50 bravos candangos

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46 • Cidades • Brasília, sábado, 22 de maio de 2010 • CORREIO BRAZILIENSE

» CONCEIÇÃO FREITAS

A ntônia vive um dilema: ela sesente dona de Brasília e tentacontrolar o (desgastante) im-pulso de defender o que lhe per-

tence quando, como e onde ela estiver sen-do ofendida. O sentimento de posse temrazão de existir: Antônia Samir Ribeiro nas-ceu no Hospital Juscelino Kubitschek deOliveira (HJKO), na Cidade Livre, em 30 denovembro de 1959, foi batizada pelo padreRoque Vitale em 21 de abril de 1960, estu-dou na Escola Classe 1 (Núcleo Bandeiran-te), foi uma das primeiras moradoras deCeilândia e participou dos acontecimentosmais importantes da formação da cidada-nia brasiliense.

Desde que começou a descobrir o mun-do com as próprias pernas, Antônia des-brava o cerrado onde nasceu. A candagui-nha aprendeu a andar nas redondezas dobarraco de madeira, com alpendre, na 2ªAvenida, Cidade Livre. O pai, Firmino, ne-gro nascido em Goiás, vivia em Ceres, aotempo da colônia agrícola fundada porBernado Sayão. Lá, conheceu a branca Cla-rice. Quando Sayão chegou para construirBrasília, a família de Antônia veio no rastrodo então vice-governador de Goiás. “Meupai era um homem extremamente dócil econfiável. Veio para Brasília por acreditarno sonho. Não veio com a preocupação deacumular bens.”

O pai de Antônia montou um restauran-te perto da Placa da Mercedes, ao redor daqual surgiu a zona do baixo meretrício(ZBM) da capital em construção. “Me lem-bro de papai se arrumando. Terno, chapéubonito e ele limpando os sapatos para irtrabalhar.” A garota Antônia guardou forte-mente na memória a imagem das prostitu-tas cruzando a Cidade Livre. “Elas eram to-das bonitas, e papai exigia que a gente res-peitasse todas elas.” Não poucas vezes Fir-mino chegava em casa contando que umadas moças da ZBM havia se suicidado. Asgarotas do sexo se apaixonavam pelos ope-rários e, desgostosas com o amor, jogavamálcool no corpo e ateavam fogo, como nascrônicas de Nelson Rodrigues dos anos 50.

Enquanto o pai vendia comida e bebidapara as mulheres da Placa da Mercedes, amãe cuidava do Empório Nossa Senhorade Fátima, pequeno comércio na 2ª Aveni-da, e os cinco meninos desbravavam o cer-rado. Todo ele, em sua infinitude, pertenciaàs crianças. Catavam frutas, caçavam mi-nhocuçu — minhoca gigante que submer-gia na terra vermelha — e transformavamvagalume em caneta. A brincadeira consis-tia em catar os bichinhos luminosos e es-premê-los contra a roupa desenhando le-tras feéricas que brilhavam por pequenoespaço de tempo, Antônia calcula que unscinco minutos.

Infância mágicaOs candanguinhos da Cidade Livre pas-

savam o dia de short. As candanguinhas,de calcinha. Todos descalços. “Meu pé viviatrupicado, sabe o que é trupicão? A cabeçado dedo vivia arrancada”. Naquele tempo, obicho-papão que amedrontava as criançastinha outro nome, era GEB. “Se aquietemsenão a GEB vem pegar vocês”, diziam asmães. A truculenta Guarda Especial de Bra-sília era a dona da lei e da ordem na capitalem construção.

No tempo da meninice de Antônia, asgarotinhas usavam calcinha de elástico. Osonho de todas elas era crescer o suficientepara usar calcinha de botão. “Elas aperta-vam a barriga, como um espartilho, e iamaté a cintura, cheias de botões do lado. Eratudo o que a gente queria, era uma espéciede promoção.” As roupas da casa e dascrianças tinham quase sempre uma mes-ma padronagem. “Lá em casa, quando ma-mãe dizia que as crianças estavam preci-sando de roupa, papai saía e voltava comuma peça de pano. Então tudo era feito

com aquele tecido. Os shorts, as camisas,as calcinhas, os panos de prato, os lençóis,até acabar o pano.”

