5 Re Vista Movimento 2015

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Revista discente do Programa de Pós-graduação em Meios e Processos Audiovisuais da ECA/USP DEZEMBRO 2015 [ISSN: 2238-8699] # 5 # questões sociais # lúdico # sincretismo # valor da arte # som # representação # percepção estética

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    # 5# questes sociais

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  • REVISTA MOVIMENTO | dez 2015 dez 2015 | REVISTA MOVIMENTO 2 3

    Universidade de So Paulo

    Reitor Marco Antonio Zago

    Vice-Reitor Vahan Agopyan___

    Escola de Comunicaes e Artes

    Diretora Margarida Maria Krohling Kunsch

    Vice-Diretor Eduardo Henrique Soares Monteiro___

    Programa de Ps-Graduao em Meios e Processos Audiovisuais

    Coordenador Rubens Machado Jnior

    Vice-Coordenador Eduardo Vicente

    Conselho EditorialAndra C. Scansani, Carolina Berger, Damyler Cunha, Danilo Barana, Edson Costa, Marina Kerber, Raissa Arajo e Tainah Negreiros

    Conselho Cientfico Prof. Dr. Almir Antonio Rosa

    Prof. Dr. Cristian Borges

    Prof. Dr. Eduardo Morettin

    Prof. Dr. Eduardo Vicente

    Profa. Dra. Esther Hamburger

    Prof. Dr. Henri Gervaiseau

    Prof. Dr. Marcos Napolitano

    Profa. Dra. Mariana Villaa

    Profa. Dra. Marlia Franco

    Profa. Dra. Patrcia Moran

    Prof. Dr. Ronaldo Entler

    Profa. Dra. Rosana Soares

    Prof. Dr. Rubens Machado Junior

    A Revista Movimento um peridi-co cientfico semestral, organizado pelos alunos do Programa de Ps-graduao em Meios e Processos Audiovisuais da ECA/USP.

    ISSN: 2238-8699

    ___

    Todos os artigos assinados so de responsabilidade de seus autores e no refletem necessariamente a opi-nio da revista. A reproduo total ou parcial dos mesmos autorizada, mediante apresentao de crditos.

    ___

    REVISTA MOVIMENTOEscola de Comunicaes e Artes - ECA/USPPrograma de Ps-Graduao em Meios e Processos Audiovisuais - PPGMPA

    Av. Prof. Lcio Martins Rodrigues, 443 - Prdio 4Cidade Universitria - ButantCEP 05508-020So Paulo - SP - Brasil

    [email protected]/revimovi

    Foto de capa:

    Frame do video Qi, de Carolina Berger

    Projeto editorial e diagramao:Raissa Arajo

    Reviso :Andra C. Scansani e Edson Costa

    NMERO 5DEZEMBRO 2015

  • REVISTA MOVIMENTO | dez 2015 dez 2015 | REVISTA MOVIMENTO 2 3

    A Revista Movimento chega sua quin-ta edio dando continuidade ao debate aca-dmico entre os discentes de alguns dos mais relevantes programas de ps-graduao do pas que se dedicam aos estudos das audiovisualida-des. Os artigos aqui selecionados demonstram caminhos das pesquisas contemporneas que investem na complexa construo das espe-cificidades do meio audiovisual e colocam em evidncia a pluralidade de interesses e rumos a serem explorados.

    Iniciamos este nmero com Meios e Tempos Mistos: as realidades contidas em WeARin-MoMA, onde Giovanna Casimiro discute o concei-to de realidade a partir da anlise da exposio clandestina WeARinMoMA (2010). A utilizao de aplicativo de Realidade Aumentada para propor novas elaboraes espaciais e temporais no es-pao expositivo a matriz da qual a autora parte para pensar uma mixagem de realidades na pas-sagem da sociedade virtual para a ps-virtual. J em Mise en scne, polifonia e formas de represen-tao no documentrio paraibano A Pedra da Ri-queza, Riccardo Migliore apresenta os contrapon-tos do controle do realizador sobre a maneira de representar, lanando uma reflexo sobre a autorrepresentao dos atores sociais no cine-ma. Outros questionamentos sobre as formas

    de retratar o universo que nos cerca podem ser acompanhados em O desigual no telejornal - O cidado comum e suas apropriaes dos mecanis-mos de produo e expresso audiovisuais sob a tica da recirculao miditica. Em seu texto Jho-natan Mata discute a atuao e a incorporao do cidado comum nos telejornais trazendo a reflexo sobre os filtros que a mdia tradicional utiliza para a escolha de vdeos, com foco nas configuraes estticas, representaes e hori-zontes sociais que gravitam em torno do controle das formas de fazer, circular e ver imagens em emissoras.

    Em As imagens fotogrficas como moldura cinematogrfica Bettina, Wieth Gonalves prope o dilogo entre o pictrico e o flmico nas obras Os Famosos e os Duendes da Morte (Esmir Filho) e Post Tenebras Lux (Carlos Reygadas) e esboa uma reviso crtica acerca do enquadramento ci-nematogrfico a partir de Bazin, Aumont, Crary, Barthes e Dubois. Na sequncia das abordagens estticas como modo de aproximao e reflexo sobre a obra cinematogrfica, Radael Rezende prope pensar como o filme Transformers, de Michael Bay, mantm correspondncias diretas com elementos neobarrocos. O autor de Optimus Prime e a visualidade neobarroca no filme Trans-formers demonstra a permanncia na contem-

    Pluralidade audiovisualConselho Editorial

  • REVISTA MOVIMENTO | dez 2015 dez 2015 | REVISTA MOVIMENTO 4 5

    poraneidade de traos culturais originalmente manifestos em momentos passados da hist-ria. J O som ao redor - violncia invisvel, medo palpvel prope investigar o trabalho de Kleber Mendona Filho a partir da decomposio ana-ltico-Descritiva de sequncias do filme com o intuito de identificar certos fenmenos sociais, como a violncia urbana, o medo e a sensao de insegurana. Ana Carolina Chagas Maral es-trutura seu pensamento atravs do paralelo en-tre o entendimento de Zygmunt Bauman a res-peito desses fenmenos e o conceito de poder disciplinar descrito por Michel Foucault na obra Vigiar e Punir.

    A fantasia o que permeia o artigo Dra-maturgias cinematogrficas ldicas - Os casos Um conto do tempo perdido e O fabuloso destino de Amlie Poulain, de Alexandre Martins Soares. O autor compara filmes realizados em pocas e sistemas sociais distintos dentro dos quais os elementos ldicos so utilizados na conduo de suas narrativas e desenvolvimento do univer-so de suas personagens. Aps lermos De msica a cone: o caminho da trilha sonora atravs da res-significao, de Raquel Vieira Fvaro Petronilho, talvez seja possvel afirmar que quando uma msica j existente passa a ser trilha sonora de uma relevante produo televisiva ou cinema-togrfica e inserida na rotina do espectador - passando a fazer parte de suas experincias e memrias-, a ressignificao a ela atribuda ter o poder de transform-la em mais do que uma msica, mais do que um trilha sonora, mas em um cone. Encerramos a srie de artigos na con-textualizao dos estudos do som no cinema a partir de um painel de sua produo bibliogr-fica com Sound studies no cinema - panorama da produo bibliogrfica dos anos 1970 at o final do sculo XX. Bernardo Marquez Alves prioriza em sua pesquisa as publicaes que desviam-se da centralidade da trilha musical realizadas na Frana, Inglaterra, Estados Unidos, Rssia e Brasil.

    Abrindo a seo Poticas, temos Ener-gia vital em formas sem fim, de Carolina Berger,

    onde a artista multimdia e performer discute a harmonia e o sincretismo entre corpo e tec-nologia. Atravs da elaborao de uma situao de improviso a autora demonstra como chega potica da interdependncia entre gesto e sono-ridade em um vdeo performance. Finalizamos a edio com alguns textos do livro Angle of Yaw, de Ben Lerner. O escritor norte-americano compe seus versos numa mescla de reflexo filosfica sobre a comercializao do espao pblico e o valor da arte contempornea em sequncias lri-cas de poesia e prosa experimental. A seleo e traduo aqui propostas so de Ellen Maria Mar-tins de Vasconcellos em seu ngulo de Guinada.

    Para concluirmos este ano de 2015 com nosso segundo nmero publicado, contamos com uma equipe extremamente comprometida e sem a qual no poderamos alcanar nossos objetivos. Gostaramos de estender nossos agra-decimentos comunidade acadmica dos diver-sos Programas de Ps-Graduao e deixar nos-so convite participao dos novos alunos do Programa em Meios e Processos Audiovisuais. Ao fim desta empreitada desejamos que todos possam desfrutar desta mais nova edio da Re-vista Movimento.

  • REVISTA MOVIMENTO | dez 2015 dez 2015 | REVISTA MOVIMENTO 4 5

    artigos

    Meios e tempos mistos - as realidades contidas em WeARinMoMA| Gioavanna Graziosi Casimiro

    Mise en scne, polifonia e formas de representao no filme paraibano A Pedra da Riqueza | Riccardo Migliore

    O desigual no telejornal - O cidado comum e suas apropriaes dos mecanismos de pro-duo e expresso audiovisuais sob a tica da recirculao miditica | Jhonatan Mata

    As imagens fotogrficas como moldura cinematogrfica - opesestticas de enquadramento em filmes contemporneos| Bettina Wieth Gonalves

    Optimus Prime e a visualidade neobarroca no filme Transformers | Radael Rezende Rodrigues Junior

    O som ao redor - violncia invisvel, medo palpvel | Ana Carolina Chagas Maral

    Dramaturgias cinematogrficas ldicas - Os casos Um conto do tempoperdido e O fabuloso destino de Amlie Poulain | Alexandre Martins Soares

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    Energia vital em formas sem fim | Carolina Berger

    Angle of Yaw, de Ben Lerner | por Ellen Maria Martins de Vasconcellos

    PotiCas

    traduo

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    154

    119

    128s

    um

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    De msica a cone - o caminho da trilha sonora atravs da ressignificao | Raquel Vieira Fvaro Petronilho

    Sound studies no cinema - panorama da produo bibliogrfica dos anos 1970 at o final do sculo XX | Bernardo Marquez Alves

  • REVISTA MOVIMENTO | dez 2015 dez 2015 | REVISTA MOVIMENTO 6 7

    artigoMeios e Tempos Mistos

    Giovanna Graziosi Casimiro

    meios e tempos mistos

    Giovanna Graziosi Casimiro1

    as realidades contidas em WeARinMoMA

    Universidade Federal de Santa Maria

    Resumo: No campo da arte, a emergncia de realidades acarreta o surgi-mento do Meio Expositivo, em um contexto misto, que ultrapassa o con-ceito de hbrido. A exposio WeARinMoMA (2010) exemplifica modos de utilizao da Realidade Mista, na arte contempornea, fortalecendo as relaes entre arte, cincia e tecnologia em uma nova elaborao espao-temporal. Este artigo, no campo da Histria da Arte Contempornea, pro-pe analisar tal episdio e sua configurao mista como ponto de partida para se pensar a transio do virtual para a ps-virtual, em que a mixagem de realidades, espaos e tempos iminente .Palavras-chave: realidade mista, hibridao, arte e tecnologia, meio expo-sitivo, tempo.

