52842935-Margarida-Maria-Lacombe-Camargo-Hermeneutica-e-Argumentacao (2).pdf

163

Transcript of 52842935-Margarida-Maria-Lacombe-Camargo-Hermeneutica-e-Argumentacao (2).pdf

Page 1: 52842935-Margarida-Maria-Lacombe-Camargo-Hermeneutica-e-Argumentacao (2).pdf
Page 2: 52842935-Margarida-Maria-Lacombe-Camargo-Hermeneutica-e-Argumentacao (2).pdf

Margarida Maria Lacombe CamargoPesquisadora da Casa Rui Barbosa.

Professora da Universidade Gama Filho (Pós-graduação)

A

HERMENEUTICA E,.,ARGUMENTAÇAO

UMA CONTRIBUIÇÃO AO ESTUDO DO DIREITO

Prefácio deVicente de Paulo Barretto

3a ediçãorevista e atualizada

Posfácio deAntonio Cavalcanti Maia

RENOVARRio de Janeiro. São Paulo

2003

Page 3: 52842935-Margarida-Maria-Lacombe-Camargo-Hermeneutica-e-Argumentacao (2).pdf

Todos os direitos reservados àLIVRARIA E EDITORA RENOVAR LTOA.

MATRIZ: Rua da Assembléia, 10/2.421 - Centro - RJCEP: 20011-901 - Tel.: (21) 2531-2205 - Fax: (21) 2531-2135

LIVRARIA CENTRO: Rua da Assembléia, 10 - loja E - Centro - RJCEP: 20011-901 - Tels.: (21) 2531-1316/2531-1338 - Fax: (21) 2531-1873

LIVRARIA IPANEMA: Rua Visconde de Pirajá, 273 - loja A - Ipanema - RJCEP: 22410-001 - Tel: (21) 2287-4080 - Fax: (21) 2287-4888

FILIAL RJ: Rua Antunes Maciel, 177 - São Cristóvão - RJ - CEP: 20940-010Tels.: (21) 2589-1863/2580-8596/3860-6199 - Fax: (21) 2589-1962

FILIAL SP: Rua Santo Amaro, 257-A - Bela Vista - SP - CEP: 01315-001Te\.: (11) 3104-9951 - Fax: (11) 3105-0359

[email protected]: 0800-221863

Conselho Editorial Biblioteca de tesesArnaldo Lopes SUssekind - Presidente

Carlos Alberto Menezes DireitoCaio Tácito

Luiz Emygdio F. da Rosa Jr.Celso de Albuquerque Mello

Ricardo Pereira LiraRicardo Lobo Torres

Vicente de Paulo Barretto

Revisão TipográficaAna Maria GrilloRenato Carvalho

CapaJulio Cesar Gomes

Editoração EletrônicaTopTextos Edições Gráficas Ltda.

Cln

CIP-Brasil. Catalogação-na-fonteSindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.

Camargo, Margarida Maria Lacombe.Hermenêutica e argumentação: uma contribuição ao estudo do direito /

Margarida Maria Lacombe Camargo; prefácio de Vicente de Paulo Barretto.- 3.ed. - Rio de Janeiro: Renovar, 2003.

299p. ; 21cm.

ISBN 85-7147-392-7

1. Hermenêutica (Direito). 2. LingUística. 3. Análise do discurso. 4.Retórica. I. Barretto, Vicente de Paulo. 11. Título.

CDD 340.11

Proibida a reprodução (Lei 9.610/98)Impresso no BrasilPrinted in Brazil

Os Cursos de Pós-Graduação têm se desen­volvido no Brasil, e a produção de teses temsido elevada e de alto nível.

A Editora Renovar propõe na presente Bi­blioteca estimular a divulgação de obras quecontribuam para o desenvolvimento da ciênciajurídica brasileira, levando-as ao conhecimen­to do grande público.

No Direito as novidades estão, de um modogeral, nas teses e nas revistas especializadas.

Assim sendo, a Editora Renovar abre a sualinha editorial para os juristas que estão noinício de sua carreira profissional como mes­tres e doutOres. A Biblioteca tem esperançade que venha a constituir um estímulo a estesprotissionais. .

E mais uma prova de que acredItamos naqualidade das obrasjurídicas brasileiras: A nos­sa linha editorial é marcada por uma ngorosaseleção realizada pelo Conselho Editorial, quereúne eminentes juristas.

Editora Renovar

Page 4: 52842935-Margarida-Maria-Lacombe-Camargo-Hermeneutica-e-Argumentacao (2).pdf

BIBLIOTECA DE TESES RENOVAR

Posse da Segurança Jurídica à Questão SocialMarcelo Domanski

O Prejuízo na Fraude Contra CredoresMarcelo Roberto Ferro

A Pessoa Jurídica e os Direitos da PersonalidadeAlexandre Ferreira de Assumpção Alves

Estado e Ordem Econômico-SocialMarco Aurélio Peri Guedes

O Projeto Político de Pontes de MirandaDante Braz Limongi

O Direito do Consumidor na Era da GlobalizaçãoSônia Maria Vieira de Mello

As Novas Tendências do Direito ExtradicionalArtur de Brito Gueiros Souza

Fundamentos para uma Interpretação Constitucional do Princípio da Boa-FéTeresa Negreiros

O Ministério Público BrasileiroJoão Francisco Sauwen Filho

A Criança e o Adolescente no Ordenamento Jurídico BrasileiroMaria de Fátima Carrada Firmo

Propriedade e DomínioRicardo Aronne

O Princípio da Proporcionalidade e a Interpretação da ConstituiçãoPaulo Arminio Tavares Buechele

Condomínio de FatoDanielle Machado Soares

A Liberdade de Imprensa e o Direito à ImagemSidney Cesar Silva Guerra

Direito de Informação e Liberdade de ExpressãoLuís Gustavo Grandinetti C. de Carvalho

A Saga do Zangão - Uma visão sobre o direito naturalViviane Nunes Araújo Lima

Mercosul e Personalidade Jurídica InternacionalMarcus Rector Toledo Silva

Família sem CasamentoCarmem Lúcia S. Ramos

A Disciplina Jurídica dos Espaços Marítimos na Convenção das Nações Unidassobre Direito do Mar de 1982 e na Jurisprudência InternacionalJete Jane Fiorati

O Direito Econômico na Perspectiva da GlobalizaçãoCésar Augusto Silva da Silva

Page 5: 52842935-Margarida-Maria-Lacombe-Camargo-Hermeneutica-e-Argumentacao (2).pdf

a

...

Os Limites da Reforma ConstitucionalGustavo Just da Costa e Silva

O ReferendoAdrian Sgarbi

Segurança Internacional e Direitos HumanosSimone Martins

Os Fundamentos e os Limites do Poder Regul. no Âmbito do Mercado FinanceiroSimone Lahorghe

O Direito CibernéticoAlexandre F. Pimentel

Conflitos entre Tratados Internacionais e leis InternasMariângela Ariosi

Privatizações sob Ótica do Direito PrivadoHenrique E. C. Pedrosa

A tutela de urgência no processo do trabalho: uma visão histórico-comparativa(Idéias para o caso brasileiro)Eduardo Henrique von Adamovich

Jurisprudência Brasileira sobre Transporte AéreoJosé Gabriel Assis de Almeida

Superfície Compulsória - Instrumento de Efetivação da FunçãoSocial da PropriedadeMarise Pessôa Cavalcanti

As famrlias não-fundadas no casamento e a condição femininaAna Carla Harmatiuk Matos

Invalidade processual: um estudo para o processo do trabalhoAldacy Rachid Coutinho

A vida humana embrionária e sua proteção jurídicaJussara Maria Leal de Meirelles

O Princípio Constitucional da Dignidade da Pessoa Humana:O Enfoque da Doutrina Social da IgrejaC1eber Francisco Alves

Conversão Substancial do Negócio JurídicoJoão Alberto Schützer Del Nero

O Direito da Concorrência no Direito Comunitário Europeu ­Uma contribuição ao MercosulDyle Campello

Mercosul, União Européia e ConstituiçãoMarcio Monteiro Reis

Direito Tributário e Globalização: Ensaio Crítico sobre Preços de TransferênciaJurandi Borges Pinheiro

Transexualismo. O direito a uma nova identidade sexualAna Paula Ariston Barion Peres

Direitos Reais e Autonomia da Vontade(O Prindpio da Tipicidade dos Direitos Reais)André Pinto da Rocha Osorio Gondinho

A Paternidade Presumida no Direito Brasileiro e ComparadoLuis Paulo Cotrim Guimarães

Os Novos Paradigmas da Família ContemporâneaCristina de Oliveira lamberiam

O Mito da Verdade Real na Dogmática do Processo PenalFrancisco das Neves Baptista

O Direito ao Desenvolvimento na Perspectiva da Globalização:Paradoxos e DesafiosAna Paula Teixeira Delgado

Cooperação Jurídica Penal no MercosulSolange Mendes de Souza

Em Busca da Família do Novo MilênioRosana A. Girardi Fachin

Juizados Especiais CriminaisBeatriz Abraão de Oliveira

O Princípio da ImpessoalidadeLivia Maria Armentano Koenigstein lago

O Princípio da Subsidiariedade no Direito Público ContemporâneoSilvia Faber Torres

Direito, Escassez e Escolha: em Busca de Critérios Jurídicospara Lidar com a Escassez de Recursos e as Decisões TrágicasGustavo Amaral

Decadência e Prescrição no Direito Tributário do BrasilFrancisco Alves dos Santos Jr.

lesão Contratual no Direito BrasileiroMarcelo Guerra Martins

Acesso à Justiça - Um problema ético-social no plano da realização do DireitoPaulo Cesar Santos Bezerra

Concurso Formal e Crime ContinuadoPatr(cia Mothé G/ioche Béze

A Boa-fé e a Violação Positiva do ContratoJorge Cesa Ferreira da Silva

Responsabilidade Patrimonial do Estado por Ato Jurisdicionallulmar Fachin

Gestão Fraudulenta de Instituições de Instituição Financeira eDispositivos Processuais da lei 7.492/86Juliano Breda

Contratos de Software "Shrinkwrap Licenses" e "Clickwrap Licenses"Emir Iscandor Amad

Jurisdição Constitucional, Democracia e Racionalidade PráticaCláudio Pereira de Souza Neto

Desconsideração da Personalidade Jurídica - Aspectos processuaisOsmar Vieira da Silva

O Dano Pessoal na Sociedade de RiscoMaria Alice Costa Hofmeister

Presunções e Ficções no Direito Tributário e no Direito Penal TributárioIso Chaitz Scherkerkewitz

Honra, Imagem, Vida Privada e Intimidade em Colisão com outros DireitosMônica Neves Aguiar da Silva Castro

Page 6: 52842935-Margarida-Maria-Lacombe-Camargo-Hermeneutica-e-Argumentacao (2).pdf

•Da Lesão no Direito Brasileiro AtualCarlos Alberto Bittar Filho

Repetição do Indébito Tributário - O Inconstitucional artigo 166 do CTNLuis Dias Fernandes

Uma Análise da Textura Aberta da Linguagem e sua Aplicação ao DireitoNoel Struchiner

Direito Tributário versus MercadoMarcos Rogério Palmeira

O Direito à EducaçãoRegina Maria F. Muniz

O Abuso do Direito e as Relações ContratuaisRosalice Fidalgo Pinheiro

A Legitimação dos Princípios Constitucionais FundamentaisAna Paula Costa Barbosa

A Participação Popular na Administração Pública: o Direito de ReclamaçãoAdriana da Costa Ricardo Schier

Do Pátrio Poder à Autoridade ParentalMarcos Alves da Silva

Paradigma Biocêntrico: Do Patrimônio Privado ao Patrimônio AmbientalJosé Robson da Silva

O Discurso Jurídico da Propriedade e suas RupturasEroulths Cortiano Junior

Terceirização e Intermediação de Mão-de-obraRodrigo de Lacerda Carelli

As Agências Reguladoras no Direito BrasileiroArianne Brito Rodrigues Cal

As Novas Tendências na Regulamentação do Sistema de Telecomunicações pelaAgência Nacional de Telecomunicações - ANATELLucas de Souza Lehfeld

A Renúncia à Imunidade de Jurisdição pelo Estado BrasileiroAntenor Pereira Madruga Filho

A Mulher no Espaço Privado: Da Incapacidade à Igualdade de DireitosMaria Alice Rodrigues

A Propriedade como Relação Jurídica ComplexaFrancisco Eduardo Loureiro

O Conceito de Anulação ou Prejuízo de Benefícios no Contexto da evolução doGATT à OMCRegina Maria de S. Pereira

O Direito de Assistência HumanitáriaAlberto do Amaral Júnior

Contrato de Trabalho VirtualMargareth F. Barcelar

O Direito de Resistência na Ordem Jurídica Constitucional BrasileiraMaurício Gentil Monteiro

Transformações do Direito AdministrativoPatrícia F. Baptista

A Privacidade da Pessoa Humana no Ambiente de TrabalhoBruno Lewicki

Próximos lançamentos

A Defesa do Consumidor na Estrutura Sócio-Econômica do Neo-LiberalismoMaría Alejandra Fortuny

Estado, Sociedade Civil e Princípio da Subsidiariedade na Era da GlobalizaçãoVania Mara Nascimento Gonçalves

A Relação entre o Interno e o InternacionalEstevão Ferreira Couto

Contribuições para o Financiamento da Seguridade Social:Critérios para Definição de sua Natureza JurídicaSi/vania Conceição Tognetti

Juizados Especiais Federais CíveisAlvaro Couri Antunes Souza

O Direito Frente às Famílias ReconstituídasRosane Felhauer

De Marx a Deus - Os Tortuosos Caminhos do Terrorismo InternacionalDenise de Souza Soares

Comissões Parlamentares de Inquérito no BrasilJessé Claudio Franco de Alencar

Responsabilidade Civil dos Pais pelos Actos dos Filhos MenoresJeovanna Malena Vianna Pinheiro Alves

Regime Jurídico dos Incentivos FiscaisMarcos André Vinhas Catão

O Princípio da Impessoalidade da Administração Pública ­Para uma Administração ImparcialAna Paula Oliveira Ávila

Franchising: Reflexos Jurídicos nas Relações das PartesRoberto Cavalcanti Sampaio

O Regime Jurídico do Financiamento das Campanhas EleitoraisSergei Medeiros Araujo

Espaços Públicos Compartilhados entre a Administração Pública e a SociedadeRenato Zugno

Responsabilidade Objetiva do Estado do Rio de Janeiro por Omissão na Área deSegurança PúblicaAntonio Cesar Pimentel Caldeira

Un Estudio Comparativo de la Protección Legislativa dei Consumidor en elAmbito Interno de los Paises dei MercosurMirta Mora/es

As Normas Constitucionais Programáticas e o Controle do EstadoJosé Carlos Vasconcellos dos Reis

Page 7: 52842935-Margarida-Maria-Lacombe-Camargo-Hermeneutica-e-Argumentacao (2).pdf

À minha famíliaFlávio, Fábio e Estela.

Page 8: 52842935-Margarida-Maria-Lacombe-Camargo-Hermeneutica-e-Argumentacao (2).pdf

Si

...

Agradecimentos

Este estudo foi feito com o apoio da Fundação Casa de RuiBarbosa, onde trabalho como pesquisadora, e contou com acolaboração e o incentivo de muitos amigos. Em primeiro lugar,o Professor Vicente Barretto, orientador da tese que deu ori­gem a este livro; em seguida, Antonio Carlos Maia, que mefranqueou sua biblioteca e cujas sugestões demonstraram umaverdadeira prova de amizade; Celso Albuquerque Mello, queme despertou para leituras importantes; José Ribas Vieira e AnaLúcia de Lyra Tavares, parceiros de trabalho. E, também, osamigos da Casa de Rui Barbosa, em especial José Almino deAlencar, então Diretor do Centro de Pesquisas .

Page 9: 52842935-Margarida-Maria-Lacombe-Camargo-Hermeneutica-e-Argumentacao (2).pdf

!2 T

Prefácio à primeira edição

Por uma nova leitura do direito

A cultura jurídica contemporânea, principalmente nos paí­ses de tradição romanística, encontra-se prisioneira de algunsimpasses epistemológicos e metodológicos. A concepção do di­reito como fruto da vontade do poder e, como tal, devendo seraplicado de forma mecânica na solução dos conflitos, ignorandorealidades econômicas e sociais, acha-se contestada em seusfundamentos pela própria mudança ocorrida na estruturação dopoder político. O processo de democratização, que toma contacomo se fosse uma onda política de todos os quadrantes doplaneta, acarretou também uma mudança substantiva na natu­reza da ordem jurídica. A ordem jurídica passou, progressiva­mente, a ter que lidar com conflitos de interesses e de valoresde uma sociedade pluralista e complexa, onde a norma de direi­to reflete a vontade democrática na sua formulação e envolve,portanto, na sua aplicação o emprego de critérios metajurídicos.

Para responder a esse desafio, alguns juristas e filósofoscontemporâneos, como Recaséns Siches, Alexy, Dworkin, Ha­bermas, Viehweg, Perelman, Tércio Sampaio Ferraz e outros,libertaram-se de uma metodologia de análise do fenômeno jurí­dico estritamente formalista e incorporaram no processo deaplicação do direito outros instrumentos conceituais e herme-

Page 10: 52842935-Margarida-Maria-Lacombe-Camargo-Hermeneutica-e-Argumentacao (2).pdf

L

nêuticos, que se encontram para além da ordem legal positiva­da. Nesse contexto de superação dos óbices resultantes de umadogmática estrita, é que o livro da professora Margarida Lacom­be Camargo traz para a literatura jurídica brasileira uma contri­buição original e atualíssima, destacando-se por enfrentar, como auxílio de alguns dos autores já referidos, o desafio nuclearpara a filosofia e a teoria do direito neste final de milênio: comorealizar uma radical e profunda alteração no modo de pensar eaplicar o direito, instrumento principal para assegurar a justiçana sociedade democrática e pluralista da contemporaneidade.

O livro da professora Margarida Lacombe Camargo investi­ga, assim, essa mudança de paradigma na teoria do direito,procurando estabelecer os parâmetros de uma nova hermenêu­tica jurídica, que corresponda no âmbito do direito ao movi­mento geral de refundação das ciências humanas e sociais dasúltimas décadas. Enquanto a dogmática clássica encontrou nosgrandes civilistas e nas codificações do século XIX o campopropício para desenvolver um modo de aplicação do direito, quese caracterizaria por um modelo de interpretação fundadonuma concepção abstrata do direito, e no fundo ideal do Estadoe da sociedade, o pensamento jurídico contemporâneo defron­ta-se, precisamente em virtude da chamada "crise do direito",com o desafio de construir uma nova forma de pensar e aplicaro direito. A "aplicação da lei", vale dizer, a adequação do fatoaos ditames da norma jurídica, consistia no objetivo central dadogmática clássica, que transitava no universo fechado do siste­ma jurídico não levando em conta o que Hans Kelsen chamoude fatores "a-científicos" na análise jurídica. O direito bastava­se a si próprio, como se fosse uma mônada dentro da qualdeveriam ser enquadrados os fatos e as relações sociais.

A professora Margarida Camargo chama a atenção para umadistinção sutil, ainda que pouco aceita no pensamento jurídico esocial brasileiro, entre o procedimento da interpretação legal ea hermenêutica jurídica. Na verdade, trata-se de uma elabora­ção mais ampliada da distinção entre dogmática e zetética, ondeTércio Sampaio Ferraz assinala a clivagem metodológica, quenos permite distinguir entre a ordem jurídica liberal e a ordem

jurídica do estado demc:crático de ~ireito. Enquanto a primeirabastava-se na formulaçao de um Sistema jurídico baseado'd" d d f' nai e~a : que o ireito posto, por ser ruto da representaçãolegislativa, e, por proclamar formalmente direitos e garantiasindividuais, seria suficiente para a solução dos conflitos, o se­gundo tipo de ordem jurídica integrava no seu âmbito de nor­matização indivíduos, grupos sociais, interesses e valores, quenão encontravam guarida no quadro do estado liberal de direito.A necessidade, portanto, de uma nova metodologia, de um novopensar jurídico, voltados para solucionar os conflitos complexosde uma sociedade pluralista, exigiu, também, a consideração naaplicação do direito de fatores até então considerados ajurídi­coso

Por essa razão, a hermenêutica assumiu papel de destaquena reflexão jurídica contemporânea. O processo hermenêuticoconsidera a norma como parte integrante do sistema jurídico,mas considera-a, também, como meio para a solução de confli­tos que não se caracterizam por suas dimensões estritamentelegais, pois· comportam aspectos sociais e valorativos, determi­nantes para a própria eficácia do direito. O contraponto entre ofato e a lei na compreensão hermenêutica torna-se mais eviden­te quando o procedimento interpretativo incorpora entre osdois pólos referidos a questão dos valores. Até então a doutrinae a jurisprudência consideravam o sistema jurídico como infen­so à influência dos valores encontrados na sociedade. Mas resi­de, precisamente, no conjunto de valores que fundamenta asociedade democrátiça de direito um espaço de interpretaçãoque não foi incorporado pela doutrina clássica, caracterizadapela dogmática civilista.

O livro da professora Margarida Camargo chama a atenção,assim, para a necessidade de uma hermenêutica que pense odireito de forma concreta, o que no quadro da pós-modernida­de significa assumir alguns pressupostos metodológicos que per­mitem pensar-se na elaboração de uma nova leitura para umnovo direito. Isto porque o livro abandona o culto do teóricojurídico absoluto e formalmente ideal, encontrado no modelodo direito liberal, e enfatiza o histórico, o complexo, o pluraldas convicções, dos interesses e das práticas, que ocorrem nas

Page 11: 52842935-Margarida-Maria-Lacombe-Camargo-Hermeneutica-e-Argumentacao (2).pdf

sociedades democráticas contemporâneas. Constatamos, então,como essa nova realidade social, política e institucional da pós­modernidade fez nascer não somente um novo sistema jurídico,mas principalmente um sistema que exige para a sua própriaeficácia um novo método de leitura das normas jurídicas, queexpressam novos valores sociais e políticos.

Em conseqüência, escreve a professora Margarida Camargo,o juiz como boca da lei, aquele que dirá, finalmente, "a verdadelegal" (Seabra Fagundes), deixa de ficar dependente de ummodelo rígido de interpretação. Não mais é chamado o juiz paraaplicar mecanicamente conceitos abstratos, quando determina­ções gerais com pretensões de plenitude deveriam domar osfatos sociais. Na verdade, ocorre exatamente o inverso no pro­cedimento hermenêutico, preconizado pela professora Margari­da Camargo. Aqui se procura fazer com que o juiz não fiqueprisioneiro do exercício logístico, que conflita com a realidadedas relações sociais. Buscam-se na filosofia procedimentos clás­sicos que irão revelar toda a sua riqueza ao serem aplicados naanálise do fenômeno jurídico.

Pretende-se, em última análise, a substituição de um mode­lo - o dogmático - por uma nova racionalidade. Mas, comoobserva judiciosamente a professora Mar&arida Camargo, nãobasta substituir um modelo por outro. E necessário que seestabeleçam condições sobre as quais o raciocínio jurídico possaincorporar as dimensões da pós-modernidade, que alguns pen­sadores contemporâneos não se aventuraram a considerar. Osfundamentos dessa nova racionalidade jurídica vão deitar suasraízes no emprego da tópica e da retórica, como instrumentosanalíticos essenciais para o perfeito e completo entendimentodo sistema jurídico da sociedade contemporânea. Somente em­pregando-se esses recursos metodológicos é que se poderá com­preender em toda a sua extensão e complexidade a ordemjurídica do estado democrático de direito. Essa ordem jurídicapressupõe para a sua plena eficácia esse tipo de entendimento,que possa ir além da norma positiva, situando-a no contexto deuma sociedade democrática e plural, para que o direito possaconstituir-se em fator de garantia, segurança e estabilidade so-

cial, e, ao mesmo tempo, ser um mecanismo da prática socialintegrador e disciplinador do progresso social. O direito pós­moderno aparece então, quando o lemos sob essa nova óticanão como instrumento de conservação social, mas sim com~agente da mudança social.

A Editora Renovar, fazendo justiça ao seu próprio nome,publicando a tese de doutorado da professora Margarida La­combe Camargo, contribui para a mudança de um enraizadomodo de pensar jurídico no Brasil. O culto do formalismo jurí­dico, e do conseqüente mecanicismo, na aplicação das normasjurídicas impregna de forma deletéria a formação jurídica noscursos de direito no Brasil. A publicação do trabalho da profes­sora Margarida Camargo permite, assim, que se preencha umvácuo nas letras jurídicas brasileiras, onde proliferam ainda àsvésperas do Terceiro Milênio tipos de entendimento do direitoe de sua aplicação que constituem sérios obstáculos para aconstrução de uma sociedade mais livre e mais justa, comopretende a Constituição de 1988 ao estabelecer um estadodemocrático de direito.

Vicente de Paulo BarrettoUERJ/UGF

Page 12: 52842935-Margarida-Maria-Lacombe-Camargo-Hermeneutica-e-Argumentacao (2).pdf

Prefácio à segunda e~ição

Toda nova edição traz novidades. Caso contrário, tratar-se­ia de uma reimpressão. Isso é natural principalmente depois doafã de publicar uma tese logo após a sua conclusão, quandoqueremos fazer circular as idéias fruto de pesquisa recente.Aliás, esse é um dos méritos da coleção de teses da editoraRenovar, da qual honrosamente participo, pois permite a divul­gação de pesquisas avançadas, normalmente desenvolvidas nosprogramas de pós-graduação. Portanto, fora a alegria da segundaedição, compete-me anunciar como e em que extensão as mo­dificações ora inseridas foram feitas.

Em primeiro lugar, os inevitáveis toques e retoques de cadanova leitura, e que geraram simples alterações na redação dotexto, de forma a torná-lo mais palatável. Em segundo, as notase citações: muitas foram incorporadas ao texto principal, tor­nando-o mais discursivo e menos intercalado; outras, antesapresentadas em língua estrangeira, foram agora livremente tra­duzidas, para facilitar o acesso ao público, mantidas algumas delíngua espanhola. E, por último, alterações substanciais, de es­trutura e conteúdo.

A estrutura do trabalho foi ligeiramente alterada, procuran­do um maior equilíbrio entre as suas partes e melhor disposiçãológica. Nesse sentido, os dois primeiros capítulos foram fundi­dos e o penúltimo, sobre Perelman, teve seus itens reordenados.

Page 13: 52842935-Margarida-Maria-Lacombe-Camargo-Hermeneutica-e-Argumentacao (2).pdf

Com relação ao conteúdo, a bibliografia aumentou e, conse­qüentemente, a análise amadureceu; o que pode ser notado doacréscimo de alguns parágrafos e referências em notas. Cabedestacar que muito disso é resultado dos seminários do curso deTeoria Geral do Direito ministrado no mestrado da Universida­de Gama Filho, quando o empenho e a participação efetiva dosalunos fomentaram o debate, avançando-se na obtenção de no­vas conclusões.

Somado ao prefácio do Professor Vicente Barretto, quemuito nos honra desde a primeira edição, contamos agora como também valioso estudo do Professor Antonio Cavalcanti Maia,como posfácio, sobre a importância da dimensão argumentativa àcompreensão da práxis jurídica contemporânea.

Este livro prevê continuidade. O projeto de pesquisa queestamos desenvolvendo no Setor de Direito da Casa de RuiBarbosa trata de tema correlato, e dará ensejo a outra publica­ção, voltada para a questão da tópica e dos princípios de direito,no processo de interpretação e aplicação das leis realizado pelostribunais. Portanto, o esforço teórico apresentado neste traba­lho de doutorado serve de balizamento às novas pesquisas, decunho mais pragmático. E assim o problema da hermenêuticamantém-se presente, da mesma forma com que a perspectivatópica-retórica continua a servir-nos de paradigma.

Por fim, gostaria de lembrar algumas pessoas amigas, cujaimportância foi grande nesse segundo momento. Antônio Maia,sempre. Nadia de Araujo, exímia interlocutora. E as inestimá­veis colaboradoras e companheiras do dia-a-dia, na Casa de RuiBarbosa: Cristina Alexandre, Thula Rafaela e Sabrina Naritomi.Agradeço também o prestimoso apoio de Maria Suely Cruz deAlmeida, da Universidade Católica de Petrópolis.

Petrópolis, janeiro de 2001.

Prefácio à terceira edição

Esta terceira edição do livro Hennenêutica e argumentaçãomantém firme a idéia original de oferecer "uma contribuição aoestudo do Direito". A ciência jurídica enfrenta uma crise deparadigma, vez que os padrões de cientificidade que marcarama Modernidade e sustentaram o aparecimento do positivismojurídico não oferecem mais respostas a indagações mais comple­xas que envolvem a ordem jurídica. Além de situações que nãose encaixam com facilidade em um ou único dispositivo legal, eportanto impossíveis de serem resolvidas mediante processológico-dedutivo, demanda-se, antes de tudo, legitimidade dafunção jurisdicional. O exercício da cidadania requer controledas decisões judiciais, tendo em vista o poder de criação do juize o respeito à lei. Nesse sentido, exige-se a motivação dasdecisões judiciais, o que significa dizer que, além da mera refe­rência legal que lhe sirva de fundamento, o juiz deve expor asrazões que o levaram a decidir em determinado sentido. Não setrata, propriamente, de um controle sobre suas ações de formaa responsabilizá-lo pela sentença que não agrade a quem querque seja, mas de compreender a decisão, de forma a propiciaruma contra-argumentação que propicie o consenso, respeitadasas regras processuais.

Portanto, há de se construir um novo paradigma capaz deabalizar devidamente o pensamento e a ação jurídica. A tópica e

Page 14: 52842935-Margarida-Maria-Lacombe-Camargo-Hermeneutica-e-Argumentacao (2).pdf

a retórica têm oferecido alternativas. Construções teóricas debase analítica também vêm sendo apresentadas para maior con­trole e objetivação do raciocínio valorativo. E, assim, a reporta­gem que apresentamos de alguns autores e teses mantém-seatual, da mesma forma que a idéia síntese do livro: o métodohermenêutico, como base do conhecimento construído pelaação interpretativa do sujeito e pela técnica argumentativa,mostra-se também bastante profícuo a tais considerações. Porisso, foi feita uma releitura de todo o texto, de forma a depurarimperfeições, perseguir o rigor técnico e aprimorar alguns con­ceitos. Vale lembrar também que as referências feitas à obra deHans-Georg Gadamer, Verdade e método, correspondem à edi­ção espanhola indicada na bibliografia, ainda que utilizadastraduções livres para o português.

Persiste a intenção de um outro livro que trate especifica­mente do respeito pelos direitos fundamentais do homem con­templados nas constituições dos estados, bem como do proble­ma das normas principiológicas que lhes dão guarida, cada vezmais presentes nos ordenamentos jurídicos contemporâneos.Um trabalho voltado para a estrutura normativa e para as condi­ções de sua aplicação. Mas em seqüência aos esforços até omomento empreendidos, alguns estudos isolados foram publi­cados, para os quais remetemos o leitor, como os textos intitu­lados "Eficácia constitucional: uma questão hermenêutica"! e"O movimento de superação do positivismo jurídico na aplica­ção dos direitos fundamentais"2.

Por fim, não poderia escapar destas poucas palavras o regis­tro de duas pessoas que contribuíram diretamente para asmodificações feitas, com suas idéias e generosidade acadêmica.

I. Publicado em Hermenêutica plural. Carlos E. de Abreu Boucaulte José Rodrigo Rodriguez (orgs.). São Paulo: Martins Fontes, 2002,p. 369 a 390.2. Publicado em Estudos em homenagem a Carlos Alberto MenezesDireito. Antonio Celso Alves Pereira e Celso Renato Duvivier deAlbuquerque Mello (orgs). Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 505 a526.

-..

São elas a doutora Hilda Bentes e Fernando Gama mestre,pela U G F e professor de direito processual civil. Agradeçotambém, mais uma vez, à Editora Renovar, pelo incentivo ecrédito depositado.

Page 15: 52842935-Margarida-Maria-Lacombe-Camargo-Hermeneutica-e-Argumentacao (2).pdf

..

,Indice

INTRODUÇÃO .

CAPÍTULO 1 - DIREITO, HERMENÊUTICA E INTERPRE·TAÇÃO 13

1.1. O DIREITO NO ÂMBITO DA COMPREENSÃO 151.2. DIREITO E INTERPRETAÇÃO 191.3. HERMENÊUTICA E INTERPRETAÇÃO 231.4. DOGMÁTICA E INTERPRETAÇÃO: O CÍRCULO

HERMENÊUTICO 49

CAPÍTULO 2 - O PENSAMENTO JUSFILOSÓFICO MO·DERNO: DA EXEGESE À JURISPRUDÊNCIA DOS VALORES 61

2.1. A ESCOLA DA EXEGESE 652.2. A CRÍTICA DE FRANÇOIS GÉNY 682.3. A ESCOLA HISTÓRICA DO DIREITO 732.4. O FORMALISMO JURÍDICO NA ALEMANHA 832.5. O POSITIVISMO JURÍDICO 862.6. A CRÍTICA DE JHERING AO FORMALISMO JURÍDICO

ALEMÃO 902.7. A JURISPRUDÊNCIA DOS INTERESSES 922.8. O MOVIMENTO PARA O DIREITO LIVRE 972.9. O RETORNO AO FORMALISMO COM HANS KELSEN 1002.10. A JURISPRUDÊNCIA DOS VALORES ll72.11. "VONTADE DA LEI" E "VONTADE DO LEGISLADOR" , 127

Page 16: 52842935-Margarida-Maria-Lacombe-Camargo-Hermeneutica-e-Argumentacao (2).pdf

p

I1

CAPÍTULO 3 - VIRADA PARA O pÓS·POSITIVISMO:A DISCUSSÃO METODOLÓGICA ATUAL. . . . . . . . . . . . . .. 135

3.1. A CONTRIBUIÇÃO DE THEODOR VIEHWEG: O USODA TÓPICA NO DIREITO ',' 139

3.2. A CONTRIBUIÇÃO DE RECASÉNS SICHES: A LOGICADO RAZOÁVEL. 161

3.3. A CONTRIBUIÇÃO DE CASTANHEIRA NEVES: ODIREITO COMO PRÁTICA E A ANALOGIA COMO

ME'TODO I75.......................

CAPÍTULO 4 - A NOVA RETÓRICA DE 185CHAIM PERELMAN .

4.1. A JUSTIÇA NO PENSAMENTO PERELMANIANO 1924.2. A NOVA RETÓRICA 1994.3. O AUDITÓRIO UNIVERSAL 2114.4. DELIBERAÇÃO E JUSTIFICATIVA ',' 2234.5. A LÓGICA JURÍDICA OU A LÓGICA DO RAZOAVEL. 2284.6. TÓPICA E ARGUMENTAÇÃO , 235

CAPÍTULO 5 - PERSPEC)'IVAS DA RACIONALIDADEJURÍDICA CONTEMPORANEA , 249

BIBLIOGRAFIA , 261

POSFÁCIO DE ANTONIO CAVALCANTI MAIA 271

Introdução

A versão original deste trabalho foi apresentada à Uni­versidade Gama Filho, em junho de 1998, como tese dedoutorado. O título "Hermenêutica e argumentação: umacontribuição ao estudo do direito" remete-nos ao trata­mento dado à questão da hermenêutica jurídica, vista sobo ângulo das ciências sociais, antes denominadas "ciênciasdo espírito",! intermediada pela interpretação, cuja basetécnica, para nós, é a argumentação. A idéia de direito queassumimos corresponde especificamente ao que está nalei, na doutrina e na jurisprudência, e que compõe a cha­mada dogmática jurídica, sem desprezar os costumes.2 Re-

1. Essa denominação é trazida primeiramente por Wilhelm Dilthey,para designar as características próprias das ciências culturais a seremconsideradas pela hermenêutica. São ciências que repousam sobre aexperiência vivida, que deve antes ser compreendida do que mera­mente explicada. A história, a arte e o direito, por exemplo, são mani­festações que expressam o espírito dos seus autores. "We understandthem by grasping this spirit. Such understanding involves our livedexperience of our culture." Cf. The Oxford Companion to Philosophy,p.201.2. Caberia lembrar aqui a idéia de "direito pressuposto" desenvolvi-

Page 17: 52842935-Margarida-Maria-Lacombe-Camargo-Hermeneutica-e-Argumentacao (2).pdf

conhecemos o direito como área humana e social, mastambém consideramos os limites que nos são impostospela dogmática, pois todo exercício de "compreensão",que a hermenêutica jurídica requer, encontrar-se-á referi­do a um campo conceitual próprio ditado pela razão, e quedelimita a dogmática.

Duas questões se apresentam como molas propulsorasdeste estudo e que, de certa forma, podem constar comopremissas. A primeira consiste na insuficiência da herme­nêutica jurídica tradicional, ainda em voga nos nossos cur­sos de direito; a outra, a desconfiança que pesa sobre odireito, em geral visto como produto do arbítrio dos juízes.Não se trata de estabelecer um estatuto de cientificidadepara o direito, muito porque a discussão não enfrenta dire­tamente a complexa questão da interdisciplinaridade, masao menos trazê-lo para um campo de aceitação, legitimida­de e controle.

O objeto de estudo da hermenêutica jurídica tradicio­nal consiste nas chamadas "técnicas de interpretação dasleis". Com objeto certo, a hermenêutica jurídica costumaser apresentada como ciência, mais especificamente comoa parte da ciência do direito que tem por objeto as técnicasde interpretação. É esta, por exemplo, a inteligência deCarlos Maximiliano, autor brasileiro, cuja obra intituladaHermenêutica e aplicação do direito, escrita em 1924, con­tinua a ser reeditada como uma das mais significativas so­bre o tema. Ensina o autor:

da por Eros Roberto Grau em O direito posto e o direito pressuposto,p. 44: "O legislador não é livre para criar qualquer direito posto (direi­to positivo), mas este mesmo direito transforma sua (dele) própriabase [... ] O direito pressuposto condiciona a produção do direito pos­to (positivo). Mas o direito posto transforma sua (dele) própria base."

2

. A H~rm~nêutica Jurídica tem por objeto o estudo e aslstematlzaçao dos processos aplicáveis para determl'

'd I d . nar osent! o e ~ a. cance as expressões do direito. [... ] Para[aphcar o direito] se faz mister um trabalho preliminar: des­cobri.r e fixar o s:ntido verdadeiro da regra positiva; e, logodepOIS, o respectivo alcance, a sua extensão. Em resumo oexecutor extrai da norma tudo o que na mesma se conté~:é o que se chama interpretar...3

Esse viés cientificista pretendeu durante muito tempoestabelecer critérios de interpretação que conferissem ob­jetividade à interpretação das leis e, por conseguinte, à ta­refa jurisdicional. Na realidade, o que ocorre é que a utili­zação dessas técnicas não alcança o seu objetivo. Primeiroporque não existe entre elas nenhuma hierarquia e assim, ,o seu comando torna-se fluido. Segundo, porque tal orien­tação ignora a dimensão criadora do intérprete, que voltasua atenção antes para a resolução de determinado proble­ma do que para a lei em si, analisada como hipótese virtual,e com conteúdo próprio, previamente determinado.

Os livros didáticos sobre Introdução ao Estudo do Di­reit04 invariavelmente apontam para as técnicas gramati-

3. Carlos Maximiliano. Hermenêutica e aplicação do direito, p. 1.Grifo nosso.4. A título de exemplo, dentre os autores que seguem essa orienta­ção, destacamos Paulo Dourado de Gusmão, Paulo Nader, RonaldoPoleti, Maria Helena Diniz, Miguel Reale e Tércio Sampaio Ferraz Jr.,além dos clássicos da hermenêutica no Brasil, que são: Limongi Fran­ça, Carlos Maximiliano e Alípio Silveira. Este último traduz bem essatendência ao dedicar toda uma obra sobre o conteúdo prático da her­menêutica jurídica, através da utilização de suas técnicas. Nela, en­contramos as seguintes perguntas: Quais os métodos conhecidos?Quais as Suas aplicações? Como têm sido aplicados? Qual a experiên­cia de sua aplicação? São questões que o prefaciador de Hermenêuticano direito brasileiro, Themístocles Brandão Cavalcanti, aponta comoorientadoras da obra de Silveira. Para Themístocles Cavalcanti, "o

3

Page 18: 52842935-Margarida-Maria-Lacombe-Camargo-Hermeneutica-e-Argumentacao (2).pdf

cal, lógico-sistemática, histórico-evolutiva, axiológica outeleológica, com variações de nomenclatura, para indicaros procedimentos apropriados à atividade jurisdicional,que compromete tanto o juiz quanto os advogados e de­mais órgãos públicos chamados a se manifestar na lide.Ora, estas técnicas, que remontam a Savigny, com exceçãoda teleológica, nem por ele eram vistas como forma de sechegar a uma conclusão objetiva e previsível sobre o signi­ficado da lei. Savigny limitou-se apenas a indicar os ele­mentos constitutivos da norma, passíveis de serem consi­derados numa interpretação. São, na realidade, elementosque informam e orientam a lei sem, contudo, sobrepor-seao comando do problema, ou seja, à dimensão prática econcreta do caso.

A idéia de método afigura-se como preocupação daciência moderna em proporcionar resultados logicamentedeterminados de acordo com cada área de investigação.Mas, com relação ao direito, o intento científico enfrentouobjeções, dada a sua carga valorativa, centralizada princi­palmente na questão da justiça, que nunca alcançou o sta­tus de cientificidade. De outro lado, a necessidade de or­dem e segurança faz com que, mais do que a justiça, pro­priamente, ganhe ênfase a certeza das soluções jurídicas.s

problema da hermenêutica é o da exata significação dos textos legais;interpretar é traduzir a lei em termos que possam permitir a sua apli­cação com exatidão, exprimindo o sentido da norma em função, nãosó dos objetivos do seu autor, mas também em função das condiçõessociais, econômicas, políticas e do tempo em que ela é aplicada." Cf.Alípio Silveira, Hermenêutica no direito brasileiro, p. XV.5. Um dos arautos da hermenêutica jurídica tradicional é o professoritaliano Francesco Ferrara, que escreve, em 1921, no seu Tratatto deDiritto Civile Italiano sobre "Interpretação e Aplicação das Leis" ­capítulos I1I, IV e V. São dele as seguintes palavras:

"O juiz é o intermediário entre a norma e a vida: é o instrumento

4

Com relação à interpretação, em linhas gerais, o queprevalece atualmente, segundo a doutrina tradicional, é a"vontade objetiva da lei". A vontade subjetiva, de quemlhe deu origem, ainda que um corpo colegiado, cede lugarà vontade objetiva, que deve ser traduzida no momento desua aplicação, quando ela é chamada a produzir efeitos.Com a evolução do pensamento jusfilosófico, a idéia deprestigiar a razão contida na lei ganha cada vez mais força,ainda que se houvesse tentado, num primeiro momento,transferir a vontade do legislador, vista como a única legí-

vivo que transforma a regulamentação típica imposta pelo legisladorna regulamentação individual das relações dos particulares; que traduzo comando abstrato da lei no comando concreto entre as partes, for­mulado na sentença. O juiz é a viva vox iuris.

O juiz, porém, está submetido às leis, decide como a lei ordena, éo executor e não o criador da lei. A sua função específica consiste naaplicação do direito.

[...]Decerto o juiz nem sempre pode dar satisfação às necessidades

práticas, limitando-se a aplicar a lei; alguma vez se encontrará emmomentos trágicos de ter de sentenciar em oposição ao seu sentimen­to pessoal de justiça e de eqüidade, e de aplicar leis más. Tal é, porém,o seu dever de ofício. Na reforma das leis, na produção do direito novopensam outros órgãos do Estado: ele não tem competência para isso.

Só com esta condição se pode alcançar aquela objetiva segurançajurídica que é o bem mais alto da vida moderna, bem que deve prefe­rir-se a uma hipotética proteção de exigências sociais que mudam aosabor do ponto de vista, ou do caráter, ou das paixões do indivíduo.Esta é a força da justiça, a qual não é lícito perder, se não deve vacilaro fundamento do Estado; mas esta é também a sua fraqueza, a qualnós devemos pagar, se queremos obter a inestimável vantagem de opovo nutrir confiança em que o direito permaneça direito." FrancescoFerrara, Interpretação e aplicação das leis, p. 111 e 174.

Em sentido semelhante escreve Paulo Dourado de GuSmã9: "defi­nimos direito como a realização da segurança com o mínimo sacrifícioda Justiça". Cf. Introdução ao estudo do direito, 21 a ed., 1997, p. 215.

5

Page 19: 52842935-Margarida-Maria-Lacombe-Camargo-Hermeneutica-e-Argumentacao (2).pdf

p

tima, para uma outra época. Não obstante a propriedadedeste novo modo de pensar, o que se verifica, ainda, é adistância ou o desligamento entre a vontade da lei e o casoconcreto no trabalho do intérprete.6 Pelo menos é o queafirma a doutrina. Paulo Dourado de Gusmão, por exem­plo, um dos mais festejados juristas brasileiros de nossaépoca, inicia o capítulo do seu livro dedicado à hermenêu­tica jurídica, com a seguinte frase: "A interpretação visa adescobrir o sentido objetivo do texto jurídico" / inde­pendentemente, portanto, do caso sub judice.

Pretende-se que o intérprete desvele os valores prote­gidos no texto que traduz o comando legal, exploradas to­das as suas possibilidades gramaticais, bem como o queconstaria das suas entrelinhas, de forma a conhecê-los an­tes mesmo de aplicar a lei ao caso concreto. A hermenêu­tica atua, assim, muito mais no campo virtual do código eda doutrina, do que no campo do real. Segue-se daí o me­canismo da subsunção, em que o fato subsume-se à lei,extraindo-se a sentença por meio de uma operação lógica,da seguinte maneira: quem matar estará sujeito à pena dedetenção de 6 a 20 anos; fulano matou: logo, fulano serácondenado a x anos de detenção. Ocorre que o direito lidadiretamente com o elemento humano, que não é homogê­neo, e sob circunstâncias históricas e culturais diferencia­das. Ainda que se trate muitas vezes de uma questão apa­rentemente simples, como a que acabamos de apontar, emque o direito à vida é incontestável e que a matéria de fato

6. No âmbito do direito constitucional, Friedrich Müller, KonradHesse e Gomes Canotilho apontam para uma hermenêutica concreti­zadora, que requer do intérprete maior compromisso com a realidadesocial (vide bibliografia).7. Paulo Dourado de Gusmão. Introdução ao estudo do direito, 17"ed., Editora Forense, Rio de Janeiro, 1995, p. 233.

6

comprove a ocorrência do crime, os fatores pessoais cir­cunstanciais e históricos têm de ser sopesados pelo ju'iz deforma a atribuir para o réu uma pena "justa".8

Daqui depreendemos que a atividade jurisdicional nãoé automática e, portanto, nunca poderá ser substituídapela máquina. O juiz, como elemento humano dotado derazão e sensibilidade, é capaz de ponderar e decidir, semque com isso lhe atribuamos arbitrariedade. A discriciona­riedade atribuída ao juiz pode, muitas vezes, produzir dú­vidas, mas para isso é exigida não apenas a fundamentaçãode suas decisões, como também prevalece a regra do duplograu de jurisdição; ambas capazes de oferecer alguma espé­cie de controle. Dessa forma, discursos inconsistentes eeventuais acidentes provocados por juízes de boa-fé po­dem ser revistos pelos tribunais superiores. Afinal, fazemparte do direito a ponderação e a dialética na interpretaçãodas leis, constando, portanto, como insuficiente para umadecisão pretensamente correta a simples aplicação de téc­nicas determinadas. Não existe técnica jurídica capaz degarantir, por si só, que o juiz julgará bem.9

8. Vale lembrar, ainda que superficialmente, a idéia da "justiça cor­retiva" apresentada por Aristóteles, no livro V, da Ética a Nicômacos,baseada na proporção aritmética possível de estabelecer um "meio­termo" entre perda e ganho.9. Bem, aqui, no sentido de uma solução razoável; se não justa, próxi­ma do que poderia ser acreditado como justo.

Aristóteles vincula a idéia de bem à idéia de excelência. Segundoele, "o bem para o homem vem a ser o exercício ativo das faculdadesda alma em conformidade com a excelência" (Ética a Nicômacos,1098 a, p. 24.) Neste caso, julgar bem significa jul~ar acertadamente,"pois bem e acertadamente são a mesma coisa" (Etica a Nicômacos,1143 b, p. 121). A excelência torna, então, a coisa acertada. Citandoainda Aristóteles, temos que: "Chamamos de julgamento (isto é, afaculdade graças à qual dizemos que uma pessoa julga compreensiva­mente) a percepção acertada do que é eqüitativo. Uma prova disto é

7

Page 20: 52842935-Margarida-Maria-Lacombe-Camargo-Hermeneutica-e-Argumentacao (2).pdf

Pretendemos, então, demonstrar no nosso trabalhoque a compreensão requerida pelo direito poderá ser reali­zada e apresentada concretamente, mediante o recursotécnico da argumentação, enquanto a argumentação, comoinstância dialógica, permite o exercício da liberdade, doconfronto e do amadurecimento de idéias, em direção auma solução jurídica nem certa nem errada, mas razoá­vel. lo Em lugar de procurarmos técnicas capazes de garan­tir a certeza e a objetividade científica para o direito, comoforma de evitar a arbitrariedade produtora de todos os ma­les, propomos uma outra via de análise, de natureza meto­dológica, que pretende indagar antes sobre a racionalidadeque preside o direito, e ver até onde é possível prever solu­ções com alto grau de certeza.

Muito embora nossas conclusões pretendam contribuirpara que o direito seja visto como um campo específico doconhecimento, no sentido de possuir uma tipicidade me­todológica, temos plena consciência de que este debateainda está longe de se esgotar. A interdisciplinaridade pró­pria do direito dificulta qualquer tentativa de se tentar in­cluí-lo nos núcleos de apoditicidade que caracterizam aciência moderna. Por outro lado, queremos fugir do niilis­mo de que tudo o que é racional, e pode ser demonstradoempiricamente, é crível; e o que não pode fica simples­mente relegado ao campo da irracionalidade ou do arbí-

o fato de dizermos que uma pessoa eqüitativa é, mais que todas asoutras, um juiz compreensivo acerca de certos fatos. E julgamentocompreensivo é o julgamento no qual está presente a percepção doque é eqüitativo, e de maneira acertada; e julgar acertadamente éjulgar segundo a verdade."(Ética a Nicômacos, 1143 a, p. 123.)10. O termo "razoável", aqui utilizado, não deve sugerir uma decisãosimplesmente aceitável, mas sim justa e legítima, conforme as teoriasapresentadas ao longo do trabalho.

8

to

trio. Percebemos que é essa a tendência que ainda prevale­ce nos nossos cursos jurídicos, e não é por menos que asociologia do direito, com suas precisas técnicas de inves­tigação, tenha ocupado durante algum tempo praticamen­te todo o campo da pesquisa jurídica no Brasil.

Entretanto, atualmente pode ser notado o revigora­mento da pesquisa jurídica de matriz jurisprudencial, cujaênfase recai sobre os efeitos concretos da aplicação do di­reito, tendo em vista principalmente sua repercussão pes­soal. Este é o modelo, denominado de jurisprudencialis­mo, apontado por A. Castanheira Neves, como sucessor donormativismo legalista e do funcionalismo jurídico ante­riores, e que busca enfrentar a crise de sentido pela qualatravessa o direito. ll

Tendo em vista, portanto, a necessidade de aprofun­dar-nos sobre o sentido do direito, que transparece apenasem seus efeitos concretos, isto é, nas decisões judiciais, éque procuramos, neste primeiro momento, rever os pa­drões da hermenêutica tradicional, de forma a recuperartemática de extrema importância para o enfrentamento dacrise do modelo positivista.

11. A. Castanheira Neves, no trabalho intitulado "Entre o 'legislador',a 'sociedade' e o 'juiz' ou entre 'sistema', 'função' e 'problema' - osmodelos atualmente alternativos da realização jurisdicional do Direi­to", publicado na separata do Boletim da Faculdade de Direito daUniversidade de Coimbra, voi. LXXIV, 1998, fala do jurisprudencia­lismo de natureza antropológica e axiológica. Em suas palavras, "o quedá sentido ao jurisprudencialismo é uma outra perspectiva bem dife­rente. Designamo-la por perspectiva do homem (do homem-pessoa), i.é, aquela perspectiva em que o direito, com uma sua normatividadeaxiologicamente fundada, é assumida por, e está diretamente ao servi­ço de uma prática pessoalmente titulada e historicamente concre­ta ...... Cf. p. 18.

9

Page 21: 52842935-Margarida-Maria-Lacombe-Camargo-Hermeneutica-e-Argumentacao (2).pdf

Nossa idéia é aproximar mais a teoria da argumentaçãoda hermenêutica jurídica, ou vice-versa, pois que, em ge­ral, elas são tratadas separadamente. Por isso, situamo-nosno que agora tem sido chamado de "tradição tópico-retóri­ca", relativa às ciências que se ocupam do discurso e dadialética, mais especificamente, das chamadas "ciênciasdo espírito". Assim, definimos o seguinte marco teórico: ahermenêutica relacionada à compreensão; a decisão jurídi­ca à atividade criadora ou de concretização; o direito cir­cunscrito fundamentalmente ao campo dogmático; a teo­ria da argumentação como técnica jurídica, para, finalmen­te, tratarmos da interpretação como processo de interme­diação entre a compreensão e a concretização da norma,tendo em vista a fundamentação legitimadora das decisõesjudiciais.

No primeiro capítulo do livro, procuramos estabeleceralgumas noções sobre o que entendemos como hermenêu­tica. Para nós, a hermenêutica não se resume no estudo dastécnicas de interpretação, mas nos remete à compreensãodo próprio ser no mundo, que se encontra envolvido comquestões que é chamado a resolver, dentre elas a jurídica.O direito, por sua vez, não é algo que se apresente indistin­tamente do sujeito, mas algo que o sujeito histórico vive,de forma a comprometer, inclusive, as suas ações. Por ou­tro lado, a inter-relação entre compreensão e interpreta­ção, que, muitas vezes, faz com que sejam identificadasentre si, leva-nos a crer que podem ser pensadas separada­mente. No direito, a pré-compreensão é muito acentuada,uma vez que os aspectos históricos e culturais que a infor­mam encontram-se relacionados a um campo conceitualpróprio, a dogmática, que orienta a ação jurisdicional. Poroutro lado, a compreensão do fenômeno jurídico é facil­mente caracterizada no contraditório judicial produzidopela interpretação apresentada pelas partes. O embate

10

dialético entre teses opostas, que verificamos em juízo, ésuficiente para que fique caracterizado o esforço argumen­tativo de se firmar um entendimento para cada questão,ainda que não seja o único possível e, com isso, concretizaruma determinada hipótese legal, pondo fim ao conflito.

No segundo capítulo, apresentamos algumas escolas oumodelos jurídicos de tradição romano-germânica, que sedesenvolveram ao longo da história e que serviram de ori­gem ao direito brasileiro, cuja fonte principal é a lei escri­ta. Dessa forma, excluem-se das nossas considerações oexemplo da common law e as correntes realistas que lhesão afeitas. O estudo do direito a partir de suas fontes: lei,costume, fato social, etc., que serviram de orientação àsdiversas escolas e movimentos teóricos que caracterizaramo direito do século XIX, orientam também a sua metodo­logia. Logo, pensar o direito, ou o que devemos entendercomo direito, é pensar qual o seu campo de incidência;enfim, como deve ser interpretado. Para a Escola da Exe­gese, por exemplo, o direito deveria ser interpretado res­tritivamente, inclusive por problemas de ordem política­é quando o Estado liberal se instaura e o racionalismo estáem voga. Já a Escola Histórica é marcada pela crítica inci­siva contra o apriorismo do século XVIII, gerador de con­cepções abstratas e distantes da realidade histórica e so­cial. l2 A partir daí fica patente que a concepção hermenêu­tica da ordem jurídica é também filosófica, como mostrasua ligação com o racionalismo, o romantismo, o positivis­mo e o realismo. Convém, portanto, abordar algumas dasprincipais' escolas jusfilosóficas que marcaram o pensa­mento continental europeu, que foi o nosso berço, de for-

12. Nesse sentido vale a leitura do verbete sobre a Escola Histórica doDireito, escrito por Alexandre Correia e publicado na EnciclopédiaSaraiva do Direito, vaI. 33, p. 28 e segs.

II

Page 22: 52842935-Margarida-Maria-Lacombe-Camargo-Hermeneutica-e-Argumentacao (2).pdf

ma a analisarmos os avanços e recuos que acompanharam ahermenêutica jurídica tradicional.

Em seguida, enfatizamos o estudo da tópica, que muitocontribuiu para a mudança do enfoque metodológico debase positivista. Para tanto, trouxemos ao nosso campo deconsiderações o trabalho de Theodor Viehweg, que servecomo paradigma nessa discussão, e de outros dois juristas,Recaséns Siches e Castanheira Neves, que compartilhamconosco da visão concretizadora do direito e cujas origenslatino-européias facilitaram a sua entrada em nosso país,influenciando uma geração de novos juristas.

No último capítulo, concentramo-nos na idéia da "lógi­ca do razoável", de Chaim Perelman, que melhor respondeà questão da legitimidade na interpretação do direito, umavez que a argumentação, na busca do acordo e do consen­so, é capaz de conferir à lei o significado mais adequadopara cada situação. Tomamos, pois, como parâmetro, aNova Retórica, que consiste numa das maiores contribui­ções jusfilosóficas de nosso século e é responsável pelaenorme reviravolta que a filosofia do direito vem sofrendo.

Finalmente, gostaríamos de deixar claro que, nada obs­tante recorrermos à tópica como modelo de compreensãodo fenômeno jurídico, não abandonamos a visão sistêmicae dogmática inerente ao próprio direito. Daí tomarmoscomo referência o trabalho de Tércio Sampaio Ferraz Jr.- autor que talvez mais tenha trabalhado com a tópicajurídica no Brasil e que consegue aproximar o direito datópica, sob uma perspectiva dogmática.

12

Capítulo I

DIREITO, HERMENÊUTICAE INTERPRETAÇÃO

o tema da hermenêutica e da interpretação jurídicasremetem-nos ao processo de aplicação da lei realizado peloPoder Judiciário. Sob essa ótica, só faz sentido interpretar­mos a lei tendo em vista um problema que requeira solu­ção legal. Mas a aplicação da lei deverá atender, antes detudo, o indivíduo e a sociedade a quem ela serve. Por isso,pensamos a lei em função de situações específicas, ou decasos concretos que envolvem pessoas.

A norma jurídica encontra-se sempre referenciada avalores na medida em que defende comportamentos ouserve de meio para atingirmos fins mais elevados. Assim, oproblema jurídico, que envolve situação de natureza valo­rativa, deve ser compreendido. Compreender é buscar osignificado de alguma coisa em função das razões que aorientam. Buscar os valores subjacentes à lei, e que fogemda mera relação causa-efeito. Para aplicá-los, não basta de­tectarmos o fato e encaixá-lo a uma lei geral e abstrata

13

Page 23: 52842935-Margarida-Maria-Lacombe-Camargo-Hermeneutica-e-Argumentacao (2).pdf

"

li

dando-lhe concretude, como se a subsunção da premissamenor à premissa maior conferisse uma solução necessá­ria, mediante operação puramente formal. Não. O direitoé comprometido com valores, e a norma que buscamos notexto através da interpretação encontra-se relacionada auma situação histórica da qual fazem parte o sujeito (intér­prete) e o objeto a ser interpretado (fato e norma). Assim,podemos afirmar que o processo de interpretação e deaplicação das leis corresponde a uma situação hermenêuti­ca, da qual nos fala Gadamer. 13

Hermes, na mitologia grega, era um deus de muita agi­lidade e sapiência. Ao nascer, desfez-se sozinho da banda­gem que o envolvia e ganhou as estradas. Conforme JunitoBrandãol4 nos relata, Hermes logo furtou um rebanho deApolo, prendendo no rabo das ovelhas um ramo que, arras­tado ao chão, apagava seus rastros. Ao ser indagado porZeus, seu pai, sobre o ocorrido, depois de alguma relutân­cia concordou em dizer a verdade, mas não toda a verdadeou não a verdade por inteiro. E dessa forma, Hermes tor­nou-se o mensageiro predileto dos deuses: aquele que de­tém o conhecimento e que é capaz de decifrar corretamen­te as mensagens divinas. Conhecedor e intérprete das von­tades ocultas, Hermes ganhou fama de sábio, tornando­se importante, mais tarde, para o desenvolvimento daciência.

Daí se segue que a visão hermenêutica atual é aquelaque privilegia a busca do conhecimento de algo que não seapresenta de forma clara. A complexidade das ciências so-

13. Cf. Hans-Georg Gadamer. Verdad y metodo. Sígueme: Salaman­ca, 1993; e O problema da consciência histórica. Fundação GetulioVargas: Rio de Janeiro, 1998.14. Cf. Junito de Souza Brandão. Mitologia grega, vol. li, p. 191.

14

ciais, sempre referidas a valores, faz com que a verdade seapresente de forma oculta ou que seja, ao menos, discutí­v~l. Cabe falarmos em hermenêutica nesta área do conhe­c~me?~o que nã? s.e su~mete à certeza da investigaçãoCientiflCa. E o direito nao foge à regra. A herme A t'. 'd' f neu icaJUfl_ lCa re. ere:se, assim, a todo um processo de interpre-taçao e aplIcaçao da lei que implica a compreensão total dofenômeno que requer solução.

1.1 O direito no âmbito da compreensão

O conhecimento que requer compreensão difere dequalquer outro cuja repe~ição dos fenômenos seja possívele, portanto, previsível. E o caso das ciências empíricascomo a física, a química e a biologia, que possuem regra~capazAes ~e permitir-nos controlar, com algum rigor, aocorrenC1~ de seus fenômenos. As ciências do espírito, por~ua ~ez, dizem respeito às relações humanas que, por si só,implicam uma relação histórica e de liberdade. 15 São rela­ções que se estabelecem no campo da ética; fogem da re-

15. Gadamer define as ciências do espírito em função do comporta­ment~ ~tico .?O ?omem, t?~ando por base Aristóteles, da seguintef~:m~. As ClenClas do espmto fazem mais parte do saber moral. SãoClenClas morais. Seu objeto é o homem e o que este sabe de si mesmo.Agora be~, este saber-se a si mesmo como ser que atua, e o saber quetem de SI me.smo não pretende comprovar o que é. O que atua trataantes com ~o~sas que nem sempre são como são, senão que podem sertamb~m dlstmtas. Nelas descobre em que ponto pode intervir suaatuaçao; s:u sab:r deve dirigir seu fazer." Verdade e método, p. 386.

!~ ~ dlmensao humana, própria das ciências do espírito, e que opOSltlVlsmo afasta, é explicitada por Paul Ricoeur desta forma: "Oho~en: não é radicalmente um estranho para o homem, porque forne­ce smalS de sua própria existência. Compreender esses sinais é com­preender o homem." Interpretação e ideologias, p. 25.

15

Page 24: 52842935-Margarida-Maria-Lacombe-Camargo-Hermeneutica-e-Argumentacao (2).pdf

petição e da imutabilidade, enquanto admitem, em lugardestas, a variedade e a probabilidade. 16 Logo, as ciências doespírito, por corresponderem a aspectos inerentes à exis­tência humana, foram muitas vezes relegadas ao estudo damoral e da religiãO, porque incapazes de produzir uma ver­dade cientificamente comprovada. Com a virada da filoso­fia, em meados do século passado,I7 para a ontologia e parao existencialismo, em que ganham proeminência o ser no

16. A respeito da atividade inovadora do espírito, capaz de instaurarformas novas de ser e de viver, ao contrário da natureza, que se repete,ensina o mestre Miguel Reale: "Se a natureza, como natureza, obedecea leis de uma previsão pelo menos estatística, e se os fatos naturaismarcam um nexo de causa e efeito ou de funcionalidade, segundo oprincípio de que nada acontece que não seja através de uma transfor­mação do já existente, que nada cria de novo, porque tudo, de certamaneira, se repete, já o espírito representa a inserção de algo de con­tingente na natureza, e ao mesmo tempo de vinculante do particularem uma compreensão de totalidade. [...] Ora, graças à verificação detais fatos, podemos afirmar que o espírito humano se projeta sobre anatureza, dando-lhe uma dimensão nova. Esta dimensão nova são va­lores, como a fonte de que promanam. O valor, portanto, não é proje­ção da consciência individual, empírica e isolada, mas do espírito mes­mo, em sua universalidade, enquanto se realiza e se projeta para fora,como consciência histórica, na qual se traduz a interação das consciên­cias individuais, em um todo de superações sucessivas. [...] O elemen­to de força, de domínio ou de preponderância dos elementos axiológi­cos ou dos valores resultaria, portanto, dessa tomada de consciênciado espírito perante si mesmo, através de suas obras: os valores, emúltima análise, obrigam, porque representam o homem mesmo, comoautoconsciência espiritual; e constituem-se na história e pela históriaporque esta é, no fundo, o reencontro do espírito consigo mesmo, doespírito que se realiza na experiência das gerações, nas vicissitudes doque chamamos 'ciclos naturais', ou civilizações." Introdução à filoso­fia, p. 154 e 155.17. José Lamego aponta para uma "virada hermenêutica" no final dadécada de 1960, precedida de um amplo debate sobre a "tópica". Cf.Hermenêutica e jurisprudêneia, p. 96.

16

seu acontecer, a ciência também aproveita p~ f ara rever seus

parametros ormalistas, orientando-se para uma no d'- d va Ire-

çao, marca a, ago~a, pelo pluralismo, pela intersubjetivi_dade e pela expenência histórica. Por outro lado as .

. . , malSrecentes InVestIgações sobre a razão moral têm apontado~ara uma base argumentativa que sugere o resgate da retó­nca e da tópica antigas.

.. A,esfera da vida referente ao agir encontra-se antes su­~eI~a a compre~nsã~ do sentido que ensejou a ação, do quea sImples explIcaçao de relações que lhe tenham servidode ca~sa. ~ idéia é a de que as ações humanas, orientadaspara fInalIdades, encontram-se inseridas em um porq ~h' ,. d ue

:stonco, a mesma forma que o intérprete é um ser tam-b~~ historicamente orientado e que faz parte de uma tra­dlçao. A norma jurídica constitui-se, assim, em um fazerh~man.?, ~arregado de sentido. E o direito, propriamentedIto, nao e no.r~a geral, porém, norma individual, pois so­mente as declso~s dos juízes é que efetivamente obrigam.~on: a sentença e que sabemos, efetivamente, qual o nossodIreIto ou a nossa obrigação. Antes disso, a norma atua~penas como parâmetro e orientação para a conduta, semI~p~tar qualquer dever, como diria Kelsen. Para nós, odireIto apresenta-se jungido à própria hermenêutica umavez que a ~ua ~xistência, enquanto significação, de~endeda con~retlzaç~oou da aplicação da lei em cada caso julga­do. AssIm, apoIamo-nos na filosofia de Hans-Georg Gada­mer,I8 que se baseia na relação fática entre compreensão e

18. Apesar _de ~adamer não estabelecer uma nítida distinção entrecompreensao ~ I~terpretação, conforme pretendemos, porque os en­tende c~m? sImilares, a sua concepção ôntica e historicista sobre ahermeneutIca serve aos nossos propósitos.

José La~e~o também trabalha a filosofia de Gadamer em termosde. hermeneutIca como filosofia prática, aproximando as noções deverdade e de compreensão como contraponto da visão historicista he-

17

Page 25: 52842935-Margarida-Maria-Lacombe-Camargo-Hermeneutica-e-Argumentacao (2).pdf

interpretação, no âmbito da experiência, conforme estabe­lecido anteriormente por Heidegger,19 e Dilthey,20 que jáhavia referenciado a hermenêutica à dinâmica da vida. 21

geliana, que propõe para o direito o método científico-espiritual. Arespeito escreve: "Já não assim as impostações que acompanham aviragem ontológica da hermenêutica: segundo estas, a hermenêutica,como modalidade de filosofia prática, implicará a superação do méto­do - e a questão das garantias da objetividade -, para desembocardiretamente na questão da verdade, entendida esta não como correspon­dência mas em termos hermenêuticos, como desoeultação (aletheia). E,deste ~od~, a compreensão remeteria para a virtude dianoética daphronesis, tratando-se na aplicação hermenêutica não apenas de coor­denar a situação particular à pauta geral, mas, nessa coordenação con­seguida (Le., a realização de uma applicatio), potenciar a realizaçãodas possibilidades do direito enquanto ser possível dentro do seu con­texto vital, quer dizer, permitir a realização do justo concreto. Ou seja:por via da hermenêutica fundamentar-se-ia uma concepção jusnatura­lista que daria, simultaneamente, conta da dimensão de historicidadede todo o direito." Hermenêutica e jurisprudência, p. 90-91.19. Para Heidegger, a compreensão é um campo de possibilidades quese abre ao ser presente. Na compreensão, a presença projeta seu serpara possibilidades. É um poder-ser que repercute sobre a presençadas possibilidades enquanto abertura. Por sua vez, o projetar da com­preensão possui a possibilidade própria de se elaborar em formas, eHeidegger chama essa elaboração de interpretação. Na interpretação,a compreensão se torna ela mesma e não outra coisa, diz ele. Por fim,a interpretação se funda existencialmente na compreensão e não vice­versa: "o mundo já compreendido se interpreta." Cf. Ser e tempo, p.204.20. Gadamer, em Verdade e método, faz muitas referências a Dilthey,pelo viés historicista que este inaugura no âmbito da hermenêutica,apesar de acabar se distanciando do mesmo. Betti é quem mais deperto seguirá Dilthey, perseguindo o propósito, comum a ambos, deestabelecer uma metodologia de interpretação capaz de fundar umaciência jurídica. Sobre o projeto de Dilthey e Betti, conferir o que dizJosé Lamego, Hermenêutica e jurisprudência, p. 61, 114, 185 a 187; eRichard Palmer, Hermenêutica, p. 55 a 73.21. Essa linha hermenêutica também tem sido trabalhada por Inocên-

18

..,

1.2 Direito e interpretação

Entendemos que a existência do direito, enquanto nor­ma individual e concreta, corresponde à sua compreensão,para a qual se abrem várias possibilidades interpretativas.De fato, a concretização da norma é feita mediante a cons­trução interpretativa que se formula a partir da e em dire­ção à compreensão. Podemos definir interpretação como aa~ão mediadora que procura compreender aquilo que foidIto ou escrito por outrem. 22 Como ação responsável e nãoa!eatória, procura-se, por meio da interpretação, um signi­fIcado que seja aceito ao menos por aqueles a quem inte­ressa ao intérprete, adotando-se, para tanto, técnicas deargumentação.

Em contrapartida, tanto o direito objetivo, que corres­ponde à ratio legis, quanto o direito subjetivo, referente à

c.io Mártires Coelho, no âmbito do direito constitucional. Nesse sen­tido, vale consultar o livro Hermenêutica constitucional _ direitosfundamentais. Vide bibliografia.

22. De acordo com Edmond Ortigues (Enciclopédia Einaudi, Impren­sa ~ac~~~al- Casa da Moeda, Portugal, 1987), no verbete Interpre­taçao, diremos que interpretar é compreender, reformulando ou re­exprimindo sob uma forma nova; a interpretação consiste em mostrar~lgo: ~la vai do abstrato ao concreto, da fórmula à respectiva aplicação,a sua Ilustração ou à sua inserção na vida."

José ~amego, cuja tese também se apóia na proposta hermenêuti­ca de Heldegger e Gadamer, apesar de não estabelecer claramenteuma distinção entre compreensão e interpretação como fazemos es-

"P h "c~e.ve: ara .uma ermenêutica assente em pressuposições existen-Clals-?ntológlCas, a atitude interpretativa ou compreensiva terá quever nao com questões de subjetividade ou objetividade do sentido dealgo que é dado ao intérprete, mas de um agir mediador que elaboree potencialize as possibilidades projetadas no compreender, identifica­do este, na expressão de Heidegger, COm o ser de tal poder-ser." Her­menêutica e jurisprudência, p. 91.

19

Page 26: 52842935-Margarida-Maria-Lacombe-Camargo-Hermeneutica-e-Argumentacao (2).pdf

----------- ---~- -

intenção do autor numa situação específica, inserem-se nocampo histórico da compreensão. O direito, como obrahumana, é compreendido, e não explicado, a partir de re­lações necessárias de causa e efeito, como se para cada pro­blema jurídico houvesse uma única, inequívoca e verdadei­ra resposta. O direito, como as demais ciências do espírito,corresponde a um acontecer, que cabe ser interpretado se­gundo os valores que comandam a sua ação, tanto internaquanto externamente. 23 Internamente seria a própria ratiolegis e, externamente, a inserção histórica do intérprete, seé que ambas as posições podem vir desassociadas. A exis­tência do direito conforma-se, assim, a uma tradição cultu­ral determinada, mas que não pode ser encarada sob umaperspectiva reducionista, uma vez que admite valoresuniversais válidos também para outras épocas e outros lu­gares.