Da Cidade Livre, a família de Antôniase mudou para a Vila Esperança, que vi-nha a ser um pequeno aglomerado de bar-racos à margem da via férrea. Foi assimque a candanguinha livre acompanhou osurgimento da linha de trem, a chegada daMaria Fumaça e fez dos trilhos e do “bura-cão” que continha um dos lugares míticosde sua infância. O maior divertimento dafamília era ir até Catalão, ponto final da li-nha de trem. Outro passeio era visitar umpovoado de negros, nas proximidades deLuziânia, que hoje Antônia supõe ser oMesquita, lugarejo habitado por ex-escra-vos da minas de ouro da antiga Santa Lu-zia. “Guardei a lembrança de que eles ti-nham os pés redondos, bócio endêmico eeram todos pequeninhos.”

Até que, um dia, Antônia chegou em ca-sa e viu o número 25 pintado de cal na fa-chada do barraco. Soube que aquela era adata em que a Comissão de Erradicaçãodas Invasões (CEI) iria fazer a mudança dafamília para um lugar distante. Em 25 denovembro de 1971, o caminhão parou naporta do barraco de Firmino, desmanchoua moradia dos Ribeiro e levou família, casa,móveis e todos os pertences por uma estra-da de terra que nunca terminava.

Nova faseNesse dia, teve início uma vida de “in-

tensas novidades” para Antônia e o enxa-me infindável de candanguinhos que co-meçaram a povoar uma cidade que se cha-maria Ceilândia. Se, na Cidade Livre e naVila Esperança, a primeira geração de bra-silienses vivia uma infância sem muros, emCeilândia, o sentimento de liberdade, ale-gria e aventura se intensificou e expandiu.“É como se todos os nossos amigos e co-nhecidos tivessem ido com a gente parauma grande colônia de férias. Era umaquadrilha gigantesca de crianças soltas. Asmães estavam muito ocupadas para cuidarda gente.” Os candanguinhos passavam odia descobrindo o novo mundo. “A gentezuretava, entrava num lugar, saía no outro,e a sinfonia de pregos e martelos era inten-sa como a das cigarras de hoje.”

A adolescente Antônia descobriu a cida-dania no Movimento das Bandeirantes doBrasil e, um pouco mais tarde, na luta pelodireito de não ter de pagar pelo lote ondemoravam. Ela se lembra de três jovens bar-budos, estudantes da Universidade de Bra-sília, que apareceram em Ceilândia, emmeados da década de 1970, procurando lí-deres natos para serem politizados. Depoisela soube que eles eram do Partido Comu-nista Brasileiro. Algum tempo depois, An-tônia estava fazendo parte do mais célebremovimento de luta pela moradia do Distri-to Federal, Os Incansáveis de Ceilândia.

De lá pra cá, Antônia esteve em quase to-dos os momentos mais significativos dahistória de Brasília: tremulou bandeira paraa Rainha Elizabeth, estava no badernaço,no Diretas Já, na bênção do papa João PauloII e conheceu o marido, Rogério, no Paco-tão no carnaval de 1986. “Até hoje, guardo opapel com a letra da música, todo sujo, pi-sado.” Antônia tem duas filhas — Bruna eCamila — é professora de escola pública efaz doutorado em educação ambiental. Até17 prestações atrás, morou em Ceilândia.Hoje, vive em Águas Claras. “Sou muito gra-ta por morar nesse pedaço de planeta, sobessa imensidão de céu.” Dá para entenderpor que Antônia tem um sentimento tãoforte de que Brasília lhe pertence.

Antônia Samir Ribeiro nasceu no NúcleoBandeirante em 1959 e foi batizada pelo padre Roque no dia da inauguraçãoda cidade. Cresceu em Ceilândia,participou dos momentos mais importantesda cidade e sente-se dona dela

A CANDAGUINHAQUE CRESCEU LIVRE

Sou muito grata pormorar nesse pedaçode planeta, sob essaimensidão de céu”

Antônia Samir Ribeiro, professora

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Na estação, ela se lembra dos tempos da Maria Fumaça, um divertimento para a sua geração

Nos trilhos: Antôniaacompanhou osurgimento da linha de trem

Histórias da via férreapovoam até hoje as

melhores lembranças

Fotos: Monique Renne/CB/D.A Press