    Abstract: In the field of art, the emergence of these realities leads to the onset of Exhibition Medium, in a mixed context that goes beyond the con-cept of hybrid. The WeARinMoMA exposure (2010) exemplifies ways the of the Mixed Reality, in contemporary art, strengthening the relations be-tween art, science and technology and providing a new spatial and tempo-ral development. This article, in the field of History of Contemporary Art, aims to analyze this episode as mixed configuration mode as an starting point between virtual and post-virtual society, where the mix of realities, space and time is imminent.Key words: mixed reality, hybridization, art and technology, exhibition middle time.

    ___________________________________________________

    1 Mestranda pelo Programa de Ps-Graduao em Arte Visuais - PPGART/UFSM, sob orientao da Prof. Dr. Nara Cris-tina Santos (PPGART/CAL/UFSM). Bacharel em Artes Visuais pela Universidade Federal de Santa Maria.

  • REVISTA MOVIMENTO | dez 2015 dez 2015 | REVISTA MOVIMENTO 6 7

    Introduo

    Este texto parte da exposio denominada WeARinMoMA, que ocorreu em 2010,. no Museu

    de Arte Moderna de Nova Iorque. A mostra tem caractersticas prprias, que permitem uma anlise

    mais profunda de tendncias tecnologias da atualidade. Aspectos sobre o papel da instituio, do

    artista e do pblico tambm so fundamentais, no entanto, as discusses apresentadas partem do

    conceito de misto, da Realidade Mista e de como ocorre uma passagem da hibridao para a mixa-

    gem completa entre os mundos fsico e virtual.

    A percepo do tempo e do espao modificada pelos dispositivos interativos, caso do

    mobile e dos wearables, que se popularizam, na segunda dcada do sculo XXI, acelerando o tempo.

    Paulo Virilio (2012) aponta essa acelerao do tempo. Giselle Beiguelman (2013) afirma a existncia

    e uma sociedade que avana do virtual para o ps-virtual, no qual no h dissociao entre fsico e

    virtual, afinal, os estmulos se misturam, no cotidiano do usurio. Trata-se da Cultura da Interface,

    que Steven Johnson (2001) defende, na qual o homem e o dispositivo se relacionam livremente, de

    maneira cada vez mais intuitiva.

    Deste modo, surgem muitas realidades, resultantes da mixagem de tempos e espaos va-

    riados atravs da tecnologia digital. WeARinMoMA representa estes aspectos, no microcosmo expo-

    sitivo, atualizando pontos de vista sobre arte contempornea e tecnologia. A mostra permite avaliar

    a hibridao e a mixagem (a partir da tecnologia de Realidade Mista), a perceber o lado positivo e

    negativo da condio ps-virtual, e a compreender a existncia de uma possvel Realidade e Tempo

    Inconscientes, junto a outros que se desdobram dentro da conscincia coletiva.

    O Hbrido e o Misto

    A sociedade do sculo XXI est marcada pelo regime de acelerao do tempo afirmado por

    Virilio (2012), devido aos avanos computacionais e cientficos. Ele constata que existe uma realidade

    aumentada, e acima de tudo, uma acelerao da realidade que, em muitos casos, est embasada

    em situaes de imposio e medo, que habitam o inconsciente da sociedade. A compresso tem-

    poral, segundo Virilio, um evento que modifica o cotidiano e gera a acelerao da vida comum, a

    qual resulta em uma instabilidade e no medo gerado pelo excesso de estmulos frenticos. Com o

    surgimento de mquinas cada vez mais inteligentes, redes amplas e eficazes, o homem da ps-vir-

    tualidade usufrui de tempo e espao prprios da cibercultura, os quais fragmentam a construo de

    uma realidade comum constante, desdobrada em muitas realidades potenciais, em oscilao. Nesse

    contexto, a hibridao se torna um termo fundamental para a compreenso do estabelecimento da

    sociedade hiperconectada e da cultura contempornea2.

    artigoMeios e Tempos Mistos

    Giovanna Graziosi Casimiro

  • REVISTA MOVIMENTO | dez 2015 dez 2015 | REVISTA MOVIMENTO 8 9

    Segundo Santaella (2003) o teatro, a pera, a performance so exemplos de artes hbridas,

    pois as linguagens e as tcnicas se misturam, confirmando que, desde o final do sculo XIX, as artes

    abandonaram as estruturas de espao e tempo tradicionais. Edmond Couchot (2003) apresenta o ter-

    mo hibridao, no contexto da arte, atravs das tecnologias digitais, como uma forma de arte e uma

    tendncia esttica, cujo substrato so as tecnologias fundamentadas no clculo computacional. O

    termo hbrido deriva do latim hibrida, que significa bastardo, de sangue mestio (posteriormente,

    alterado para hybrida, proveniente do grego hybris que significa ultraje, excesso, o que ultrapassa a

    medida). Do ponto de vista da biologia, a partir do sculo XIX, o termo empregado para designar o

    que composto de elementos de natureza diferentes e resultado do cruzamento de espcies ou g-

    neros distintos. Na atualidade, significa principalmente o que provm de duas espcies diferentes,

    caracterizando o cruzamento gentico de espcies distintas de plantas ou animais.

    O campo da Arte e Tecnologia considerado, por Couchot, uma arte da hibridao, na qual

    as formas da imagem e o processo binrio se misturam. Entende-se, neste texto, a hibridao como

    a unio de tcnicas e tecnologias, partindo da natureza do computador para produes interativas.

    A hibridao se torna muito prxima da materialidade das propostas artsticas digitais, de sua cons-

    tituio maqunica e tecnolgica, pois se relaciona com o modo como o dispositivo interage com o

    usurio. No entanto, destaca-se uma remodelao alm da tecnicidade das obras interativas e hbri-

    das. Percebe-se as distores e mixagens sobre o tempo e o espao, em modos revolucionrios. O

    tempo e o espao contemporneos se constroem a partir de prismas completamente diferentes de

    outros momentos da histria, pois a experincia se d em um tempo cheio de realidades possveis,

    que constituem muitos espaos e modos de percepo entre plano fsico e o virtual. As escolhas de

    um usurio sobre um dispositivo mvel, por exemplo, podem lev-lo a diferentes resultados, sobre-

    tudo, s sensaes especficas vivenciadas em rede.

    Com a onipotncia, oniscincia e onipresena online, a concepo espao-temporal precisa

    ser estudada, especialmente, do ponto de vista da arte contempornea, atravs das relaes sen-

    sveis geradas nas obras interativas. Sendo assim, a principal diferena percebida entre o hbrido e

    o misto reside nos objetos aos quais se referem. Enquanto o hbrido se refere tecnica, tecnologia

    ou sistema utilizado em uma aplicao digital (determinando o que do mundo fsico e o que

    do mundo virtual, em um mesmo sistema de funcionamento), o misto est ligado existncia de

    uma condio indissocivel entre o fsico o virtual, incluindo o tempo, o espao a as realidades. Ele

    representa o tempo misto, no qual a ps-virtualidade se estabelece, confirmando a ideia de que a

    conexo entre as redes nunca acaba e que o campo virtual uma continuidade do mundo fsico. ___________________________________________________

    1 http://www.itaucultural.org.br.

    artigoMeios e Tempos Mistos

    Giovanna Graziosi Casimiro

  • REVISTA MOVIMENTO | dez 2015 dez 2015 | REVISTA MOVIMENTO 8 9

    Essa premissa pode ser observada no comportamento dirio dos indivduos, definido pelo regime

    de acessos na web, s redes sociais, aos aplicativos. Esse mundo misto, cheio de cruzamentos entre

    tempos, espaos e realidades, , fortemente, evidenciado pelo uso da tecnologia mobile, pois ela rev

    a condio da presena e do deslocamento do usurio.

    Johnson (2001) atesta a existncia de uma negociao na entrada e sada de dados e in-

    formaes entre linguagem de mquina e signos das linguagens humanas. Segundo ele, a interfa-

    ce computacional agente de dilogo com o usurio, propiciando a interatividade. Henry Jenkins

    (2014) apresenta a cultura da conexo, a qual se estabelece pela circulao e pelo fluxo (passagem

    da distribuio para a circulao). Segundo Falkheimer e Jansson (2006), a popularizao dos telefo-

    nes celulares e de servios de localizao, faz com que a sociedade viva uma realidade de no sense of

    place onde o lugar superado pela comunicao massiva e pelo fluxo, gerando uma nova noo de

    lugar, presena, espao, tempo e realidade. atravs desse nvel de envolvimento que determinadas

    tecnologias se fixam na cultura, promovendo mudanas pontuais na histria, e destacando certos

    tipos de interface computacional.

    A mobilidade se popularizou principalmente pelo lanamento de handhelds (conhecidos

    como palm) e de telefones celulares. Considera-se que a computao mvel comeou em meados

    de 1992, com a introduo de um handheld chamado Newton, pela Apple. A tecnologia de geoloca-

    lizao viabiliza uma srie de facilidades, e os wearables so uma variao tcnica dos dispositivos

    mveis, os quais se adaptam ao corpo, em formas similares aos culos e relgios, at o momento.

    Projetos como o Google Glass e Android Wear so desenvolvidos para se unir ao corpo humano, do

    modo mais natural possvel. Porm, esse tipo de dispositivo ainda est em processo de aceitao,

    e caso se torne comum, potencializar a percepo do mundo misto, pois tecnologias de Realidade

    Mista sero comumente utilizadas, desde o campo publicitrio at a medicina, introduzindo inme-

    ros objetos virtuais no plano fsico, diria e ininterruptamente.