Compreender é indagar sobre as possibilidades do sig­nificado de um acontecer próprio das relações humanas. E,nesse sentido, acreditamos que o direito só existe quandocompreendido. Um código, por exemplo, contém regrasgerais e abstratas constituídas em função de hipóteses pro­váveis, mas que só ganham um significado concreto quan­do remetidas à própria prática, ou melhor, quando condu­zidas pela ação, seja a ação de quem as tenha elaborado,como o legislador que prevê a realização de uma prática,seja a de quem produz a transferência da regra de um cam­po virtual dado, que é o código, para um campo de signifi­cado real- o juiz quando decide. 24

23. Os valores que comandam a ação advêm tanto do ato do legislador,quando este decide o caso típico (valores internos à lei), quanto do atodo juiz, quando, com base na decisão do legislador, decide o casoconcreto (valores externos ao âmbito restrito da lei).24. A esse respeito escreve Perelman: "O direito, tal como funciona

20

Nossa hipótese é a de que o processo de _'. compreensao

se concretiza por melO da argumentação que t .. b'l' . ' ,ecnIcamen-

te VIa I Iza a mterpretação. De outro lado verl'fl'_ . ,ca-se quea compreensao, como mOVImento oposto ao da expl' -. IcaçaoraclOnal,;-demonstrativa, insere-se no campo das possibili-dades. E possível aquilo que é verossímil, ou seja, aquiloque aparenta verdade, sem, no entanto, pretender sê-Ia.25A verossimilhança não depende de fatos ocorridos, mas daprobabilidade da realização de um projeto. Ora, essas pos­sibilidades nos são apresentadas mentalmente conformetratadas pela retórica ou pela teoria da argumentação; é omomento em que o pensamento dialético se instaura. 26 Aargumentação, por sua vez, é a técnica que visa ao acordosobre a escolha do significado que pareça mais adequado às

efetivamente, é essencialmente um problema de decisão: o legisladordeve decidir quais serão as leis obrigatórias numa comunidade organi­zada, o juiz deve decidir sobre o que é o direito em cada situaçãosubmetida ao seu juízo. Mas nem o legislador nem o juiz tomam deci­sões puramente arbitrárias: a exposição dos motivos indica razões porque uma lei foi votada e, num sistema moderno, toda sentença deveser motivada. O direito positivo tem como correlativo a noção dedecisão, senão razoável, pelo menos raciocinada." Cf. Ética e direito,p.376.25. Olivier Reboul, de forma bastante sintética, atribui o caráter deverossímil a "tudo aquilo em que a confiança é presumida". Cf. Intro­dução à retórica, p. 95.26. Perelman definirá argumentação em oposição a demonstração, daseguinte forma: "Demos o nome de argumentação ao conjunto dastécnicas discursivas que permitem provocar ou aumentar a adesão dasmentes às teses que se apresentam ao seu assentimento; sendo o ter­mo tradicional demonstração reservado aos meios de prova que possi­bilitam concluir, a partir da verdade de certas proposições, pela deoutras proposições, ou ainda, no terreno da lógica formal, passar, coma ajuda de regras definidas de transformação, de certas teses de umsistema a outras teses do mesmo sistema." Perelman, Retóricas, p.369.

21

Page 27: 52842935-Margarida-Maria-Lacombe-Camargo-Hermeneutica-e-Argumentacao (2).pdf

partes discursivas; acordo este fundamentado em provasconcretas e opiniões amplamente aceitas. Com a argumen­tação temos condições de "visualizar" a compreensão, na.medida em que esta se traduz em algo de concreto. 27

O direito admite, pois, uma superposição entre duasesferas: a da compreensão da norma e a d~ compreensãodo fato, levadas a cabo pelo ser historicamente presente,que se utiliza, pa,ra tanto, do procedimento argumentativo.Tecnicamente, a argumentação viabiliza o acordo capaz deformular a compreensão através de uma interpretação quesirva de fundamento à solução mais razoável.

O método do direito é, portanto, o método tópico­hermenêutico. Cada situação deve ser compreendida emfunção do problema que apresenta e da tradição históricana qual se insere. Mas o seu instrumental é argumentativo.Dessa forma, podemos dizer que o direito consiste na rea­lização de uma prática que envolve o método hermenêuticoda compreensão e a técnica argumentativa.

Para nós, o método diz respeito à orientação para o co­nhecimento, e a técnica, às regras que dirigem essa ativida­de. Logo, compreensão e concretização encontram-se inti­mamente relacionadas: existe o que se compreende emfunção imediata de um aplicar. Assim, a realidade do direi­to é a mesma realidade de sua compreensão. 28

27. Quando Heidegger diz que a interpretação funda-se na compreen­são e não vice-versa, ele considera os pré-juízos como ponto de partidapara toda a compreensão. Esses pré-juízos funcionam no nosso esque­ma como topoi.

Para Heidegger, a interpretação sempre se funda numa visão pré­via, que "recorta" o que foi assumido na posição prévia, segundo umapossibilidade determinada de interpretação. Cf. Ser e tempo, p. 206-7.28. Para Gadamer, "a realidade histórica é igual à realidade do com­preender histórico." Verdade e método, p. 370.

22

1.3 Hermenêutica e interpretação

A hermenêutica mostra-se presente quando, segundoVattimo,29 Nietzsche anuncia a morte do deus da metafísi­ca,3D entendida esta última como "a descrição universal­mente válida de estruturas permanentes e essenciais àcompreensão do mundo" .31 À descrição objetiva dos fatossegue-se a busca da verdade mais persuasiva e responsável,originária da interpretação, isto é, uma interpretação quepretende validade até aparecer outra, concorrente, que adestitua. 32

O autor situa a hermenêutica na filosofia que se desen­volve ao longo do eixo Heidegger-Gadamer.33 E olhandodessa forma. anota que a hermenêutica revela os seus doisaspectos constitutivos: o da ontologia, privilegiado neste

29. Gianni Vattimo. Para além da interpretação: o significado da her­menêutica para a filosofia.30. Vattimo finaliza o capítulo intitulado "A vocação niilística da her­menêutica", evocando Nietzsche e o sentido da morte de Deus para amodernidade, "isto é, da dissolução da verdade como evidência pe­remptória e 'objetiva'. Até agora, [afirma,] os filósofos acreditaramem descrever o mundo, é chegado o momento de interpretá-lo... ".Para além da interpretação, p. 27.31. Vattimo, ob. cit., p. 23.32. Passagem ilustrativa sobre a importância da argumentação e de suamatriz intersubjetiva, no processo de interpretação, encontramos notexto de Vattimo: "Os argumentos que a hermenêutica oferece parasustentar a própria interpretação da modernidade são conhecidos porserem 'apenas' interpretações; não porque acreditam em deixar forade si uma realidade verdadeira, que poderia ser lida de modo diferen­te; mas sim porque admitem não se poder apelar, pela própria valida­de, a nenhuma evidência objetiva imediata. Isto porque o seu valorestá na capacidade de dar lugar a um quadro coerente e compartilha­do, na expectativa de que outros proponham um quadro alternativomais aceitável." Ob. cit., p. 24.33. Cf. p. 14.

23

Page 28: 52842935-Margarida-Maria-Lacombe-Camargo-Hermeneutica-e-Argumentacao (2).pdf

nosso trabalho, e o da lingüisticidade.34 Gadamer critica ocientificismo e o metodologismo modernos para reivindi­car a busca da verdade além dos limites do método cientí­fico positivo, a começar pela verdade da experiência, comoato interpretativo. Dessa forma, passemos à análise dotema, buscando um pouco das suas origens.

Como vimos, a origem do termo Hermenêutica temcomo referência Hermes, o enviado divino que na Gréciaantiga levava a mensagem dos deuses aos homens. Signifi­cava trazer algo desconhecido e ininteligível para a lingua­gem humana. Richard Palmer nos diz que o verbo herme­neuein, usualmente traduzido como "interpretar", e osubstantivo hermeneia, como interpretação, significamtransformar aquilo que ultrapassa a compreensão humanaem algo que essa inteligência consiga compreender.3S Oautor aponta ainda três tarefas específicas da hermenêuti­ca como mediação, quais sejam: dizer, explicar e traduzir.Dizer, no sentido de anunciar ou afirmar algo, relaciona-se,antes, com a ação anunciadora de Hermes: trazer notíciasfiéis das divindades. No entanto, o predomínio da palavraentre os gregos fez com que a linguagem falada e sua ver­tente performática ganhassem relevo, e a hermenêuticapassasse a ser vista como ars. Explicar torna-se mais im­portante do que simplesmente expressar, na medida emque as palavras racionalizam e clarificam algo; é quandoganha ênfase o aspecto discursivo da compreensão. E,quanto a traduzir, significa que o hermeneuta torna com­preensível o que é estrangeiro, estranho ou ininteligível.

34. Nesta linha poderíamos apontar o trabalho de Lenio Luiz Streck.Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica daconstrução do Direito.35. Ver Richard Palmer. Hermenêutica.

24

UM .i.

Em Roma, a hermenêutica desenvolveu-se muito coma própria prática jurídica. Os pretores e os jurisconsultosdiziam o direito para cada caso concreto, sem qualquerpretensão de generalidade. Mas essas decisões consolida­ram-se com o tempo, transformando-se em máximas quese tornaram muitas vezes obrigatórias.36

A hermenêutica alcançou notável proeminência nocampo religioso. O problema de interpretar corretamentea palavra de Deus era comum ao povo judeu em relação aoAntigo Testamento; aos cristãos, ao Novo Testamento; eaos protestantes, em relação à Reforma. Durante a IdadeMédia, a análise sistemática sobre a evidência da revelaçãodivina deu origem à Teologia,37 e a hermenêutica assumiuo aspecto exegético da correta interpretação dos textos sa­grados, dando ensejo ao seu desenvolvimento no campofilológico.

36. O valor do argumento de autoridade em Roma é grande, haja vistaa Lei das Citações, promulgada por Constantino no século IV d.e.Este estatuto legal veio corroborar o que a prática já havia confirmado:a sabedoria dos jurisprudentes notáveis tinha legitimidade para esten­der-se a situações similares. De acordo com a Lei das Citações, o juizdeveria aplicar as opiniões de Ulpiano, Modestino, Gaio, Papiniano ePaulo, da seguinte forma: em primeiro lugar, prevalece a opinião damaioria; em caso de divergência, acolhe-se a opinião de Papiniano;finalmente, não havendo regras específicas para o caso, cabe ao juizadotar a tese que lhe pareça melhor.37. Na Escolástica, por exemplo, procurava-se organizar racionalmen­te as idéias divinas sob a perspectiva da fé. A racionalidade encontra­va-se no instrumental utilizado, que era o texto, por meio do qualtransmitiam-se as idéias reveladas. Na Idade Média existiam os "co­mentários" e as "sumas". Os primeiros originavam-se diretamente daexplicação do texto, enquanto as sumas apresentavam, de forma. ra­cionalmente ordenada, a síntese dos princípios extraídos dedutIva­mente dos textos divinos. Vide J. M. Fateaud, no prefácio à 23 ediçãobrasileira de Discurso do método, de Descartes: Editora Martins Fon­tes, 1996.

25

Page 29: 52842935-Margarida-Maria-Lacombe-Camargo-Hermeneutica-e-Argumentacao (2).pdf

Para o direito, no entanto, foi extremamente significa­tiva a atividade dos glosadores da Universidade de Bolo­nha, durante os séculos XI e XII. Com a descoberta, em1080, as leis romanas compiladas por ordem do ImperadorJustiniano no século VI d.C., mais tarde chamadas de Cor­pus Iuris Civilis, iniciou-se todo um esforço acerca do seuentendimento e compreensão, de forma a adotar-se, naprática medieva, o exemplo romano. Segundo Wieacker,"a Idade Média sentiu a cultura antiga como uma formamodelar e atemporal da sua própria vida" .38

O desenvolvimento das cidades italianas justificou aformação de uma corporação própria - a Universidade-, destinada aos estudos jurídicos para a formação de fun­cionários públicos, como síndicos, procuradores, notáriose advogados. 39 Como o texto jurídico romano era muitodifícil, antes de mais nada ele deveria ser explicado. E doresultado da interpretação feita pelos professores apare­cem as glosas, palavra por palavra, linha por linha,40 paralogo alcançar todo o sistema, visto como um todo har­mônico, a reunir as partes, conforme princípios de or­dem geral.

A técnica expositiva da Escola de Bolonha ligava-se, se­gundo Wieacker, à tradição do ensino trivial.4l Segundo omesmo informa, mantinham-se "ainda as figuras de expli­cação e de raciocínio elaboradas originalmente pela lógica,

38. Franz Wieacker. História do direito privado moderno, p. 42.39. Idem, Ibidem, p. 40 e 41.40. As glosas ganharam robustez nos seus significados, tornando-sefecunda fonte de consulta para os práticos e estudiosos do direito.Destaque para a Glossa Ordinaria de Accurius (1250), considerado omaior trabalho de interpretação, na época, sobre o Digesto.41. Durante o século XI, o trivium correspondia ao ensino dos ele­mentos básicos da cultura da época: gramática, lógica e retórica; oquadrivium, à música, à geometria, à aritmética e à física.

26

pela gramática e pela retórica gregas, aplicadas, inicial­mente pelos eruditos alexandrinos, à exegese dos textosfilológicos: a glosa gramatical ou semântica, a exegese ouinterpretação do texto, e a distinção. [... ] Como ratioscripta, o texto isolado de um jurista constituía, em si mes­mo, sem referência à sua conexão com o conjunto de todosos textos, uma verdade."42 No entanto, "a convicção dodomínio de uma ratio sobre todo o conjunto da tradiçãoconduziu a investigação hermenêutica à procura do senti­do global de todo o texto, para apresentá-lo em cadeiassilogísticas, pois se cada texto encerra a verdade da autori­dade absoluta, um texto não pode contradizer outro igual­mente verdadeiro".43

O método de análise escolástico, por sua vez, foi fatorresponsável pelo aparecimento da dogmática jurídica, talcomo ocorrera com a religião. De acordo com J. HaroldBerman, o método escolástico pressupunha a absoluta au­toridade de certos livros, que continham um completo eintegrado corpo doutrinário, como era o caso do CorpusIuris Civilis e da Bíblia, corporificando a razão. Verifica­se, assim, que a chamada ciência do direito e a ciência dateologia formam-se na mesma época.44

42. Wieacker, ob. cit., p. 47 e 50.43. Idem. Ibidem, p. 53.

Com a interpretação das Escrituras Sagradas, já se tem a noção darelação circular existente entre o todo e as partes, que não abandonarámais a hermenêutica. Quem nos chama a atenção para tal fato é Hans­Georg Gadamer. Segundo ele, o sentido literal da Escritura não seentende inequivocamente em todas as suas passagens nem em todosos momentos. É o conjunto da Sagrada Escritura que guia a compreen­são do individual, tal como no inverso, em que este conjunto só podeempreender-se quando realizada a compreensão individual. O sentidode unidade passa, assim, a servir de pressuposto dogmático para todaa hermenêutica. Cf. Gadamer, Verdade e método, p. 227.44. Cf. Berman. Law and Revolution, p. 131 e 132.

27

Page 30: 52842935-Margarida-Maria-Lacombe-Camargo-Hermeneutica-e-Argumentacao (2).pdf

o romantismo e o renascimento também se ocupam darecuperação das obras clássicas, procurando, na corretautilização da palavra e da língua, ser fiel ao espírito da épo­ca antiga. Em um e outro caso, trata-se, na realidade, doredescobrimento de algo cujo sentido era estranho e ina­cessível, e não, propriamente, de algo novo. O que se pre­tendia, nesses casos, era pôr a descoberto o sentido originaldos textos através de um procedimento quase artesanal,que implicava a aprendizagem de outras línguas. Posterior­mente sob a influência do historicismo, a hermenêutica,abandona o seu aspecto puramente exegético, na medidaem que é reconhecida a necessidade de se interpretaremtanto as circunstâncias históricas que ensejaram a criaçãode um texto quanto as circunstâncias que determinam asua posterior utilização. Mas é com o movimento da Ilus­tração e o pensamento científico moderno que interpreta­ção e hermenêutica deixam de significar a mesma coisa. Ahermenêutica passa, então, a se comportar como ciência,preocupando-se com as técnicas próprias do fazer inter­pretativo. E, ao investir na questão do método, a herme-

o método dialético era bastante utilizado como forma de resolverproblemas de contradição no texto. Como exemplo do papel da dialé­tica escolástica na formação do direito ocidental, temos o tratado domonge de Bolonha, Graciano, escrito por volta de 1140, intitulado,sugestivamente, A Concordance of Discordant Canons. Segundo Ber­man, Graciano foi quem, na Idade Média, primeiro explorou, de for­ma sistemática, as implicações legais dessas distinções e arranjou asvárias fontes de direito em ordem hierárquica. Ele começou interpon­do o conceito de direito natural entre os conceitos de direito divino ede direito humano. O direito divino era a vontade de Deus refletidana revelação, especialmente a revelação da Sagrada Escritura, e o di­reito natural, também refletido na vontade de Deus, poderia ser en­contrado tanto na revelação divina quanto na razão e consciência hu­manas. Cf. Law and Revolution, p. 145.

28

nêutica ganha particular importância para a filosofia e paraa teoria do conhecimento. 45 No entanto, a ênfase dada àlinguagem matemática acaba por inserir a hermenêutica nocampo da lógica formal, e é apenas com a fenomenologiadesenvolvida por Husserl e Heidegger que ela passa a servista como compreensão, revelando-se na consciência dopróprio ser.

Para Heidegger, a compreensão consiste no movimen­to básico da existência, no sentido de que compreender nãosignifica um comportamento do pensamento humano en­tre outros que se possa disciplinar metodologicamente e,portanto, conformar-se como método científico. Consti­tui, antes, o movimento básico da existência humana.46

Compreender, para Heidegger, "é a forma originária derealização do estar aí, do ser-no-mundo" Y Gadamer diráque compreender é experiência.

45. Filosofia como reflexão sobre o conhecimento e "teoria do conhe­cimento" aquela que procura a verdade objetiva, com base na distin­ção existente entre sujeito e objeto.

Gadamer diz que a hermenêutica atual, incentivada pela desco­berta das ciências humanas, não trata de definir simplesmente ummétodo específico, mas sim fazer justiça a uma idéia inteiramentediferente de conhecimento e de verdade. As ciências humanas, afir­ma, não se limitam a pôr um problema para a filosofia. Ao contrário,elas põem um problema de filosofia. Cf. O problema da consciênciahistórica, p. 20.

A respeito da relação existente entre hermenêutica e teoria doconhecimento, vale conferir o que diz Raimundo Bezerra Falcão, emHermenêutica, p. 87 e segs.46. Cf. Gadamer, "Hermenêutica clássica e hermenêutica filosófica"[1977], in Verdade e Método lI, p. 105, e Palmer, ob. cit., p. 134.47. Verdade e método, p. 325.

A idéia de "mundo" corresponde ao conjunto de condições geográ­ficas, históricas, sociais e econômicas, em que cada pessoa está imersa.

29

Page 31: 52842935-Margarida-Maria-Lacombe-Camargo-Hermeneutica-e-Argumentacao (2).pdf

No século XX, seguindo a esteira do historicismo deDilthey,48 que considerava a reflexividade como base daexperiência, e da ontologia heidegeriana,49 à luz da retoma­da da questão do ser, o Professor Hans-Georg Gadamertraz a hermenêutica para o campo da práxis ou da filosofiaprática. 50 Deixa claro que seu objetivo é dar continuidade

48. Reconhecidamente, Dilthey empreendeu um notável esforço nosentido de dar objetividade metodológica às "ciências do espírito",assumindo o problema da relatividade. A partir da importância daconsciência do condicionamento histórico, Dilthey procurou conver­ter em ciência a experiência histórica. Porém, segundo Gadamer,Dilthey não conseguiu escapar das amarras do cartesianismo, manten­do a experiência como algo transcendente ao próprio ser. Não obstan­te, Dilthey teria conseguido cumprir a tarefa que considerou sua, dejustificar epistemologicamente as ciências do espírito, pensando omundo histórico como um texto a ser decifrado. Cf. Verdade e méto­do, páginas 277 a 304, e "Extensão e limites da obra de WilhelmDilthey", em O problema da consciência histórica, p. 27 e segs.49. De acordo com Gadamer, "sob o termo chave de uma hermenêuti­ca da faticidade Heidegger opõe à fenomenologia eidética de Husserl,e a distinção entre fato e essência sobre a qual repousa, uma exigênciaparadoxal. A faticidade do estar aí (Dasein), a existência, que não ésuscetível nem de fundamentação nem de dedução, é o que deveerigir-se em base ontológica da fenomenologia, e não o puro cogitocomo constituição essencial de uma generalidade típica." Verdade emétodo, p. 319.50. Gadamer, ao trabalhar com o problema hermenêutico da aplica­ção, reporta-se a Aristóteles. Apesar de Aristóteles não tratar direta­mente do problema hermenêutico nem da sua dimensão histórica, naÉtica trata do desempenho da razão na atuação moral. Como as cha­madas "ciências do espírito" possuem como base a vida e o homem,nas suas relações interindividuais, e o que ele sabe de si mesmo, osaber que lhe é próprio é o saber moral e não o teórico ou científico.O saber moral ou a phronesis, tal como descreve Aristóteles, não éevidentemente um saber objetivo, na medida em que o seu conhecernão decorre da constatação de fatos, mas daquilo que se faz. Aqueleque atua trata antes com coisas que nem sempre são como são, senão

30

à proposta ~e ~ei~egg~r, ao reconhecer que o conceito dacompreensao nao e maIS um conceito metódico ma

, A' " I d d ' s o ca-rater ontlCo ongma a vi a humana mesma. 51

Segundo Gadamer, o estar aí é, na realização do seupróprio ser, compreender. Mas, na realidade, nem o conhe­cedor nem o conhecido "se dão" "onticamente", mas "his­toricamente", isto é, participam do modo de ser da histo­ricidade. Pertencer é condição para o sentido originário dointeresse histórico. O problema da faticidade, que apareceem Heidegger, era também o problema central do histori­cismo, e isto significa que o ser determina-se no horizontedo tempo. "A tese de Heidegger é de que o ser mesmo étempo".52

O ponto central da teoria de Gadamer, que diz respei­to ao problema da verdade e da compreensão no âmbitodas ciências do espírito,53 é a análise da "consciência dahistória efetiva", traduzida para o inglês como historicallyeffected consciousness. 54 A consciência da história efetiva éa consciência da situação hermenêutica, portanto, do mo­mento de realização da compreensão. 55 Gadamer defende

~ue p~dem ser também distintas. Nelas descobre em que ponto podemtervIr sua atuação; seu saber deve dirigir seu fazer. Cf. Verdade emétodo, p. 383 a 386.

.Sobre a visã? aristotélica de raciocínio prático, e a noção de próai­reSlS, vale tambem conhecer o trabalho de Alasdair MacIntyre, Justiçade quem? Qual racionalidade?51. Cf. Gadamer. Verdade e método, p. 325.52. Idem, p. 322. (Grifo nosso.)53. Essa temática é abordada na segunda parte de sua principal obra:Verdade e método.

54. yer Hans-Georg Gadamer. Truth and Method, Tradução de JoelWemsheimer e Donald G. Marshall, The Continuum PublishingCompany, New York, 1994.55. Gadamer. Verdade e método, p. 372.

31

Page 32: 52842935-Margarida-Maria-Lacombe-Camargo-Hermeneutica-e-Argumentacao (2).pdf

a idéia de que não é tarefa da hermenêutica descobrir mé­todos para uma correta interpretação, mas refletir sobre oacontecer da própria interpretação, que no âmbito dasciências do espírito corresponde mais especificamente àcompreensão.56 O indivíduo compreende-se a si mesm?através da consciência que tem de sua situação histórica. Aidéia de situação ligam-se, por sua vez, as idéias de tradi­ção e de horizonte. Todo ser histórico encontra-se inseridona tradição e ocupa determinada posição que lhe delimitahorizontes. O ser humano, devido à sua condição histórica,é, por isso, um ser limitado. O horizonte, para Gadamer, éo âmbito de visão que alcança e encerra tudo o que é visívela partir de um determinado ponto. Não obstante, ter hori­zonte não significa estar limitado àquilo que nos cerca maisde perto, mas poder ver, inclusive, por cima dele. Horizon­te é apenas a dimensão do que o homem compreende eque ajuda a compreender-se a si mesmo. Aquele que temhorizonte consegue valorar o significado das coisas que seencontram dentro ou fora dele, segundo padrões de per­to/longe, grande/pequeno, etc. A mobilidade histórica im­pede a existência de horizontes únicos, ao passo que o ho­rizonte se move conforme quem se move: não é a cons­ciência histórica que põe em movimento o horizonte, masna consciência histórica este movimento se faz conscientede si mesmo.

Por outro lado, de acordo com a teoria de Gadamer, ohorizonte do presente encontra-se em constante forma-

56. Para Gadamer, a compreensão é menos um método através doqual a consciência histórica se aproxima do objeto eleito para alcançaro seu conhecimento objetivo do que um processo que tem como pres­suposto o estar dentro de um acontecer tradicional. Cf. Verdade emétodo, p. 380.

32

ção, na medida em que colocamos constantemente empro:,a os pré-juízos formados sob as bases da tradição. OhOrIzonte do presente não se forma à margem do passado.ao contrário, é a fusão desses horizontes que possibilita ~

compreensão. O novo e o velho fundem-se em um novohorizonte que se supera, à medida que acompanha um pro­cesso de crescimento até atingirem uma validez nova e sig­nificativa. Sintetizando, é este o entendimento de Gada­mer:

o projeto de um horizonte histórico é, portanto, umafase ou momento na realização da compreensão, e não seconsolida na auto-alienação de uma consciência passada,mas se recupera no próprio horizonte compreensivo do pre­sente. Na realização da compreensão tem lugar uma verda­deira fusão horizôntica que com o projeto do horizonte his­tórico leva a cabo simultaneamente sua superação. À realiza­ção controlada da fusão damos o nome de "tarefa da cons­ciência histórico-efetiva". 57

A idéia de horizonte sustenta-se num dos principais pi­lares da construção teórica de Gadamer, que é a idéia detradiçãO, uma vez que o tempo passa a ser visto não comoum precipício que deve ser transposto para a recuperaçãodo passado, mas é, na realidade, o solo que mantém o devire onde o presente cria raízes. Dessa forma,

A "distância temporal" não é uma distância no sentidode uma distância que deva ser transposta ou vencida. Esseera o preconceito ingênuo do historicismo, que acreditavapoder alcançar o terreno da objetividade hitórica através deum esforço para se colocar na perspectiva da época estudadae pensar com os conceitos e representações que lhes eram

57. Idem, p. 377.

33

Page 33: 52842935-Margarida-Maria-Lacombe-Camargo-Hermeneutica-e-Argumentacao (2).pdf

"próprias". Trata-se, na verdade, de considerar a "distânciatemporal"como fundamento de uma possibilidade positivae produtiva de compreensão. Não é uma distância a percor­rer mas uma continuidade viva de elementos que se acumu­la~ formando uma tradição, isto é, uma luz à qual tudo oque trazemos conosco de nosso passado, tudo o que nos étransmitido faz a sua aparição. 58

o que Gadamer procura não é manter o passado me­diante uma postura conservadora, mas, antes, desmistifi­car esse passado. Diante do que chama de ingenuidade doobjetivismo histórico, busca distinguir os preconceitos quecegam daqueles que, ao contrário, esclarecem: os precon­ceitos falsos, dos verdadeiros. A tradição, além do solo quenos une com o passado, apresentando o presente, atuatambém como instância objetiva a propiciar a integração ea comunicação. Nas palavras de Gadamer, enquanto apro­priação espontânea e produtiva de conteúdos transmiti­dos, a tradição "é o elo concreto entre todos nós"; "o espe­lho em que cada um de nós se reconhece",59 e que promo­ve a consciência histórica da situação hermenêutica, pois"compreender é operar uma mediação entre o presente eo passado, é desenvolver em si mesmo toda a série contí­nua de perspectivas na qual o passado se apresenta e se

dirige a nós". 60Nesse sentido, apresenta-se a dialética do pensamento

gadameriano: toda experiência só pode ser compreendidaporque referenciada ao passado, numa relação de confron­to. De acordo com Gadamer, o novo opõe-se ao antigo, enunca se sabe qual prevalecerá, isto é, se o novo será incor-

58. O problema da consciência histórica, p. 67-8.59. Idem, p. 44 e 45, respectivamente.60. Idem, p. 71.

34

parado à consciência, como experiência ou e .. . , ' s o antIgo,costumeIro e prevIsIvel, reconquistará sua consl'st'" . A.",. . . enCIa.expenenCla preCIsa tnunfar sobre a tradição sob pena defracassar por causa dela, e o novo deixaria de sê-lo se nãotivesse que se afirmar contra alguma coisa.61

Gadamer foi duramente criticado, principalmente porEmílio Betti,62 por ignorar em toda a sua obra os métodoshermenêuticos ou de interpretação, ameaçando a objetivi­dade do método histórico.63 Por isso Gadamer se defendeno prólogo à segunda edição de sua principal obra, Verda­de e método, sustentando nunca ter se proposto a tal, mui­to menos a oferecer uma teoria geral da interpretação. An­tes, pretendeu mostrar o que é comum a toda maneira decompreender, porque acredita que a tarefa da hermenêu­tica não é desenvolver um procedimento da compreensão,mas iluminar as condições sob as quais se compreende.Neste sentido, Gadamer sustenta que "a compreensão nãoé nunca um comportamento subjetivo com respeito a um'objeto' dado, senão que pertence à história efetiva, isto é,ao ser do que se compreende";64 e assim afasta-se de toda

61. É o que autor apresenta em O problema da consciência históricap.14. '~2. Dentre as obras mais significativas de Emilio Betti a respeito damterpretação no direito destacam-se: Teoria Generale della Interpre­tazione. Milano: D.A. Giuffré, 1955; e Interpretazione della Legge edegli Atti Giuridici. Milano: D. A. Giuffre, 1971.63. Richard Palmer nos dá notícia desta polêmica. Segundo ele, "doponto de vista de Betti, Heidegger e Gadamer são os críticos destruti­vos da objetividade, que pretendem mergulhar a hermenêutica numpântano de relatividade, sem quaisquer regras. Éa integridade do pró­prio conhecimento histórico que está a ser atacada e é preciso defen­dê-la com firmeza." Hermenêutica, p. 56.64. Verdade e método, p. 13-4.

"A compreensão é menos um método através do qual a consciên-

35

Page 34: 52842935-Margarida-Maria-Lacombe-Camargo-Hermeneutica-e-Argumentacao (2).pdf

corrente filosófica que estabelece uma posição bipolar en­tre o sujeito-intérprete e o objeto. Feito isso, elimina qual­quer consideração referente ao grau de subjetividade dointérprete frente ao máximo de objetividade que se requerpara o conhecimento exato da coisa. O que ele faz é inserirtanto um quanto outro em um processo histórico do qualambos fazem parte.

Na realidade, Gadamer cria sua teoria sob o problemada consciência histórica.65 Acompanha Reinhardt Kosel­leck, no âmbito do historicismo, quando este aponta paraa mudança de paradigma ocorrida entre o renascimento ea modernidade, quando a História deixa de orquestrar oconhecimento, apresentando seus exemplos, de onde po­deríamos chegar à verdade, para dar lugar ao surgimentode uma nova consciência crítica.66 Segundo Gadamer, oaparecimento de uma tomada de consciência histórica, im­posto pelo problema epistemológico trazido pelas "ciên­cias humanas" desde Dilthey, revela "o privilégio do ho­mem moderno de ter plena consciência da historicidadede todo presente e da relatividade de toda opinião" .67 Emsuas palavras,

cia histórica se acercaria do objeto eleito para alcançar seu conheci­mento objetivo que um processo que tem como pressuposto o estardentro de um acontecer tradicional. [...] A distinção entre uma funçãonormativa e uma função cognitiva rompe definitivamente o que clara­mente é uno." Idem, p. 381 e 382.65. Veja a série de conferências proferidas em 1958, no Instituto Su­perior de Filosofia de Louvain, logo antes de Verdade e método, e queforam publicadas com o mesmo título: O problema da consciênciahistórica, sob a organização de Pierre Fruchon, em 1963. No Brasil,contamos com a tradução de Paulo Cesar Duque Estrada, e com apublicação pela Fundação Getulio Vargas Editora, em 1998.66. Ver Reinhardt Koselleck. Futuro passado: para uma semântica dostempos históricos, p. 43 e segs.67. O problema da consciência histórica, p. 17.

36

T

A vida moderna começa a se recusar a seguir ingenua­mente uma tradição ou um conjunto de verdades aceitastradicionalmente. A consciência moderna assume - preci­samente como "consciência histórica" - uma posição refle­xiva com relação a tudo o que lhe é transmitido pela tradi­ção. A consciência histórica já não escuta beatificamente avoz que lhe chega do passado, mas, ao refletir sobre a mes­ma, recoloca-a no contexto em que ela se originou, a fim dever o significado e o valor relativos que lhe são próprios. Essecomportamento reflexivo diante da tradição chama-se inter­pretação.68

A interpretação, então, aplica-se a tudo o que nos étransmitido pela história, exigindo uma postura de refle­xão e mediação, de forma a trazermos o verdadeiro signifi­cado do texto. A interpretação de um texto, por exemplo,não é uma comunicação entre pessoas: autor e intérprete,mas a participação no tema que o texto comunica. AssimGadamer sugere que deixemos o texto nos interpelar, tor­nando-se presente, contemporâneo. A compreensão não étanto um processo subjetivo, afirma, e nem uma questãode nos situarmos numa tradição ou num "evento" que nostransmita esta tradição. A compreensão é, antes, uma par­ticipação na corrente da tradição, num momento em quese misturam passado e presente. O verdadeiro ponto dereferência não é a subjetividade do autor nem a do leitor,mas a própria significação histórica, ou seja, a significaçãoassumida por nós, situados no presente.69

68. Idem, p. 18-9. Grifo nosso.69. Richard Palmer. Hermenêutica, p. 188-9.

Palmer sintetiza a idéia de compreensão no pensamento de Gada­mer da seguinte forma: "A compreensão [...] é sempre um eventohistórico, dialético, lingüístico - nas ciências, nas·ciências humanas,na cozinha. A hermenêutica é a ontologia e a fenomenologia da com-

37

Page 35: 52842935-Margarida-Maria-Lacombe-Camargo-Hermeneutica-e-Argumentacao (2).pdf

A questão da interpretação recai principalmente sobreos textos escritos, notadamente o direito, que se encontracircunscrito à norma posta. O primeiro problema que senos apresenta é o do distanciamento histórico entre a ori­gem do texto carregado das intenções do seu autor, bemcomo do espírito da sua época, e o momento atual em quea lei, ou o texto, é interpretado e aplicado. A respeito,anota Gadamer: "Quando compreendemos um texto, nãonos colocamos no lugar do outro e nem é o caso de pensarque se trata de penetrar a atividade espiritual do autor;trata-se, isso sim, de apreender simplesmente o sentido, osignificado ou a perspectiva daquilo que nos é transmitido.Em outros termos, cuida-se de apreender o valor intrínse­co dos argumentos apresentados."70 Da mesma forma,aplicar não significa "ajustar uma generalidade já dada an­tecipadamente para desembaraçar em seguida os fios deuma situação particular." Diante de um texto, por exem­plo, continua Gadamer, "o intérprete não procura aplicarum critério geral a um caso particular: ele se interessa, aocontrário, pelo significado fundamentalmente original doescrito de que se ocupa."7!

Sobre a comunicação escrita é ainda bastante ilustrati­va a contribuição de Paul Ricoeur. O autor trabalha com a

preensão. A compreensão não é concebida de modo tradicional comoum ato da subjetividade humana mas como o modo essencial queDasein tem de estar no mundo. As chaves para a compreensão não sãoa manipulação e o controle, mas sim a participação e a abertura, não éo conhecimento, mas a experiência, não é a metodologia mas sim adialética. Para Gadamer, o objetivo da hermenêutica não é avançarcom regras para uma compreensão objetivamente válida mas sim con­ceber a própria compreensão de um modo tão lato quanto possível."Hermenêutica, p. 216.70. O problema da consciência histórica, p. 59.71. Cf. O problema da consciência histórica, p. 57.

38

i

relação dialógica do discurso, que tem no significado desua mensagem a instância capaz de aproximar locutor eouvinte. Segundo Ricoeur, na fala, enquanto discurso oral,o discurso é o evento da linguagem. Os eventos se esvane­cem, mas o seu significado permanece, podendo, inclusi­ve, ser dito novamente e de outra forma. A propósito, pre­ceitua que "a supressão e superação do evento na significa­ção é uma característica do próprio discurso, isto é, se todoo discurso se atualiza como um evento, é compreendidocomo significação."72 E dessa forma, sustenta que com afala a nossa competência lingüística se atualiza na perfor­mance que, enquanto acontecimento, consegue estabele­cer a transição da lingüística do código para a lingüística damensagem.

O código, ou sistema da língua, possui apenas umaexistência virtual e fora do tempo, sendo o discurso quemo realiza temporalmente e num momento presente. O dis­curso oral permite uma identificação mais fácil e imediatado sujeito, do verbo e do predicado em um determinadocontexto que auxilia na interpretação mais adequada dosseus termos muitas vezes polissêmicos. Mas com a escrita,esta imediaticidade desaparece e o significado ganha umoutro contexto. O autor e a sua conjuntura, que funda­mentam a primeira intenção da mensagem, desvinculam­se da própria mensagem, que ganha autonomia. A signifi­cação, definida por Ricoeur como aquilo que o falante querdizer, ganha com a escrita uma outra dimensão. Segundoele, a escrita fixa não o evento da fala, mas o "dito", que éa exteriorização intencional do par "evento-significação".O que escrevemos é o noema (intenção de comunicabilida­de) do ato de falar, ou seja, a significação do evento. 73 Con-

72. Paul Ricoeur. Teoria da interpretação, p. 24.73. Idem, p. 39.

39

Page 36: 52842935-Margarida-Maria-Lacombe-Camargo-Hermeneutica-e-Argumentacao (2).pdf

Ui

tudo, com o discurso escrito a intenção do autor e o signi­ficado do texto deixam de coincidir, ganhando o texto au­tonomia semântica: "o que o texto significa interessa agoramais do que aquilo que o autor quis dizer quando o escre­veu."74

Com a escrita, o discurso se abre para o mundo, isto é,para um número indefinido de leitores e, conseqüente­mente, de interpretações. Sobre o "auditório" ao qual amensagem se dirige, escreve Ricoeur:

Enquanto o discurso falado se dirige a alguém que épreviamente determinado pela situação dialógica - é dirigi­do a ti, a segunda pessoa - um texto escrito dirige-se a umleitor desconhecido e, potencialmente, a quem quer quesaiba ler. Esta universalização do auditório é um dos efeitosmais notáveis da escrita e pode expressar-se em termos deum paradoxo. Porque o discurso está agora ligado a um su­porte material, torna-se mais espiritual, no sentido de que élibertado da estreiteza da situação face a face. 75

E mais: "Graças à escrita, o homem e só o homem temum mundo e não apenas uma situação."76

Cabe lembrar aqui, tal como procede o próprio Ri­coeur, a idéia de projeto como esboço de um novo "estarno mundo", conforme fizeram Heidegger e Gadamer so­bre o processo hermenêutico. Entretanto, Ricoeur vê a ex­terioridade como condição necessária deste processo. 77 Na

74. Idem, p. 41.75. Idem, p. 42.76. Idem, p. 47.

"Para mim, o mundo é o conjunto das referências desvendadas portodo o tipo de texto, descritivo ou poético, que li, compreendi eamei". Ricoeur, Teoria da Interpretação, p. 49.77. Ao assumir a exterioridade originária do distanciamento histórico,

40

+

hermenêutica, a apropriação pelo intérprete do texto, quegoza de autonomia, faz-se à medida que ele assume o "tu",isto é, concebe como "seu" o que é alheio. Apropriar-sesignifica tornar semelhante o que é estranho, de forma apossibilitar sua assimilação pelo leitor presente. A inter­pretação tem assim a tarefa de atualizar a significação dotexto como um evento. E, enquanto apropriação, a inter­pretação torna-se um acontecimento. A respeito, ensinaRicoeur:

Aquilo de que importa apropriar-se é o sentido do pró­prio texto, concebido de um modo dinâmico como a direçãodo pensamento aberta pelo texto. Por outras palavras, aqui­lo de que importa apropriar-se nada mais é do que o poderde desvelar um mundo, que constitui a referência do texto.Desta maneira, estamos o mais longe possível do ideal ro­mântico de coincidir com uma psiquê alheia. Se se podedizer que coincidimos com alguma coisa não é com a vidainterior do outro ego, mas com o desvelamento de um modopossível de olhar para as coisas, que é o genuíno poder refe­rencial do texto. 78

Sobre este apropriar-se, mais uma vez nos reportamosa Gadamer, quando nos chama a atenção para a posição dointérprete na tradiçãO. Pertencer à tradição significa co­mungar dos fundamentos que sustentam e informam opré-juízo, e que levam a uma situação ao mesmo tempo defamiliaridade e estranheza diante da "coisa", que pode sero texto. Para Gadamer, o "ponto médio" entre a objetivi­dade da distância histórica e o pertencer a uma tradição,

Ricoeur não se afasta da fenomenologia heideggeriana (baseada naconsciência do ser presente), empenhando-se, ao contrário, em assu­mi-la. Vide Interpretações e ideologias, p. 40.78. Ricoeur. Teoria da interpretação, p. 104.

41

Page 37: 52842935-Margarida-Maria-Lacombe-Camargo-Hermeneutica-e-Argumentacao (2).pdf

ou o "ponto médio" que caracteriza a estranheza e a fami­liaridade, é o verdadeiro locus da hermenêutica. 79

Tanto Ricoeur quanto Gadamer posicionam-se a favorda objetividade hermenêutica capaz de ver no texto umavontade própria ou que se abre ao intérprete, inde­pendentemente da vontade de quem lhe deu origem.Atualmente é ponto pacífico na hermenêutica jurídica aprevalência da razão objetiva da lei sobre a razão subjetivaou originária. Não há qualquer dúvida quanto à necessida­de da lei responder ou fundamentar uma solução que de­verá ser dada a uma determinada situação concreta, me­lhor dizendo, a uma situação atua1. Dessa forma, caberá aointérprete, que é o aplicador da lei, adequá-la ao momentopresente, conferindo-lhe o melhor significado de direito.A criatividade do intérprete faz-se sentir na teoria gadame­riana quando é dito, por exemplo, que "o sentido de umtexto supera o seu autor não ocasionalmente senão sem­pre. Por isso a compreensão não é nunca um comporta­mento só reprodutivo, mas sempre produtivo. 8o

79. Cf. Gadamer. Verdade e método, p. 365.A idéia de "pertencimento", que traduz a onticidade da herme­

nêutica de Gadamer, corresponde ao fator tradição no comportamen­to histórico-hermenêutico. A hermenêutica, escreve Gadamer, "devepartir do fato de que compreender é estar em relação, a um só tempo,com a coisa mesma que se manifesta através da tradição e com umatradição de onde a 'coisa' possa me falar. [... ] Precisamente sobre atensão que existe entre a 'familiaridade' e o caráter 'estranho' da men­sagem que nos é transmitida pela tradição é que fundamos a tarefahermenêutica. Mas a tensão de que falamos não é, como em Schleier­macher, uma tensão psicológica. É, isso sim, o sentido e a estrutura dahistoricidade hermenêutica. [... ] No que se refere ao caráter a um sótempo 'familiar' e 'estranho' das mensagens históricas, a hermenêuti­ca reivindica uma 'posição mediadora'." O problema da consciênciahistórica, p. 67.80. Idem, p. 366.

42

Já vimos que, para Gadamer, a compreensão é expe­riência e faticidade, ou seja, corresponde a um processoque tem como pressuposto o estar dentro de um acontecertradicional, ao passo que a interpretação seria a forma ex­plícita da compreensão.

A interpretação não é um ato complementar e posteriorao da compreensão, senão que compreender é sempre inter­pretar, e em conseqüência a interpretação é a forma explíci­ta da compreensão. 81

Encontrar-se dentro de um acontecer tradicional signi­fica experimentar a situação; e daí Gadamer fala na herme­nêutica da experimentação como uma forma de juízo mo­ra1. 8Z Cabe ao intérprete compreender o verdadeiro senti­do de um texto na concreção de sua execução adequada.Gadamer aqui assume uma perspectiva neo-aristotélica,retomando o sentido de phronesis, por considerar que "atarefa da decisão moral é acertar com o adequado em umasituação concreta, isto é, ver o que nela é correto e fazê­10."83 Sendo que, para Aristóteles, julgar acertadamente é,ainda, julgar segundo a verdade. 84

O sentido de adequação corresponde antes à aplicaçãono processo hermenêutico, uma vez que a compreensão semostra como um acontecer. Interpretar um texto é esta-

81. Idem, p. 378.82. Aristóteles, na Ética a Nicômacos, também vincula a ação moral àexperiência referida ao hábito: "quanto à excelência moral, ela é oproduto do hábito, [... ] a excelência moral é engendrada em nós, masa natureza nos dá a capacidade de recebê-la, e esta capacidade seaperfeiçoa com o hábito." (1103 b)83. Verdade e método, p. 388.84. Ética a Nicômacos, 1143 b, p. 123.

43

Page 38: 52842935-Margarida-Maria-Lacombe-Camargo-Hermeneutica-e-Argumentacao (2).pdf

a;

belecer a sua relação com o presente, aplicá-lo à situaçãopresente.

Evidentemente, a compreensão se mede segundo umpadrão que não está contido nem na literalidade da ordemnem na verdadeira intenção daquele que a dá, senão unica­mente na compreensão da situação e na responsabilidadedaquele que obedece. 85

No direito talvez esta questão fique mais clara, porqueo seu acontecer corresponde a uma decisão de caráter con­creto, quando a lei é chamada a servir de parâmetro parauma decisão presente. Gadamer reconhece a exemplarida­de do modelo jurídico para a hermenêutica, cuja tônica é aaplicação. Entretanto, não vê na hermenêtuica jurídica umcaso especial, encontrando-a capacitada a reunir a velhaunidade do problema hermenêutico em que se encontratanto o jurista quanto o teólogo e o filósofo. 86

Na realidade, não se trata de subsumir um fato a umaidéia geral, porque, a nosso ver, a idéia da norma já nasce,para o intérprete, concreta; e concreta, justamente, por­que adstrita ao fato que se compreende.87 Logo, a com­preensão não é propriamente um método, na qualidade decondição técnica de um fazer, mas um processo que verifi­camos no seu acontecer e que tem como pressuposto oestar aí, ou seja, o participar de uma tradição. 88

85. Verdade e método, p. 407.86. Cf. Verdade e método, p. 401.87. "Aplicar o direito significa pensar conjuntamente o caso e a lei demaneira tal, que o direito propriamente dito se concretize", escreveGadamer em A razão na época da ciência, p. 51. E de concretizaçãoem concretização temos, como resultado, um franco projetar da juris­prudência.88. Gadamer. Verdade e método, p. 380.

44

Essas considerações sustentam nossa hipótese de admi­tir o direito como concretização. A norma só ganha signifi­cado quando assume uma posição concreta, ou melhor,quando se revela realmente. O direito, como elemento éti­co da vida social- teoria da vida reta -, pretende realizaro bem. Daí concordarmos com Gadamer quando mostraque "a interpretação correta das leis não é uma simplesteoria da arte, uma espécie de técnica lógica da subsunçãosob parágrafos, mas uma concreção prática da idéia do Di­reito. A arte dos juristas é também o cultivo do Direito."89

O existencialismo de Gadamer serve de base ao nossoprojeto, na medida em que vemos a compreensão do direi­to em função de sua existência concreta. O direito se reve­la na sua existência, quando interpretado e aplicado. Masnão como um processo espontâneo ou natural, pois as leissão volitivas, feitas pelo homem, com intenções definidassobre valores, interpretadas e aplicadas também sobre va­lores relativos a cada situação específica, o que faz comque devam ser compreendidas.

O juiz, a seu turno, tem que cuidar de decidir, e, porisso, quando procura adequar a lei às necessidades do pre­sente, na realidade procura resolver uma tarefa prática.Seu trabalho não se compara à do historiador que buscaentender o passado, mas, antes, se ocupa da própria histó­ria, que é o seu próprio presente. 9Ü

Em outro momento, Gadamer aponta para o aspectointersubjetivo da compreensão, sob sua dimensão prática,com o que podemos aproximá-lo da Nova Retórica. Com­preender, antes de mais nada, diz ele, significa entender-seuns aos outros. Compreender é, para começar, acordo.9\ E,

89. Idem, p. 63-4.90. Idem, p. 400.91. Idem, p. 232.

45

Page 39: 52842935-Margarida-Maria-Lacombe-Camargo-Hermeneutica-e-Argumentacao (2).pdf

sob a ênfase dada à condição dialética e intersubjetiva dacompreensão, que envolve a relação pergunta/resposta,objeção/refutação, enfim, a contestação, que por sua vezobedece a todo um esforço argumentativo, Gadamer acre­dita que "o verdadeiro problema da compreensão aparecequando, no esforço para compreender um conteúdo se co­loca a pergunta reflexiva de como haveria o outro chegadoà sua opinião."92

No livro A razão na época da ciência, ao tratar da di­mensão prática da compreensão no mundo moderno, Ga­damer procura chamar a atenção para os efeitos perversosda comunicação de massas e seu poder de manipulação nassociedades contemporâneas, e que não raro levam a umindividualismo exacerbado.93

A Hermenêutica, como teoria da interpretação, não ésimplesmente uma teoria. De modo muito claro, desde ostempos mais remotos, até hoje, a Hermenêutica esboçousempre a exigência de que sua reflexão acerca das possibili­dades, regras e meios de interpretação sirva e promova, demodo imediato, a práxis, [... ]. De modo semelhante ao queacontece com a retórica, a Hermenêutica pode designaruma capacidade natural do homem, isto é, a capacidade deum contato compreensivo com os homens.94

E a propósito, ressalta o caráter ético da práxis aristo­télica, acreditando que "é próprio da capacidade criadorado homem o inventar desejos e buscar logo as vias para suasatisfação. Porém, isto não muda em nada o fato de que o

92. Idem, p. 233.93. Nesse sentido, ver especialmente o capítulo intitulado "O que é apráxis? As condições da razão social", emA razão na época da ciência,p.41 a56.94. Gadamer. A razão na época da ciência, p. 61.

46

desejar não é querer, não é práxis. À práxis pertence oescolher, e decidir-se em favor de algo e contra alg "95''b E' o, Istoe, sa er prelenr um ao outro e escolher conscientem tentre as possibilidades. 96 en e

De fato, o caráter de liberdade de escolha e de decisãoapontado por Gadamer como parte de uma relação naturaÍentre os homens, leva-nos a aproximá-lo da Nova Retóricaproposta por Chaim Perelman, principalmente no que dizrespeito ao acordo.

É próprio da argumentação chegar-se ao acordo, que,conforme anota Rui Alexandre Grácio, produz uma verda­de a~enas temporária e revisível, cuja única vantagem é ser~unclOnal, ou seja, permitir estabelecer princípios que diri­Jam o pensamento e a ação, resolvendo situações ao menosem um determinado momento.97 A racionalidade, que in­forma e viabiliza o acordo, serve de base a um "novo"modo de pensar humano, mais voltado para a vida em so­c~e~ade, e que se apresenta como um novo paradigma filo­SOflCO, em contraposição às posições monolíticas caracte­rísticas da filosofia tradicionaP8

Cabe-nos ainda destacar os aspectos de liberdade e am­pla participação daqueles que promovem o acordo, ao lhespermitir um tipo de pensar mais amplo e contrário ao pen­samento linear.99 Mas, a respeito do aspecto paradoxal

95. Idem, p. 51.96. Idem, p. 59.

97. "O acordo torna-se fundamental, sob o ponto de vista práticoporque implica diretamente na organização das relações sociais." É ~que diz Rui Alexandre Grácio no estudo que faz sobre a obra de Perel­man, Racionalidade argumentativa, p. 11.98. Esta é a tese desenvolvida por Rui Alexandre Grácio em Raciona­lidade argumentativa.

99. Veremos, ainda, que todo pensamento tópico tem, necessaria­mente, como base o acordo.

47

Page 40: 52842935-Margarida-Maria-Lacombe-Camargo-Hermeneutica-e-Argumentacao (2).pdf

I

oriundo dos limites ao acordo, pela sua circunstancialida­de, escreve Grácio:

Limitações que se, por um lado, nos expõem à precarie­dade dos acordos, à conflitualidade dos debates e à instabi­lidade das discussões, abrem-nos, por outro, a um mundohumano em que a liberdade de opinião e o direito ao livreexame se podem sempre assumir e praticar como alternati­va à tirania de profetas iluminados que procuram encerrar acontingência do pensamento na prisão das verdades neces-

, . . . 100sanas e UnIversais.

Podemos ainda inferir que, tanto Gadamer quanto Pe­relman, ao se indisporem contra o cartesianismo, que de­sassocia a teoria da prática, trabalham com a idéia de razãoque se assume na sua historicidade. Através da noção de"auditório", que resgata da retórica antiga, Perelman nospermitirá falar de uma razão histórica e situada, bem comopensar a racionalidade a partir da sua própria encarna­çãO. IOI Logo, como integrantes da corrente tópico-retórica,podemos distinguir aqueles pensadores que reconhecem atradição como elemento que fundamenta a compreensão,em lugar de servir-lhe de obstáculo. Descartes, ao contrá-

À propósito da diferença existente entre o pensamento linear e opensamento que assume a complexidade do contexto em que é gera­do, anota Perelman em O império retórico: "o pensamento linear se­gue um encadeamento de idéias rigoroso, no qual a dedução não devenunca saltar um elo da cadeia, pois "onde um ponto for omitido, pormenor que seja, logo a cadeia se rompe e toda a certeza da conclusãodesvanece" (p.134, nota 20). Mais adiante continua: "Mas se se mudade foro, sendo o raciocínio assimilado, não a uma cadeia, mas a umtecido cuja trama é constituída por argumentos entrelaçados, imedia­tamente se vê que a sua solidez é de longe superior a cada um dos fios"(p.134, nota 21).loo.Cf. Grácio. Racionalidade argumentativa, p. 11.101. Idem, p. 69.

48

rio, reprova expressamente a influência dos costume dI d " - s, os

va ores e. as ?pInIOeS em suas considerações sobre a razão,por consIdera-los fatores de origem indefinida e obscuraque contaminam a pureza e a clareza do raciocínio.

Um outro aspecto que também nos levará a aproximaras concepções ontológicas e existencialistas de Gadamercom a proposta de uma racionalidade argumentativa feitapela Nova Retórica refere-se à questão da deliberação istoé, da escolha que se verifica no âmbito da práxis, a~pla­mente explorada por ambos os autores. Os homens assu­mindo a sua liberdade e as suas diferenças, adota~ posi­ções mediante escolha, que comporta, outrossim, justifi­cativa. Mas, antes, cabe reconhecer a participação da his­tória (comunhão gerada pela tradição) nas nossas escolhase, até mesmo, na nossa interpretação do mundo, notada­mente para o que se dá no campo jurídico, circunscrito àdogmática.

1.4 Dogmática e interpretação: o círculo hermenêutico

Como toda obra humana, que corresponde a um pro­cesso de criação, o direito tem a sua marca valorativa. Porconseguinte, o direito tem como sentido não só os valoresque concebem a intenção, ou a vontade, do sujeito que faza lei, como também os valores incorporados à tradição his­tórica na qual ela se insere. Isso encontra referência tantona vontade do autor quanto na vontade do intérprete, en­quanto seres históricos pertencentes a épocas distintas. Odireito, no momento de sua criação, pelo ato originário dolegislador ou pelo ato decisório do juiz, aplica-se às neces­sidades práticas de todos aqueles que, direta ou indireta­mente, se encontrem envolvidos na tarefa de interpretar alei, ganhando um significado de natureza volitiva, o que faz

49

Page 41: 52842935-Margarida-Maria-Lacombe-Camargo-Hermeneutica-e-Argumentacao (2).pdf

-com que ele deva ser compreendido. 102 O seu significado,portanto, não se encontra adstrito à natureza, inde­pendentemente da vontade humana, de forma a poder sersimplesmente constatado. Ao contrário, tudo aquilo que éfeito pelo homem possui um significado cuja busca depen­de de um esforço hermenêutico. Tratando-se, outrossim,de uma função prática, relativa ao agir humano, a apreen­são do sentido insere-se, necessariamente, em um comple­xo processo dialético, no qual várias interpretações apre­sentam-se como logicamente possíveis. Entendemos, por­tanto, que a compreensão serve de base à interpretação,como produto final, uma vez que nos exprimimos sobreaquilo que compreendemos. 103 Mas, se por outro lado acei­tamos que a interpretação servirá como fundamento paraa compreensão total do fenômeno, há que se falar tambémem pré-compreensão. 104

102. Com relação aos vários intérpretes que participam da concretiza­ção do direito, convém verificar o trabalho de Peter Hiiberle. O filó­sofo de Bayreuth propõe, ainda que para a esfera constitucional, umainterpretação aberta, levada a cabo por todos aqueles envolvidos emcada questão, chegando à opinião pública e ao próprio cidadão. VidePeter Hiiberle. Hermenêutica constitucional, Porto Alegre: Sérgio Fá­bris, 1997, trad. de Gilmar Ferreira Mendes.103. Segundo Heidegger, conforme escreve João Paisana, a questãohermenêutica só se poderá colocar a partir de uma resposta prévia quea oriente: "Parece que laboramos num círculo: a questão só se poderácolocar se obtemos previamente a resposta. [... ] Não se trata aqui dededuzir teoremas de axiomas segundo as regras formais da lógica. Tra­ta-se de compreender a resposta existencial, veiculada por um modode ser ôntico que vela a questão, como resposta expressa a partir daquestão expressa, isto é, a partir da abertura de suas possibilidades."João Paisana, Dicionário do Pensamento Contemporâneo, p. 159.104. "A 'pré-compreensão' representa uma antecipação de sentido doque se compreende, uma expectativa de sentido determinada pelarelação do intérprete com a coisa no contexto de determinada situa­ção. A pré-compreensão constitui um momento essencial do fenôme-

50

No processo jurídico-decisório, a ação interpretativaparte de um conjunto de conceitos e conhecimentos pré­vios e, de certa forma, sedimentados, que nos possibilitaalcançar suas conclusões com um mínimo de previsibilida­de. Do ponto de vista histórico, a tradição cumpre essepapel. Mas, especificamente no campo jurídico, contamoscom todo um arcabouço teórico que condiciona a sua in­terpretação. É o seu viés dogmático, composto pela lei,pela doutrina e pela jurisprudência. Logo, o ordenamentojurídico, como unidade sistemática de normas, serve deparâmetro 'para a interpretação. Quando qualificamos umfenômeno como jurídico, estamos, na realidade, conside­rando-o em função dos conceitos apresentados pela dog­mática, cujo conteúdo, até mesmo por uma questão demo­crática e de segurança, é de todos previamente conhecido.Assim, a pré-compreensão do intérprete em relação a umaquestão jurídica encontra-se referida não apenas à situaçãohistórica, mas também a um determinado campo de co­nhecimento. Os princípios extraídos da doutrina e da ju­risprudência, conhecidos, portanto, dos profissionais e es­tudiosos do direito, permite que a dialética se instauredentro de limites que lhe retirem qualquer espécie de ar­bitrariedade, conferindo-lhe, inclusive, considerável fatorde previsibilidade.

Vale lembrar a noção de dogmática jurídica apresenta­da por Tércio Sampaio Ferraz Jr., quando a enuncia comopensamento fechado, oposto à zetética. O pensamento ze­tético corresponde às ciências do espírito não comprome­tidas com uma solução definitiva para suas questões, bem

no hermenêutico e é impossível ao intérprete desprender-se da circu­laridade da compreensão." Cf. José Lamego, Hermenêutica e jurispru­dência, p. 135.

51

Page 42: 52842935-Margarida-Maria-Lacombe-Camargo-Hermeneutica-e-Argumentacao (2).pdf

como independem dos pontos de partida que podem sem­pre ser questionados. É o caso da filosofia, da política e atémesmo da sociologia. No direito, ao contrário, trabalha­mos com a idéia de "inegabilidade dos pontos de partida"- expressão já cunhada por Nicklas Luhmannlos -, comrespeito às normas positivas. Isso significa que não cabe aooperador do direito questionar a existência da lei em si,ainda que possa discordar da interpretação prevalecentena jurisprudência ou na doutrina, não se eximindo, portan­to, de apresentar uma solução definitiva para o problema.Caracteriza-se, dessa forma, o pensamento dogmático aum só tempo técnico e fechado, porque não se preocupacom a verdade ou com a falsidade de seus enunciados, mascom soluções logicamente possíveis. Não se trata, na reali­dade, de aceitar as leis como verdades impostas, mas deaceitá-las como limite ao processo criativo do intérprete.Fábio Ulhoa Coelho, a respeito da dogmática jurídicacomo pensamento tecnológico, declara:

o estudioso do direito conheceria, a rigor, a adequabili­dade de meios (isto é, as muitas interpretações possíveis deuma norma jurídica) para o alcance de fins dados externa­mente a seu saber (a administração de conflitos sociais, amanutenção da organização econômica, política, social,etc.); adequabilidade essa que não se revela por demonstra­ção lógico-dedutiva mas por argumentação retórica. 106

A propósito desta área circunscrita na qual atua o direi­to e que, por sua vez, delimita um campo próprio de inter-

105. N. Luhmann. Sistema jurídico y dogmática jurídica, p. 27 e segs.106. Fábio Ulhoa Coelho. Prefácio à edição brasileira do livro deChaim Perelman e Lucie Olbrechts-Tyteca, Tratado da argumenta­ção - Nova retórica, p. XVI e XVII.

52

pretação, é que podemos falar aqui do "círculo hermenêu­tico"107 desenvolvido pela filosofia, principalmente porHeidegger, para quem a interpretação se funda numa visãoprévia, que "recorta" o que foi assumido na posição prévia,segundo uma possibilidade determinada de interpreta­ção. IOS Isso significa que "toda interpretação que se colocano movimento de compreender já deve ter compreendidoo que se quer interpretar."109 E assim, "na compreensão, apre-sença projeta seu ser para possibilidades. "110

A circularidade hermenêutica, de acordo com Heideg­ger, funda-se na pré-compreensão, apoiada sobre o sentido

107. A idéia de círculo hermenêutico é vista por Richard Palmer daseguinte forma: "Compreender é uma operação essencialmente refe­rencial; compreendemos algo quando o comparamos com algo que jáconhecemos. Aquilo que compreendemos agrupa-se em unidades sis­temáticas, ou círculos compostos de partes. O círculo como um tododefine a parte individual e as partes em conjunto formam o círculo.Por exemplo, uma frase como um todo é uma unidade. Compreende­mos o sentido de uma palavra individual quando a consideramos nasua referência à totalidade da frase; e reciprocamente, o sentido dafrase como um todo está dependente do sentido das palavras indivi­duais. Conseqüentemente, um conceito individual tira o seu significa­do de um contexto ou horizonte no qual se situa; contudo, o horizonteconstrói-se com os próprios elementos aos quais dá sentido. Por umainteração dialética entre o todo e a parte, cada um dá sentido ao outro;a compreensão é portanto circular. E porque o sentido aparece dentrodeste 'círculo', chamamo-lhe 'círculo hermenêutico'." Richard Pal­mer. Hermenêutica, p. 93-94.

Cf. também Gadamer, A razão na época da ciência, p. 65, quandoeste afirma que toda a interpretação só é possível a partir de preconcei­tos, nos seguintes termos: "O ponto central de toda compreensão serefere à relação objetiva que existe entre os enunciados do texto e anossa própria compreensão do assunto."108. Cf. Ser e tempo, Parte I, p. 206-207.109. Idem, p. 209.110. Idem, p. 204.

53

Page 43: 52842935-Margarida-Maria-Lacombe-Camargo-Hermeneutica-e-Argumentacao (2).pdf

daquilo que buscamos compreender. Sentido, para Hei­degger, é aquilo em que se sustenta a compreensibilidadede alguma coisa; é a perspectiva em função da qual se es­trutura o projeto pela posição prévia, visão prévia e con­cepção prévia. É a partir dela que algo se torna compreen­sível como algo,lll sendo que esse círculo da compreensãonão é um cerco em que se movimenta qualquer tipo deconhecimento; ele pertence à estrutura do sentido: expri­me a estrutura prévia existencial própria da presença. 112

Daí a idéia de projeto lançado pelo ser presente e histórico,tão sugestiva em Heidegger e depois retomada por Gada­mer, com ênfase no conceito de tradição.

A despeito dos defensores do pensamento linear, cons­truído sobre axiomas, a idéia de círculo hermenêutico im­põe-se na filosofia, ainda que apresentando diferenças, emgeral referentes ao momento determinante da interpreta­ção ou à posição do intérprete em relação ao objeto inter­pretado. 113 No processo hermenêutico existirá sempreuma relação dialética entre o todo e as partes, porquanto o

111. Idem, p. 208.112. Idem, p. 210.113. Como exemplo temos as posições de Schleiermacher e Dilthey,assim descritas por Gadamer: "Schleiermacher distinguiu este círculohermenêutico da parte e do todo em sua vertente objetiva e subjetiva.Como a palavra pertence ao conjunto da frase, assim cada texto aoconjunto da obra de um escritor, e esta ao conjunto do gênero literárioou da literatura correspondente. Mas, por outro lado, o mesmo textocomo manifestação de um momento criativo pertence ao conjunto davida anímica de seu autor. Só nesta totalidade de signo objetivo sepode realizar a compreensão. Em conexão com esta teoria fala Diltheyde 'estrutura' e de 'centração em um ponto médio' desde o qual seproduz a compreensão do todo. Transfere assim ao mundo histórico oque é sempre um princípio da interpretação: que é preciso entenderum texto desde ele mesmo." Cf. o artigo intitulado "Sobre o círculoda compreensão" (1959), em Verdade e método lI, p. 63.

54

significado de um depende do significado do outro. Gada­mer, por exemplo, admite a formação de círculos concên­tricos no movimento constante entre o todo e as partes, eem cuja congruência de cada detalhe com o todo encontra­se a correção do critério. 114

Na relação entre sujeito e objeto, no entanto, Gadamernão reconhece um círculo de natureza formal. Segundoele, o círculo não é subjetivo e nem objetivo, mas descrevea compreensão como a interpretação do movimento datradição e do movimento do intérprete. A antecipação desentido que guia a compreensão de um texto não é um atode subjetividade, mas se determina desde a comunidadeque nos une com a tradição e é, portanto, de natureza on­tológica. 11s

O significado da pré-compreensão assume, pois, espe­cial importância no pensamento de Gadamer, para quem opré-juízo funciona como pressuposto que preside toda acompreensão. Por outro lado, sustenta que a tarefa da in­terpretação é um constante projetar como antecipaçõesque devem se confirmar "nas coisas". E, apoiando-se fran­camente na filosofia de Heidegger, para quem todo aqueleque quer compreender um texto realiza sempre um proje­tar, escreve:

o sentido só se manifesta porque alguém lê o texto apartir de determinadas expectativas relacionadas por suavez com algum sentido determinado. A compreensão doque põe no texto consiste precisamente na elaboração desteprojeto prévio, que, por suspeito, tem que sempre ser revi­sado na medida em que avança na penetração do sentido.Toda revisão do primeiro projeto apóia-se na possibilidade

114. Vide Gadamer. Verdade e método, p. 361.115. Idem, p. 363.

55

Page 44: 52842935-Margarida-Maria-Lacombe-Camargo-Hermeneutica-e-Argumentacao (2).pdf

de antecipar um novo projeto de sentido; é muito possívelque vários projetos de elaboração rivalizem uns com os ou­tros até que possa estabelecer-se univocamente a unidadedo sentido. I 16

Ou:

Aquele que se propõe a compreender um texto faz sem­pre um projeto. Antecipa um sentido do conjunto uma vezque aparece um primeiro sentido no texto. Este primeirosentido se manifesta, por sua vez, porque lemos o texto comcertas expectativas sobre um determinado sentido. A com­preensão do texto consiste na elaboração de tal projeto,sempre sujeito a revisão como resultado de um aprofunda­mento do sentido. 117

Percebe-se, desde logo, que este ir e vir de perspectivasnão se opera em uma só direção e de forma linear, comonas demonstrações lógicas e matemáticas, mas de formatópica e/ou dialética, como veremos adiante.

Gadamer legitima a pré-compreensão na tradiçãocomo processo histórico que o intérprete experimenta. lls

116. Idem, p. 333.117. Gadamer. "Sobre o círculo da compreensão" (1959). Verdade emétodo lI, p. 65.118. Para Gadamer, os preconceitos necessários e que orientam todatarefa interpretativa não constituem, obrigatoriamente, fonte de erro,como queria Descartes. Os preconceitos, por exemplo, dados pelatradição, carregam um fundamento de validade. Daí Gadamer falar daautoridade própria da tradição. Por outro lado, "a tradição não é umaforça cega, em face da qual o homem seria um ente meramente passi­vo, não só porque através dela o homem se auto-interpreta, mas tam­bém porque por ela o homem é continuamente interpelado. [... ] Atradição é assim identificada com o conjunto de preconceitos trans­subjetivos que orientam a interpretação e, como eles, é igualmente

56

A autoridade da tradição, no entanto, não tira a liberdadedo intérprete, porque, ao ser racionalmente reconhecida, eformar uma consciência metódica da compreensão, somoscapazes de controlá-la. I 19 Mas a compreensão não consisteem uma busca do passado feita por uma razão inde­pendente, como procedia o romantismo histórico, consi­dera Gadamer. Consiste, isto sim, na determinação uni­versal do estar aí, ou melhor, na futuridade do estar aí,feita por uma razão comprometida historicamente. O es­tar aí faz parte de um processo histórico enquanto expe­riência humana da qual participamos. E, assim, escreve:

Não é só a tradição e a ordem de vida natural que for­mam a unidade do mundo em que vivemos como homens; omodo como nos experimentamos uns aos outros e comoexperimentamos as tradições históricas e as condições natu­rais de nossa existência e do nosso mundo formam um au­têntico universo hermenêutico com respeito ao qual nós nãoestamos encerrados entre barreiras insuperáveis senão aber­tos a ele. 120

A razão só existe como real e histórica, ou seja, a razãonão é dona de si mesma, mas está sempre referida ao dadono qual ela se exerce. "Por isso, os pré-juízos de um indiví­duo são muito mais que seus juízos; a realidade históricado seu ser."121 E sob esse viés ontológico-existencialista,contrário às construções que se fundam sobre o métodológico-objetivista, Gadamer entende que:

afirmada como condição da interpretação." Cf. João Paisana, Dicioná­rio, p. 163.119. Verdade e método, p. 336.120. Idem, p. 26.121. Idem, p. 344.

57

Page 45: 52842935-Margarida-Maria-Lacombe-Camargo-Hermeneutica-e-Argumentacao (2).pdf

A antecipação de sentido que guia nossa compreensãode um texto não é um ato da subjetividade senão que sedetermina desde a comunidade que nos une com a tradição.Mas em nossa relação com a tradição, esta comunidade estásubmetida a um processo de contínua formação. Não é sim­plesmente pressuposto sob o que nos encontramos sempre,senão que nós mesmos a instauramos enquanto que com­preendemos, participamos do acontecer da tradição e conti­nuamos determinando assim desde nós mesmos. O círculoda compreensão não é neste sentido um círculo "metodoló­gico" senão que descreve um momento estrutural ontológi­co da compreensão. 122

De fato, quando Heidegger afirma que "a compreensão

significa o projetar-se em cada possibilidade de ser-no­mundo, isto é, existir como essa possibilidade 11 , 123 pode­mos continuar com Gadamer quando, ao analisar tal con­

cepção, conclui que "quem compreende um texto, paranão dizer uma lei, não apenas se projeta, no esforço dacompreensão, em direção a um significado, mas adquirepela compreensão uma nova liberdade de espírito. Isso im­plica novas e numerosas possibilidades, como interpretarum texto, ver as relações escondidas que ele dissimula, ti­rar conclusões, etc." 124

O problema da pré-compreensão assume especial im­portância no direito, devido ao seu aspecto dogmático. 125

122. Idem, p. 363.123. Cf. Ser e tempo, Parte 2, p. 193.124. O problema da consciência histórica, p. 41 .125. Sobre a existência de preconceitos ou pressupostos que orien­tam a interpretação no pensamento de Heidegger, temos que: "aceitara existência do círculo hermenêutico é indissocialmente aceitar a exis­tência de pressupostos ou preconceitos para toda a exegese e, na ver­dade, como condição para a própria exegese." Cf. João Paisana, Dicio­nário, p. 159, verbete "Hermenêutica".

58

A formação de uma tradição jurídica, originária dos princí­pios traduzidos pela lei, pela doutrina e pela jurisprudên­cia, oferece ao direito um forte poder de legitimidade, nãotanto pela sua autoridade produtiva, legislativa ou judicial,mas, principalmente, pela regra de justiça que estabelece aaplicação do precedente como meio de conceder trata­mento igual a situações essencialmente semelhantes. Damesma forma, a natureza normativa das regras e princípiosjurídicos positivados e dos conceitos sedimentados pelatradição condiciona a ação do intérprete, impondo-lhe li­mites. Veremos, todavia, que o uso da tópica no direitoajuda a potencializar seu âmbito de significação, ao invésde cercear a ação interpretativa.

