood, são

especialmente representativas. A seleção para o cargo era rigorosa, precedida de

dois exames de qualificação. Em vários casos, os vereadores decidiram a favor

das nomeações, afirmando a convicção coletiva de que a aplicação da lei dependia

de uma capacidade provada e não de um acaso de nascimento. Tal decisão

contestava noções estruturais do próprio estado português e era, sobretudo,

contrária às leis do reino. O historiador inglês salientou a ação deliberada e

72 - Segredos Internos. São Paulo, Cia. das Letras, 1995. p. 274-275. 73 - Para as paróquias distantes mais de uma légua dos Senados das Câmaras, devia ser nomeado um juiz da vintena, escolhido entre “os homens bons”.

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consciente daqueles vereadores ao nomear mulatos e negros para os referidos

cargos, em desobediência às ordens régias.

O desajuste entre lei e realidade criava uma série de oportunidades para

uma desobediência civil, para a desordem. Casamentos interditados a pessoas de

condições desiguais, proibições de nomeações de indivíduos por causa de cor de

pele eram normas complicadas de serem mantidas em uma população

predominantemente mestiça.

Nesse mesmo texto, Wood explora ainda a participação de mulatos e

negros no posto de capitães-do-mato, responsáveis pela vigilância regional, e

como membros das Companhias de Milícias74, desempenhando um importante

papel na aplicação da lei e na manutenção da ordem na colônia. A existência de

negros e mulatos ocupando postos que, por princípio, não poderiam alcançar,

demonstra uma certa mobilidade social e mesmo financeira. Contudo, de acordo

com Wood, percepções e atitudes estereotipadas em relação aos indivíduos de

origem africana não desapareceram. Esses fatos demonstram um reconhecimento

por parte das autoridades metropolitanas e coloniais da indispensável contribuição

da gente de cor para a defesa da Colônia contra os inimigos externos e para a

preservação da “boa ordem na República”.75

74 - A milícias ocupavam-se de uma série de atividade militares: escolta do ouro, patrulha nas estradas, proteção dos coletores de ouro, supressão das revoltas no sertão, entre outras, sem contar a participação na defesa do território por agentes estrangeiros. Desde a invasão Holandesa, a participação de negros e mulatos já havia dado provas de sua lealdade e eficiência, contribuindo decisivamente na batalha de Guararapes. 75 - Convém lembrar que Russel-Wood emprega a expressão “boa ordem” com ironia, uma vez que a referência foi utilizada pelo Conde de Assumar, em 1719, ao alegar os motivos que o levou a suspender as concessões de cartas de alforria aos escravos de Minas Gerais: “o maior inconveniente de todos que é povoar este país de negros forros que como brutos não conservam a boa ordem na república”. Cf. Op. Cit. p. 107.

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