    A concepo do misto, aqui proposta, est diretamente ligada utilizao da tecnologia

    de Realidade Mista, pois ela determina a insero de objetos virtuais sobre o plano fsico. O termo

    Realidade Mista ou Realidade Misturada pode ser definido como a somatizao de objetos virtuais

    gerados por computador com o ambiente fsico, viabilizando a conexo de espaos fsicos atravs de

    objetos e ambientes virtuais. Paul Milgram e Fumio Kishino (1994) definem o conceito de Realidade

    Misturada como "qualquer lugar entre os extremos de uma Contnua Virtualidade". Cludio Kirner

    (2004) ratifica que a Realidade Mista permite ao usurio, ver, ouvir, sentir e interagir com informa-

    es e elementos virtuais inseridos no ambiente fsico, atravs de algum dispositivo tecnolgico. Se-

    gundo ele a Realidade Mista vai alm da capacidade da Realidade Virtual de concretizar o imaginrio

    artigoMeios e Tempos Mistos

    Giovanna Graziosi Casimiro

  • REVISTA MOVIMENTO | dez 2015 dez 2015 | REVISTA MOVIMENTO 10 11

    ou simular, pois a Realidade Mista incorpora elementos virtuais ao ambiente fsico. No se trata de

    um ambiente puramente virtual, cuja dinmica esquece o mundo fsico do usurio, mas de um am-

    biente realista, no qual o usurio no percebe a diferena entre objetos virtuais e fsicos. Trata-se de

    uma cena s, sem distino de elementos.

    A Realidade Mista engloba categorias: a Realidade Aumentada e Virtualidade Aumentada.

    A primeira ocorre quando objetos virtuais so colocados no mundo fsico, atravs de interfaces adap-

    tadas para visualizar e manipular objetos virtuais. A segunda ocorre quando elementos fsicos so

    inseridos no mundo virtual, por meio de interfaces que transportam o usurio, as quais permitem ver

    e manipular elementos fsicos, ali inseridos. Segundo Kirner (2013), o termo Realidade Aumentada

    muito confundido com o termo Realidade Mista. No entanto, o primeiro compe o segundo, e cada

    qual possui especificidades tcnicas. A Realidade Mista abrange tanto a Realidade Aumentada quan-

    to a Virtualidade Aumentada, e como Paul Milgram (1994) delimita, pode ser classificada de acor-

    do com seus diversos modos de visualizao: a) realidade aumentada com monitor (no imersiva)

    que sobrepe objetos virtuais no mundo fsico; b) realidade aumentada com capacete (HMD) com

    viso ptica direta (seethough); c) realidade aumentada com capacete (HMD) com viso de cmera

    de vdeo montada no capacete; d) virtualidade aumentada com monitor, sobrepondo objetos reais

    obtidos por vdeo ou textura no mundo virtual; e) virtualidade aumentada imersiva ou parcialmente

    imersiva, baseada em capacete (HMD) ou telas grandes, sobrepondo objetos reais obtidos por vdeo

    ou textura no mundo virtual; d) virtualidade aumentada parcialmente imersiva com interao de

    objetos reais, como a mo, no mundo virtual.

    Ainda segundo Kirner (2013), um ambiente de Realidade Mista pode operar com a partici-

    pao simultnea de vrias pessoas, em processos colaborativos, usando interfaces computacionais

    especficas. Essa noo de Realidade Mista colaborativa construda em espaos fsicos e virtuais

    compartilhados, cujo acesso ocorre entre vrios usurios em um mesmo local (o usurio visualiza

    e interage com os elementos reais e virtuais, atravs de capacete com cmera e rastreadores), ou

    remotamente (so gerados ambientes virtuais, em espaos compartilhados com objetos virtuais,

    interativos). Especialmente no campo da comunicao, a Realidade Mista pode funcionar como im-

    pulsionadora dos processos e assimilaes de conhecimento.

    A Realidade Aumentada combina objetos fsicos e virtuais no mundo fsico e os executa in-

    terativamente em tempo real. Viabiliza o alinhamento de objetos fsicos e virtuais entre si e, segundo

    Azuma (2001), aplica-se a todos os sentidos, incluindo audio, tato, fora e cheiro. Kirner (2013) a

    caracteriza atravs dos seguintes pontos: a) uma particularizao de Realidade Mista, quando o

    ambiente principal o fsico ou h predominncia do atual; b) o enriquecimento do ambiente fsico

    artigoMeios e Tempos Mistos

    Giovanna Graziosi Casimiro

  • REVISTA MOVIMENTO | dez 2015 dez 2015 | REVISTA MOVIMENTO 10 11

    com objetos virtuais, usando algum dispositivo tecnolgico, funcionando em tempo real; c) uma

    melhoria do mundo fsico com textos, imagens e objetos virtuais, gerados por computador; d) a

    mistura de mundos fsicos e virtuais em algum ponto da realidade/virtualidade contnua que conecta

    ambientes fsicos a virtuais (Paul Milgran firma isso em 1994).

    So viabilizadas aplicaes no campo do ensino, de treinamento e no campo da arte, en-

    quanto obra ou dinmica institucional/expositiva. Para sua execuo necessrio: 1- um objeto

    fsico com algum tipo de cdigo/marca ou referncia, possibilitando a interpretao pelo aplicativo,

    gerando o objeto virtual. 2- cmera ou dispositivo de captao e transmisso da imagem do objeto

    fsico para que o software seja capaz de interpretar o cdigo de referncia. A construo do objeto

    virtual ocorre atravs da captura do objeto fsico frente a um dispositivo especfico (cmera), o qual

    interpreta e envia as imagens obtidas, em tempo real.

    Segundo Beiguelman (2013), o uso cada vez mais comum de etiquetas inteligentes baseadas

    em cdigos de barra com grande capacidade de armazenamento de informaes, caso dos QR-Code

    (Quick Response Code), indica o gradual processo de coisificao das redes (e nesse ponto, a discus-

    so sobre a Internet das Coisas surge mais uma vez). Os QR-Codes so interpretados pela cmera do

    celular com programas especficos para a leitura de cdigo. Sua principal funo a expanso de

    informaes e dos dados do plano virtual para o plano fsico, atravs da interface interativa.

    Para o desenvolvimento de aplicaes de Realidade Aumentada so combinados softwa-

    res a equipamentos como cmeras digitais, smartphones, GPS. H pesquisas que indicam, que no

    futuro, ser possvel expandir o monitor dos monitores para o ambiente fsico, como em janelas ou

    superfcies onde os programas sero executveis. De acordo com o campo da computao, o funcio-

    namento da Realidade Aumentada dividido em sistemas, classificados pelo display utilizado, o qual

    pode variar em ptica Direta, Vdeo ou Monitor e Projeo.

    A Virtualidade Aumentada definida, segundo Kirner (2013), como uma particularizao da

    Realidade Misturada quando o ambiente principal virtual ou h predominncia do virtual. Baseia-

    se no enriquecimento do ambiente virtual com elementos fsicos pr-capturados ou capturados em

    tempo real. Ou seja, seu funcionamento tcnico exatamente o oposto ao da Realidade Aumen-

    tada. No campo da arte, inmeras obras definidas enquanto Realidade Virtual ou Realidade Au-

    mentada so, de fato, Virtualidade Aumentada, na qual possvel inserir objetos fsicos interativos

    no ambiente virtual. Essa captura feita atravs de cmeras de vdeo ou sensores, em tempo real.

    Sendo assim, o potencial da Virtualidade Aumentada est nas simulaes do mundo fsico, manipu-

    ladas em tempo real.

    artigoMeios e Tempos Mistos

    Giovanna Graziosi Casimiro

  • REVISTA MOVIMENTO | dez 2015 dez 2015 | REVISTA MOVIMENTO 12 13

    Nesse ponto Kirner (2013) esclarece as especificidades de cada tipo de Realidade:

    Realidade Virtual (RV): est, unicamente, no mundo virtual. Transfere o usurio para o

    ambiente virtual e prioriza as caractersticas de interatividade do usurio;

    Realidade Mista/Misturada (RM): est entre o mundo fsico e o virtual, transitando atra-

    vs da interatividade entre as camadas de realidade. Divide -se entre Realidade Aumentada e Virtua-

    lidade Aumentada;

    Realidade Aumentada (RA): possui um mecanismo para combinar o mundo fsico com

    o mundo virtual, no entanto, mantm o senso de presena do usurio no mundo fsico e enfatiza a

    qualidade das imagens e a interao do usurio;

    Virtualidade Aumentada (VA): possui mecanismo para combinar o mundo virtual com

    elementos trazidos do mundo fsico, o que torna a interatividade do usurio um elemento inserido

    no ambiente virtual;

    Nesse ponto Kirner (2013) esclarece as especificidades de cada tipo de Realidade: Beiguel-

    man (2013) entende o sucesso da Realidade Aumentada devido aproximao gerada entre o plano

    virtual e percepo humana, ideia confirmada por Pranav Mistry3, que aponta que a integrao de

    informaes aos objetos fsicos do cotidiano, contribuem na eliminao do abismo entre o plano

    virtual e o plano real, e confirmam a existncia de um plano nico que ainda nos mantm humanos,

    porm mais conectados do que nunca. Sendo assim, a Realidade Mista funciona como uma soma

    contnua atravs do dispositivo/interface, onde objetos virtuais so adicionais ao ambiente fsico e

    vice-versa. As categorias acima trabalham com um sistema interativo em rede local fixa, sem cone-

    Figura 01 - (www.devmedia.com.br)

    ___________________________________________________

    3 Disponvel em: http://www.ted.com/talks/pranav_mistry_the_thrilling_potential_of_sixthsense_technology?langua-ge=en. Acesso em: 02/03/2015.

    artigoMeios e Tempos Mistos

    Giovanna Graziosi Casimiro

  • REVISTA MOVIMENTO | dez 2015 dez 2015 | REVISTA MOVIMENTO 12 13

    ___________________________________________________

    4 GONALVES, 2004: 54.

    xo com a nuvem de dados. Com o acesso wi-fi e a internet mvel (3G/4G), a aplicao de Realidade

    Mista pode ocorrer via mobile e em reas externas, caso do espao urbano. Surgem aplicativos es-

    pecficos como o Aurasma, Layar e Junaio, destinados para a criao de objetos virtuais e implemen-

    tao de Realidade e Virtualidade Aumentada, em qualquer local.

    Portanto, a afirmao de uma realidade mista constante pertinente, e comprova a ps-

    virtualidade (proposta por Beiguelman) e justifica a existncia de inmero tempos, espaos e per-

    cepes. No campo da Arte e Tecnologia, artistas tm explorado as potencialidades da tecnologia de

    Realidade Mista h vrios anos, no entanto, este texto apresenta um episdio em especial, no qual o

    mundo fsico diretamente alterado, gerando consequncias que o modificam, em uma comprova-

    o de que o mundo no mais fsico e virtual, e sim, constantemente, misto.

    WeARinMoMA: uma reviso das realidades e da percepo.