Para o direito, além da tradição histórica, que situa ointérprete, contamos também com uma tradição especifi­camente jurídica, de regras e princípios, que se mantêm notempo e servem de sustentação às decisões, segundo a re­gra de justiça. 126 Dessa maneira, entendemos que a dogmá-

126. Perelman atribui significado especial à tradição jurisprudencialcomo fórmula de justiça, bem como aos "princípios gerais de direito",que atuam como regras gerais cuja autoridade repousa na tradição.Descartes, por seu lado, se indispõe francamente contra qualquer tra­dição. Os costumes e as opiniões levam ao erro, da mesma forma quea razão se opõe à arbitrariedade das crenças e dos pré-conceitos. Elepretende, com isso, segundo declara no seu primeiro trabalho publica­do - Discurso do método -, fazer tábula rasa de sua própria vida,desfazendo-se das opiniões antes tidas como verdadeiras. Ele dispõecomo primeira regra para suas observações: "Nunca aceitar coisa algu­ma como verdadeira sem que a conhecesse evidentemente como tal;ou seja, evitar cuidadosamente a precipitação e a prevenção, e nãoincluí em meus juízos nada além daquilo que se apresentasse tão clarae distintamente a meu espírito, que eu não tivesse; nenhuma ocasiãode pô-lo em dúvida." (Discurso do método, p. 23) E, mais adiante:"quanto aos costumes, por vezes é necessário seguir, como se fossemindubitáveis, opiniões que sabemos serem muito incertas, como já foi

59

Page 46: 52842935-Margarida-Maria-Lacombe-Camargo-Hermeneutica-e-Argumentacao (2).pdf

tica é capaz de reservar alguma segurança às relações so­ciais, pelo quantum de previsibilidade que oferece ao con­trole de suas ações, mais do que em qualquer outra área doconhecimento, não merecendo, por isso, ser descurada.Aliás, é característica que nos faz distinguir a hermenêuti­ca jurídica dos demais campos hermenêuticos, atribuindo­lhe tratamento próprio.

dito acima; mas, como então desejava ocupar-me somente da procurada verdade, pensei que precisava fazer exatamente o contrário, e rejei­tar como absolutamente falso tudo em que pudesse imaginar a menordúvida, a fim de ver se depois disso não restaria em minha crençaalguma coisa que fosse inteiramente indubitável."(Discurso do méto­do, p. 37.)

60

Capítulo 2

o PENSAMENTO JUSFILOSÓFICOMODERNO: DA EXEGESE À

JURISPRUDÊNCIA DOS VALORES

o pensamento jurídico moderno, ou as várias correntesfilosóficas que pensaram e escreveram sobre o direito noséculo XIX, detiveram suas preocupações em torno dosvalores que servem de essência ao próprio direito. SeriaméIesoasÍcamente a justiça, a certeza e a segurança. Enten­demos que toda conalçãõét.ica e moral concentra-se noâmbito da justiça, assim como a ordem se refere à certezae à segurança. Entretanto, não se deve afastar a idéia deque a justiça, como ausência do arbítrio, sustenta-se na lei,relacionada diretamente aos valores da ordem e da segu­rança. É a chamada justiça formal, que garante a igualdadede todos perante a lei. Por isso, é repassarmos a história domundo moderno para perceber que a_necessidade da segu­rança se sobrepõe à idéia mais elevada de justiça, fazendocom que o direito se circunscreva à ordem forma1. 127 Se é

127. A segurança e a ordem são os valores típicos do mundo moderno.

61

Page 47: 52842935-Margarida-Maria-Lacombe-Camargo-Hermeneutica-e-Argumentacao (2).pdf

esta a modernidade que agora se questiona, é sobre ela quenossas atenções devem recair, tomando-a como paradigmade análise.

É o momento em que o cartesianismo se impõe. Carac­terístico disso é a teoria do contrato social, criado pela ra­zão e que irá fundamentar a ordem social dos iluministas.A figura almejada de um legislador racional, criador deuma nova ordem, a despeito dos costumes e da tradiçãoexistentes, encontram fundamento nos escritos de Des­cartes:

Não há tanta perfeição nas obras compostas de váriaspeças, e feitas pelas mãos de vários mestres, como naquelasem que apenas um trabalhou. [... ] E assim pensei que asciências dos livros, pelo menos aquelas cujas razões são ape­nas prováveis, e que não têm nenhuma demonstração, sendocompostas e aumentadas pouco a pouco pelas opiniões demuitas pessoas diferentes, não se aproximam tanto da ver­dade quanto os simples raciocínios que um homem de bomsenso pode fazer naturalmente sobre as coisas que se lheapresentam. 128

Os teóricos do racionalismo, que trataram da laicização_do poder estatal, clesloca~dó-~ eixo da origem do poder,CLue antes se situava na esfera divina, para a razão ou para~

natureza humana, clamavam, antes de mais nada, pela ne­cessidade da certeza e da segurança nas relações sociais.

Com eles tivemos a criação do Estado de Direito, cujo intuito foi o deestabelecer previsões e evitar o arbítrio. A tônica do pensamento cien­tífico-cartesiano está dada pela segurança que a verdade pode trazer.A respeito, diz Descartes: "Eu tinha sempre um imenso desejo deaprender a distinguir o verdadeiro do falso, para ver claro em minhasações, e caminhar com segurança nesta vida." Discurso do método,p.15.128. Discurso do método, p. 15 e 17.

62

Thomas Hobbes centraliza no Soberano todas as expecta­tivas de segurança para a sociedade inglesa do séculoXVIl.129 Convoca um tipo de Soberano até então desco­nhecido na tradição medieval: o Soberano absoluto com­posto pelas pessoas, seus corpos e mentes, como delegadoinerente de suas vontades. John Locke cria um soberanocoletivo: o poder legislativo, composto pela delegaçãotemporária das vontades dos homens, que mantêm o po­der originário.l3° Por outro lado, Locke vê como funda­mental e imprescindível a existência de um poder executi­vo composto por magistrados capazes de aplicar imparcial­mente as leis soberanas ditadas pelo legislativo. Rousseauenaltece a figura do cislél.~ão, detentor originário do poder-?~Q.~rano, como o único capaz de conduzir legitimamenteª yidapública. Imagina uma ordem estatal em que indiví-duo e Estado se identificam numa mesma e única estruturade poder. 131

Mais foi com Locke que a teoria do .Estado liberal h1e­lhor se estruturou, seguido mais de p~rto por -Montes­quieul32 e os Fouding Fathers133 americanos. Com basenesses autores, o EstadQ iguala-se à ordem configuraçl.apelo ordenamento jurídico positivo e, com isso, a seguran­ça e a certeza poderiam ser encontradas nas leis legitima­mente criadas pelos representantes do povo e garantidaspelo Est~ci_2--!Il~çlia_nte_aaçã.o.elo poder judiciário. Leis queob~igam tantg g()yemantes como gºyern~JQ~~-Ãlei passa aser vista como mecanismo de contrqle das ações do govet-

129. Thomas Hobbes. Leviatã ou matéria, forma e poder de um Esta­do Eclesiástico e Civil, passim.130. John Locke. Segundo Tratado sobre o Governo, passim.131. Jean-Jacques Rousseau. Do Contrato Social, passim.132. Montesquieu. Do espírito das leis, passim.133. Hamilton, Madison e Jay. O federalista, passim.

63

Page 48: 52842935-Margarida-Maria-Lacombe-Camargo-Hermeneutica-e-Argumentacao (2).pdf

no, à medida que inibe o abuso do poder, e como regra quegarante a igualdade (formal) entre os homens. Encontra­se, afinal, uma fórmula para conter os desmandos dos go­vernantes, enquanto a cidadania se afirma.

No âmbito da vida privada, marcada pelas relações en­tre particulares, a presença de um poder maior, capaz demanter a ordem através da mediação na composição dosconflitos, também aparece como necessária. Mais do queuma questão de justiça, que não é de todo ausente, hajavista o requisito da imparcialidade para o terceiro media­dor, impõe-se, antes, a manutenção da ordem fundada naliberdade individual. l34 Mas para tanto, de nada adiantariaum corpo de leis criativo e bem elaborado, sem mecanis­mos capazes de garantir-lhes execução. l3S A norma justaera aquela feita pelo povo, ainda que por meio de repre­sentantes eleitos, e que cabia ser aplicada sem intermedia­ções. Ao poder judiciário competiria simplesmente umá'ação eficaz, capaz de concretizar a nova ordem tal comofora estabelecida. A teoria da separação dos poderes, bemcomo a igualdade garantida pela aplicação regular da lei,vêm, desta maneira, garantir a estrutura formal e os ideaisdo Estado de Direito.

Na pós-modernidade, contudo, esse referencial de or­dem e segurança garantidos pelo formalismo abre espaçopara o valor da justiça, garantido não mais pela ação formalde cunho abstrato, mas pela razoabilidade referente à de­cisão de cada caso concreto. É quando as relações intersub-

134. A respeito da predominância do interesse individual, vale confe­rir a obra de Macpherson - A teoria política do individualismo pos­sessivo de Hobbes até Locke.135. T. H. Marshal demonstra como fundamental para a sedimenta­ção da cidadania no séc. XVIII a proteção dos direitos individuaismediante a ação vigorosa do Poder Judiciário.

64

jetivas e dialéticas, capazes de viabilizar o consenso e a le­gitimidade das decisões jurídicas, fazem com que se recu­pere a antiga retórica clássica e lhe confira objetivos novos.

Contudo, para se chegar ao ponto em que se encontraa filosofia jurídica atualmente, que contempla a "lógica dorazoável" e a "nova hermenêutica", convém percorrermosalgumas das principais escolas e movimentos teóricos quepensaram o direito no mundo moderno, caracterizando afilosofia de suas respectivas épocas, e que ainda servem dereferência à discussão atual.

2.1 A Escola da Exegese

Sob a ênfase do racionalismo, surge, na França, em1804, o Código Civil Francês, mais conhecido como Códi­go de Napoleão. A idéia de sistema como conjunto de ele­mentos estruturados de acordo com as regras da deduçãoimpõe-se no campo da filosofia, com especial repercussãono direito. 136 A criação de um corpo sistemático de normas .capaz de uniformizar o direito, suprimindo a obscuridade,a ambigüidade, a incompatibilidade e a redundância entre

136. Segundo Tércio Sampaio Ferraz Jr., "O núcleo constituinte des­sa teoria já aparece esboçada ao final do século XVIII. O jusnaturalis­mo já havia cunhado para o direito o conceito de sistema, que seresumia, em poucas palavras, na noção de conjunto de elementos es­truturados pelas regras de dedução. No campo jurídico falava-se emsistema da ordem da razão ou sistema das normas conforme a razão,entendendo-se com isto a unidade das normas a partir de princípiosdos quais todo o mais era deduzido. Interpretar significava, então,inserir a norma em discussão na totalidade do sistema. O relaciona­mento, porém, entre sistema e totalidade acabou por colocar a ques­tão geral do sentido da unidade do todo." Introdução ao estudo dodireito, p. 240.

65

Page 49: 52842935-Margarida-Maria-Lacombe-Camargo-Hermeneutica-e-Argumentacao (2).pdf

os vários preceitos normativos regionais e setoriais, objeti­vando sua aplicação, revela uma vitória da razão sobre ou­tras formas espontâneas de expressão cultural. E comomovimento doutrinário proveniente dos grandes comenta­ristas do novo código, surge a chamada Escola da Exegese.

Crédulos nas inúmeras virtudes daquele corpo siste­mático de norma~, os componentes da Escola da Exegesepropugnam um~-atuação restrita do poder judiciári9J me~

diante o apego excessivo às palavras da lei. A atividade dosjuízes, na França, então comprometidos com o Antigo R~­

gime, seria controlada pelo atendimento severo e restritoaos termos da lei. Lei feita pelo povo, em cujo conteúdo~~contra-se a vontade geral. Na busca do seu s~gl1ificadol

privilegia-se, então, os métod-os de interpretação gramati­cal, e sistemático. Por intermédio da estrutura gramatical,e- pelo conteúdo dos termos técnicos, encontrar-se-ia ~

vontade do legislador reconhecida como a máxima expres~

são da vontade geral que encarna o poder. Nada poderiaser admissível como ameaça à nova ordem. Qualquer po­der, além daquele que verifica o conteúdo expresso da lei,transforma-se em arbítrio. E assim, o juiz passa a ser vistocomo um funcionário do Estado e mero aplicador do textolegal. Laurent, um dos fautores da École, proclama: "Oscódigos não deixam nada ao arbítrio do intérprete; estenão tem por missão fizer o direito. O direito está feito.Não há mais incertezas; o direito está escrito nos textosautênticos."137

Característico do impulso cientificista que prima pelacerteza, a atividade do jurista deveria ser a mais objetiva.eneutra possível. Em nenhum momento o juiz deve colocar'sua índole à mercê da interpretação da lei de forma a des-

137. Apud Bonnecase, ob. cit., p. 128.

66

figurar a verdadeira "vontade do legislador". E dessa ma-neira, acredita-se na regeneração da Ciência do Direito i\....k(Civil) pela Escola da Exegese. O método sistemático tam-\ riJ~ ':bém apresenta-se como apropriado no trabalho de inter- " .pretação do novo código, uma vez que o conjunto de nor-mas integrado e harmônico traduz, em si, um sentido co-mum, além do significado isolado de seus artigos, cabendoao intérprete considerar a lei em conformidade com a to­talidade do Código. O dogma da razão exalta de tal forma .a capacidade do Código, que leva à comjJle.t~.!~_~~!~ic:.~sª<:).

do direito com a leL.Daí a célebre frase de Bugnet: "Eu nãocõ~heç~o direito civil; eu ensino somente o Código deNapoleão."138

Havia uma pretensão de se encontrar na lei a respostapara todos os conflitQS. De fato, em um momento de pou­ca complexidade social e progresso em lenta evolução, ocódigo napoleônico conseguiu manter-se praticamenteinalterado até o final do século, e com ele as propostas daEscola da Exegese. 139 Julien Bonnecase, autor do livro L'É­cole de l'Exégese en Droit Civil, divide em três os períodosdesse movimento: primeiro, o período de formação, quedata de 1804 a 1830; em seguida, o seu apogeu - 1830 a

138. Idem,p.128.139. A questão das lacunas, por exemplo, no direito não era enfrenta­da pelos teóricos da Escola da Exegese, embora existisse no CódigoNapoleônico uma disposição no sentido de que o juiz não pode deixarde julgar alegando ausência ou obscuridade na lei, sob pena de sercondenado: "O juiz que recusa julgar, a pretexto do silêncio, da obscu­ridade ou da insuficiência da lei, poderá ser processado como culpadode denegação de justiça"- artigo 4° do Código de Napoleão. Cabeverificar, a respeito, os debates que antecederam a promulgação doCódigo, principalmente o que dizia Portalis, reconhecidamente o seuprincipal mentor.

67

Page 50: 52842935-Margarida-Maria-Lacombe-Camargo-Hermeneutica-e-Argumentacao (2).pdf

1880; e o declínio, verificado por volta de 1880. Além doapego à literalidade do texto como característica, Bonne­case aponta, ainda, um outro aspecto da Escola da Exege­se, que é o da "estatalidad~".O direito identifica-se com oEstado, nos seguintes termos:

A Doutrina da Escola da Exegese se reduz, com efeito, aproclamar a onipotência jurídica do legislador, isto é, doEstado, pois, queiramos ou não, o culto do texto da lei e da

Tnfenção do legislador, levado ao extremo, coloca o direitode uma maneira absoluta nas mãos do Estacfo~140 .

A Escola da Exegese firmou, assim, a base teórica doracionalismo jurídico ocidental, cuja grande obra foi o Có­digo de Napoleão.

2.2 A crítica de François Gény \

Apesar de toda ênfase dada pela Escola da Exegese aoaspecto racional do direito tal como este se encontra ex­presso na lei, que tudo alcança e tudo prevê, a despeito,inclusive, do que dispunha o artigo 4° do Código Civilfrancês, ao determinar sobre a obrigação do juiz de julgardiante do silêncio, da insuficiência ou da obscuridade dalei, encontramos a crítica de François Gény.141 Por meiode uma construção de base empírica feita sobre o trabalhodos juízes, que se defrontavam muitas vezes com casos de"lacuna", em vez de teorizar apenas no plano do abstratoou do meramente racional, Gény faz sua defesa pela "livre

140. Bonnecase, p. 149.'~ 141. Método de interpretação e fontes em direito privado positivo

(1899) e Ciência e técnica em direito privado positivo (1914-1924).

68

investigação científica". Muitas vezes verificava não serbastante a subsunção do fato à norma geral para se retirardaí, automaticamente, uma solução para o caso. ParaGény, quando o ordenamento jurídico não apresentasse

. uma lei específica para determinado caso, o juiz deverialançar mão da análise feita sobre os fatos sociais, bemcomo das leis que regem a sua estabilidade, para então ob­ter a regra capaz de resolver a questão. A seu turno, a in­vestigação científica mostrava-se conveniente tambémpelo seu rigor, apto a fornecer não apenas uma solução ob­jetiva e criteriosa, possível de evitar qualquer arbítrio,como também uma solução legítima, pois que originária

,Aos próprios costumes e valores existentes na sociedade.Gény esclarece seu pensamento sintetizando-o na idéia dalivre pesquisa científica, da seguinte forma: "Pesquisa li­vre, uma vez que ela se encontra aqui subtraída à ação pró­pria de uma autoridade positiva; pesquisa científica, aomesmo tempo, porque ela não pode encontrar suas basessólidas senão nos elementos objetivos, que somente a ciên­cia pode revelar."142

De acordo com Gény, uma vez não obtida a respostapara o problema no sistema, o aplicador da lei poderia, pormeio da atividade científica, encontrar a solução jurídica

LPara o caso fora do âmbito restrito da lei positiva. As pos­sibilidades para se resolverem casos de ausência de leieram encontradas, dessa maneira, fora do texto legal, ain­da que através do mesmo, uma vez que não caberia ao in­térprete negar a ordem jurídica afastando-se dos seus prin­cípios fundamentantes. Uma pesquisa científica, de basesociológica, seria capaz de oferecer ao intérprete os crité-

142. François Gény. Méthode D'Interprétation et Sources en DroitPrivé Positif, p. 78.

69

Page 51: 52842935-Margarida-Maria-Lacombe-Camargo-Hermeneutica-e-Argumentacao (2).pdf

, rios de justiça prevalecentes na sociedade e que, na reali­

. dade, dariam ensejo ao surgimento de novas leis.

De maneira que, na esfera de livre pesquisa, onde nós oconsideramos agora, o método jurídico deve ter como preo­cupação dominante descobrir, ele mesmo, em prejuízo doauxílio de fontes formais, os elementos objetivos que deter­minarão todas as soluções requisitadas pelo direito positi­VO.

143

Logo, a atividade do intérprete deveria coadunar-se

com as regras e princípios gerais norteadores da ordem ju­rídica positiva, fundamentais à garantia do Estado de Di­reito. A esse respeito, escreve Recaséns Siches:

Antes de tudo há que interrogar a razão e a consciênciapara descobrir em nossa natureza íntima as bases mesmas dajustiça. Por outro lado, há que dirigir-se aos fenômenos so­ciais para descobrir as leis de sua harmonia e os princípios deordem que requerem. 144

Para Gény, a lei continuava a ser considerada como a

principal fonte de direito. Antes de se recorrer aos costu­mes e à livre investigação científica, deveriam ser esgota­das todas as possibilidades de busca de uma solução para o

caso no direito positivo. Apesar de admitir-se, pela primei­ra vez, a procura do direito fora do texto legal, e daí agrande novidade trazida por Gény, a importância da or­dem escrita era inquestionável. Na verdade, sua grandecontribuição foi para a teoria das lacunas. 145

143. Idem, vol.2, p. 79.144. Apud Recaséns Siches. Panorama do pensamento jurídico do séc.XX, p. 38.145. Gény, em suas críticas Capud Recaséns Siches Panorama delPensamiento Juridico en el Sigla XX, vol.I, p. 28 a 30), chama atenção

70

o viés cientificista típico daquele século aparece niti­damente na obra de Gény. No livro Ciência e técnica emdireito privado positivo, ele trabalha com dois tipos de

componentes: o dado e o construído. O construído seria o

elemento artificial do direito, e o dado, o elemento natu­

ral. De acordo com Gény, o verdadeiro conhecimento dá­

se sobre o dado, ou seja, sobre os fenômenos da natureza

ou fatos sociais. Dessa forma, atribui um elevado grau de

para as tentativas do governo francês, como a criação do tribunal deCassação, com poderes para anular toda sentença que violasse expres­samente o texto da lei, de forma a impedir uma possível interferênciado judiciário sobre o legislativo, agredindo a separação dos poderes.Em relação ao artigo 4° do Código Civil, que admitia a existência delacunas ao proibir o juiz de recusar sentença sobre qualquer assuntosubmetido ao seu conhecimento, lembra as palavras de Portalis, omais eminente de todos os autores do projeto do Código de Napoleão,quando este defende a utilização de princípios gerais de direito sobuma concepção jusnaturalista: "A missão da lei consiste em fixar osprincípios gerais do direito; estabelecer princípios fecundos e, no des­cer ao detalhe de questões que possam surgir em cada matéria concre­ta - ao juiz, ao jurisconsulto, penetrado do espírito geral da lei, é aquem cabe fazer as aplicações. Por isso, em todas as nações privilegia­das, ao lado do santuário das leis e sob a vigilância do legislador, vê-sesempre formar um depósito de máximas, de decisões, de doutrinas,que diariamente se depura mediante a prática e a confrontação dosdebates judiciais, que aumenta sem cessar com os conhecimentos ad­quiridos, e que é visto sempre como o verdadeiro suplemento da legis­lação ... Indubitavelmente seria desejável que todas as matérias esti­vessem reguladas pelas leis. Mas a falta de texto expresso sobre cadamatéria sucede que um antigo costume constante e fundado, ou emuma opinião ou em uma máxima aceita, ocupem o lugar da lei. Quan­do nada do estabelecido pela lei ou do que nos é conhecido comosuplemento dela pode nos dirigir, quando se trata de um fato concre­tamente novo, há que remontar-se aos princípios de direito natural;porque se a previsão dos legisladores é limitada, ao contrário, a natu­reza é infinita, adapta-se a quanto possa interessar aos homens ... " CP·30).

71

Page 52: 52842935-Margarida-Maria-Lacombe-Camargo-Hermeneutica-e-Argumentacao (2).pdf

certeza às ações humanas, considerando-as produto da ra­zão natural. O dado racional, segundo ele, é aquele consti­tuído por regras de conduta que a razão faz derivar da na­tureza do homem e do seu contato com o mundo: seria odireito em estado bruto. Essas regras de conduta, pela suaimposição ao espírito e pela correspondência às exigênciasmais evidentes das coisas, apresentam um caráter de ne­cessidade, ao mesmo tempo que de universalidade e imu­tabilidade, características do direito natural. O direito na­tural é visto, assim, como o conjunto de regras jurídicasque a razão destaca da natureza e das coisas e que, confor­me Gény, devem ser pesquisadas de maneira a se prepa­rarem as bases profundas da organização jurídica positi­va. 146 Somar-se-iam a elas, ainda, os dados ideais, ou seja,aqueles que representam as aspirações éticas ou sociais deuma civilização e que chegam a converter-se em uma espé­cie de convicção vigente que se impõe ao espírito. SegundoGény:

Retornamos, na realidade, ao objetivo necessário denossa pesquisa. Ele consiste em constituir, por um esforçocientífico, uma espécie de direito comum, geral por sua na­tureza, subsidiário por seu ofício, que supre as lacunas dasfontes formais e dirige todo o movimento da vida jurídi­ca. 147

Verificamos, assim, que o cientificismo de base socio­lógica, apresentado por Gény, conforma-se com o espíritopositivista vigorante então na França, terra de AugustoComte.

146. Cf. Guido Fasso, Histoire de la Philosophie du Droit, p. 161.147. François Gény. Méthode d'interprétation et sources en Droit Pri­vé Positif, p. 89.

72

2.3 A Escola Histórica do Direito

A Filosofia do Direito, na Alemanha, tem outras bases.Lá, a grande influência da filosofia historicista correspon­dia, na prática, a uma atitude espiritual que recobria todosos campos da atividade humana. Na verdade, o historicis­mo insere-se no movimento de reação cultural contra afilosofia das luzes. O predomínio da razão e seus amplospoderes conferidos pelo Iluminismo, bem como a forçadas deduções abstratas que daí advém, devem, segundo ohistoricismo, ceder lugar às verdades oriundas de manifes­tações espontâneas e concretizadas sobre a realidade.

Não podemos olvidar que também o século XIX expe­rimentou o prestígio do romantismo alemão, alimentadonos valores da individualidade e da tradição. Para o roman­tismo, a imaginação e o sentimento, a emoção e a sensibili­dade, vêm substituir a razão como centro de tudo.148 Otema da natureza lhe é caro, mas não se trata mais do pre­domínio da razão humana como o elemento distintivo dairracionalidade que vigora no reino animal. A natureza,agora, é aquela representada pelo mundo sensível, em queo individual concreto sobrepõe-se ao abstrato universal.Para o romantismo, a razão não é capaz de tudo gerar aponto de modificar a ordem natural das coisas, negando,com isso, o passado. Ao contrário, os românticos se inse­rem na história, buscando o passado como explicação parao presente e como motivação para o futuro. O romantismovaloriza a individualidade no que se refere aos sentimen­tos, crenças, paixões e manifestações espontâneas de toda~ ordem, vinculadas à tradição, como forma não apenas deenfatizar a consciência própria da personalidade de cada

148. Cf. Norberto Bobbio. O positivismo jurídico, p. 47 e segs.

73

Page 53: 52842935-Margarida-Maria-Lacombe-Camargo-Hermeneutica-e-Argumentacao (2).pdf

um, mas também como forma de traduzir o indivíduocomo parte de uma ~ação.!49

Assim, diferentemente das abstrações intelectualistasda filosofia das luzes, o desenvolvimento e a formação dasociedade não aparecem tanto para o historicismo comopara o romantismo como obra da razão, mas como produtoespontâneo de forças irracionais que poderiam ser identi­ficadas com uma racionalidade mais profunda, no sentidode ser concreta e real. O universal e o verdadeiro aparecempara o historicismo como realidade encarnada no indivi­dual e no concreto: o racional é visto como o real.!Sü Odireito natural é o direito naturalmente produzido pela so­ciedade e não se confunde mais com valores de ordem uni­versal, passando a ser reconhecido como aquele que se rea­liza através da história, conforme a criação espontânea decada povo. -

E como produto desse ambiente cultural aparece, naAlemanha, logo no início do século XIX, o resultado doesforço de alguns juristas, fundadores da tão conhecida Es­cola Histórica do Direito, que se ocuparam da formulaçãode uma nova estrutura metódica para o direito que nãoaquela proposta pelo jusnaturalismo do séc. XVII e pri­meira metade do XVIII. Verifica-se uma mudança signifi­cativa no pensamento jurídico-filosófico que abandona,por exemplo, os conceitos de estado de natureza e de con­trato social, em favor de organizações sociais baseadas eminstituições históricas formadas pelo costume.

149. A nação, segundo Guido Fassó, aparece como o elemento atravésdo qual o indivíduo se reconhece. Ela determina a personalidade decada um, dando-lhe consciência da sua singularidade em função dareligião, da linguagem, da poesia, das tradições e manifestações espon­tâneas. Cf. Hístoíre de la Phílosophíe du Droít, p. 29.150. Idem, p. 29.

74

A Alemanha foi um dos países da Europa Ocidentalque mais retardou na obtenção de um Código Civil, emboa medida devido à sua fragm~ntação político-territorial.A essa ausência, somou-se a grande capacidade acumuladapelos alemães teóricos e práticos do direito, chamados depandectistas, de interpretar as antigas leis romanas herda­das ao Ocidente pelo Código de Justiniano, o Corpus IurisCivílis. Por meio do usus modernus pandectarum, procu­rava-se estabelecer uma consonância entre a lei romana eos costumes locais de origem germânica, buscando naquelaas instituições jurídicas ainda existentes. Isso gerou para aciência do direito uma confusão de conceitos e uma assis­tematicidade nos seus estudos. Tal situação, de relativadesordem, deu origem a correntes favoráveis a uma codifi­cação inspirada no modelo francês. Foi o caso de Thibaut,cuja posição gerou disputa célebre com Savigny, nos idosde 1814. Thibaut era a favor da criação de um código eSavigny contra. Thibaut pretendia confiar a uma vontaderacional e coordenadora o cuidado de ordenar todo o direi­to, sistemática e positivamente, de forma a desenvolverseu estudo científico. Na realidade, Thibaut não repugna­va totalmente o método do historicismo, mas sustentavaque a realidade histórica não podia ser compreendida semreferência à razão que a torne clara e precisa;!S! o que foimais do que suficiente para provocar a resposta de Savignyno sentido de que a melhor forma para se "juntar", diga­mos assim, o direito, não era por meio de um código, masde uma ciência orgânica e progressiva comum a toda a na­ção. 1S2

151. Idem, p. 36. -,152. Escreve Savigny, de acordo com tradução de Adolfo Posada: \"Resumiré ahora brevemente los puntos acerca de los cuales mi opi-

75

Page 54: 52842935-Margarida-Maria-Lacombe-Camargo-Hermeneutica-e-Argumentacao (2).pdf

Savigny vê o direito codificado como expressão do des­potismo, porque proveniente e imposto pela razão, de for­ma estranha aos costumes. Por isso, opõe-se com veemên­"cia às teses jurídicas da filosofia das luzes, baseada na teo­ria do direito natural, imutável e universal, deduzido darazão. Para ele, cada povo tem o seu próprio direito, funda­do em elementos culturais como a língua, os costumes e areligião. A tomada de consciência destes elementos seriasuficiente para dar origem a um direito não arbitrário e nãoacidental, mas real. Tal como as teorias organicistas, o di­reito também não se apresenta como algo imutável, por­que se desenvolve com o povo: nasce, cresce, e morrequando perde a sua personalidade. 153 O ordename~to jur~­

dico é, para Savigny, o "direito vivo", que o legisladotpod~

exprimir ou integrar, mas não criar arbitrariamente. 1s4 O

nión está de acuerdo con la de los defensores de um Código y lospuntos respecto de los que disentimos.

En cuanto ai fin, estamos de acuerdo: queremos la fundación de underecho no dudoso, seguro contra las usurpaciones de la arbitrarieda­de y los asaltos de la injusticia; este derecho ha de ser comúm paratoda la nación y han de concentrarse en él todos los esfuerzos científi­cos. Para este fin desean ellos un Código, con el cual sólo una mitad deAlemania alcanzaría la anhelada unidade, mientras la otra mitad que­daría aún más separada. Por mi parte, veo el verdadero medio en unaorganización progresiva de la ciencia deI Derecho, la cual puede sercomún a toda la nación. F. De Savigny, De la Vocacion de NuestroSiglo para la Legislacion y la Ciencia del Derecho, p. 171.153. Como produto espiritual de um povo, que é o verdadeiro sujeitoda história, o direito é concebido como realidade orgânica. Para Savig­ny, o povo se apresenta como ser orgânico vivente, com vida própria(histórico-espiritual), que nasce, se desenvolve e morre. Dotado deuma força específica, que pode ser identificada com o espírito nacio­nal, o povo, de modo misterioso e em lento processo de crescimento,engendra todas as suas manifestações espirituais, entre elas a lingua­gem e o direito. Cf. Legaz y Lacambra, p. 100.154. Savigny, Vom Beruf unserer Zeit zur Gesetzgebung und Rechts-

76

direito baseia-se, assim, nos costumes que se correlacio­nam com a convicção popular, atuando como força interiorque opera tacitamente. ISS Segundo Savigny, o direito legis­lativo deveria ter a única função de oferecer suporte aoscostumes para diminuir-lhes as incertezas e as indetermi­nações. Por meio dele, seria possível preservar a purezaque é a vontade efetiva do pOVO. IS6 Para tanto, a fim deremediar os inconvenientes do direito comum, Savignypropõe, em lugar da codificação, a elaboração científica dodireito de base histórica. Das três formas que aponta como-possíveis de se manifestar o direito: a popular ou espontâ­nea, a científica e a legislativa, a segunda apresentar-se-iacomo a mais válida e característica das sociedades amadu­recidas. Enfim, para a certeza do direito, o instrumentoapropriado não seria o código, mas a ciência jurídica.

Por outro lado, verificamos que a idéia de sistema, pro­veniente do jusnaturalismo e do racionalismo anteriores,aliou-se também ao romantismo alemão, dando origem,mais tarde, às chamadas "ciências do espírito". A vida emsociedade, vista como unidade orgânica, passa a constarcomo fundamento para a construção científica do direito,

wissenschaft, Heidelber, 1814, p. 7, apud José Lamego, em Herme­nêutica e jurisprudência, p. 20 e 21.155. São estas as palavras de Savigny, conforme tradução de AdolfoG. Posada: "La síntesis de esta opinión es que todo derecho tiene suorigen en aquellos usos y costumbres, a las cuales por asentimientouniversal se suele dar, aunque no con gran exactitud, el nombre deDerecho consuetudinario; esto es, que el derecho se crea primero porlas costumbres y las creencias populares, y luego por la jurisprudencia;simpre, por tanto, em virtud de una fuerza interior, y tácitamenteactiva, jamás en virtud del arbitrio de ningún legislador." Savigny, DeLa Vocacion de Nuestro Siglo para la Legislacion y la Ciencia delDerecho, p. 48.156. Cf. Guido Fasso, p. 36.

77

Page 55: 52842935-Margarida-Maria-Lacombe-Camargo-Hermeneutica-e-Argumentacao (2).pdf

sendo certo que, para tal atividade científica e criadora,aparecerá o trabalho dos juristas formulando e reformulan­do antigos conceitos jurídicos. Parte-se da idéia de sistemapara a busca de um método de interpretação que dê contadesta nova racionalidade, não abstrata, mas contingencial.Segundo Savigny, o Direito não deveria ser visto comomera soma de elementos (normas jurídicas racionalmenteformuladas e positivadas), mas como um conjunto de ins­titutosjurídicos que habita a consciência do povo, só per­ceptí~-elatravés da- intuiçaodo Jurídico, oriundo de práti­êãS-culturais. Trata-se do célebre conceito de VolksgeÚt,tão referido em seu pensamento. O direito passa a ser ad­mitido não mais como produto exclusivo da razão ou davontade - pura obra intelectual ou fruto do arbítrio ­uma vez que sua fonte estaria na convicção jurídica dopovo, aflorada por meio de um mecanismo intuitivo volta­do para o que é pensado como ideal de regulação da convi­vência humana. 1S7 Uma consciência jurídica unificadora einata, verdadeira fonte do Direito e do Estado.

157. "Dijimos de manera provisional que la producción dei Derechose realiza por el Pueblo como su sujeto personal activo. Ahora nos tocadeterminar con más precisión la naturaleza de este sujeto. [.o.] Enrealidad, empero, encontramos que, dondequiera que los hombresconvivan y en cuanto la historia nos informa, siempre se hallan en unacomunidade espiritual que en el uso dei mismo lenguage se evidencia,robustece y desarrolla. La sede de la producción del Derecho se en­cuentra en esta totalidade natural, ya que la fuerza de satisfacer lanecesidade arriba reconocida reside en el espíritu común dei Puebloque matiza a los individuos. [.o.] EI Derecho como producto dei espí­ritu dei Pueblo puede ser privativo de un Pueblo determinado o puedeexistir de manera uniforme en varios." Cf. Savigny, Fundamentos deLa Ciencia Jurídica, conforme tradução de Werner Goldschmidt,membro do Instituto Argentino de Filosofia Jurídica y Social, presidi­do por Carlos Cossio. In Savigny, Kirchamn, Zitelman et. aI. La Cien­cia deZ Derecho, p. 38, 39 e 40.

78

( . O curioso no pensamento de Savigny é que, ao invés de1 um. d.ireito espontâneo, :erifi~ado naturalme~ten~s ações\ SOCIaIS, o que vale, ao fmal, e o que a doutnna cIentífica

(

I elabora. E será, assim, justamente, que o pensamento con­ceitual elaborado pelos juristas e professores, nas universi­

. dades, provocará o surgimento de um novo racionalismoou intelectualismo jurídico tão anti-histórico como o direi-to natural, mas que se move em plano diferente, qual seja,o da lógica e da dogmática jurídica. O pensamento concei­tuallógico-abstrato será, assim, aquele capaz de explicitara totalidade representada pelos institutos jurídicos. E, des­sa forma, ,a doutrina termina por ganhar posição superior à

<..-da práxis, conforme anota Legaz y Lacambra. 158

No mesmo sentido aponta o estudo de Tércio SampaioFerraz Jr.:

A organicidade [proposta pela Escola Histórica] não serefere a uma contingência real dos fenômenos sociais, masdeve ser buscada no caráter complexo e produtivo do pen­samento conceitual da ciência jurídica elaborada pelos juris­tas desde o passado. 159

158. Para Legaz y Lacambra, os jurisconsultos atuaram como verda­deiros órgãos da consciência jurídica alemã. Cf. FiZosofía dei Derecho,p.l08.

-'59. "A Escola Histórica marca o aparecimento daquilo que Koscha-\ "f ker denomina de 'o direito dos professores' (cf. Savigny, 1840: 14). O

"direito dos professores" aparece quando, sob certas condições, a tô­nica na ocupação com o direito passa para as Faculdades de Direito epara seus mestres. Isso não quer dizer que o direito passasse a sercriado e construído pelos professores, mas sim que a doutrina passavaa ocupar um lugar mais importante do que a práxis e os doutrinadoresa terem uma precedência sobre os práticos. Tal ênfase, continua o

'- a~tor, dava à doutrina uma certa independência em relação a um po­der central, pois os professores não viviam necessariamente nas capi­tais, mas atuavam fora do âmbito político." Tércio Sampaio Ferraz Jr.Introdução ao estudo do direito, p. 73.

79

Page 56: 52842935-Margarida-Maria-Lacombe-Camargo-Hermeneutica-e-Argumentacao (2).pdf

r

Aduz ainda o autor a vitória paradoxal da idéia de "es­pírito do povo" defendida originalmente por Savigny.Como reflexo da genuinidade popular, o "espírito dopovo" acaba por merecer o esforço de interpretação dosintelectuais das universidades, que o reproduzem atravésde conceitos. A organicidade dos conceitos, cujo poder deabstração permitirá a subsunção dos fatos concretos, daráorigem à ciência do direito. Fato é, que o formalismo quedaí se seguiu pode ser bem configurado na "pirâmide dosconceitos" criada por Puchta, sob regras genealógicas: deconceitos mais gerais e abstratos deduzem-se outros maisespecíficos. Contudo, a influência do método históriconão desapareceu por completo, imiscuindo-se à propostade Puchta.!60

Podemos extrair daí a origem do chamado métoC!~cl~

interpretação histórico-evolutivo, aceito pela dogmáticajurídica tradicional, mediante o qual se pretendia dar atua­lidade à chamada "vontade de legislador". O direito, comoelemento histórico, também deveria ser interpretado his­toricamente. Mas, para tanto, caberia ao intérprete colo­car-se no lugar do legislador, deixando fruir em si o espíri­to do povo, que reclamaria a aplicação daquela lei, aindaque em outro momento, por meio do recurso a técnicasespecíficas. Essas técnicas, conforme ensina Savigny, cor­respondem aos elementos gramatical, lógico, histórico esistemático do direito.!6! Tércio Sampaio Ferraz Jr., quan-

160. Idem. Ibidem, p. 74.161. É esta a lição de 5avigny sobre os princípios fundamentais dainterpretação, conforme a tradução argentina de Werner Golds­chmidt: "Toda ley tiene la función de comprobar la naturaleza de unarelación jurídica, de enunciar cualquier pensamiento (simple o com­puesto) que asegure la existencia de aquellas relaciones jurídicas con­tra error y arbitrariedade. Para lograr este fin, hace falta que los quetomen contacto con la relación jurídica, conciban pura y completa-

80

mente aquel pensamiento. A este efecto se colocan mentalmente enel punto de vista dellegislador y repiten artificialmente su actividade,engendran, por consiguiente, la ley de nuevo en su pensamiento. Heaquí la actividade de la interpretación, la cual, por consiguiente, pue­de ser determinada como la reconstrucción del pensamiento ínsito dela ley. 5ólo de esta manera podemos obtener una inteligencia segura ycompleta del contenido de la ley; y sólo así podemos lograr el fin de lamisma.

Hasta aquí no se diferencia la interpretación de las leyes de la decualquier otro pensamiento expresado (como p. ej. se practica en lafilología). Lo específico resalta, si la descomponemos en sus elemen­tos. Hemos de distinguir en ella cuatro elementos: un elemento gra­mátical, lógico, histórico y sistemático.

El elemento gramatical de la interpretación tiene por objeto lapalabra, que constiuye el medio para que el pensamiento deI legisla­dor se comunique con el nuestro. Consiste, por conseguinte, en laexposición de las leyes linguísticas aplicadas por ellegislador.

EI elemento histórico tiene por objeto la situación de la relaciónjurídica regulada por regIas jurídicas en el momento de la promulga­ción de la ley. Ésta debía intervenir en aquélla de determinada mane­ra; y el mencionado elemento ha de evidenciar el modo de aquellaintervención: lo que por aquella ley se ha introducido de nuevo en elDerecho.

EI elemento sistemático, por último, se refiere a la conexión inter­na que enlaza a todas las instituciones y regias jurídicas dentro de unamagna unidad (§ 5). Este plexo se hallaba lo mismo que el contextohistórico en la mente deI legislador; y por consiguiente no conocere­mos por completo su pensamiento, si no esclarecemos la relación en lacualla ley se encuentra con todo el sistema jurídico y el modo en queella debía intervenir eficazmente en el mismo.

Con estos cuatro elementos se agota la comprensión del contenidode la ley. No se trata, por consiguiente, de cuatro clases de interpreta­ción, entre las cuales se puede escoger según el gusto y el arbitriopersonal, sino de diferentes actividades que deben cooperar para quela interpretación pueda dar éxito. Bien es verdad que algunas vecesserá más importante y visible un elemento, y otras otro, de modo queserá suficiente que la atención se dirija ininterrumpidamente haciatodas estas direcciones, si bien en muchos casos singulares se podrápasar en silencio la expresa mención de cada uno de los elementos

81

Page 57: 52842935-Margarida-Maria-Lacombe-Camargo-Hermeneutica-e-Argumentacao (2).pdf

do escreve sobre a contribuição de Savigny para a herme­nêutica jurídica, aponta dois momentos de seu pensamen­to. Num primeiro momento, a interpretação jurídica apa­rece em Savigny como uma questão de ordem técnica, emque o importante era mostrar aquilo que a lei dizia, no seusentido textual, por meio de técnicas específicas. Mas após1814, percebe-se que suas concepções hermenêuticas to­mam outro rumo:

como inútil y pesada, sin que exista un peligro para una interpretaciónconcienzuda. EI éxito de toda interpretación depende de dos condi­ciones, en las cuales podemos condensar brevemente aqueles cuatroelementos: en primer lugar, es menester que recapitulemos plástica­mente la actividad mental de la cual dimana la expresión particularproblemática de pensamientos; en segundo lugar, es preciso que do­minemos el conjunto histórico-dogmático que solo arroja luz sobre ladisposición particular para damos cuenta en seguida de las relacionesentre aquel conjunto y el texto presente. Si contemplamos estas con­diciones, disminuye lo extrano de algún fenómeno, que fácilmentepodría hacemos dudar sobre lo acertado de nuestro juicio. En efecto,hallamos algunas veces en escritos de eruditos y célebres autores in­terpretaciones de casi incomprensible absurdidez, mientras que alum­nos de talento, a los cuales presentamos el mismo texto, tal vez acier­ten. Tales experiences se puedem hacer sobre todo respecto a losnumerosos casos jurídicos, de los cuales se compone una parte grandey aleccionadora de los digestos.

EI fin de la interpretación de cada ley consiste en obtener precisa­mente de ella tantos conocimientos jurídicos reales como sea posible.La interpretación debe ser, como consiguiente, por un lado individual,por el otro rica en resultados. Se puede alcanzar este éxito en diferen­tes grados; y esta diferencia depende, en parte, dei arte dei intérprete,pero en parte también dei arte dei legislador de depositar en la leymucho conocimiento jurídico seguro o sea de dominar el Derechodesde este punto de vista dentro de lo posible. Por tanto, existe unareciprocidad entre una buena legislación y una buena hermenéutica,dependiendo el éxito de cada una de ellas por el de la otra." Cf.Savigny. "Os Fundamentos da Ciência Jurídica", ín Savigny, Kirch­mann, Zitelmann et al., La cíencía deZ Derecho.

82

A questão deixa de ser a mera enumeração de técnicas,para referir-se ao fundamento de uma teoria da interpreta­ção. Surge o problema de se explicar o critério (metódico)da interpretação verdadeira. A resposta envolvia a determi­nação do fator responsável pelo sentido de unidade último edeterminante do sistema. Em princípio, a concepção de queo texto da lei era expressão da mens legislatoris leva Savignya afirmar que interpretar é compreender o pensamento dolegislador manifestado no texto da lei. De outro lado, po­rém, enfatizava ele a existência fundante dos "institutos dodireito" (Rechtsinstitute) que expressavam "relações vitais"responsáveis pelo sistema jurídico como um todo orgânico,um conjunto vivo em constante movimento. Daí a idéia deque seria a convicção comum do povo (Volksgeist) o ele­mento primordial para a interpretação das normas. 162

2.4 O formalismo jurídico na Alemanha

o formalismo na Alemanha propagou-se com o traba­lho de juristas oriundos da Escola Histórica, que possuíalastro na atividade dos pandectistas. À vontade de se criarum direito científico, fato já refletido por Savigny, acres­ce-se a capacidade demonstrada pelos pandectistas de ree­laborarem as antigas instituições do direito romano me­diante a extração de conceitos, cujo poder de abstração

\ permitia que os mesmos fossem aplicados em diferentes\.épocas e lugares. E para a melhor compreensão e aproxi­

mação entre os conceitos utilizava-se o método lógico-sis­temático, que acaba por perceber o direito como uma to­talidade fechada em si mesma.

O cientificismo propugnado por Savigny resultará an­\tes numa idéia de direito de cunho racional-universal, que\

162. Tércio Sampaio Ferraz Jr. Introdução ao estudo do direito, p.241.

83

Page 58: 52842935-Margarida-Maria-Lacombe-Camargo-Hermeneutica-e-Argumentacao (2).pdf

1I

L

! ultrapassa fronteiras físicas e geográficas, do que na idéia~e um direito histórico e nacional. É o que mostram asteorias de Puchta e de Jhering. No último volume do Espí­rito do Direito Romano, Jhering afirma que a ciência dodireito é universal, e que "os juristas de todos os países ede todas as épocas falam a mesma língua",163 na medida emque a ciência do direito se serve de métodos próprios, váli­dos para a análise de qualquer ordenamento jurídico. ComPuchta, antigo discípulo de Savigny, desenvolve-se a ge­nealogia dos conceitos, que propõe uma busca de concei­tos em princípios gerais, mediante operação lógico-induti­va e lógico-dedutiva: por indução chega-se aos princípios,para depois, por dedução, descer às suas ramificações múl­tiplas. De acordo com a Jurisprudência dos Conceitos, de­nominação dada mais tarde a este método de criação e in­terpretação do direito, o papel da ciência jurídica é o deverificar como suas proposições encontram-se reciproca­mente condicionadas, por meio de um processo de deriva­ção que remonta à genealogia de cada uma. Com isso, aobra de Puchta pode ser reconhecida como uma das ex­pressões mais bem acabadas do tratamento abstrato e sis­tematizador conferido ao direito. 164

163. Jhering, apud Norberto Bobbio em O positivismo jurídico, p.123.164. Puchta, em Cursus der Institutionen I (Curso das Instituições I),preleciona: uÉ missão agora da ciência reconhecer as proposições jurí­dicas no seu nexo sistemático, como sendo entre si condicionantes ederivantes, a fim de poder seguir-se a sua genealogia desde cada umadelas até ao princípio comum e, do mesmo modo, descer do princípioaté ao mais baixo dos escalões. Neste empreendimento, vêm a trazer­se à consciência e à luz do dia proposições jurídicas que, ocultas noespírito do Direito nacional, não se tinham ainda exprimido, nem naimediata convicção e na atuação dos elementos do povo, nem nosditames da própria lei escrita, ou seja, que patentemente só se vêm a

84

\;

A atividade científica consistia em e~tabelecerconcei­tos bem definidos, que pudessem garantIr segurança às re­lações jurídicas, uma vez diminuída a ambigüidade e a va­

I guidade dos termos legais. E foi por meio da elaboração de, conceitos gerais, posicionados na parte superior da figuraI de uma pirâmide, capazes de conter e dar origem a outros

conceitos de menor alcance, numa união total, perfeita eacabada, que o direito alcançou o seu maior grau de abstra­

" ção e autonomia como campo de conhecimento. Esse alto'grau de racionalidade deu origem ao "dogma da subsun­

ção", que irá se impor no século seguinte. O direito eratido como fruto de um desdobramento lógico-dedutivoentre premissas capazes de gerar por si sós uma conclusãoque servisse de juízo concreto para cada decisão. Com isso,nota-se um considerável, e até nefasto, isolamento das re­gras jurídicas do seu meio circundante. E a despeito demovimentos posteriores como o da Livre Interpretação doDireito será este formalismo conceitual que garantirá a,base dogmática do positivismo jurídico prevalecente du-rante todo o século XX.

Percebe-se que a tarefa dos juristas, na Alemanha, con­sistiu em conferir o máximo de objetividade possível parao resultado de suas construções, o que levou à formação daciência jurídica, no sentido de uma teoria autônoma dodireito vigente. O próprio conceito de "espírito do povo"defendido pelos historicistas, indeterminado e quase mi­tológico, é transformado em categoria formal, apriorística,sendo à mesma atribuída categoria de fonte hipotética atodo direito criado cientificamente. Segundo Tércio Sam­paio Ferraz Jr., a dogmática foi, assim, pouco a pouco ocu-

revelar enquanto produto de uma dedução da ciência." Apud KarlLarenz, Metodologia da ciência do direito, p. 22.

85

Page 59: 52842935-Margarida-Maria-Lacombe-Camargo-Hermeneutica-e-Argumentacao (2).pdf

pando o lugar principal na ciência do direito, enquanto ahistória do direito perde em importância.

r Embora a Escola Histórica insistisse na historicidade, do método, ao cabo da pesquisa o resultado se tornavaI mais importante do que a própria investigação que o prece­i dera. 165\c-..

E a conclusão daí auferida por Guido Fassà é a de queo positivismo jurídico se afirmou no século XIX pela via dohistoricismo. 166

2.5 O positivismo jurídico

o formalismo jurídico encontra respaldo no naturalis­mo típico da filosofia da luzes e na filosofia positivista. Oprimeiro privilegiava o estudo científico da realidade obje­tiva, as ditas "ciências naturais", mediante a adoção do mé­todo empírico, enquanto a filosofia positivista privilegiavao estudo das relações constantes entre os fatos sociais,também através do método de investigação empirista.Guido Fassà acredita que o positivismo correspondia maisa um modo de pensar do que a uma doutrina específicajmas um modo de pensar que negava qualquer metafísica,fundamentando-se unicamente nos fatos "positivos", cujoconhecimento advém somente da observação e da experi­mentação. Enquanto filosofia, o positivismo não busca oconhecimento universal ou absoluto, mas um conhecimen­to "geral", enfeixado na coordenação sistemática das leisdescobertas e formuladas pelos diferentes campos científi-

165. Tércio. Introdução ao estudo do direito, p. 75.166. Vide Guido Passo, ob. cit., p. 42.

86

COS.1 67 Dentre esses, ganha destaque o campo das ciênciashumanas e sociais, às quais a aplicação do método positivopretendia os melhores resultados.1 68 A idéia era buscar nasociedade leis constantes e invariáveis que a explicassem,tal como se explicavam os fenômenos da natureza.

Entretanto, foi na França, com Augusto Comte, que opositivismo ganhou projeção no âmbito das ciências so­ciais. 169 Sua obra faz alusão ao que mais tarde será chama­do de sociologia jurídica. A sociologia, no seu nascedouro,corresponderá à ciência positiva da sociedade vista comoúnica capaz de abranger toda a gama de fenômenos nelaverificados, fundamentando-se, exclusivamente, na obser­vação dos fatos, fora de toda ideologia metafísica. Fassàinterpreta que, para o direito, isso significará a busca deum elo de conexão entre os fatos sociais e o direito, demaneira que a legislação seja o mais fiel possível àqueles,independentemente de quaisquer valores de ordem moral.Para o mesmo autor, a mais autêntica aplicação do métodopositivista no campo do direito deu-se com a pesquisa his­tórica. Foi o que aconteceu com a Escola Histórica do Di­reito na Alemanha, cujo processo de generalização e abs­tração dos fatos desvinculou-os de quaisquer valores que

167. Vide João Ribeiro Jr. Augusto Comte e o positivismo.168. Guido Passo, ob. cit., p. 120.169. Isidore Auguste Marie Xavier Comte (1789-1857). Com o posi­tivismo, Augusto Comte almejava a regeneração da humanidade.Acreditava que para se reformar a sociedade era necessário, antes detudo, descobrir as leis que regiam os fatos sociais, cuidando-se deafastar as estéreis concepções abstratas e especulações metafísicas.Segundo ele, é, pois, no desenvolvimento das ciências naturais que seencontra o caminho a seguir. Pela observação e pela experimentaçãose irão descobrir as relações permanentes que ligam os fatos, cujaimportância é básica na reforma econômica, política e social da socie­dade. Cf. João Ribeiro Jr., O que é positivismo.

87

Page 60: 52842935-Margarida-Maria-Lacombe-Camargo-Hermeneutica-e-Argumentacao (2).pdf

lhe pudessem ser atribuídos na origem. Por mais contradi­tório que possa parecer, os fatos assim transmudam-se emconceitos de ordem objetiva e geral.

No entanto, apesar de os partidários da filosofia positi­vista, como Augusto Comte, não terem demonstrado ne­nhum interesse especial pelo direito, os juristas passaram ase perguntar se a Jurisprudência era ou não uma ciência.Sob a influência do positivismo não faltou, obviamente,quem defendesse a criação de um método próprio para odireito, de caráter objetivo, cujo conhecimento fosse pos­sível mediante a manipulação de leis próprias ao seu obje­to. Para o positivismo, o direito ou a ciência jurídica deve­riam ser vistos como todas as outras ciências naturais ou,seja, como uma força da natureza (social), independente­mente da ação e do pensamento humanos. Era o tipo doconhecimento obtido da correlação e da constância verifi­cada entre os fatos observados. Segundo Fasso, isso tradu­zia o entusiasmo da época: os "tempos positivistas" .170

No entanto, não foi ainda no decorrer do século XIXque o direito consegue firmar-se como ciência nos moldespositivistas. Neste momento, ganha relevo a sociologia ju­rídica. Será apenas com a genialidade de Hans Kelsen, noinício do século seguinte, que teremos uma ciência do di­reito de impressão francamente positivista. Antes disso, oinegável fator de contingência do direito emprestou-lhe,quando muito, uma posição de inferioridade científica.

Mas o positivismo jurídico não seguiu a tendência so­ciológica apontada por Augusto Comte. Firmou-se muitomais sobre as bases do formalismo, uma vez que para umateoria objetiva do direito importava mais o conjunto dasnormas postas pelo Estado, através de suas autoridades

170. Cf. Guido Fasso, ob. cit., p. 123 e ss.

88

competentes, do que a realidade social propriamente dita.A vontade do Estado soberano prevalece, assim, sobre avontade difusa da nação, e o direito positivo passa a reco­nhecer-se no ordenamento jurídico posto e garantido peloEstado, como o direito respectivo a cada país. O direitopositivo torna-se, então, o único direito que interessa aojurista, porque é o único direito existente, contrapondo-seem definitivo ao direito natural, de difícil verificação; ra­zão pela qual a maioria dos autores atualmente define di­reito positivo como contraponto do direito natural. Comoexemplo temos o livro de Norberto Bobbio, O positivismojurídico, onde o autor define direito positivo com base nosbinômios particularidade/universalidade e mutabilida­de/imutabilidade, estabelecendo também a noção de queo direito positivo é aquele reconhecido por intermédio dadeclaração de uma vontade alheia (potestas populus), en­quanto o direito natural é o que conhecemos através darazão. Dessa forma, a valorização do direito corresponderátambém a critérios objetivos: bom é aquilo que o Estadoquer e prescreve como conduta obrigatória, e mau aquiloque não valorizou a ponto de incorporar à ordem jurídica.Assim, justa é a lei historicamente relativizada, enquanto odireito natural é bom ou mau em si mesmo, inde­pendentemente da vontade do legislador. 171

Ao contrário do que ocorreu com o cientificismo daEscola Histórica, Kelsen não admitirá a criação do direito

171. Tércio Sampaio Ferraz Jr. atribui ao formalismo daí decorrente,com alto grau de abstração, duas conseqüências: a primeira é a capaci­dade de neutralização dos conflitos, considerado o direito na sua fun­ção social; a segunda, o estabelecimento da ciência dogmática do di­reito preocupada cada vez mais com a natureza jurídica dos seus insti­tutos, bem como com a classificação de seus conceitos. Cf. Introduçãoao estudo do direito, p. 71 a 83.

89

Page 61: 52842935-Margarida-Maria-Lacombe-Camargo-Hermeneutica-e-Argumentacao (2).pdf

1

por meio da elaboração de conceitos jurídicos, limitando­se ao que se encontra prescrito em lei. Não obstante, adogmática jurídica acabará por ensejar a elaboração deconceitos gerais que formulem e circunscrevam o campode atuação do direito. É o papel da Teoria Geral do Direi­to, cuja base formal segue a Jurisprudência dos Conceitos.Por outro lado, essa base conceitual passa a ser indispensá­vel ao princípio da completude da ordem jurídica. Cienti­ficamente, é importante que o direito se baste. A auto­integração mediante processo autônomo, lógico e sistemá­tico, baseado em princípios gerais, evitaria a influência deelementos externos, capazes de fragilizar os limites do di­reito. Veremos, no entanto, que essa concepção formalistae positivista sempre foi acompanhada de críticas.

2.6 A crítica de Jhering ao formalismo jurídico alemão

A Europa de finais do século XIX não era mais a mes­ma. A evolução social, científica e tecnológica verificadaem alguns dos seus principais países gerou novas demandase complexas relações socioeconômicas, alterando o cená~

rio anterior, em que as mudanças não eram tão freqüentes,de forma a exigirem também mais do direito. O culto feti-=lchista às normas cristalizadas em códigos não respondia :mais às novas necessidades, provocando uma série de rea- ;ções ao positivismo jurídico-formalista.

Rudolf Von Jhering, antes um dos principais teóricosda Jurisprudência dos Conceitos, percebe a crise que semanifesta na cultura da segunda metade do século XIX eacaba por ser autor de uma das críticas mais contundentesao método lógico-dedutivo e ao formalismo jurídico, peloseu alto grau de abstração. No livro A luta pelo direito,escrito em 1891, como resultado de idéias que vinha de-

90

fendendo desde 1872, Jhering mostra o direito como umarvivência que deve ser assumida tanto pela parte de quemIo aplica, o Estado, quanto por quem o postula na qualidade\de interessado. Segundo ele, o direito é, na realidade, umai luta, ou um verdadeiro esforço animado pelo espírito prá­Uico que subjaz à sua própria realização. Diz o autor ao pre-faciar seu trabalho:

o que tive em mente não foi a divulgação do conheci­mento científico do direito, mas antes a promoção do esta­do de espírito em que este há de buscar sua energia vital, eque é o que conduz à atuação firme e corajosa do sentimen­to de justiça. 172

r o sentimento de justiça, próprio da personalidade, é o: que, segundo Jhering, coloca o diréito em movimento. O"'sujeito lesado, por exemplo, é quem irá reclamar pela re-

paração do prejuízo sofrido. Portanto, a luta consideradapor Jhering é a luta concreta, relativa ao próprio sujeito,que vê seus direitos violados. Neste sentido, o direito queinteressa não é tanto o direito posto, objetivo, mas o subje­tiVO. I ?3

. No livro A finalidade do direito,174 Jhering soma a no­;ção de fim, ou finalidade, à idéia de direito como práxis. Ati~nalidade, elemento que compõe necessariamente a ação,representa, segundo ele, algo futuro que a vontade preten­de realizar. Quem age, age em virtude de um fim, da mes­ma forma que querer, e querer em razão de um fim, sãosinônimos. 175 O jurista, então, se quer compreender o di-

172. Rudolf Von Jhering. A luta pelo direito, p. 1.173. Idem, p. 29.174. Jhering. A finalidade do direito, passim.175. Idem,p.6elO.

91

Page 62: 52842935-Margarida-Maria-Lacombe-Camargo-Hermeneutica-e-Argumentacao (2).pdf

I

I,I1

~.

reito, deve prestar atenção às necessidades que provocama busca de determinados fins, em lugar de conceitos obti­dos de normas e instituições jurídicas, por força da lógica.

Assim, a partir de Jhering, a idéia de que o direito seliga a um fim, que se pretende ver realizado na prática, fazcom que o mesmo abandone o campo da abstração e vejaaberto o caminho para a Jurisprudência dos Interesses, en­carregada de formular metodologicamente esta questão.Verificamos, no entanto, que Jhering repudia o positivis­mo jurídico, essencialmente formalista, mas não o positi­vismo filosófico, que dedica seu esforço à apreciação dosfenômenos naturais, incluindo nesta categoria os sociais.Com isto, o método realista ou teleológico, voltado para osinteresses e valores que lhe servem de fundamento, vemocupar o lugar até então preenchido pelo formalismo exe­gético.

2.7 A Jurisprudência dos Interesses

Como antítese d.:a J'!~i~prudência dos Conceitos, a cha­mada Jurisprudência dos Interesses procurª.suplantar a ló­gica formal ~10 estudo e pela avaliação da vidaLou sej~

pela pragmática.

Note-se, ainda, que a finalidade considerada por Jhering não é afinalidade do legislador prevista na lei, mas a do sujeito em suas rela­ções sociais. Além do que, a finalidade é imanente à própria idéia desociedade, uma vez que a consideramos como união de várias pessoasligadas em torno de uma meta comum. Finalidade poderia correspon­der, desta forma, à necessidade de toda a sorte que nasça da vidasocial e que deve ser satisfeita para que a sociedade sobreviva. A esterespeito ver também Guido Fasso, "Do primeiro ao segundo Jhering",em Histoire de la Philosophie du Droit, vol. XX, p. 49.

92

A Jurisprudência dos Interesses tem como principalrepresentante o professor de Tübingen, Philipp Heck. DeJheringLHé'çk inçm-pgxa_Il㺠~§ .a idéia dedi~~ito co~~p~4i~a, analisancl()-o como "funçã~J~dicial",mas tambê~a idéia de fim,çom~TntêresSe·.Vimos queparaJliermg odireito Itã-º-.é-CriadQ-l2Qfconceitos, mas porBns ou valoreséuja realização se persegue. Heck atrib~ia esses fins a qua­11dade de comandos jurídicos, que encontram sua base nanecessidade ou no interesse. Do mesmo modo, o direito

lr resumir-se-ia nacoorclenação da garantia dos interesses

dos membros da sociedade, ao passo que a atividade dojuiz estaria direcionada para a composição dos interessesdas partes em conflito, de acordo com o comando norma­tivo. De tal forma, a Jurisprudência dos Interesses nega-sea confiar ao juiz a mera função do conhecimento e subsun-ção entre alei e o fato, propugnando a adequação da deci­são às necessidades p!áticas da vida, meclianteos Interes­ses em pa_utª. Os coma;((os-legais, escr-eve-PhifippHeck,não só se destinam a resolver conflitos de interesses, massão também, como todos os comandos ativos, verdadeirosprodutos dos interesses. Assim também as leis apresen­tam-se como resultante dos interesses materiais, nacio­nais, religiosos e éticos, em luta pelo predomínio de unssobre os outros.1 76

Heck acredita que a atividade do juiz é criadora, à pro­porção que procura co;:;'juga~ os interesses postos na lei,pelo legislador, com os interesses da ocasião em que a mes­ma é chamada a ser aplicada; ao que se soma o conteúdoemocional do próprio juiz, que contribui com a sua expe­riência de vida e com o seu sentimento de justiça. A pes­quisa histórica éjmpºrtantepara~beLq\lais..os.iIlleres-

176. Philipp Heck. Interpretação da Lei e Jurisprudência dos Interes­ses, p. 19.

93

Page 63: 52842935-Margarida-Maria-Lacombe-Camargo-Hermeneutica-e-Argumentacao (2).pdf

ses con!iclos na ki. Entretanto, não se cuida de procurar~a v~ntade psicológica, mas uma vontade normativa cor­respondente ao comando contido nas palavras da lei, e aosinteresses nela exigidos. Heck chama sua teoria da inter­pretl!Ção de "teoria histórico-objetiva", nos seguintes ter­mos:

° "legislador" não é simples ficção ou fantasma, mas adesignação que engloba todos os interesses da comunidadevigentes [leia-se, valores]. Assim a questão~<:>!y:~es posta,de saber se a vontade procurada é a-dolegisladorde hoje oude ontem, res()Jve-:"se· c-oTIi51ªi~za. _0 escoEo da determina­ção judicial do direito é, seIllcl(1viclal ª2roleçáQdejnteres­ses attl~is. Ma-sarealização desse escopo tem como fator oconhecimento daqueles interesses cujas exigências se reve­laram já em forma de lei. l77

Heck recupera a 'Jurisprudência pragmática" de Jhe­ring,I 78 quando entende que o método jurídico prende-se àação exercida pelo direito sobre a vida; e para tanto, apro­veita-se dos meios oferecidos pela sociologia. De acordocom Heck, as té~flica~sg<.:!019giça~inv_e~!iriam em duas di­reções:-ªQr:illleirª4-YITifiçªncl0 os interesses. prot~gidos na

~ei' como necessidades da vida p~átiZ~;;-m ~;~~tante con­tradição; a segunda, atendo-se aos interesses inerentes aopróprio caso. O direito, para ele, significa então tutela deinteresses: tanto interesses de ordem geral, protegidospela lei, quanto individuais, protegidos pela sentença (nor-ma individual).

177. Idem, p. 71-2.178. Larenz fala em "jurisprudência pragmática" ao referir-se a Jhe­ring. Com a idéia de fim imanente ao Direito, Jhering atribui-lhe um"motivo prático", que retira da norma jurídica seu caráter de meraabstração. Cf. Larenz. Metodologia de ciência do direito, p. 50 e segs.

94

Segue-se que, para Heck, sob a influência do positivis­mo filosófico, a interpretação da lei é sobretudo "explici­tação de causas". E neste sentido é preciso descobrir ascausas do preceito legal para explicar os seus efeitos, quese traduzem no próprio comando jurídico. Mas, por outrolado, notamos que esse procedimento faz-se por meio deum processo de valoração, que ensejará um novo aproachfilosófico-doutrinário.

A Jurisprudência dos Interesses contou com muitosadeptos, mas também foi duramente criticada. A críticados neo-hegelianos (dentre os quais Larenz) deu-se, emprimeiro lugar, com relação ao substrato filosófico positi­vista que reconhecia apenas uma realidade empírico-socio­lógica: a verificação dos interesses em pauta. Por outrolado, ao desconsiderar a orientação científico-espiritualvoltada para o "espírito objetivo" referente aos valoresexistentes em cada comunidade, a Jurisprudência dos In­teresses fazia revigorar o positivismo jurídico, que circuns­crevia a decisão do juiz ao estrito conteúdo da lei. A outracrítica refere-se à ideologia liberal individualista da Juris­prudência dos Interesses, quando esta contrapõe os inte­resses particulares aos interesses da comunidade. I 79

Essas críticas, no entanto, produziram efeito distintonos seguidores de Heck, que passaram a reconhecer o realfundamento valorativo dos interesses, dando ensejo à futu­ra jurisprudência da valoração. 18o Não seria à toa que Heck

179. Cf. José Lamego. Hermenêutica e jurisprudência, p. 52 e segs.180. Karl Larenz reconhece no pensamento de Heck uma aberturapara os valores, e em seu livro reproduz a seguinte passagem da obrade Heck: "O legislador quer ordenar os interesses da vida que lutamentre si. Para isso precisa de um juízo de valor sobre eles que o leve àconcepção de uma ordem a promover, ou seja, de um ideal social." Cf.Larenz, Metodologia da ciência do direito, p. 61 e segs.

Sobre a passagem da Jurisprudência dos Interesses para a Jurispru-

95

Page 64: 52842935-Margarida-Maria-Lacombe-Camargo-Hermeneutica-e-Argumentacao (2).pdf

I

I

teria escrito, logo no início do seu livro Interpretação daLei e Jurisprudência dos Interesses, o seguinte:

A aptidão da decisão judicial tem, portanto, de ser me­dida, primeiro que tudo, pelos juízos de valor expressos pelacomunidade jurídica em forma de lei. O juiz está subordina­do à lei. A comunidade jurídica organizada em Estado ésoberana e autônoma, não só externamente, mas tambéminternamente, nas suas relações com os tribunais. A subor­dinação destes não é só conseqüência da necessidade da cer­teza do direito, é o resultado dum princípio constitucional,dum juízo de valor geral que coloca a vontade da coletivida­de, declarada em forma de lei, acima da vontade de cadacidadão. I 81

Recaséns Siches também reconhece o viés valorativoda teoria de Heck, para quem /Ia valoração dos interesseslevada a cabo pelo legislador deve prevalecer sobre a valo­ração individual que o juiz possa fazer segundo seu critériopessoal. I82 Por outro lado, o legislador "deve esperar dojuiz, não que este obedeça literalmente, de modo cego, aspalavras da lei, senão que, pelo contrário, desenvolva oscritérios axiológicos em que a lei se inspirou, conjugando-oscom os interesses em questão" .183

dência dos Valores, escreve ainda Larenz: "Em vez da dedução lógico­formal, coloca a Jurisprudência dos Interesses, não a vontade ou osentimento, mas a investigação dos interesses e a apreciação dessesinteresses à luz dos critérios de valor subjacentes à lei. Por isso, reser­va ao juiz, sem dúvida, uma área de decisão maior, mas nenhumaliberdade de decidir apenas emocionalmente. Compreende-se assimque a prática jurídica tenha seguido predominantemente a Jurispru­dência dos Interesses, e não a teoria do Direito livre." Ob. cito p. 73.181. Philipp Heck. Ob. cit., p. 15.182. Recaséns Siches. Panorama del pensamiento juridico en el siglaXX, p. 275.183. Idem. Ibidem, p. 275.

96

Contrariando a idéia de completude do ordenamentojurídico, com ausências passíveis de serem resolvidas pelaforça lógica do sistema, Heck reconhece a real existênciade lacunas, ocasião em que o juiz deve se entregar a umatarefa de ordem axiológica. Mas isso só é possível uma vezconhecidos os interesses em jogo e os valores existentes navontade do legislador, de forma a adequá-los uns aos ou­tros.

Com a introdução do conceito de valor, ainda que vistosob a forma de uma necessidade real e verificável como é ointeresse, a simples relação causal entre fato, norma e sen­tença vem a ser acrescida do papel do valor ou dos valoresenvolvidos na causa. Essa nova postura ensejará, maistarde, o aparecimento da chamada Jurisprudência dosValores, que tem em Larenz um de seus principais defen­sores. 184

2.8 O Movimento para o Direito Livre

Na esteira das críticas referentes às insuficiências daconcepção rn~todológica tradicionaL.adstrita ao form@s­mo, surge, na Alemanha, o Movimento para o Direito Li­vre: Não se trata de um grupo específico de pensadoresnem de uma teoria bem precisa. Consistia antes numa~­~nc!ª ou numa atitude que assumiu formas diversas, den­treas quaÍS-a própria Jurisprudência dos Interesses. Ummovimento que se inseria em outro mais amplo, de revolta

-..:.-.-., _- --184. Além da Metodologia da ciência do direito, vale conferir o traba­lho de Larenz intitulado Direito justo, quando o autor, dando seqüên­cia à proposta de Stammler, defende a idéia de um ordenamentojurídico de base axiológica.

97

Page 65: 52842935-Margarida-Maria-Lacombe-Camargo-Hermeneutica-e-Argumentacao (2).pdf

contra o apego à tradição e ao conformismo manifestadoem vários domínios: da arte à religião.