    Frieling (2014) defende a ao questionadora dos artistas em relao s instituies. Segun-

    do ele, h um pedido de colaborao aos museus, para que participem formalmente como co-pro-

    dutores das obras de arte contemporneas. Tradicionalmente, os museus assumem uma estrutura,

    supostamente, neutra na organizao de mostras e acervos. Gonalves (2004) define o padro do

    espao apropriado para a arte moderna como aquele que apaga sua funo social, no entanto, na

    atualidade, essa neutralidade um equvoco, pois museus e instituies culturais so questionados

    quanto a sua relao com os artistas e o pblico. Enquanto o museu tenta manter seu espao expo-

    sitivo como lugar neutro, no sculo XXI, a idia de lugar para os artistas contemporneos assume

    importncia como linguagem. Nesse aspecto, a arte assume a vocao de explorar a construo do

    espao e, como sintaxe bsica da criao artstica, utiliza-se da dimenso espacial.4

    O MoMA exemplifica essa tentativa de neutralizao, ao oferecer uma sensao de privaci-

    dade, reforada por Gonalves (2014), pois suas salas so pintadas de branco, com mnima interfe-

    rncia sobre as obras. A distribuio das peas feita com certo alinhamento altura do olhar do

    visitante e simetria. No entanto, o Museu de Arte Moderna de Nova Iorque, questionado por um

    grupo de artistas, em 2010. WeARinMoMA (outubro de 2010) uma exposio clandestina realizada

    no MoMA por dois artistas, Sander Veenhof- Holanda e Mark Skwarek- EUA (participantes do Mani-

    fest.AR), que contesta a ao do museu, diante do avano da tecnologia digital:

    distncia, via GPS, a dupla de artistas acionou comandos de inform-tica e fez com que dezenas de peas tridimensionais produzidas por eles e por outros 30 artistas convidados surgissem na tela dos celulares e tablets de quem circulava pelo MoMA naquele dia. (...) Em vez de se

    artigoMeios e Tempos Mistos

    Giovanna Graziosi Casimiro

  • REVISTA MOVIMENTO | dez 2015 dez 2015 | REVISTA MOVIMENTO 14 15

    enfurecer com os artistas, a diretoria do museu aplaudiu o atrevimento e incorporou as peas virtuais sua coleo. E, por conta disso, diver-sos museus dos Estados Unidos e da Europa pararam para repensar sua relao com a tecnologia. Desde ento, muitos se debruaram sobre a realidade aumentada e lanaram projetos vanguardistas 5.

    A partir de ento, diversas instituies, como o Museu de Histria Natural de Washington, o

    Brooklyn Museum de Nova Iorque, o Sukiennice Museum da Cracvia, o Louvre de Paris, passaram a in-

    corporar em suas dinmicas espaciais e institucionais tais possibilidades tecnolgicas. O Museum of

    London desenvolveu um aplicativo chamado Streetmuseum, que permite acessar, em meio ao espao

    urbano, mais de 200 imagens de seu acervo atravs da realidade aumentada.

    Para seu funcionamento, utiliza-se a Realidade Aumentada, dispositivos mveis e o apli-

    cativo desenvolvido pelo grupo. Atravs da estrutura fsica e das obras permanentes do acervo do

    MoMA, visualiza-se a exposio virtual, simultaneamente, s obras consagradas do modernismo.

    Trata-se de uma proposta de dissoluo do espao expositivo material e um convite para a institui-

    o rever seu padro. A interatividade ocorre via obra e o Meio Expositivo se estabelece no ambiente

    institucional, especificamente, pois depende da estrutura fsica do MoMA como desencadeadora da

    dinmica interativa de Realidade Aumentada. Surge um ciclo de interatividade entre o pblicoo-

    brameio. Ele faz com que a obra visvel por Realidade Aumentada no esteja no espao de modo

    permanente, pois se apropria da realidade fsica pela ao do interator. Significa que a existncia da

    ___________________________________________________

    5 Disponvel em: m.oglobo.globo.com/cultura/museus-dos-eua-europa-lancam-projetos-vanguardistas-de-realidade-au-mentada-4961365 > Acesso em: 22/04/2014.

    Figura 02: WeARinMoMA (www.sndrv.nl/moma)

    artigoMeios e Tempos Mistos

    Giovanna Graziosi Casimiro

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    6 JENKINS, 2014: 241.7 JENKINS, 2014: 241.

    obra diretamente proporcional ao pblico, fato confirmado por Gonalves (2004) ao avaliar que a

    exposio um campo aberto para o visitante construir a sua histria. Segundo ela, o espao e o tem-

    po so suporte do ato de visitao, que em cada instante de deslocamento gera uma vivncia e seu

    esquecimento. As realidades construdas so resultado da interatividade, que engloba os mtodos

    de visitao, exposio, os tipos de interfaces e o nvel de sensibilizao das aplicaes. A imerso

    e incluso fortalecem as relaes entre pblico, obra e Meio. O carter inclusivo est presente em

    WeARinMoMA, cujo acervo exposto no existiria sem o pblico ativo.

    Percebe-se como a relao tradicional de poder abalada. Segundo Jenkins (20104), os co-

    laboradores so cmplices dos regimes dominantes de poder, ainda que, muitas vezes, usem sua

    incorporao para redirecionar energias e recursos. No contexto de WeARinMoMA, os colaboradores

    so os artistas, que utilizam a dinmica interativa questionadora, ao mesmo tempo em que forta-

    lecem a identidade da instituio. A mostra se torna uma afirmao da natureza experimental do

    museu, e o regime dominante de poder revisto atravs do compartilhamento de funes com o

    pblico. O resultado a incluso da exposio clandestina no acervo do MoMA, fato que revisa o

    padro estrutural diante da possibilidade de obsolescncia.

    Esse conjunto de questionamentos evidencia a necessidade de rever modelos museais, o

    desejo de incluso dos artistas em grandes acervos e a importncia do pblico na ao institucional.

    Trata-se do pressuposto de que a circulao se constitui como uma das foras-chave que do for-

    ma6 ao ambiente de mdia e de cultura contemporneos. A exposio clandestina foi um sucesso

    devido fora das mdias sociais, ao poder de propagao e compartilhamento de informaes, pois

    essa ao parte de uma crena de que, se formos capazes de entender melhor os fatores institucio-

    nais e sociais que formataram a natureza da circulao, poderemos nos tornar mais eficazes com a

    colocao de mensagens alternativas em circulao7.

    Realidades e tempos mistos

    Beiguelman faz pensar a contraposio da cultura impressa computacional, e essa mes-

    ma relao pode ser feita entre os espaos de exposio analgicos e interativos, no campo da arte.

    Ela faz uma crtica construo de um presente, cujas expectativas parecem se concentrar em um

    futuro, especialmente envolto no entorpecimento da tecnologia binria. A constante lgica da novi-

    dade aponta um regime caracterstico de uma sociedade conectada em rede, a qual transita entre

    estgios de espao e tempo. Antes da presena do mundo virtual, o homem trabalhava a partir do

    artigoMeios e Tempos Mistos

    Giovanna Graziosi Casimiro

  • REVISTA MOVIMENTO | dez 2015 dez 2015 | REVISTA MOVIMENTO 16 17

    plano fsico e desenvolvia planos ficcionais de tempo e espao, no mbito mental (imaginao). No

    mundo contemporneo, percebe-se camadas de espao e tempo, as quais criam um tempo nico

    indissocivel da percepo do passado e das expectativas do futuro. A hiperconexo e a virtuali-

    dade trazem experincias extra espaciais e temporais, que despertam uma conscincia humana

    diferenciada. WeARinMoMA evidencia uma nova relao entre espao, tempo e interator, no contexto

    da arte, pois estabelece uma srie de realidades simultneas, segundo as decises do usurio sobre

    o dispositivo interativo.

    medida que a tecnologia binria gera interfaces intuitivas e estreita relaes com a sensi-

    bilidade, o espao elaborado, diferentemente, do conceito tradicional, pois expande seus limites.

    Essa nova relao com o espao age sobre as formas do espao expositivo, e gera padres prprios

    de um ambiente conectado. A presena dos dispositivos, no campo da arte, remodela a presena

    no espao de exposio, o tempo, a realidade, e a condio da autoria (questo pertinente a outros

    perodos da histria da arte, mas que, nessa pesquisa, pensada a partir da produo em arte e tec-

    nologia). O espao se torna um condutor de fluxos atravs de interatividade e da mobilidade, pois,

    devido ao nvel de envolvimento oferecido pela interface, surgem relaes especficas entre espao,

    interator e dispositivo. Cada usurio tem uma determinada vivncia, em potencial, qual desencadeia

    espaos, tempos e realidades diferentes. A existncia de realidades latentes em espaos interativos,

    torna possvel uma aproximao com a teoria dos mundos paralelos ou dos mltiplos universos do

    campo da fsica, na qual existem diferentes verses de um mesmo tempo e espao, os quais so

    potncias e surgem divergentes em suas prprias realidades. Trata-se de conceber os mundos po-

    tenciais existentes que geram uma teia de realidades possveis, na qual o vnculo construdo entre

    tecnologia binria e espao fsico condicionado pela interatividade.

    O espao permeado por dados pode ser entendido a partir da troca de conhecimentos en-

    tre usurio e computador, que segundo Daniela Kutschat Hanns (2014), gera um ambiente onipre-

    sente. Para ela, esse ambiente estimula habilidades cognitivas de criar empatia, de reconhecer e

    decifrar relaes, de aprender a compartilhar. Johnson (2001) afirma que a paisagem da informao

    representa, simultaneamente, um avano tecnolgico e uma obra de criatividade sem precedentes,

    capaz de alterar o modo como as mquinas so utilizadas e, principalmente, imaginadas. Percebe-se

    a construo de um presente informacional e de um conceito diferenciado de espao, definido pe-

    las regras da computao sobre o mundo fsico que se torna misto, tal qual a Realidade Mista, cuja

    dinmica torna visvel e crvel as trocas estabelecidas entre mundo fsico e virtual.

    As tecnologias de Realidade Virtual e Mista se popularizam a partir das interfaces mveis,

    e devido aos servidores velozes e internet sem fio, a nuvem de dados construda, modificando

    artigoMeios e Tempos Mistos

    Giovanna Graziosi Casimiro

  • REVISTA MOVIMENTO | dez 2015 dez 2015 | REVISTA MOVIMENTO 16 17

    o espao por fluxos imagticos virtuais, pelo design de interface e pela transformao na natureza

    da imagem. A realidade construda paralelamente ao ciberespao e aos ambientes virtuais, e sua

    concepo vai alm do mundo fsico, pois se constri por redes globais, atravs de comunidades, em

    uma noo de espao e tempo particular. As mltiplas realidades so evidenciadas por meio das

    tecnologias de Realidade Virtual e da Realidade Mista.