O Movimento para o Direito Livre tem como marco açonferênciaapresentadaJ>orE!Jgen J::hrlich, na Al~manha:em 1903, sobre A luta pela ciência do direito, quando de­tena-~-aTivrebus~-~--do-direitoem lugar da aplicação mecâ-nica davontade dolegislaªorp~evist~!!al~i_. Daende~sea

r'idéia de que o juiz;--ao decidir, considere os fatos sociais\ que deram origem e condicionam o litígio, a ordem interna\ das associações humanas, assim como os valores que orien­Ltam a moral e os costumes.1 8S Afinal,

o direito não consiste nas disposições jurídicas, mas nasinstituições jurídicas; quem quer determinar quais são asfontes do direito deve saber explicar como surgiram Estado,Igreja, família, propriedade, contrato, herança e como elesse modificam e evoluem no decorrer do tempo.186

Por isso Ehrlich veio a ser considerado um dos precur­sores da sociologia do direito. 187

Em 1906, mesmo ano em que a conferência de Ehrliché public;da, surge o manifesto de Herman Kantorowicz

185. Maiores detalhes sobre as idéias e os participantes desse movi­mento podem ser encontrados no trabalho de Castanheira Neves, emDigesta, vol. 2, p. 193 e segs.186 Eugen Ehrlich. Fundamentos da sociologia do direito, p. 70.

~187' Ehrlich fala sobre a existência de um direito vivo em contraposi­ção ao apenas vigente diante dos tribunais. O direito vivo, diz ele, éaquele que, apesar de não fi?,ado em prescrições jurídicas, domina avida. As fontes para conhecê-lo são sobretudo os documentos moder­nos (dentre os quais destacam-se as sentenças judiciais), mas tambéma observação direta do dia-a-dia do comércio, dos costumes e usos etambém das associações, tanto as legalmente reconhecidas quanto asignoradas e até ilegais. Fundamentos da sociologia do direito, p. 378.

98

por um Movimento çloDirejto_LLYI~.188Nele defende aidéia de que nem todo dir~i!Q_~e esgota no EstadQ.; ao con­trário, muito-mais-rlco e legítimoé o_dir~jtobrotadoes­pontanéaITlentedos..grupºs_e__illQYim~ntos ~ociais, qu~~lechama de direito natural. E é e_st_~_çlir~!!.<:>~e__S_é:lberia sercompendiado pela_ dO\jJriIlª-e rgconhecido_pe1o .. ES1ªc!.9,por Il1giº_ da ativid_ª-c:l~jurisdiçiº-na1. Kantorowicz chamaesse direito de natural e positivo, por conter dentro de si avontade e o poder da sociedad..e. Ao lado do direito estãt'aTou mesmo anterior a ele, estaria o direit<:>liY!~.Eroduzidopela opiniã.Qlu:r:fdica d<:>~_rn~IDl):r:<:>s da soci~çlag~LP~las_.sen­

tençaslttdiciárias e pela ciência jurídica. Segundo Kantoro­wicz, o povo conhece o direito livre, enquanto desconheceo direito estatal, a não ser que o último coincida com oprimeiro. 189r Daí que a atividade jurisdicional do Estado deve pres­

\ cindir da lei sempre que nela não encontre a solução justa

188. Larenz nos informa que, na realidade, foi Oskar Von Bülow oprecursor do Movimento do Direito Livre, através do seu escrito nosidos de 1885, Lei e função judicial. A idéia básica deste trabalho, dizLarenz, "é a de que cada decisão judicial não é apenas a aplicação deuma norma já pronta, mas também uma atividade criadora de Direito.A lei não logra criar logo o Direito; é 'somente uma preparação, umatentativa de realização de uma ordem jurídica'. Cada litígio jurídico'põe um particular problema jurídico para que não existe ainda prontana lei a determinação jurídica oportuna ... , determinação que tambémnão é extraível, com a absoluta segurança de uma conclusão lógicanecessária, das determinações da lei'. Sob o 'véu ilusório da mesmapalavra da lei' oculta-se uma pluralidade de significações, cabendo aojuiz a escolha da determinação que lhe pareça ser 'em média a maisjusta'." Metodologia da ciência do direito, p. 70.189. Herman Kantorowicz. "A luta pela ciência do direito", traduzidopor Werner Goldschmidt, em obra organizada pelo Instituto Argenti­no de Filosofia Jurídica e Social, presidido por Carlos Cossio, quereúne escritos de Savigny, Kirchmann, Zitelmann e Kantorowicz, sobo título: A ciência do direito, p. 335.

99

Page 66: 52842935-Margarida-Maria-Lacombe-Camargo-Hermeneutica-e-Argumentacao (2).pdf

,Ili,

1,11

para ocaso. O juiz temcompromisSQªpen.ª~_c-ºlTlajustiça;age conforme a sua exclusiva convicção, ainda qu-eparãtanto lhe seja exigida uma formação especial.\90 A idéia éJ--­que o juiz não seja apenas um especialista em leis, mastambém tenha olhos para a sociedade, sabendo avaliar osfatos.\9\

Com isto verificamos a recusa ao dogma legalista quevê o direito como norma constituída em lei sem permitirao intérprete recorrer a argumentos de natureza extrale­gal. Enfim, o Movimento para o Direito Livre procurouresolver o p~~blema provocado pelo di~~al:l5iamentº_~illre

o direito estanque e a sociedade em movimento. A lei, tor­nando~se retrÓgrada, por não acompanhar as transforma­ções vividas pela sociedade, acaba por gerar instabilidadeem lugar de segurança. E assim ressurge o direito natural(social) de base histórica. Entretanto verificamos, a partirdaí, uma forte reação contra o sociologismo jurídico.

2.9 O retorno ao formalismo com Hans Kelsen

Os efeitos da genialidade de Hans Kelsen ainda se fa­zem sentir, não obstante as muitas críticas que recebeu,em geral relativas ao método de conhecimento jurídico re­fratário à questão da moral e da justiça. Ainda assim, pode-

190. Cabe destacar a importância conferida por Kantorowicz ao co­nhecimento extraído de uma ciência do direito. Diz ele: "As necessi­dades da vida jurídica exigem que outras potências, em primeiro lugara ciência jurídica, se coloquem livremente e em função criadora aolado do legislador, precisamente em atenção à importância do mesmopara satisfazê-las. Chegou a hora de levar a sério o lema da ciênciacomo fonte do direito." Cf. A luta pela ciência do direito, in A ciênciado direito, cit., p. 342.191. Kantorowicz. A ciência do direito, p. 368.

100

mos considerar a Teoria Pura do Direito como o maiorexemplo de construção lógico-estrutural do ordenamentojurídico até o momento. Em termos de operacionalidadeda ordem jurídica, naquilo que diz respeito ao seu dinamis­mo - eficácia da lei no tempo, que envolve as questões davalidade e da vigência das normas -, a teoria kelsenianaainda é bastante apropriada. Igualmente importante é oprocesso de "controle da constitucionalidade das leis", quepressupõe a estrutura piramidal e escalonada da ordem ju­rídica, com a Constituição no seu ápice servindo de funda­mento de validade a toda ordem, garantindo a unidade e aharmonia do sistema. Essas relações operacionais conti­nuam a ser bastante úteis para o direito, apesar das críticascabíveis à proposta teórica de Kelsen.

Atendo-se com exclusividade sobre a norma posta peloEstado, Kelsen fez escola. Atualmente podemos distinguiros formalistas ou kelsenianos, dos não-formalistas ou não­kelsenianos. Os primeiros são aqueles que privilegiam oque está escrito na lei validamente posta, sem qualquerindagação de cunho crítico-valorativo, com o intuito maiorde dar segurança às relações sociais e garantir a ordem pú­blica. Os não-formalistas, por seu turno, são os que reco­nhecem a interdisciplinaridade do direito, sem, contudo,dispensarem o seu caráter científico. Tratar teoricamentea interdisciplinaridade jurídica é, sem dúvida, uma tarefaassaz difícil e árdua, mas o esforço compensa o desafio.Daí, a quantidade de trabalhos, dentre os quais o nosso,apresentados no âmbito da teoria do direito.

Voltando a Kelsen, lembremo-nos do momento histó­rico que deu ensejo à criação da Teoria Pura do Direito.Politicamente, o período de guerra pelo qual passava a Eu­ropa Ocidental refletia a ênfase dada ao nacionalismo. AÁustria, terra de Kelsen, assumiu uma postura de neutrali­dade diante das demais potências européias após a Primei-

101

Page 67: 52842935-Margarida-Maria-Lacombe-Camargo-Hermeneutica-e-Argumentacao (2).pdf

ra Grande Guerra, e daí o clamor de Joseph Kunz, discípu­lo de Kelsen, destacando a postura nitidamente universaldos austríacos, ao falar sobre a obra de seu mestre:

Para se compreender a Teoria Pura do Direito é neces­sário levar em conta que seu autor é austríaco. Não somenteaustríaco de nascimento, mas também política, histórica eculturalmente [... ]. Seu temperamento e sua visão do mun­do são de estirpe austríaca e vienense. Nós, os vienenses denascimento, somos católicos no sentido da palavra grega,quer dizer, universalistas. A velha e grande Áustria foi,numa esfera menor, quase uma Sociedade das Nações. So­mos universalistas, somos tolerantes, antifanáticos. Ama­mos a paz. Nossa situação geográfica radica no verdadeirocentro da Europa, no coração do velho continente. Somosdemocratas, somos liberais, somos individualistas. Os aus­tríacos da velha Áustria e os da pequena República de hojesão quase o único povo europeu que não é em absoluto na­cionalista. Somos europeus. A vida cultural é para nós umanecessidade quase mais imperiosa que o comer. Somos fi­lhos de uma grande e velha cultura. 192

o Professor Albert Casamiglia, da Universidade deBarcelona, também nos chama a atenção para a neutralida­de na obra de Hans Kelsen, em face das ideologias. Sãoestas as suas palavras:

La "Teoría Pura dei Derecho" pretende poner fin ai caosdel ideologismo en la Ciencia Jurídica. La alternativa a estasituación es la construcción de una teoría jurídica que seaobjetiva y neutral. Una teoría que nos sirva - como todaslas tradicionales iusnaturalistas y positivistas - para justifi­car un poder determinado ni una ideología determinada. EIobjetivo básico da la "Teoria Pura deI Derecho" es la cons-

192. Apud Luis Recaséns Siches. Panorama del pensamiento juridicoen el siglo XX, pp. 186-7.

102

trucción de un esquema de interpretación de la realidadjurídica que sea independiente de la ideología concreta queanima aI poder. 193

Sob o ponto de vista filosófico, o pensamento de Kel­sen é visto como influenciado ora pelo neokantismo sudo­cidental alemão, ora pelo neopositivismo do Círculo deViena. 194 Fato é que, como bem lembra Miguel Reale, nasegunda década daquele século o direito vivia num verda­deiro caos: "A ciência jurídica era uma cidadela cercada

por todos os lados, por psicólogos, economistas, políticos esociólogos. Cada qual procurando transpor os muros da Ju­risprudência para torná-la sua, para incluí-la em seus do­mínios."195

Coube, então, a Kelsen, professor da Universidade deViena e juiz do Tribunal Constitucional austríaco, protes­tar a favor da dignidade científica do direito. Some-se a

193. Casamiglia, em estudo preliminar à edição espanhola de Qué eslusticia? de Hans Kelsen, p. 8.194. Sobre o Círculo de Viena, ver Miguel Reale, Introdução à filoso­fia, p. 12 a 15, e O direito como experiência, p. 98.

Miguel Reale aproxima mais Kelsen do neokantismo do que doneopositivismo, reconhecendo, inclusive, duas Escolas de Viena: uma,a dos neopositivistas, no campo da filosofia científica; e outra, a deKelsen, nos domínios do direito. "Já temos visto [diz Reale] muitasconfusões sobre este ponto, embora se deva reconhecer que, em cer­tas conseqüências, as duas correntes apresentam, máxime nos últimosanos, crescentes pontos de contato, assemelhando-se por sua tendên­cia antimetafísica e pelo empirismo radical". Cf. Miguel Reale, Filoso­fia do direito, p. 458.

Tércio Sampaio Ferraz Jr., por sua vez, informa-nos que Kelsen erao jurista do Círculo de Viena. Cf. "Por que ler Kelsen, hoje", p. 14. Otexto, escrito por Tércio Ferraz em 1981, serve, agora, de prefácio aolivro de Fábio Ulhoa Coelho, Para entender Kelsen.195. Filosofia do direito, p. 455.

103

Page 68: 52842935-Margarida-Maria-Lacombe-Camargo-Hermeneutica-e-Argumentacao (2).pdf

11.

I

isso as ameaças ao Estado de Direito com movimentoscomo o do Direito Livre, e ainda o momento de inquieta­ção e conturbação social que vivia a Europa do pós-guerrajem que a estabilidade das nações dependia também da es­tabilidade da ordem jurídica.

a solo formalista mantinha-se firme. Segundo GuidoFassàj o incremento das doutrinas sociológicas não chegoua destruir o positivismo jurídico-formalistaj apesar de oter j de certa formaj enfraquecido. Elas apenas o teriamchamado para um "exame de consciência"j no sentido deverificar a solidez de sua proposta básicaj que era o forma­lismo conceitual. 196 O resultado deste movimento socioló­gico levou Kelsen a elaborar uma teoria do direito capaz desustentar a sua própria juridicidade. Para tantoj Kelsenaproveitou-se do elemento da coerçãoj utilizado para dis­tinguir a norma jurídica das outras espécies normativas j eda distinção kantiana entre ser e dever ser, que servia paradiferenciar o direito j do mundo da natureza. Afastando-seda instabilidade típica das relações valorativas j como tam­bém das relações causais próprias dos fenômenos naturais jKelsen constrói sua teoria normativa sobre a idéia de im­putaçãoj como veremos a seguir.

a livro Teoria pura do direito teve sua primeira ediçãopublicada em 1934j com origem em trabalhos anteriores- o primeiro trabalho divulgado por Kelsen data de 1911.Em 1960 apareceu uma segunda edição refundida e am­pliada j onde o autor incorpora alguns conceitos novos jcomo a distinção entre prescrição e descrição normativas jpor exemplo. Logo no prefácio e no primeiro capítulo dolivroj encontramosj expressamentej o objetivo do autorjque é elevar a jurisprudência a um ideal de cientificidade

196. Guido Fa55Õ, ob. cit., p. 217 e 55.

104

- objetividade e exatidão -j purificando-a de toda aideologia política e de todos os elementos de ciência natu­ral. Sobre o significado e o alcance do título atribuído àobraj escreve Kelsen:

A Teoria Pura do Direito é uma teoria do Direito positi­vo - do Direito positivo geral j não de uma ordem jurídicaespecial. [... ] Contudoj fornece uma teoria da interpreta­ção.

Como teoria, quer única e exclusivamente conhecer oseu próprio objeto. Procura responder a esta questão: o queé e como é o Direito? Não importa a questão de saber comodeve ser o Direitoj ou como deve ele ser feito. É ciênciajurídica e não política do Direito.

Quando a si própria se designa como "pura" teoria doDireitoj isto significa que ela se propõe garantir um conhe­cimento apenas dirigido ao Direito e excluir deste conheci­mento tudo quanto não pertença ao seu objetoj tudo quantose não possaj rigorosamente j determinar como Direito.Quer isto dizer que ela pretende libertar a ciência jurídicade todos os elementos que lhe são estranhos. Esse é o seuprincípio metodológico fundamental. 197

Daí podemos perceber que o grau de pretensão relativaà autonomia do objeto científico é de tal ordem em Kel­senj que se pretende fazer com que ele fale por si. O autorassume a posição do cientistaj limitando-se a observar umaordem factual de comportamento. Indaga sobre a essênciado seu objeto de estudoj sobre a sua substânciaj a fim dedar-lhe significado próprioj capaz de destacá-lo das demaisáreas do conhecimento. Kelsen preocupa-se com o que elevêj ou sejaj como o direito se comporta realmente j poisexiste uma norma posta que imputa uma sanção a quemvenha contrariar-lhe. Neste aspectoj o viés positivista de

197. Teoria pura do direito, p. 17.

105

Page 69: 52842935-Margarida-Maria-Lacombe-Camargo-Hermeneutica-e-Argumentacao (2).pdf

Kelsen não corresponde diretamente ao positivismo fran­cês de Augusto Comte, mas ao caráter cientificista que opositivismo sociológico propõe. A ciência sociológica éuma ciência do ser, enquanto se preocupa com as conexõescausais que se operam entre os fatos, que, para Kelsen,correspondem aos comportamentos jurídicos imputadospor um dever ser. 198

Kelsen não aceita a distinção feita entre ciências da na­tureza e ciências sociais. Para ele, a sociedade tambémpode ser vista como parte da natureza, na medida em quea convivência efetiva entre os homens pode ser pensadacomo parte da vida em geral; e vida é natureza~199

Fundamental para esse entendimento é o conceito de"ato jurídico" que o autor constrói. Para Kelsen, os atosjurídicos são atos da vida quotidiana que recebem um sig­nificado jurídico. Não se trata, todavia, de um significadoatribuído por qualquer um que o pretenda, de forma sub­jetiva, mas um significado objetivo conferido pelo próprioato de sua criação. A norma positivada é aquela estabeleci­da por um poder competente como válida para determina­da época e lugar. A juridicidade é, assim, atributo dadopelo criador da lei. Daqui depreende-se a norma como es­quema básico de interpretação. O fato é jurídico quandoreflete uma norma jurídica expressa em lei. Dessa forma,a norma empresta ao ato um significado jurídico (ou antiju­rídico), da mesma forma como ela é produzida por um ato

198. Reale reconhece duas faces no pensamento de Kelsen: uma Ju­risprudência Sociológica, do ser, e uma Jurisprudência Normativa, dodever ser, esta representada pela qualidade hipotética da norma, quese limita a ligar um fato condicionante a uma conseqüência, a umasanção, sem enunciar, contudo, qualquer juízo de valor moral ou polí­tico responsável por esta conexão. Cf. Filosofia do direito, p. 459.199. Cf. Teoria pura do direito, p. 18.

106

jurídico que também recebe significação jurídica de outranorma (superior) e, assim, sucessivamente, até chegarmosà norma fundamental. 200 A partir daí Kelsen elabora a suapirâmide normativa como ordem dinâmica: sempre que asnormas forem criadas validamente, isto é, pelas autorida­des competentes, elas devem ser respeitadas. Existirásempre uma norma superior que autoriza o ato de emana­ção de outra norma, até chegar-se à Grundnorm, que éuma norma pressuposta, o que significa dizer: uma hipóte­se lógica, capaz de conferir validade à ordem jurídica comoum todo. 20J

O direito, segundo Kelsen, corresponderá sempre, eem qualquer lugar, a uma ordem de conduta; e a idéia deordem corresponderá, também sempre, a um sistema denormas, cuja unidade é constituída pelo fato de todas elasterem o mesmo fundamento de validade: a norma funda­mental. O conceito de validade é básico no pensamento deKelsen, porque daí se extrai toda a essência do direito.Logo, o objeto da ciência jurídica é a norma, que aparececomo unidade do sistema, mas uma norma que extrai suavalidade do todo da qual ela faz parte. Assim, escreve Kel­sen: "Uma norma singular é uma norma jurídica enquantopertence a uma determinada ordem jurídica, e pertence auma determinada ordem jurídica quando a sua validade sefunda na norma fundamental dessa ordem. "202

Com relação à teoria da interpretação, vale ressaltar naobra de Kelsen a parte dedicada ao estudo da norma e àprodução normativa, quando o autor elabora a famosa dis-

200. Idem, p. 20.201. Sobre a força de validade da norma fundamental em Hans Kel­sen, vale o estudo de Alexandre Travessoni Gomes, O fundamento devalidade do direito - Kant e Kelsen.202. Cf. Teoria pura do direito, p. 57.

107

Page 70: 52842935-Margarida-Maria-Lacombe-Camargo-Hermeneutica-e-Argumentacao (2).pdf

tinção entre ser e dever ser, fundamentada no que ele en­tende como ato de vontade. Com a idéia de ato de vontade,concebe-se, em primeiro lugar, o direito como ordem nor­mativa da conduta humana, ou melhor, como um sistemade normas que regulam o comportamento humano: al­guém determina o comportamento de outrem. Logo, anorma é o dever ser. 203 Mas não é essa vontade contida nalei que irá importar a Kelsen, uma vez que a norma podereceber qualquer conteúdo, mas a lei em si, bastante por sisó. O que importa é se a lei é válida, isto é, se elaborada porquem competente.

O comportamento humano é incerto, podendo ser tidoapenas como provável, ainda que, no caso da norma jurídi­ca, bastante provável porque o comando é acompanhadode sanção. Dada sua força cogente, Kelsen não se detémsobre o conteúdo da lei, mas sobre o ato que produz a nor­ma, que consiste também num ato de vontade. Para o au­tor, a lei é um ato de criação do legislador e, uma vez cria­da, passa a existir, tornando-se sujeita à verificação de suavalidade, ou seja, de sua existência enquanto ato válido. Alei é, então, um ato posto; um ato que existe realmente.

O ato de vontade corresponde, assim, ao atá por meiodo qual a autoridade competente exprime sua vontade arespeito de como os indivíduos devem se comportar, orde­nando-lhes, proibindo-lhes ou permitindo-lhes fazer algu­ma coisa. Logo, para Kelsen, a ciência do direito não deve­rá interessar-se pelo conteúdo das normas, mas antes pelasua aplicação ou pela sua dinâmica: nascimento, eficácia erevogação. Norma, para Kelsen, "é o sentido de um atoatravés do qual uma conduta é prescrita, permitida ou, es­pecialmente, facultada, no sentido de adjudicada à compe-

203. Idem,p.21.

108

tência de alguém. "204 Esse pensamento pode ser assim sin­tetizado: um indivíduo quer que o outro se conduza de de­terminada maneira. A primeira parte desta frase corres­ponde a um ato de vontade verificável, porque criado deacordo com uma forma definida, fazendo parte, portanto,do mundo do ser; enquanto a segunda parte, de determina­da maneira, nos conduz à ordem do dever ser, que corres­ponde mais especificamente ao sentido normativo do ato.Assim, conclui Kelsen: "A norma, como o sentido específi­co de um ato intencional dirigido à conduta de outrem, équalquer coisa de diferente do ato de vontade cujo sentidoela constitui. "205

As correntes objetivistas se apropriarão dessa idéia: deque o dever ser vale por si só. Com isso, a norma ganha umadimensão própria e independente de quem a fez. SegundoKelsen, o dever ser é válido mesmo depois da vontade doato originário ter cessado. 206

Kelsen isola do direito qualquer indagação do tipoquem fez a norma, por que a fez, quais os interesses ouvalores que encerra, etc., pois, segundo ele, tais questõespertencem ao campo de considerações próprio da ciênciapolítica, da psicologia, da ética ou da sociologia. O funda­mento de validade do direito não está, para Kelsen, na ori­gem ou na fundamentação social do ato, mas na próprianorma (superior) que o autoriza, ou melhor, na norma queo prescreve. Assim, para efeitos metodológicos, o direito,como norma ou ordenamento jurídico positivo, encerra-seem si, prevendo e controlando a sua própria existência,bastando a si mesmo.207

204. Idem, p. 22.205. Idem, p. 22.206. Idem, p. 26.207. Esta "pseudo auto-suficiência" do direito proposta por Kelsenserá depois questionada pelo pós-positivismo.

109

Page 71: 52842935-Margarida-Maria-Lacombe-Camargo-Hermeneutica-e-Argumentacao (2).pdf

A idéia de valor no direito, para Kelsen, é objetiva etem como parâmetro o grau de eficácia e de validade dalei. Uma conduta é boa ou má se a norma for acatada ounão. Só o comportamento pode ser avaliado como bom oumau, e não a norma em si. Se a lei obriga, permite ou facul­ta, o comportamento é bom; se proíbe, é mau. A norma,objetivamente válida, funciona como medida de valor rela­tivamente à conduta real, escreve Kelsen. Assim, a condu­ta que corresponde à norma tem valor positivo, ao passo

I . 208que a conduta que lhe contraria tem va or negatIvo.No entanto, apesar dos fatos serem julgados valiosos ou

. desvaliosos apenas quando referidos à norma, Kelsen, po­sitivista e contrário ao direito natural, chama a atençãopara a relatividade sempre presente na ordem dos valores.No positivismo, ora a lei avalia uma conduta como boa, oraa conduta pode ser vista como má, em função de uma novalei que venha substituí-la.

Cabe, por isso, à ciência jurídica - nome dado porKelsen à ciência do direito -, apenas descrever as prescri­ções contidas na norma jurídica. À ciência jurídica compe­te única e exclusivamente descrever o objeto e não partici­par da sua criação: a autoridade jurídica estabelece a nor­ma e a ciência a descreve, sob a forma de uma proposição.Proposição jurídica consiste, então, em um juízo hipotéti­co que enuncia ou traduz o sentido de uma norma jurídica,atribuindo-lhe conseqüências. A norma jurídica, a seu tur­no, não é juízo, no sentido de um enunciado sobre um ob­jeto dado ao conhecimento, mas mandamento e, como tal,comando imperativo. Kelsen valoriza o papel da doutrina,embora lhe imponha restrições.209 Porém, acreditamos

208. Kelsen. Teoria pura do direito, p. 38.209. A propósito, cabe conferir o artigo do professor Nelson de Sousa

110

que, na medida em que a doutrina traduz o significado danorma jurídica, ela participa do processo de interpretação(e, portanto, de aplicação) das leis. Ainda assim, Kelsensempre chama a atenção para o fato de que o dever ser daproposição jurídica não tem, como o dever ser da normajurídica, um sentido prescritivo, mas um sentido apenasdescritivo. Seu alcance é distinto: a norma prescreve e adoutrina descreve.

Em sua teoria hermenêutica, Kelsen não enfrenta aquestão valorativa sob a tônica das "ciências do espírito",de ordem prática, o que lhe chamaria ao dever moral. Ape­sar de assumir o direito como ciência social, sua ânsia deobjetividade faz com que tente aproximá-lo o mais possí­vel das ciências exatas ou da natureza, pelo mecanismo daimputação, resumido na fórmula do dever ser. Mas, apesarde aproximar a ciência jurídica das ciências naturais, umavez que aquela se ocupa apenas de descrever a condutahumana como fato social, não chega a inseri-la na ordem danatureza explicável pelo princípio da causalidade. A ciên­cia jurídica só escapa da relação causa/efeito pela sua es­sência normativa que determina que a cada prescrição im­puta-se um dever ou uma obrigação. As proposições, pormeio das quais a ciência jurídica descreve o seu objeto,apresentam-se sob a seguinte forma: se alguém comete umcrime, deve ser-lhe aplicada uma pena; por exemplo: sealguém causar dano a outrem, deverá indenizá-lo. Daí quea correspondência prescritiva entre conduta ilícita e san­ção é dada pela conjunção deve ser e não pela conjunção é,como referência a uma necessidade. A norma (que é), nãoreconhece que algo é assim, mas que deve ser assim. E é a

Sampaio, "Doutrina, fonte material e formal do direito", em Estudosde filosofia do direito: uma visão integral da obra de Hans Kelsen.

111

Page 72: 52842935-Margarida-Maria-Lacombe-Camargo-Hermeneutica-e-Argumentacao (2).pdf

esse dever ser, objetivo e claro, próprio da conduta norma­tizada, que chamamos imputação.

Kelsen arremata a Teoria pura do direito com um capí­tulo dedicado à interpretação. Começa definindo inter­pretação como uma operação mental que acompanha oprocesso da aplicação do direito no seu progredir de umescalão superior para um escalão inferior. Na interpreta­ção, não abandona a figura da pirâmide. Segundo Kelsen,os vários escalões que compõem a ordem jurídica possuementre si uma relação de determinação ou de vinculação, namedida em que a norma do escalão superior regula o ato(processo e conteúdo) pelo qual é produzida a norma doescalão inferior. Logo, a função de interpretar deverá aten­der aos vários âmbitos de aplicação da norma: a concretiza­ção das leis ou dos atos administrativos em função de umainterpretação que se faça da Constituição, bem como aconcretização da sentença judicial em função da normaque lhe sirva de fundamento. Vale destacar, desde logo, opapel criador dos órgãos judiciais. Afinal, Kelsen reconhe­ce a sentença judicial como norma jurídica individual, cria­da pelo juiz para disciplinar uma relação específica entreagentes determinados. Lembremo-nos da imagem da pirâ­mide, que possui em sua base a sentença~ No entanto, suateoria não tem um alcance hermenêutico que explique omovimento de compreensão, interpretação e concretiza­ção do direito. Basta-lhe a subsunção do fato à norma váli­da como mecanismo de extração de uma sentença, aindaque não seja a única possível. E quanto ao papel da ciênciajurídica, Kelsen é peremptório:

A idéia de que é possível, através de uma interpretaçãosimplesmente cognoscitiva, obter direito novo, é o funda­mento da chamada jurisprudência dos conceitos, que é re-

112

pudiada pela Teoria Pura do Direito. [... ] A interpretaçãojurídico-científica não pode fazer outra coisa senão estabele­cer as possíveis significações de uma norma jurídica.21O

Isto retrata a distância entre as idéias de Kelsen e as deSavigny, apesar de ambos se insurgirem contra o jusnatura­lismo em favor de uma ordem positiva e concreta. Savignynão acredita na norma posta, preferindo uma ciência capazde identificar o verdadeiro e genuíno direito, enquantoKe1sen nega esse papel criativo da ciência em favor damera descrição da norma posta. Verificaremos, assim, queo apelo excessivo ao formalismo servirá de base para a dog­mática jurídica.

Segundo Kelsen, a interpretação do direito opera-seem duas esferas distintas: na esfera pública, quando levadaa efeito pelos órgãos estatais incumbidos de aplicar o Di­reito - o legislativo, o executivo e o judiciário; na esferaprivada, quando o indivíduo é impelido a observar a con­duta estabelecida pe1a lei, para escapar da sanção. Kelsendenomina a primeira interpretação de autêntica, porquecria direito e vincula a ação; a segunda, de não autêntica,uma vez que não possui nenhuma validade especial.

Com relação, ainda, à vinculação existente entre asnormas de escalão superior e as normas de escalão inferior,Kelsen chama nossa atenção para a ocorrência eventual deuma relativa indeterminação (intencional ou não) do atoque prescreve o direito. Indeterminação intencional seriaaquela relativa à margem de discricionariedade que o legis­lador reconhece como necessária ao aplicador da normapara que este atenda às circunstâncias de quando, onde ecomo a norma deverá ser aplicada. O mesmo vale para anorma superior, que deixa à discricionariedade do legisla-

210. Kelsen. Teoria pura do direito, p. 472.

113

Page 73: 52842935-Margarida-Maria-Lacombe-Camargo-Hermeneutica-e-Argumentacao (2).pdf

dor hierarquicamente inferior o poder de avaliar as cir­cunstâncias que demandam a criação do ato normativo.

A indeterminação não-intencional, por sua vez, corres­ponderia à pluralidade de significações possíveis das pala­vras por meio das quais a norma se exprime, em geral de­correntes da vaguidade e da ambigüidade de seus termos.Pode acontecer, inclusive, que a verdadeira vontade do le­gislador venha a consistir em apenas uma dessas várias sig­nificações.

A norma do escalão superior não pode vincular em todasas direções (sob todos os aspectos) o ato através do qual éaplicada. Tem sempre de ficar uma margem, ora maior oramenor, de livre apreciação, de tal forma que a norma doescalão superior tenha sempre, em relação ao ato de produ­ção normativa ou de execução que a aplica, o caráter de umquadro ou moldura a preencher por este ato. Mesmo umaordem o mais pormenorizada possível tem de deixar àqueleque a cumpre ou executa uma pluralidade de determina­ções a fazer. 2ll

A figura da moldura é bastante atraente na teoria kelse­niana. Dentro da moldura, que corresponde ao texto nor­mativo, encontram-se várias possibilidades de sentido, no­tando-se que apenas uma delas será a preferida do órgãoaplicador da lei. Mas os motivos que levam à escolha deuma entre as várias interpretações possíveis, segundo Kel­sen, escapam ao alcance da teoria do direito. Assim,

Se por "interpretação" se entende a fixação por via cog­noscitiva do sentido do objeto a interpretar, o resultado deuma interpretação jurídica somente pode ser a fixação damoldura que representa o Direito a interpretar e, conse­qüentemente, o conhecimento das várias possibilidades que

211. Idem, p. 464.

114

dentro desta moldura existem. Sendo assim, a interpretaç-d 1 · - d aoe uma e! nao eve necessariamente conduzir a uma únicasolução como sendo a única correta, mas possivelmente avárias soluções que [... ] têm igual valor, se bem que apenasuma delas se torne Direito positivo [... ]. Dizer que umasentença judicial é fundada na lei, não significa, na verdade,sen~o que ela se contém dentro da moldura ou quadro quea lei representa - não significa que ela é a norma individual,mas apenas que é uma das normas individuais que podemser produzidas dentro da moldura da norma geral. 212

Por fim, ressalta:

A questão de saber qual é, dentre as possibilidades quese apresentam nos quadros do Direito a aplicar, a "correta"não é [... ] uma questão de conhecimento dirigido ao Direit~positivo, não é um problema de Teoria do Direito, mas umproblema de Política do Direito. 213 .

Dessa forma, podemos concluir que Kelsen reconhecea incidência de valores de ordem política e moral no direi­to, ainda que não os assuma como próprios à ciência jurídi­ca. Mediante um ato político, a autoridade competente es­colhe um dentre os vários significados possíveis de uma lei,em função de sua interpretação. Interpretar, para Kelsen,é estabelecer a moldura que encampa as várias possibilida­des de significação da lei. Acredita que não temos comoverificar, no âmbito do direito, qual seja a interpretaçãocorreta, principalmente porque os métodos apresentadospela teoria tradicional mostraram-se insuficientes a tama­nha pretensão: "Todos os métodos de interpretação até opresente elaborados conduzem sempre a um resultado

212. Idem, p. 467.213. Idem, p. 469.

llS

Page 74: 52842935-Margarida-Maria-Lacombe-Camargo-Hermeneutica-e-Argumentacao (2).pdf

apenas possível, nunca a um resultado que seja o único cor­reto."214

Como o ato de escolha não faz parte do direito positi­vo, de acordo com Kelsen, não há que se pretender atri­buir-lhe algum cunho de veracidade ou falsidade, validadeou invalidade à fundamentação que eventualmente lheseja conferida. A validade do ato provém única e exclusiva­mente do fato de ser decisão tomada pela autoridade com­petente. Todavia, dentro dos parâmetros fixados pela mol­dura legal, o juiz age livremente: livre de preconceitos deordem moral ou social que não o atingem. Só assim nãoseria, afirma Kelsen, se o próprio direito positivo delegassetal poder a certas normas metajurídicas como a moral e ajustiça, que assim transformar-se-iam em normas de direi­to positivo.2lS E é justamente a rejeição aos valores e aqualquer orientação de caráter metafísico o que caracteri­za o positivismo, inclusive o jurídico.216 Neste ponto, po­demos fazer a aproximação entre o positivismo jurídico e opositivismo de Augusto Comte, apesar das diferenças jáapontadas. Casamiglia analisa o viés cientificista propostopelo positivismo ao qual adere Kelsen, quando pretendereduzir todo o conhecimento à verificação dos fatos:"Todo aquel10 que no sea reducible a hechos, es decir, aacontecimientos verificables, no entre en el sistema de laciencia, y, para un positivista, la ciencia es la única formade conocimento. "217

214. Idem, p. 468.215. Idem, p. 470.216. Podemos apontar como positivistas as várias tendências que pro­curam identificar o direito sem levar em consideração qualquer ele­mento de ordem moral.217. Casamiglia. Oh. cit., p. 16.

116

Segundo o próprio Casamiglia, e com quem estamosplenamente de acordo, o positivismo pecou justamentepor eliminar do âmbito do conhecimento todo o viver so­cial ou tudo o mais que fuja às relações diretas de causa eefeito. O autor traduz suas conclusões, que conferem comas diretrizes que regem este nosso trabalho, nas seguintespalavras que aproveitamos para transcrever:

Las tesis positivistas son reduccionistas porque nieganracionalidad a aquellos saberes que no concuerdan con suidea de Ciencia. El positivismo ha distinguido muy rígida­men~e entre saberes científicos y saberes no científicos y hatendIdo a presentar a éstos como irracionales. Cabe pregun­tar si todo aquello que no es estrictamente científico debeabandonarse aI campo de la emoción y el sentimiento. Po­dría cuestionarse si con los métodos de las ciencias podemosaprehender toda la realidad de la que tenemos noticia ydeberíamos decidir si todo aquello que no es abordable me­diante la metodología científica debe abandonarse ao reinoda la irracionalidad. 218

Portanto, cabe abordarmos, ainda que brevemente, aimportância dos valores para a Jurisprudência, a partirda jurisprudência da valoração ou "Jurisprudência dosValores".

2.10 A Jurisprudência dos Valores

A Jurisprudência dos Valores tem como linha de forçao neokantismo sudocidental alemão do início do séculoXX. Deste movimento participaram filósofos como Ru­dolf Stammler, Wilhelm Windelband Heinrich Rickert, I

218. Idem, p. 21.

117

Page 75: 52842935-Margarida-Maria-Lacombe-Camargo-Hermeneutica-e-Argumentacao (2).pdf

Emil Lask e Gustav Radbruch. Com o relativo abandonodo pragmatismo no final do século XIX e início do XX,entra em cena a idéia de valor, que alcança também o di­reito. 219 A concepção científica do positivismo até entãoprevalecente apenas admitia como ciência as ciências danatureza, a lógica e a matemática. E daí o esforço de HansKe1sen em incluir no âmbito de apoditicidade, o direito.As áreas correspondentes à dimensão histórico-cultural,que envolvem necessariamente valores, eram desconheci­das do mundo científico pela carência de métodos pró­prios. Só o método adequado é visto como capaz de confe­rir objetividade à relação cognoscitiva, que aproxima ocientista do seu objeto de conhecimento, que pode ser aprópria ação humana. Dessa forma, a Jurisprudência dosValores ou Jurisprudência de Valoração, conforme querLarenz, trabalhará com as dicotomias valor/realidade,ser/dever ser, natureza/cultura, como campos distintos esujeitos a formas também distintas de conhecimento.22o

Z19. Emil Lask, por exemplo, considera o direito como uma "ciênciade valores", na medida em que o direito trabalha a cultura em suarelação com seus valores. "Values are 'trans-empirical', that is, theyare not inherent in or logically deducible from empirical reality, butare derive by a mental operation upon reality. Since the mind canoperate only by the use of categories or types, 'typical values', that is,types of value, are the subject matter of legal philosophy." Cf. EdwinW. Patterson, Cardozo, Professor of Jurisprudence of the ColumbiaUniversity. The legal philosophies of Lask, Radbruch and Dabin, p.XXIX.

De acordo com o próprio Lask, "the criticaI theory of values dif·fers from any Platonistic two-worlds theory in that it regards empiri­cal reality as the only kind of reality, but at the same time as the sceneor the substratum of transempirical values or meanings of generalvalidity." Emil Lask. "Legal Philosophy", in The legal philosophies ofLask, Radbruch and Dabin, p. 4.ZZO. Vale conferir o trabalho de Tércio Sampaio Ferraz Jr., Conceito

118

Apesar dos rumos mais diversos que tenha tomado, ouque ainda venha a tomar, a Jurisprudência dos Valores éimportante por reconhecer o direito como parte de umcampo até então desconsiderado pela teoria do conheci­mento, e que toma como referência básica a cultura.221 Po­demos entender cultura como o somatório de crenças etradições transmitido de geração em geração, a ponto degerar uma pauta de valores aceitos em determinada comu­nidade.222

Cabe assinalar, com Larenz, o esforço desempenhadopor Rickert, em 1902, no sentido de estabelecer uma refe-

de sistema no direito, quando este analisa a teoria dos filósofos deMarburgo e Baden, procurando extrair os vários sistemas que com­põem ou que informam o direito, quando é destacada a questão dosprincípios e dos valores.ZZl. Para Miguel Reale, a cultura consiste na projeção histórica dasubjetividade. O valor, diz Miguel Reale, "envolve uma orientação e,como tal, postula uma quarta nota, que é a preferibilidade. É por estarazão que para nós toda teoria do valor tem como conseqüência, nãocausal, mas lógica, uma teleologia ou teoria dos fins. Daí dizermos quefim não é senão um valor enquanto racionalmente reconhecido comomotivo de conduta. Toda sociedade obedece a uma tábua de valores,de maneira que a fisionomia de uma época depende da forma comoseus valores se distribuem ou se ordenam. É aqui que encontramosoutra característica do valor: a sua possibilidade de ordenação ou degraduação preferencial ou hierárquica, embora seja incomensuráve1."Introdução à filosofia, p. 144.ZZZ. De acordo com Larenz, o conceito de "cultura" surge cada vezmais como pano de fundo das ciências históricas. Cultura, conformeLarenz, no seu sentido mais amplo "é tudo o que, pela sua referênciaa valores, ganha sentido e significado para o homem que reconheceesses valores como tais. [... ] Valores, sentido e significação são algoque nós não podemos 'perceber', mas apenas 'entender', enquantointerpretamos objetos percebidos. Por isso é natureza 'o ser livre designificação que somente é perceptível e não é entendível'; é cultura,pelo contrário, 'o ser significante e susceptível de compreensão"'. Me­todologia da ciência do direito, p. 111 e 112.

119

Page 76: 52842935-Margarida-Maria-Lacombe-Camargo-Hermeneutica-e-Argumentacao (2).pdf

rência entre "ciências históricas" e valor. Algumas de suasidéias são assim traduzidas por Larenz:

Se o historiador realmente "'refere" a valores os fenôme­nos efetivamente ocorridos e se para os expor tem de en­contrar neles um interesse geral, então a significatividadedos valores que assume como fundamento não pode apenasexistir para ele - tem de existir também para outros. Tem,por conseguinte, de tratar-se de valores que sejam de fatogeralmente reconhecidos, pelo menos na comunidade cul­tural a que o historiador pertence. O que "em princípio sehá de constatar através da experiência", ou seja, é um fatoempírico. Mas o reconhecimento fático de um valor não é omesmo que "validade normativa geral". Um valor tem vali­dade normativa geral quando o seu reconhecimento é exigi­do de todos e cada um. [... ] O valor faticamente vigentecostuma aparecer-nos com uma certa pretensão de reconhe­cimento, quer dizer, de validade "normativa". Ao mesmotempo introduz-se com isto um outro conceito extrema­mente importante: o conceito de "comunidade cultural",como a comunidade que é constituída através da vigênciafática de valores.223

Institui-se, a partir daí, uma dicotomia científica con­forme a consideração do objeto, já anteriormente anuncia­da por Stammler, outra figura central na teoria jurídica dosvalores. Stammler firmara a distinção entre percepção evontade correspondendo, respectivamente, a relações decausa e efeito - ciência da natureza (ou ciência causal) erelações de meio e fim - ciência final. De acordo comStammler, "a vontade, como conceito específico, não deveser entendida como uma causa física, mas como uma pautadiretiva de nossa consciência, consistente na eleição demeios para a consecução de fins". 224 Dessa forma, "o crité-

223. Idem, p. 111.

120

rio fundamental que separa decididamente o mundo davontade do da percepção é a faculdade de opção, caracterís­tica de todo o fim. Fim não é senão um objeto a que seaspira alcançar, e meio, uma causa que se pode eleger".225

As ciências da natureza são consideradas em função doseu objeto ser livre de valores e oferecerem sentidos passí­veis de demonstração, ao passo que as ciências finais, ob­jeto da cultura, possuem objeto somente possível de sercompreendido. Nesse sentido, os objetos culturais, talcomo as ações humanas, são dotados de significação por­que relacionados a valores. Logo, a hermenêutica tambémdeverá orientar-se em função dos valores, como instânciade compreensão. 226 A respeito, afirma Larenz:

Valores, sentido e significação são algo que nós não po­demos "perceber", mas apenas "entender", enquanto inter­pretamos objetos percebidos. Por isso é natureza "o ser livrede significação, que somente é perceptível e não é entendí­vel"; é cultura, pelo contrário, "o ser significante e suscetívelde compreensão".227

224. R. Stammler. Tratado de filosofia del derecho, p. 75.225. Idem, p. 76.226. A propósito cabe conhecer a diferença que existe entre explicare compreender ensinada por Miguel Reale: "Dizemos que explicamosum fenômeno quando indagamos de suas causas e variações funcio­nais, ou seja, quando buscamos os nexos necessários de antecedente econseqüente, assim como os de interdependência, capazes de nos es­clarecer sobre a natureza ou a estrutura dos fatos; e dizemos que ocompreendemos quando o envolvemos na totalidade de seus fins, emsuas conexões de sentido. [... ] Explicar é descobrir na realidade aquiloque na realidade mesma se contém. [... ] Compreender não é ver ascoisas segundo nexos causais, mas é ver as coisas na integridade deseus sentidos ou de seus fins, segundo conexões vivenciadas valorati­vamente." Introdução à filosofia, p. 195, 196 e 200.227. Idem, p. 112.

121

Page 77: 52842935-Margarida-Maria-Lacombe-Camargo-Hermeneutica-e-Argumentacao (2).pdf

Para o neokantismo, o valor apresenta-se como um apriori que se pretende ver realizado na ação.228 É este, porexemplo, o entendimento de Radbruch, um dos principaisexpoentes da Jurisprudência dos Valores, conforme pode­mos apreender de suas palavras:

Certamente a cultura não é o mesmo que a realizaçãodos valores, mas é o conjunto dos dados que têm para nós asignificação e o sentido de os pretenderem realizar, ou ­como escreve Stammler - o de uma aspiração para aquiloque é justo. 229

Miguel Reale, ao tentar uma definição de valor, apenas afirma que"valor" é aquilo que vale. O seu "ser" é o "valer". Os valores possuemrealidad~ em função daquilo que vale. Ser e valer aparecem, segundoele, como duas categorias fundamentais, duas posições primordiais doespírito perante a realidade. Diz ele, às páginas 141, 142 e 145: "Ouvemos as coisas enquanto elas são, ou as vemos enquanto valem; e,porque valem, devem ser.[ ... ] Os valores representam, por conseguin­te, o mundo do dever ser, das normas ideais, segundo as quais se realizaa existência humana, refletindo-se em atos e obras, em formas decomportamento e em realizações de civilização e de cultura, ou seja,em bens que representam o objeto das ciências culturais". Mas, para acultura jurídica, abre o debate para o sentido teleológico do Direito,ao afirmar que toda a teoria do valor tem como conseqüência, nãocausal, mas lógica, uma teleologia ou teoria dos fins, uma vez que fimnão é senão um valor enquanto racionalmente reconhecido como motivode conduta. Cf. p. 144.228. Cf. O conceito de sistema no direito, de Tércio Sampaio FerrazJr.229. Gustav Radbruch. Filosofia do direito, p. 42.

No nosso entender, o ser humano dá significado às suas ações pormeio de valores. Valora os acontecimentos, isto é, assume posiçãosobre eles, positiva ou negativamente. Mas, ainda que a ação mostre­se pessoal, acreditamos que o homem se reconhece em sociedade,pois na ação individual incorre necessariamente uma dimensão públi­ca, no sentido já demonstrado por Rousseau. O importante é queindaguemos sobre a relação intersubjetiva verificada na práxis.

122

Para Gustav Radbruch, conforme já anotamos, o direi­to é considerado um dado da experiência, que, como todaobra humana, só pode ser compreendido por meio de suaidéia, e a idéia de direito não pode ser diferente da idéia dejustiça.230 No entanto, o importante é a concepção de di­reito que o autor tem, como dado adstrito à noção de jus­tiça. O direito, para ele, é um fato ou um fenômeno cultu­ral que não pode ser definido senão em função do justo,pois "o valor do direito é a justiça".231 O sentido do direitovem a ser precisamente este: o de realizar o justo. E dessaforma, o direito passa a ser retratado como atitude valora­tiva, no sentido de só poder ser compreendido dentro deuma atitude que refere a realidade a valores. 232

A filosofia do direito, então considerada por Stammlercomo "teoria do direito justo", reconhece que a luta pelodireito só pode se dizer legítima quando tem por finalida­de defender um direito justo. O autor fundamenta-se naidéia de ética individual, tendo em vista que tanto na ela­boração do direito (criação das leis) quanto na sua aplica­ção, só a pureza da vontade pode servir de base inquebran-

230. Cf. Radbruch, ob. ciL, p. 44 e 86.231. Idem, p. 85 e segs.

Porém, conforme escreve Edwin Patterson, "while Radbruch re­gards alI law as oriented toward justice, he recognizes that justicealone does not explain the content of alI legal norms." Cf. The philo­sophies of Lask, Radbruch and Dabin, p. XXXIII.232. Cf. Radbruch, ob. cit., p. 45.

Nas palavras do Professor Edwin Patterson, sobre o pensamentode Radbruch, "law is a cultural phenomenon, a fact related to value.The 'concept' of law (which is distinguished from its validity) can bedetermined only as something which 'means' to be just, howevershort of that end it may falI. Legal science deals with law as a culturalfact; legal philosophy, as a cultural value." The philosophies of Lask.Radbruch and Dabin, p. XXXIII.

123

Page 78: 52842935-Margarida-Maria-Lacombe-Camargo-Hermeneutica-e-Argumentacao (2).pdf

II

tável de nosso espírito; a única idéia que pode trazer aoh l 'h d d' . 233ornem sua l er a e mtenor.

Larenz é um dos grandes fautores da jurisprudência dosvalores de meados do século passado. Segundo ele:

o legislador que estatui uma norma, ou, mais precisa­mente, que intenta regular um determinado setor da vidapor meio de normas, deixa-se nesse plano guiar por certasintenções de regulação e por considerações de justiça ou deoportunidade, às quais subjazem em última instância deter­minadas valorações, Estas valorações manifestam-se no fatode que a lei confere proteção absoluta a certos bens, deixaoutros sem proteção ou protege-os em menor escala; de quequando existe conflito entre os interesses envolvidos na re­lação da vida a regular faz prevalecer um em detrimento deoutro [... ]. Nestes termos, "compreender" uma norma jurí­dica requer o desvendar da valoração nela imposta e o seualcance. A sua aplicação requer o valorar do caso a julgar emconformidade a ela, ou, dito de outro modo, acolher demodo adequado a valoração contida na norma ao julgar o"caso".234

233. Cf. R. Stammler. La génesis del derecho, p. 140.234. Metodologia da ciência do direito, p. 252-253.

E, sobre a importância dos valores na filosofia, de um modo geral,trazemos as palavras de Johannes Hessen: "O sentido da vida humanareside, precisamente, na realização dos valores. Dizendo isto, porém,tocamos aqui com o dedo no significado, desta vez prático, da Teoriados valores, na sua relação direta com a vida. Se, de fato, o sentido davida se acha dependente dos valores a que está referida, através daqual estes alcançam a sua objetivação, é evidente que a plena realiza­ção do sentido da nossa existência dependerá também, em últimaanálise, da concepção que tivermos acerca dos valores. Aquele quenega todos os valores, nada mais vendo neles do que ilusão, não poderádeixar de falhar na vida. Aquele que tiver uma errada concepção dosvalores não conseguirá imprimir à vida o seu verdadeiro e justo senti­do... ". Filosofia dos valores, p. 22 e segs.

124

1". ~

~,.':'t~:;'.

Lembremo-nos aqui de Heck, quando este afirmavaque tanto os interesses protegidos pela lei quanto os inte­resses considerados pelo julgador eram extraídos de umcampo de luta, sopesados, e, finalmente, legitimados. As­sim, toda prática decisória que viesse a legitimar um inte­resse (individual ou de grupo), em lugar de outros, passarianecessariamente por um processo de valoração, ou de pon­deração. E aí, esbarramos com o grande desafio científico,de sustentar, com um mínimo de objetividade, esse tipode decisão: abre-se a questão de sabermos se o que é valio­so é suscetível de fundamentação racional. Para tanto, ahermenêutica jurídica é de muita utilidade, pois é pela in­terpretação que se consubstancia a objetividade racional.O raciocínio jurídico, ainda que se apresente por meio dalógica, não é capaz de seguir os passos exatos da lógica for­mal. A consideração valorativa sobre as premissas interferenesse processo, impedindo, muitas vezes, a exatidão dosresultados, ainda que não impeça uma probabilidade desolução. Larenz, por exemplo, sob uma concepção valora­tiva do Direito, exige da solução jurídica uma razoabilida­de de fundamento:

A interpretação das leis, como toda a compreensão deexpressões alheias, tem lugar num processo que se não podeadequar às restritas exigências do conceito positivista deciência. Exige, em rigor, a constatação dos fatos e, assim, aconstatação do texto e de toda e qualquer circunstância quepossa vir a relevar para a interpretação. Exige ainda a obser­vância da lógica. Uma interpretação que não seja conformeàs regras da lógica é, conseqüentemente, incorreta. Mas oque é específico na interpretação, ou seja, o apreender dosentido ou do significado de um termo ou de uma propo­sição no contexto de uma cadeia de regulação, vai paraalém disso. Requerem-se também aqui considerações de ra­zoabilidade, uma vez que as constatações empíricas ou as

125

Page 79: 52842935-Margarida-Maria-Lacombe-Camargo-Hermeneutica-e-Argumentacao (2).pdf

refutações não são - ou só o são em escassa medida ­possíveis. 235

A partir daí verifica-se uma inclinação pela valorizaçãoda conduta ética e, em conseqüência, o compromisso dasdecisões jurídicas com o "justo". De um lado ganha força afilosofia de matriz neo-hegeliana, que reconhece valores eprincípios "supralegais" ou "pré-positivos" subjacentes àsnormas jurídicas. Nessa linha, Larenz faz referência a no­mes como Zippelius, Pawlowski, Heinrich Hubmann eHe1mut Coing, para quem a idéia de direito encontra cor­respondência nos princípios básicos de uma ética da vidasocial, cuja tábua de valores pode ser encontrada no "ethosjurídico dominante na comunidade" ou nas "concepçõesdominantes de justiça", podendo configurar-se em normaslegais positivas; tomar a forma de um direito natural naqualidade de "súmula de proposições de justiça", comopode ainda aparecer sob a forma de conteúdos da cons­ciência.236 De outro lado, verifica-se a recuperação da ma­triz neo-aristotélica, que privilegia a fundamentação legiti­madora da ação prática, de base argumentativa, conformeanuncia esse nosso trabalho.

Em Richtiges Recht237 (Direito Justo), escrito em 1978,Karl Larenz, na esteira de Rudolf Stammler, defende a na­tureza axiológica da ordem jurídica com base na tese deque a mesma se sustenta sobre a "idéia de direito", comoalgo devido. Daí sucederiam os "princípios de direito jus­to", como determinações mais detalhadas em seu conteú-

235. Metodologia da ciência do direito, p. 141.236. Idem, p. 147 a 153.237. Obra traduzida para o espanhol em edição de 1985, Derechojusto: fundamentos de etica juridica, traduzida por Luis Díez-Picazo,publicada pelo Editorial Civitas, no mesmo ano.

126

do, da "idéia de direito", e que serviriam de pensamentosdiretores ou causas de justificação para as regulações con­cretas de direito positivo.238

No mesmo diapasão, o estudo de Claus-Wilhem Cana­ris, escrito em 1967, defende a idéia de que o sistema jurí­dico, como ordem axiológica, só se justifica a partir do"princípio da justiça" e de suas concretizações, a partir do"princípio da igualdade". O autor percebe que o pensa­mento jurídico ocorre fora do âmbito da lógica formal, quelhe serve apenas de quadro, e anota que o elemento decisi­vo de todo esse processo não é de natureza lógica, mas denatureza teleológica ou axiológica, e por isso sua justifica­ção metodológica não pode ser alcançada com os meios dalógica, mas através da recondução ao valor da justiça e aoprincípio da igualdade nela compreendido.239

Não poderíamos chegar ao desfecho deste capítulosem abordarmos a questão que se apresenta para a herme­nêutica jurídica, de se privilegiar a "vontade da lei" ou a"vontade do legislador". Tratando-se a lei de um texto es­crito inalterável no tempo, até que outro o modifique ourevogue, a questão da vontade que lhe confere legitimida­de merece ser considerada, e toca diretamente as posiçõesanteriormente apresentadas, merecendo, portanto, acolhi­da no âmbito de nossas considerações.

2.11 "Vontade da Lei" e "Vontade do Legislador"

Consistindo a lei num texto escrito, pelo menos para ospaíses que adotam o direito codificado, cabe indagar sobre

238. Vide Karl Larenz, Derecho justo, p. 37 e segs.239. Cf. Claus-Wilhem Canaris, Pensamento sistemático e conceito desistema na ciência do direito, p. 32 a 35.

I27

Page 80: 52842935-Margarida-Maria-Lacombe-Camargo-Hermeneutica-e-Argumentacao (2).pdf

o seu elemento racional em função do momento de suaelaboração e do momento de sua aplicação. Na filosofia dodireito da segunda metade do século XIX, em decorrênciado historicismo alemão, abre-se a polêmica entre as cha­madas teorias objetivista e subjetivista da interpretaçãoque, ao contrário do que muitos afirmam, prepondera ain­da nos dias atuais.

A partir do viés histórico característico do romantismoalemão, que procurava com a interpretação, a individuali­dade e o espírito do autor da lei, e a crítica francesa feitapor Saleilles e Ripert240 sobre as vantagens de uma inter­pretação objetiva da lei, independentemente de quem lhedeu origem, questiona-se sobre o que deve prevalecer emtermos hermenêuticos: se a "vontade da lei" ou a "vontadedo legislador". O que se apresenta como correto para aatividade do intérprete ou aplicador da lei: buscar a vonta­de de quem fez a lei, ou a vontade que, de forma objetiva,podemos extrair do seu texto? Lembremo-nos, que, para aEscola da Exegese, a palavra escrita sob a forma de lei fun­ciona como garantia contra o arbítrio judicial; mas em ou­tro momento, o de sua aplicação, exige-se-Ihe a atualizaçãodo significado de seus termos. A sociedade, em constantetransformação, pede uma interpretação adequada ao novotempo. Como, então, entender a hermenêutica jurídica?Inicialmente, procurava-se transpor a vontade legítima dolegislador, do momento de criação da lei, para o momentode sua aplicação, como forma de se evitar o arbítrio. Maistarde, verificou-se toda uma tendência em se reconhecer,finalmente, a autonomia da lei com relação ao seu autor.Costumava-se dizer, inclusive, que a lei era muitas vezesmais sábia do que o legislador, por ser capaz de imaginaraté mesmo situações não previstas por ele.

240. Cf. Guido Fasso, p. 161 e segs.

128

o elemento histórico e o sistemático, capazes de tra­duzir o e~pírito de um povo, somados aos elementos lógicoe gramatIcal, que garantiam fidelidade ao texto legal, ser­viriam, conforme acreditava Savigny, a um único processohermenêutico capaz de atualizar o direito, conformando-oà atualidade dos institutos jurídicos. Savigny é geralmentevisto como um dos fautores do subjetivismo jurídico con­cordante com o romantismo de sua época. É o que afirma,por exemplo, Karl Engish.241 Sob o enfoque do historicis­mo, no entanto, Larenz é de opinião contrária, e acreditaque, na realidade, Savigny buscava a fidelidade dos institu­tos jurídicos oriundos do espírito do pOVO.242 Acreditavaque a atividade espiritual do intérprete, tal como a do le­gislador, deveriam deixar-se orientar pela intuição do "ins­tituto jurídico", que deu base à lei, isto é, procurar atrás dopensamento do legislador, o pensamento jurídico objetivoque se realiza no instituto jurídico. Isso faz com que o graude objetividade característico da corrente defensora da"vontade da lei" ganhe força progressiva nos escritos deSavigny. Percebe-se que não vem de suas primeiras lições,por volta de 1802, a defesa pela objetividade da lei. Aocontrário, Savigny apresenta nesse início um forte apego àvontade do legislador.

A vontade objetiva da lei acaba por prevalecer sobre avontade subjetiva do legislador na doutrina jurídica do sé­culo XX, e se apresenta da seguinte forma, de acordo como que escreve Karl Larenz:

A teoria "objetivista" da interpretação afirma não ape­nas que a lei, uma vez promulgada pode, como qualquerpalavra dita ou escrita, ter para outros uma significação em

241. Karl Engish. Introdução ao pensamento jurídico, p. 170.242. Cf. Larenz, Metodologia da ciência do direito, p. 15, nota 5.

129

Page 81: 52842935-Margarida-Maria-Lacombe-Camargo-Hermeneutica-e-Argumentacao (2).pdf

que não pensava o seu autor - o que seria um truísmo -,mas ainda que o juridicamente decisivo é, em lugar do quepensou o autor da lei, uma significação "objetiva", indepen­dente dele e imanente à mesma lei. [... ] A lei é "mais racia-

l" . 1 .• 243na que o seu autor e, uma vez vigente, va e por Si so.

De fato, é esta a tendência prevalecente nos diasatuais, o que se dá principalmente pela necessidade deadaptação do direito às novas realidades provocadas porconstantes mudanças sociais. De outro lado, a idéia de sis­tema que norteia o princípio da unidade do ordenamentojurídico exige a adaptação das leis antigas às leis novasnum todo coerente e harmônico de interpretação, dan­do ênfase aos elementos teleológico e axiológico da or­dem jurídica.244

A teoria "objetivista" da interpretação, segundo La­renz, foi desenvolvida pelo pandectista alemão Winds­cheid, e melhor finalizada, nos anos de 1885 e 1886, porBinding, Wach e Kohler, sob a influência do positivismolegal racionalista. Assim, escreve:

243. Idem, p. 36.A chamada vontade objetiva da lei é amplamente cotada nos dias

atuais. Uma quantidade de autores a defendem, entre os quais pode­mos citar Carlos Maximiliano. Outros, como Tércio Sampaio Ferrazlr., estudam uma e outra forma de interpretação, não apontando ne­nhum tipo de preferência. Podemos entender, na visão deste último,a inexistência de hierarquia nos métodos apresentados pela herme­nêutica jurídica tradicional. Cabe ao aplicador da lei utilizar-se de umou de outro método, conforme a necessidade de seu trabalho. Noentanto, acreditamos que a vontade objetiva aparece como argumentomais forte do que a subjetiva.

Quanto à aplicabilidade prática dessa questão no direito constitu­cional, informa-nos Konrad Hesse referindo-se à jurisprudência daCorte Constitucional Alemã. Cf. Konrad Hesse, La InterpretacionConstitucional, in Escritos de derecho constitucional, p. 36.244. Cf. Karl Engish. Ob. cit., p. 172 e segs.

130

Segundo Windscheid, a interpretação da lei deve deter­minar o sentido que "o legislador ligou às palavras por eleutilizadas". Tal como Savigny, Windscheid exige que o in­térprete se coloque no lugar do legislador e execute o seupensamento, para o que deve tomar em consideração, queras circunstâncias jurídicas que foram presentes no seu espí­rito quando ditou a lei, quer os fins prosseguidos pelo mes­mo legislador. Embora a interpretação se revele assim comouma pura investigação histórico-empírica da vontade, algu­ma margem abre Windscheid a uma interpretação de acor­do com o que é objetivamente adequado, quando observaque "é de atender, por último, ao valor do resultado, pelomenos na medida em que será de admitir que o legisladorpreferiu dizer algo de significativo, de adequado, em vez dealgo de vazio e inadequado". 245

Para Tércio Sampaio Ferraz Jr., a doutrina subjetivistainsiste em que, sendo a ciência jurídica um saber dogmáti­co - dogma enquanto um princípio arbitrário, derivado davontade do emissor da norma - seu compromisso é com avontade do legislador; portanto interpretação ex tunc (des­de então, isto é, desde o aparecimento da norma pela posi­tivação da vontade legislativa). Ressalta aqui o aspecto ge­nético e as técnicas que lhe são apropriadas, como a dométodo histórico. Já para a doutrina objetivista, a normagoza de um sentido próprio, determinado por fatores obje­tivos (dogma aqui aparece como arbitrário social), inde­pendente, até certo ponto, do sentido que lhe tenha dese­jado dar o legislador, donde a concepção da interpretaçãocomo uma compreensão ex nunc (desde agora, isto é, ten­do em vista a situação e o momento atual de sua vigência).Ressalta aqui os aspectos estruturais em que a norma ocor-

245. Metodologia da ciência do direito, p. 31.

131

Page 82: 52842935-Margarida-Maria-Lacombe-Camargo-Hermeneutica-e-Argumentacao (2).pdf

re e as técnicas apropriadas à sua captação, como a do mé­todo sociológico. 246

Castanheira Neves sugere que a opção por uma ou ou­tra vertente é determinada por pressupostos culturais, fi­losóficos-jurídicos e teleológicos de todo diversos.

o subjetivismo traduz uma concepção cultural e herme­nêutica de cariz epistemologicamente positivista, segundo aqual os sentidos culturais seriam eles próprios entidadesempíricas, fenômenos psíquicos ou de redução psicológicaem último termo, e por isso interpretá-los seria imputá-lospsicologicamente ao seu autor, perspectivá-los pelo proces­so da sua gênese histórico-psíquica - assim na ética e nalógica, na história e na filosofia, na hermenêutica e mesmonas "ciências do espírito", assim também o direito. Enquan­to o objetivismo é já o reflexo quer de um entendimentoespiritual da cultura - os sentidos culturais são remetidosao plano ontológico e epistemologicamente autônomo da"cultura", pertencem não ao domínio empírico, mas ao do­mínio do "ser espiritual" (N. Hartmann) - quer de umaintenção especificamente "compreensiva" (não explicativa)da hermenêutica, e assim as expressões significativas pas­sam a reconhecer-se já na autonomia e objetividade própriasdo ser cultural, já como irredutíveis manifestações históri­co-culturais do "espírito objetivo".247

De acordo com Karl Engish,248 temos que a tarefa docompreender abrange o puro "compreender de um senti­do", enquanto apreensão do conteúdo real (objetivo) deuma expressão, bem como o "compreender pelos moti­vos", enquanto apreensão dos motivos daquele que se ex-

246. Cf. Tércio Sampaio Ferraz J r. Introdução ao estudo do direito, p.242.247. Digesta, voI. 2, p. 355.248. Karl Engish. Ob. cit., p. 165 e segs.

132

prime. O escopo da compreensão, segundo Engish corres­ponde ao encontro espiritual com a individualidade que seexprime. No campo do direito, portanto, é preciso, emprimeiro lugar, distinguir entre as intenções da história dodireito e as da dogmática jurídica. Ao historiador do direi­to compete descobrir os motivos da lei determinados pelasituação histórica, enquanto ao jurista cabe definir o con­teúdo e o alcance prático da lei.

Na luta então travada no âmbito da hermenêutica jurí­dica sobre a prevalência de uma ou de outra teoria de in­terpretação: subjetivista e objetivista, cujos argumentos afavor de uma e de outra foram tão bem dispostos por Tér­cio Sampaio Ferraz Jr.,249 encontra-se subjacente uma lutapolítica entre os poderes legislativo e judiciário. Em defesado primeiro, argüi-se pela democracia, no sentido de seprivilegiar a vontade do legislador enquanto autêntico re­presentante do povo; na segunda hipótese, disputa-semaior autonomia para o poder judiciário, que procura in­terpretar objetivamente a lei no momento de sua aplica­ção, a fim de fazer justiça para o caso concreto. Conside­rando-se, porém, que o direito se concretiza por meio deum jogo de forças entre as diferentes teses apresentadascomo produto de sua interpretação, prevalecendo a demaior poder de convencimento, podemos concluir quequalquer das posições acima é válida à medida que seapresente como argumentativamente apta a produzir umresultado de consenso.

A defesa pela vontade objetiva da lei, por sua vez, abrecaminho para o método de interpretação teleológico-axio­lógico, uma vez que a visão objetiva da lei conduz o intér-

249. Cf. Tércio Sampaio Ferraz Jr. Introdução ao estudo do direito, p.242.

133

Page 83: 52842935-Margarida-Maria-Lacombe-Camargo-Hermeneutica-e-Argumentacao (2).pdf

prete para a busca do fim nela contido, mediante a investi­gação das condições sociais de seu tempo e dos valores pre­ponderantes. Afinal, trata-se de encontrar a solução maisadequada e razoável para cada caso.

134

Capítulo 3,

VIRADA PARA O POS-POSITIVISMO:A DISCUSSÃO METODOLÓGICA

ATUAL

Do escorço apresentado no capítulo anterior, podemosperceber uma tensão constante entre segurança, de umlado, e justiça, de outro. Verifica-se uma variação entreextremos radicalmente opostos durante todo o séculoXIX: de um lado a Escola da Exegese, com todo o seu ri­gor' como forma de transmitir segurança ao direito, e deoutro o Movimento para o Direito Livre, muito menos ri­goroso, cuja preocupação era principalmente com relaçãoà justiça. O despertar do século XX dá ensejo a um movi­mento crítico, que questiona as reais contribuições da dog­mática jurídica tradicional para a sociedade, ganhando for­ça a sociologia. A filosofia dos valores veio também com­por este quadro, ocupando-se da questão da justiça. Mas écom Ke1sen que a filosofia jurídica sofre uma significativaruptura. Kelsen cinge-se à idéia do resgate da objetividadee da segurança no campo do direito, propondo a constru-

135

Page 84: 52842935-Margarida-Maria-Lacombe-Camargo-Hermeneutica-e-Argumentacao (2).pdf

ção de uma teoria que excluísse quaisquer elementos denatureza metafísico-valorativa. Como vimos, pretendia-seque a atividade jurisdicional ficasse circunscrita a opera­ções lógico-dedutivas extraídas de um sistema dinâmicode normas feitas pelo Estado, capaz de gerar uma normaindividual como sentença para cada caso concreto.

No entanto, as correntes que vêem a aplicação do direi­to como atividade criadora insurgem-se contra tal meca­nismo, apresentando severas críticas ao positivismo kelse­niano. Acredita-se que o direito existe concretamente enão de forma virtual, ou melhor, que ele vale à medida queé capaz de compor interesses, desconsiderando-se a suaforça meramente potencial. O movimento crítico, que en­cerra o predomínio da dogmática jurídica tradicional,250 édenominado pós-positivismo.

Não obstante, a discussão metodológica atual confirmaa importância da segurança e da ordem. Afinal, é princípiobasilar do Estado Democrático de Direito o conhecimentoe a não-arbitrariedade de suas decisões. Um grau conside­rável de previsibilidade deverá viabilizar os investimentossugeridos pelo progresso e trazer confiança às relações so­ciais. O que se discute é a racionalidade deste novo saberconcreto que trabalha com valores, conferindo algum nívelde objetividade às decisões judiciais, de forma a submetê­las a uma instância de conhecimento e controle.

250. Podemos caracterizar a dogmática jurídica tradicional pelos seusaspectos formalista e legalista, da seguinte maneira: 1) primado da lei,enquanto regra geral, abstrata e universalmente obrigatória, que fazcom que o direito repouse sobre um campo virtual; 2) representaçãoda atividade do juiz meramente como tarefa de "conhecimento" dalei, portanto exegética, que faz com que a interpretação se dê inde­pendentemente do problema; 3) separação radical entre os conceitosde "interpretação" e "criação" do direito. Cf. José Lamego, Herme­nêutica e jurisprudência, p. 29.

136

Essa discussão, na verdade, remonta a Aristóteles,quando este procura diferençar apoditicidade (ciência) dedialética. A primeira corresponde às descobertas científi­cas e matemáticas, demonstráveis pela experiência e pelalógica, e a segunda refere-se às relações humanas compos­tas contraditoriamente, como é natural da vida em socie­dade. O direito, como produto da ética e da moral, insere­se nesse segundo plano metodológico, que procura resulta­dos por meio da razão prática. E a necessidade do uso daspalavras bem como a força da linguagem nos lançam aocampo da retórica, outrora bastante desenvolvida pelosgregos.

Com as obras de Viehweg e Perelman, retoma-se a dis­cussão, e com elas podemos reconhecer a dimensão pós­positivista de matriz tópico-retórica. Ao invés de unidadeslógicas subseqüentes umas às outras por inferências neces­sárias, é o esforço da persuasão e do convencimento queestruturam e servem de base às construções jurídico-deci­sórias. Portanto, é mais na esfera do razoável e do adequa­do, do que na esfera do puramente lógico, que a metódicaatual deve ser examinada.

O pós-positivismo, como movimento de reação ao le­galismo, abre-se, na realidade, a duas vertentes. Uma delasé desenvolvida por autores que buscam na moral uma or­dem valorativa capaz de romper os limites impostos peloordenamento jurídico positivo, honrando o compromissomaior que o Direito tem com a Justiça. Suas insuficiênciasseriam resolvidas mediante o recurso aos valores humani­tários que, apesar de circunscritos socialmente, preten­dem alcançar sua dimensão universal. Tais iniciativas am­param-se, fundamentalmente, na argumentação capaz delegitimar as posições assumidas pelo intérprete, assimcomo na idoneidade dos mecanismos que se fazem neces­sários. Poderíamos indicar aqui os nomes de Chaim Perel-

137

Page 85: 52842935-Margarida-Maria-Lacombe-Camargo-Hermeneutica-e-Argumentacao (2).pdf

man, Ronald Dworkin, Jürgen Habermas e Robert Alexy,ainda que uns assumam uma postura mais analítica (Ale­xy) do que outros (Dworkin). Em outra banda encontram­se autores que abraçam o pragmatismo, como é o caso deFriedrich Müller, Peter Haberle e Castanheira Neves, cu­jas teorias fundamentam-se antes na realidade does) intér­prete(s) e nas condições de concretude da norma jurídica,do que numa ordem de valores.