    Segundo Grau (2003), ao longo da histria da arte, percebe-se a construo de vrias rea-

    lidades, individual e coletivamente. Alm do campo artstico, na neurobiologia h descobertas que

    questionam o que entendido como realidade, pois ela no representa uma verdade absoluta, e

    sim, o que possvel ou no observar. Ela est diretamente ligada aos nveis da percepo humana,

    segundo a conduta mental e fsica, que limita a conscincia da realidade, pois a existncia de uma

    realidade leva a muitas outras.

    Percebe-se uma gradao da conscincia das realidades que cercam a sociedade atual,

    oscilando entre as Realidades Mistas e as realidades conscientes/inconscientes. Beiguelman (2010)

    afirma a cultura hbrida, a qual refora a ideia proposta da Realidade Inconsciente, que engloba

    todo o comportamento humano contemporneo (e suas outras realidades). Nela, existe o mundo

    virtual e o mundo fsico em constante estado de trocas, no entanto, no h uma conscincia coletiva

    dessa condio. Dentro da Realidade Inconsciente existe a Realidade Mista, que torna perceptvel as

    Figura 03: Sistema insituinfluxu (acervo prprio)

    artigoMeios e Tempos Mistos

    Giovanna Graziosi Casimiro

  • REVISTA MOVIMENTO | dez 2015 dez 2015 | REVISTA MOVIMENTO 18 19

    constantes trocas entre fsico e virtual. A interatividade e a Realidade Mista, permitem ao interator

    acessar sua Realidade Consciente, na qual o mundo fsico est no virtual, e vice-versa. Configura-se

    um desdobramento da Realidade Inconsciente sobre a Realidade Mista, e est sobre as Realidades

    Virtual e Aumentada.

    Consideraes

    H uma visvel passagem da hibridao para a mixagem, do ponto de vista da tecnologia

    binria, que marca a existncia de desdobramento mais complexos, no campo da arte, os quais ul-

    trapassam as questes tcnicas. medida que a tecnologia computacional se torna intuitiva, mvel

    e geolocalizada, ela consolida uma srie de novas percepes do tempo, do espao e da realidade.

    O resultado o surgimento de aes artsticas que exploram a hibridao de tcnicas interativas e,

    sobretudo, a mixagem de realidades potenciais. A tecnologia de Realidade Mista uma aliada na

    elaborao de propostas interativas contemporneas, e permite a construo de obras de arte que

    exploram o espao urbano, a movimentao do usurio, seu corpo, suas emoes.

    A ps-virtualidade vem tona com a percepo de um mundo misto, determinado pelos

    fluxos de informaes entre o suposto mundo fsico e o virtual. Atravs de WeArinMoMA, percebe-se

    o quanto uma proposta expositiva pode ser inovadora ao utilizar tecnologias computacionais, pois

    a mostra tambm questiona o sistema tradicional e a gesto do museu, trazendo discusso a real

    diviso de poderes no campo institucional.

    Desse modo, os seguintes aspectos so ressaltados para uma reflexo profunda deste texto:

    (a) a existncia de um mundo e tempo mistos, condicionados em uma realidade inconsciente, a qual

    pode ser reelaborada, conscientemente, medida que a sociedade percebe a constante insero das

    redes e dos sistemas interativos; (b) a existncia da hibridao e da mixagem, enquanto termos com-

    plementares, porm no equivalentes; (c) a utilizao da Realidade Mista enquanto tcnica crescen-

    te em elaboraes artsticas, na ltima dcada; (d) os novos graus de construo de tempo e espao,

    que se distorcem em instabilidades, a partir de sistemas interativos, nos quais cada nova deciso do

    usurio gera uma mudana espao-temporal.

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

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    artigoMeios e Tempos Mistos

    Giovanna Graziosi Casimiro

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    artigoMeios e Tempos Mistos

    Giovanna Graziosi Casimiro

  • REVISTA MOVIMENTO | dez 2015 dez 2015 | REVISTA MOVIMENTO 20 21

    artigoMise en scne no documentrio, polifonia e formas de representao no filme paraibano A pedra da riqueza

    Riccardo Migliore

    mise en scne, polifonia e formas de representao no filme paraibano a Pedra da riqueza

    Riccardo Migliore1

    Universidade Federal da Paraba

    Resumo: Atravs deste paper apresentamos os resultados da anlise fl-mica de A Pedra da Riqueza (Vladimir Carvalho, 1975), com nfase na pro-blemtica e complexa questo da mise en scne em sua(s) vertente(s) pe-culiar(es) do domnio cinematogrfico documental. A anlise foi efetuada de acordo com o mtodo sugerido por Manuela Penafria (2009). O filme de Carvalho particularmente til para o estudo da mise en scne no do-cumentrio devido s mltiplas esferas de representao e polifonia de "vozes" que conduzem a narrao.Palavras-chave: cinema; documentrio; esttica; mise en scne; represen-tao

    Abstract: Through this paper we present the results of the film analysis of A Pedra da Riqueza (Vladimir Carvalho, 1975), emphasizing the complex topic of the mise en scne in the plural modalities peculiar to non-fiction films. The analysis was made according to the method suggested by Man-uela Penafria (2009). Carvalho's film is particularly useful to study the mise en scne in documentary films due to the multiple spheres of representa-tion and the polyphony of "voices" conducing the narration.Key words: cinema; documentary; aestethics; mise en scne; representa-tion

    ___________________________________________________

    1 Mestre pelo Programa de Ps-Graduao em Comunicao e Culturas Miditicas da Universidade Federal da Paraba. Pesquisa sobre cinema, documentrio, mise en scne, representao, fotografia. membro do Grupo de pesquisa em cinema (GECINE) do PPGC/UFPB, coordenado pelo Prof. Dr. Bertrand de Souza Lira, que foi tambm seu orientador durante o mestrado. Alm de pesquisador, Riccardo realizador audiovisual (de oramento zero) e foi parecerista cre-denciado pela SAv/MinC ao longo de cinco anos.

  • REVISTA MOVIMENTO | dez 2015 dez 2015 | REVISTA MOVIMENTO 20 21

    Da pesquisa prvia, do mtodo, do objeto e da adequao do mesmo visando discusso

    sobre mise en scne no documentrio

    Neste artigo apresentamos os resultados de nosso estudo inerente encenao no docu-

    mentrio de Vladimir Carvalho, no contexto da dissertao de mestrado intitulada Formas de repre-

    sentao no cinema: uma reflexo sobre o uso da mise en scne nos filmes documentrios paraibanos (MI-

    GLIORE, 2015), trabalho acadmico no qual ponderamos acerca das possibilidades e problemticas

    ligadas ao cinema documental e nele, abordamos a aplicao da mise en scne no cinema paraibano,

    ao analisarmos cinco filmes, sendo eles: Aruanda (Linduarte Noronha, 1960), A pedra da riqueza

    (Vladimir Carvalho, 1975), Imagens do declnio, ou Beba Coca Babe Cola (Bertrand Lira, Torquato Joel,

    1981), Passadouro (Torquato Joel, 1999) e Oferenda (Ana Brbara Ramos, 2009). No presente paper,

    especificamente, refletimos acerca da encenao documental no filme A pedra da riqueza.

    Os critrios de anlise foram ditados pela aplicao, quase que integral, do mtodo introdu-

    zido por Manuela Penafria em Anlise de Filmes conceitos e metodologia(s) (PENAFRIA, 2009). A au-

    tora orienta a efetuar a anlise considerando a seguinte estrutura: introduo, dinmica da narrativa

    (anlise plano-a-plano de pelo menos uma sequncia do filme), eleio de uma cena principal, ponto

    de vista, e concluso. Dos parmetros de anlise flmica sugeridos pela autora omitimos a busca por

    uma cena principal, devido ao fato da presena e relevncia de uma cena assim chamada no ser

    necessariamente uma constante no cinema, entendido em toda sua abrangncia e complexidade.

    H filmes nos quais no faz sentido eleger uma cena como a principal: filmes experimentais, algu-

    mas modalidades de documentrios, filmes ficcionais no comerciais, filmes realizados em plano-

    sequncia, apenas para mencionar algumas categorias.

    A escolha deste documentrio de Vladimir Carvalho, sem dvida o mais assduo e produ-

    tivo documentarista paraibano de todos os tempos, deve-se adequao do filme no que se refere

    ao estudo da mise en scne documental, a que de fato uma aparelhagem (flmica) polissmica,

    complexa e composta. Neste sentido, aposta-se na busca de auxlio em noes outras capazes de

    render menos obscura a compreenso das encenaes documentais, aqui em sua forma plural devido

    multiplicidade de aplicaes desta ferramenta por parte dos realizadores de no-fico. Trata-se

    de conceitos complementares, como aquele de representao, sobre os quais a mise en scne est

    fundamentada e adquire toda sua consistncia de aparelhagem hbrida. O estudo da representao

    um elemento essencial para uma compreenso mais profunda da encenao no mbito do filme

    documentrio, na medida em que a representao pr-existe filmagem e independe dela, quer di-

    zer, ela onipresente e permeia as relaes sociais (AUMONT, 2008) (GOFFMAN, 1967).

    Desta maneira, possvel afirmar que a encenao documental comporta pelo menos trs

    artigoMise en scne no documentrio, polifonia e formas de representao no filme paraibano A pedra da riqueza

    Riccardo Migliore

  • REVISTA MOVIMENTO | dez 2015 dez 2015 | REVISTA MOVIMENTO 22 23

    artigoMise en scne no documentrio, polifonia e formas de representao no filme paraibano A pedra da riqueza

    Riccardo Migliore

    nveis: tcnico, estilstico e ideolgico-moral. O nvel tcnico se refere utilizao da linguagem au-

    diovisual (por exemplo: os planos, as transies entre cenas ou sequncias, os movimentos de c-

    mera etc.); o nvel estilstico conduz inexoravelmente questo da oposio dicotmica entre sig-

    nificante e significado, qual se prefere o conceito sinttico de significao (METZ, 1995) j que

    atravs do estilo que sobressai o contedo (BORDWELL, 2008), mas vale tambm o contrrio, como

    se ver mais adiante; e o nvel ideolgico-moral est associado ao conceito de voz (autoral) e se pode

    manifestar tanto de maneira explcita, como o caso do cinema de Ken Loach ou do documentrio

    A ilha das flores (Jorge Furtado, 1989), como tambm de maneira implcita, inclusive inconsciente. A

    anlise da encenao, a este respeito, representa uma chave de acesso assero e viso de mundo,

    poltica inclusive, do realizador.