Da mesma forma podemos identificar o alcance distin­to da dimensão tópica em ambas as vertentes. Autores quemais aproximam o Direito da Moral privilegiam o uso detopoi como base para o raciocínio, isto é, idéias amplamen­te aceitas pelo auditório a que se destinam, aptas a garantira adesão dos interlocutores. Na realidade, os topoí refe­rem-se a valores sedimentados culturalmente, e que, porisso, podem ser identificados corno princípios, embora nãopositivados, a servirem de premissas que, pela força da ve­rossimilhança, são capazes de comandar o raciocínio lógi­CO.251 De outro lado, os mais afeitos à pragmática tendema privilegiar, em suas teorias, o aspecto problemático que aTópica apresenta. Neste caso o problema, ao recortar arealidade e envolver diretamente a participação de atoressociais que o formulam e resolvem, serve de base à concre­tização da interpretação/52 constituindo, inclusive, a es­trutura própria da norma jurídica, como o faz FriedrichMüller através do "âmbito da norma" .253

Veremos, a seguir, alguns autores que inauguram essaposição crítica, pós-positivista, buscando na tópica aristo-

251. Nesse sentido vale conferir Margarida Maria Lacombe Camargo,"O Direito e sua dimensão tópica".252. Cf. Peter Hiiberle, A Constituição aberta de intérpretes.253. Cf. Friedrich Müller. Métodos de trabalho do direito constitucio­nal.

138

télica uma força teórica apta a nos livrar das amarras dopositivismo de base cientificista e lançar novas luzes ao de-

bate metodológico.

3.1 A contribuição de Theodor Viehweg: o uso da tópica

no direito

A tópica tornou-se referência obrigatória na filosofiado direito da segunda metade do século XX. Poderíamosafirmar, inclusive, que com a retornada da tópica aristoté­lica no direito moderno, por meio de Viehweg,254 a partirda década de 50, verificou-se um deslocamento radical doeixo da discussão metodológica, até então fixado sobre oformalismo sistemático de índole lógico-dedutivo em querepousava o positivismo jurídico. A repercussão da teoriaou da filosofia dos valores no direito foi de tal ordem, quea parte da filosofia preocupada com o método jurídico tevede voltar suas atenções para uma nova forma de olhar odireito, adotando outros mecanismos de fundamentaçãoou de construção do raciocínio, a fim de reconhecer o seuenvolvimento direto com valores e que ainda desse conta

I d I - . . 255da necessidade de contro e as re açoes SOClaIS.

O método sistemático, caracterizado pelo seu herme­tismo, e que marcou o positivismo filosófico ~os sécu~osanteriores,256 não correspondia mais às perplexIdades e m-

254. Tópica e Jurisprudência é considerada a principal obra de Vieh­weg, onde o autor tenta provar a aplicação da tópica aristotélica nodireito a partir da análise feita da jurisprudência romana.255. S~bre a utilização da tópica na jurisprudência brasileira vale con­sultar o trabalho de Paulo Roberto Soares Mendonça, intitulado Atópica e o Supremo Tribunal Federal.256. Ver Theodor Viehweg. Tópica y filosofía dei derecho.

139

Page 86: 52842935-Margarida-Maria-Lacombe-Camargo-Hermeneutica-e-Argumentacao (2).pdf

seguranças causadas por um mundo de novos e variadosvalores, notadamente quando as atrocidades do nazismo,cometidas sob a proteção da lei, mostraram que a lei nemsempre é justa. Daí a atuação do Tribunal de Nuremberg,no imediato pós-guerra, ao decidir conforme princípios ge­rais de moral universal. De acordo com Perelman,

Os fatos que sucederam na Alemanha, depois de 1933,demonstraram que é impossível identificar o direito com alei, pois há princípios que, mesmo não sendo objeto de umalegislação expressa, impõem-se a todos aqueles para quem odireito é a expressão não só da vontade do legislador, masdos valores que este tem por missão promover, dentre osquais figura em primeiro plano a justiça.257

Necessário seria então construir um novo modelo delegitimação para as decisões judiciais, o que só se tornariapossível uma vez reconhecida a natureza dialética e argu­mentativa do direito. A lógica formal, de feição cartesiana,não dava mais resposta satisfatória à complexidade dasquestões jurídicas. Daí verificarmos, na filosofia do direitodo século XX, toda uma tendência em se resgatar a antigaarte retórica dos gregos e a prática jurídica dos romanos,para construir um modelo de fundamentação mais condi-

Com base na obra de Christian Wolff, Filosofia da prática univer­sal, da primeira metade do séc. XVIII, e sua forte influência no enci­clopedismo, Viehweg traduz a idéia de sistema como "uma construçãode conceitos baseada em conceitos fundamentais (princípios). Porconseguinte, fundamentar significava, depois de um número finito depassos, chegar a um fim, quer dizer, aos direitos fundamentais, sus­tentados sem o apoio da fundamentação, porque evidentes." Viehwegcritica esse modelo finito de sistema ou modelo de argumentaçãoaxiomático-dedutivo, pelo exclusivismo que o mesmo provoca ao iso­lar-se de outros contextos. Cf. p. 150 e segs.257. Perelman. Lógica jurídica, p. 95.

140

zente à legitimação judicial, visando a validez e a eficáciade suas decisões. Essa dimensão prática ensejou o aprofun­damento da reflexão sobre a atividade discursiva, do pontode vista ético. 258

Um significado especial para o direito tem a obra deTheodor Viehweg. O autor resgata da antigüidade clássica

..0 modelo jurídico utilizado pelos romanos, especialmenteo dos pretores e jurisconsultos, atribuindo-lhe uma dimen­são bastante atual. Sua tese é a de que a forma de pensartópico-problemática da jurisprudência romana, que cons­truía sua justiça a partir de decisões concretas, para entãoextrair princípios que lhe servissem de fundamento de va­lidade, não se perdeu, apesar de toda ênfase dada à idéiade sistema pela dogmática jurídica dos modernos.

No prefácio à 4a edição do seu livro Tópica e Jurispru­dência, Viehweg faz referência a Pere1man, Recaséns Si­ches e Stone, autores contemporâneos seus, com os quaiscompartilha o mesmo tipo de preocupação. Entretanto,nesta oportunidade reconhece que a grande difusão da re-

258. Além da grande contribuição dos filósofos alemães Karl OttoApel e Jürgem Habermas, voltada para a ética discursiva, encontra­mos os estudos de Robert Alexy, mais especificamente sobre a lingua­gem moral e sua dimensão argumentativa. Note-se que este autor nãoatribui um sentido tópico nem retórico a suas especulações, preferin­do ao contrário, seguir regras analíticas de linguagem, bem como opa;adigma processual. Para Alexy, por exemplo, a argumenta~ão éconcebida como uma atividade lingüística. Sua proposta é anahsar aestrutura lógica da fundamentação do discurso jurídico visto como umcaso especial do discurso prático geral. Na introdução de seu livroTeoria da argumentação jurídica Alexy critica a tópica pela impreci­são e insuficiência teórica, uma vez que apresenta a discussão comoúnica instância de controle para a interpretação. Por isso, pergunta:Onde estariam as regras capazes de lhe conferir racionalidade? Cf.Teoría de la argumentación jurídica - La teoria del discurso racionalcomo teoria da la fundamentación jurídica, p. 39 a 43.

141

Page 87: 52842935-Margarida-Maria-Lacombe-Camargo-Hermeneutica-e-Argumentacao (2).pdf

tórica dá-se devido à necessidade de se construir uma teo­ria satisfatória para o direito, haja vista a incapacidade deum sistema axiomático-dedutivo fornecer fundamentosaceitáveis à prática judicial. Mas, como o jurista não seequipara a um perito da argumentação, há de ser criadauma teoria geral e retórica da argumentação completadacom procedimentos da tópica formal, sustenta Viehweg.Portanto, o autor indica uma releitura da tópica aristotéli­ca, pois, embora saibamos que o pensamento tópico distin­gue-se do lógico pelo atributo da sistematicidade, confor­me a distinção presentada entre dialética - raciocínio quetem por base opiniões aceitas, e apodexis - raciocínio ba­seado em proposições primeiras ou verdadeiras o filósofoe:tagirita funda sua distinção sob a índole das p~emissas, enao sob o ponto de vista formal, isto é, de construção deum raciocínio lógico. Por isso, Viehweg chama a atençãopara o fato de que sob o ponto de vista formal a distinçãonão se firma, uma vez que ambos podem apresentar-secomo formalmente corretos. A diferença estaria no fato deque a tópica parte do problema em busca de premissasenquanto o raciocínio do tipo sistemático apóia-se em pre~m~ssas já ~a~as: "A tópica mostra como se acham as pre­mIssas; a 10gIca recebe-as e as elabora. "259

A metódica que o autor faz vigorar, toda ela voltadapara o campo do jurídico, desfruta de uma dimensão retó­rica na medida em que assume a natureza dialética do dis­curso. Nesse sentido, preconiza:

Pode-se intentar esboçar um correspondente modeloretó.rico de argumentação concebendo cada argumentaçãoestntamente como discurso fundante e o discurso comouma atividade comunicativa que contém deveres comunica-

259. Viehweg. Tópica e Jurisprudência, p. 40.

142

tivos. Possivelmente, a perspectiva retórica é adequada parat:;stabelecer assim uma vinculação razoável entre a Lógica e aEtica e, com isso, reduzir nossas dificuldades básicas. 26o

A argumentação dialética moderna, assim denominadapor Viehweg, preocupa-se em penetrar compreensiva­mente o contexto da realidade. A exemplo dos romanos,não é possível construir a jurisprudência a partir de conse­qüências inferidas de regras ou princípios previamente es­tabelecidos, mas somente a partir dos problemas que nossão apresentados. Assim, é na tópica aristotélica, com todoo seu enfoque dialético, que encontraremos condiçõespara construir um modelo jurídico metodológico capaz dedissolver os sistemas de pensamento prefixados e pô-losnovamente em movimento. Viehweg defende a argumen­tação dialética em vez da analítica, pela riqueza de idéias esoluções que a tensão estabelecida entre teses e antítesesproporciona à multiformidade do comportamento social.Conforme o próprio reconhece, tal tipo de pensamentopromove a invenção, mostrando-se adequado a explica­ções mais complexas, apesar de dificultar a tomada de de­cisão. E com relação à compreensibilidade própria das si­tuações humanas, sob o viés da sua historicidade, Viehwegacredita numa concepção totalizante e universal. A respei­to, afirma: "A decisão tem de ser tomada a partir de umainterpretação universal da totalidade do acontecer, ouseja, de uma história compreendida. "261

260. Viehweg. Tópica y filosofía deZ derecho, p. 160.E mais: "Se fundamentar é necessariamente argumentar e contra­

argumentar, então é uma atividade que só é possível se se satisfazemdeterminados deveres de comunicação. A perspectiva retórica conduzà questão acerca do comportamento reciprocamente correto dos fa­lantes." Idem, p. 169.261. Idem, p. 159.

143

Page 88: 52842935-Margarida-Maria-Lacombe-Camargo-Hermeneutica-e-Argumentacao (2).pdf

A linha tópico-retórica, como podemos identificar a par­tir das contribuições teóricas de Perelman e Viehweg,262visa, antes de mais nada, estudar ou dar maior ênfase aosmecanismos persuasivos que orientam e dão forma ao dis­curso jurídico, voltado para o acordo capaz de dar suporte elegitimidade à decisão da autoridade judiciária.263

A contribuição de Theodor Viehweg foi das mais signi­ficativas. Voltado para a prática dos antigos no seu labor deinvestigar a estrutura própria do direito, verifica, logo deinício, que a jurisprudência romana fundamentava-se naprática discursiva, cujo pólo principal era o problema queo caso concreto demandava. Era o tipo de pensamento quenão se sujeitava, ou melhor, não se limitava,264 à pureza do

262. Ambos os autores elaboram, nos anos 50, seus primeiros estudoscríticos ao pensamento puramente axiomático. Viehweg apresenta aprimeira edição do livro Tópica e Jurisprudência em 1953, cuja pri­meira versão datava de 1950; e Perelman escreve a Nova retórica em1956 e o Tratado da argumentação com O. Tyteca, em 1958. Um eoutro terminam por se aproximar tanto da tópica quanto da retórica.263. Em seus Apontamentos sobre uma teoria retórica da argumenta­ção jurídica, quando se aprofunda na questão da teoria retórica comouma teoria do discurso fundante, Viehweg, na qualidade de professor,juiz e testemunho de uma época, ensina que "O discurso fundantesignifica formular asseverações que estão submetidas a um dever dedefesa e que só se mantêm quando podem satisfazer este dever dedefesa. Portanto, o diálogo entre o defensor e o oponente deve serinvestigado tendo em conta as obrigações e suas diferenciações nelecontidas. O ataque, a defesa e o pedido de explicação devem ser refle­tidos como obrigações; isto parece ser especialmente urgente porquenossa realidade científica depende, em uma medida insuperável, dasasseverações confiáveis dos demais. Dada a complexidade do mundo,a brevidade de nossa vida e a limitação de nossas capacidades, a obri­gação de não distorcer nossa realidade com asseverações infundadastem um interesse geral." E assim traduz a concepção dialética de suateoria. Tópica y filosofia del derecho, p. 169.264. Chamamos a atenção para isso, uma vez que alguns, como Cana-

144

pensamento lógico-dedutivo, subordinando-se também àsquestões de ordem prática.265 Contudo, a preocupação deViehweg não é com os valores em si ou com os significadosatribuíveis ao problema, mas sim com os mecanismos e asformas de sua solução. Naturalmente, uma solução queguarde razoabilidade, ou, tal como para os romanos, umasolução prudente.

Em síntese, Tércio Sampaio Ferraz Jr. apresenta o pen­samento de Viehweg no prefácio que escreve à traduçãobrasileira do livro Tópica e Jurisprudência, da seguinte ma­neira:

A tópica não é propriamente um método, mas um estilo.Isto é, não é um conjunto de princípios de avaliação da evi-

ris, atribuem a Viehweg uma verdadeira frente de oposição ao forma­lismo jurídico. Ainda que o trabalho de Viehweg tenha sido não rara­mente utilizado para a defesa de uma postura pós-positivista, não te­mos certeza de ser esta a intenção primeira ou primordial do autor.Notamos, no prefácio que escreve à 23 edição de Tópica e Jurisprudên­cia, que o mesmo não chega a negar toda ou qualquer conexão com opensamento lógico-dedutivo; tenta apenas mostrar uma outra dimen­são, talvez complementar, de método ou de "estilo".265. Um outro fato que deve ser apontado desde já é a crítica, ou aleitura simplória, em geral feita sobre o trabalho de Viehweg, no sen­tido de vê-lo circunscrito ao direito civil. Apesar de Viehweg ter-selimitado ao estudo da tópica neste ramo do direito, em torno do qualse concentrava a atividade dos pretores romanos, seu trabalho acabourepercutindo em outras áreas, de acordo com prognóstico feito pelopróprio autor na sua introdução, quando escreve que "a tópica é en­contrada no ius civile, no mos italicus bem como na civilística atual epresumivelmente também em outros campos". (Grifo nosso.) Haja vis­ta, inclusive, toda a análise hermenêutico-concretizadora que atinge odireito constitucional contemporâneo, tal como retratam os trabalhosde Friedrich Müller, Peter Haberle e Gomes Canotilho. Confira-se,também, Ernst-Wolfgang Bockenforde, Escritos sobre Derechos Pun­damentales, p. 19 e ss.

145

Page 89: 52842935-Margarida-Maria-Lacombe-Camargo-Hermeneutica-e-Argumentacao (2).pdf

dência, cânones para julgar a adequação de explicações pro­postas, critérios para selecionar hipóteses, mas um modo depensar por problemas, a partir deles e em direção deles.Assim, num campo teórico como o jurídico, pensar topica­mente significa manter princípios, conceitos, postulados,com um caráter problemático, na medida em que jamaisperdem sua qualidade de tentativa. Como tentativa, as figu­ras doutrinárias do Direito são abertas, delimitadas semmaior rigor lógico, assumindo significações em função dosproblemas a resolver, constituindo verdadeiras "fórmulas deprocura" de solução de conflito. 266

Viehweg inicia seu livro fazendo alusão a Vico, histo­riador e filósofo italiano do início do século XVIII. O mé­todo científico antigo, apresentado por Vico, e que foratransmitido aos romanos por Cícero (44 a. C.), tem comobase a tópica aristotélica; e o método novo, que segue omodelo cartesiano, é chamado de crítico. Este último temcomo exemplo a geometria, e apresenta como ponto de

266. Tércio SampaioFerraz Jr. Prefácio à tradução brasileira do livrode Viehweg, Tópica e Jurisprudência, p. 3.

A divulgação da tópica, no Brasil, deve-se, em grande parte, aotrabalho de Tércio Sampaio Ferraz Jr., que, principalmente com olivro Introdução ao estudo do direito, teve o mérito de trazer a tópicapara o campo do jurídico, sem, no entanto, descorar-se ou invalidar aessência dogmática relativa ao próprio direito.

Em A Ciência do Direito, Tércio afirma que a zetética não é anta­gônica à "dogmática"; ao contrário, apresentam-se, muitas vezes,como complementares. No direito, por exemplo, o pensamento zeté­tico encontra-se presente na fundamentação das decisões que se pre­tendem legítimas. "As questões jurídicas não se reduzem às 'dogmáti­cas', à medida que as opiniões postas fora de dúvida - os dogmas­podem ser submetidas a um processo de questionamento, mediante oqual se exige uma fundamentação e uma justificação delas, procuran­do-se, através do estabelecimento de novas conexões, facilitar a orien­tação da ação." A Ciência do Direito, p. 46.

146

partida um primum verum, inquestionável, capaz de cons­truir longas cadeias dedutivas, passíveis de demonstração.Com a tópica, é diferente, diz Viehweg, pois o ponto departida é o sensus communis, capaz de manipular o verossí­mil pela confrontação de pontos de vista opostos. Apesarda vantagem que possa ser obtida da precisão do método,conforme o pensamento cartesiano, Vico acredita na pre­valência de suas desvantagens, quais sejam: a superficiali­dade, a ausência de fantasia e criatividade, o empobreci­mento da memória e da linguagem, e a falta de amadureci­mento do juízo. Resumindo, diria Vico, era a depravaçãodo humano. Em contrapartida, a tópica e a retórica pro­porcionariam sabedoria, despertariam a fantasia e a me­mória, além de ensinar como considerarmos um estado decoisas sob ângulos diversos, isto é, como descobrir a tramade pontos de vista que engendram um problema.

A hipótese que consta de Tópica e Jurisprudência é aque se segue:

Examinaremos, por conseguinte, se a jurisprudência de­senvolvida desde a Antigüidade romana corresponde, na suaestrutura, à tópica. Caso isto se confirme, indagaremos emseguida que repercussão deve ter sobre a jurisprudência amudança de estrutura assinalada por Vico.267

Nos dois capítulos seguintes, talvez os mais importan­tes de seu livro, Viehweg se concentra no estudo da tópicapropriamente dita, tomando por base Aristóteles e Cícero.Aristóteles atribui como título de uma das partes do Orga­non o termo tópicos, em referência à antiga ars disputatio­nes dos retóricos e sofistas, tão combatida por Sócrates ePlatão.268 Insere a tópica no campo da dialética, ou seja, da

267. Viehweg. Tópica e JurisprudênCIa, p. Z1.268. Aristóteles inicia a sua Tópica com os seguintes dizeres: "Nosso

147

Page 90: 52842935-Margarida-Maria-Lacombe-Camargo-Hermeneutica-e-Argumentacao (2).pdf

disputa e dos opostos, em contraposição ao gênero apodí­tico, representado pela ordem das verdades.269 Propõe-se aencontrar um método de raciocínio formulado a partir deopiniões tomadas como proposições e montar, daí, umacadeia discursiva coerente (sem contradições), conside­rando todos os problemas possíveis de serem apresenta­dos. Assim expõe Viehweg:

Colocado, portanto, um problema qualquer, trata-se en­tão de raciocinar corretamente ex endoxon (isto é, partindode opiniões que parecem adequadas) para atacar ou paradefender. 270

Logo, a tópica tem como objeto os raciocínios que de­rivam de premissas que parecem verdadeiras, porque suabase encontra-se em opiniões amplamente aceitas. Trata­se de opiniões que, apesar de gozarem simplesmente do

tratado se propõe encontrar um método de investigação graças ao qualpossamos raciocinar, partindo de opiniões geralmente aceitas, sobrequalquer problema que nos seja proposto, e sejamos também capazes,quando replicamos a um argumento, de evitar dizer alguma coisa quenos cause embaraço. Em primeiro lugar, pois, devemos explicar o queé o raciocínio e quais são as suas variedades, a fim de entender oraciocínio dialético: pois tal é o objeto de nossa pesquisa no tratadoque temos diante de nós." Tópicos, p. 5.269. É clássica a divisão aristotélica entre apoditicidade e dialética,até hoje tida como referência para a teoria do conhecimento. Umaapodexis existe quando se obtém um raciocínio partindo-se de propo­sições primeiras tidas como verdadeiras, enquanto o raciocínio dialé­tico se forma a partir de opiniões aceitas. O primeiro sujeita-se àdemonstração e o segundo, ao convencimento. A índole das premissasé que diferencia o tipo de raciocínio. Segundo Viehweg, Aristótelesdefine raciocínios dialéticos como aqueles que têm como premissasopiniões acreditadas e verossímeis, que devem contar com aaceitaçãode todos ou da maioria (endoxa).270. Tópica e Jurisprudência, p. 24.

148

reconhecimento, servem de premissas, na medida em quefuncionam de base para a compreensão ou que fornecemelementos para uma interpretação plausível.

Topoi são, portanto, para Aristóteles, pontos de vistautilizáveis e aceitáveis em toda parte, que se empregam afavor ou contra o que é conforme a opinião aceita e quepodem conduzir à verdade. [... ] Os topoi, enumerados deum modo mais ou menos completo, são os que nos podemajudar, em relação a cada problema, a obter raciocínios dia­léticos.271

No entanto, coube a Cícero o mérito de ter divulgadoa tópica no mundo medieval, por meio de seu livro De In­ventione. Cícero trabalhou a tópica sobre o direito, preten­dendo dar-lhe utilidade prática. Cícero ordena os topoi ouloei, que significam "lugar comum", em forma de catálogosou repertórios, com vistas ao seu melhor aproveitamentoprático. Agrupou-os em função de termos técnicos que seligam a determinado assunto, provendo-lhes a qualidadede topoi científicos; e outros, mais gerais ou "atécnicos",que servem a qualquer tipo de problema, como qualifica­ção de gênero, espécie, quantidade, semelhança, diferen­ça, lugar, etc. Viehweg também considera a utilidade decatálogos de topoi, que denomina de tópica de segundograu.

O capítulo terceiro de Tópica e Jurisprudência é inau­gurado com a afirmativa de que a tópica constitui umatechne do pensamento orientada para o problema, confor­me haveria assinalado Aristóteles em várias ocasiões. Oproblema constitui-se no centro da órbita em que giram osraciocínios, servindo-lhes de atração e guia. O problema

271. Viehweg, Tópica e Jurisprudência, p. 26 e 27.

149

Page 91: 52842935-Margarida-Maria-Lacombe-Camargo-Hermeneutica-e-Argumentacao (2).pdf

possibilitaria, assim, a coesão dos argumentos, processadospela inventio. 272 O problema, por si, comporta mais deuma resposta; mas, na verdade, espera-se, para ele, umaúnica solução: aquela que lhe for mais adequada. A tópicapretenderia, justamente, fornecer indicações de como de­vemos nos comportar em tais situações, a fim de não ficar­mos presos, sem saída.273 Seria, portanto, a techne do pen­samento orientado para o problema, e que explora a in­venção.

Como todo problema provoca um jogo de suscitações,o pensamento sistemático, por ser fechado, não lhe é sufi­ciente. O pensamento problemático mostra-se assistemá­tico, porque esquivo a qualquer tipo de vinculação primei­ra, isto é, não parte de uma ordem dada. A idéia é que, separtirmos de um sistema, considerado como um conjuntode deduções previamente dado, a partir do qual se inferemtodas as respostas, corremos o risco de excluir o problemasobre o qual conjecturamos de algum outro sistema quepossa ser construído, prejudicando, assim, sua solução.Para a busca da resposta mais adequada, faz-se mister ouso da inventio, que procura as várias interligações possí­veis daquela questão no mundo compreendido, capaz delhe conferir um significado. Mas, se o acento recai sobre oproblema e não sobre o sistema de normas que nos é dado,podemos buscar outros sistemas cabíveis que nos auxiliemna resposta. O problema busca livremente o seu própriosistema. Viehweg acredita que o problema procede de umnexo de compreensão' já existente, mas que não sabemos,de início, se é um sistema lógico, como um conjunto de

272. "Todo problema objetivo e concreto provoca claramente umjogo de suscitações, que se denomina tópica ou arte da invenção",anota Viehweg. Tópica e Jurisprudência, p. 33.273. Cf. Viehweg. Tópica e Jurisprudência, p. 33.

150

deduções, ou algo distinto; ou, ainda, se se trata de algumacoisa que pode ser vista de forma mais abrangente. Segun­do Viehweg, o modo de pensar aporético,274 ou por proble­mas, tem certeza de seu sistema, mesmo que não chegue ater dele uma concepção prévia. A tópica admite sempre ainclusão do problema em uma ordem que esteja por serdeterminada. 275 Fato é que a ênfase no problema operauma seleção de sistemas.

Apesar do conteúdo assistemático ou fragmentário datópica, Viehweg se esforça por não lhe excluir totalmenteum parâmetro de sistema. Para tanto, apruma sua teoriapara a diferença existente entre zetética e dogmática276

,

274. A aporia é-nos apresentada no livro Tópica e Jurisprudênciacomo uma questão ligada à dúvida (dubitatio) , uma vez que a situaçãode problematicidade se apresenta como permanente. A ausência decaminho próprio e conhecido estimula, por sua vez, a criação do intér­prete. Cf. Viehweg. Tópica e Jurisprudência, p. 33.275. Idem, p. 35.

A respeito da idéia de ordem subentendida na concepção do mun­do e das coisas, ver o livro de Nelson Saldanha, Ordem e hermenêuti­ca. Editora Renovar, Rio de Janeiro, 1992.276. Em linhas gerais, podemos distinguir dogmática de zetética daseguinte forma: a investigação zetética é aquela que se abre continua­mente para o questionamento de seus objetos em todas as direções,sendo que a sua falta de compromisso com a solução de conflitostorna-a infinita. Seria o caso da filosofia, da sociologia, da psicologia eda antropologia, por exemplo. Como disciplina dogmática temos oexemplo típico do direito. Conforme explica Tércio Sampaio FerrazJr., quem, a nosso ver, melhor traduz essa definição: "Uma disciplinapode ser definida como dogmática na medida em que considera certaspremissas, em si e por si arbitrárias (isto é, resultantes de uma deci­são), como vinculantes para o estudo, renunciando-se, assim, ao pos­tulado da pesquisa independente. Ao contrário das disciplinas zetéti­cas cujas questões são infinitas, as dogmáticas tratam de questõesfinitas. Por isso podemos dizer que elas são regidas pelo que chamare­mos de princípio da proibição da negação, isto é, princípio da não-ne-

151

Page 92: 52842935-Margarida-Maria-Lacombe-Camargo-Hermeneutica-e-Argumentacao (2).pdf

apoiando-se numa definição de dogmática apta a adequar aidéia de sistema à tópica. Concordamos com José Lamegoquando este reconhece na tópica não uma ameaça à dog­mática, mas um elemento potencializador. Conforme es­creve,

o juiz não aplica automaticamente e na sua integralida­de a pauta geral à situação concreta "sacrifica" algo daquelaem virtude, precisamente, do caráter "concreto" da situa­ção. Mas este afastar-se da universalidade da norma não sig­nifica uma "imperfeição", um déficit na realização do con­teúdo da pauta de regulação, mas precisamente uma poten­ciação das possibilidades nela contidas, fazendo-a corres­ponder às exigências do caso. 277 (Grifo nosso)

Por mais paradoxal que possa parecer, Lamego atribuià tópica uma maior capacidade de explorar o sistema, con­siderado como uma pauta de regulação previamente dada.Vale notar, no entanto, que, de acordo com o próprioViehweg, a vinculação existente quando aceitamos um ca­tálogo de topoi é sempre limitada, porque a discussão tópi­ca não se processa de forma linear, admitindo interrupçõesconstantesY8 E como isso se dá?, pergunta Viehweg, aoque responde:

Quando se depara, onde quer que seja, com um proble­ma, pode-se naturalmente proceder de um modo mais sim­ples, tomando-se, através de tentativas, pontos de vista maisou menos casuais, escolhidos arbitrariamente. Buscam-sedeste modo premissas que sejam objetivamente adequadas

gação dos pontos de partida de séries argumentativas, ou ainda princí­pio da inegabilidade dos pontos de partida (Luhmann, 1974)." Intro­dução ao estudo do direito, 1991, p. 48-9.277. José Lamego. Hermenêutica e jurisprudência, p. 174.278. Viehweg. T6pica e Jurisprudência, p. 41.

152

e fecundas e que nos possam levar a conseqüências que nosiluminem. 279

Daí a conclusão de Cícero de que a tópica é um proce­dimento em busca de premissas.280 A função dos topoi éservir a uma discussão de problemas, intervindo em cará­ter auxiliar. Os topoi ganham sentido a partir do problema,na medida em que, à vista de cada um, eles podem apare­cer como adequados ou inadequados, conforme um enten­dimento que nunca é absolutamente imutável.

Para a compreensão da tópica, Viehweg apresenta ain­da as seguintes classificações: 1) Quanto à organização dostopoi: tópica de primeiro grau e tópica de segundo grau; 2)Quanto à qualidade: gerais e especiais. Topos geral é o queserve para qualquer tipo de problema; e especial, aqueleque corresponde a determinado ramo ou círculo de pro­blemas. Tópica de primeiro grau é aquela espontânea, queaparece no nosso dia-a-dia, quando buscamos justificaçãopara nossas ações; e tópica de segundo grau é a que operacom catálogos ou repertórios de topoi arrumados segundoa especificidade do problema e que servem mais à áreatécnica. Os catálogos, por sua vez, são constituídos de co­leções de pontos de vista, reunidos de forma assistemática,a despeito de qualquer limite e fáceis de serem atualiza­dos.

Sob a ótica da hermenêutica, acreditamos que a tópicaé de grande serventia. Não se limita a um sistema em queas interpretações aparecem como resultado de uma opera­ção puramente lógica; ao contrário, ela vem possibilitar umsignificado mais abrangente do problema, na medida emque se admite um sem-fim de conexões. As várias e possí-

279. Idem, p. 36.280. Idem, p. 39.

153

Page 93: 52842935-Margarida-Maria-Lacombe-Camargo-Hermeneutica-e-Argumentacao (2).pdf

veis dimensões do problema são levadas em consideração,podendo ainda correlacionarem-se das mais diversas ma­neiras. Tudo para provocar um entendimento mais amplo,profundo e favorável de questões complexas, como as quetangem a justiça. Podemos dizer que a tópica permite queos diversos focos de luz que possam iluminar o problemaincidam sobre ele.

A tópica assume uma estrutura dialógica que despontasobre uma base retórico-argumentativa de feição intersub­jetiva. Suas premissas legitimam-se na aceitação do inter­locutor, da mesma forma que o comportamento dos atoresé orientado pela previsibilidade de oposição do adversário.Para a tomada de decisão, é necessário o consenso; e o queem disputa fica provado, em virtude de aceitação, passa aser admissível como premissa para outros raciocínios deordem dialética. Diante da infinidade do raciocínio tópico,permanece, então, o debate como principal instância decontrole. A abertura para o diálogo sujeito à crítica traztransparência e legitimidade às deCisões não apenas por­que suas premissas gozam de respeitabilidade, mas tam­bém pelo poder de persuasão de suas teses, à medida queelas conseguem sobreviver ao ataque das críticas e erradi­car progressivamente equivocidades. Não existem, pois,respostas corretas ou verdadeiras, mas argumentos que seimpõem pela força do convencimento.281

O argumento de autoridade, que corresponde à doutri­na e à jurisprudência no nosso direito, e que traduzem umaopinião reconhecida, é um fator também a ser consideradopela tópica, uma vez que oferece premissas respeitáveis efortes, em condições de fundamentar uma cadeia de racio

281. A dimensão retórica que explora a argumentação no âmbito datópica não é desenvolvida por Viehweg, mas pode ser encontrada emPerelman.

154

cínio válido. Para a civilística romana, que serve como basede estudo a Viehweg, a opinião dos jurisconsultos, porexemplo, é importante pela credibilidade que desfrutam.Sobre a força do saber dos mais sábios e eruditos, bemcomo sobre a força dos argumentos que apresentam, Vieh­weg considera: "Com a citação de um nome faz-se referên­cia a um complexo de experiências e de conhecimentoshumanos reconhecidos, que não contém só uma vagacrença, mas a garantia de um saber no sentido mais exi­gente."282

Somadas essas considerações, o autor encerra o ter­ceiro capítulo do livro com uma crítica ao raciocínio sis­temático:

Quando se logra estabelecer um sistema dedutivo, a quetoda ciência, do ponto de vista lógico, deve aspirar, a tópicatem de ser abandonada. [... ] O sistema assume a direção.Decide por si só sobre o sentido de cada questão. Suas pro­posições são demonstráveis de modo inteiramente lógico erigoroso, quer dizer, "verdadeiras" ou "falsas", no sentido deuma lógica bivalente. Valores como "defensável", "ainda de­fensável", "dificilmente defensável", "indefensável", etc.carecem aqui de sentido. Construído a partir de si próprio,o sistema de proposições deve ser compreensível por si só,quer dizer, a partir da explicação lógica de suas proposiçõesnucleares. 283

Com isso talvez fique claro o papel da tópica no atualmovimento crítico pós-positivista, que pretende dar maior

282. Tópica e Jurisprudência, p. 42-3.Com relação à autoridade dos mais sábios, convém lembrar as três

fontes de legitimidade trabalhadas por Max Weber, numa estruturade dominação: a tradicional, a legal e a carismática. Ciência e política:duas vocações, p. 57.283. Tópica e Jurisprudência, p. 43-4.

155

Page 94: 52842935-Margarida-Maria-Lacombe-Camargo-Hermeneutica-e-Argumentacao (2).pdf

validade à concretização do direito e à solução do proble­ma em função dos valores que o ensejam, do que um pre­tenso sistema de valores válido por si só.

Pesquisando o ius civile romano, Viehweg retira exem­plos do uso da tópica no direito. Ao jurisconsulto romanoera apresentado um problema para o qual solicitava-se-Iheum parecer. Sua tarefa era, sob um senso da eqüidade, en­contrar argumentos para soluções prudentes. Viehweg re­conhece na jurisprudência dos romanos o desenvolvimen­to de uma techne bastante avançada,284 a pressupor umnexo que não se pretende demonstrar, mas dentro do qual

. ,. 285 E 'o raClOClnlO se move. sta e justamente a postura carac-terística da tópica, sendo que a tal ponto os romanos nãoteriam chegado senão pela arte da dialética, vista comoarte de disputar.

O direito romano, antes da elaboração do Corpus IurisCivilis, encontrava-se sob a forma de editos ou responsasreunidos sem nenhum propósito sistemático, em orde~descuidada. Os jurisconsultos romanos eram reconhecidoscomo verdadeiras autoridades, cujas opiniões mostravam­se suficientes para embasar outras decisões tomadas poranalogia. O prestígio técnico dado pelo conhecimento é o

284. Aristótele,s estabelece a distinção entre techne e episteme. Episte­me, segundo a Etica a Nicômaco (6, 3, 1.l39-b, 18 e seg.), é um hábitode de~on~trar a partir das causas necessárias e últimas, e, portanto,~ma cle~c~a. Techne, pe~a mesma obra citada (6,4, 1.l40-a, 6 e seg.),e um h,ablto d: produzIr por reflexão razoável. No latim, em geral,techne e traduzIda como ars, e episteme como disciplina.285. Podemos vincular esta construção tópica, da qual nos fala Vieh­weg, às nossas considerações sobre hermenêutica vistas anteriormen­te. Este "nexo irrefletido" corresponderia à idéia de pré-compreen­são, enquanto o raciocínio que se move se relacionaria à tarefa media­dora da interpretação, por sua vez firmadora e reveladora da com­preensão.

156

topos da decisão, e os argumentos são princípios que po­dem servir de fundamento para outras decisões. 286

Viehweg vê uma nova posição do jurista, a quem nãocabe mais entender o direito como algo que se limite aaceitar, mas sim como algo que ele constrói de maneiraresponsável. Logo, acredita ser preciso desenvolver um es­tilo especial de busca de premissas que, com o apoio empontos de vista amplamente aceitos, seja inventivo, me­nosprezando reduções lógicas que nos levem a generaliza­ções incapazes de entender e muito menos de resolver osproblemas adequadamente.

No capítulo intitulado Tópica e Axiomática, Viehwegluta contra o espírito científico formalista que pretendeconceber a Jurisprudência como ciência. O argumentoapresentado no livro cresce à medida que o autor verifica apresença necessária da tópica no sistema jurídico, aindaque outros queiram excluí-la ou ignorá-la. Primeiro, dizele, convém notar a dificuldade de se apreender com exa­tidão, no direito, como supõe a lógica dedutiva, os princí­pios fundamentais exigidos como nucleares a qualquer sis­tema:

No estado atual da investigação dos fundamentos daCiência do Direito não se pode dizer com suficiente certezaonde se encontram, em nosso ordenamento jurídico, os con-

286. A base analógica do método jurídico que, aliás, é a conclusão deCastanheira Neves, configurava a base do direito romano, à semelhan­ça da common law do direito inglês, conforme anota José Lamego: "Noentendimento primitivo da teoria da common law, o tipo de racionali­dade da argumentação jurídica é uma racionalidade que tem que vercom o particular, é inseparável da peculiaridade das situações subjudice, a resolver pelo Direito. O pensamento jurídico não seria assimindutivo nem dedutivo, mas analógico, argumentando de um particu­lar a outro particular." Hermenêutica e Jurisprudência, p. 36.

157

Page 95: 52842935-Margarida-Maria-Lacombe-Camargo-Hermeneutica-e-Argumentacao (2).pdf

juntos de fundamentos de maior amplitude e que grau deperfeição alcançaram. A rigor, há que se conformar comconjecturas, que usualmente se referem à parte geral doDireito ...287

E com relação ao fator unidade da ordem jurídica, tam­bém parece complicada a pressuposição de inexistência decontradições. A harmonia desejada pela unidade só é pos­sível com a atividade hermenêutica, que também é tópica.Segundo Viehweg, a tarefa da interpretação é criar umaconcordância aceitável entre o problema e a ordem jurídi­ca. Há que se estabelecer conexões por meio de interpre­tações aceitáveis e adequadas. Por outro lado, para a ma­nutenção do ordenamento jurídico diante das transforma­ções impostas, é salutar uma interpretação adequada quemodifique o sistema por meio de mecanismos como os daextensão, redução, comparação e síntese.288

Outro ponto de irrupção da tópica no direito, de acor­do com Viehweg, relaciona-se com o uso da linguagem na­tural:

Hoje está claramente estabelecido que a linguagem uni­fica uma pletora quase ilimitada de horizontes de entendi­mento, que variam continuamente. A linguagem apreendeincessantemente novos pontos de vista inventivas, à manei­ra tópica. Com isto demonstra a fecunda flexibilidade, po­rém, ao mesmo tempo, põe o sistema dedutivo em perigo,pois os conceitos e as proposições, que se expressam pormeio das palavras da linguagem natural, não são confiáveisdo ponto de vista da sistemática.289

287. Viehweg. Tópica e Jurisprudência, p. 80.288. Cf. Tópica e Jurisprudência, p. 80 e 81.289. Idem, p. 82.

158

o ambiente externo ao sistema jurídico, denominado"estado de coisas", segundo o autor também se submete aum tratamento tópico, porque passível de ser manejadojuridicamente. Sabemos que os fatos só podem ser qualifi­cados como jurídicos quando interpretados à luz de umpré-entendimento que se tem sobre o jurídico. E a partirdessas constatações, conclui:

Onde quer que se olhe, encontra-se a tópica, e a catego­ria do sistema dedutivo aparece como algo bastante inade­quado, quase como um impedimento para a visão. Obstrui acontemplação da estrutura efetiva [... ] O centro de gravida­de das operações reside claramente, de modo predominan­te, na interpretação em sentido amplo e, por isto, na inven­ção.

[... ]

Observa-se que a lógica é tão indispensável em nossoterreno como em qualquer outro e que é mencionada comfreqüência. Porém, no momento decisivo, a lógica tem deconformar-se em ficar em um segundo plano. O primeirocabe à ars inveniendi, como pensava Cícero, quando diziaque a tópica precede a lógica. Segue-se daí que, agora comoantigamente, se deve conceder uma atenção substancial àtópica. 29o

Para Viehweg, o grande objeto de investigação da ciên­cia do direito é a essência da techne jurídica referida à bus­ca do justo.

E finalmente, no último capítulo se concentra na idéiado direito como ciência. Parte de Max Weber quando esteapresenta a correspondência existente entre ciência e pro­blema, no sentido de que as ciências são produzidas em

290. Idem, p. 83-4.

159

Page 96: 52842935-Margarida-Maria-Lacombe-Camargo-Hermeneutica-e-Argumentacao (2).pdf

função de problemas de um determinado tipo, que postu­lam, para si, meios específicos de solução. Assim concluip:la ~xistên~i~d~ disciplinas sistematizáveis e disciplinasnao slstematlzavelS. A distinção dá-se, segundo o autor emfunção da existência ou inexistência de princípios objeti­vos, s~~uros e fecundos. Quando não os há, a condição pro­blematlca se mantém, admitindo unicamente uma discus­sã? prob.lemática, como acontece, por exemplo, com o Di­reIto. Vlehweg propõe-se, então, a descobrir na tópica aes~rutura que convém à Jurisprudência, a partir dos se­g~mtes pressupostos: a) a estrutura total da Jurisprudên­CIa somen~e pode ser determinada a partir do problema; b)as partes mtegrantes da Jurisprudência, seus conceitos eproposições têm de ficar ligados de um modo específico aoproblem~ e só podem ser compreendidos a partir dele; c)os co~~eltos e as proposições da Jurisprudência só podemser utllIzados em uma implicação que conserve seu vínculocom o problema.. P-; ~ei a~arece como resposta a uma série de questões

hlst~ncas tIdas como problemáticas, tendo a justiça comoapo~la fundamental que procura dar unidade significativaao sls~e.ma. A ~strutura da Jurisprudência, portanto, é pro­blematlca. Ate mesmo os diversos ramos do direito sur­gem a partir de problemas que lhe são fundamentais.~?mo exe~plo cite-se a questão da autonomia privada, see Justa ou n~o,.com? p.roblema fundamental do direito pri­vado. No dIreIto publIco, ao contrário, se é justa ou não ainterve~ção ~o Estado, no todo ou em parte, na vida priva­da dos Cldadaos. Estas questões mudam, enquanto a aporiafundamental da justiça permanece sempre. Logo, a Juris­prudência precisa ser concebida como uma discussão per­~anente de problemas postos historicamente, mas quen~o se perdem da noção de justiça. Daí, concluindo comVlehweg, resulta com especial clareza que a dedução, im-

160

prescindível em todo pensamento, não desempenha o pa­pel de liderança, nem pode desempenhar o que às vezes sepoderia desejar para ela e o que lhe corresponderia se exis­tisse um sistema perfeito. Decisiva é antes a escolha espe­cial de premissas, que se produz como conseqüência deum determinado modo de entender o direito, à vista desua aporia fundamental: a justiça.291

3.2 A contribuição de Recaséns Siches: a lógica do ra­

zoável

Luis Recaséns Siches também escreve a Nova filosofiada interpretação do direito sob o impacto da crise vividapelo direito nos anos que se seguiram à Segunda GuerraMundial, e que deu origem ao que chamamos de pós-posi­tivismo. Conforme assinalado anteriormente, entendemoscomo pós-positivismo o pensamento jusfilosófico que en­frenta mais de perto as insuficiências do modelo lógico­formal para o tratamento das questões jurídicas.

Recaséns Siches fala em crise, baseando-se no fato deque os valores da sociedade de sua época não correspon­diam mais aos valores consagrados anteriormente. A certe­za e a objetividade trazidas pelo cientificismo e pelo for­malismo não se adequavam mais ao clamor da verdadeirajustiça encontrado na sociedade. Caem os sistemas for­mais e a filosofia do direito passa a ter que dar conta de umnovo método, constata Recaséns Siches:

Ese hecho de que la Filosofía Jurídica académica deIsiglo :xx no ha desempenado un papel principal, ni siquieratampoco secundario, en los nuevos desenvolvimientos dei

291. Idem, p. 94.

161

Page 97: 52842935-Margarida-Maria-Lacombe-Camargo-Hermeneutica-e-Argumentacao (2).pdf

Derecho de nuestra época resalta tanto más, si lo compara­mos con el hecho de la influencia decisiva que el pensamien­to filosófico-jurídico ejerció sobre grandes cambios expri­mentados por el Derecho en otras épocas da la historia.292

o autor parte dos seguintes marcos da filosofia jurídi­ca: o pensamento jurídico-filosófico de Aristóteles, quesustenta a questão da eqüidade; o pensamento jurídico­escolástico, que na Idade Média serviu para propugnaruma ordem jurídica estável diante da anarquia; a filosofiados grandes teólogos e juristas espanhóis nos séculos XVIe XVII, que forneceu as bases do Estado Moderno (ordemjurídica positiva) e alicerçou o direito internacional; a con­tribuição de Hobbes e Locke para a fundamentação do Es­tado liberal; Montesquieu, os enciclopedistas, as doutrinasda escola clássica do direito natural e, depois, as idéias deRousseau, que deram origem às declarações de direitos eaos fundamentos do racionalismo, e assim por diante. Se­ria o momento de a filosofia do direito contribuir agorapara uma reforma no direito positivo, conferindo-lhe umafunção de solidariedade e cooperação sociais. O que se ve­rifica no pós-guerra, diz ele, é a consolidação dos direitossociais diante de uma sociedade economicamente destruí­da e a incapacidade de um Estado para realizar as necessá­rias modificações estruturais que promovam o bem-estarsocial. O aparelho judicial do Estado é chamado a dar efe­tividade aos direitos sociais consagrados em lei após muitoesforço e muita luta. É um novo sentido de justiça que seimpõe, retirando a exclusividade dos valores relativos à se­gurança da ordem social, sob a ênfase do individualismo. Acrise que então se verifica corresponde, na realidade, à

292. Luis Recaséns Siches. Nueva filosofía de la interpretaci6n deiderecho, p. 3.

162

tensão existente, por um lado, entre as exigências de cer­teza e segurança e os novos valores relativos à justiça; e, deoutro, a necessidade natural de ordem e estabilidade so­ciais, diante dos anseios, também naturais, por novastransformações que acompanhassem o progresso.

Como premissas o autor estabelece uma distinção en­tre filosofia jurídica acadêmica e filosofia jurídica 000­acadêmica. A primeira corresponde àquela ensinada nasuniversidades, de índole dogmática, sob o título de TeoriaGeral do Direito, cuja preocupação é divulgar conceitos deordem geral cabíveis em todo e qualquer ordenamento ju­rídico, como instrumento facilitador para o tratamentocientífico de questões específicas de direito. Seriam, basi­camente, os conceitos de sujeito de direito, objeto jurídi­co, fato jurídico, relação jurídica, a distinção entre direitoe moral, os ramos do direito, etc. Diferente é a filosofiajurídica não-acadêmica, que se mostra mais preocupadacom os problemas oriundos da prática jurídica, inde­pendentes de conceitos de ordem geral. O aplicador dodireito muitas vezes se depara com problemas que dificul­tam a escolha da norma certa para o caso certo, bem comoa escolha do conteúdo certo para aquele caso. Quando háum compromisso com a justiça, invariavelmente fracassa ométodo lógico-dedutivo, pois a individualização do direitonão segue as regras do silogismo, em que a premissa maiorestá representada pela norma geral, a premissa menor pelaverificação dos fatos e a conclusão como sentença. Algu­mas vezes, inclusive, isso é totalmente impossível, como,por exemplo: diante de situações de lacuna em que nãoexiste lei específica para o caso; nos casos de antinomia,em que o juiz se depara diante de duas ou mais leis confli­tantes e de mesma hierarquia; quando a simples operaçãomecânica leva a uma flagrante injustiça, o que ocorre quan­do o juiz, comprometido com a eqüidade, vê-se diante da

163

Page 98: 52842935-Margarida-Maria-Lacombe-Camargo-Hermeneutica-e-Argumentacao (2).pdf

necessidade de torcer a lei ao máximo para simular umaoperação lógica. Seriam exemplos de situações que mos­tram a insuficiência da lógica tradicional para o direito.

Sobre o valor segurançaJ frente ao problema da justiçaJRecaséns Siches anota:

El Derecho es seguridad; pero, seguridad en qué?: segu­ridad en aquello que se considera justo y que a la sociedadede una época le importa fundamentalmente garantizarJ porestimarIo ineludible para sus fines. [... ] Lo que el derechodebe proporcionar es precisamente seguridad en lo justo.

[... ]

Lo que el Derecho puede ofrecernos es sólo un relativogrado de certeza y seguridadJun mínimum indispensable decerteza y seguridad para la vida social. 293

A filosofia não-acadêmica éJ portantoJ aquela que temcomo objeto questões relativas à interpretação e à aplica­ção do direito J e que tem na hermenêutica sua questãofundamental. Nesse sentido Recaséns Siches aponta paratrês níveis de problema: (l) o problema de se descobrirqual a norma válida para o caso controvertido; (2) o pro­blema de converter os termos gerais da lei ou do regula­mento em uma norma singular e concreta para o caso par­ticular debatidoJde modo que nesta norma individualizadase cumpra o propósito que inspirou a regra geral; (3) oproblema de eleger o melhor método de interpretaçãopara tratar o caso concreto J para não falar nos casos maiscontundentes de lacuna e de antinomia. Com isso o autordeixa claro que uma de suas principais preocupações écom o método: um método capaz de encontrar a soluçãojusta para o caso singular.

293. Nueva filosofla de la interpretación dei derecho, p. 15.

164

EI análisis crítico de esta cuestión gira en torno aI méto­do para determinar el contenido de las normas particulareso singulares de la sentencia judicial y de la resolución admi-nistrativa.294

Notamos que os problemas apresentados acima dizemrespeito, antes de mais nadaJ à questão da certezaJmesmoadmitindo-se a obrigação que o direito tem com relação àjustiça. E não é irrefletidamente que Recaséns Siches pro­cura um métodoJe aindaJum método axiológico. SeJ porémJconsiderarmos que no direito não existem certezasJ masapenas situações de consensoJ estas questões não se trans­formariam em falsos problemas? Pensamos que sim, masnão nos precipitemos em retirar qualquer tipo de conclu­são sobre a obra de Recaséns Siches, pois isso não é tãofundamental quanto o seu alerta para a insuficiência dométodo lógico-dedutivo diante do compromisso do direitocom a justiçaJ mais especificamenteJ com a justiça social.Outro grande mérito do autor J além de sua tamanha erudi­ção

Jé a chamada que faz à filosofia para arcar com o ônus

da busca dessa nova racionalidade jurídica.Recaséns Siches procura efetivamente uma lógica pró­

pria para as questões humanas. Veremos que o seu pontode partida encontra-se na praxis: o campo das deliberaçõeshumanas, como o faz Perelman. Por não ser arbitrário, oagir humano possui uma razão própria; encontra,-se so~ .aégide do logos do humanoJ que é o logos do razoavelJ mtI­damente diferente da lógica referente à explicação dos fe­nômenos da natureza. Além da ética e da prudênciaJ quemarcam o fazer humanoJsabemos que suas obras são dota­das de sentido; sentido este que se encontra referido a de-

294. Idem, p. 30.

165

Page 99: 52842935-Margarida-Maria-Lacombe-Camargo-Hermeneutica-e-Argumentacao (2).pdf

I1',11

terminadas finalidades, imaginadas por quem as faz ou porquem as interpreta.

Dentre as criações humanas damos destaque, obvia­mente, às leis. Recaséns Siches define a norma jurídicacomo um pedaço de vida humana objetivada. Diz ele:

Sea cual fuere su origen concreto (consuetudinario, le­gislativo, reglamentario, judicial, etc.), una norma jurídicaencarna un tipo de acción humana que, después de habersido vivida o pensada por el sujeto o los sujetos que la pro­dujeron, deja un rastro o queda en el recuerdo como unplan, que se convierte en pauta normativa apoyada por elpoder jurídico, es decir, por el Estado. 295

De acordo com Recaséns Siches, a norma consiste emum objetivo, historicamente possível, buscado pelo legisla­dor. Toda lei tem um porquê, um objetivo ou uma finali­dade, já nos dizia Jhering. No entanto, tratando-se de umaprescrição que se pretende permanente, a lei será aplicadaem momentos futuros, e compete a quem couber aplicá-lareviver os pensamentos nela depositados. Revivê-los, nosentido dado por Recaséns Siches, é levar o pensamentodo legislador à realização efetiva da conduta conflituosa. 296

295. Idem, p. 135.296. Esta nota de Recaséns Siches nos remete ao método histórico­evolutivo, ou subjetivo-objetivo como ele chama, que surge no âmbitodo historicismo alemão, quando se pretende que o intérprete se ponhano lugar do legislador, deixando fluir em si o espírito daquele; deci­dindo como se o legislador decidisse se estivesse presente. De fato,encontramos em sua obra a seguinte defesa: "Esos otros seres huma­nos, aI cumplir una ley, aI dictar y ejecutar una sentencia, reviven lospensamientos depositados en aquellas normas. Los reviven no sólovolviendo a pensar esos pensamientos, sino que además los revivenpráticamente llevando tales pensamientos a realización efectiva en laconducta." Sem dúvida, trata-se do reviver do legislador ou do trans-

166

No estudo em exame, é dada significativa ênfase àquestão da concretização do direito, uma vez que as obrashumanas não existem na sua virtualidade, sendo-lhes in­trínseca uma finalidade de caráter concreto. Possuem,portanto, um sentido que deve ser compreendido porquem delas venha a fazer uso. Para o direito, a razão quenos leva a identificar esta compreensão é a mesma que nospermite dominar o problema, oferecendo-lhe um~ ~oluçãojusta, que seria a solução correta para o caso espeCIfICO. Deacordo com Recaséns Siches, é necessário descobrir as no­tas ou características essenciais dos objetos humanos paraque saibamos o método que devemos aplicar para conhecê­los. O autor volta-se, assim, para explorar uma nova parteda lógica, que ele chama de lógica do humano.297

Toda obra cultural não é valor puro, diz ele, mas açãohumana, ou o produto desta ação. Devemos, portanto,considerar também a norma jurídica como um produtohistórico, intencionalmente referido a valores. No entan­to, verifica-se que os valores aos quais Recaséns Siches serefere são, na verdade, os valores do legislador. Senão ve­jamos o que nos fala a respeito dos fins objetivados na lei:

Tal significación consiste precisamente en que ~sas

obras deI hombre han nacido aI estímulo de unas determma­das necesidades, sentidas de peculiar manera en cierto mo­mento en una cierta situación histórica. Bajo la presión detales n~cesidades, los hombres, usando su imaginación, tra­tan de buscar mentalmente algo, que si existise real y efec­tivamente en la actualidad, colmaría aquellas necesidades.Cuando por fin se deciden por alguna d.e las posibilida.desque su imaginación ha explorado para satlsfacer la neceslda-

porte do seu pensamento para o outro momento. Cf. Nueva filosofíade la interpretación del derecho, p. 136.297. Idem, p. 137.

167

Page 100: 52842935-Margarida-Maria-Lacombe-Camargo-Hermeneutica-e-Argumentacao (2).pdf

11

de que sienten, para resolver el problema con el que seenfrentan, entonces ponen ese algo como finalidade, comometa. Después de la elección de ese fin, se lanzan a buscarlos medias que sean a la vez adecuados y eficaces para lograrla realización de tal fin. 298

Teríamos a observar, ainda, que da mesma forma comoJhering introduziu no direito a idéia de fim, como o fimalmejado pelo autor da lei, Recaséns Siches mantém-seadstrito à visão do legislador originário. Ao contrário, atéos simpatizantes da teoria de Kelsen vêem a lei como umamoldura que encerra algumas interpretações possíveis,cujo único critério é o da validade objetiva, sem se rende­rem à chamada "vontade do legislador".

Independente da vontade da lei ou da vontade do legis­lador, o processo de individualização das leis nas decisõesjudiciais refere-se, mais especificamente, à sua concretudee à sua temporalidade. Este é o ponto fundamental paraRecaséns Siches. O autor descreverá a falibilidade do mé­todo cartesiano-silogístico a partir da sua incapacidade emprocessar a passagem da norma geral para uma condutaparticular. O resultado deste processo, escreve ele, é o queconstitui o reviver atual da norma característico do direito.

EI cumplimiento de una norma general en cada casoparticular no consiste en un reproducir la norma general,sino en un adaptar la pauta general por ella seiialada a cadacaso singular; consiste en cumplir de modo concreto en laconducta singular el sentido formulado en términos genéri­cos y abstratos por la norma general.299

Em sua dimensão dinâmica, o direito conjuga as nor­mas jurídicas com a realidade social, sempre em renova-

298. Idem, p. 139-40.299. Idem,p.14I.

168

ção, e a norma serve de critério para a ação ulterior. Nestesentido, o que interessa a Recaséns Siches não é tanto alógica formal que serve à Teoria Geral do Direito, mas alógica material, própria do seu aplicar.

Tratar formas a priori, esta es, esencias necesarias y uni­versales, por métodos de lógica, gnoseología y ontología for­males parece sin duda adecuado y correcto. En cambio, re­sulta superlativamente discutible, con seguridad gravemen­te erróneo, aplicar esos mismos métodos aI tratamiento delos contenidos jurídicos, de la materia jurídica, que es unarealidade empírica que se orignó en cierto lugar y en ciertotiempo, aI conjuro de unas necesidades históricas y en vistade ciertos fines particulares.3oo

As falhas da lógica tradicional, que se posiciona sob ofetichismo da generalidade da norma, diz ele, impedem­nos de ponderar os elementos relevantes de cada casoconcreto e impedem também que se crie uma normaindividualizada pertinente e devida para cada situação es­pecífica.

Com a idéia inicial de lógica material, Recaséns Sichesse posiciona junto a autores como Viehweg e Perelman.Recaséns Siches não enfrenta propriamente a questão me­todológica proposta pela tópica aristotélica, resgatada porViehweg, e nem a retórica, retomada por Perelman, queadotam, como base de raciocínio, opiniões ou "lugares co­muns". Essas bases de verossimilhança, e não de verdades,levam à formulação de um raciocínio opinativo, que guardaforça apenas em seus argumentos, ao contrário da razãomatemática, que se apóia na certeza das inferências retira­das das premissas e que levam a uma solução correta. Nãoobstante, tanto a possibilidade de se estabelecer um racio-

300. Idem, p. 144.

169

Page 101: 52842935-Margarida-Maria-Lacombe-Camargo-Hermeneutica-e-Argumentacao (2).pdf

cínio não-sistemático, à medida que se privilegia o proble­ma - o fragmento, em lugar do todo -, e também a pos­síbilidade de, com o auxílio da tópica, iluminar o problemasob os seus diversos ângulos, são aproveitadas por Reca­séns Siches. Na realidade, seria esta a grande contribui­ção do autor: buscar, a partir do problema, a axiologia dodireito.3D!

Recaséns Siches segue a esteira da "jurisprudência dosinteresses" e da "jurisprudência sociológica", influenciadoque é pelo pragmatismo norte-americano. Certamente,diz ele, os juízes, ao privilegiarem os efeitos concretos dodireito na sociedade, muitas vezes se vêem díante da ne­cessidade de dissimular a lei para fazer justiça, ou pelo me­nos evitar a injustiça. Mas, para escapar de qualquer tipode crítica ou acusação em virtude de terem agido arbitráriaou negligentemente, ameaçando a ordem e a estabilidadesocial, precisam elaborar uma justificativa que apresente

301. Favorecendo o raciocínio a contrário senso, vale destacar a passa­gem de Nicolai Hartmann que define o pensamento sistemático tam­bém assumido por Recaséns Siches: "EI modo de pensar sistemáticoparte da la totalidade. Aquí la concepción es lo primero y sigue siendolo dominante de modo decisivo. Aquí no se pone en cuestión el puntode vista. Por el contrario, el principio básico es aceptado ante todo,desde un comienzo, necesariamente. V, partiendo de ese principio, deese punto de vista, base dei sistema, son seleccionados los problemas.Aquellos problemas que no resulten compatibles con el punto de vistabásico de ese sistema son rechazados. Se los considera como cuestio­nes mal planteadas. No es que se prejuzgue o se predetermine nadasobre la soluci6n de los problemas mismos; pero, en cambio, sí sobrelos límites dentro de los cuales puede moverse la solución." NicolaiHartmann, Diesseíts von idealismus und realismus, Kant-Studien,XXIX, 1924, apud Recaséns Siches. Nuevafilosofía de la interpreta­ción deI derecho, p. 159.

Ao contrário do pensamento sistemático, em que se permite acei­tar problemas, o assistemático ou tópico parte do problema em procu­ra de um sistema.

170

\ uma aparência lógica e que seja, portanto, convincente. O, que Recaséns Siches almeja é que os juízes possam agirsem culpa; fazer justiça sem culpa, "sob a luz do meio-dia".Para tal bastaria que assumissem a seguinte posição ou aseguinte premissa em suas atividades ou funções, apresen­tada em tom de advertência:

Adviértase que e1 derecho positivo no es un conjunto depalabras, ni es un sistema de conceptos que puedan derivar­se por las vías deI razonamiento deductivo. Por el contrario,el derecho positivo es la justa interpretación de las normasvigentes. 302

o pensamento de Recaséns Siches é francamente am­parado no depoimento dos juízes norte-americanos, e par­ticularmente na filosofia de John Dewey. Ele admira a va­lentia de alguns juízes, os "bons juízes", por não se rende­rem às limitações impostas pelo silogismo formal, compro­metendo-se, antes, com a realidade social: os interessesem causa, os valores socialmente reconhecidos, os padrõesde eqüidade, bem como o grau de utilidade e alcance desuas sentenças. Juízes que agem com prudência, avaliandoe ponderando previamente os efeitos concretos de suas de­cisões. E é na prática judiciária retirada da experiência vi­vida pelos juízes que observamos, segundo Recaséns Si­ches a presença da lógica do razoável.

De fato, a sentença judicial traz sempre algo de novO eé, por isso, criativa. No processo de individualização dasnormas, o que era geral e abstrato torna-se particular econcreto quando adjudicamos direitos e/ou prescrevemoscondenações.303 Para a norma geral "quem causar dano a

302. Nueva filosofía de la interpretación deI derecho, p. 173.303. Segundo Recaséns Siches, a sentença é a norma jurídica perfeita,pois vincula determinados direitos e obrigações a partes determina-

171

li

~.._------------------_....---

Page 102: 52842935-Margarida-Maria-Lacombe-Camargo-Hermeneutica-e-Argumentacao (2).pdf

II,

I\

\

outrem será obrigado a ressarci-lo proporcionalmente",podemos concluir que x causou dano a y e portanto deveráindenizá-lo no v~lor do montante z. Recaséns Siches falaem casos fáceis e casos difíceis. Os primeiros são aquelesem que é fácil identificar a norma e aplicar a pena, ao passoque, em outros, a verificação dos fatos e a identificação danorma podem ser complicadas, dificultando a construçãoda decisão. Estes seriam os casos de lacuna, antinomia eflagrante injustiça. De toda forma, diz Recaséns Siches, oproblema de se identificar qual é a norma positiva aplicá­vel ao problema concreto não é meramente um problemade conhecimento de realidades, mas um problema de valo­ração. O autor estaria propondo, como método de inter­pretação, então, o que atualmente conhecemos como mé­todo axiológico.

Lo que el juez hace ordinariamente, y eso es lo que debehacer, consiste en investigar cuáles son los criterios jerárqui­cos de valor sobre los cuales está fundado y por los cualesestá inspirado el orden jurídico positivo, y servirse de ellospara resolver el caso sometido a su jurisdicción.304

das, alcançando, com isso, maior grau de eficácia do que as leis gerais.Dessa forma, são também criadoras, pois que contêm ingredientesnovos não encontrados na norma geral. Cf. Introduci6n al estudío delderecho, p. 195 e segs.304. Nueva filosofía de la ínterpretacíón del derecho, p. 235.

Verificamos, no entanto, como o método axiológico-teleo16gicoproposto por Recaséns Siches cinge-se à "vontade do legislador": "Latarea dei legislador, cuando elabora y promulga una ley, no es un laborde conocimiento, sino que es un acto de voluntad, basado en las valo­raciones que adoptó. EI legislador dicta su norma, precisamente por­que estima que los efectos que la misma producirá, ai ser proyectadasobre la realidade social, serán buenos. Lo que decide ai legislador adictar la norma que él establece es precisamente el juicio favorableque le merecen esos efectos que él mentalmente anticip6.

172

Por outro lado, o processo de reconhecimento do fatocomo jurídico, tendo por pauta a lei, na realidade é inspira­do por uma espécie de intuição do juiz sobre o que é justopara o caso. Essa intuição corresponderia a uma convicçãoque se forma de modo direto e não em virtude de um racio­cínio, diz Recaséns Siches.30s Tomado desta convicção ­este é um ponto importante de sua teoria e diz respeito dire­tamente à questão do método -, o juiz parte para formulara sua fundamentação. Vejamos o que diz o autor:

Y, es más, de ordinario la mente deI juez primero antici­pa el fallo que considera pertinente y justo - claro es quedentro dei orden jurídico positivo vigente -, luego busca lanorma que pueda servir de base para esa solución, y da a loshechos la calificación adecuada para llegar a dicha conclu­sión.

Suele ocurrir que el juez, a la vista de la prueba y de losalegatos, se forma una opinión sobre el caso discutido, unaespecie de convicción sobre lo que es justo respecto de éste;después busca los principias, es decir, las normas jurídicasque puedan justificar esa su opinión, y articula los resulta­dos de hecho de modo que los hechos encejen dentro de lacalificación jurídica que justifique el fallo que va a dictar.306

Ahora bien, precisamente por esto, el juez, para averiguar cuálentre las normas dei orden jurídico positivo, ai ser aplicada ai casoplanteado, produciría en concreto efectos análogos a los que ellegisla­dor se propuso en términos generales, o, mejor dicho, efectos análogoshacia los cuales apuntan intencionalmente los criterios axiológicos queinspiran el orden jurídico positivo." Nueva filosofia de la ínterpreta­ci6n del derecho, p. 236.305. A propósito, o autor cita a origem etimológica da palavra latina"sentença": vem do verbo "sentire", é dizer, experimentar uma espé­cie de emoção, no caso, uma espécie de intuição emocional. Cf. Nue­va filosofía de ia interpretaci6n dei derecho, p. 245.306. Nueva filosofía de la interpretacíón dei derecho, p. 241-2.

173

Page 103: 52842935-Margarida-Maria-Lacombe-Camargo-Hermeneutica-e-Argumentacao (2).pdf

Entretanto, sentimos falta nos escritos de Recaséns Si­ches de algo sobre a formulação dessa antecipação de sen­tido feita pelo juiz, e que se dá dentro do sistema: corres­ponderiam a algum tipo de pré-juízo? a opiniões ampla­mente aceitas ou topoi? ao princípio da inegabilidade dospontos de partida, que orienta a dogmática jurídica? Suaresposta é simplesmente a de que a intuição do juiz funda­se sobre a lógica do razoável: .. Se trata de una intuición,pero de una intuición que revela algo que es objetivamenteválido, cuyo fundamento radica en ellogos de lo humano ode lo razonable. "307

No entanto, ao indagar sobre a base de sustentação dasjustificativas construídas pelo juiz, explica que:

Una vez elegidas las premissas, la mecánica silogísticafuncionará con toda facilidade. (... ] La lógica formal de lainferencia, pero no suministra ningún criterio para elegirentre las varias premisas que sean posibles. Ahora bien, es eljuez quien tiene que decidir la elección de la premisa mayor,sobre la cual vaya a fundar su sentencia, si es que se presentael problema de que haya más de una premisa posible, cadauna de ellas válida en el ordenamiento jurídico positivo.308

Sobre a questão da essência da função judicial, que seampara no logos do humano ou nos logos do razoável, oautor nos remete para o problema da interpretação. A di-

307. Idem, p. 247.308. Idem, p. 237.

Neste ponto, Recaséns Siches se apóia na "lógica experimental" deJohn Dewey, filósofo norte-americano, quando este escreve sobre aestrutura da sentença. Nas palavras de Recaséns Siches: "El problemade formular una sentencia consiste en encontrar un principio generaly un hecho o hechos particulares, que sean capaces de servir de pre­misas (mayor y menor respectivamente)." Cf. Nueva filosofía de lainterpretación dei derecho, p. 247.

174

mensão criadora de Recaséns Siches, por sua vez, remete­nos à questão da valoração, que se dá na escolha dos fatose das normas. O método aplicável, segundo Recaséns Si­ches, é o método que leva o juiz à interpretação mais jus­ta,309 mas infelizmente não se aprofunda na questão dométodo valorativo, limitando-se a afirmar que:

Para formarmos una idea sobre el procedimiento de in­terpretación que debamos aplicar a un caso concreto, esmenester que antes hayamos logrado formarnos el juicioque consideramos correcto, es necesario que hayamos anti­cipado mentalmente el fallo que estimamos justo. Y enton­ces es sólo a posteriori, es decir, después de habernos for­mado ese juicio, cuando descubrimos cuál es el procedi­miento mental que nos condujo a dicho juicio. EI métodocorrecto es el que en ese caso nos llevó a la solución queconsideramos satisfactoria.3lo

Com alguma dose de ousadia, e com toda a licença parafazê-lo em sua ausência, relacionamos a lógica do razoável,de Recaséns Siches, ao q.ue poderíamos denominar de mé­todo intuitivo-silogístico.

. 3.3 A contribuição de Castanheira Neves: o direito comoprática e a analogia como método

O trabalho de Castanheira Neves, intitulado Metodolo­gia jurídica, insere-se no que já podemos chamar de tradi­ção tópica ou pós-positivista. A recuperação da tópica aris­totélica, conforme inferimos do trabalho de Castanheira

309. Cf. Nueva filosofía de la interpretación dei derecho, p. 181 e182.310. Idem, p. 183.

175

Page 104: 52842935-Margarida-Maria-Lacombe-Camargo-Hermeneutica-e-Argumentacao (2).pdf

Neves, corresponde à atual posição de contraponto da filo­sofia do direito diante da tradicional postura formalistaque concebe o direito de forma auto-suficiente. De acordocom a postura tradicional, o ordenamento jurídico, na qua­lidade de um sistema, basta a si mesmo. Toda realização dodireito é por ele determinada, bem como todo o seu signi­ficado. 311 Logo, na medida em que o sistema serve comoreferencial único ao processo de interpretação e aplicaçãodas leis, a hermenêutica deve cingir-se a um âmbito con­ceitual próprio, que encontra seus limites previamente fi­xados. Essa noção extremada de limite é o que nos leva aaproximar tal forma de entendimento com o positivismo,que só se preocupa com os mecanismos de reconhecimen­to de validade da lei posta pelo Estado ou pelas autorida­des competentes. Ao contrário, o que procuramos agora éentender o direito a partir, também, de uma ótica externaao sistema, isto é, a partir do problema submetido à decisãojudicial que, por sua vez, encontra-se referenciado poruma série de outros fatores que não apenas os conceitos eos possíveis valores extraídos da lei simplesmente. O pro­blema procura uma solução à qual o direito deve servir,atendida toda sua complexidade. Não se quer, com isso,abandonar a figura do sistema, mas, apenas, arejar seuscontornos, para que respire o ar da realidade e dos valoresque orientam o que-fazer humano. Para a solução jurídica,portanto, não podemos nos valer do silogismo categóricoque subsume o fato, como premissa menor, à lei (geral),que é a premissa maior, obtendo-se do resultado dessaoperação a solução do problema. Não. Considerado o Di­reito como uma prática, porque pretende ser realizado na

311. Castanheira Neves, pautando-se em Hruschka, no Digesta, falada "teoria da imanência do 'sentido' no direito positivo". Cf. p. 352.

176

solução do conflito, o seu método também há de ser vistocomo uma prática.