    Da anlise plano-a-plano de uma sequncia do filme

    A sequncia escolhida para anlise aquela da exploso da dinamite na minerao, e abre-

    se com um plano mdio de conjunto no qual dois trabalhadores cooperam para furar o cho com

    o fim de posicionarem a dinamite com o respectivo estopim. A imagem vem a adquirir relevo pela

    posio dos homens: o primeiro, enquadrado at linha da cintura em posio inferior, segura uma

    espcie de ponteira e o outro, de p, em posio superior, de costas para a cmera, bate na ponteira

    com uma marreta segurada com ambas as mos. A cabea do homem em p, prxima da margem

    superior direita do quadro, forma uma linha diagonal com o ombro do colega, o qual est situado em

    posio aberta, ou seja, em favor de cmera.

    Segue um corte no mesmo eixo visual para propor um detalhe da batida da marreta, at que

    o homem que segurava a ponteira deix-la no cho para pegar o estopim e enfi-lo no buraco que

    acabou de ser criado, o que mostrado num corte sucessivo, sempre em plano-detalhe. A locuo

    de Barra Limpa destaca o fato do estopim ter que ser bastante comprido, para que haja tempo para

    os trabalhadores correrem, j que a dinamite joga a pedra para longe. O prximo um plano geral da

    parte de morro explorada pela extrao de xelita.

  • REVISTA MOVIMENTO | dez 2015 dez 2015 | REVISTA MOVIMENTO 22 23

    artigoMise en scne no documentrio, polifonia e formas de representao no filme paraibano A pedra da riqueza

    Riccardo Migliore

    Com o corte a seguir volta-se ao detalhe da mo enfiando o estopim no buraco escavado no

    cho, com sua sombra projetada pelo sol na margem inferior do quadro. Na sequncia, h um plano

    geral do garimpo, filmado de cima do morro para baixo. Corta-se novamente num plano detalhe, des-

    ta vez enfatizando o gesto atravs do qual o p explosivo espalhado dentro do buraco. Mantendo

    certa continuidade de movimento com o detalhe, segue o close de um homem de chapu e bigode,

    enquanto o outro continua a preparar a exploso. Em seguida, um plano em movimento, no caso, um

    zoom out a abrir para um plano geral que s em parte enquadra o garimpo, e em parte a paisagem

    sertaneja em profundidade. Nota-se certo dinamismo devido sobreposio de planos distintos.

    Novamente, Carvalho corta num plano-detalhe, provocando certo suspense, ao dilatar a

    cena da preparao da exploso em termos temporais. Enxergamos os dedos do trabalhador manu-

    seando algo como um fsforo enquanto acende o estopim. Temos um plano de reao do mesmo

    trabalhador, no close j visto anteriormente, e de novo, o detalhe do estopim, desta vez queimando,

    como resulta pela fumaa. Na montagem, o realizador insere inteligentemente um plano detalhe de

    uma lagartixa enquanto ela some de cima de uma pedra, o que permite estender a temporalidade

    da ao. Note-se que a voz de Barra Limpa est narrando a preparao da exploso at o grito: o

    fogo!. neste momento que, na montagem, resolve-se inserir o plano da lagartixa fugindo, como se

    tratasse de aes conseqentes.

    Em realidade, a imagem serve para aumentar a tenso dramtica. Corta-se, pois, para um

    plano de conjunto no qual, em primeiro plano visual encontra-se um trabalhador segurando uma

    p, que em decorrncia do grito de alerta jogada fora do quadro (pela margem inferior esquerda).

    O homem corre rumo ao fundo (background), cuja perspectiva em profundidade destacada pela

    presena de rvores, tanto do lado esquerdo como do direito.

    A corrida do homem separada em dois planos, tambm com o intuito de dilatar o tempo

    da cena, sendo que nesta juno em movimento aparece o trabalhador de perfil. Ou seja, se no plano

    anterior a cmera o enquadrava inicialmente em posio frontal e em seguida ele virava-se de costas

    e corria rumo ao segundo plano visual, neste plano a continuao do movimento do homem se d

    num sentido esquerda/direita, com o sujeito de perfil.

    Este plano, apesar de comear fixo, em realidade uma panormica horizontal que acom-

    panha a corrida do homem que, ao sair do quadro (para direita), substitudo por outro trabalhador

    o qual vem a se tornar o novo centro de interesse. Tambm, o colega do primeiro trabalhador corre

    para direita, e tambm enquadrado de perfil. Ao segui-lo, enquanto o homem muda de direo,

    a cmera reencontra o trabalhador que anteriormente tinha sado do quadro. Eles pulam entre os

    arbustos que formam a caatinga. Segue um plano-detalhe de uma enxada, usado aqui como pausa

  • REVISTA MOVIMENTO | dez 2015 dez 2015 | REVISTA MOVIMENTO 24 25

    visual, e em seguida, corta-se num novo plano-detalhe do estopim queimando.

    O dinamismo da cena novamente ressaltado pelo contraste detalhe/conjunto, na medida

    em que o plano sucessivo um plano geral no qual aparecem mquinas rudimentares, trabalhadores

    e pequenas montanhas de terra. Todo mundo corre para se amparar, a maioria sai do quadro para a

    margem direita.

    O corte seguinte pode ser tido como uma nova juno em movimento, ao se ver um homem

    pulando um buraco, tambm de esquerda para direita. Segue um plano mdio no qual dois trabalha-

    dores se levantam de suas respectivas posies e se afastam para o segundo plano visual, definido

    em termos de perspectiva pela composio do quadro, onde ainda enxerga-se uma rvore no fundo.

    Novamente, o detalhe de uma enxada, seguido por outro plano aproximado de uma pedra jogada na

    gua marrenta, e atravs da montagem, volta-se ao plano geral do lugar anteriormente descrito, onde

    outros trabalhadores tambm correm para se amparar. A sequncia termina com a exploso, sendo

    que esta apenas ouvida, fora do quadro, enquanto as imagens mostram o detalhe dos espinhos de

    uma planta, entre os quais filtra a luz do sol.

    Da pluralidade de vozes, ou da abordagem polifnica

    Neste filme, finalizado em 1975, Carvalho utiliza uma abordagem que, pedindo o termo em-

    prestado ao domnio antropolgico, podemos chamar de polifnica, a partir do conceito de autoria

    etnogrfica (CLIFFORD, 1998). Entende-se que esta pluralidade de vozes tem fortes repercusses no

    mbito da encenao. Em que sentido se pode falar aqui em polifonia? A pedra da riqueza retrata a

    explorao qual, na dcada de 1970, os garimpeiros eram submetidos no serto da Paraba, quanto

    extrao de xelita, minrio utilizado no estrangeiro pela sofisticada indstria nuclear.

    Voltando questo da polifonia, v-se que este conceito antropolgico pode ser utilizado

    neste contexto na medida em que remete para duas noes fundamentais no mbito da teoria do

    documentrio: a primeira est associada voz (NICHOLS, 2005), e a segunda se refere ao problema

    da autoria neste domnio cinematogrfico, considerando a assimetria das relaes realizador/perso-

    nagem social (FREIRE, 2012). Ambas as noes repercutem na mise en scne propriamente dita, como

    tambm, na auto-mise en scne.

    No que diz respeito ao encontro documental e antropolgico entre realizador e atores so-

    ciais, neste documentrio existe um dplice relacionamento: primeiramente, aquele entre Carvalho

    e os garimpeiros do Vale do Sabugi, encontro do qual surgem as imagens, as quais, porm, foram

    esquecidas ao longo de cinco anos, isto , por si s, elas no teriam permitido a Carvalho de montar

    seu filme, pelo menos, no da maneira escolhida pelo realizador para finalizar esta produo, de

    artigoMise en scne no documentrio, polifonia e formas de representao no filme paraibano A pedra da riqueza

    Riccardo Migliore

  • REVISTA MOVIMENTO | dez 2015 dez 2015 | REVISTA MOVIMENTO 24 25

    acordo com o resultado aqui analisado. Foi, portanto, o segundo encontro, quer dizer, aquele entre

    o realizador de Itabaiana e o ex-garimpeiro Dos Santos (vulgo Barra Limpa), que sugeriu a Carvalho

    a estrutura narrativa do filme.

    As memrias e as consideraes do ex-minerador que se tornou servidor da UnB iriam per-

    mitir aquele grau de subjetivao ou individuao que, comumente, rende mais inteligvel a recepo

    de um documentrio por parte do espectador, devido ao princpio de identificao, segundo o qual

    humanamente mais fcil se identificar com um sujeito do que com um grupo de pessoas, mesmo

    quando o tema da narrao abarca uma pluralidade de indivduos, entre os quais, o personagem (so-

    cial) escolhido torna-se um mero representante, ou dito de outra forma, ele vem a ser utilizado como

    elo de ligao entre a esfera individual e aquela social (extra-individual).

    A este propsito, no artigo A Pedra da riqueza e seus espectadores (OU, 2011)2 se l que o

    filme revela uma forte componente reflexiva, a qual veiculada pela participao de Barra Limpa, na

    medida em que

    O filme materializa e incorpora um espectador incomum, um espectador sentado mesa de montagem. O incio do documentrio j apresenta um outro filme dentro dele, o retngulo iluminado com imagens da mina, numa construo que pode ser considerada como mise-en-abyme. Pode-se afirmar que a Pedra da riqueza , em parte, um documentrio sobre um homem assistindo a um documentrio (OU, 2011, p. 5).

    A pesquisadora associa o papel de Barra Limpa quele de um espectador de cinema, imerso

    na escurido de uma sala, frente s imagens inerentes minerao paraibana. Ele ao mesmo tempo

    espectador, narrador e elemento de ligao entre o filme e o espectador efetivo. Ainda, ele apresenta

    um contraponto informal-popular exposio didtica, isto , formal, de Carvalho.

    Mirian Ou resume as noes acima com as seguintes palavras

    As imagens de Barra Limpa so como um cone da sua condio especta-torial, o corpo da voz over que no se caracterizaria, assim, como uma voz-de-Deus acorprea. a voz de um representante dos trabalhadores, mas representa o corpo e mente de um espectador. a narrao dada ao diretor que indica o seu desejo de acionamento pela mise-en-scne do filme (OU, op. cit., p. 6).

    Da relao entre polifonia, ponto de vista e mise en scne

    Nossa leitura analtica do filme de Carvalho foi orientada por algumas questes, entre as

    quais: Por qual razo, neste documentrio de Vladimir Carvalho, pode-se falar numa perspectiva

    artigoMise en scne no documentrio, polifonia e formas de representao no filme paraibano A pedra da riqueza

    Riccardo Migliore

    ___________________________________________________

    2 http://www.intercom.org.br/papers/regionais/sudeste2011/resumos/R24-0461-1.pdf

  • REVISTA MOVIMENTO | dez 2015 dez 2015 | REVISTA MOVIMENTO 26 27

    polifnica? De qual tipo de vozes se trata? De que maneira se manifestam no filme? E ainda, como

    esta pluralidade de vozes incide na encenao?