É justamente este o sentido dado por Castanheira Ne­ves ao seu trabalho, cujo título, Metodologia jurídica, mos­tra-se, por si só, bastante sugestivo. O autor acompanha,com maestria, o debate da vanguarda do pensamento jusfi­losófico contemporâneo: enfrenta o problema da metodo­logia jurídica e acaba propondo um modelo para a realiza­ção do direito, baseado na analogia. Inicia seu estudo apre­sentando uma distinção entre método e metodologia. Ométodo corresponderia ao "caminhar para", enquanto ametodologia, ao "pensar sobre esse próprio caminhar". 312

Mas ambos os significados inserem-se no conceito de umaprática, que seria a prático-problemática realização do di­reito. Com Larenz, o autor entende que a metodologia ju­rídica é a "auto-reflexão" da jurisprudência, cabendo-lherefletir criticamente antes sobre a prática de uma normati­vidade assumida e realizanda, em lugar de buscar-se o con­teúdo próprio e imanente ao direito. 313

Castanheira Neves nos apresenta três tipos metodoló­gicos: o prescritivo, o descritivo e o crítico-reflexivo, posi­cionando-se ao lado deste último.314 Ao lagos prescritivocorresponde uma relação de exterioridade entre sujeito eobjeto, ainda que o objeto seja uma ação. O pensamentoapresenta-se, assim, como um instrumento ao dispor dosujeito, ou "um conjunto de procedimentos intelectuaisordenados segundo um plano racional preestabelecidoaplicáveis a um dado domínio em vista de um certo fim" .315

O lagos descritivo corresponde à relação de imanência

312. Cf. Castanheira Neves. Metodologia jurídica, p. 9 e 10.313. Idem, p. 17.314. Idem, p. 10 e ss.315. Idem, p. 13.

177

Page 105: 52842935-Margarida-Maria-Lacombe-Camargo-Hermeneutica-e-Argumentacao (2).pdf

constitutiva entre o sujeito e o objeto, porquanto o raciocí­nio constitui-se por meio e como resultado de uma prática,numa intencional unidade de razão. E, por fim, o logos crí­tico-reflexivo, correspondente à relação de reconstruçãocrítico-reflexiva referida aos sentidos fundamentantes en­contrados na justificação de uma prática, e atribuídos àrazão des~a própria prática. Daí atribuir à metodologia ju­rídica a característica de um pensamento prático, "en­quanto assume os problemas de uma prática: a prático­problemática realização do Direito" .3!6

Deste modo podemos definir o pensamento práticocomo aquçle que se compromete diretamente com proble­mas, uma vez que é chamado a resolvê-los. E com issoabandonamos a idéia de direito como simples aplicação denormas, conforme a concepção tradicional, em prol daidéia de que o direito se constitui num verdadeiro ato decriação normativa que se dá a cada caso concreto. SegundoCastanheira Neves, a lei contém uma intenção normativo­jurídica vinculante que deve ser buscada para a sua realiza­ção. Mas este realizar, que corresponde a um ato de cria­ção, não é automático, como um mecanismo lógico, e inde­pendente da vontade de um terceiro mediador. Para o au­tor, o direito caracteriza-se, precisamente, pelo fator damediação.3!7 Caberá, então, a um modelo metódico ade­quado definir essa "terceira via" ou esse tertius modus, res­ponsável último pela realização e criação do direito. Trata­se, na verdade, de um mecanismo de juízo e decisão, inde­pendente de qualquer atributo de subjetividade, uma vez

316. Idem, p. 15.317. Castanheira Neves, no Digesta, ao discriminar exegese e inter­pretação, explica que exegesis ou explicatio significa mera explicação,enquanto interpretação vem de inter-pres, que denota necessária me­diação. Cf. Digesta, vol. 2, p. 342.

178

. que o alcance da mediação limita-se a reconhecer um pen­samento racional.

A mediação possui duas dimensões: a primeira corres­ponde à fundamentação objetiva da decisão, favorável àatividade de controle, enquanto a segunda é relativa à na­tureza própria do ato mediador, que constitui o juízo e adecisão.

A decisão, na qualidade de opção resolutiva comanda­da pela ratio e pela voluntas, afasta, por força desta última,qualquer caráter de apoditicidade ao juízo jurídico, sendosustentada, em última instância, apenas pelo poder de po­testas. Em termos de legitimidade, só lhe cabe uma justifi­cação prática; uma fundamentação argumentativa, suscetí­vel de lograr a plausibilidade ou a aceitabilidade de sua"evidência" prático-argumentativa no contexto comunitá­rio em que se encontre vinculante.3!8

318. Cf. Castanheira Neves. Metodologia jurídica, p. 32-3.Sobre a formação da evidência por meio do discurso legitimador

que se utiliza da argumentação e do consenso, escreve Baptista Ma­chado: "Daí que em dados casos, se possa formar um consenso, um"consensus iuridicus". Esse consenso não exprime apenas a "communisopinio doctorum": exprime também a coincidência com aquela "con­suetudo socialis" ou com aquela "racionalidade" emergente do debatesocial global. Tal consenso desempenha no discurso a função da evi­dência - da evidência que fixa os limites da "discutibilidade", quedetermina o ponto a partir do qual qualquer nova argumentação setoma dispensável e supérflua. É o ponto em que o discurso legitima­dor (ou a argumentação) se fecha em círculo sobre si próprio, tomadoda vertigem da evidência necessitante da "lógica da coisa": necessitan­te pelo menos no sentido de que esbarra com os limites daquele deter­minado universo de sentido, com a linha de fronteira para além daqual se entra no espaço vazio de organização e no campo do contra­senso." J. Baptista Machado, Introdução ao direito e ao discurso legiti­mador, p. 313.

179

Page 106: 52842935-Margarida-Maria-Lacombe-Camargo-Hermeneutica-e-Argumentacao (2).pdf

o juízo, segundo Castanheira Neves, consiste naquele"geral-concreto" que traz ao direito o seu verdadeiro senti­do e a sua realidade, constituindo-se no fator capital dessarealização.319 Destarte, o juízo participa de um discursoque mobiliza raciocínios. O discurso aparece como a me­diação estruturada do pensamento, enquanto o raciocíniofigura como o elemento concludente do discurso conduzi­do por uma relação lógica: dedutiva, indutiva, analógica,etc. Dessa maneira, o juízo jurídico reconduz a decisão àfundamentação exigível pela racionalidade, enquanto a ra­zão faz pressupor a fundamentação e a justificação combase em critérios que lhe conferem objetividade. Logo, "seno juízo se constitui e se exprime uma fundamentação,esta fundamentação implica critérios sobre os quais ela seobjetiva" .320

Castanheira Neves recorre a Max Weber quando estedistingue como elementos da racionalidade a sua respecti­va "capacidade de fundamentação", bem como a "criticibi­lidade" a que o pensamento se sujeita. Daí que o direito,como campo de normatividade vinculante, tem, na sua va­lidade, o fundamento do discurso que a decisão mobiliza.Caberá assim à interpretação determinar o sentido norma­tivo, de sorte que obtenha dele um critério jurídico no âm­bito da problemática realização do direito. De acordo comCastanheira Neves, a questão não é apenas buscar um sen­tido, ainda que jurídico, na lei, mas buscar a possibilidadede vinculação existente na sua dimensão intencional e jurí-

319. Para Miguel Reale, o juízo é o predicado acrescentado ao objeto,quando se afirma que algo éassim; o que não deixa de ser uma indivi­dualização concretizadora. "Juízo é o ato mental mediante o qual seconfere um atributo ou predicado a determinado ente." Miguel Reale.Introdução à filosofia, p. 13.320. Castanheira Neves. Metodologia jurídica, p. 33.

180

dica, ou seja, buscar a "norma da norma", como critérioprático-normativo adequado à decisão. O critério normati­vo é, então, oferecido pela mediação da interpretação. 321

Por fim, Castanheira Neves apresenta-nos um modelode construção do raciocínio jurídico baseado em duas gran­des coordenadas: o sistema e o problema. O problema refe­re-se ao caso decidendo, e funciona como prius metodoló­gico que se apresenta sob a forma de uma pergunta. A per­gunta, por sua vez, corresponde a uma situação de obstácu­lo, perplexidade ou dúvida, que por si só pressupõe maisde um resultado. Podemos dizer que o problema provoca osistema inerte, como também provoca a ação das autorida­des competentes para dirimi-lo. O texto legal, à sua vez,reflete uma intenção Qurídica), que deverá ser vista emfunção de sua realização. Para efeitos da hermenêutica ju­rídica, busca-se interpretar a realização de uma intençãonos seus valores e nos seus fins possíveis, porque apresen­tados também sob a forma de problemas pressupostos emabstrato.

A relação dialética assumida entre a intencionalidadenormativa e a realidade problemático-decidenda faz comque, em função do caso, se interroguem interpretativa­mente as normas jurídicas aplicáveis, que consistem na-

321. O autor, com referência à concretização do Direito, traça umadiferenciação entre hermenêutica e interpretação. A primeira seriacaracterística do pensamento jurídico tradicional, que, apesar de ado­tar técnicas avançadas como a teleológica e a axiológica, volta-se comexclusividade para o sistema; e a segunda, característica da tópicapós-positivista, que direciona toda a sua busca interpretativa do pro­blema, para o problema. Enquanto a hermenêutica serve apenas comomediação do significado, ou explicitação do sentido em termos exegé­ticos, a interpretação determina o sentido para obter dele um critériojurídico no âmbito de uma problemática realização do direito. VideMetodologia jurídica, p. 74 e ss.; 83 e ss.

181

Page 107: 52842935-Margarida-Maria-Lacombe-Camargo-Hermeneutica-e-Argumentacao (2).pdf

quelas capazes de servir como critério normativo-jurídicopara a solução-decisão, conforme nos diz Castanheira Ne­ves. Mas, para tanto, primeiro devemos proceder à com­preensão e determinação do caso que põe um problemajurídico numa certa situação histórico-social, medianteprévio saber jurídico oferecido pelas normas, pelos prece­dentes e pela doutrina, da seguinte forma: "Conjuga-seuma intenção normativa geral ou de validade com uma si­tuação concreta, enquanto fundamenta naquela intenção apergunta. "322 Ou seja: o critério que a índole concreta doproblema justifique tem de ser procurado no âmbito e nohorizonte do sistema jurídico; o sistema oferece os funda­mentos jurídicos disponíveis, enquanto a solução tem deser assimilável pelo sistema jurídico. Logo, para Castanhei­ra Neves, o fundamento de validade tem de ser encontra­do no sistema e não nos efeitos da decisão. O autor apro­veita para fazer severa crítica ao realismo jurídico, queapresenta como critério de validade da razão jurídica osefeitos provenientes do resultado concreto da questão de­cidenda. Para ele, o resultado não deve ser tomado comocritério, mas como objetivo e sentido. O resultado da deci­são atuaria na imanência intencional da juridicidade en­quanto campo axiológico da normatividade jurídica.323

Com isso Castanheira Neves apresenta sua proposta demodelo para a realização do direito, que tem como funda­mento a analogia. Analogia existente entre os problemasde "tipo abstrato", pressupostos, e os problemas concre­tos. A índole dos problemas, segundo ele, tem de ser a

322. Castanheira Neves. Metodologia jurídica, p. 162.323. Na verdade, o autor tangencia a questão da juridicidade por acre­ditar que ela se insere no domínio da exterioridade subjetiva; da ma­nifestação da autonomia e da liberdade pessoal. Cf. páginas 231 e 232do livro Metodologia jurídica.

182

mesma, entendendo-se por índole a relevância materialque a hipótese e o caso apresentam. Mas é a analogia entreos casos o que, em última instância, possibilita a adaptaçãoda norma à situação concreta, tomada como semelhante.

Como vantagem acredita que a analogia jurídica, alémde atender ao princípio da igualdade, transforma os riscosaceitáveis e a incerteza em expectativas razoáveis, permi­tindo a continuidade consistente da ordem jurídica. A ana­logia não tem fundamento na lógica, diz ele; trata-se desemelhança que intenciona, quando muito, apontar parauma probabilidade. De um exemplo ou de alguns exem­plos inferir-se-ia uma regra ou um princípio do qual pode­ria ser deduzida uma solução para o caso decidendo. A pre­texto, podemos afirmar que a índole do juízo analógico éargumentativa: argumento a partir do exemplo, como ex­põe Perelman.324

Além disso, outros fatores que orientam e dão validadeà decisão jurídica, além do argumento, seriam, para Casta­nheira Neves: o momento material, como referência condi­cionante à realidade histórico-social; o espírito do sistema,que se revela em torno dos princípios da ordem jurídicapositiva, reconhecidos como fundamentos imediatos dasua particular normatividade; a consciência jurídica geral,como síntese de todos os valores e princípios normativosque, em determinada comunidade, dão sentido funda­mental ao direito.

324. Perelman traz o exemplo como um tipo de argumento que fundaa estrutura do real. O raciocínio pelo exemplo ou pelo modelo leva àcriação da regra, ou seja, passa-se de um caso particular a outro, edesse outro à regra. Vide Tratado da argumentação e O império retó­rico.

183

Page 108: 52842935-Margarida-Maria-Lacombe-Camargo-Hermeneutica-e-Argumentacao (2).pdf

l o',

, ..... , ... ,"':.;,:<

, .

Capítulo 4

A NOVA RETÓRICA DE CHAiMPERELMAN

Uma das maiores expressões na filosofia do direitocontemporânea é Chalm Perelman. Professor de lógica daUniversidade Livre de Bruxelas, Perelman trouxe impor­tante contribuição para a filosofia e, particularmente, paraa metodologia do direito, mediante o estudo que desenvol­ve sobre a retórica como teoria da argumentação.325

325. Chalm Perelman nasceu na Polônia em 1912, seguindo, poucosanos mais tarde (1925), para a Bélgica, onde fez brilhar o nome daUniversidade Livre de Bruxelas. A partir de seus estudos na área dalógica e da filosofia do direito, em 1945, traz a público um trabalhomarcante em sua carreira: De la Justice. Prosseguiu com outras publi­cações: Rhétorique et Philosophie: Pour une théorie de l'argumentationen philosophie (1952 - em colaboração com Lucie Olbrechts-Tyte­ca), Justice et Raison (1963), Traité de l'Argumentation (1958),Droit, Morale et Philosophie (1968), com a 23 edição revista e aumen­tada em 1976, Le Champ de L'Argumentation (1970), Logique juridi.que: Nouvelle Rhétorique (1976), L'empire rhétorique: rhétorique etargumentation (1977), até sua última obra, publicada em 1984, pouco

185

Page 109: 52842935-Margarida-Maria-Lacombe-Camargo-Hermeneutica-e-Argumentacao (2).pdf

Segundo Michel Meyer, prefaciador de um de seusprincipais livros, a Retórica ressurge sempre em períodosde crise, como aconteceu com a derrocada do mito entreos gregos, que coincidiu com o grande período sofista. Aimpossibilidade de se fundar a ciência moderna e a suaapoditicidade matemática diante do predomínio da esco­lástica e da teologia na Idade Média, levou também a reto­mada da retórica clássica pelo Renascimento. Hoje, o fimdas grandes explicações monolíticas, das ideologias e, maisprecisamente, da racionalidade cartesiana, assinala tam­bém o fim de uma certa concepção de logos. 326

Essas grandes explicações monolíticas, referidas porMeyer, têm, na realidade, como base, a teoria do métodode Descartes, fundamentada na crença do pensamentolinear estabelecido pelo more geometrico. Para ilustraresta afirmação, reproduziremos as próprias palavras deDescartes:

antes de falecer: Le Raisonable et le Déraisonable en Droit: Au-delàdu positivisme juridique.

Sobre a Escola de Bruxelas nos fala Rui Alexandre Grácio: "Achamada 'Escola de Bruxelas' reside na convergência do movimentocrítico ao racionalismo clássico, oriundo particularmente de três pen­sadores: Eugene Dupréel (1879-1967), Chalm Perelman (1912­1984) e Michel Meyer. O elemento de ligação entre os três poderiaser considerado o pluralismo: a tematização de uma nova racionalida­de intrinsecamente pluralista, no dizer de Grácio. Dupréel trabalhacom a sociologia na qualidade de disciplina fundamental para a com­preensão do homem; Meyer, com as questões relativas à argumenta­ção e à retórica à luz de uma concepção problematológica da lingua­gem; finalmente Perelman, com a proposta de um alargamento danoção de razão, dada a primazia do raciocínio prático, que implicavalores." Vide Rui Alexandre Grácio. Racionalidade argumentativa,p.1Se 16.326. Michel Meyer, in Perelman. Tratado da, Argumentação, p. XX.

186

1", I"

':~',i:1:,

Havendo apenas uma verdade de cada coisa, quem querque a encontre sabe dela tudo o que se pode saber. [... ] Pois,enfim, o método que ensina a seguir a verdadeira ordem e aenumerar exatamente todas as circunstâncias do que se pro­cura, contém tudo o que dá certeza às regras de aritmética.

[... ]

Essas longas cadeias de razões, tão simples e fáceis, deque os geômetras costumam servir-se para chegar às suasmais difíceis demonstrações, levaram-me a imaginar que to­das as coisas que podem cair sob o conhecimento dos ho­mens encadeiam-se da mesma maneira, e que, com a únicacondição de nos abstermos de aceitar por verdadeira algumaque não o seja, e de observarmos sempre a ordem necessáriapara deduzi-las umas das outras, não pode haver nenhumatão afastada que não acabemos por chegar a ela e nem tão

d 'd - d b 327escon 1 a que nao a escu ramos.

Perelman posiciona-se expressamente contra a filoso­fia da evidência de Descartes. Seu esforço consistiu, justa­mente, na busca de uma outra dimensão da racionalidadecompatível com a vida prática. Pretendia demonstrar aaptidão da razão para lidar também com valores, organizarpreferências e fundamentar, com razoabilidade, nossas de­

cisões. 328

327. Descartes. Discurso do método, p. 23 a 26.328. Segundo Aristóteles, a alma se compõe de duas partes: uma do­tada de razão e outra irracional. No primeiro caso, "há duas faculdadesracionais: uma que nos permite contemplar as coisas cujos primeirosprincípios são invariáveis, e outra que nos permite contemplar as coi­sas passíveis de variação; [... ]. Uma destas duas faculdades racionaispode ser chamada de científica e a outra de calculativa, pois deliberare calcular são a mesma coisa, mas ninguém delibera sobre coisas inva­riáveis. A faculdade calculativa, portanto, é uma das faculdades daparte da alma dotada de razão." Ética a Nicômacos, 1139 a.

Esse calcular, que pressupõe moderação, refere-se ao conceito de

187

Page 110: 52842935-Margarida-Maria-Lacombe-Camargo-Hermeneutica-e-Argumentacao (2).pdf

Perelman parte do princípio de que o raciocínio valora­tivo viu-se marginalizado da filosofia ocidental nos últimosséculos, por ter sido equiparado à irracionalidade ou à au­sência de razão. Assim era visto porque fugia do modelogeométrico admitido como o único verdadeiramente cien­tífico. Mas Perelman percebe que nem tudo se sujeita aocampo da matemática, que exibe como verdade apenasaquilo que é rigorosamente demonstrável ou provadocomo evidente. Admite existir um outro âmbito da exis­tência cujas relações não se sujeita.m ao argumento da in­discutibilidade, qual seja, o das relações humanas. Trata­se da práxis ou prática deliberativa conduzida pela açãomoral, relativa à tomada de decisão.329 Decisão esta tida,por seu agente como a mais adequada para determinadasituação.33o

phronesis, traduzido como discernimento. O discernimento é visto porAristóteles como uma forma de excelência, isto é: "Pensa-se que écaracterístico de uma pessoa de discernimento ser capaz de deliberarbem acerca do que é bom e conveniente para si mesma, não em rela­ção a um aspecto particular [...], e sim acerca das espécies de coisasque nos levam a viver bem de um modo geral." Ética a Nicômacos,1140 a.329. A tomada de decisão à qual nos referimos corresponde à escolhaaristotélica referente à práxis. Aristóteles ensina que "a excelênciamoral é uma disposição da alma relacionada com a escolha, e a escolhaé o desejo deliberado, segue-se que, para que a escolha seja boa, tantoa razão deve ser verdadeira quanto o desejo deve ser correto e estedeve buscar exatamente o que aquela determina. Este tipo de pensa­mento e de percepção da verdade é de natureza prática. [...] Comefeito, esta é função de toda a parte intelectual do homem, enquantoo bom funcionamento da inteli~ência prática é a percepção da verdadeconforme ao desejo correto". Btica a Nicômacos, 1139 b.330. Alasdair MacIntyre, na análise que faz da visão de Aristótelessobre a racionalidade prática, nos fala do silogismo prático, partindo dadeclaração de qual bem está em questão ao agir e qual a ação que oexige. Neste sentido expõe: "Tal pessoa deve, antes de tudo, ser mo-

188

A conduta prática - pensamento dirigido à ação corre­ta _331 comporta mais de um resultado ou mais de umsignificado, conforme a aceitação por uma ou outra escalade valores, e conforme o problema apresentado em umasituação específica. Como toda escolha, a solução adotadacomo conduta a ser assumida despreza outras consideradasmenos favoráveis. A "melhor" conduta será aquela que seapresente como a mais razoável, consoante justificativaconvincente. Perelman procura nos chamar a atenção paraa validade das deliberações humanas ou preferências ra­zoáveis que deixam de ser arbitrárias à medida que se apre­sentam por meio de justificativas. Não é o caso de se esta­belecer uma linha divisória entre o necessário (racional) eo não-necessário (irracional), mas de se incluir no conceitode razão aquilo que é razoável e escapa ao rigor da lógicaformal e da demonstração. A deliberação consta de urnaação válida, porque eticamente correta, ainda que não ne­cessária, e o seu fundamento de validade é dado pela forçado argumento que a justifique dentro de uma concepçãovalorativa. Uma decisão razoável não corresponde ao merosubjetivismo ou à paixão, mas a um outro tipo de raciona­lidade, intersubjetiva, que se utiliza da técnica argumenta-

vida por uma crença sobre que bem é melhor que realize aqui e agora.Mas para que o fato de ser movido por essa crença seja algo racional,essa própria crença deve ser racionalmente bem fundada; deve sersustentada por razões adequadamente boas. [...] Terá de raciocinar apartir da compreensão do que é bom e melhor como tal, visando auma conclusão sobre o que é melhor para ele realizar aqui e agora nasua situação particular." Cf. Justiça de quem? Qual racionalidade?, p.140 a 144.331. Preleciona Aristóteles que "a origem da ação (sua causa eficientee não final) é a escolha, e a origem da escolha está no desejo e noraciocínio dirigido a algum fim. É por )sso que a escolha não podeexistir sem a razão e o pensamento... ". Btica a Nicômacos, 1139 b.

189

Page 111: 52842935-Margarida-Maria-Lacombe-Camargo-Hermeneutica-e-Argumentacao (2).pdf

tiva e se define pelo consenso. Muito embora o ideal deciência, característico do mundo moderno, tenha excluídodo campo da lógica o pensamento opinativo, não significaque esse tipo de pensamento seja intuitivo ou irracional. Opensamento opinativo é aquele formulado em torno deopiniões comuns e amplamente aceitas em determinadacomunidade; idéias, portanto, admitidas como prováveisna qualidade de verossímeis,332 porque podem ser tomadascomo verdade para efeitos de raciocínio. Perelman perce­be que é próprio do homem, enquanto ser dotado de razão,o deliberar e o argumentar, e que a lógica dos modernosabandonou esse aspecto do pensamento devido aos limitesimpostos pelo raciocínio apodíctico. A partir de então,anuncia uma ruptura com o cartesianismo e estabelece,como paradigma filosófico, a concepção relacional e retó­rica da razão prática. Isto faz com que a razão seja aceitanão do ponto de vista da contemplação, mas do ponto devista da justificação das nossas convicções e das nossas opi­niões.333,334

332. A verossimilhança é uma categoria essencial da retórica. Aristó­teles, quando fala a respeito das proposições que servem de premissaaos silogismos da retórica, vale dizer, aos entimemas, refere-se a pro­posições que não são necessárias, mas simplesmente freqüentes e,portanto, possíveis. O verossímil é o que se produz muitas vezes e deum modo relativo: as coisas podem ser assim ou de outro modo. Pode­ríamos dizer também que o verossímil é uma premissa provável. Fun­ciona como meio de persuasão, na medida em que implica um consen­so espiritual sobre os principais parâmetros da vida em sociedade;portanto, o verossímil é o grande padrão. Cf. Dicionário de Retórica.Georges Molinié. Librairie Générale Française, 1992, p. 336.333. Cf. Rui Alexandre Grácio. Racionalidade argumentativa, p. 22.334. Sobre a obra de Chai"m Perelman cabe destacar o esforço pionei­ro, no Brasil, de Paulo Roberto Soares Mendonça, emA argumentaçãonas decisões judiciais, sua dissertação de mestrado publicada pela Edi­tora Renovar.

190

Logo no início da introdução ao Tratado da argumenta­ção, que escreve junto com Lucie Olbrechts-Tyteca, Pe­relman traz as seguintes considerações, que servem de pre­missa a este seu importante estudo, e que, por tal razão,transcrevemos na íntegra:

A própria natureza da deliberação e da argumentação seopõe à necessidade e à evidência, pois não se delibera quan­do a solução é necessária e não se argumenta contra a evi­dência. O campo da argumentação é o do verossímil, doplausível, do provável, na medida em que este último escapaàs certezas do cálculo. Ora, a concepção claramente expres­sa por Descartes, na primeira parte do Discurso do método,era a de considerar "quase como falso tudo quanto era ape­nas verossímil". Foi ele que, fazendo da evidência a marcada razão, não quis considerar racionais senão as demonstra­ções que, a partir de idéias claras e distintas, estendiam,mercê de provas apodícticas, a evidência dos axiomas a to­dos os teoremas.

O raciocínio more geometrico era o modelo proposto aosfilósofos desejosos de construir um sistema de pensamentoque pudesse alcançar a dignidade de uma ciência. De fato,uma ciência racional não pode contentar-se com opiniõesmais ou menos verossímeis, mas elabora um sistema de pro­posições necessárias, que se impõe a todos os seres racionaise sobre as quais o acordo é inevitável. Daí resulta que odesacordo é sinal de erro. "Todas as vezes que dois homensformulam sobre a mesma coisa um juízo contrário, é certo",diz Descartes, "que um dos dois se engana. Há mais, ne­nhum deles possui a verdade; pois se um tivesse dela umavisão clara e nítida poderia expô-la a seu adversário, de talmodo que ela acabaria po..t: forçar sua convicção."335

335. Tratado da argumentação, p. 1 e 2.Nesse sentido, é ilustrativa a passagem de Marilena Chauí: "Tam­

bém devemos a Aristóteles a definição do campo das ações éticas.

191

Page 112: 52842935-Margarida-Maria-Lacombe-Camargo-Hermeneutica-e-Argumentacao (2).pdf

Mas, na realidade, a grande contribuição de Perelmanpara a Filosofia tem origem no franco descontentamentoque demonstrou em não conseguir resolver, de forma to­talmente satisfatória, com os instrumentos da lógica for­mal, a questão da justiça, conforme propusera em 1945, eque trataremos a seguir.

4.1 A Justiça no pensamento perelmaniano

Podemos dizer que o problema da justiça, além de seruma constante no pensamento de Perelman e de possuirtodo um aspecto subjetivo (de origem judia, alcançou amaturidade nos anos que antecederam a Segunda GuerraMundial), é o ponto central de toda a sua teoria. Centralporque é da tentativa de definir a justiça a partir da lógicaformal- base da sua formação intelectual-, que Perel-

Estas não só são definidas pela virtude, pelo bem e pela obrigação, mastambém pertencem àquela esfera da realidade na qual cabem a delibe­ração e a decisão ou escolha. Em outras palavras, quando o curso deuma realidade segue leis necessárias e universais, não há como nempor que deliberar e escolher, pois as coisas acontecerão necessaria­mente tais como as leis que as regem determinam que devam aconte­cer. Não deliberamos sobre as estações do ano, o movimento dos as­tros, a forma dos minerais ou dos vegetais. Não deliberamos e nemdecidimos sobre aquilo que é regido pela natureza, isto é, pela neces­sidade. Mas deliberamos e decidimos sobre tudo aquilo que, para sere acontecer, depende de nossa vontade e de nossa ação. Não delibera­mos e não decidimos sobre o necessário, pois o necessário é o que é eserá sempre, independentemente de nós. Deliberamos e decidimossobre o possível, isto é, sobre aquilo que pode ser ou deixar de ser,porque para ser e acontecer depende de nós, de nossa vontade e denossa ação. Aristóteles acrescenta à conciência moral, trazida por Só­crates, a vontade guiada pela razão como o outro elemento fundamen­tal da vida ética." Cf. Convite à filosofia, p. 341.

192

man chega à teoria da argumentação, proposta como basepara o novo conhecimento filosófico, rompendo definiti­vamente com a tradição metafísica clássica.

No ano de 1945 publica seu primeiro trabalho sobre ajusti~a, tratando-a sob o ângulo formal. Acreditava que sóm.edl~nte regras que versassem sobre a sua aplicação é quea Justiça poderia ser analisada com algum nível de certezae indiscutibilidade. Fora isso, incidiríamos na natural sub­jetividade dos espíritos quando consideram a utilização devalores. O autor detém-se sobre o critério básico da igual­dade como elemento comum à maioria das concepções so­bre justiça apresentadas desde a Antigüidade - de fato aigualdade sempre se mostrou presente nas discussões ;0­bre a justiça. Como a concepção de igualdade fundamen­ta-se em valores escolhidos de forma aleatória - igualda­de segundo a riqueza, a produção, a beleza etc. -, o autoracaba por estabelecer, como regra de justiça, a igualdadeformal, que o leva a privilegiar o aspecto da legalidade.Legalidade tanto no sentido aristotélico, como parâmetropara a ação justa,336 quanto no sentido do direito positivo,em que a lei é relativizada pelo seu conteúdo. O aspecto dalegalidade, por sua vez, remete-nos ao Estado, que é o enteresponsável pela criação e aplicação da lei e, por conse­qüência, da justiça. A lei é o instrumento que tem por ex­celência a regra da igualdade, porquanto "os seres de umamesma categoria essencial devem ser tratados da mesmaforma", assevera Perelman. 337

O autor apresenta como fórmula de justiça o tratamen­to igual para aqueles considerados iguais, segundo critériosestabelecidos de acordo com os valores que venham a in-

336. Cf. Ética a Nicômacos, capo V.337. O império da retórica, p. 13.

193

Page 113: 52842935-Margarida-Maria-Lacombe-Camargo-Hermeneutica-e-Argumentacao (2).pdf

formar o que ele chama de justiça concreta, ou seja, a cadaqual segundo determinadas características tidas como es­senciais. Mas essas características essenciais, que impor­tem a justiça concreta, como riqueza, produção, antigüida­de, etc., são determinadas aleatoriamente. Privilegiar umcritério em detrimento de outros significa neutralizar asreais diferenças entre os indivíduos. Por exemplo: a esco­lha pelo critério da necessidade, que impõe seja dado acada qual segundo as suas necessidades, faz com que asdemais diferenças se subtraiam ou fiquem neutralizadaspelas reais necessidades de subsistência; o critério da pro­dução, que determina seja dado a cada qual segundo assuas obras, deixa em segundo plano a necessidade, uma vezque recompensa o trabalho produtivo; o critério do lugar,que requer seja dado a cada qual segundo a sua posição,privilegia a origem e a posição social dos indivíduos emdetrimento de outros valores; e, por fim, o critério da lega­lidade, que confere a cada qual segundo o que a lei lheatribui, garantindo uma igualdade exclusivamente formal.

Destarte, a lei, por si só, é atributo de justiça. O impor­tante é que, uma vez estabelecido qualquer critério, a apli­cação da regra se faça de forma igual e uniforme para to­dos. Não obstante os valores que fundamentam esses cri­térios podem variar de sociedade para sociedade nos dife­rentes momentos históricos, e podem servir de fundamen­to aos mais diversos sistemas normativos. Mas como nãoexiste uma lógica para a escolha dos valores, ocorre queeles são determinados de forma arbitrária. Assim Perel­man não encontra uma lógica para uma justiça que se im­ponha como fundamento para o direito. Conclui que aigualdade só pode ser criteriosamente verificada no corre­to procedimento da aplicação da lei. Iluminado pelo pen­samento positivista, Perelman acreditava que o máximoque a filosofia do direito podia pretender era conhecer a

194

justiça sob o seu aspecto formal. Fora isso, preponderariao arbítrio, contrário a qualquer tipo de racionalidade. Sobesse aspecto, a igualdade baseia-se apenas na regularidadeda adoção de certas regras. E independentemente de qualseja a regra e quais os valores que a informam, o importan­te é que se dê tratamento igual a seres unidos pela seme­lhança. Nesse sentido, nada melhor do que a lei para esta­belecer a igualdade. Por exemplo: se a norma prevê quetodas as pessoas que completarem setenta anos devemaposentar-se, todos os membros da categoria "pessoa desetenta anos" obrigatoriamente estarão sujeitas a tal exi­gência. Dessa maneira, os seres sociais encontram-se divi­didos em categorias conforme determinada escala de valo­res; no caso, o descanso remunerado para pessoas de idadeavançada. Logo, a norma jurídica mostra-se, por excelên­cia, como o instrumento mais apropriado a estabelecer va­lores.

Contudo, apesar da estrutura lógica de uma justiça for­mal, apresentada por Perelman como a única justiça possí­vel segundo o parâmetro da igualdade, o autor rompe coma postura positivista-kelseniana e vê o ordenamento jurídi­co firmado sobre uma pauta valorativa. E como os valoressão por natureza arbitrários, nenhum sistema, por maisadiantado que seja, pode ser inteiramente lógico e eliminartoda a sua arbitrariedade. Logo, os princípios gerais de umsistema, em vez de afirmarem o que é, determinam o quevale, mas de forma arbitrária e não fundamentalmente ló­gica, como quer Kelsen quando apresenta a sua norma fun­damental.

Os valores, assim determinados, é que nos permitirãojustificar as regras e viabilizar a existência da justiça, pois,segundo Perelman, só o acordo sobre os valores nos permi­te justificar as regras, eliminando tudo o que favorece ou.desfavorece arbitrariamente os membros de certa catego-

195

Page 114: 52842935-Margarida-Maria-Lacombe-Camargo-Hermeneutica-e-Argumentacao (2).pdf

ria essencial,338 E uma vez existindo tal acordo, a possibili­tar o desenvolvimento racional do sistema normativo, asregras a ele estranhas é qúe poderão ser tidas como arbitrá­rias. Disso se segue o relativismo jurídico de Perelman,que não reconhece a justiça como valor absoluto, possívelde ser fundamentado unicamente na razão, mas relativo,porque fruto da vontade. Logo, a justiça, enquanto mani­festação da razão na ação, deve contentar-se com um de­senvolvimento formalmente correto de um ou de váriosvalores.339 E assim Perelman é levado a distinguir três ele­mentos na justiça: o valor que a fundamenta, a regra que aenuncia e o ato que a realiza.

Os dois últimos elementos, os menos importantesaliás, como expõe Perelman, são os únicos que podemossubmeter a exigências racionais: podemos exigir do ato,que seja regular e que trate da mesma forma os seres inte­grantes da mesma categoria essencial; podemos pedir quea regra seja justificada e que decorra logicamente do siste­ma normativo adotado, mas quanto ao valor que funda­menta o sistema normativo, não o podemos submeter anenhum critério racional, pois ele é arbitrário e logicamen­te indeterminado. Com efeito, embora qualquer valor pos­sa servir de fundamento para um sistema de justiça, essevalor, em si mesmo, não é justo. O que podemos qualificarde justas são as regras que ele determina e os atos que sãoconformes a essas regras.340

Porém, ainda que diante da impossibilidade de pensarlogicamente sobre os valores, o autor não se mostra insen­sível àquelas situações em que a aplicação regular e unifor­me da lei acarreta injustiça. Para os casos em que a lei não

338. Cf. Ética e direito, p. 58 a 60.339. Idem, p. 64.340. Idem, p. 63.

196

se mostre suficiente como parâmetro de justiça, o autorsugere o recurso à eqüidade, que funciona como elementocorretivo às insuficiências do formalismo legal. Perelmandefine eqüidade como a "muleta da justiça", a ser utilizadapara evitar que ela fique manca e de todo vulnerável. Porsua vez, o não-formalismo característico da eqüidade pro­porcionayia ao juiz sopesar duas ou mais características vis­tas simultaneamente como essenciais, fornecendo uma so­lução equilibrada. Mas, como muitas vezes nem mesmo oabrandamento da lei é suficiente, Perelman apresenta,quase que de maneira desesperada, um outro elemento,mais imediato e espontâneo, como forma de se fazer justi­ça: a caridade. Na conclusão desse seu primeiro estudo, oautor faz reveladoras declarações sobre sua insatisfaçãodiante do problem~da aplicação da justiça quando decor­rente exclusivamente da lei. E essas declarações servirãode impulso para a construção da sua Teoria da Argumenta­ção.

Essa imperfeição de todo sistema de justiça, a parte ine­vitável de arbitrariedade que contém, deve sempre estarpresente na mente de quem quiser aplicar suas mais extre­mas conseqüências. (... ] Mas todo sistema normativo im­perfeito, para ser moralmente irrepreensível, deveria aque­cer-se no contato de valores mais imediatos e mais espontâ­neos. Todo sistema de justiça não deveria perder de vistasua própria imperfeição e disso concluir que uma justiçaimperfeita, sem caridade, não é justiça.34!

Ante o problema da racionalidade do acordo sobre osvalores que fundamentam a justiça concreta, conforme foivisto, Perelman declara, quase vinte anos depois, que éuma conclusão desesperadora para um racionalista pensar

341. Idem, p. 67.

197

Page 115: 52842935-Margarida-Maria-Lacombe-Camargo-Hermeneutica-e-Argumentacao (2).pdf

que os valores e as normas fundamentais que guiam nossasações são alheios a qualquer racionalidade, porque produtode interesses e paixões logicamente indetermináveis.342

Daí, a pergunta: É exato que abdicamos do uso da razãoassim que abandonamos o campo do forma1?343

Em 1960, ao falar do ideal de racionalidade e da regrade justiça, Perelman já admitia as seguintes premissas:"Raciocinar não é somente deduzir e calcular, mas é tam­bém deliberar e argumentar" e "a argumentação será qua­lificada de racional quando se achar que ela é válida paraum auditório universal, constituído pelo conjunto dasmentes razoáveis. "344

A partir, então, do resultado limitado e insuficiente desuas constatações sobre a justiça, Perelman, com a colabo­ração de Lucie Olbrechts-Tyteca, seguirá à procura deuma lógica dos valores, por meio de pesquisa empírica so­bre textos relativos à área das ciências humanas, como afilosofia, política e moral, conforme explica,345 de forma aextrair daí os processos de raciocínio que considerasseconvincentes. Ao perceber que não existe uma lógica pró­pria para lidar com valores, mas que, em situações tais,aplica-se a argumentação dialética já desenvolvida porAristóteles, fará, então, sua passagem para a construção da

342. Perelman. "Cinco aulas sobre a justiça" (1962), em Ética e direi­to, p. 183.343. Esta é a pergunta que nos apresenta Grácio ao interpretar o pen­samento de Perelman. Vide Racionalidade argumentativa, p. 33.344. Cf. "O ideal de racionalidade e a regra de justiça", em Ética edireito, p. 94.345. As referências sobre os propósitos de Perelman e que deramensejo à Teoria da Argumentação, mais propriamente sobre o tipo depesquisa empreendida, podem ser encontradas em texto publicadoem 1950, escrito em colaboração com Olbrechts-Tyteca, agora incluí­do na coletânea intitulada Retóricas, p. 57 e segs.

198

No~a. Retórica, que consiste em uma das contribuiçõesmaiS importantes para filosofia do direito contemporânea.

4.2 A Nova Retórica

A partir do problema da justiça, que verifica não poderresolver com os mecanismos da lógica tradicional, Perel­man vê-se mobilizado com a razão, ou o método, que regeas relações sociais, adstritas a valores. Como o próprio ad­mite, seu cuidado especial é o do lógico às voltas com arealidade socia1.346 Tal inquietação, entretanto, já o tinhaaproximado da retórica aristotélica. Perelman confessaidentificar-se com Aristóteles347 quando este se volta paraa busca de um tipo de raciocínio capaz de lidar com incer­tezas, objetivando, naturalmente, alcançar soluções.348

Nesse mister, despreza os ornamentos da oratória, comoparte da retórica antiga, concentrando-se sobre o proble­ma da relatividade e dos valores.

Perelman percebe, em primeiro lugar, que a busca daverdade a partir de opiniões, através do método dialético,pressupõe o diálogo. Por isso, diferentemente da filosofiacontemplativa ou da pesquisa empírica, não basta ao sujei­to sozinho buscar as evidências; é necessária a presença do

346. Cf. Retóricas, p. 58.347. Cf. Retóricas, p. 65.348. O diálogo torna-se dialético, e portanto construtivo, quando, se­gundo Perelman, para além da coerência interna de suas teses osinterlocutores procuram chegar a um acordo sobre o que conside~amverdadeiro ou, pelo menos, sobre as opiniões que reconhecem comoas mais sólidas. A busca da verdade, em Aristóteles, pode partir deproposições não necessárias, mas geralmente aceitas, cujas conclusõestampouco são evidentes, mas as mais conformes com a opinião co­mum. Cf. Perelman, Retóricas, p. 50 e 51.

199

Page 116: 52842935-Margarida-Maria-Lacombe-Camargo-Hermeneutica-e-Argumentacao (2).pdf

interlocutor, que Perelman chamará de "auditório". Ondenão há evidência, há dúvida, e onde a dúvida predomina, aargumentação faz-se necessária. Portanto, a relação é dia­lógica. Com isso Perelman dá curso à Nova Retórica, poisrecuperará dos antigos a prática dialética, fazendo-a res­surgir do obscurantismo a que havia sido relegada pela es­colástica, pelo racionalismo e pelo empirismo. Hoje, "queperdemos as ilusões do racionalismo e do positivismo, eque nos damos conta da existência das noções confusas eda importância dos juízos de valor, a retórica deve voltar aser um estudo vivo, uma técnica da argumentação nas rela­ções humanas e uma lógica dos juízos de valor", diz Perel­man.349 A tanto se propõe a tanto alcança, pois encontra­mos atualmente na Nova Retórica de Cha'im Perelman abase fundamental para a teoria da argumentação. E como aliberdade em deliberar incide sobre a ação humana, umavez que justificamos nossos atos, será nos mecanismos datécnica argumentativa que Perelman irá buscar a racionali­dade própria do direito, considerado também como umcampo de ação: escolha, decisão e pretensão.

O ato deliberativo, ou a ação deliberativa, correspondeà preferência de uma posição (funda~entada em um juízode valor) em detrimento de outras. E a razão orientando aação, ou seja, a práxis. No entanto, a permanência de de­terminada escolha dependerá da aceitação do auditórioque lhe esteja servindo de referência, assim como da forçados argumentos apresentados a título de justificativa. Enessa perspectiva, a Nova Retórica se abre para o múltiploe para o não-coercitivo, valendo-se da tópica e da retóricaaristotélicas. A primeira trata do processo dialético do diá­logo e do confronto entre opiniões, com destaque para ahabilidade no manejo entre teses contrárias, e a segunda,

349. Retóricas, p. 89.

200

do discurso orientado para a arte do bem falar, voltadapara a persuasão e para o convencimento.350

Perelman propositalmente não resgata o termo dialéti­ca, por considerá-lo suficientemente explorado pelos filó­sofos da modernidade e que lhe atribuíram significado di­verso, preferindo o termo "retórica". O que Perelman pre­tende é reabilitar a retórica renovando sua tradição à luz daquestão dos juízos de valor.351 A retórica traz, em primeiroplano, a ação exercida pelo discurso, que, por sua próprianatureza, fundamenta-se em uma relação hermenêutica edialógica, de compreensão e acordo.352 Estabelece-se umaligação pessoal ou intersubjetiva, ao contrário do que ocor­re nas explicações analíticas, em que o ouvinte está fadadoa se submeter à evidência. Para a retórica é fundamental oelemento pessoal tanto do orador quanto do auditório.

350. Lembra-nos Perelman que "a retórica foi considerada pelos anti­gos como a arte de bem conduzir, não somente a palavra, mas tambémo pensamento. Falar bem quer dizer falar de modo que se convença.Ora, falar de modo que se convença quer dizer falar de um modoeficaz; mas essa eficácia se apresenta de formas muito diversas e éobtida por meios diferentes, conforme se adapte a ignorantes ou apessoas competentes. Não se trata somente de falar, trata-se de racio­cinar." Ética e direito, p. 114.351. Para Grácio, "a idéia é reabilitar uma metódica cujas premissasconstituem-se em juízos de valor". Cf. Racionalidade argumentativa,p.71.352. Sobre a importância da teoria de Perelman para o desenvolvi­mento da hermenêutica, vale destacar as palavras de alivier Reboul:"Essa é a função hermenêutica da retórica, significando 'hermenêuti­ca' a arte de interpretar textos. Na universidade atual, essa função éfundamental, para não dizer única. Não se ensina mais retórica comoarte de produzir discursos, mas como arte de interpretá-los. [...] Masaí a retórica recebe outra dimensão; não é mais uma arte que visa aproduzir, mas uma teoria que visa a compreender." Introdução à retó·ríca, p. XIX.

201

Page 117: 52842935-Margarida-Maria-Lacombe-Camargo-Hermeneutica-e-Argumentacao (2).pdf

Po~anto, Perelman 110S fala de uma "comunhão de espíri­tos entre o orador e seus ouvintes, e define o objeto daNov~ Retórica c~mo o estudo dos meios de argumentaçãomedIante os quaIs conseguimos obter ou aumentar a ade­são dos outros pelas nossas teses. 353

Aristóteles define a retórica como a arte de buscar emq~alquer situação os meios de persuasão disponíveis. NósdIremos que tem por objeto o estudo de técnicas discursivasq.ue tratam de provocar e de acrescentar a adesão dos espí­ntos a teses que se apresentam para o seu assentimento.354

Cabe destacar, no entanto, que não se trata de analisartécnicas de argumentação simplesmente pela sua eficáciamas sim pela qualidade valorativa do fundamento que sus~tent~e~ta eficácia. Senão vejamos: toda a atividade propa­gandIstlCa, ou de marketíng, procura convencer um audi­tório sobre as vantagens de determinado produto, almejan­do obter a concordância da clientela potencial sobre suasqualidades, e concretizar a adesão na venda. Nitidamentenão é este tipo de argumentação que interessa à Nova Re~

~óri~~. Inter~ssa-lhe, antes, a fundamentação racional queJustifIca o agIr humano: por que nos posicionamos de umafor:na e não de outra; por que tomamos um tipo de decisãoe nao outro; por que uma solução se mostra mais adequadado que outra. Para a argumentação que nos interessa écaracterístico o elemento dialético, ou seja, é fundamen~alque exista a possibilidade de um contrário em relação aoqual devamos argumentar, senão caímos numa esfera de

353. Em síntese: "A Nova Retórica é o estudo das técnicas discursivasque tratam de provocar ou de acrescentar a adesão a teses apresenta­das. a um determinado auditório". Chaim Perelman, em A Lógica Ju­rídIca e a Nova Retórica, p. 151.354. Idem, p. 139.

202

decisões fúteis, para as quais não existem argumentos, poiso que é fútil é vão; é insignificante.

O encadeamento de proposições que nos leva a umaidéia provável ou verossímil, mas que sustentada em argu­mentos fortes pode enfrentar oposição, refere-se à racio­nalidade das relações humanas, marcadas pela intersubje­tividade, mantida, até então, fora do campo da lógica. Opapel da Nova Retórica será, justamente, o de buscar umoutro tipo de lógica que não se resuma na lógica formal,matemática, e que permita tirar a práxis do campo da irra­cionalidade. No lugar da lógica que requer rigor de proce­dimento para conclusões corretas, a partir da evidência desuas premissas, a lógica que agora se instaura é a lógica dopreferível àquilo que justificadamente se apresente comomais razoável ou mais adequado para cada situação, ou me­lhor, para cada problema concreto.

Ora, sabe-se que toda deliberação humana, determina­da que é por juízos de valor, é refratária a qualquer de­monstração de certeza com base em axiomas que não ca­bem ser questionados. Pergunta-se, por exemplo, por quedeterminada decisão pode ser considerada boa e não má, eo que define uma decisão justa, adequada ou razoável. Se­gundo Perelman, estas são perguntas conformadas em juí­zos possíveis de serem estabelecidos em um campo de mú­tua aceitação e que não se impõem linearmente. Diante,então, da ausência de uma lógica própria aos juízos de va­lor, tal como encontramos nas ciências exatas, o autor ve­rifica que onde há controvérsia prevalecem, em vez da ló­gica, as técnicas da argumentação, que se apresentamcomo via propícia ao acordo.355 A teoria da argumentação,

355. Michel Meyer atenta para as relações de intersubjetividade queassumem a prática retórica nas sociedades pluralistas: "Desta discipli­na de contornos híbridos, que Aristóteles se esforçou por salvar do

203

Page 118: 52842935-Margarida-Maria-Lacombe-Camargo-Hermeneutica-e-Argumentacao (2).pdf

esclarece Perelman, não tem como meta substituir a teoriada demonstração, mas apenas preencher o vazio deixadopor ela, quando se pretendia unívoca. Outrossim, não sepretende, com a Nova Retórica, formalizar o raciocínio va­lorativo atribuindo-lhe logicidade, mas reconhecer-lhe ummecanismo próprio: a argumentação. Esta, na realidade,foi a conclusão a que chegaram Perelman e Olbrechts-Ty­teca como resultado de suas pesquisas. Ao indagarem so­bre a existência de uma lógica de valores relativa ao racio­cínio que acompanha a justificação de uma opção em lugarde outra, ou de outras, perceberam que isso não era possí­vel, mas que situações desse tipo ocorriam mediante a dis­puta de argumentos. Aristóteles já havia desenvolvido essateoria nos Tópicos, na Retórica e na Refutação aos sofistas.

Diferentemente da lógica analítica, que é impessoal, alógica dialética parte de opiniões geralmente aceitas portodos, ou pela maioria, ou pelos mais notáveis, que, me­diante técnicas de convencimento e persuasão, pretendeagir sobre os espíritos.

nada ao qual a votara Platão, resta talvez uma especificidade que amodernidade soube explorar: o papel da subjetividade. É verdade queela não é assim chamada pelos gregos, mas podemos apesar de tudoreferenciar os seus sinais e a sua presença através da contingência dasopiniões, da livre expressão das crenças, das oposições entre os ho­mens, que procuram afirmar as suas diferenças ou, pelo contrário,superá-las para fazer emergir um consenso. [... ]

Com efeito, a retórica é o encontro entre os homens e a linguagemna exposição das suas diferenças e das suas identidades. Nela elesafirmam-se para se reencontrarem ou repudiarem, para encontrar ummomento de comunhão ou, pelo contrário, para evocarem a sua im­possibilidade e constatarem o muro que os separa. [... ]

Daí a nossa definição: a retórica é a negociação da distância entreos sujeitos." Essa negociação tem lugar através da linguagem. Bases daRetórica, p. 33, 41 e 42.

204

O autor apresenta uma proposta renascentista à medi­da que procura nos antigos uma base de apoio para a suateoria. Remonta aos sofistas, que foram os verdadeirosmestres da retórica oral; e a Aristóteles, com a sua concep­ção de dialética.356 Dá ao seu trabalho o título de NovaRetórica, porque mais abrangente e complexo do que aretórica clássica, baseada exclusivamente na oratória volta­da para um público presente e não especializado. A NovaRetórica, ao contrário, não se limita à prática política dosantigos, firmada na oralidade e em públicos homogêneos,mas assume a linguagem moderna, apoiada na escrita e emoutros meios de comunicação mais sofisticados que atin-

356. Aristóteles estabelece a distinção entre o raciocínio dialético e oanalítico. A dialética trata do verossímil, e tem por base a deliberaçãoe a argumentação; a analítica cuida de proposições necessárias ou in­questionáveis, com base na demonstração. A conclusão ou resultadoda primeira via dá-se em função da persuasão, e da segunda via, emfunção da evidência.

Cabe reproduzir, ainda que sujeitando-nos à exaustão, a distinçãoque Perelman faz entre os raciocínios dialético e analítico, seguindoAristóteles, por consistir na base de todo este nosso estudo. Raciocí­nio analítico é aquele que parte de premissas necessárias ou, pelomenos, indiscutivelmente verdadeiras que conduzem, graças a infe­rências válidas, a conclusões igualmente necessárias ou verdadeiras.Os raciocínios analíticos transferem a necessidade ou a veracidade daspremissas para a conclusão. É impossível que a conclusão não sejaverdadeira se se raciocina corretamente a partir de premissas verda­deiras. A validez da inferência, por sua vez, não depende, para nada,da matéria sobre a qual se raciocina. O que garante a validez do racio­cínio é a sua forma. Raciocínio dialético é o que Aristóteles examinounos Tópicos, na Retórica e na Refutação aos sofistas. Não busca estabe­lecer demonstrações científicas, mas guiar deliberações e controvér­sias. Tem por objeto os meios de persuadir e de convencer por meiodo discurso, de criticar as teses dos adversários e de defender e justi­ficar as próprias com a ajuda de argumentos mais ou menos sólidos.Vide Lógica Jurídica, Introdução, p. 9 e segs.

205

Page 119: 52842935-Margarida-Maria-Lacombe-Camargo-Hermeneutica-e-Argumentacao (2).pdf

gem públicos quantitativa e qualitativamente variados.357

Para a Nova Retórica, a técnica mais apropriada ao oradornão depende tanto de sua performance, mas da qualidadedos seus argumentos e do auditório ao qual ele se dirige. Ofator da intersubjetividade passa a ser então fundamentalpara a compreensão da ação comunicativa, principalmentenas discussões que antecedem toda tomada de decisão.

Em vez de encontrar um significado representativo epróprio para cada ação, considerada de per si, o conheci­mento humano se estabelece em meio a circunstâncias eauditório variados, que balizam o discurso entre os ho­mens. Alguns autores têm apontado para a mudança deparadigma ocorrida na filosofia, a partir do Iluminismo, emdireção a uma nova racionalidade. A universalidade e a ho­mogeneidade da razão cedem lugar agora a um outro tipode racionalidade, operacionalizada por meio da linguagem:a racionalidade persuasiva, intrinsecamente dialógica. De

357. Sobre as características da Nova Retórica, escreve Rui AlexandreGrácio: "Uma diferença fundamental entre a retórica dos Antigos e aNova Retórica diz respeito à noção de auditório. Enquanto na primeiraa argumentação retórica diz respeito à arte de bem falar em público,ao uso da palavra e ao discurso oral perante um grupo de pessoaspouco capazes de um raciocínio minucioso ou pouco dadas ao trabalhode proceder, com seriedade, a uma investigação prévia, destinando­se, por isso, a um público de ignorantes, já na perspectiva da segundanão há motivos nem para limitar o campo da argumentação ao discursofalado, nem para restringir o auditório a um grupo de incompetentes.Com efeito, interrogam-se os autores de Traité, 'por que não admitirque as argumentações possam ser dirigidas a toda a espécie de auditó­rios?'. Neste sentido torna-se possível afirmar, no contexto alargadoem que a nova retórica concebe a noção de auditório, que não só adiscussão com um único interlocutor como, ainda, a deliberação ínti­ma fazem parte integrante duma teoria geral da argumentação e que oobjeto de estudo desta última ultrapassa largamente os limites da re­tórica clássica." Racionalidade argumentativa, p. 74.

206

acordo com José Américo Pessanha, a descoberta do novocampo de argumentação põe fim à exclusividade da razãomonológica. Assim alega que "à razão necessitária, compretensão de universalidade e atemporalidade, contrapõe­se - completamente - a razão imersa na contingência, natemporalidade, na história" .358

No mesmo sentido, Stephen Toulmin fala sobre a ten­dência da filosofia atual em direção ao (inter)subjetivismohistórico, quando é deslocado o eixo da antiga preocupa­ção voltada para o estudo de "proposições" atemporais,para o estudo agora feito sobre as "elocuções" relativas amomentos particulares, ou seja, elocuções provenientes deum conjunto de circunstâncias particulares e que visam ainteresses particulares. De tal maneira escreve:

O objetivo da investigação filosófica era assim o de elu­cidar as relações universais e persistentes entre linguagem efatos - pensamento e realidade - que escapavam às corro­sivas diversidades de linguagens e culturas particulares. [...]Presentemente, questões sobre as circunstâncias em que osargumentos são apresentados, ou sobre a audiência a quedirigem - numa palavra, questões "retóricas" - desaloja­ram questões de validade formal enquanto preocupação pri­mária da filosofia, mesmo da filosofia da ciência. O recursoà teoria já não serve como tribunal último de recurso inte­lectual: eles são antes topoi num sentido aristotélico: úteisem algumas circunstâncias, irrelevantes noutras. [... ] J:transição de proposições para elocuções está a par da tranSi­ção da teoria para a prática, e da transição da episteme para

358. Vide José Américo Pessanha. "A teoria da argumentação ou novaretórica".

Manuel Maria Carrilho também é da opinião de que a Nova Retó-rica corresponde à definição de um novo campo de investigação pro­posto por Perelman para a Filosofia, capaz de romper o bloco monolí­tico cartesiano característico da tradição racionalista moderna. Cf.Jogos de racionalidade, p. 47-8.

207

Page 120: 52842935-Margarida-Maria-Lacombe-Camargo-Hermeneutica-e-Argumentacao (2).pdf

a phronesis. [... ] Isto significa ir além das estritas pretensõesda racionalidade formal (episteme) para chegar às mais am­plas pretensões da razoabilidade humana (phronesis). 359

A propósito, anota Rui Alexandre Grácio na introdu­ção que faz à edição portuguesa de O império retórico:

A filosofia, mais do que encontrar-se ligada à posse daverdade, associa-se à crença na verdade e à aspiração detornar a verdade, em que o filósofo crê, admitida por outraspessoas, e, eventualmente, por todas as pessoas (ou, emtermos perelmanianos, pelo chamado auditório universal).Ora, esta admissão, esta tentativa de fazer admitir certasteses, só pode ser realizada através de meios argumentati­VOS. 360

Os filósofos da metafísica clássica que preconizavam avida contemplativa e a busca da verdade absoluta deveriam

359. "Racionalidade e razoabilidade", em Retórica e comunicação, p.21e27,28e29.

Achamos válido transcrever, ainda que para efeitos didáticos, otrecho da página 22, em que este autor localiza, historicamente, osurgimento e a importância do modelo cartesiano: "Antes de 1620, osfilósofos levaram a linguagem oral tão a sério como a escrita; os acon­tecimentos particulares tão a sério como as regularidades universais;os aspectos locais, no seu tempo próprio, da prática médica (porexemplo) tão a sério como as leis gerais, atemporais, da teoria fisioló­gica (por exemplo). Em suma, refletiram em assuntos práticos tãoprofundamente como nas questões teóricas. Mas, depois de Descar­tes, o centro de investigação filosófica mudou: das elocuções orais, edas práticas particulares, situadas no tempo, para questões relativas ateorias universais e atemporais, tal como se expressam nas proposi­ções escritas. E, nos trezentos anos seguintes, este novo centro deinvestigação estabeleceu os padrões do debate filosófico sobre 'razão'e 'racionalidade', bem como sobre 'conhecimentos' e 'método'."360. Rui Alexandre Grácio na introdução de O império retórico, deChaim Perelman, p. 10.

208

aderir à retórica, que se utiliza da palavra para defenderverdades históricas e relativas. A teoria da argumentação,enquanto primado da técnica de influenciar os homenspela palavra, e que se mostra essencial na vida ativa, cobri­rá todo o campo discursivo voltado para o convencimentoe para a persuasão, seja qual for o auditório e a matériatratada. A lógica jurídica, por sua vez, consistirá justamen­te na aplicação particular da Nova Retórica ao direito.Onde a controvérsia é inevitável, o recurso à argumentaçãose impõe; da mesma forma que todo discurso que não as­pira a uma validade impessoal depende da retórica.

Perelman identifica a retórica com a argumentação en­quanto teoria geral do discurso persuasivo, colocando emprimeiro plano a questão da adesão do auditório. Esta po­sição lhe rendeu muitas críticas, como, por exemplo, aque­la apresentada por Armando Plebe e Pietro Emanuele. Es­tes autores acreditam que Perelman, na realidade, contri­buiu para o empobrecimento da Nova Retórica ao descon­siderar um dos seus elementos mais ricos, que seria a in­ventio. Segundo eles, Aristóteles, quando muito, teria in­dicado a proximidade da retórica com a dialética sem, noentanto, identificá-las entre si. Perelman, dessa maneira,teria apresentado uma postura mais executiva do que cria­tiva, limitando-se a encontrar os argumentos destinados apersuadir e consolidá-los sob a forma de inventário. Dastrês partes da retórica, teria se servido apenas da última,que é a elocutio, capaz de adaptar palavras e expressões,abandonando as duas primeiras: inventio e dispositio. 361

361. A lnventio é considerada a primeira das cinco grandes partes daretórica. Fundamentalmente, é a escolha da matéria a ser tratada nodiscurso e dos procedimentos lógico-discursivos que emolduram odesenvolvimento do discurso. A dispositio consiste na organização dodiscurso, no sentido de se inventar o ordenamento e a coerência dos

209

Page 121: 52842935-Margarida-Maria-Lacombe-Camargo-Hermeneutica-e-Argumentacao (2).pdf

No entanto, não podemos esquecer que para o direito,e talvez também para Perelman, a ínventío encontra-se li­mitada a um sistema conceitual de elementos lingüísticospreviamente determinado; donde, a escolha de temas e deconceitos encontra-se fora de qualquer cogitação. E quan­to à escolha do esquema de ordenação categorial, por meiodo qual devemos pensar o direito, é-nos também impostauma estrutura sistemática inerente à categoria de validade,inafastável da dogmática jurídica. Por esse motivo, não éincorreto de nossa parte buscar na Nova Retórica, propos­ta por Perelman, elementos esclarecedores da lógica jurí­dica, bem como, na Tópica de Viehweg, um modelo deinterpretação. Outrossim, a mencionada identidade entreretórica e argumentação pressuposta por Perelman temsido amplamente reconhecida e justificada pelos seus sim­patizantes, como opção estratégica capaz de estabelecerum novo paradigma de racionalidade.

Por outro lado, o estudo da retórica e da argumentaçãoa partir da teoria do discurso e da linguagem, bem comotodo o lado da retórica voltado para a oratória e para aestética, partes da poética, fogem do alcance deste traba­lho, que se reporta única e exclusivamente ao estudo dodireito. Não olvidamos, em hipótese alguma, a importân­cia que a ação comunicativa processada por meio da lin­guagem tem para o direito. Não obstante, preferimos con-

pensamentos, como a escolha entre as diversas maneiras de se adotaros diferentes sistemas categoriais, chamados pelos ingleses de catego­rial frameworks. A elocutio é a parte da retórica que preside simulta­neamente a seleção e o arranjo das palavras no discurso. Sua qualidadeessencial é a claridade. É a elocutio que deve receber os ornamentos dodiscurso. Ela é igualmente o suporte da ênfase e do lugar de manifes­tação das sentenças. No curso da história, este termo tomou o sentidode estilo. Cf. Dicionário de Retórica. Georges Molinié; e ArmandoPlebe e Emanuele Pietro, em Manual de Retórica.

210

centrar nossos esforços sobre a reflexão da importânciadas técnicas argumentativas utilizadas no interior dos tri­bunais, como prática jurisprudencial, no intuito de verifi­car a procedência dessa "nova" racionalidade oriunda darelação entre os comunicadores da relação jurídica quandoprocuram adesão para as suas teses.362

4.3 O Auditório Universal

A ênfase dada por Perelman à idéia de auditório corres­ponde, antes, à relatividade que o mesmo vê com relaçãoà verdade e à sua dimensão histórica, ao contrário doque propõe Descartes, quando procura um método úni­co e universal, conforme a ordem natural e independen­te de qualquer auditório, capaz de conduzir a uma únicaverdade. 363

O auditório é um dos elementos fundamentais da retó­rica: é o referencial da retórica. A partir dele, ou para ele,é que o discurso se dirige, e é dele que se procura obteradesão. No entanto, diante da evidência, isto é, diante deuma tese por si só inquestionável, cabe ao orador apenasbuscar a simpatia do auditório, pois que, nesse caso, adere-

362. Referimo-nos aqui às pesquisas que vêm sendo desenvolvidas noSetor de Direito da Casa de Rui Barbosa, em convênio com o Depar­tamento de Direito da PUC-Rio.363. Rui Alexandre Grácio interpretando o pensamento de Descartesescreve: "Segundo Descartes, o método espelha a unicidade da ordemracional e assegura o rigor dos raciocínios. Mas, como sabemos, não éapenas esta a sua função: ele procura assegurar, também, a certeza e aobjetividade dos conhecimentos e está, por isso, ligado às idéias deevidência, clareza, e distinção, as quais garantem a verdade das pre­missas, a validade dos raciocínios e a certeza das conclusões." Racio­nalidade argumentativa, p. 25.

211

Page 122: 52842935-Margarida-Maria-Lacombe-Camargo-Hermeneutica-e-Argumentacao (2).pdf

se à tese ou não. Mas as teses baseadas em opiniões razoá­veis não são taxativas e provocam uma intensidade variávelde tom no auditório, que pode convencer-se mais ou me­nos daquela posição. O encontro de idéias provocado pelaargumentação e pelo convencimento é, para Perelman, overdadeiro "encontro dos espíritos". Cabe mais uma vezlembrar que é em função de um auditório que a argumen­tação se desenvolve. Por isso, ela pressupõe a existência deum contato intelectual. Basta falarmos em discurso, para aidéia de auditório aparecer.

Na argumentação é de fundamental importância o ele­mento pessoal, ou seja, que o orador tenha apreço e sejaapreciado pelo auditório ao qual se dirige. Ambos têm dese sentir valorizados: o orador, por suas qualidades, paraque seja ouvido; e o auditório, pela importância de ter sidoselecionado como ouvinte a ponto de sentir-se valorizado etambém querer ouvir. Esse querer mútuo é o que provocao contato intelectual entre o orador e o auditório, tão es­sencial na teoria perelmaniana.

O orador é quem discursa ~presentando a argumenta­ção; e o auditório, aquele indivíduo ou aquele grupo deindivíduos a quem o discurso se dirige, e que, ao mesmotempo, mostra-se apto a recebê-lo. O auditório consiste noconjunto daqueles cuja adesão quer-se ganhar; e, por isso,é antes um ato mental do que propriamente material. Aquestão não é tanto a de localizar ou verificar a existênciaconcreta do auditório, mas a de imaginar aqueles a quempretendemos convencer, em função dos seus atributos in­telectuais. Logo, o auditório é uma construção imagináriado orador: um ideal que lhe serve de idéia reguladora. Poroutro lado, o orador sofre influência constante do auditó­rio, e por isso não raramente vê-se obrigado a adaptar o seudiscurso às reações manifestadas pelo auditório. No casodos agentes estarem presentes quando o discurso é ao vivo,

212

esse processo da adaptação é mais intenso. O orador preci­sa estar bastante atento às reações que provoca no auditó­rio, quando presente. Algumas vezes, inclusive, a presençado auditório contribui para o sucesso do orador, pois estepercebe as reações de imediato e tem condições de contor­nar obstáculos antes não previstos, reformular idéias quenão ficaram claras, enfatizar afirmações que percebe agra­darem ao público, evitar outras questões, etc.

Com a argumentação procura-se, ainda, não apenasprovocar a adesão do auditório para a tese apresentada,como também incitar a ação correspondente. Pere1manchega a dizer que a ação do orador é uma agressão, poissempre tende a mudar algo; a transformar o ouvinte.364 Afinalidade do discurso é a de reforçar a comunhão em tor­no de valores que deverão prevalecer de forma a orientar aação futura. Nesse sentido, e de acordo com Pere1man,cabe a distinção entre persuasão e convencimento. Apesarda tênue diferença entre esses dois tipos de efeito, a per­suasão pode ser entendida como um incitamento à imagi­nação e ao sentimento provocador da ação, enquanto oconvencimento refere-se ao incitamento da razão, quepode ou não levar à ação. Perelman estabelece essa dife­rença em função da qualidade do auditório:

Propomo-nos chamar persuasiva a uma argumentaçãoque pretende valer só para um auditório particular e chamarconvincente àquela que deveria obter a adesão de todo serracional. O matiz é bastante delicado e depende, essencial­mente, da idéia que o orador faz da encarnação da razão.Cada homem crê num conjunto de fatos, de verdades, quetodo homem "normal" deve, segundo ele, aceitar, porquesão válidos para todo ser racional. Mas será realmente as­sim? Essa pretensão a uma validade absoluta para qualquer

364. Cf. Retóricas, p. 371.

213

Page 123: 52842935-Margarida-Maria-Lacombe-Camargo-Hermeneutica-e-Argumentacao (2).pdf

auditório composto de seres racionais não será exorbitante?Mesmo o autor mais consciencioso tem, nesse ponto, desubmeter-se à prova dos fatos, ao juízo de seus leitores. Emtodo caso, ele terá feito o que depende dele para convencer,se acredita dirigir-se validamente a semelhante auditório.365

Um discurso convincente é aquele cujas premissas e cu­jos argumentos são universalizáveis, isto é, aceitáveis, em

, d b d d'" . I 366prinCIpio, por to os os mem ros o au ltono UnIversa .

Com isso, o autor introduz a noção inovadora e particu­lar de sua teoria: a do auditório universal. Distingue umasérie de auditórios, apesar de reconhecer a possibilidadede serem infinitos. Existirão tantos auditórios quantospossam ser criados, afirma. Alguns tipos, no entanto, sedestacam: os auditórios correspondentes aos núcleos deapoditicidade, conhecidos como auditórios "científicos";os auditórios que poderíamos chamar de "singulares", por­que característicos do diálogo entre apenas duas pessoas; oauditório "individual", relativo às deliberações internas oude foro íntimo; os auditórios de "elite", correspondentesaos grupos de vanguarda; enfim, auditórios particulares detoda ordem mas, em especial, o "auditório universal". Osargumentos dos auditórios particulares, no entanto, sãofracos em comparação à força objetiva dos argumentos di­recionados para o auditório universal, que encarna a razão.Os argumentos dirigidos ao auditório universal são aquelesdotados de uma grande pretensão de verdade.

O orador precisa conhecer o auditório ao qual se dirige,principalmente as teses que comungam. Nos núcleos cien­tíficos, por exemplo, discute-se sobre teses relativas a umcampo específico do conhecimento, cujo domínio básico é

365. Perelman. Tratado da argumentação, p. 31.366. O império retórico, p. 37.

214

compartilhado pelos seus integrantes. Com relação a estes,o orador praticamente não precisa se preocupar, à medidaque também compartilhe do conhecimento comum que adoutrina divulga.

Com relação aos auditórios que chamamos de singula­res - compostos por uma só pessoa, além do orador -,são, por um lado, menos complexos, mas, por outro, po­dem exigir muito do orador e tornar a situação estafante.Primeiro, porque não é o número de ouvintes que caracte­riza a complexidade dos argumentos, mas a qualidade doouvinte; segundo, porque a presença exige muito maisprontidão por parte do orador, que deverá estar sempreatento às reações e provocações daquele que tem acessodireto sobre nós.

O auditório pode, ainda, referir-se à pessoa do próprioorador no caso das deliberações íntimas, em que o sujeitopromo~e suas próprias convicções após um exercício desimulação entre teses possivelmente controvertidas.

Os auditórios que Perelman chama de auditórios deelite constituem-se daqueles que gozam de reputação e decarisma, e que, portanto, são responsáveis pelo exemploque produzem. Mas, além de um sem-número de auditó­rios especializados que possam vir a existir, é o auditóriouniversal o que mais interessa a Perelman. O a;tditóriouniversal é aquele para o qual o filósofo se dirige. E a fonteimanente da razão. A respeito, Perelman escreve:

Os filósofos sempre pretendem dirigir-se a um auditórioassim, não por esperarem obter o consentimento efetivo detodos os homens - sabem muito bem que somente uma pe­quena minoria terá um dia a oportunidade de conhecer seusescritos -, mas por crerem que todos os que compreende-

- - d d . , I - 367rem suas razoes terao e a enr as suas conc usoes.