    Quanto primeira questo, v-se que neste filme, o realizador recorre a um sujeito-narra-

    dor, o qual se insere no contexto filmado e adquire, portanto, um papel que, adotando um termo

    comumente utilizado no cinema ficcional, podemos chamar de diegtico, isto , ele est inserido na

    situao retratada (sendo um ex-garimpeiro que, inclusive, trabalhou na mesma mina filmada por

    Carvalho em 1970) e, ao mesmo tempo, coloca-se por fora deste contexto, devido migrao e fixa-

    o de sua nova residncia em Braslia, assim como o diretor do filme. O ex-garimpeiro se chama Jos

    Laurentino dos Santos (Barra Limpa). Assim como foi ressaltado por Mirian Ou no artigo acima men-

    cionado, Carvalho e Dos Santos teriam se encontrado em Braslia cinco anos depois que o realizador,

    ao atravessar a regio sertaneja do Sabugi paraibano, juntamente com a equipe, para terminar o do-

    cumentrio O pas de So Saru (Vladimir Carvalho, 1971), se deparou com um garimpo de extrao

    de xelita: Durante dois dias, fizeram imagens dos trabalhadores e do local, que acabaram no sendo

    incorporadas no corte final de So Saru. Essas imagens foram transformadas num curta-metragem,

    A Pedra da Riqueza, finalizado em 1975 (OU, op. cit., p. 1).

    Conforme foi colocado pela autora, que se apoia na biografia de Carvalho, Jos Laurentino

    dos Santos (Barra Limpa) aproximou o realizador na UnB, onde o cineasta paraibano lecionava, e o

    informou que 14 anos antes trabalhara naquele mesmo garimpo junto com o irmo. A partir deste

    encontro deslocado, do ponto de vista geogrfico e temporal, Carvalho resolveu atribuir a Dos Santos

    o papel de narrador do filme nunca concludo, sobre extrao de tungstnio (ou xelita) no vale do

    Sabugi.

    Desta maneira, vemos que h uma contraposio inicial entre a voz do realizador e aquela

    do narrador, cuja participao efetiva na extrao do minrio naquele mesmo garimpo que foi filma-

    do pelo documentarista, lhe atribui a competncia necessria para retratar o assunto e exp-lo para

    o espectador atravs de lembranas.

    Do ponto de vista narrativo, estas memrias seriam as nicas vozes presentes no filme, po-

    rm conveniente lembrar que entre as duas h uma disparidade bastante consistente em termos

    de relao de poder, isto , Carvalho utiliza a voz do ex-garimpeiro, baseada na sua memria biogr-

    fica, para construir seu filme e, de certa maneira, sustentar sua prpria voz, mesmo que em termos

    antagnicos. Isto por que, como bem realado por Ou, a cartela final do filme contrasta e de certa

    forma, evidencia a natureza parcial, limitada e a falha da exposio do ex-minerador, inconsciente,

    por exemplo, da real finalidade da extrao, no que diz respeito ao uso do minrio. A cartela final,

    como foi devidamente colocado pela autora, contrasta com o tom informal-popular da narrao de

    artigoMise en scne no documentrio, polifonia e formas de representao no filme paraibano A pedra da riqueza

    Riccardo Migliore

  • REVISTA MOVIMENTO | dez 2015 dez 2015 | REVISTA MOVIMENTO 26 27

    Dos Santos, embora no haja alguma inteno, por parte de Carvalho, de ludibriar o linguajar e o

    conhecimento limitado (em termos de educao formal) do ex-garimpeiro.

    Vemos, portanto, que a cartela final representa o pice da modalidade documental expositi-

    va, atravs da qual Carvalho pretende explicar, de maneira bastante didtica, qual a efetiva finalidade

    da explorao do minrio no serto paraibano, em contraste com a forma rudimentar de extrao por

    parte dos garimpeiros, desprovidos de qualquer direito trabalhista, assistncia mdica etc.

    Pelo que concerne encenao, contudo, o documentrio apresenta uma terceira voz, devi-

    do ao fato que os garimpeiros filmados em 1970 auto-representam os respectivos ofcios cotidianos

    no mbito da minerao. Entende-se, neste sentido, que o conceito de voz mistura-se com aquele de

    autoria (e co-autoria) e ainda, com aquele de representao e auto-representao. Em suma, a mise

    en scne num documentrio como A riqueza da pedra transcende seu sentido limitado marcao de

    cena (assim como era entendido por Sergej Ejzenstejn3), ou direo das movimentaes dos atores

    enquanto mera coreografia de corpos no espao e alcana maior complexidade, repercutindo na

    questo ideolgica e moral, que por sua vez caracteriza a problemtica da autoria.

    A mise en scne enquanto mera marcao de cena era a concepo de encenao mais tipi-

    camente teatral, a qual foi ao mesmo tempo absorvida e reinventada pelo cinema. No documentrio,

    enfim, a mise en scne adquire formas de representao peculiares, que surgem do encontro, ao

    mesmo tempo um confronto (representao x auto-representao), entre realizador e atores sociais.

    Ou seja, mesmo se fosse possvel para o pesquisador se deslocar at Braslia e entrevistar Vladimir

    Carvalho acerca da aplicao deste tipo de encenao (enquanto disposio espacial de elementos

    cnicos, seja humanos ou no), esta seria apenas a verso do diretor, o qual parte sempre de uma

    posio avantajada em termos de relaes de poder junto aos demais personagens sociais. Significa

    que faltaria a verso dos sujeitos filmados, que no mbito desta concepo mais teatral da ence-

    nao seria igualmente importante para se alcanar uma compreenso profunda dos mecanismos

    que regem a chamada encenao.

    V-se, porm, que a complexidade da mise en scne no domnio documental ultrapassa sua

    noo ancestral oriunda do teatro para adquirir um sentido mais amplo, proporcionado por toda

    uma srie de nuances que vo da auto-representao colocao em situao profilma, abrangen-

    do tambm conceitos outros, como aqueles de representao, autoria e voz. a suma destes concei-

    tos e ao mesmo tempo, sua aplicao prtica nos filmes, que permite refletir sobre o uso da encena-

    o sem a necessidade de interpelar o realizador e os atores sociais. A questo da mera disposio

    espacial dos personagens, em A pedra da riqueza por si s no seria suficiente para se aprofundar a

    artigoMise en scne no documentrio, polifonia e formas de representao no filme paraibano A pedra da riqueza

    Riccardo Migliore

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    3 Citado por Aumont (2008).

  • REVISTA MOVIMENTO | dez 2015 dez 2015 | REVISTA MOVIMENTO 28 29

    anlise da mise en scne, embora haja partes nas quais possvel perceber certo grau (e necessidade)

    de dirigir, no sentido de reconstituir momentos da prxis extrativista, como aquele que precede a

    exploso de dinamite. E a este respeito vemos que h uma diferena substancial entre a reconstitui-

    o documental e a reconstruo ficcional (GAUTHIER, 2011), lembrando, porm, da sutil fronteira

    existente entre fico e documentrio e das intersees e influncias mtuas que permeiam estes

    grandes regimes cinematogrficos (METZ, 1995).

    Considerando o filme pelo vis da representao, pode-se destacar que existem quatro es-

    feras de (represent)ao, isto : a maneira como Carvalho, realizador do filme, se pe em relao aos

    personagens sociais e temtica da profunda explorao humana (e ambiental) proporcionada pelo

    dono do garimpo (que por sinal, no aparece no filme); permanecendo no mbito da representao

    (dos personagens) operada pelo realizador, h aquela inerente construo do produto flmico, em

    termos de estrutura narrativa e ao mesmo tempo, de estilo utilizado, que como foi apontado pela

    pesquisadora Mirian Ou, mantm certo grau de coerncia com obras anteriores de Carvalho, como

    A Bolandeira (1969); aquela atravs da qual os personagens sociais se auto-representam, quer dizer,

    o jeito como eles se colocam em funo da cmera do documentarista paraibano e enfatizam ou

    omitem traos da prpria personalidade individual e social; e ainda, a maneira como Barra Limpa,

    narrador no-profissional do filme, e ao mesmo tempo, ator social, expe acerca da prtica do garim-

    po atravs de sua experincia, ponto de vista e linguagem pessoal. Poder-se-ia, tambm, comentar

    acerca da auto-representao do realizador, j que ele em certo momento aparece na frente da c-

    mera, contudo, se trata de uma apario muito breve para ser analisada.

    Em realidade, o nvel de representao promovido por Barra Limpa adquire um dplice sen-

    tido, enquanto representao (verbal, oral) de algo que ele vivenciou na prpria pele, e ao mesmo

    tempo, no deixa de haver certo grau de auto-representao, na medida em que, como foi sugerido

    pela pesquisadora Mirian Ou, ele no narrador no estilo mais tipicamente expositivo da voz de

    Deus, quer dizer, um narrador onisciente que no aparece nas imagens. Aqui ele narrador, per-

    sonagem e ainda, testemunha, pelo fato de ser filmado na frente da moviola, assistindo s imagens

    do mesmo garimpo no qual, coincidentemente, tinha trabalhado no passado. As imagens escuras s

    quais Ou se refere em seu artigo, ainda, podem ter sido pensadas por Carvalho para isolar o sujeito-

    narrador na frente daquilo que, alm de tudo, um reencontro com a prpria terra, da qual migrou

    em busca de melhores condies de vida, assim como muitos outros paraibanos.

    Concorda-se com Ou quanto funo mediadora deste narrador, que se interpe entre o

    realizador e o espectador e ao mesmo tempo, l o filme e nele inscreve seu comentrio, baseado

    principalmente em recordaes. E v-se como uma leitura do filme por meio do conceito de repre-

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    Riccardo Migliore

  • REVISTA MOVIMENTO | dez 2015 dez 2015 | REVISTA MOVIMENTO 28 29

    sentao dialoga com uma leitura baseada no conceito de voz. As trs vozes acima mencionadas, ora

    contrapem-se, ora complementam-se, numa estrutura narrativa complexa, baseada na assincronia

    da narrao, segundo o conceito de som indireto que como Ou faz questo de relembrar, foi criado

    pelo prprio realizador paraibano. Outro elemento de contraponto a presena de uma msica que,

    utilizando um termo mais utilizado no mbito da teoria do cinema ficcional, pode ser chamada de

    extra-diegtica, ou seja, distante do contexto interiorano do estado nordestino e do mbito scio-

    cultural especfico no qual se inserem os personagens sociais deste filme.