367. Perelman. Tratado da argumentação, p. 35.

215

Page 124: 52842935-Margarida-Maria-Lacombe-Camargo-Hermeneutica-e-Argumentacao (2).pdf

o auditório universal significa, para ele, a própria ra­zão, ou seja, aquela força que se impõe às mentes esclare­cidas, mais especificamente aos sábios. É o auditório típicodo filósofo, ou melhor, aquele concebido pelo filósofo. Nãose trata de ter efetivamente como resultado a conquista domaior número, bastando a intenção do orador: se ele pre­tende obter a adesão de alguns, ou de todos os seres dota­dos de razão.368 O auditório corresponde a um conjuntoque o orador pretende influenciar pela sua argumentação.Para Perelman, convencer um número determinado de es­pecialistas é mais fácil quando suas teses já gozam de cre­dibilidade. O papel do filósofo, ao contrário, é mais difícil,porque sua fala é dirigida a todos os que estão dispostos eaptos a ouvi-lo; no caso, pode ser a humanidade inteira ou,ao menos, os mais competentes e razoáveis.369 O filósofo

368. Interessante é a interpretação de auditório universal dada porOlivier Reboul: "Em suma, o auditório poderia ser apenas uma preten­são, ou mesmo um truque retórico. Mas achamos que ele pode teruma função mais nobre, a do ideal argumentativo. O orador sabe bemque está tratando com um auditório particular, mas faz um discursoque tenta superá-lo, dirigido a outros auditórios possíveis que estãoalém dele, considerando implicitamente todas as suas expectativas etodas as suas objeções. Então o auditório universal não é um engodo,mas um princípio de superação, e por ele se pode julgar da qualidadede uma argumentação." Introdução à retórica, p. 93-4.369. Cabe assinalar aqui a crítica feita por Boaventura de Souza San­tos à teoria de Perelman, a partir dos avanços conquistados pela mes­ma. Numa visão pós-moderna, de transição paradigmática, Santospropugna a democratização do auditório, a partir da emancipação dosenso comum. Do que chama de "conhecimento-emancipação cons­truído a partir das tradições epistemológicas marginalizadas da mo­dernidade ocidental", acrescenta: "A única coisa que nos diz é queeste conhecimento assume inteiramente o seu caráter retórico: umconhecimento prudente para uma vida decente. Para poder contribuirpara a reinvenção do conhecimento-emancipação, a nova retórica temde ser radicalmente reconstruída. A retórica de Perelman é técnica

216

procurará fatos, verdades e valores universais que, emprincípio, se imponham a todo ser dotado de razão e queseja suficientemente esclarecido.370

A idéia de universalidade proposta por Perelman, como auditório universal, é-lhe muito cara e, talvez por isso,gere polêmica entre os estudiosos. Apesar de Perelman seinsurgir reiteradas vezes contra a chamada filosofia clássi­ca, não raro ele se refere a Platão e a Kant,371 reforçando aimportância de um saber universal que se imponha coerci­tivamente às mentes razoáveis. Não obstante, a sua con­cepção de universalidade tem um aspecto relativista.Quando afirma, por exemplo, que qualquer auditório, pormais especializado que seja, pode encarnar o auditório uni-

(por exemplo, não adjudica entre as duas formas de influenciar, entrepersuasão e convencimento); parte do princípio de que o auditório e,conseqüentemente, a comunidade, são dados imutáveis, não refletin­do, assim, nem os processos sociais de inclusão neles ou de exclusãodeles, nem os processos sociais de criação e de destruição de comuni­dades; por último, é manipuladora porque os "oradores" visam apenasinfluenciar o auditório e não se consideram influenciados por ele, ex­ceto na medida em que se lhe adaptam para conseguirem influenciá­lo. Em resumo, a retórica de Perelman é, no meu entender, demasiadomoderna para poder contribuir para o conhecimento pós-modernosem uma alteração profunda. A crítica radical à nova retórica deve,portanto, conduzir a uma novíssima retórica." Boaventura de SouzaSantos, A crítica da razão indolente, p. 103 e 104.370. O império retórico, p. 36.371. Sobre a aproximação do auditório universal com o imperativocategórico kantiano, reproduzimos a seguinte passagem de Perelman:"Para nós, o apelo à razão se dirigiria ao auditório universal. Umaargumentação racional seria, como a ação moral em Kant, conforme aoimperativo categórico: o melhor argumento seria aquele que, na men­te do orador, deveria convencer todos os homens suficientementeinformados. Mas, como a argumentação, mesmo racional, não é coer­civa, só pode tratar-se de uma intenção de racionalidade na cabeça doorador." Ética e Direito, p. 536.

217

Page 125: 52842935-Margarida-Maria-Lacombe-Camargo-Hermeneutica-e-Argumentacao (2).pdf

versal, uma vez que se acredita na universalidade de seusargumentos, sua assertiva pode parecer paradoxal, mas, narealidade, a universalidade à qual o filósofo se dirige é his­toricamente relativizada. Perelman acredita que para dife­rentes épocas e diferentes locais sejam admitidas idéiascomo absolutamente verdadeiras. Absolutamente porque,de acordo com cada cultura, é tudo o que o homem podealcançar.372

De acordo com Perelman, toda vez que o orador estáconvencido dos seus argumentos, ele tem como pretensãonatural dirigir-se ao auditório universal, muito emboradeva reconhecer que, por mais fortes que sejam os argu­mentos, exíste sempre a possibilidade de uma tese oposta.Por outro lado, em vez de enxergarmos o auditório univer­sal como análogo ao que o racionalismo propunha, ou seja,admitir verdades como se fossem mensagens divinas, po­demos caracterizá-lo em função da imagem que o oradorfaz de seus semelhantes. O orador sempre olhará para oseu semelhante como para si próprio e, assim, cada cultu­ra, cada indivíduo tem a sua própria concepção de auditó­rio universal. Tanto que, segundo Perelman, o estudo des­sas variações seria muito instrutivo, uma vez que nos fariaconhecer o que os homens consideram, no decorrer da his­tória, como real, verdadeiro e objetivamente válido.373 Apropósito da ambigüidade que pode ser vista na idéia de

372. Para ilustrar a idéia de auditório universal Rui Alexandre Gráciodestaca os dois principais escritos de Santo Tomás de Aquino: a Sum­ma Theologica e a Summa Contra Gentiles. Ambos, segundo Grácio,tratavam basicamente da mesma coisa, mas foram escritos de formasdiferentes, de acordo Com cada público: um para teólogos e outro,como obra do filósofo, sem distinção, capaz de alcançar também aque­les que não acreditavam na Igreja. Um deles era voltado para os cató­licos e o outro para qualquer ser dotado de razão.373. Tratado da argumentação, p. 37.

218

auditório universal, achamos prudente reproduzir a se­guinte passagem da obra de Perelman, pelo tom assaz es­clarecedor:

o auditório universal tem a característica de nunca serreal, atualmente existente, de não estar, portanto, submeti­do às condições sociais ou psicológicas do meio próximo, deser, antes, ideal, um produto da imaginação do autor e, paraobter a adesão de semelhante auditório, só se pode valer depremissas aceitas por todos ou, pelo menos, por essa assem­bléia hipercrítica, independente das contingências de tem­po de lugar, à qual se supõe dirigir-se o orador. [... ] Mas,assim como é freqüente acontecer que tenhamos, simulta­neamente, vários interlocutores, que ao discutirmos comum adversário procuremos também convencer as pessoasque assistem à discussão, assim também acontece necessa­riamente que o auditório universal, ao qual supomos nosdirigir, coincida, na verdade, com um auditório particularque conhecemos e que transcende as poucas oposições deque temos conciência. De fato, fabricamos um modelo dohomem - encarnação da razão, da ciência particular quenos preocupa ou da filosofia - que procuramos convencer,e que varia com o nosso conhecimento dos outros homens,das outras civilizações, dos outros sistemas de pensamento,com o que admitimos ser fatos indiscutíveis ou verdadesobjetivas. É por essa razão, aliás, que cada época, cada cultu­ra, cada ciência, e mesmo cada indivíduo, tem seu auditóriouniversal.374

A dúvida que ainda paira é se a idéia de verdades uni­versais que se impõem a todos aproxima-se mais dos "luga­res comuns" ou opiniões comuns, relativos a cada socieda­de, ou do imperativo categórico de Kant. De uma forma oude outra, essas "verdades", melhor dizendo, "opiniões",fornecem princípios necessários para a fundamentação da

374. Ret6ricas, p. 73-4.

219

Page 126: 52842935-Margarida-Maria-Lacombe-Camargo-Hermeneutica-e-Argumentacao (2).pdf

ação moral, retirando-lhe o caráter de arbitrariedade. Nos­sa impressão é a de que esses princípios ou essas idéiaschamadas de universais assemelham-se mais a valores con­cretos e podem ser identificados como topoi. A idéia é a deque esses valores possam ser reconhecidos como própriosa todo ser razoável, que vive cada cultura.375 Ocorre, inclu­sive, que a força dos argumentos pode chegar a tal ponto,que esta pretensão não seja vã. E é assim que, com relaçãoao papel do filósofo, expõe Perelman:

o que constatávamos, efetivamente, é uma universali­zação progressiva de nossos princípios morais, o que nospermite elaborar progressivamente, para toda a humanida­de, princípios de ação razoáveis. Talvez a função essencialdos filósofos seja a de formular tais princípios práticos, assu­mindo os cientistas o mesmo papel na área do conhecimen­to, da razão teórica. A função específica da filosofia é, defato, propor à humanidade princípios de ação objetivos, ouseja, válidos para a vontade de todo ser razoável. Essa obje­tividade não será, nesse caso, nem conformidade com o ob­jeto exterior, nem submissão às ordens de uma autoridadequalquer: ela visa a um ideal de universalidade e constituiuma tentativa de formular normas e valores, que se possampropor ao assentimento de todo ser razoável.376

375. Rui Alexandre Grácio é da seguinte opinião: "Nesta concepçãoargumentativa da razão como auditório universal não é a pretensão deuniversalidade que é posta em causa; uma argumentação racional deveser universalmente reconhecida. Mas este reconhecimento não é umaimposição da própria razão, nem é uma evidência a priori; é um reco­nhecimento que precisa ser promovido através da persuasão convin­cente que deverá fazer com que haja uma adesão às teses propostas. Éum reconhecimento visado através de um acordo prévio, a partir deum fundo comum ou de um senso comum, dirigido a um auditórioque há que convencer e que não é nem puramente abstrato, nematemporal." Racionalidade argumentativa, p. 92.376. Ética e direito, p. 199.

220

Sobre a formação do auditório universal, Perelman res­gata também de Aristóteles urna outra idéia não menosimportante, que é a do discurso epidítico. Dos gêneros ora­tórios deliberativo, judiciário e epidítico, os dois primeirosreferem-se a atividades práticas, de caráter imediatista,enquanto o terceiro corresponde a ações de médio ou lon­go prazo. Os debates jurídicos e políticos pressupõem ma­téria controversa, para a qual se requer um desfecho, comodecisão para a ação. O gênero deliberativo dispõe sobre ofuturo, quando o orador ac~mselha ou desaconselha sobreo que lhe parece mais útil. E o discurso político. O discur­so judiciário, por seu turno, corresponde a uma delibera­ção sobre o passado, quando o juiz decide o que é justo emfunção de uma ação já praticada. Mas o discurso epidíticopossui características bastante distintas. A princípio, eleapresenta matéria não controvertida, como é o caso doselogios fúnebres, das comemorações de datas nacionais ouda exaltação de uma virtude, em que os ouvintes aparente­mente participam apenas como espectadores. Anterior­mente, atribuía-se o discurso epidítico à literatura, dadoseu cunho de preocupação estética. Esse tipo de discurso,a princípio, pode parecer o mais pobre, mas é o que deitaraízes mais profundas. Seu objetivo é reforçar a disposiçãopara ações futuras, aumentando a adesão sobre os valoresque exalta. Caracteriza-se como o mais pobre ao correla­cionar-se com a simples aparência do discurso, pois o ou­vinte limita-se a louvar ou censurar o que lhe parece bome mau. No entanto, a estética do discurso é fundamentalpara comover e mover os auditores para a ação futura, tor­nado-se, assim, ponto central da filosofia prática. O dis­curso de gênero epidítico trabalha basicamente com valo­res tradicionais. A sua função é reformular alguns concei­tos oferecendo maior clareza sobre valores já incorpora-,dos no inconsciente de cada um, e conseguir, com isso, a

221

Page 127: 52842935-Margarida-Maria-Lacombe-Camargo-Hermeneutica-e-Argumentacao (2).pdf

1-

adesão do ouvinte. Sobre a universalidade do inconscientecoletivo, Perelman escreve:

.Não receando a contradição, nele o orador transformafactlmente em valores universais, quando não em verdadeseternas, o que, graças à unanimidade social, adquiriu consis­tência. Os discursos epidíticos apelarão com mais facilidadea uma ordem universal, a uma natureza ou a uma divindadeque seriam fiadoras dos valores incontestes e que são julga­dos incontestáveis.377

Perelman aproxima a tarefa do educador do gênero deoratória epidítico, à medida que, por meio da didática,procura-se promover valores objeto de uma comunhão so­cial. Mas, para tanto, é necessário que o educador goze deprestígio, de forma que os valores que elogia sejam dignosde guiar a ação. Essa disposição para a ação, segundo Perel­man, é o que mais aproxima o discurso epidítico do pensa­mento filosófico. 378

Mas, como em toda argumentação, o discurso epidíticotambém conta com a liberdade do auditório. A argumenta­ção, pela sua própria natureza, não é coerciva. Por meiodela o orador procura ganhar a adesão de um ser livre,apresentando-lhe razões melhores do que as fornecidas emfavor da tese concorrente. Perelman resume sua posiçãoda seguinte forma:

O uso da argumentação implica que se tenha renunciado~ recorrer unicamente à força, que se dê apreço à adesão domterlocutor, obtida graças a uma persuasão racional, que

377. Perelman. Tratado da argumentação, p. 57.378, Pe:e1ma~ aproveita aqui para condenar a propaganda alegando-asubv:rslVa pOlS, ao contrário da educação que cuida de promover aadesao sobre valores aceitos, a propaganda impulsiona a mudança.

222

esse não seja tratado como um objeto, mas que_se ape_Ie àsua liberdade de juízo. O recurso à argument,a~ao supoe oestabelecimento de uma comunidade dos espmtos que, no

I . d' IA ' 379entanto dura exc Ui o uso a VIa enCla.,

Com tais alegações, Perelman expressa sua a~:são àideologia democrática, voltada para a abertura do dIalogo e

para a recusa da violência.

4.4 Deliberação e justificativa

É central na teoria de Perelman sobre a "racionalidadecomo argumentação" a valorização da idéia d~ j~s~ifica~ã?em oposição à idéia de demonstração. O raclOcm~o teon­co resultante da inferência válida de uma conclusao a par­tir' de premissas que não cabem ser questionada~, contra-

- 'tO roduz a açao moral.poe-se ao pensamento pra ICO que p . _Toda ação corresponde a uma deliberação ou deClsao valo­

'1 't' 380rativa, ao contrário das deduções puramente SI OglS ICas..O raciocínio prático é aquele capaz de justificar uma d~Cl-- , . d umentação no sentIdosao com o recurso a teclllcas e arg ,

d 1· ., elo o essencialde discernir o importante, o neg 1genClaV , _ , "do dispensável' o útil do inútil, etc. São questoes so POSSl-

. d ' d' 'd d' t presentação de ar-velS e serem respon 1 as me lan e a ab ' - oncretas N ote-gumentos convincentes, so re sltuaçoes c .

, . - tes com OS usos e os cos-se, porem, que as poslçoes coeren . _ _ .tumes ou os valores já enraizados pela tradlçao sao taClta-

379, Perelman. Tratado da argumentação, p. 61. dA'd d l'b - t' t o pensamento e ns-380, A questão a e 1 eraçao es a presen e n I d I'b

d - ,. d' Arist6te es e 1 erat6teles. Como atributo a razao pratIca, lZ : d'I'b - f d nta-se entao, no IS-quem investiga e calcula. A de 1 eraçao un ame '_ ' ,

, ' , oderaçao.Cr EtIca acermmento que, por sua vez, requer JUIZO e mNícômacos, Livro VI.

223

Page 128: 52842935-Margarida-Maria-Lacombe-Camargo-Hermeneutica-e-Argumentacao (2).pdf

mente ou mais facilmente aceitas; via de regra não neces­sitam de justificativa. É o princípio da inércia na vida doespírito, no sentido de que "não se deve mudar nada semrazão";38\ ao contrário das posições novas, que rompemcom os costumes e não se encontram ainda legitimadaspela tradição. Estas, sim, requerem um esforço maior deargumentação para se imporem e se apresentem como razoá­veis e adequadas às novas situações ou mesmo para a revi­são de posições antigas. A respeito, sublinha Perelman:

o direito nos ensina a não abandonar regras existentes,a não ser que boas razões justifiquem-lhes a substituição:apenas a mudança necessita de uma justificação, pois a pre­sunção joga em favor do que existe, do mesmo modo que oônus da prova incumbe àquele que quer mudar um estadode coisas estabelecido.382

Segundo Perelman, a regra de justiça estabelece umcontinuum que muitas vezes nos impede de cometer arbi­trariedade. 383 A regra da tradição serve de fundamento devalidade, mas o pragmatismo requer que sejam levadas emconsideração as conseqüências da posição assumida, num enoutro sentido. Afinal, a ação moral é responsável. De ou-

381. Cf. Perelman. Ética e direito, p. 92.382. Idem, p. 382.383. Perelman nos chama sempre a atenção para a regra de justiça quedetermina o tratamento igual a situações semelhantes. Tal como parao direito as interpretações contrárias à jurisprudência predominantedevem ser suficientemente motivadas para se imporem como regranova, também para o filósofo há necessidade de justificar suas opi­niões, quando elas não são facilmente assimiladas pela tradição. Aqui­lo que é amplamente aceito porque enraizado por força da tradiçãoaparece facilmente no direito e na filosofia como verdade, cabendosom~nte produção de defesa em caso de ruptura com antigos valores.Cf. Etica e direito, páginas 92, 94, 112, 113, 150, 203, 380 e 382.

224

tro lado, a motivação da "nova" decisão, isto é, a sua ratiodecidendi, pode virar regra de justiça à medida que inspirae serve de exemplo para o julgamento de casos similares. Éo caso da formação dos precedentes jurisprudenciais.384

Quanto à autoridade dos precedentes e dos princípios ge­rais do direito nas decisões jurídicas, escreve Perelman:

A autoridade dos precedentes judiciários, numa socie­dade regida pela common law, mas também, embora emmenor grau, em todo sistema de direito cujas decisões judi­ciárias são publicadas, é igualmente fundamentada no pre­conceito favorável de que se beneficia a conformidade àsregras admitidas.

Quanto aos princípios gerais do direito, que exprimemvalores tradicionais na consciência jurídica de uma civiliza­ção dada, formulam eles teses que os membros educados dasociedade são tentados a admitir espontaneamente, porisso, aproximam-se mais de princípios evidentes que nãonecessitam muito de uma autoridade particular para seremadmitidos. Não obstante, essa autoridade é indispensável namedida em que tais princípios necessitam de uma interpre­tação e de uma determinação de seu campo de aplicação,que podem ser muito mais controversas do que os próprios

384. O pensamento de Perelman encontra amparo na experiência an­glo-saxônica da common law. A regra das stare decisis impõe que semantenha a jurisprudência anterior caso não se encontre razão paradela dissentir. Como origem, temos, na Inglaterra do século XIV, acriação dos tribunais de eqüidade, "Equity Courts", cuja finalidadeera impedir soluções iníquas que podiam produzir-se por causa daaplicação rígida do precedente.

Talvez seja esta a razão que levou à aceitação das idéias de Perel­man antes nos países de tradição anglo-saxônica do que naqueles detradição romano-germânica, conforme nos informa Rui AlexandreGrácio. Racionalidade argumentativa, p. 13.

225

Page 129: 52842935-Margarida-Maria-Lacombe-Camargo-Hermeneutica-e-Argumentacao (2).pdf

pri~cípios, pois o acordo sobre eles se realiza no equívoco ena Imprecisão. 385

É bem de ver que princípios, regras e conceitos de ca­ráter genérico necessitam da presença de uma autorida­deFara estab.elecer-Ihes os contornos diante de situaçõespratIcas, obvIamente sempre sob a concepção de razoabi­lidade.

Como já vimos, o raciocínio prático traduzido no com­portamento ético corresponde à escolha de uma posição. Aescolha pela melhor posição, por sua vez, pressupõe liber­dade e a melhor é aquela que se apresenta como a maisoportuna e razoável para o caso específico, obedecendo auma determinada ordem de valores. O mesmo ocorre noâmbito do direito e da filosofia: é quando o juiz e o filósofo~ptam por uma interpretação, assumindo uma atitude delIberdade e de moderação, ou prudência. 386 Para Kelsentoda solução logicamente possível é juridicamente válida~Per.elman, no entanto, não só admite a criatividade do juizna Interpretação, ao criar, inclusive, uma regra de direitoC?~o pre~edente, como assume a desigualdade entre asvanas_opçoes, uma vez que uma, e apenas uma, servirá àque.st~o, porque a melhor ou a mais adequada. Afinal, umaPOSIÇ~O p~evalecerá, porque melhor justificativa apresen­ta. Nao eXIste aqui a indiferença valorativa que Kelsen atri­bui ao direito.

Nesse nível de considerações, mais especificamente noqu: te~n~ca~~entediz respeito à fundamentação como re­ferencI~a 10glCa d.o razoável, Perelman irá valer-se da argu­mentaçao provemente da dialética e da retórica dos anti-

385. Ética e direito, p. 380.386. Cf. Retóricas, p. 144.

226

gos para a construção da "nova retórica" .387 O raciocínioprático diz respeito à liberdade, à medida que deliberamosconscientemente sobre nossas posições, ante a ética da res­ponsabilidade. Como não há regras fixas para resolver oproblema de uma boa escolha, toda opção constitui umrisco que compromete o sujeito deliberante, nos fala LuizRohden, ao que acrescenta:

A racionalidade retórica é uma linguagem da vontade dodesejo humano e não exclusivamente da razão. Examina to­dos os elementos que contribuem para persuadir. Como lin­guagem que permite pensar a vontade, possibilita a reflexãosobre a liberdade superando uma concepção determinísti­ca. 388

A dialética então existente entre razão e vontade, noraciocínio prático, nos conduz à dialética da argumentação,pois que toda argumentação só é concebível em função daação que prepara ou determina. Isso levou Perelman a pen­sar a racionalidade a partir de uma perspectiva essencial­mente prática, ao contrário da evidência, diante da qualnão se argumenta.389 O que é evidente e, portanto, nãorequer qualquer tipo de questionamento, impõe-se a to­dos; cabe apenas verificar se a conclusão é verdadeira oufalsa segundo esquemas formais de raciocínio. O objeto dajustificação, por sua vez, é de ordem prática: justifica-seum ato, um comportamento, uma disposição para agir etc.,a partir de escolhas ou opções. Assim, o pensamento dialé­tico é aberto, deliberativo e sujeito a críticas.

387. Para a análise dessas fontes ver Alonso Tordesilhas. "Perelman,Platão e os Sofistas: Justiça e Retórica Nova".388. Luiz Rhoden. O poder da linguagem: a arte retórica de Aristóte­les, p. 216.389. Cf. Ética e direito, p. 186-7.

227

Page 130: 52842935-Margarida-Maria-Lacombe-Camargo-Hermeneutica-e-Argumentacao (2).pdf

4.5 A lógica jurídica ou a lógica do razoável

o termo "lógica jurídica" tem um significado especialpara Perelman, ao contrário de autores como Kalinowsky eKlugh,390 que consideram a lógica jurídica como a lógicaformal aplicável ao direito. Para Perelman, não existe umalógica jurídica, tal como não existe uma lógica biológica,uma lógica química, uma lógica física, e assim por diante.O que ele entende por lógica jurídica é a ciência encarrega­da de analisar o raciocínio propriamente jurídico, que elesabe aproximar-se do raciocínio dialético. Já ficou claroque se trata de uma outra lógica que não a formal identifi­cada com o pensamento analítico, mas da lógica relativa àretórica e à argumentação, voltada para um campo maisalargado, que é o da dialética.

Por outro lado, o pensamento jurídico encontra limitesna dogmática, criada pelos parâmetros definidos em lei, oque gera uma constante tensão entre segurança e eqüida­de. Segurança, que é valor próprio do Estado de Direito, eeqüidade, como atributo de justiça e mecanismo capaz deamenizar as exigências legais quando estas se dispõem con­tra aquilo que é aceitável, conforme expõe Perelman.391

390. Vale conferir os trabalhos de Georges Kalinowsky, Introducci6na la L6gica jurídica, Editorial Universitaria de Buenos Aires, trad. porJuan A. Casaubon, 1973; e Normas Jurídicas y Análisis L6gico, porHans Kelsen e Ulrich Klug, editado pelo Centro de Estudios Consti­tucionales de Madrid.391. As definições atuais mais recorrentes de eqüidade seguem a con­cepção aristotélica da adequação da norma geral ao particular sob oparâmetro da prudência. É o sentimento do justo concreto, conformeafirma Tércio Sampaio Ferraz Jr. Para este autor, a eqüidade não cor­responde a um princípio que se opõe à justiça, mas que a completa e atorna plena (Cf. Introdução ao estudo do direito, p. 276 e segs). ParaMiguel Reale (Lições preliminares de direito, p. 123 e segs.), a eqüida-

228

Perelman, desde o seu primeiro escrito sobre a justiça,mostrou-se sensível à questão da razoabilidade das deci­sões jurídicas. De fato, a eqüidade, as ficções jurídicas eaté mesmo a caridade apresentam-se muitas vezes neces­sárias à obtenção da justiça, quando a lei mostra-se inflexí­vel. Enquanto a eqüidade aparece muito próxima da idéiade justiça, a ficção consiste naquela decisão em que se qua­lificam os fatos contrariamente à realidade, para se obter oresultado desejável,392 pois, segundo Perelman, o direitonão pode se desinteressar da reação das consciências. Ecomo a solução jurídica tem um compromisso com a pazjudicial, tendo em vista tratar-se de uma atividade práticae não puramente teórica, a decisão razoável será aquelaque não se opõe, sem razão, ao senso comum de cada so­ciedade. Mas, sendo a razoabilidade uma noção vaga, tal­vez possamos chegar mais perto do razoável excluindo-seo não-razoável.

Essa questão abre uma cisão na teoria da separação dospoderes do Estado, uma vez que o poder judiciário não s~

apresenta mais como simples subordinado do legislativo. Amedida que aquele assume uma posição política e criativa,

de é o momento dinâmico da concreção da justiça, pois, na aplicação,a norma deve amoldar-se à sinuosidade do caso. José de Oliveira As­censão define-a comO medida de solução, uma vez que consiste nummodo indispensável de aplicação da lei ao caso concreto. (Cf. Direito_ introdução e teoria geral, p. 186 e segs.)392. Um exemplo dado por Perelman sobre ficção jurídica é o queocorria na Inglaterra no final do século :XVIII e início do século XIX.O direito inglês dessa época previa a pena de morte para todo roubono valor de 40 xelins ou mais. Os juízes, revoltados com o grau dapunição passaram a avaliar os roubos no valor de até 39 xelins, crian­do, assim, uma ficção jurídi~a. Na Alemanha i~perial era prevista ~prisão para aqueles que desfIlassem com bandeiras vermelhas em 1de maio. Prisões foram evitadas no caso de as bandeiras serem roxas.Cf. Ética e direito, páginas 524, 525 e 541.

229

Page 131: 52842935-Margarida-Maria-Lacombe-Camargo-Hermeneutica-e-Argumentacao (2).pdf

qual seja, a de harmonizar a ordem legislativa com as idéiasdominantes em termos do que seja justo e eqüitativo,constitui antes um poder complementar ao do legisla­dor. 393 Por esta razão, lembra Perelman, a aplicação do di­reito e a passagem da regra abstrata ao caso concreto não ésimples processo dedutivo, mas uma adaptação constantedas disposições legais aos valores em conflito nas contro­vérsias judiciais.

Sem negar a autoridade do legislador, admitir-se-á quesua vontade não pode ser arbitrária, que os textos que adotadevem cumprir uma função reconhecida, promover valoressocialmente aceitos. Sem ser a expressão de uma razão abs­trata, supor-se-á que, para ser aceito e aplicado, o direitopositivo deve ser razoável, noção vaga que expressa umasíntese que combina a preocupação com a segurança jurídicacom a da eqüidade, a busca do bem comum com a eficáciana realização dos fins admitidos. Será no juiz, bem mais doque no legislador, que se confiará para a realização dessasíntese, aceita porque razoável. 394

De fato, o conflito dos juízos de valor está no centrodos problemas metodológicos criados pela interpretação epela aplicação do direito. Quando a relação jurídica traduz

393. Perelman fala de uma relação nova entre o legislativo e o judiciá­rio no processo de concretização das leis, nos seguintes termos: "[Ojudiciário não está] nem inteiramente subordinado, nem simplesmen­te oposto ao poder legislativo, constitui um aspecto complementarindispensável seu, que lhe impõe uma tarefa não apenas jurídica, mastambém política, a de harmonizar a ordem jurídica de origem legisla­tiva corp as idéias dominantes sobre oque é justo e eqüitativo em dadomeio. E por essa razão que a aplicação do direito, a passagem da regraabstrata ao caso concreto, não é um simples processo dedutivo, masuma adaptação constante dos dispositivos legais aos valores em confli­to nas,controvérsias judiciais." Lógica jurídica, p. 116.394. Etica e direito, p. 463.

230

um conflito de interesses, diante de um mesmo fato e deum mesmo ordenamento jurídico, encontramos idéias einterpretações distintas e mesmo contrárias, que levam aresultados variados. Se as partes mostram-se convencidas,cada qual, de sua posição e a conciliação torna-se inviável,faz-se mister a intervenção de um árbitro, livremente es­colhido ou provido pelo aparelho judiciário estatal, parapôr um fim à contenda. Cabe ao juiz ponderar sobre osvalores que envolvem aquele caso concreto e que se encon­tram protegidos na lei, conferindo-lhe uma interpretaçãocondizente e razoável. E é justamente este mecanismo deinterpretação que se faz por intermédio da argumentação,sendo que a interpretação já se encontra referenciada pelapré-compreensão.

José Afonso da Silva, questionando a legitimidade dajurisdição constitucional, estabelece a diferença entre "de­cidir" simplesmente e "julgar". O primeiro caso corres­ponderia a uma tarefa automática e formal, enquanto jul­gar corresponderia à emissão de um juízo, ou melhor, aofundamento de uma decisão.395 Para tanto, a lógica jurídicadeve ser capaz de suportar e organizar o enfrentamento deteses opostas referentes a um mesmo problema jurídico. Aidéia é que cada um dos integrantes da relação jurídicapossa expor suas razões da melhor maneira possível a al­cançar o convencimento do juiz. A melhor maneira, respei­tados os padrões éticos e de liberdade, é aquela que atingeo seu objetivo: a adesão dos ouvintes. Mas para isso, servi­mo-nos de técnicas específicas, como, por exemplo, aque­las analisadas por Perelman no Tratado da Argumenta­çãO.396 O direito é a verdadeira arte da disputa. O juiz ade-

395. José Afonso da Silva. "Tribunais constitucionais e JurisdiçãoConstitucional", p. 496 e segs.396. Perelman, na segunda parte do Tratado da Argumentação, dedi-

231

Page 132: 52842935-Margarida-Maria-Lacombe-Camargo-Hermeneutica-e-Argumentacao (2).pdf

re a uma ou a outra tese, conforme a sua livre convicção,ou mesmo propõe uma solução alternativa que entendacomo mais razoável. O reconhecimento da razoabilidade,por sua vez, deve ser conferido pelo público alvo da deci­são: as partes, outros juízos que eventualmente venham aapreciar aquele caso, conforme o princípio do duplo graude jurisdição, e até o público em geral, que, de uma formaou de outra, é atingido pelo comportamento do Poder Ju­diciário. Tais referenciais demonstram que a interpretaçãoenvolve valores e pelos mesmos é determinada.397

Por meio da argumentação é que se torna possível de­fender uma posição em prejuízo de outras. A idéia da lógi­ca jurídica como lógica do razoável é apresentada por Pe­relman em contraponto à lógica formal demonstrativa, ca-

ca-se à análise da estrutura de alguns argumentos. Os argumentosdividem-se, segundo o autor, em três grandes grupos: os argumentosquase-lógicos, os argumentos baseados na estrutura do real e os argu­mentos que fundamentam a estrutura do real. Dentro dessas catego­rias, aponta algumas técnicas ou tipos de argumentos extraídos dedocumentos que analisou como, por exemplo, a demonstração poruma das partes de contradição ou incompatibilidade entre os termosdos argumentos apresentados pela outra parte; as técnicas da recipro­cidade e da transitividade; a inclusão da parte no todo; o argumento deautoridade; o exemplo e a ilustração; os fins e os meios, etc.397. Citemos o célebre exemplo dado por Perelman sobre a normaque proíbe a entrada de automóveis no parque. Diante do preceito "Éproibida a entrada de automóvel no parque", como deve portar-se oguarda, como autoridade decisória, no caso de uma ambulância queprecise socorrer a vítima de um infarto? E, quanto à existência de umaescultura de um automóvel nos jardins? Literalmente, não deixam deser automóveis. Mas, ponderando-se os valores em pauta, o que deve­rá prevalecer: a vida do infartado ou a tranqüilidade dos transeuntes?A estética de uma escultura ou a literalidade pura e simples da lei? Sãoexemplos de valores em pauta que merecem ser sopesados em cadasituação, emprestando-se, inclusive, à palavra automóvel, o significa­do único de automóvel como veículo apto à locomoção.

232

racterística do pensamento teórico, em que conclusõesverdadeiras são extraídas por inferências válidas de pre­missas também verdadeiras. Ao contrário, cabe ao juiz, pormeio da argumentação dialética, que trabalha com o exer­cício entre os contrários, motivar suas decisões visandoconvencer o seu auditório. Como vimos, a relação entreorador e auditório é o ponto nevrálgico da argumentação, eé o que caracteriza o seu elemento interpessoal. A respei­to, são estes os dizeres de Perelman:

A lógica jurídica comporta o estudo de esquemas argu­mentativos não-formais, próprios do contexto jurídico. En­quanto a demonstração é impessoal e poderia mesmo sercontrolável mecanicamente, toda a argumentação se dirige aum auditório que ela se empenha em persuadir ou em con­vencer, cuja adesão às teses defendidas pelo orador, ela deveganhar. É essencial conhecer esse auditório, saber quais sãoas teses que, se supõe, ele aceitaria, e que poderiam servirde premissas para a argumentação que a pessoa se propõe adesenvolver. Cumpre aliás, que tais teses sejam aceitas comuma intensidade suficiente e que suportem, sem desgaste, opeso da argumentação. Se não for esse o caso, elas correm orisco de serem abandonadas pelo ouvinte e toda a argumen­tação que lhes é vinculada desabaria como um quadro presoa um prego mal fincado na parede.39B

Uma crítica que poderíamos apresentar com relação aotrabalho de Perelman é o fato de ele limitar a argumenta­ção jurídica ao âmbito exclusivo do juiz. Acredita que esteé a peça mais importante do processo judicial. No entanto,entendemos que as partes, representadas por seus advoga­dos, mais do que ninguém precisam convencer o juiz dapropriedade de suas teses. É o advogado quem enfrentamais de perto a tese oposta, inclusive em termos altamen-

398. Ética e direito, p. 493.

233

Page 133: 52842935-Margarida-Maria-Lacombe-Camargo-Hermeneutica-e-Argumentacao (2).pdf

te ameaçadores aos seus propósitos. O auditório da parteem juízo, apesar de circunscrito ao juiz, ao tribunal e aoutros profissionais do direito chamados a se pronunciarno processo, não requer do advogado um esforço menor deargumentação. Ao contrário, maior que o empenho do juizé o do advogado em convencê-lo de que a solução maisfavorável ao seu cliente é a melhor para o caso. O fato de oadvogado cuidar de um interesse pessoal e não do caso emsi, voltando-se para um auditório "universal", não lhe dimi­nui a importância no processo. O compromisso do juiz,que aplica o direito, é com a justiça, sem dúvida, mas che­gar ao que é justo, adequado e razoável pode ser apontadopelas partes, que clamam justiça. O advogado também for­nece uma tese de natureza dogmática, na medida em quefundamenta seu raciocínio na lei e apresenta uma propostade decisão, talvez empenhando-se mais do que o juiz naescolha dos argumentos convincentes. Se fosse possívelum acordo entre as partes, não haveria que se recorrer aojudiciário. O acordo não é possível quando cada um estátão convencido da sua posição, que não cabe transigir - équando se recorre ao judiciário assumindo-se os ônus daídecorrentes. No entanto, Perelman é categórico quandopretende precisar a noção de "raciocínio jurídico":

Entendemos por essa expressão o raciocínio do juiz, talcomo se manifesta numa sentença ou aresto que motivauma decisão. As análises doutrinais de um jurista, os arra­zoados dos advogados, as peças de acusação do MinistérioPúblico fornecem razões que podem exercer uma influênciasobre a decisão do juiz, mas apenas a sentença motivada nosfornece o conjunto dos elementos que nos permitem pôrem evidência as características do raciocínio jurídico.399

399. Idem, p. 481.

234

Em contrapartida, há o fato de que, numa democracia,a idéia de razoabilidade encontra-se referida a outrem,mais especificamente, à comunidade. Segundo Perelman,o problema do razoável não é o problema de um indivíduoisolado, mas o problema do indivíduo em comunidade. Omecanismo de troca entre teses opostas até que se chegueà mais provável, como verdadeira, proporciona o diálogo,imprescindível na democracia. A motivação das decisões eo confronto de idéias permite uma participação mais am­pla da opinião pública e também a legitimação dos podereslegislativo e judiciário.

4.6 Tópica e argumentação

A nosso ver, o elemento de ligação entre a argumenta­ção e a retórica, e que levou Perelman a identificá-las entresi, é o elemento tópico. Tanto na retórica quanto na argu­mentação o raciocínio se dá sobre bases prováveis. Ambasdizem respeito a opiniões, cujas teses se submetem à dis­cussão, e às quais se adere com intensidade variável. A di­ferença feita por Aristóteles entre o pensamento dialéticoe o pensamento analítico está justamente na qualidade daspremissas que lhe servem de fundamento. O pensamentoanalítico conta com premissas verdadeiras e imediatas, en­quanto o dialético conta com premissas prováveis e de am­pla aceitação. A argumentação tem, assim, como suporte,proposições verossímeis, portanto não necessárias.

Os mesmos requisitos e as mesmas bases da retórica,enquanto teoria da argumentação, são também os da tópi­ca, principalmente quando falamos dos acordos prévios e"implícitos" que não precisam ser justificados. Na classifi­cação exposta por Perelman, o orador toma como ponto departida os topoi ou objetos de acordo que incidem sobre o

235

Page 134: 52842935-Margarida-Maria-Lacombe-Camargo-Hermeneutica-e-Argumentacao (2).pdf

real, como os fatos, as verdades e as presunções; e topoicomo objetos de acordo que incidem sobre o preferível,que seriam os valores,4oo as hierarquias401 e os lugares dopreferíve1.402 Nenhuma nem outra ordem de ocorrência,no entanto, conduz a verdades irrefutáveis, apesar de Pe­relman notar que, para se contestar opiniões fundamenta­das no real,403 exige-se uma argumentação mais bem elabo-

400. Diferentemente dos juízos de realidade, sujeitos à demonstra­ção, os juízos de valor são controversos. Para Perelman, "o termo valorse aplica sempre que tenhamos de proceder a uma ruptura da indife­rença ou da igualdade entre as coisas, sempre que uma delas deva serposta antes ou acima de outra, sempre que ela é julgada superior e lhemereça ser preferida." Cf. O império retórico, p. 45. Os valores uni­versais, como o justo e o belo, por exemplo, pela sua indeterminação,são, em geral, capazes de promover um primeiro acordo, mas à medi­da que as questões se particularizam em função de realidades concre­tas, os desacordos aparecem e o esforço argumentativo torna-semaior.401. Como exemplo de acordos fundamentados em situações de hie­rarquia, temos: a superioridade dos homens diante dos animais; a su­perioridade dos deuses sobre os homens e a superioridade dos valoresdas pessoas sobre os valores das coisas.402. "Todos valem, mas um, antes do outro." Como exemplo: prefe­re-se o justo ao útil, o uno ao múltiplo, etc.403. Perelman qualifica os argumentos que se fundamentam no real eos que se fundamentam sobre a estrutura do real como argumentosquase-lógicos e, portanto, de grande força persuasiva. Os argumentosque se fundamentam no real ou sobre o real, consistem naqueles quese utilizam das relações de sucessão ou as de coexistência. As relaçõesde sucessão, por exemplo, concernem a acontecimentos que se se­guem no tempo como a causa e o efeito, e que nos permitem investi­gar a causa a partir dos efeitos ou apreciar a causa pelos efeitos (argu­mento pragmático). Para o utilitarismo, seria o argumento pelas con­seqüências, e para o existencialismo, a realização da pessoa através deseus atos. Não obstante, guardam distinção com a linguagem formal,uma vez que podem ser discutidos sempre. Não nos esqueçamos quea questão do sentido das palavras não é um problema teórico, que

236

rada. Neste caso, a contestação recairá sobre a demonstra­ção das incompatibilidades entre os fatos apresentados eaqueles que vêm para retirar-lhes a credibilidade. Fatos everdades constituem dados estáveis pela sua objetividade,mais fáceis portanto de serem admitidos pelo auditóriouniversal e mais difíceis de serem recusados. Segundo Pe­relman, "a adesão ao fato será, para o indivíduo, apenasuma reação subjetiva a algo que se impõe a todos".404

A argumentação ganha em importância quando o acor­do se baseia em valores e hierarquias, que não contam coma facilidade da comprovação baseada na experiência. Paramostrar que uma posição vale mais do que a outra, o ora­dor precisa argumentar. Em primeiro lugar, parte de luga­res comuns que gozam da aceitação de todos. Lugares co­muns seriam afirmações muito gerais referentes ao que sepresume valer em qualquer domínio, como, por exemplo,o acordo da superioridade dos homens diante dos animais;da superioridade das pessoas sobre as coisas; da supe­rioridade do justo sobre o útil; do uno sobre o múltiplo, eassim sucessivamente. Viehweg já nos mostrou a distinçãoentre a tópica de primeiro grau e a tópica de segundo grau,que correspondem, respectivamente, aos lugares comuns eaos lugares específicos, admitidos estes últimos em domí­nios particulares. O discurso jurídico, por exemplo, há dese pautar necessariamente na lei, na doutrina e na jurispru­dência. Cabe a quem argumenta conhecer os valores domi­nantes na sociedade, suas tradições e sua história, as dou­trinas reconhecidas, bem como as conseqüências sociais eeconômicas desta ou daquela posição.

tenha solução única, conforme o real, mas é um problema prático, queconsiste em encontrar, ou em elaborar, o sentido que se adapte me­lhor à solução concreta.404. O império retórico, p. 43.

237

Page 135: 52842935-Margarida-Maria-Lacombe-Camargo-Hermeneutica-e-Argumentacao (2).pdf

O acordo serve de ponto de partida na argumentação,preparando o raciocínio. Suas premissas servirão de base àconstrução discursiva. Perelman divide a matéria dos acor­dos em duas categorias de objeto: uma relativa ao real, quecomporta fatos, verdades e presunções; e outra relativa aopreferívelJque conteria os valoresJa hierarquia e os lugaresdo preferível.

A noção de fatos e verdades que fundamentam os acor­dos corresponde a dados que dizem respeito a uma realida­de objetiva. A relação do indivíduo para com o fato, naargumentaçãoJé de simples adesão do sujeito a algo que seimpõe a todos. Daí a sua aproximação com o auditório uni­versal. Neste sentidoJ o fato se assemelha à verdadeJ pois"só estamos em presença de um fatoJ do ponto de vistaargumentativoJ se podemos postular a seu respeito umacordo universal não controverso".40S No entanto, um sim­ples questionamento, sempre possívelJ é suficiente paraque o fato perca o seu estatutoJe para que aquele auditó­rioJantes tido como universalJpasse a particular. Assim, osacordos sobre fatos induziriam à probabilidadeJ que pode­ria referir-se a "uma relação numérica entre duas proposi­ções que se aplicam a dados empíricos bem definidos esimples" .406 Do real retiramosJaindaJ as presunções. Todosos auditórios admitem presunções geraisJ normalmenteapreendidas de imediatoJ e que correspondem ao que énormal, ou seja, ao que se refere a uma média habitual daqual retiramos parâmetros de normalidade para mais epara menos. Perelman nos apresenta algumas presunçõesde uso correnteJque seriam: a presunção de que a qualida­de de um ato manifesta a qualidade da pessoa que o prati­cou; a presunção de credulidade natural, que faz com que

405. Perelman. Tratado da argumentação, p. 75-6.406. Idem, p. 78.

238

nosso primeiro movimento seja acolher como verdadeiro oque nos dizem e admitir a idéia como verdadeira enquantonão tivermos motivo para desconfiar; a presunção de inte­resse, segundo a qual acreditamos que todo enunciado le­vado ao nosso conhecimento supostamente nos interessa;e, por fim, a presunção referente ao caráter sensato detoda ação humana. Todas essas presunções encontram fun­damento na presunção geral de que, até prova em contrá­rio J o normal é aceitarmos o raciocínio como válido e capazde se impor ao auditório universal.

A outra possibilidade de acordo é aquela que se dá so­bre valores. Ainda que mais instáveis do que os acordosretirados do realJ os valores podem servir de ponto de par­tida para a cadeia argumentativa. Os valores são vistos porPerelman como objetos, seres ou ideais capazes de exercerinfluência sobre nossas ações. Impõe-se-IhesJ portantoJum caráter de relatividade a modos particulares de agirJ oque faz com que se refiram apenas a grupos ou auditóriosespecíficos, e não ao auditório universal.

E quanto a valores universais como o verdadeiro J obem, o belo, o justo e o absoluto? Perelman responde a essaindagação baseando-se na sua generalidade J uma vez queos mesmos só se impõem ao auditório universal, na medidaem que seus conteúdos não encontram-se firmados. Ape­nas a generalidade dos valores é capaz de manter-lhes oestatuto de universalidade. TodaviaJ ainda assim são úteisJpois muitas vezes só eles permitem o acordo sobre aquiloque não é unânime, inserindo escolhas a princípio confli­tantes em uma espécie de contexto vazioJmas sobre o qualreina um acordo mais amplo. Como lugares-comuns dessetipoJ talvez não tão absolutos mas de amplíssima aceitaçãoJteríamos, por exemploJ a democracia. Sob o pálio da de­mocraciaJ transcorre toda uma discussão queJ apesar denão oferecer conclusões definitivas, permite o amadureci-

239

Page 136: 52842935-Margarida-Maria-Lacombe-Camargo-Hermeneutica-e-Argumentacao (2).pdf

menta sobre questões intermediárias, política e social­mente úteis. Podemos verificar que, em nome da demo­cracia, muito se tem dito e muito se tem amadurecido,inclusive sobre teses contrárias entre si, inobstante sua efi­cácia.

A adesão em torno de valores se dá com intensidadevariável de indivíduo para indivíduo e de grupo para grupo,e até mesmo com relação aos valores entre si. Na realida­de, os valores se sujeitam a uma hierarquia: um vale maisdo que o outro, embora ambos sejam aceitos.

De acordo com Perelman, podemos ainda aceitar umadistinção entre valores concretos e valores abstratos. Noprimeiro rol encontraríamos os entes vivos (físicos ou jurí­dicos), as instituições, os objetos particulares, grupos de­terminados, etc., e assim é que poderíamos falar sobre ovalor que tem o país, a Igreja, a família, os grupos qualifi­cados, o dinheiro, etc. No segundo grupo, destacaríamos afidelidade, a lealdade, a franqueza e a bondade, por exem­plo. Tanto para uns quanto para outros, existem as hierar­quias, como a da superioridade dos homens sobre os ani­mais, a dos deuses sobre os homens; e mesmo hierarquiasque nos remetem a valores, como dizer que os valores rela­tivos às pessoas sejam, por sua própria natureza, superioresàqueles relativos às coisas.

Perelman chama a atenção para o fato de que a hierar­quia se distingue da simples preferência, uma vez que elaassegura uma ordenação de tudo o que está submetido aoprincípio que a rege. De fato, para a estrutura da argumen­tação, a hierarquia é mais importante do que o acordo pe­los valores em si, devido a sua abrangência e capacidade decontrole. Essas hierarquias, segundo Perelman, possuemos mesmos méritos dos "lugares-comuns" que gozam dareputação geral. Tecnicamente, os lugares, denominados

240

pela filosofia grega de topoi, correspondem a premissas deordem muito geral que alcançam situações bastante espe­cíficas. Lembra-nos Perelman que para os antigos os "luga­res" designam rubricas sob as quais podemos classificar osargumentos. Trata-se de agrupar o material necessário afim de encontrá-lo com mais facilidade e, daí, a definiçãodos lugares como "depósitos de argumentos",407 que emViehweg ganham o nome de "catálogos". Em sua teoria,Perelman só chamará de "lugar" as premissas de ordemmuito geral, que permitem fundar valores e hierarquias, eque foram estudadas por Aristóteles entre os lugares doacidente: lugares de quantidade, de qualidade, de ordem,de existência, de essência, de pessoa, etc. Dentre estes,destacam-se os lugares de quantidade, tais como: "o bemque serve a um maior número de fins é preferível ao que sóé útil ao menor grau", ou "o que é mais duradouro e maisestável é preferível ao que o é menos". Porém, de outrolado, e em sentido negativo, temos que "um mal duradou­ro é um mal maior do que um mal passageiro". O princípioda democracia também se aproveita do bem que atende aomaior número, e tudo aquilo relativo à eficácia refere-se,geralmente, ao lugar de quantidade. Perelman dá desta­que, ainda, para a ocasião em que o normal se sobrepõe ànorma, no seguinte sentido:

o que se apresenta mais amiúde, o habitual, o normal, éobjeto de um dos lugares utilizados com mais freqüência, atal ponto que a passagem do que se faz ao que é precisofazer, do normal à norma, que expressa uma freqüência, umaspecto quantitativo das coisas, à norma que afirma que talfreqüência é favorável e que cumpre conformar-se a ela.408

407. Cf. Perelman. Tratado da argumentação, p. 94.408. Perelman. Tratado da argumentação, p. 99.

241

Page 137: 52842935-Margarida-Maria-Lacombe-Camargo-Hermeneutica-e-Argumentacao (2).pdf

Mas o valor da qualidade em geral prevalece sobre o daquantidade, uma vez que o valor do único pode exprimir­se por oposição ao comum, ao corriqueiro, ao vulgar. Oúnico é original, distingue-se, e por isso é digno de nota.Também importantes são os lugares de ordem, que afir­mam a superioridade do anterior sobre o posterior. Para opensamento não empirista, justifica-se a superioridade dosprincípios e das leis sobre os fatos ou sobre o concreto, queaparecem como aplicação dos primeiros. A causa é razão~e ser dos efeitos e, por isso, é superior.409 Já para o empi­rIsmo, o resultado obtido a posteriori prevalece sobre asposições tomadas a priori. Os lugares do existente, por seuturno, afirmam a superioridade do que existe, do que éatual, do que é real, sobre o possível, o eventual ou o im­possível. Contudo, na prática verificamos que a aceitaçãodos "lugares" varia de acordo com as épocas, locais e ideo­logias. Como exemplo Perelman aponta os lugares dequantidade que prevaleceram durante o classicismo emoposição aos de qualidade, que marcaram o romanti~mo.Assim dispõe:

o que é universal e eterno, o que é racional e comumen­te válido, o que é estável, duradouro, essencial, o que inte­ressa ao maior número, será considerado superior e funda­mento de valor entre os clássicos.

o único, o original, o novo, o distinto e o marcante nahistória, o precário e o irremediável são lugares românticos.

A À.s virtud~s clássicas de veracidade e de justiça, o ro­mantlco opora as de amor, de caridade e de fidelidade' se osclássicos se apegam aos valores abstratos, ou ao men;s uni­versais, os românticos preconizam os valores concretos e

409. Idem, p. 105.

242

particulares; à superioridade do pensamento e da contem­plação, preconizada pelos clássicos, os românticos oporão ada ação eficaz.4lo

Perelman definirá como senso comum a série de cren­ças admitidas no seio de uma determinada sociedade e queseus membros presumem compartilhadas por todos os se­res racionais. 411 Mas ao lado dos valores privilegiados pelosenso comum, existem outros acordos cujos objetos pro­vêm de disciplinas e crenças particulares. Esses acordosconstituiriam o corpus de uma ciência ou de uma técnica,podendo também resultar de determinadas convenções oumesmo de adesão a textos. 412 Pode acontecer ainda que oorador deva procurar o acordo em atitudes que gerem aadesão implícita, como é o caso do juramento.

Utilizando-nos da classificação apresentada por Vieh­weg em torno da tópica de primeiro grau e de segundograu, cada qual referida a um catálogo específico de topoi,podemos configurar o direito como uma disciplina especí­fica e que, por isso, possui um "catálogo" próprio, formadopelos princípios retirados da lei, da doutrina e da jurispru­dência. 413 No direito, tanto incidem topoi de ordem geral,fundamentados no senso comum, capazes de balizar o ra­ciocínio como em qualquer discussão, até mesmo o jurídi­co (afinal o direito faz parte da natureza social e se integraculturalmente), quanto topoi que correspondem ao seupróprio âmbito de conhecimento. A jurisprudência talvezseja o mais importante catálogo de topoi, pois ela não sóconsagra a tradição jurídica, consolidando o entendimento

410. Idem, p. 111.411. Cabe lembrar aqui a função edificante do discurso epidítico nosentido de provocar a comunhão sobre valores.412. Perelman. Tratado da argumentação, p. 112.413. L6gícajurídica,p.120.

243

Page 138: 52842935-Margarida-Maria-Lacombe-Camargo-Hermeneutica-e-Argumentacao (2).pdf

sobre situações semelhantes e, com isso, obedecendo a re­gra de justiça que determina seja dado tratamento igualpara situações essencialmente semelhantes, como tambémoferece acordos prévios sobre quais sejam as interpreta­ções mais razoáveis numa determinada época, o que per­mite a flexibilidade do sistema.

Outro aspecto é o valor da tópica, como um todo, paraa Nova Retórica, no que reconhece o acordo inicial e atémesmo o conhecimento que o orador tem do seu auditó­rio. Sabemos que para um bom desempenho o orador de­verá adaptar-se sempre ao seu auditório, tanto em relaçãoàs teses que este conhece ou admite quanto àquelas queestaria apto a admitir. São essas teses que sustentam oponto de partida da argumentação, sob pena de se incorrerno que Perelman denomina de petição de princípio. A pe­tição de princípio corresponderia a um defeito de argu­mentação ou erro primeiro do orador quando este não sepreocupa com a adesão do auditório às premissas do seudiscurso, construindo-as aleatoriamente.414 Para Aristóte­les, um erro na técnica da demonstração, quando se postu­la aquilo que se quer provar.

Finalmente, como mostra da relação existente entre atópica e a argumentação, temos, ainda, o prefácio queViehweg escreve à terceira edição de Tópica eJurisprudên­cia, publicada em 1965, quando faz referência a ChalmPerelman e Recaséns Siches como jusfilósofos que atri-

414. Cf. Perelman, O império retórico, páginas 41 e 42.Muitas vezes, lembra Perelman, não se podendo identificar as te­

ses existentes, por não corresponderem a um corpo de doutrina, etratando-se de um público heterogêneo, apela-se para o sentido co­mum. Cada orador, em cada época, faz uma idéia do que o sentidocomum admite e dos fatos, teorias e presunções, valores e normas quese consideram admitidos por todo ser razoável. Cf. Lógica jurídica, p.155.

244

buem à tópica significado especial. No prefácio à quartaedição, quatro anos mais tarde, Viehweg diz acreditar queuma teoria satisfatória da Jurisprudência tem que se voltarpara a retórica. O jurista, de acordo com Viehweg, aparececomo um perito da argumentação jurídica, dentro dos qua­dros de uma teoria geral e retórica da argumentação, isto é,de uma teoria do discurso fundamentante. Na quinta edi­ção de Tópica e Jurisprudência, de 1973, acrescenta umnono e último parágrafo, em que sugere ao leitor que o leiaem primeiro lugar. Nele, Viehweg chama a atenção para asituação discursiva e dialógica relativa à pragmática atual.

Perelman, à sua vez, não trata da hermenêutica comoum processo mais amplo e referenciado à situação do in­térprete. Ele não assume o ambiente de compreensão queaproxima objeto, intérprete e situação, cingindo-se basica­mente à relação dialógica que o intérprete experimenta. Ainterpretação aparece como um processo de concretizaçãoda norma, decorrente de uma atividade que não incorporaa participação do juiz em um contexto de compreensãohistórica, como faz Gadamer, por exemplo. A interpreta­ção apresenta-se como um processo externo ao intérprete,apesar de contar com a sua habilidade e com o seu poderde convencimento. Fato é que a dimensão do compreen­der não aparece em Perelman, como também a dimensãoargumentativa não aparece em autores que se preocupamem teorizar sobre a hermenêutica. A nossa proposta aqui éjustamente tentar conciliar ou trazer como partes de ummesmo processo a hermenêutica, a interpretação e a argu-

mentação.Com alguma propriedade, porém, Perelman aproxima

a argumentação da interpretação, através da tópica quepresume a compreensão de valores. A idéia de razão, so­bretudo em suas aplicações práticas, liga-se ao que é razoá­vel, e tem indiscutíveis laços com as idéias de senso co-

245

Page 139: 52842935-Margarida-Maria-Lacombe-Camargo-Hermeneutica-e-Argumentacao (2).pdf

mum. Podemos, assim, identificar os lugares comuns comos pontos de vista ou valores considerados em toda discus­são. Esses valores podem vir traduzidos sob a forma deprincípios ou máximas, e daí a importância dos PrincípiosGerais de Direito,41S em fatos e acordos prévios de deter­minados auditórios, assim como na adesão à lei.416

Os lugares-comuns, de acordo com Perelman, desem­penham na argumentação um papel análogo ao dos axio­mas num sistema formal, mas destes se diferem porquecontam com um tipo de adesão outro que não o fundadona evidência. Por exemplo, a discussão em torno da liber­dade pode ter como parâmetro o princípio de que "a liber­dade é preferível à escravidão". No entanto, esse acordonão garante necessariamente o acordo sobre a concretiza­ção da liberdade: uns podem acreditar que ela é encontra­da num estado natural ou próximo do que pode ser imagi-

415. Sobre a importância dos Princípios Gerais do Direito para a tópi­ca jurídica, encontramos em Perelman as seguintes palavras: "Emboradiferentes por natureza dos princípios gerais do direito, as máximasrepresentam pontos de vista que a tradição leva em consideração efornecem argumentos que a nova metodologia, que busca conciliar afidelidade ao sistema com o caráter sensato e aceitável da decisão, nãopode desprezar. [... ] A importância dos lugares específicos do direito,isto é, dos tópicos jurídicos, consiste em fornecer razões que permi­tem afastar soluções não eqüitativas ou desarrazoadas, na medida emque estas negligenciam as considerações que os lugares permitem sin­tetizar e integrar em uma visão global do direito como ars aequi etbani." Lógica jurídica, p. 119 e 120.416. Perelman recorre ao trabalho de Struck sobre a tópica no direito,que procura evidenciar o duplo aspecto dos lugares comuns: "pontosde vista que, quando tomados em consideração, dão lugar a argumen­tos; argumentos que se encontram em todos os ramos do direito. [... ]Alguns desses Zaei afirmam princípios gerais de direito, outros sãomáximas ou adágios formulados em latim, e outros, finalmente, indi­cam os valores fundamentais que o direito protege e põe em prática."Lógica jurídica, p. 119 e segs.

246

nado como um estado natural, enquanto outros preferementender a liberdade como algo existente apenas numa so­ciedade planificada. A liberdade de contratar, por exem­plo, pode ser vista paradoxalmente como escravidão daparte economicamente mais fraca da relação contratual. Aidéia de democracia também se apresenta como lugar­comum nas sociedades ocidentais, provocando severas po­lêmicas quando se trata de adequá-la a meios e fins. Nãoobstante, esses lugares-comuns de conteúdo bastante geralproduzem outros mais específicos, capazes de sustentaruma argumentação. Por exemplo, a partir do momento emque se fixe um acordo sobre o significado e o alcance dotermo liberdade, uma argumentação pode ser levadaadiante.

Com essas considerações, acreditamos poder firmaruma posição razoável para a crise do método jurídico, ten­tanto aproximar os valores, dos princípios de direito e dainterpretação: uma proposta hermenêutica.

247

Page 140: 52842935-Margarida-Maria-Lacombe-Camargo-Hermeneutica-e-Argumentacao (2).pdf

Capítulo 5

PERSPECTIVAS DA RACIONALIDADEJURÍDICA CONTEMPORÂNEA

Este estudo tomou como parâmetro a mudança de pa­radigma verificada no âmbito da dogmática jurídica, a par­tir de meados do século XX. A dogmática abrange o âmbi­to próprio da juridicidade, melhor dizendo, da prestaçãojurisdicional realizada pelo Estado. A tarefa de "aplicar alei", típica do juiz, conforme dispõe o artigo 5° da Lei deIntrodução ao Código Civil Brasileiro, consiste em fazerincidir o direito sobre a situação conflituosa, oferecendo­lhe uma solução. Esse "aplicar" é justamente o que interes­sa à hermenêutica jurídica, uma vez que aplicar importa nainterpretação da norma e do fato, em direção a uma deci­são. A hermenêutica, portanto, é prática e concreta.

O direito de que tratamos corresponde, na realidade,ao campo dogmático-conceitual, que serve de premissa aoraciocínio jurídico, na medida em que a lei escrita, em nos­so sistema, ainda é considerada a principal fonte de direi­to. Não obstante a flexibilidade e a liberdade de interpre-

249

Page 141: 52842935-Margarida-Maria-Lacombe-Camargo-Hermeneutica-e-Argumentacao (2).pdf

tar a norma, conforme demonstram os resultados da dou­trina e da jurisprudência, a lei ainda é a base principal darazão jurídica. Por outro lado, procuramos também mos­trar, com apoio nas teorias de Viehweg, Recaséns Siches eCastanheira Neves, o contraponto que o fato, ou o proble­ma, exercem diante da lei. Para a hermenêutica, não setrata de pensar o direito de forma abstrata, inde­pendentemente da sua realização, uma vez que é o proble­ma que incita o direito, mas sim pensar o problema comocentro de gravidade de toda discussão jurídica. O justo ouo razoável juridicamente, para cada situação, é determina­do pelo direito aplicado; o direito concretizado. O que ditao direito é a sentença do juiz, ao determinar o que cabe acada uma das partes.

Compartilhamos da noção de dogmática preconizadapor Tércio Sampaio Ferraz Jr., que se baseia na inegabili­dade dos pontos de partida e na decidibilidade dos confli­tos. Ocorre que, até agora, a dogmática jurídica fundamen­tou-se no paradigma do Estado liberal, apoiado no jusnatu­ralismo, pautado na universalidade do bom direito e nasqualidades intrínsecas do homem, que o acompanham aqualquer lugar e em qualquer tempo. De acordo com estaconcepção, existe uma ética e uma moral universais, con­substanciadas no direito natural, que devem orientar asatividades legislativa e jurisdicional. Este seria o verdadei­ro direito, independentemente das circunstâncias históri­cas que informam os atos e fatos jurídicos.

Ao contrário dessas posições monolíticas, o que seaponta agora, sob o viés da pós-modernidade, é que, nolugar do universal, encontra-se o histórico; no lugar dosimples, o complexo; no lugar do único, o plural; no lugardo abstrato, o concreto; e no lugar do formal, o retórico. 417

417. A propósito ver André-Jean Amaud, em O direito entre moder­nidade e globalização.

250

Não se vê mais como condizente à prestação jurisdicionalaquele juiz que se reporta a conceitos abstratos, que pro­cura uma verdade absoluta capaz de decidir a questão, des­curando-se do subjetivismo (ou do intersubjetivismo) so­cial, que levam a possíveis verdades jurídicas. A lógica for­mal não serve mais ao direito, porque a solução jurídicanão se restringe a uma operação puramente teórico-silogís­tica. A subsunção dos fatos à regra geral (que funcionacomo axioma) pode produzir um resultado formalmentelógico, mas não adequado à realidade. O pensamento jurí­dico não se conforma com um tipo de raciocínio linear queignora a dialética e os valores que informam a hermenêuti­ca. A inegabilidade dos pontos de partida, que aponta paraa inexorabilidade da lei, não impede de trabalharmos umainterpretação mais adequada para cada caso. Por isso, épreciso reconhecer uma nova racionalidade capaz de orien­tar a dogmática jurídica e, ao mesmo tempo, defendê-la dapecha da arbitrariedade, o que nos parece bastante possí­vel com o auxílio da tópica e da retórica.

Com esse intuito, analisamos alguns dos principais filó­sofos e teóricos do direito, que têm procurado enfrentar aquestão. Gadamer, por exemplo, provocou uma reviravol­ta na hermenêutica das ciências sociais. Em lugar de se fiarno sentido técnico-científico, ainda que histórico, e queorientou a hermenêutica moderna, optou por trabalharcom categorias de caráter ontológico-existencialista. Oque se depreende da teoria de Gadamer é que, no lugar depretendermos dominar o fenômeno hermenêutico, deve­mos antes compreendê-lo. Com Ricoeur, acompanhamosa tarefa de lidar com a interpretação de textos escritos,dentre os quais podemos destacar a lei.

Para chegarmos a este ponto, foi necessário proceder àelaboração de um escorço histórico sobre a evolução do

251

Page 142: 52842935-Margarida-Maria-Lacombe-Camargo-Hermeneutica-e-Argumentacao (2).pdf

pensamento jusfilosófico moderno, que marcou a tradiçãoromano-germânica e que serve de arrimo à nossa cena. Afi­nal, trabalhamos ainda sob a égide da constante tensão de­corrente do embate entre os pressupostos da ordem e dasegurança, de um lado, e da justiça e eqüidade de outro.De um lado, o Estado de Direito que quer ter na lei ocontrole do poder político (segurança); e, de outro, o Esta­do Democrático de Direito, que reclama padrões de justi­ça concreta e maior participação política.

Procuramos também destacar a dimensão concretaprópria do pensar jurídico, orientado que é para o proble­ma que se pretende resolver. Coube a Chalm Perelmanrealizar a grande guinada na área da metodologia jurídica,quando apontou para as dimensões retórica e argumentati­va que, na realidade, fazem o direito. O direito origina-seda prática; não se limita ao conteúdo do texto da lei: surgee é orientado pelas teses construídas sob os parâmetros dofato e da lei, num confronto de idéias que vêm legitimarcada decisão tomada de per si. Ressaltamos, assim, algu­mas das contribuições mais significativas para a reflexãojurídica contemporânea, avessa à adoção do raciocínio lógi­co-linear para, em lugar desta, apresentar uma propostamais voltada para a intersubjetividade e para o desafioconstante de se lidar com situações que requerem respos­tas convincentes e criativas.

A produção científica, principalmente no que diz res­peito às ciências humanas e sociais, tem se empenhado emrever seus padrões metodológicos, reinventando um modode pensar capaz de lidar com essa enorme, variada e com­plexa gama de situações. Gadamer, Perelman, Viehweg,Recaséns Siches e Castanheira Neves retratam bem essatemática, não apenas quando trazem o relativismo históri­co para a nova hermenêutica, mas também quando confe-

252

rem importância à característica retórico-argumentativa econcreta das relações jurídicas.

A nova racionalidade jurídica, identificada neste traba­lho com a tópica e com a retórica, corresponde a um novomodo de pensar o direito. Por um lado, a nova hermenêu­tica, que procura dar conta da complexidade que orienta osignificado da ação social, na qual incluem-se as relaçõesjurídicas; e de outro, a nova retórica, que reúne elementosda teoria da argumentação e da tópica, capazes de legiti­mar novas situações. No entanto, percebemos que a maio­ria dos autores que analisam a argumentação no âmbito dadogmática jurídica não aproximam a retórica da interpre­tação, ao menos no que se refere à reflexão hermenêutica.Perelman, por exemplo, parte simplesmente da verifica­ção de que técnicas de argumentação são utilizadas no di­reito, sem, contudo, indagar sobre a orientação hermenêu­tica experimentada pelo intérprete.418 Nesse sentido, ca­beria perguntar: por que a discussão que se processa noâmbito do judiciário, ou mesmo da dogmática jurídica, seutiliza da técnica argumentativa? E, ainda, onde estaria odireito: na descrição pura e simples da lei, ou nas razõesque justificam posições de cunho decisório? Verificamosque quando o raciocínio se refere à escolha de uma posiçãoem lugar de outra, esta escolha não se processa por meiode uma fórmula capaz de garantir-lhe exclusividade, ouseja, de apresentar a solução como a única possível. Nãoobstante, uma deliberação, qualquer que seja, não se dá àtoa, pois, quando deliberamos, o fazemos em função de

418. De acordo com Perelman, "a teoria da argumentação não temque tomar posição num debate ontológico. Basta-lhe verificar que aidéia que se faz da pessoa e a maneira de compreender seus atos seencontram em constante interação". Cf. O império ret6rico, p. 105.

253

Page 143: 52842935-Margarida-Maria-Lacombe-Camargo-Hermeneutica-e-Argumentacao (2).pdf

um determinado modo de pensar, relativizado a valores.Donde, a lógica que fundamenta nossas ações não é a dotipo formal, mas alguma outra que aponte em direção àrazoabilidade dessas ações. As decisões razoáveis, de acor­do com Perelman, são aquelas que apresentam melhorescondições de se impor pela força dos seus argumentos, emlugar de se imporem pela força bruta. Sua aceitação impli­ca, portanto, sua legitimidade. Por outro lado, temos que amelhor interpretação se forma não apenas sobre tesesplausíveis, construídas com base em argumentos quase ló­gicos ou em argumentos que se fundam na estrutura doreal, mas também sobre opiniões amplamente aceitas (to­poi). A interpretação que prevalece é a do argumento maisforte, ou seja, aquele que, ao menos num determinado mo­mento, apresenta-se como irrefutável; e irrefutável porquecoadunado com os valores admitidos pela sociedade oumesmo por um determinado grupo (auditório).

O juiz, como todo profissional do direito, é levado ainterpretar o problema que lhe é apresentado, em funçãode uma solução que pode vir-lhe à mente de imediato.Muitas vezes, e o que parece natural, o juiz afere o seupróprio sentido de justiça, para, em seguida, buscar umajustificativÇl racional conforme o ordenamento jurídico vi­gente.419 Tal justificativa, porém, não haverá de ser tãosimples, uma vez que deverá estar apta a enfrentar tesescontrárias. Dessa maneira, a solução intuitiva e primeiraexperimenta todo um processo de maturação que pode lhetrazer benefícios, até apresentar-se sob a sua forma defini­tiva.

419. Sobre a razão que preside o processo de concretização e aplica­ção da lei ver o estudo de Carlos Alberto Direito, "A decisão judicial",publicado na Revista de Direito da Renovar. (Vide bibliografia.)

254

A decisão, por sua vez, corresponde à própria concreti­zação do fato jurídico, que demanda uma postura histori­cista. Do mesmo modo que Gadamer aponta para a impor­tância da cultura e da tradição na interpretação das situa­ções históricas, Perelman também traz os precedentes ju­diciais como pontos de vista já aceitos e, portanto, capazesde legitimar interpretação semelhante para caso seme­lhante. Tais pontos de vista, por sua vez, referem-se a todoum ambiente cultural do qual fazem parte tanto o intér­prete quanto o objeto interpretado, constituindo uma ver­dadeira situação hermenêutica, conforme nos fala Gada­mer.

Procuramos, todavia, chamar a atenção para o fato deque a compreensão no campo do direito dá-se por inter­médio da argumentação. A interpretação, enquanto açãomediadora entre a pré-compreensão e a compreensão, é deíndole nitidamente concretizadora e argumentativa. E, sepensarmos que compreender é indagar sobre as possibilida­des de um acontecer próprio das relações humanas, ou,segundo Heidegger, o caráter ôntico original da vida huma­na mesma: o estar-aí que se interpreta,420 temos que o di­reito só existe enquanto compreendido.421 Interpretamos

420. "A pre-sença não é apenas um ente que ocorre entre outros en­tes. Ao contrário, do ponto de vista ôntico, ela se distingue pelo privi­légio de, em seu ser, isto é, sendo, estar em jogo seu próprio ser. [... ]Isso significa, explicitamente e de alguma maneira, que a pre-sença secompreende em seu ser, isto é, sendo. É próprio deste ente que seuser se lhe abra e manifeste com e por meio de seu próprio ser, isto é,sendo. A compreensão do ser é em si mesma uma determinação do serda pre-sença. Heidegger, Ser e tempo, parte I, página 38.421. Compreensão (Verstehen), segundo Enrique Aftalión e José Vi­lanova, não é método específico das ciências sociais, mas a forma emque o homem tem experiência do mundo social e das ações do homemde acordo com construções de sentido comum. Cf. Introduccion aIderecho, p. 415-416.

255

Page 144: 52842935-Margarida-Maria-Lacombe-Camargo-Hermeneutica-e-Argumentacao (2).pdf

algo concreto, que é a conduta tipificada como jurídica, ejustificamo-la por meio de argumentos que pretendemosconvincentes. E, se pensarmos que é por meio da argumen­tação que se dá a interpretação, isto é, que a tese vencedo­ra é que nos impõe um significado passível de produzirefeitos sobre a realidade, podemos achar que a hermenêu­tica é ontológica. Lembremo-nos que, no direito, a coisajulgada constrói uma verdade jurídica (aletheía ou desvela­mento da decisão correta), que corresponde à tomada deposição por sua vez produtora de efeitos sobre a realidade.

Para nós, porém, o distanciamento entre a hermenêu­tica e a argumentação é uma lacuna que nos foi legada tan­to pelos filósofos que se ocuparam mais de perto com aquestão da compreensão, ou da hermenêutica de modo ge­ral (como é o caso de Gadamer, apesar do estudo sobrelinguagem que desenvolve na última parte de Verdade eMétodo), quanto por aqueles que investiram maciçamenteno estudo da eficácia das técnicas da argumentação, comoPerelman. 422 Foi este, no entanto, quem, na ânsia de inda­gar sobre o uso da razão que informa a práxis, projetouuma ponte entre a hermenêutica e a argumentação, aindaque não assumisse propriamente o problema hermenêuti­co. Com base na retórica, que informa a justificação dasdeliberações humanas, Perelman, na realidade, indagacomo o homem, ou a sua consciência, efetivamente en­frenta a dimensão histórica, o que-fazer histórico, sujeito àcompreensão. Perelman verifica que a racionalidade práti­ca se insere no âmbito de uma instância dialógica. E é, pois,

422. Vale lembra aqui a importância do trabalho de José Lamego:Hermenêutica e Jurisprudência, onde é analisada a recepção da "novahermenêutica" de Heidegger e Gadamer pela Jurisprudência, afastan­do-se da posição tradicional que festejou o direito até praticamentemeados do século XX.

256

1_,;':,,),;,;.

na relação discursiva entre as pessoas, cujas opiniões nãotêm necessariamente que coincidir, que se dá o esforçohermenêutico. É o eu deixando-se falar pelo tu, até atingir­mos um significado válido para as situações ou questõeshumanas que nos são impostas. Perelman também nosmostra que o diálogo se realiza por meio de argumentos(teses que pretendem resultado), e que as posições toma­das pelos agentes são sustentadas pelas justificativas apre­sentadas. E é exatamente na justificação que percebemoso fazer interpretativo que sugere a compreensão.

Vale lembrar a natureza democrática desta concepçãometodológica, uma vez que, adequando-se uma solução ju­rídica razoável para cada situação concreta, somos capazesde produzir alguma carga de satisfação social. Neste ponto,por que não falarmos de justiça? Se a aplicação da justiçadepende do apaziguamento das partes mediante convenci­mento, podemos achar que sim. Mas a questão principalque norteia nossa tese é a da racionalidade jurídica. Comoo direito é pensado? ou: Como o direito se realiza e podeser conhecido? A verdade estaria na compreensão do pró­prio mundo, e o sujeito, como ser presente e temporal,interpreta o seu mundo enquanto parte integrante dele.Logo, o acontecer revela-se na consciência do próprio ser.O direito, como produto de relações intersubjetivas, tam­bém faz parte desse mundo humano e, por isso, deve sercompreendido na totalidade do ser historicamente refe­renciado.

Sustentamos que a racionalidade característica do pen­samento jurídico envolve a hermenêutica (compreensão),a argumentação e a interpretação. Primeiro, a apresenta­ção do problema motiva a interpretação, o que significaque uma solução legal deverá ser dada, e, com isso, instau­ra-se o fenômeno jurídico que é experimentado pelo intér­prete. Em função desse problema, o intérprete raciocina

257

Page 145: 52842935-Margarida-Maria-Lacombe-Camargo-Hermeneutica-e-Argumentacao (2).pdf

juridicamente, o que significa dizer que ele domina a dog­mática jurídica: lei, doutrina e jurisprudência. Por outrolado, o intérprete encontra-se inserido e faz parte de umadeterminada tradição que lhe informa os valores e as con­dições em pauta, como pré-compreensão do problema.Daí, a partir do que podemos chamar de um projeto ini­cial, o intérprete indaga sobre as várias significações possí­veis do problema, através de argumentos que constrói,para, finalmente assumir uma posição, isto é, decidir.

A argumentação dá-se num campo discursivo que podeser puramente mental, oral ou escrito, desde que as tesesapresentadas pressuponham outras que lhe possam servirde objeção. A intersubjetividade apresenta-se, assim, namedida em que todas as teses e/ou considerações feitaspelo intérprete concebem outros atores que se relacionemdireta ou indiretamente com o problema. Prevalece a tesemais forte, ou seja, aquela que consegue impor-se aos ad­versários ou aos pseudo-adversários. A partir desse jogo deforças, estabelece-se uma solução correspondente à com­preensão do problema, sendo que esta solução é definitivaapenas para efeitos de superarem-se as dificuldades trazi­das pelo problema, pois nada impede que essa mesma so­lução sirva de ponto de partida para questões semelhantes,como nos aponta a jurisprudência. Dessa forma, aproxima­mos a hermenêutica da tópica e da argumentação: a herme­nêutica como método ou orientação de raciocínio, a tópicacomo mola propulsora e centro de gravidade que garanteesse movimento, a argumentação como organização dopensamento, enquanto o discurso corresponde à exteriori­zação do raciocínio, e a interpretação à fixação da com­preensão.

Conforme o pensamento gadameriano, cada intérpretetem o seu horizonte, produto da educação, da socializaçãoe da experiência vivida. Não existe uma interpretação ver-

258

dadeira ou única. Existe sim, uma interação entre intérpre­te e objeto. As várias perspectivas, no entanto, não signifi­cam que não possa haver acordo, uma vez que o acordo éalcançado por meio do diálogo, quando os diferentes pon­tos de vista são expostos, questionados e eventualmentereformulados. Em geral, verifica-se uma similaridade dehorizontes uma vez que provenientes de uma mesma basesocial e intelectual que forma os intérpretes.423 Por isso éque muitos textos, no nosso caso as leis, possuem significa­dos que gozam de estabilidade e dispensam o esforço in­terpretativo.424

A partir deste estudo, concluímos, então, que o direito,apesar de toda sua carga dogmática, faz parte de uma tra­dição filosófica cuja base reside na tópica e na retórica; oque nos leva a acreditar que o seu conhecimento, comocriação humana, histórica e social, comporta uma dimen­são hermenêutica. Voltamos, assim, à nossa posição inicial,afirmando que o direito consiste na realização de uma prá­tica que envolve o método hermenêutico e a técnica argu­mentativa.

Atualmente, muito se fala em razoabilidade e em pro­porcionalidade como postulados de interpretação jurídica,mormente no campo do direito público. No entanto, oajuste de valores que o princípio da proporcionalidade pre­side depende de uma instância argumentativa que temsido negligenciada. Afinal, quando dois ou mais princípiosse enfrentam, qual deve ceder em benefício do outro e emque medida? Qual a proporção razoável à medida adequa­da? A partir dessas indagações, esperamos poder contri­buir para o debate sobre a questão da razoabilidade no di­reito brasileiro.

423. Vide James E. Herget, Contemporary german legal philosophy.424. Cf. WRÓBLEWSKI, Jerzy. Constituci6n y teoria general de lainterpretaci6n jurídica..

259

Page 146: 52842935-Margarida-Maria-Lacombe-Camargo-Hermeneutica-e-Argumentacao (2).pdf

BIBLIOGRAFIA

AFTALIÓN, Enrique R., VILANOVA, José. Introducción alDerecho. Nova versão, com a colaboração de Julio Raffo. 2. ed.Buenos Aires: Abeledo-Perrot, [s.d.].ARISTÓTELES. Tópicos. Trad. de Leonel Vallandro e GerdBornheim. São Paulo: Nova Cultural, 1991. (Coleção Os Pensa­dores).___o Ética a Nicômacos. Trad. de Mário Gama Kury. 3.ed.Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1992.ARNAUD, André-Jean. O direito entre modernidade e globali­zação. Trad. de Patrice Charles Wuillaume. Rio de Janeiro: Re­novar, 1999.BERMAN, Harold 1. Law and revolution: the formation of theWestern legal tradition. Cambridge, Massachusetts, London:Harvard University, [s.d.].BOBEIO, Norberto. O positivismo jurídico: lições de filosofiado direito. Trad. de Márcio Pugliesi. São Paulo: Ícone, 1995.BÓCKENFÓRDE, Ernst-Wolfgang. Escritos sobre DerechosFundamentales. Trad. de Juan Luis Requejo Pagés e Ignacio Vil­laverde Menéndez. Baden-Baden: Nomos Verlagsgesellschaft.,1993.BONNECASE, Julien. L'École de l'Exégese en Droit Civil. 2.ed. Paris: E. de Boccard, 1924.BRANDÃO, Junito de Souza. Mitologia grega. Petrópolis: Vo­zes, 1987.

261

Page 147: 52842935-Margarida-Maria-Lacombe-Camargo-Hermeneutica-e-Argumentacao (2).pdf

CAMARGO, Margarida Maria Lacombe. "Interpretação consti­tucional". In: 1988-1998: uma década de Constituição. Org.Margarida Maria Lacombe Camargo. Rio de Janeiro: Renovar,1999.____o "Hermenêutica constitucional". In: Revista de Direi­to da Associação dos Procuradores do Novo Estado do Rio deJaneiro, voI. V. Coord. Luís Roberto Barroso. Rio de Janeiro:Lumen Juris, 2000.____o "O discurso jurídico e sua dimensão tópica". In: Re­vista da Faculdade de Direito da UCP, voI. 2. São Paulo: Sínte­se, 2000.____o "Eficácia constitucional: uma questão hermenêuti­ca". In: Hermenêutica Plural. Org. Carlos Eduardo de AbreuBoucault e José Rodrigo Rodriguez. São Paulo: Martins Fontes,2002.____o "O movimento de superação do positivismo jurídicona aplicação dos direitos fundamentais". In: Estudos em home­nagem a Carlos Alberto Menezes Direito. Coord. Antônio CelsoAlves Pereira e Celso Renato Duvivier de Albuquerque Mello.Rio de Janeiro: Renovar, 2003.CANARIS, Claus-Wilhem. Pensamento sistemático e conceitode sistema na ciência do direito. Lisboa: Fundação CalousteGulbenkian, 1989.CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria daConstituição. Coimbra: Livraria Almedina, 1997.CARRILHO, Manuel Maria. Jogos de racionalidade. Porto:ASA, 1994.___o [Coord.]. Retórica e comunicação. Porto: ASA, 1994.CASAMIGLIA, Albert. Estudo preliminar à primeira ediçãoespanhola de Que es justicia?, de Hans Kelsen. Barcelona: Ariel,1982.CASCARDI, A., HINTIKKA, J., MEYER et aI. Retórica e co­municação. Trad. de Fernando Martinho. [Org. e prefácio deManuel Maria Carrilho]. Portugal: ASA, 1994.COELHO, Fábio Ulhoa. Para entender Kelsen. São Paulo: MaxLimonad, 1995.____o Prefácio à edição brasileira do Tratado da argumen­tação, de Cha'im Perelman. São Paulo: Martins Fontes, 1996.

262

COELHO, Inocêncio Mártires. interpretação constitucional.[Prefácio de Gilmar Ferreira Mendes]. Porto Alegre: Sérgio Fa­bris, 1996.DAVID, René. Os grandes sistemas do direito contemporâneo.2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1993.DEL VECCHIO, Giorgio. Lições de filosofia do direito. Trad.de Antônio José Brandão. Rev. e prefaciada por L. Cabral deMoncada e atualizada por Anselmo de Castro. Coimbra: Armê­nio Amado, 1979.DESCARTES, René. Discurso do método. Trad. de Maria Er­mantina Galvão Pereira. São Paulo: Martins Fontes, 1996.DIREITO, Carlos Alberto. "A decisão judicial". Revista de Di­reito da Renovar, n.15, p. 37. Rio de Janeiro: Renovar, 2000.EHRLICH, Eugen. Fundamentos da sociologia do direito. Trad.de René Ernani Gertz. Rev. por Vamireh Chacon, Coleção Ca­dernos da UnB, Editora da Universidade de Brasília, 1986.ENGISH, KarI. Introduç(io ao pensamento jurídico. Trad. de J.Baptista Machado. 6. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulben-kian, 1988.FALCÃO, Raimundo Bezerra. Hermenêutica. São Paulo: Ma­lheiros) 1997.FASSO, Guido. Histoire de la Philosophie du Droit - XIX etXX Siecles. Traduit de l'italien par Catherine Rouffet. Paris:L.G.D.J.FERRARA, Francesco. Interpretação e aplicação das leis. Trad.de Manuel Domingos de Andrade. 4. ed. Coimbra: ArmênioAmado, 1987.FERRAZ Jr., Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito:técnica, decisão, dominação. São Paulo: Atlas, 1991.____o A ciência do direito. 2. ed. São Paulo: Atlas, 1991.____o Conceito de sistema no direito. São Paulo: Revista dosTribunais, 1976.FRANÇA, R. Limongi. Hermenêutica jurídica. 3. ed. São Paulo:Saraiva, 1994.GADAMER, Hans~Georg. Verdad y método I. Trad. de AnaAgud Aparicio y Rafael de Agapito. 5. ed. Espanha: Sígueme,1993.___o Verdad y método lI. Trad. Manuel Olasagasti. Espa­nha: Sígueme, 1992.

263

Page 148: 52842935-Margarida-Maria-Lacombe-Camargo-Hermeneutica-e-Argumentacao (2).pdf

____o A razão na época da ciência. Trad. Angela Dias. Riode Janeiro: Tempo Brasileiro, 1983. (Biblioteca Tempo Univer­sitário 72).GARCÍA, Manuel Calvo. Los fundamentos del método jurídico:una revisión crítica. Madrid: Tecnos, 1994.G ÉNY, François. Méthode d'interprétation et sources en DroitPrivé Positif: essai critique. Prefácio de Raymond Saleilles. 2.ed. Paris: Librarie Générale de Droit et de Jurisprudence,1919.____o Science et tecnique en droit privé positif: nouvellecontribution a la critique de la methode juridique. Paris: Re­cueil Sirey, 1914-1924.CHAUÍ, Marilena. Convite à filosofia. São Paulo: Ática, 2000.GILISSEN, John. Introdução histórica ao direito. Trad. de A.M. Hespanha e L. M. Macaísta Malheiros. Lisboa: FundaçãoCalouste Gulbenkian, 1986.GIORDANI, Mário Curtis. Iniciação ao direito romano. 2. ed.[S.I]: Lumen Juris, 1991.GOMES, Alexandre Travessoni Gomes. O fundamento de vali­dade do direito - Kant e Kelsen. Belo Horizonte: Mandamen­tos, 2000.GRÁCIO, Rui Alexandre. Racionalidade argumentativa. Por­tugal: ASA, 1993.GRAU, Eros Roberto. Prefácio à Metodologia jurídica, de Fer­nando Herren Aguillar. São Paulo: Max Limonad, 1996.____o O direito posto e o direito pressuposto. São Paulo:Malheiros, 1996.____o La doble desestructuración y la interpretación del de­recho. Barcelona: M. J. Bosch, 1998.GRONDIN, Jean. Introduction to philosophical hermeneutics.Foreword by Hans-Georg Gadamer. Translated by Joel Weis­hemer. Yale Studies in Hermeneutics: Joel Weisheimer, [s.d.].GRZEGORCZYK, Christophe, MICHAUT, Françoise, TRO­PER, Michel. Le positivisme juridique. Publié avec le concoursdu Centre National de la Recherche Scientifique et de l'Uni­versité de Paris X-Nanterre, L.G.DJ, Paris, 1992.GUSMÃO, Paulo Dourado de. Introdução ao estudo do direito.17. ed., Rio de Janeiro: Forense, 1995; e 21.ed., Rio de Janeiro:Forense, 1997.HAMILTON et alii. O Federalista. Brasília: UnB, 1984.

264

HECK, Philipp. Interpretação da lei e jurisprudência dos inte­resses. Trad. de José Osório. São Paulo: Livraria Acadêmica,Saraiva, 1947.HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. Trad. de Márcia de Sá Ca­valcante. 5. ed. Petrópolis: Vozes, 1995.HERG ET, James E. Contemporary german legal philosophy.Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 1996.HESSE, Konrad. "La interpretación constitucional". In: Escri­tos de derecho constitucional. Seleção e tradução de Pedro CruzVillalon. 2. ed. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales,1992.____o Elementos de direito constitucional da República Fe­deral da Alemanha. Trad. Luís Afonso Heck. Porto Alegre: Sér­gio Fabris, 1998.HESSEN, Johannes. Filosofia dos valores. Trad. e pref. de L.Cabral de Moncada. 5. ed. Coimbra: Armênio Amado, 1980.HOBBES, Thomas. Leviatã ou matéria, forma e poder de umestado eclesiástico e civil. Trad. de João Paulo Monteiro e MariaBeatriz Nizza da Silva. [S.l.]: Nova Cultural, 1997.JHERING, Rudolf Von. A luta pelo direito. Rio de Janeiro:Liber Juris, 1987.____o A finalidade do direito. Trad. de José Antonio FariaCorrea. Rio de Jàneiro: Rio, 1979.KANTOROWICZ, Herman. A luta pela ciência do Direito. ACiência do Direito. Buenos Aires: Editorial Losada, 1949.KELSEN, Hans.Teoria pura do direito. Trad. de João BaptistaMachado. 6. ed. Coimbra: Armênio Amado, 1984.KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado: para uma semânticados tempos históricos. 1. ed. Barcelona: Paidos, 1993.LAMEGO, José. Hermenêutica e jurisprudência. Lisboa: Frag­mentos, 1990.LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do direito. Trad. deJosé Lamego. 2. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian,1983.____o Derecho justo: fundamentos de etica juridica. Ma-drid: Civitas, 1993.LEGAZ Y LACAMBRA, Luis. Filosofía deZ derecho. 4. ed. Bar­celona: Bosch, 1975.

265

Page 149: 52842935-Margarida-Maria-Lacombe-Camargo-Hermeneutica-e-Argumentacao (2).pdf

LOCKEj John. Segundo tratado sobre o governo. Trad. de AnoarAiex e E. Jacy Monteiro. São Paulo, Abril Cultural, 1973.LUHMANN, Niklas. Sistema jurídico y dogmatica juridica.Madrid: Centro de Estudos Constitucionais, 1983.MACHADO, J. Baptista. Introdução ao direito e ao discursolegitimador. Coimbra: Almedina, 1994.MACINTYRE, Alasdair. Justiça de quem? Qual racionalidade?São Paulo: Loyola, 1991.MACPHERSON. A teoria política do individualismo possessivode Hobbes até Locke. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.MAIA, Antonio Cavalcanti. "Notas sobre Direito, Argumenta­ção e Democracia". 1988-1998: uma década de Constituição.Margarida Maria Lacombe Camargo [Org.]. Rio de Janeiro: Re­novar, 1999.MAIA, Antonio Cavalcanti; MEYER, Michel; PERELMAN,Cha'im et aI. Cadernos PET-JUR. Rio de Janeiro: Departamentode Direito da PUC, ano 111, n. I, 1997.MARSHALL, T. H. Cidadania, classe social e status. Rio deJaneiro: Zahar, [s.d.].MARTÍNEZ, Soares. Filosofia do direito. 2. ed. Coimbra: AI­medina, 1995.MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito.Rio de Janeiro: Forense, 1996.MENDES, Gilmar; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO,Paulo Gonet. Hermenêutica constitucional e direitos fundamen­tais. Brasília: Brasília Jurídica, 2000.MENDONÇA, Paulo Roberto Soares. A argumentação nas de­cisões judiciais. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2000.____,. A Tópica e o Supremo Tribunal Federal. Rio de Janei­ro: Renovar, 2003.MERRYMAN, John Henry. The civillaw tradition. 2. ed. Cali­fornia: Stanford University, 1984.MEYER, Michel. "Bases da retórica", em Retórica e comunicação,[Manuel ~aria Carrilho, coordenador]. Porto: ASA, 1994.MOLINIE, Georges. Dictionnaire de rhétorique. Paris: Librai­rie Générale Française, 1992.MONTEIRO, Claudia Sevilha. Teoria da argumentação jurídi­ca e nova retórica. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001.

266

MONTESQUIEU, Charles de Secondat. Do espírito das leis.Trad. de Fernando Henrique Cardoso e Leoncio Martins Rodri­gues. 2. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1979.MORIENTE, Manuel Garcia. Fundamentos de filosofia: liçõespreliminares. Trad. e prólogo de Guilhermo da la Cruz Corona­do. São Paulo: Mestre Jou, 1980.MÜLLER, Friedrich. Direito, linguagem e violência. Porto Ale­gre: Sérgio Fabris, 1995.NEVES, A. Castanheira. Metodologia jurídica. Portugal: Uni­versidade de Coimbra, 1993.____o Digesta - Escritos acerca do direito, do pensamentojurídico, da sua metodologia e outros. Vol. 2. Coimbra: CoimbraEditora, 1995.____o "Entre o 'legislador', a 'sociedade' e o 'juiz' ou entre'sistema', 'função' e 'problema' -os modelos atualmente alter­nativos da realização jurisidiconal do direito". Boletim da Facul­dade de Direito da Universidade de Coimbra, vol.74, 1998, p.1-44.NINO, Carlos Santiago. Introducción aI análisis deI derecho. 2.ed. Buenos Aires: Astrea, 1995.PALMER, Richard E. Hermenêutica. Trad. de Maria Luísa Ri­beiro Ferreira. Lisboa: 70, [s.d.].PAISANA, João. Dicionário do pensamento contemporâneo.Dir. de Manuel Maria Carrilho. Lisboa: Dom Quixote, 1991.Verbete Hermenêutica.PERELMAN, Chai'm. Ética e direito. Trad. de Maria ErmantinaGalvão Pereira. São Paulo: Martins Fontes, 1996.____o La lógica juridica y la nueva retórica. Trad. de LuisDiez-Picazo. Espanha: Civitas, 1988.____o O império retórico - retórica e comunicação. Trad.de Fernando Trindade e Rui Alexandre Grácio. Portugal: ASA,[s.d.].____o Retóricas. Trad. de Maria Ermantina Galvão Pereira.São Paulo: Martins Fontes, 1997.PERELMAN, Chai'm, OLBRECHTS-TYTECA, Lucie. Tratadoda argumentação: a Nova Retórica. Trad. de Maria ErmantinaGalvão Pereira. São Paulo: Martins Fontes, 1996.PESSANHA, José Américo. "A teoria da argumentação ouNova Retórica". In: CARVALHO, Maria Cecília Maringoni de.

267

Page 150: 52842935-Margarida-Maria-Lacombe-Camargo-Hermeneutica-e-Argumentacao (2).pdf

(Org.) Paradigmas filosóficos da atualidade. Campinas: Papi­rus, 1989.PLEBE, Armando, PIETRO, Emanuele. Manual de retórica.Trad. de Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 1992.PRADO, Luiz Regis, KARAN, Munir [Coord.]. Estudos de Filo­sofia do Direito: uma visão integral da obra de Hans Kelsen.São Paulo: Revista dos Tribunais, 1985.RADBRUCH, Gustav. Filosofia do direito. 6. ed. Coimbra: Ar­mênio Amado, 1979.REALE, Miguel. Filosofia do direito. 17. ed. São Paulo: Saraiva,1996.____o Nova fase do direito moderno. São Paulo: Saraiva,1990.____o Introdução à filosofia. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1989.____,. O Direito como experiência. São Paulo: Saraiva, 1968.REBOUL, Olivier. Introdução à retórica. Trad. de Ivone Casti­lho Benedetti. São Paulo: Martins Fontes, 1998.RIBEIRO JR., João. Augusto Comte e o Positivismo. Campinas:Edicamp, 2003.RICOEUR, Paul. Teoria da interpretação. Trad. de Artur Mou­rão. Portugal: 70, [s.d.].____o Interpretação e ideologias. Org. e Trad. por HiltonJapiassu. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1990.ROHDEN, Luiz. O poder da linguagem: a arte retórica de Aris­tóteles. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1997.ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do contrato social. Trad. de Lour­des Santos Machado. São Paulo: Nova Cultural, 1991.SALDANHA, Nelson. Ordem e hermenêutica. Rio de Janeiro:Renovar, 1992.SAMPAIO, Nelson de Souza. "Doutrina, fonte material e for­mal do direito", em Estudos de Filosofia do Direito: uma visãointegral da obra de Hans Kelsen, [Luiz Regis Prado e MunirKaran, coordenadores]. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1985.SANTOS, Boaventura de Souza. Introdução a uma ciência pós­moderna. Rio de Janeiro: Graal, 1989.____o A crítica da razão indolente: contra o desperdício daexperiência. 3. ed. São Paulo: Cortez, 2001.SAVIGNY, KIRCHMANN, ZITELMANN eta!. La ciencia deiDerecho. Buenos Aires: Biblioteca dei Instituto Argentino deFilosofia Jurídica e Social, Losada, 1949.

268

SAVIG NY. De la vocacion de nuestro siglo para la legislacion yla ciencia dei derecho. Trad. de Adolfo Posada. Buenos Aires:Atalaya, 1946.SICHES, Luis Recaséns. Nueva filosofía de la interpretación deiderecho. 3. ed. México: Porrúa, 1980.____o Panorama dei pensamiento juridico en el siglo XX.México: Porrúa, 1963.____o Introdución ai estudio dei derecho. México; Porrúa,1981.SILVEIRA, Alípio. Hermenêutica no direito brasileiro. São Pau­lo: Revista dos Tribunais, 1968.STAMMLER, Rudolf. La génesis dei derecho. Trad. do alemãopor W. Roces. Madrid: CALPE, 1925.STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise: umaexploração hermenêutica da construção do Direito. Porto Ale­gre: Livraria do Advogado, 1999.____o "As constituições sociais e a dignidade da pessoa hu­mana como princípio fundamental". 1988-1998: uma décadade Constituição. Margarida Maria Lacombe Camargo [Org.].Rio de Janeiro: Renovar, 1999.TORDESILHAS, Alonso. "Perelman, Platão e os Sofistas: Jus­tiça e Nova Retórica". In R. Reflexão, Campinas: PUC, n. 49, p.109-130, jan./abr. 1991.TOULMIN, Stephen. "Racionalidade e razoabilidade", em Re­tórica e comunicação, [Manuel Maria Carrilho, coordenador].Porto: ASA, 1994.VATTIMO, Gianni. Para além da interpretação: o significadoda hermenêutica para a filosofia. Rio de Janeiro: Tempo Brasi­leiro, 1999.VIEHWEG, Theodor. Tópica e jurisprudência. Trad. de TércioSampaio Ferraz Jr. Brasília: Ministério da Justica, UnB, 1979(Coleção Pensamento Jurídico Contemporâneo).____o Tópica y filosofia dei derecho. Barcelona: Gedisa,1991.VILLEY, Michel. Philosophie du droit. 12. ed. Dalloz, 1984.WEBER, Max. Ciência e política: duas vocações. Trad. de Leo­nidas Hegenberg e Octany Silveira da Mota. São Paulo: Cultrix,[s. d.].

269

Page 151: 52842935-Margarida-Maria-Lacombe-Camargo-Hermeneutica-e-Argumentacao (2).pdf

WIEACKER, Franz. História do direito privado moderno. Trad.de A. M. Botelho Hespanha. 2. ed. Lisboa: Fundação CalousteGul~enkian, [s. d.].WROBLEWSKI, Jerzy. Constitución y teoria general de la in­terpretación jurídica. Madrid: Civitas, 1988.The legal philosophies of Lask, Radbruch, and Dabin. Transla­ted by Edwin W. Patterson. Cambridge . Massachusetts: Har­vard University Press, 1950. (The 20th century legal philosophyseries, voI. IV.)The Oxford Companion to Philosophy. Edited by Ted Hombe­rich, Oxford University Press, 1995.

270

A importância da dimensãoargumentativa à compreensão da

práxis jurídica contemporânea

Antônio Cavalcanti Maia *

A interpretação dos dItames legais e a fundamentaçãodas decisões adotadas em nome do direito têm sido preo­cupações básicas daqueles envolvidos com a práxis do di­reito. A lei se apresenta como ponto fulcral da vida jurídicadesde a Revolução Francesa, mas não pode prescindir nasua aplicação de um esforço que realize a mediação entre ocomando universal e a situação específica do mundo feno­mênico na qual ela incide, constituindo este um problemaperene do afazer do trabalhador no campo do direito. Já amotivação das decisões judiciais, garantia do Estado demo­crático de direito, exige a atenção às regras norteadoras daspráticas argumentativas - presentes nos mais diversos as­pectos da vida forense - sobretudo quando da justificação

Professor de Filosofia do Direito da Universidade do Estado doRio de Janeiro e de Filosofia e Filosofia do Direito da Pontifícia Uni­versidade Católica do Rio de Janeiro.

271

Page 152: 52842935-Margarida-Maria-Lacombe-Camargo-Hermeneutica-e-Argumentacao (2).pdf

racional das decisões dos magistrados, sem a qual não po­dem estes funcionários do Estado agir de acordo com osprincípios que legitimam a democracia.

Margarida Lacombe Camargo enfrentou com brilho atarefa de apresentar o debate contemporâneo acerca des­sas duas dimensões axiais do funcionamento do direito. Oseu mérito deve ser sublinhado, especialmente, por tornaracessível aos jovens estudantes uma grande massa de infor­mações doutrinárias capazes de propiciar uma compreen­são mais apurada do fenômeno jurídico neste início de mi­lênio, sobretudo em uma cultura jurídica como a nossa, deforte tradição positivista-legalista, em que as questões her­menêuticas e argumentativas não têm merecido a devidaatenção. Neste breve posfácio ao trabalho de MargaridaLacombe Camargo, deixo de lado as considerações relati­vas aos problemas hermenêuticos e prefiro concentrar mi­nhas atenções em alguns aspectos acerca do caráter argu­mentativo da práxis jurídica, no intuito de acrescentar al­gumas considerações às valiosas informações apresentadasneste livro, sobretudo elaborando certas reflexões acercade duas das principais referências teóricas utilizadas nestaobra: Chai"m Perelman e Theodor Viehweg.

Entretanto, antes de me concentrar nas questões pró­prias do âmbito jurídico, cabe destacar que estes dois tron­cos de reflexão privilegiados por Margarida Camargo, no­meadamente a hermenêutica e a argumentação,! foram

1. Cabe esclarecer, de início, que parte significativa dos trabalhosrecentes no campo da argumentação - sobretudo aqueles com grandeimpacto no campo do direito e privilegiados neste livro - têm comomatriz uma reapropriação da tradição retórica de base aristotélica.Neste sentido, há de se destacar que a dimensão retórica adotada poresses autores está focalizada no âmbito da argumentação e não nocampo da literatura. Como observa Michael Meyer: "Desde Aristóte­les e possivelmente por sua causa, a retórica divide-se em retórica dos

272

domínios do debate teórico recebedores de uma enormeatenção nas últimas três décadas. Em todo o largo leque deinvestigações subsumidas ao âmbito das humanidades ­ciências humanas e sociais, ciências morais (na linguagemanglo-saxônica), ou Geisteswissenschaften - as aborda­gens retórica e hermenêutica capturaram a atenção dospesquisadores insatisfeitos com a perspectiva positivistahegemônica, fortemente marcada pelas ciências da nature­za, e incapaz de dar conta do múltiplo e plural domínio dosnegócios humanos. Ora, as repercussões destes dois tron­cos teóricos no campo do direito confirmam o que podeser caracterizado, em certo sentido, como uma virada her­menêutica observada na área das humanidades, máximenos estudos literários, filosóficos, teológicos e jurídicos.Importa observar tais abordagens objetivarem umaapreensão mais fina da dimensão da realidade marcadapela história, referida a valores e aberta à busca de sentido.Assim:

Acima de tudo, tanto a retórica como a hermenêuticaocupam um domínio que não é exclusivo aos experts e aosteóricos. (...) Este é o campo da ação e do pensamento quo­tidianos e das contestáveis premissas de nossa cambianterealidade social. As teorias dos experts de qualquer tipo iso-

conflitos e retórica das figuras. A primeira ocupa-se da argumentação,da dialética, das intersubjetividades e seus conflitos. Ela vai marcarsobretudo o direito. A segunda remete ao estilo e aparece associada àteoria literária". MEYER, Michel. "Argumentação e questionamento".In. CARRILHO, M. M. Corg.) Dicionário do Pensamento Contemporâ­neo. Lisboa, Editora Dom Quixote, 1991, p. 11. Há também desen­volvimentos recentes no campo da argumentação, como as perspecti­vas de Jürgen Habermas na tradição clássica, mas apoiando-se naspesquisas no campo da lógica informal - como a obra de StephenToulmin - e nos mais recentes debates ocorridos no âmbito da filo­sofia anglo-saxônica da linguagem ordinária.

273

Page 153: 52842935-Margarida-Maria-Lacombe-Camargo-Hermeneutica-e-Argumentacao (2).pdf

Iam aspectos de um determinado campo para tratamentoespecial, construindo suas estruturas de observações, idéias,regras e leis, mas sempre com o risco de deixar de ladoaquela miríade de partes indeterminadas que se combinampara constituir a totalidade do ser humano (...). A retóricacomo a hermenêutica nos faz retornar a essa finita e contes­tada totalidade da experiência quotidiana, em relação à qualtoda teoria - apesar de possuidora de um amplo espectrode atuação e competência no seu uso apropriado - é exis­tencialmente fina e frágil. 2

Não parece ser necessário muito esforço de persuasãopara que os conhecedores da vida jurídica reconheçam aserventia desse tipo de perspectiva para o enfrentamentoda realidade conflituosa no mundo do direito. A crescentediferenciação do mundo social contemporâneo acarretanecessariamente um grau maior de complexidade dos pró­prios problemas enfrentados na vida diária dos operadoresdo direito, exigindo uma maior sofisticação do seu aparatometodológico. Daí, o crescente interesse por essas discus­sões teóricas esmiuçadas por Margarida Camargo.

A importância da dimensão retórica e argumentativano tratamento metodológico do direito tem sido destacadanos últimos anos. Como salienta Miguel Reale: "Se há bempoucos anos alguém se referisse à arte, ou à técnica da ar­gumentação, como um dos requisitos essenciais à forma­ção do jurista, suscitaria sorrisos irônicos e até mordazes.Tão forte e generalizado se tornara o propósito positivistade uma Ciência do direito isenta da riqueza verbal, apenasadstrita à fria lógica das formas ou fórmulas jurídicas (...).

2. JOST, Walter e HYDE, Michael J. "Introduction: Rethoric andHermeneutics: Places Along the Way". In. JOST, Walter e HYDE,Michael J. Ced.) Rethoric and Hermeneutics in Our Time: A Reader.New Haven: Vale University Press, p. XIX, 1998.

274

li, '.;;

De uns tempos para cá, todavia, a Teoria da Argumentaçãovolta a merecer a atenção de filósofos e juristas, reatando­se, desse modo, uma antiga e alta tradição, pois não deve­mos esquecer que os jovens patrícios romanos prepara­vam-se para as nobres artes da Política e da Jurisprudêncianas escolas de Retórica."3

Se, no início dos anos setenta, já se impunha a consta­tação da importância da retórica e da argumentação à re­flexão jurídica, como constata Reale, no final dos anos no­venta pode-se afirmar que esta perspectiva tornou-se umadas mais ricas áreas do debate de teoria do direito. Após ostrabalhos pioneiros de Cha"im Perelman e Theodor Vieh­weg, toda uma linhagem de autores se identificou com estaperspectiva, como, por exemplo, Manuel Atienza, AulioAarnio, Klaus Günter, Robert Alexy, Karl Engish, TércioFerraz,4 entre outros, demarcando o campo mais rico dodebate jusfilosófico contemporâneo.

A obra precursora desta perspectiva, O Tratado da Ar­gumentação, publicado em 1958,s é o resultado conjunto

3. REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito, São Paulo, Ed.José Bushatsky, 1973, p. 109.4. Qualquer autor em nosso país que procure desenvolver reflexões àluz da perspectiva tópica é devedor do magistério de Tércio SampaioFerraz Júnior. Quanto ao aspecto mais específico de uma teoria daargumentação desenvolvida segundo a inspiração da tópica, ver-se es­pecialmente Introdução ao Estudo do Direito, São Paulo, EditoraAtlas, 1988, 1a ed., sobretudo páginas 294 até 314.5. Inobstante a publicação anterior, em 1953, do principal livro deTheodor Viehweg, Tópica e Jurisprudência, epicentro de boa partedas transformações observadas na metodologia jurídica alemã do pós­guerra, o livro de Perelman pode ser destacado como o ponto capitalna reabilitação da retórica nos debates filosóficos e jurídicos contem­porâneos. Ademais, a perspectiva aqui trilhada se encontra mais pró­xima daquela sustentada por Perelman do que da de Viehweg. Embo-

275

Page 154: 52842935-Margarida-Maria-Lacombe-Camargo-Hermeneutica-e-Argumentacao (2).pdf

do trabalho de Chalm Perelman e L. Olbrechts-Tyteca,constituindo uma das mais interessantes vertentes do de­bate filosófico contemporâneo. No campo do direito, otrabalho de Perelman se estendeu por mais de trinta anos,como testemunhado na sua coletânea de livros, recente­mente publicada no Brasil, intitulada Ética e Direito. Nodomínio específico da metodologia do direito - já que acoletânea supramencionada versa sobretudo, à exceção dasua quarta parte, acerca de temas de filosofia do direito efilosofia política - o seu livro principal é Lógica Jurídica- Nova Retórica (há tradução castelhana), onde aplica asconseqüências de sua perspectiva filosófica, alicerçada noTratado da Argumentação, ao mundo do direito. Nestemomento, tem-se a elaboração de uma metodologia jurídi­ca distinta das tradicionais até então desenvolvidas de ins­piração positivista. Este viés metodológico, compartilhado

ra ambos compartilhem a posição de fundadores da 'nova retórica', oponto de vista de Perelman avança no debate filosófico, enquanto o deViehweg - apesar das enormes conseqüências jusfilosóficas advindasda sua démarche - não se posiciona naquela arena. Sem poder esgotaraqui esta questão, cabe salientar apenas uma referência onde se subli­nha o impacto da abordagem perelmaniana no debate filosófico atual,situando o campo da racionalidade aberto pela 'teoria da argumenta­ção' para além daquele reconhecido pelo positivismo lógico: "Há ne­cessidade de se reabrir espaço para outra forma de racionalidade,igualmente legítima e insubstituível, sobretudo nos campos do veros­símil, plausível, do provável, na medida em que escapa às certezas docálculo. Esse é o território da Teoria da Argumentação'." PESSA­NHA, José Américo Motta. "Nova Retórica ou Teoria da Argumenta­ção". In. Paradigmas Filosóficos da Atualidade, org. Maria M. Carva­lho, Campinas, Editora Papiros, 1989, p. 230. Para uma breve refle­xão sobre a posição de Perelman, neste particular, cf., MAIA, Antô­nio C. "Elementos Filosóficos da Teoria da Argumentação de Perel­man". In. Cadernos PET-JUR, Rio de Janeiro, Departamento de Di­reito da PUC-Rio, ano IIl, 1997, pp. 3 até 9.

276

também por Theodor Viehweg, é marcado por concepçõesoriundas da filosofia e retórica aristotélica. Em relação aeste tipo de abordagem, um autor situado próximo a estaperspectiva, Karl Engish, em uma longa passagem, circuns­creve a trajetória histórica desta discussão:

Isto entende-se muito bem se neste ponto transitarmospara um conceito para o qual no ano 1953 o filósofo dedireito de Mongúncia, Theodor VIEHWEG, veio chamar aatenção, e que subseqüentemente se tornou objeto de vivadiscussão, para um conceito do qual podemos dizer que en­contra o seu lugar próprio no limiar entre a metódica jurísti­ca e a reflexão jurídico-filosófica. Quero referir-me ao con­ceito da 'Tópica'. Este conceito, que já aparece no 'Organo­n', na grandiosa Lógica de Aristóteles, e aí é aplicado a argu­mentos que se não apóiam em premissas seguramente 'ver­dadeiras', mas antes em premissas simplesmente plausíveis(geralmente evidentes ou que pelo menos aos 'sábios' apare­cem como verdadeiras), sofreu no transcurso da sua evolu­ção histórica variadas modificações, associou-se à retórica,encontrou também guarida na dialética forense, mereceuainda uma vez mais acolhimento em VICO (num escrito doano 1703), mas que na era moderna, porque o pensamentose voltou para métodos científicos mais exatos, tais como osque foram elaborados na ciência natural matemática, emque pensadores como KANT foi considerado o lugar da 'es­perteza' e da conversa fiada. Ora VIEHWEG vem recordara Tópica como 'técnica do pensar por problemas' que seajusta muito bem à jurisprudência, no reconhecimento (emsi inteiramente correto) em que precisamente os métodospreferencialmente exatos da fundamentação dos enuncia­dos científicos, designadamente os métodos axiomáticos­dedutivos, que, a partir de um número limitado de premis­sas apropriadas (eventualmente apenas postas como funda­mentos hipotéticos), compatíveis e independentes entre si,alcança um amplo sistema de enunciados teóricos segundoas regras da lógica formal- de que tais métodos, dizíamos,

277

Page 155: 52842935-Margarida-Maria-Lacombe-Camargo-Hermeneutica-e-Argumentacao (2).pdf

não são propriamente os que importam para a teoria e aprática jurídicas.6

A tópica se organizou como uma técnica de pensar porproblemas, desenvolvida pela retórica antiga. Uma dasmaiores criações da cultura greco-romana, a retórica, origi­nalmente desenvolvida pelos sofistas como Górgias e Pró­digos, atingiu a sua organização maior no texto A Arte Re­tórica de Aristóteles. Disciplina capital à formação das eli­tes culturais no mundo greco-romano - mormente aque­las ligadas ao trabalho com o direito -, recebendo desen­volvimentos importantes na obra de dois ilustres intelec­tuais romanos, como Cícero e Quintiliano/ constituiu ele­mento crucial do processo formativo intelectual dos juris­tas romanos. Afinada à perspectiva eminentemente casuís­tica do procedimento judicial romano, serviu como arca­bouço teórico que permitiu a progressiva elaboração lógi­co-doutrinária da paradigmática experiência jurídica ro­mana.

Tanto Perelman8 quanto Viehweg fazem questão deressaltar a presença do pensamento tópico orientado para

6. ENGISH, Karl. Introdução ao Pensamento Jurídico, Lisboa, Fun­dação Calouste Gulbenkian, 1988, pp. 381 e 382.7. Perelman claramente alinha a sua empresa de reabilitação da retó­rica na tradição clássica de Aristóteles, Cícero e Quintiliano. Todavia,o seu interesse por esses autores "no es histórico, sino de tipo lógico­sistemático. Por ello se puede renunciar aquí a responder a la preguntade en qué medida hacen justicia a la antigua tradición", como questio­na R. Alexy. In. Teoria de la Argumentacion Jurídica, Madrid, Centrode Estudios Constitucionales, 1990, p. 157.8. No campo da metodologia jurídica, as aplicações da perspectivadesenvolvida no Tratado da Argumentação se dão basicamente nolivro La Lógica Jurídica y La Nueva Retorica, Madrid, Editorial Civi­tas, 1979. Cabe esclarecer ter ocorrido uma impropriedade na tradu-

278

,problemas na atividade jurídica na tradição. Tal se deu naexperiência paradigmática da cultura ocidental, o DireitoRomano. O testemunho da utilização desse estilo de pen­samento se dá através, basicamente, da análise dos parece­res dos prudentes (iura) solicitados em casos controver­sos. Constitui esta a mais importante fonte do direito ro­mano na perspectiva do teórico. Conhecemos o conteúdodeste material por meio da compilação de Justiniano. Suaporção mais importante era composta pelas respostas dosprudentes. Os aspectos desta parte do Corpus Iuris Civilislembram uma coleção de arestos, recolhidos em uma denossas atuais revistas de jurisprudência. Isto porque os ju­ristas não desenvolveram ali um trabalho doutrinário decaráter abstrato e geral, e sim a solução do caso concreto.No encaminhamento do parecer, iniciavam indicando oproblema; logo em seguida, em geral, recorriam a exem­plos de outros casos já decididos para alicerçar os pontosde vista alinhados na solução da querela. Em geral, consti-

ção castelhana deste livro, posto que a Nova Retórica - nome dado àteoria de argumentação desenvolvida por Perelman - foi colocada aolado da lógica jurídica. A partir do texto em castelhano pode-se imagi­nar que a Nova Retórica esteja articulada, como que um complemen­to, à lógica jurídica tradicional. Na verdade, o desiderato de Perelmané bem diferente, constituindo um dos aspectos mais radicais e inova­dores de sua proposta. Eis que o filósofo de Bruxelas defende umalógica material específica para o campo do direito, e é este o sentidodepreendido da leitura do livro, e corroborado pelo seu título emfrancês Logique Juridique - Nouvelle Rhétorique, Paris, Ed. Dalloz,1979, 2" ed. Assim, desenvolve trabalhos no sentido da articulação deuma lógica específica do mundo do direito - à semelhança dos traba­lhos realizados por Stephen Toulmin - contrapondo-se às obras tra­dicionais de lógica jurídica como os de G. Kalinowski eU. Klug, inspi­rados nos cânones tradicionais da lógica. Sobre esta questão, veja-se aintrodução do livro em castelhano, sobretudo páginas 14 até 16.

279

Page 156: 52842935-Margarida-Maria-Lacombe-Camargo-Hermeneutica-e-Argumentacao (2).pdf

tuíam as consultas problemas controversos, de difícil solu­ção em face das normas existentes relativas ao assunto delitígio. Importa, no exame dos pareceres, observar a cerra­da argumentação fundamentadora de opinião dos juristas.Recorrendo aos comandos legais existentes, a princípios emáximas - de reconhecimento consensual da comunida­de jurídica - e também à opinião de outros juristas emproblemas semelhantes, organizaram um exemplar instru­mento de convencimento. Como não contavam, via de re­gra, com qualquer autoridade de natureza política, mas ex­clusivamente com o prestígio de natureza moral e a repu­tação de conhecedores do direito, fiavam-se na força daargumentação, com a qual estribavam suas opiniões, e doconvencimento racional dela derivado.

Testemunhamos através da análise dos pareceres dosprudentes a natureza eminentemente retórica e argumen­tativa da práxis jurídica9 quando atinge patamares maiscomplexos de funcionamento, marcada pela busca da ade­são às teses sustentadas, no enfrentamento de situaçõespassíveis de diferentes soluções encaminhadas a partir dedistintos pontos de vista. Com efeito, devido à naturezapeculiar dos casos submetidos aos juristas (semelhantes,em certos aspectos, aos hard cases, tão à moda da discus-

9. Quanto a um exemplo ilustrativo da forma pela qual se organiza­vam os pareceres dos prudentes, ver-se comentários de Viehweg acer­ca de uma querela encontrada no Digesto (O. 41, 3, 33) que dizrespeito ao caso de usucapião do filho de uma escrava roubada. Nestesentido, VIEHWEG, Theodor. Tópica e Jurisprudência, Brasília, De­partamento de Imprensa Nacional, 1979, páginas 45 até 47. Nestemesmo livro, na página 48, afirma: "o jurista romano coloca um pro­blema e trata de encontrar argumentos. Vê-se, por isto, necessitadode desenvolver uma techne adequada. Pressupõe irrefletidamente umnexo que não pretende demonstrar, porém dentro do qual se move.Esta é a postura fundamental da tópica."

280

são metodológica contemporânea), há necessidade de umacomplexa e refletida resposta por parte daquele encarrega­do do destrinchar da matéria, sobretudo na medida emque o parecer fornece diretrizes para o entendimento desituações semelhantes.

Contudo, não se resume a atividade dos juristas roma­nos ao emprego do estilo tópico de pensamento, mas tam­bém a multissecular atividade dos glosadores medievais sedeu regida pelos princípios da arte retórica. Esta discipli­na, juntamente com a dialética - entendida no sentido delógica - e a gramática, constituíam o trivium, instrumen­to essencial à formação intelectual naquele momento. Pe­relman assevera também utilizarem os talmudistas judeusesse procedimento visando à solução de problemas contro­versos, através do embate de teses antagônicas. No caso daexperiência legal, seguem certos procedimentos, como aatenção a determinados catálogos de pontos de vista outopoi, la considerados como lugares-comuns admitidos pela

lO. Não será possível exaurir dentro dos limites deste trabalho o papelrepresentado pelos topoi no funcionamento da tópica, que, em umaacepção restrita é entendida como uma teoria dos lugares comuns Uánuma acepção larga, é compreendida como uma teoria da argumenta­ção e dos raciocínios dialéticos), conforme define Tércio SampaioFerraz no Dictionnaire Encyclopedique de Theorie et Socíologie duDroit, Paris, L.G .DJ., 1988, p. 419. Há lugares comuns utilizáveis emqualquer tipo de discussão, como, por exemplo, 'todos os homensprocuram a felicidade', 'a justiça é preferível à injustiça', 'a liberdadeé melhor do que a servidão', salientados por Perelman no seu livroÉtica e Direito e topoi específicos do campo do direito, como, porexemplo, muitos dos brocardos latinos, máximas como 'dar a cada umo que é seu' ou certos pontos de vista como "'interesse', 'proporciona­lidade', 'exigibilidade', 'inaceitabilidade', 'justiça', 'falta de eqüidade','natureza das coisas' e até mesmo, sim, 'regra da concorrência'(nacolisão de normas) e máximas de interpretação", destacados por KarlEngish. Introdução ao Pensamento Jurídico, opus cit., p.384.

281

Page 157: 52842935-Margarida-Maria-Lacombe-Camargo-Hermeneutica-e-Argumentacao (2).pdf

comunidade de investigadores. Estes lugares-comuns fun­cionam como premissas das séries argumentativas, contri­buindo para a solidez do caráter razoável das opiniões sus­tentadas.

Com a emergência do novo paradigma galilaico-carte­siano, inaugurando a filosofia moderna no século XVII im-

A 'pos-se uma concepção de razão estribada nos raciocínioslógico-dedutivos, inspirados no modelo da geometria.Contraposto à escolástica medieval - pesadamente mar­cada pela presença da metafísica aristotélica -, o pensa­mento moderno descarta in tato as contribuições da arqui­tetônica aristotélica. Desta forma, também a tópica, ele­mento central da retórica, passa a ser relegada a um segun­do plano, sendo abandonada como referência metodológi­ca para o tratamento do direito. O modelo jusnaturalistada Era Moderna, que inspirou a dogmática do direito pri­vado ocidental pós-Revolução Francesa, alicerçou-se tantona perspectiva dedutiva como na idéia central de sistema,posto que esta noção passou a constituir o ponto central dequalquer conjunto de conhecimentos reivindicador do es­tatuto de científico.

A dimensão argumentativa da retórica, desenvolvidapor Aristóteles em A Arte Retórica, preocupada com a ar­gumentação, com a dialética e com os conflitos postos pelonecessário caráter intersubjetivo da vida social, foi com­pletamente abandonada pelo pensamento moderno (coma notável exceção de Vico, no século XVIII, com sua críti­ca ao modelo cartesiano). O aspecto do campo retóricodesenvolvido nos séculos XVII, XVIII e XIX foi aqueletambém presente em A Arte Retórica de Aristóteles no­meadamente, a retórica das figuras (metáfora, meto~ímiaetc.) capital ao campo da teoria literária.

Aspecto central da perspectiva perelmaniana - tam­bém adotada por Viehweg - foi a recuperação desta tra-

282

dição no campo jurídico. Com a crise do modelo positivis­ta-legalista (epistemologicamente assentado na concepçãomoderna cartesiana de razão), acarretada pelo fim da Se­gunda Guerra Mundial,ll e a patente insuficiência de umparadigma legal que deixasse de lado a referência à dimen­são axiológica do mundo jurídico - como é o caso da teo­ria do direito kelseniana -, iniciou-se todo um movimen­to de requestionamento nos campos da filosofia do direitoe da metodologia jurídica.

A perspectiva da "nova retórica" como metodologia ju­rídica se preocupa fundamentalmente com a argumenta­ção das decisões proferidas pelos juízes (em especial dosórgãos jurisdicionais superiores). Investigando a organiza­ção do conjunto de argumentos que estribam as sentenças,são destacados os principais mecanismos lógicos a partirdos quais se encaminham as soluções dos litígios. Nestesentido estudam-se, por exemplo, os argumentos tradicio­nais da lógica como: a pari, a fortiori, ab absurdo, ab inu­tili sensu, a maiori ad minus etc. Argumentos estes utiliza­dos freqüentemente pelos juízes em seu trabalho de inter­pretação dos ditames legais.

Sem pretender exaurir essa temática nesta breve apre­sentação, a opção de Perelman (também adotada com algu­mas ligeiras diferenças por Viehweg) privilegia um enfoqueque encara o direito, basicamente, como um terreno de re­solução de controvérsias, procurando desenvolver uma me­todologia mais atenta à descrição da vida jurídica real.Como ele salienta, "la gran ventaja de los tópicos jurídicos

11. Estou aqui resumindo esse longo e complexo processo em rápidasreferências. Para acompanhar a dinâmica de tal mudança e a crítica aomodelo positivista, indispensável seguir a argumentação de ChaimPerelman em seu livro La Lógica Jurídica y La Nueva Retorica, opuscit., principalmente nas páginas 93 até 97.

283

Page 158: 52842935-Margarida-Maria-Lacombe-Camargo-Hermeneutica-e-Argumentacao (2).pdf

consiste en que, en lugar de contraponer dogmática y práti­ca, permiten elaborar una metodología que se inspira en laprática, y guían los razonamientos jurídicos, de manera que,en lugar de contraponer el derecho a la razón y a la justicia,se esfuerzan, por el contrario, en conciliarlos."12

A abordagem tópico-argumentativa, ao focalizar suaatenção sobre a vida concreta do direito, através da análisedos mecanismos postos em movimento na vida cotidiana dapráxis jurídica, procura desenvolver um tipo de discursoteórico próprio ao mundo do direito, sem utilizar-se exclusi­vamente de modelos oriundos de outras ciências, sobretudoaqueles espelhados nas ciências da natureza, alicerçadasnuma estrutura lógico-dedutiva. Quem sublinha este aspec­to é um dos maiores admiradores da obra de Perelman, aprincipal figura do pensamento jusfilosófico francês do sé­culo XX, Michel Villey:

Les meilleurs juristes n'ont cessé de tenir pour vainecette tentative de plier la science du droit à des modeles deraisonnement qui ne pouvaient lui convenir. Observant ledroit tel qu' il se pratique dans nos tribunaux (ou là ou sontproduites les lois qui guident I'oeuvre des magistrats), ladoctrine de M. Perelman a mis en parfaite évidence que lasolution juridique sort de disputes, de controverses, de lut­tes entre argumentations rivales; qu'elle émane plus que deraisonnements déductifs, de confrontations dialectiques, ausens aristotélicien du mot; qu'une bonne partie de l'art dudroit releve de la rhétorique. Et certs ce type de raisonne­ment essentiel à l'art juridique aboutit à des conclusionsmoins certaines et d'une 'verité' elle même plus probléma­tique, que ceux des sciences dites exactes. 13

12. PERELMAN, Chaim, La Lógica Jurídica y La Nueva Retorica,0PUScit., p. 130.13. VILLEY, Michel. "Preface" In. Droit Morale et Philosophie ParisLibrarie générale de Droit et de Jurispr~dence, 1976, p. m.' ,

284

A discussão acerca da argumentação no campo elo Ji­reito, dentro da démarche perelmaniana, focaliza sua ~te(l­

ção nas decisões dos tribunais superiores. Não é nem a ~r­

gumentação elaborada pelo advogado, nem aquela esttutu­rada pelo juiz monocrático, o foco de atenções da "nOvaretórica": o seu alvo de exame são os raciocínios presentesnos arestos dos tribunais superiores, já que são eles os fixa­dores dos grandes lineamentos norteadores da jurispru­dência, elemento fundamental do funcionamento do direi­to. Saliente-se que, pela importância das decisões destascortes - como por exemplo as decisões das Cortes deCassação Francesa e Belga analisadas por Perelman -, de­vem os magistrados nestes tribunais despender mais cuida­dos quanto à correta e explicitada fundamentação de suasdecisões.

Não devemos nos esquecer que uma das conquistas daRevolução Francesa, a obrigatoriedade de fundamentaçãodas decisões jurídicas (consagrada no artigo 93, IX, daConstituição Federal e no artigo 458 do Código de Proces­so Civil Brasileiro), constitui um dos elementos essenciaisao Estado democrático de direito; assegura o respeito aosdireitos individuais e garante a necessária segurança dasdecisões jurídicas. Examinar o modo pelo qual os tribunaissuperiores chegam ao termo das lides que lhes são subme­tidas à apreciação, e até que ponto tais decisões seguem ospreceitos lógicos necessários apontados pela reflexão me­todológica, justifica-se como uma das tarefas mais relevan­tes do trabalho doutrinário e de pesquisa.

No tocante à importância da motivação das decisões,cabe salientar a seguinte passagem, destacada por Perel­man, apontando os diversos aspectos nos quais este proce­dimento encontra relevância:

285

Page 159: 52842935-Margarida-Maria-Lacombe-Camargo-Hermeneutica-e-Argumentacao (2).pdf

Motivar una decisión es expresar sus razones y por esoes obligar aI que la toma, a tenerlas. Es alejar todo arbitrio.Unicamente en virtud de los motivos el que ha perdido unpleito sabe como cómo y por qué. Los motivos le invitan acomprender la sentencia y le piden que no se abandonedurante demasiado tiempo aI amargo placer de "maldecir alos jueces". Los motivos le ayudan a decir si debe o no apelaro, en su caso, ir a la casación. Igualmente le permitirán nocolocarse de nuevo en una situación que haga nacer un se­gundo proceso. Y por encima de los litigantes, los motivos sedirigen a todos. Hacen comprender el sentido y los límitesde las leyes nuevas y la manera de combinarlas con las anti­guas. Dan a los comentaristas, especialmente a los comenta­ristas de sentencias, la possibilidad de compararlas entre sí,analizarlas, agruparlas, clasificarlas, sacar de ellas las oportu­nas lecciones y a menudo también preparar las solucionesdeI porvenir. Sin los motivos no podríamos tener las "Notasde jurisprudencia" y esta publicación no sería lo que es. Lanecesidad de los motivos entra tanto dentro de nuestrascostumbres que con frecuencia traspasa los límites deI cam­po jurisdiccional y se va imponiendo poco a poco en lasdecisiones simplesmente administrativas cada vez más nu­merosas.1 4

Importa ressaltar um aspecto relevante das conseqüên­cias trazidas por tal abordagem privilegiadora do enfoqueargumentativo no campo da filosofia do direito. Boa partedesses trabalhos vieram contribuir para a erosão do para­digma positivista hegemônico até os anos setenta. Em rela­ção à perene disputa nos arraiais jusfilosóficos: jusnatura­lismo/positivismo jurídico, esses autores1S vieram a se co-

14. SAUVEL, T. "Histoire du jujement motivé", Revue du droit publi­que, 1955, pgs. 5-6. Apud PERELMAN, Chai"m, La Lógica Jurídica yLa Nueva Retorica, opus cit., pp. 202 e 203.15. No diapasão de sua perspectiva e de Viehweg, Perelman salienta

286

locar num lugar diferente, propondo uma crítica metodo­lógica ao positivismo jurídico. Assim, esses autores têmuma perspectiva que: "(...)se caracteriza por e1 hecho deque, constituyendo todos e1los una reacción contra e1 posi­tivismo jurídico, no se fundan en ninguna ideología previa,ni en ninguna teoría acerca deI derecho natural, sino queresultan de un análisis deI razonamiento judicial y de unareflexión de orden esencialmente metodológico. "16

Esta intenção de situar o seu trabalho além dos doisposicionamentos tradicionais do debate jusfilosófico é cla­ramente exemplificada pelo próprio título de um de seusúltimos livros de filosofia do direito: Le Raisonnable et leDéraisonnable en Droit. Au-delà du Positivisme Juridique,de 1984. Assim, Perelman se coloca como um dos nomes

outros autores afins a sua perspectiva: "Los esfuerzos dei profesorEsser han sido continuados en Alemania sobre todo por los profesoresMartins Kriele (Theorie der Rechtsgewinnung, 1967) y Othmar Ball­weg (Rechtwissenschaft und Jurisprudenz, 1970), en Holanda por elprofesor Ter Heide (Judex viator: Probleem of systeemdenken ofgesys­tematiseerd probleemdenken, Ars aequi, 1967), en Bélgica por el pro­fesor W. van Gerven (Het beleid van de rechter, 1973), en Méjico porel jurista espanol L. Recasens Siches (Nueva filosofia de la interpreta­ción dei derecho, 1956). Estas obras se emparejan con los análisis dejuristas anglo-americanos, como K.N. Lewellyn (The Common LawTradition, Deciding Appeals, 1960), R. M. Oworkin ("The Model ofRules", 1967, recogido en Law, Reason and Justice, 1969, pp. 3-43),E. Bodenheimer (Jurisprudence, 1974,2 ed.) y los trabajos de J. Stone(Human Law and HumanJustice, 1964, y Legal System and Lawyer'sReasoning, 1964). En Francia los trabajos de L. Husson (Les transfor­mations de la responsabilité, 1947, y Nouvelles études sur la penséejuridique, 1974) se orientan claramente en el mismo sentido." in LaLógica Jurídica y La Nueva Retórica, opus cit, p. 112.16. PERELMAN, Chai"m. La Logica Juridica y La Nueva Retorica,opus cit., p. 112. Acerca do Pós-Positivismo, referência fundamentalna literatura nacional.

287

Page 160: 52842935-Margarida-Maria-Lacombe-Camargo-Hermeneutica-e-Argumentacao (2).pdf

centrais do paradigma já denominado de pós-positivista,tendo como corifeus, também, R. Alexy e R. Dworkin. 17

Este aspecto da perspectiva perelmaniana é resumidopor um de seus principais colaboradores, Alain Lempe­reur, ao salientar que a metodologia advogada pela "novaretórica" implica uma nova maneira de pensar a racionali­dade jurídica:

A rejeição do direito natural pode parecer menos nítidana aparência, na medida em que Perelman, desejando umdireito construído sobre os valores, adota os princípios ge­rais do direito, assim como os direitos do homem. Mas Pe­relman os concebe no interior do sistema positivo; procedea uma secularização, a uma integração imanente do que de­pendia antes de uma fonte transcendente. Fundamentar osdireitos do homem no absoluto não tem sentido para ele,porque existe realmente um acordo dos homens na socieda­de sobre a 'necessidade deles. (... ) No lado oposto, na ver­tente positivista, Perelman constata a impossibilidade, paraa ciência, de explicar o direito e suas decisões. As sentençase os arestos não redundam em proposições verdadeiras tira­das de um silogismo, mas em respostas mais aceitáveis eadaptadas, integradas numa argumentação. Se há sistema eciência do direito, eles não podem esboçar-se fora da con­trovérsia permanente. 18

Este tipo de discussão pode parecer a princípio, paraum leitor preocupado com as prementes necessidadespragmáticas da vida profissional, um exercício excessiva­mente abstrato de reflexão teórica. No entanto, um olharmais atento às transformações observadas nos dias de hoje

17. Paulo Bonavides, Curso de Direito Constitucional, São Paulo, Ma­lheiros Editores, 1994, 5" ed., capo VIII, pp. 247 até 264.18. LEMPEREUR, Alain. "Apresentação". In Ética e Direito, São Pau­lo, Ed. Martins Fontes, 1996, p. XV.

288

em nosso ordenamento jurídico e ao modo pelo qual per­cebemos as regras necessárias à convivência democrática,impõe uma atenção toda especial à problemática relativa àargumentação nos tribunais.

No tocante às inúmeras transformações observadas ho­diernamente em nosso ordenamento pátrio, uma das maisimportantes foi a reforma do Código de Processo Civiloperada pelas leis 8.950,8.951,8.952 e 8.953 de13/12/1994. Se pensarmos, por exemplo, no espírito des­tas recentes reformas, veremos a importância crescentedesta problemática concernente à fundamentação das de­cisões, máxime no que tange à tutela antecipada da lide eà presença crescente das liminares, posto terem estas mu­danças alargado a área de discricionariedade dos magistra­dos. É óbvio atenderem tais inovações processuais a pre­mentes necessidades, contudo também aumentaram a res­ponsabilidade do Judiciário de fundamentar suas decisões,de forma não só a atender e satisfazer aos profissionais dodireito (dentro da sua linguagem técnica e por vezes quaseque cifrada), mas também a abrir esta argumentação a umacomunidade mais larga de cidadãos cultos - portadoresdo direito de ver satisfeita a sua expectativa em reconhe­cer que a decisão foi a mais eqüitativa, a mais razoável, amais plausível no caso concreto.

Assim, esta discussão teórica pode nos municiar de ele­mentos a melhor compreender alguns dos problemas pre­sentes no quadro atual do debate jurídico. Ora, observa-sea existência de uma viva polêmica sobre o papel do Judi­ciário e do juiz na aplicação da lei, nesta nova configuraçãopolítico-jurídica que se estruturou no Brasil a partir daConstituição de 88. Eis que a reconstitucionalização impli­cou nítido alargamento nas funções dos juízes e uma maiorparticipação do Judiciário nos problemas gerais da vida

289

Page 161: 52842935-Margarida-Maria-Lacombe-Camargo-Hermeneutica-e-Argumentacao (2).pdf

brasileiral9 . Deste modo, cabe à comunidade dos profissio­nais do direito uma reflexão mais profunda acerca destasquestões, tendo em vista que a "nova retórica" oferece no­vas possibilidades de reflexões no mundo do direito e pos­tula uma integração maior entre a produção doutrinário­acadêmica e o quotidiano do juiz e do advogado.20

Ademais, nos últimos anos tem-se freqüentementesustentado uma fiscalização maior da atividade do Judiciá­rio, cogitando-se por vezes o controle externo deste poder.Trata-se de um debate difícil, complexo e delicado. O Ju­diciário se apresenta como um dos órgãos mais corporati­vos existentes em nossa sociedade e quando se aventaqualquer medida neste sentido há uma reação imediata equase sempre contrária a qualquer passo em tal direção.Entretanto, pode-se apontar uma outra forma - diferentedaquela do controle externo - de procurar garantir meca-

19. Quanto a esta percepção, ela é corroborada pela opinião de umjuiz, presidente da Associação de Juízes para a Democracia: "Com anova Constituição de 1988 nós assistimos a um outro fenômeno inver­so: o da explosão de demandas, sobretudo perante a Justiça Federal.Num evidente reflexo dos tempos de democracia, o cidadão passou aentender que tinha direitos contra o Estado. Os planos econômicos,sobretudo, deram a matéria-prima fundamental para que o cidadãofosse ao Poder Judiciário em busca de seus direitos. A demanda judi­cial passou a ser vista enquanto expressão da cidadania. A questão dosinteresses coletivos e difusos foi equacionada de melhor forma depoisda Constituição. O Judiciário adquiriu maior poder de interferir naspolíticas públicas". In CINTRA JUNIOR, Dyrceu Aguiar Dias. "Legi­timação Social da Magistratura". In VI Jornada Teixeira de Freitas(la parte) - Democracia e Formação dos Juízes, Rio de Janeiro,LA.B., Editora Destaque, 1998, p. 168.20. Quem aponta este aspecto é Fábio Ulhôa Coelho, na conclusão do"Prefácio à edição brasileira". In Tratado da Argumentação, PEREL­MAN, Chalm e Olbrechts-Tyteca, São Paulo, Ed. Martins Fontes,1996, pp. XVI a XVIII.

290

nismos de fiscalização da sociedade e da comunidade dosoperadores do direito em relação ao Judiciário. Tal se da­ria, basicamente, a partir de uma outra perspectiva, situa­da numa dimensão metodológica, através de um examemais apurado da fundamentação das decisões, à luz de to­das essas cogitações de natureza teórica abertas pela dé­marche tópica.

Neste quadro atual, onde os magistrados dispõem deuma área maior ainda de liberdade do que a tradicional­mente garantida em nossa história jurídica, impõe-se umaatenção maior à questão concernente às justificativas pelasquais os juízes chegam às decisões que dirimem as lides aeles submetidas. A situação demanda cuidado, posto, mes­mo antes da atual conjuntura, já podiam ser notadas as in­suficiências relativas à fundamentação das decisões, comoobserva J. C. Barbosa Moreira:

Comme le lecteur ne manquera pas d'apercevoir, la si­tuation au Brésil nous paralt, somme toute, peu satisfaisan­te. La motivation des décisions de justice en général, sansexclusion des arrêts d'appel, laisse souvent à désirer, et desdéfauts relatifs au raisonnement y sont presque toujourspour beaucoup, même si l'on passe sous silence les viceslogiques élémentaires qui se glissent parfois dans les juge­ments. 21

21. MOREIRA, José Carlos Barbosa. "Raisonnements Judiciaires dansles Cours d'appel". In Temas de Direito Processual, Rio de Janeiro,Editora Saraiva, 1994, p. 128. Há outros trechos do mesmo textoesclarecedores desta passagem: "Le theme des raisonnements descours d'appel suscite une problématique tres étendue et multiforme.On essaierait en vain d'en épuiser l'étude dans le cadre d'un rapportdu genre de celui-ci. Nous avons jugé opportun de fournir quelquesdonnés sur le panorama qu'offre à ce point de vue le droit brésilien,tel qu'il se révele non seulement par les textes législatifs, mais aussi etsurtout par la pratique judiciaire. D'ou les remarques critiques que

291

Page 162: 52842935-Margarida-Maria-Lacombe-Camargo-Hermeneutica-e-Argumentacao (2).pdf

É claro que essa problemática não é exclusiva da cultu­ra jurídica brasileira. Toda essa discussão metodológicamencionada neste artigo se encontra no cerne de um aca­lorado debate na Europa acerca do problema da funda­mentação e da estruturação das decisões judiciais. Corre­lato ao alargamento da área de discricionariedade dos juí­zes observado em diversos países europeus nos últimosanos, assiste-se a uma demanda de um maior cuidado erigor argumentativo nas decisões judiciais. Esta tendênciaacompanha um fenômeno já constatado de uma progressi­va aproximação dos dois modelos de atuação judicial exis­tentes na tradição ocidental: o juiz continental, adstrito noseu agir aos textos legais, e o juiz da common law, cingidopelo precedente judicial. Ora, o que observamos, como jádestacado, é um crescente alargamento da área de atuaçãodo juiz continental- à semelhança do juiz anglo-saxônico- enquanto a presença das leis se torna cada vez mais re­levante no mundo jurídico inglês e, sobretudo, americano.

nous avons été portés à faire au long de notre exposé.(...) L'imperfec­tion fondamentale réside sans doute dans l'insuffisante explicitaciondu raisonnement. En ce qui concerne la motivation in facto, les pointscruciaux sont l'appréciation des preuves, la réparticion (éventuelle­ment, l'atténuation, voire l'inversion) de l'onus probandi, l'invocationde faits dits notoires (ou tacitement admis comme tels) et de "reglesd'experience": dans tous ces domaines, un effort plus vif de justifica­tion serait extrêmement souhaitable. Quant à la motivacion in jure,abstraction faite des problemes courants d'hermeneutique, toujourssusceptibles d'entrainer bien des difficultés, ce qui attire principal­ment l'attention est la question des jugements de valeur: les cours nonseulement s'abstiennent, regle générale, d'expliciter leurs choix, maiselles ont tendance à les dissimuller - volontairement ou non - sousde faux raisonnements de logique formelle. Ce genre de carenceprend un aspect particulierement fâchoux lorsqu'il s'agit de conceptsjuridiques indéterminés et de décisions discrétionnaires: contraire­ment à ce que certaines present, le besoin d'une justification est iciencore pressant qu'ailleurs".

292

Assim, devemos pensar em que medida a sociedade, osprofissionais do direito e os teóricos - acredito terem osteóricos neste particular, por conta da sua relativa inde­pendência, importante papel nesta questão - podem sus­citar um debate no sentido de exigir que as motivações dosjuízes, em suas sentenças, sejam mais explícitas, mais de­talhadas e conforme os cânones da boa argumentação (se­guindo as regras lógicas pertinentes). Este reconhecimentode que no Estado democrático de direito a motivação dasdecisões constitui um dos principais deveres dos juízesabre a possibilidade para que haja uma cobrança e umafiscalização por parte dos cidadãos em face do Judiciário.

Com efeito, um trabalho importante dos profissionaisligados à academia é o de sublinhar a necessidade de umamais cuidadosa fundamentação nas decisões judiciais, atéporque pode-se reconhecer uma dificuldade por parte dosadvogados de cobrarem certas posições do Judiciário, oque deixa aos teóricos papel extremamente relevante nes­ta questão. É óbvio que o trabalhador universitário podeser sempre repreendido por possuir intenções descoladasda prática da vida do direito e por tentar através das idéiasmodificar a realidade - premida pelos imperativos de se­gurança jurídica e de natureza pragmática - que se impõecomo infensa à interveniência do mundo das reflexões.Certamente esta é uma objeção sempre levantada no hori­zonte das relações entre teoria e prática. Entretanto, osprofessores e teóricos têm hoje entre suas tarefas o papelde introduzir estas discussões em nosso meio intelectual.

Enfim, tecidas essas considerações gerais sobre a pers­pectiva tópica, com o impacto por ela causado no debatede metodologia jurídica contemporânea e algumas de suasrepercussões na arena da filosofia do direito, creio ter fica­do mais evidente a relevância das discussões trazidas à nos­sa literatura jurídica pelo livro Hermenêutica eArgumenta-

293

Page 163: 52842935-Margarida-Maria-Lacombe-Camargo-Hermeneutica-e-Argumentacao (2).pdf

ção Jurídica - Uma Contribuição ao Estudo do Direito,de Margarida Lacombe Camargo. A rápida necessidade dapublicação de uma segunda edição deste livro sinaliza a boaacolhida por ele obtida junto à comunidade jurídica nacio­nal, apontando para o fato de que ele tornar-se-á cada vezmais uma referência obrigatória para os estudos jurídicosem nosso país.

294

Impresso em offset nas oficinas daFOLHA CARIOCA EDITORA LTDA.

Rua João Cardoso, 23 - Te!.: 2253-2073Fax.. 2233-5306 - Rio de Janeiro - RJ - CEP 20220-060