    Voltando mise en scne documental aqui empregada, entende-se que A pedra da riqueza

    apresenta, em momentos distintos, os trs tipos de encenao introduzidos e teorizados no texto

    Mas afinal...o que mesmo documentrio? (RAMOS, 2008). Basicamente, se as filmagens gravadas

    por Carvalho e sua equipe em 1970 apontam para uma encenao-locao, na medida em que foram

    registradas no local onde surgia o garimpo, h certo grau de encenao-atitude no que se refere

    auto-encenao dos personagens sociais, quando no esto sendo dirigidos pelo realizador, como

    acontece na j mencionada cena que antecede a exploso, quando todos os garimpeiros correm para

    procurar amparo dos estilhaos e fragmentos de pedra, numa reconstituio na qual a ao dilata-

    da do ponto de vista de sua extenso temporal.

    Mas se for considerada a participao de Barra Limpa, pode-se falar em algo que beira a

    fronteira entre encenao-construda e encenao locao, j que a circunstncia da tomada no coin-

    cide com a circunstncia do mundo cotidiano ao qual o filme se refere, muito embora no haja uma

    reconstruo no molde do documentrio clssico ingls da dcada de 1930. A circunstncia da toma-

    da o estdio de montagem da UnB, enquanto a circunstncia do mundo cotidiano (representado

    no filme, ao qual o documentrio se refere) o garimpo do Serto paraibano. Quer dizer, o estdio de

    montagem encontra-se em Braslia, cidade na qual, cinco anos aps as filmagens do garimpo, Barra

    Limpa vem sendo colocado perante as imagens de sua terra natal, que coincidentemente, tambm

    aquela do realizador. H portanto, certo grau de heterogeneidade entre os espaos que Ramos

    chama de dentro-de-campo e fora-de-campo, o que ressalta a natureza reflexiva do filme conforme

    foi destacado por Mirian Ou, na medida em que h um filme dentro do filme, ou um personagem

    (ao mesmo tempo narrador em off), filmado enquanto assiste ao material imagtico que com sua voz

    (over, e dessincronizada), ele est comentando. Trata-se aqui de metalinguagem.

    Carvalho, portanto, faz um uso da mise en scne que pode ser chamada de parcial, enquan-

    to os momentos de reconstituio, nos quais mostrada a heterogeneidade acima mencionada,

    alternam partes de representao meramente observacionais. Do ponto de vista da mise en scne,

    existe certo grau de hibridismo, devido aplicao de encenaes distintas e contrapontos imagti-

    artigoMise en scne no documentrio, polifonia e formas de representao no filme paraibano A pedra da riqueza

    Riccardo Migliore

  • REVISTA MOVIMENTO | dez 2015 dez 2015 | REVISTA MOVIMENTO 30 31

    co-sonoros, mas principalmente, este documentrio est fundamentado na contraposio de vozes

    distintas (formais e informais), o que confirma a utilizao de uma perspectiva polifnica, como foi

    discutido acima.

    Havendo polifonia, numa alternncia de diversas vozes, de quem seria a autoria do filme?

    Afinal, as colocaes de Barra Limpa so fruto de experincias e recordaes pessoais, pelo que

    poder-se-ia sugerir que, num documentrio deste feitio, a autoria deveria ser partilhada entre Car-

    valho e Dos Santos (Barra Limpa). Contudo, o uso final do material gravado que refora a autoria

    propriamente dita e neste caso, na medida em que o personagem-social/narrador-informal no foi

    convidado a opinar e participar ativamente nem das filmagens e nem mesmo da montagem do filme,

    ento a autoria deveria ser atribuda apenas ao realizador. Mas a questo da autoria documental

    bastante delicada, j que o limiar entre as duas contribuies autorais nem sempre to ntido como

    pode parecer aps uma primeira leitura.

    A anlise aqui conduzida do filme A pedra da riqueza, sugere se tratar de um documentrio

    hbrido e polifnico. Consequentemente, v-se que este hibridismo, no que diz respeito especifica-

    mente mise en scne, demonstra que, alm da encenao (enquanto conceito) mudar de significa-

    o ao longo da histria (AUMONT, 2008), as prprias categorias ou modalidades de mise en scne

    sistematizadas por Ramos (acima) podem vir a coexistir dentre de uma mesma obra no-ficcional.

    No caso deste filme, enfim, isso acontece em momentos distintos.

    Uma proposta de sistematizao dos aspectos formais e temticos da mise en scne, ou da

    nfase em sua polissemia e complexidade conceitual

    No mbito deste artigo e com nfase no cinema documentrio, detectamos sete aspectos

    da mise en scne, trs inerentes ao aspecto formal do filme e quatro ao contedo. Os elementos

    formais so representados respectivamente pela direo coreogrfica dos atores (sociais), pela dire-

    o emocional (colocao em situao, no caso do documentrio), e pelo conjunto de intervenes

    imagtico-sonoras propriamente ligadas ao estilo do filme. Quanto ao aspecto relativo ao contedo

    da mise en scne documental, esta se divide em quatro elementos de anlise: o contedo narrativo

    propriamente chamado; o ponto de vista poltico/ideolgico/moral do realizador que canalizado

    no filme atravs da encenao; a auto-mise en scne operada pelos personagens sociais e que aponta

    para formas de auto-representao; e a eventual auto-mise en scne promovida pelo realizador de

    documentrios quando decide se colocar em cena, isto , se tornar um personagem de seu prprio

    filme no-ficcional.

    Ao aplicarmos esta sistematizao da mise en scne ao filme A Pedra da Riqueza, vemos que,

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    Riccardo Migliore

  • REVISTA MOVIMENTO | dez 2015 dez 2015 | REVISTA MOVIMENTO 30 31

    pelo que se refere aos aspectos ditos formais (reiterando que os elementos formais e aqueles pe-

    culiares do contedo so interativos), e entre eles, a direo coreogrfica, h momentos nos quais

    h evidncias de marcao de cena, como quando se prepara a exploso. Como resulta da anlise

    plano-a-plano, a ao dilatada em termos temporais, e ocorre certa fragmentao do ponto de vista

    (do detalhe do estopim ao plano geral). Neste momento, os atores sociais presumivelmente foram

    dirigidos por Vladimir Carvalho, enquanto estavam encenando uma prtica cotidiana na minerao,

    quer dizer, o momento em que, aps ter sido acendido o estopim que vai deflagrar a exploso por

    meio de dinamite, os demais operrios correm para se amparar. Quanto direo emocional, ou

    colocao em situao (assim como ocorre em Aruanda) aqui constatamos ocorrer algo parecido do

    notrio e se... la Stanislavski (criao de circunstncias), contudo, neste caso, no se pede a atores

    para interpretar uma prtica alheia, e sim, pede-se a operrios da minerao para que interpretem o

    papel de si mesmos ao representar uma ao cotidiana. Nisso h tambm graus de profilma. Ou seja,

    a colocao em situao aqui estruturada de uma maneira que o ator social atue em funo da c-

    mera, de maneira a render a interpretao mais fluida e verossmil. Outra forma de colocao em

    situao, dos fortes impactos emocionais, aquela de Barra Limpa, ao qual Carvalho pede para ser

    filmado ao assistir e comentar o material bruto do que se tornar o documentrio aqui considerado.

    J pelo que concerne conjuntura imagtico-sonora referente ao estilo, v-se com Ou (acima) que

    o realizador mantm coerncia com suas obras anteriores, como A Bolandeira (1969), o que refora

    a identidade estilstica dos documentrios de Vladimir Carvalho (desta poca, pelo menos). E til

    frisar que A pedra da riqueza foi filmado paralelamente ao filme O pas de So Saru (1971).

    Passemos, pois aos aspectos inerentes ao contedo: quanto temtica do filme, trata-se

    de um documentrio de denncia social inerente condio dos trabalhadores do minrio de xelita

    (tungstnio) no serto paraibano, os quais estavam desprovidos de quaisquer direitos trabalhistas,

    costumavam morrer por causa das exploses e, sem carteira assinada, as respectivas famlias no

    recebiam sequer uma indenizao digna deste nome. Definida a temtica, entende-se, porm, que

    A pedra da riqueza tambm apresenta um lado reflexivo, na medida em que, ao pedir a Barra Man-

    sa para comentar as imagens da minerao na qual tinha trabalhado anos antes do encontro com

    Carvalho, em Braslia, reflete-se sobre o ofcio de se fazer um filme documentrio e, principalmente,

    sobre a questo da voz (NICHOLS, 2005); O ponto de vista ideolgico-poltico-moral manifesta-se

    a partir da escolha do tema e do contexto a ser representado, sendo que, ao ressaltar as interaes

    existentes entre forma e contedo, percebemos o quanto as escolhas formais de Carvalho sustentem

    sua posio ideolgica. Neste sentido, o fato do realizador chamar Barra Limpa para comentar o

    filme na sala de montagem da UnB, alm das referidas implicaes reflexivas, uma escolha mera-

    artigoMise en scne no documentrio, polifonia e formas de representao no filme paraibano A pedra da riqueza

    Riccardo Migliore

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    mente poltica, visando literalmente dar voz aos personagens do filme, aos trabalhadores do minrio,

    aqui representados por este ator social com funo de "narrador. Com relao auto-encenao

    dos personagens sociais, A pedra da riqueza um filme bastante emblemtico, na medida em que

    detectamos variaes de intensidade e consistncia da direo cinematogrfica, a qual passa de uma

    rgida marcao de cena (no molde de Aruanda, lembrando que Vladimir Carvalho foi assistente de

    Noronha) na sequncia que antecede a exploso, para momentos de auto-encenao mais explicita.

    Ou seja, o grau de controle do realizador sobre a maneira de representar, varia ao longo do filme e,

    desta forma, se abrem brechas para a auto-representao dos atores sociais. J, Barra Limpa, no es-

    tdio de montagem da UnB, aparenta ter sido deixado bastante vontade quanto sua auto-repre-

    sentao e tambm, quanto ao contedo da sua locuo, de fato natural e fluida, enquanto Vladimir

    Carvalho, diretor do filme, s aparece uma vez e por um breve instante, sendo que no suficiente

    para se analisar a auto-encenao dele enquanto realizador.

    Concluindo, pode-se afirmar que a encenao neste documentrio foi cogitada, por parte de

    Carvalho, para denunciar uma situao de fato desumana, e ao mesmo tempo, para refletir sobre o

    ofcio da produo documental com nfase na questo da polifonia ligada ao conceito do voz, atra-

    vs do encontro/contraponto entre a voz de Barra Limpa enquanto narrador do filme (e ao mesmo

    tempo testemunha do contexto representado) e a voz autoral do realizador, para alm das auto-re-

    presentaes (as quais tambm apontam para uma voz) dos demais personagens sociais.

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